Antologia da 28ª edição do Concurso Literário de Poesia e Prosa

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XXVIII CONCURSO LITERÁRIO DE POESIA E PROSA

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FICHA TÉCNICA

DIAGRAMAÇÃO Neusa Maria Soares de Menezes

ARTE DA CAPA Vanessa Poli Hoffmann Matheus Alves

REVISÃO GRAMATICAL Beatriz Virgínia Camarinha Castilho Pinto

COORDENAÇÃO GERAL Nívea Poli Barbosa

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PALAVRA DA PRESIDENTE

Caríssimos vencedores do XXVIII Concurso Literário de Po-

esia e Prosa, parabenizo-os por seus talentos literários: os descobertos nesta edição e os há tempos já reconhecidos. Seria correto deixar nesta Antologia palavras festejadoras; afinal, nela estão os nobilitados de um concorrido Concurso, mas minha voz se mistura à comoção de milhões de pessoas, num cenário conturbado mundial de pandemia, pela Covid-19, há meses assombrando-nos com dores e tristezas. Se não há o que festejar, no momento, entretanto, há que se reconhecer a reveladora qualidade dos textos em prosa e poesia do Concurso de 2020, cuja patronesse é a acadêmica Clineida Andrade Junqueira Jacomini, hábil cronista, que, desde o ano de 1994, ocupa a cadeira de número 43, tendo como patrono também cronista Rubem Braga.

Em meio a preocupações e novos aprendizados de vida, um

número expressivo de trabalhos, vindos de vários estados brasileiros e de diversos países, fez-nos refletir o quão importante foi realizar o Concurso e oportunizar momentos de inspiração e criação a mais de setecentos prosadores e poetas, enquanto se convivia com o desconhecido vírus. Há que se respeitar o ato de escrever como um bom remédio à alma. Pensando assim, esta Academia de Letras de São João da Boa Vista, há quarenta e nove anos a serviço da língua portuguesa, transpôs as dificuldades culturais impostas pela pandemia e seguiu com seu mais tradicional concurso internacional.

No entanto, a necessidade de cumprir as regras de isolamen-

to nos impôs, este ano, a edição da Antologia somente no formato on-line, disponibilizada no site da Academia de Letras. Contamos -5-


com a compreensão de todos.

Agradeço aos acadêmicos que emprestaram seus conheci-

mentos literários como comissão julgadora, à acadêmica Beatriz Castilho pela prestimosa revisão de textos e, ainda, à acadêmica Neusa Menezes, pela primorosa montagem do livro. Mas, especialmente, destaco agradecimentos à Coordenadora Nívea Poli Barbosa, por seu desvelo e talento na condução dos trabalhos.

Parabéns, poetas e prosadores premiados, seus textos estão

imortalizados nesta Casa de Letras.

Lucelena Maia Cadeira 13 Patrono Humberto de Campos Presidente da ALSJBV

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PALAVRA DA PATRONESSE

Meus diletos amigos(as) escritores(as)

Senti-me feliz e orgulhosa (mas também velha!) ao ser escolhida este ano para ser a patronesse deste nosso sempre memorável Concurso Literário de Poesia e Prosa. Isso porque a escolhida para ser a ‘madrinha’ de uma nova turma é sempre a acadêmica mais antiga... e, com setenta e cinco anos, devo estar ocupando esse lugar. Mas ser idosa tem um ótimo significado: não morremos jovens e ainda estamos vivos... e somos mais experientes, mais sábios. Pesarosamente, este ano de 2020 se tornou atípico e tenebroso, inesquecível para todos nós, mas positivo (porquanto tudo na vida tem dois ou mais enfoques), especialmente para vocês que tiveram seus trabalhos selecionados, inseridos e guardados para sempre nesta Antologia tão especial. O mundo será diferente; “nada será como antes”, como disse Lulu Santos, que citei em meu discurso de posse e de pose em nossa Academia, em 1994. A história da humanidade, além do marco cristão AC / DC, será agora descrita como AC, antes do Corona, e DC, depois dele. Tive meu primeiro contato com a escrita e leitura em 1952, há sessenta e oito anos. Só aos sete anos se ingressava na escola – e esta entrou em minha vida para nunca mais sair. Nasci e vivo até hoje na zona rural; sempre vi meus pais e meu irmão com seus amados livros nas mãos, nossos companheiros perenes. Isso de gostar de ler é mesmo atávico! Ao brincar, já era a professora, mandona, mas que transmitia o que sabia aos aluninhos da fazenda. Depois de -7-


