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Solicitadores ilustres: Brás Afonso

Miguel Ângelo Costa

Solicitador e Agente de Execução

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SOLICITADORES ILUSTRES

BRÁS AFONSO

Brás Afonso, nosso escrivão, Solicitador de todos os feitos e coisas da Justiça na Corte e na Casa da Suplicação. Vila de Santarém, 10 de maio de 1468*.

Nas Cortes realizadas em Lisboa, nos meses de abril e maio de 1468, numa das 20 que o Rei Dom Afonso V (1432/1481) mandou realizar no seu longo reinado de 43 anos, os procuradores pediram-lhe “que moderasse nos gastos, pusesse mão firme nas cousas da coroa, em que sustivesse seu Estado como seus antecessores faziam e não os dê tanta soltura sem necessidade como dava” (1). Este conselho das pessoas mais avisadas do reino alertava para as benesses que o Rei concedeu a todos os que o acompanharam na batalha fratricida de Alfarrobeira, onde seu tio D. Pedro, Duque de Coimbra, viria a falecer.

Ora, o soberano, dando razão aos avisos dos procuradores da Corte, procedeu a uma vasta remodelação da sua governação, visando principalmente a administração da Justiça, matéria de impostos, trabalho agrícola, lavramentos de moeda, etc (2). Para a reforma da Justiça do seu reinado nomeou o Doutor João Fernandes Silveira, conceituado embaixador em vários países europeus, hábil negociador das coisas do Estado com os países estrangeiros, que esteve até na negociação e preparativos do enlace matrimonial da irmã do rei, D. Leonor, com o Imperador Frederico III do Sacro Império Romano-Germânico e no casamento falhado entre D. Afonso V e Isabel Católica. Silveira trazia uma grande experiência, que foi formando ao longo da sua carreira enquanto embaixador em diversos países na área da Justiça, tendo verificado, a certa altura, a existência de uma terminologia jurídica não aplicada ainda em Portugal: o “Solicitador”. Palavra esta que, na etimologia latina e, por consequência, no português e castelhano, tinha várias versões, algumas pouco recomendáveis, mas já figurava naqueles países desde os primórdios do século XIV, como o Procurador de Causas Judiciais, dando-lhe uma forma abrangente no mundo jurídico . A primeira vez que a palavra “Solicitador” surge no nosso ordenamento jurídico é quando se nomeia Brás Afonso como Solicitador de todos os feitos e coisas da Justiça e na Casa da Suplicação, no dia 10 de maio de 1468. Mas, afinal, quem era Brás Afonso? Nasceu em Lisboa, por volta de 1420. Aos 19 anos já era Clérigo e Bacharel em Direito Canónico. Em 1442, era bedel e escrivão da Universidade de Lisboa e Escolar em Leis em 1456. Foi Ouvidor da Corte por diversas vezes até 1466, assumindo o o cio de Terceiro dos Agravos. E, finalmente, a 10 de maio de 1468, é nomeado Solicitador de todos os feitos e coisas de Justiça da Corte e na Casa da Suplicação, recebendo, logo em junho, o mantimento anual de 4.200 reais brancos, que terá enquanto tenha este o cio, coberto pelas penas arrecadadas de armas e de sangue . Exerce este cargo até setembro de 1476, tendo desistido a favor de seu irmão Diogo Afonso, escudeiro de João Fernandes da Silveira (5), para ser nomeado Solicitador da Justiça e Ouvidor do Algarve nesse mesmo ano. Anteriormente, já tinha sido nomeado Juiz de Fora em Silves (1470), Juiz per nos em Faro (1471), Juiz de Fora de Tavira e Corregedor do Algarve (1474) (6), exercendo funções no poder régio durante 41 anos, que abrangeram todo o reinado de D. Afonso V e princípios do reinado de D. João II. O longo reinado de D. Afonso V foi bastante controverso. O monarca, com ambições da união ibérica, com batalhas ganhas e perdidas, guerras na Europa, em África e descobrimentos, encontrava-se muito

NOTAS tempo ausente do reino. Tinha, pois, de estar esco* Arquivo Nacional da Torre do Tombo - Chanc., rado por gente da sua confiança, a quem confiava o

Af. V, L. 28, fol. 68v; bom governo do país e de suas possessões além-mar. 1 – Rui de Pina: “Crónicas”; Um deles foi, de facto, o Solicitador Afonso Brás, que 2 – Veríssimo Serrão: “História de Portugal”, chegou a Corregedor e Juiz de Fora, não por ser um

Vol. II, pág. 229; homem formado em Leis, para cujos cargos no equa3 – Ver Solicitador: dor da sua vida foi promovido, mas sim pela confianetimologia. Amélia Polónia, pág. 69, Ed. C. ça que o Rei tinha nele, pelo seu saber, experiência e

Solicitadores;4 – Arquivo lealdade. Não esquecer que, na Idade Média, muitos

Nacional da Torre do dos que assumiam os cargos mais altos da magistra-

Tombo - Chanc., D. Afonso V, Livro 7; tura não eram só os formados em leis pelas universi5 – Idem pág. 53, 53 vº; dades, mas sim nomeados pelo próprio Rei, como pré6 - Luís Miguel Duarte: mio dos seus feitos, da sua experiência e lealdade. Foi

“Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo”, o que aconteceu com Afonso Brás, o homem que pro-

Vol. II. porcionou a certidão de nascimento da nossa Ordem.

BRÁS AFONSO – OFÍCIO

Dom Afonso, vós Doutor João Fernandes da Silveira do nosso conselho e regedor por nós da justiça em nossa Casa da Suplicação e ao nosso Chanceler Mor Corregedor da nossa Corte e nossos Ouvidores, em quaisquer outros nossos Desembargadores e a todos os outros Juízes e Justiças Oficiais e pessoas dos nossos reinos a que a nossa carta for mostrada, saúde. Sabeis que confiando-nos da bondade distinção de Brás Afonso nosso Escrivão, perante o que o fará bem fielmente e como cumpre a serviço de Deus e nosso e bem da justiça o temos, por bem, damo-lo o cio e Casa da Suplicação para nosso Solicitador de todos os feitos e coisas e Justiça. E, porém, vos mandamos que daqui em diante, que o deixeis servir e usar do dito cargo e o cio que lhe por nós é dado segundo por nosso regimento que lhe é mandado e ordenado, que faça e haver mantimento por gastos e percalços, que ao dito o cio e cargo pertencia sem lhe sobre ele pordes dúvida nem embargo em alguma coisa, que seja o qual for à nossa Chancelaria e aos Santos Evangelhos, que bem e verdadeiramente obre e use do dito o cio segundo nosso regimento, que lhe assim para ele por nós é dado e guarde a nós nosso serviço e ao povo seu direito por mal não façam.

Dada em nossa Vila de Santarém, a 10 dias de maio. Pero de Alcáçova a fez. Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quatrocentos e sessenta e oito.

Traduzido por Miguel Ângelo Costa

O PAÍS E A SOLICITADORIA. ANTES E DEPOIS

DO 25 DE ABRIL.

“Faltam cinco minutos para as vinte e três horas. Convosco, Paulo de Carvalho, no Eurofestival de 74, ‘E Depois do Adeus’…”. A primeira senha ecoa nos Emissores Associados de Lisboa. Passaram pouco menos de trinta minutos. Era 00h20 do dia 25 de Abril de 1974. O programa Limite, da Rádio Renascença, transmite a música “Grândola Vila Morena”, de José Afonso. Os militares do Movimento das Forças Armadas tiveram a certeza. As operações militares estavam em marcha e eram irreversíveis. Hoje, e no ano em que arrancam as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril de 1974, a liberdade leva a Sollicitare até Vila Franca de Xira para, sem censuras, conversarmos com Silva Queiroz, Solicitador desde os tempos de ditadura, e Diana Queiroz, a exercer a profissão num país que só conheceu em democracia.

POR ANDRÉ SILVA

“Esta nota fui eu, Silva Queiroz, quem a redigiu e afixou na porta, para os empregados e estagiários, a pedido do meu padrinho, Dr. Joaquim Gomes Mota, no seu escritório sito na Av. Fontes Pereira de Melo, n.º 47 – 2º esquerdo, em Lisboa, do qual era chefe de escritório, em virtude de ter recebido um aviso de um amigo sobre o início de uma revolução.”

“O cansaço pela opressão em que o povo vivia, a manutenção da guerra, a negação da independência aos povos africanos e também a desolação da perda dos familiares que por lá morriam, motivou as Forças Armadas que surpreenderam não só o povo, como a Europa e o Mundo pelo sucesso da vitória que trouxe a liberdade ao povo”, conta-nos, emocionado, Silva Queiroz. A madrugada foi longa.

Ao fundo, o dia vai nascendo. Tal como a liberdade. Mas, devagar. À 00h30, começaram as operações para ocupar os locais estratégicos, de acordo com o plano. Às 03h45, o primeiro comunicado do MFA foi difundido pela Rádio Clube Português. Às 05h45, Salgueiro Maia chegou ao Terreiro do Paço. Às 10h00 em ponto, o Solicitador Silva Queiroz afixava, na porta do escritório, um simples papel, escrito a vermelho e com as próprias mãos. “Podem ir para casa. O escritório hoje está fechado. 25/4/74 – 10 horas”. Um papel que, em silêncio, gritava medo do desconhecido, do que poderia acontecer nas horas que se adivinhavam, mas gritava, também, esperança. Principalmente, esperança por um futuro diferente. Enquanto colava o simples papel para avisar os funcionários e estagiários, sentia uma emoção tão forte quanto a revolução que encheria as ruas. Aquele era, afinal, um momento tão desejado e, ao mesmo tempo, motivo de uma apreensão tão grande. “Foi um dia expectante, agarrado a tudo o que eram notícias e a aguardar o resultado final”.

E o ‘resultado final’ foi a mudança. A mudança para o país e para a vida de cada cidadão. “(…) O dia inicial inteiro e limpo, onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitamos na substância do tempo”, escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen e, passados tantos anos, ainda é di cil descrever melhor o que foi este dia. O dia que, todos os dias, se faz sentir no dia a dia de cada um. “Foram tantas as conquistas. No entanto, as que me surgem de imediato e que talvez considere mais importantes são essencialmente na saúde, na educação e na liberdade de expressão”, diz-nos Diana Queiroz, nascida já depois da Revolução dos Cravos. Mas acrescenta: “Todos os cidadãos passaram a ter acesso à saúde. A educação e o acesso ao ensino superior passaram a ser algo natural e o número de mulheres

Em tempos de ditadura, a própria Justiça estava “comprometida, amedrontada e era subserviente”

SILVA QUEIROZ com estudos e a frequentar o ensino superior aumentou bastante. Hoje, podemos dizer livremente o que pensamos sem qualquer censura. Foi criado um salário mínimo e temos melhor acesso ao emprego, nomeadamente no que diz respeito às mulheres. Na Justiça, houve também muitas alterações e uma grande e importante conquista a nível do Código Civil, igualando a mulher ao homem a nível de direitos, deixando esta de ser uma ‘doméstica’ e sem relevância na sociedade”.

Tudo era diferente antes do 25 de Abril. Até mesmo nos escritórios. Austeros e inflexíveis. Principalmente para as mulheres. Silva Queiroz, que trabalhava, então, com o seu padrinho, advogado de profissão, relata como recorda essa época: “Era chefe do escritório e tinha de o reger por regras consistentes. Não chamo ditatoriais, mas eram obrigações e deveres exímios. Por exemplo, as funcionárias só passaram a poder entrar no escritório de calças algum tempo após. Dentro dos parâmetros que a sociedade vivia, só com tempo é que os hábitos e os sistemas se renovaram”. Diana, atenta às palavras e às memórias do pai, sublinha: “Dou muito valor a quem viveu a ditadura, principalmente às mulheres que sofreram muito, que deixaram de viver e de ser felizes por todas as restrições que lhes eram impostas. (…) Se fosse homem, até conseguia imaginar um percurso normal na educação e no ensino superior. Como mulher, seria di cil conseguir estudar e ingressar na universidade e, mesmo conseguindo, não sei se, como profissional, teria a credibilidade que era dada aos homens com a mesma profissão. Ser solicitadora naquela época seria certamente muito di cil”. Aliás, em tempos de ditadura, a própria Justiça estava “comprometida, amedrontada e era

“Dou muito valor a quem viveu a ditadura, principalmente às mulheres que sofreram muito, que deixaram de viver e de ser felizes por todas as restrições que lhes eram impostas.”

DIANA QUEIROZ

subserviente”, explica-nos o Solicitador Silva Queiroz. E são as memórias que mantêm bem despertas as prioridades, mesmo para quem não as viveu e só as escuta pela voz de outros. Para a Solicitadora, “para além do dia e da noite, pouco é o que podemos dar como adquirido. A democracia e a liberdade são exemplos disso mesmo. A vida e a sociedade estão em constante mudança e nós temos de nos adaptar e aprender a viver com essas mudanças. A democracia e a liberdade são conquistas demasiado importantes para não deixarmos de lutar por elas diariamente”. E ainda há muito para conquistar, principalmente quando pensamos “no feminino”. “É emergente continuar e não desistir da luta pela igualdade de género. Já conseguimos muito, é certo, mas a mulher tem de ser igualmente respeitada, considerada e valorizada pela sociedade e, acima de tudo,

“É emergente continuar e não desistir da luta pela igualdade de género. Já conseguimos muito, é certo, mas a mulher tem de ser igualmente respeitada, considerada e valorizada pela sociedade e, acima de tudo, no mercado de trabalho, de forma a existir, designadamente, uma igualdade salarial.”

DIANA QUEIROZ no mercado de trabalho, de forma a existir, designadamente, uma igualdade salarial.” À nossa conversa e viagem no tempo juntou-se o elemento mais novo da família Queiroz. Maria Madalena. Filha de Diana e Neta de Silva Queiroz. Para quem nasce numa democracia com quase cinquenta anos, a palavra liberdade não terá, certamente, o mesmo significado. Não será menos valiosa, nem menos valorizada. Mas será, certamente, vista com outros olhos e sentida de uma outra forma. E, por isso, é preciso que as memórias continuem vivas e a perdurar. A mãe, sem hesitações, assume o compromisso: “Quando ela tiver idade para compreender, explicarei certamente o que é a liberdade, como era a vida antes da liberdade e o que aconteceu para que ela passasse a existir. Por agora, demonstro-lhe o quão bom é ser livre e ensino-a a ser feliz nesta sociedade que nos permite ser livres e viver com tranquilidade e qualidade”. Já o avô, conhecedor das amarras da ditadura, assume que preferiria não ter de explicar “algo tão pouco interessante e, até, nefasto”. “Prefiro entusiasmá-la para o conhecimento da independência do ser humano, para a importância da autonomia e, sobretudo, a ser livre na dignidade pela vida, agindo por si própria, consciente da responsabilidade dos seus atos e tendo em conta o respeito absoluto pelo seu semelhante”.

De uma forma ou de outra, o 25 de Abril de 1974, a sua história e o que representa para a História do país continuarão, certamente, a fazer parte das histórias das gerações. Porque, independentemente do futuro que se construir, os alicerces do passado permanecerão.