formada (só poderia ser no Curso Normal!), ingressei no magistério paulista e lecionei em todos os níveis, dando aulas na Unifeob até hoje, para a terceira idade. Escrevo desde que me conheci por gente... pensante! Sou, portanto, ligada visceralmente aos livros e ao ensino. Assim que me caiu um livro nas mãos, a paixão e a convivência com as letras foram eternas... e duram até hoje. Nunca fui uma menina afoita; tinha reumatismo e bronquite, nada compatíveis com corridas e exercícios físicos. Mas, com os livros... ah! os livros! Esses me fizeram participar de lutas épicas; viajar para todos os continentes e épocas, anos e eras dos mais diversos; conhecer e me encantar com tudo e com todos. Os livros são mágicos! E vocês já podem atestar, vivenciando isso. São uma das melhores terapias (a outra é a divina música) e agem como catarse, fazendo um ‘banho’ mental e emocional, levando as mágoas, trazendo lembranças importantes e perpetuando nossas emoções. “Os livros governam o mundo”, já dizia Voltaire – frase que está gravada no medalhão da nossa Academia de Letras. Meu autor predileto desde a infância, Monteiro Lobato, vaticinou sabiamente: “Quem não lê, mal ouve, mal fala e mal vê” e também: “Um país se faz com homens e livros”. Preciso deixar aqui registrada a minha admiração pela excelência dos textos que tive a honra de julgar (sempre prosa, cronista que sou) e também daqueles outros poemas que li, durante todos esses anos de existência de nossos Concursos: a cada ano parecem ser melhores, mais profundos em reflexão e vivência; perfeitos quanto ao conteúdo e à forma. Difícil julgar: um melhor que o outro! Tarefa árdua! Em poesia ou prosa, os textos desta Antologia conduzem o leitor ao universo do amor e da condição humana, das descobertas e desventuras da infância, do processo de envelhecimento e da desesperança frente à situação do país, das tragédias sociais e ambientais, da vivência da COVID-19 – enfim, um belo retrato do homem contemporâneo. Edwald Butler, inventor inglês que em 1884 criou o Butler Petrol Cycle, um carro de três rodas movido a gasolina, escreveu -8-


– e isso se tornou o meu lema de vida, que repasso a vocês: “Todo homem fica, às vezes, entusiasmado; alguns se entusiasmam por trinta minutos; outros por trinta dias, mas só os que se entusias mam por trinta anos têm sucesso na vida”. E então eu me pergunto: algum de vocês pararia de escrever? Não creio – pois já foram contaminados pelo eterno vírus da leitura e escrita (só quem lê, escreve bem). Espero e recomendo, como entusiasta da vida e pela vida, que vocês todos continuem... a escrever, a participar, a ganhar... ou não! Mas, sem perder o gosto pelas letras. Um primo meu, criança ainda, quando lutava judô e ganhava, dizia ufanista: “Eu ganhei!”. Quando perdia, dizia, ainda animado: “Eu competi”. Não esperem ganhar sempre, mas participem de tudo e sintam-se úteis, atuantes, eficientes, vivos! Parabéns a todos! Nós, que amamos as letras, viajamos com os livros e aprendemos com a vida. Sejamos felizes!

Clineida Andrade Junqueira Jacomini Cadeira 43 Patrono Rubem Braga Patronesse do XXVIII Concurso Literário

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Palavra da Coordenadora Pelo segundo ano, recebi a agradável missão de coordenar o Concurso Literário da Academia de Letras de São João da Boa Vista, o que é, para mim, uma grande honra. Apesar do momento doloroso pelo qual o mundo e, consequentemente, o Brasil vem passando, devido a essa pandemia da Covid-19, não esmoreci e acreditei que o nosso XXVIII Concurso Literário de Poesia e Prosa 2020 seria um sucesso. Ficamos confinados em nossas casas, mas que momento melhor para relaxar e colocar nossas ideias e criatividade no papel? E foi exatamente o que aconteceu: recebi um número expressivo de inscrições, setecentas, vindas de vários lugares como Portugal, Itália, África, Japão e, claro, de quase todos os estados brasileiros. E essa interação foi muito importante para todos nós, pois pudemos ocupar nosso tempo da melhor forma possível, que é divulgar a cultura literária. A Academia de Letras de São João da Boa Vista sempre buscou manter viva a língua portuguesa, e este Concurso é prova da nossa dedicação ao mundo literário, mas foram todos vocês que, com suas obras, tornaram esse nosso objetivo uma realidade. Todos os participantes deste Concurso estão de parabéns pelos trabalhos excelentes que nos foram encaminhados. Agradeço à confreira Clineida Andrade Junqueira Jacomini que, alegremente, aceitou nosso convite para ser a patronesse deste Concurso. Quero agradecer à confreira Beatriz V. C. Castilho Pinto pela revisão textual das obras premiadas e, também, à confreira Maria José G. Moreira da Silva por seus esclarecimentos em questões pontuais. À confreira Neusa Maria Soares de Menezes, minha gratidão pela diagramação da nossa Antologia. À minha querida filha Vanessa Poli Hoffmann, meu muito obrigada pela ajuda na arte da capa da Antologia. - 10 -


E aos meus colegas acadêmicos que, voluntariamente, se colocaram à disposição para julgarem os trabalhos a nós enviados, meu sincero agradecimento: Beatriz V. Camarinha Castilho Pinto Carmem Lia Batista Botelho Romano Clineida Andrade Junqueira Jacomini Lauro Augusto Bittencourt Borges Lucelena Maia Luiz Fernando Dezena da Silva Maria Cândida de Oliveira Costa Maria Cecília Azevedo Malheiro Maria Ignez dos Santos D’Ávila Ribeiro Maria José Gargantini Moreira da Silva Raul de Oliveira Andrade Filho Ronaldo Frigini Sérgio Ayrton Meirelles de Oliveira Silvia Tereza Ferrante Marcos de Lima Sonia Maria Silva Quintaneiro Vania Gonçalves Noronha. Lembro que os prêmios do Concurso Literário homenageiam os nomes de três escritores dentre os acadêmicos que fundaram nossa instituição, em 1971: Prêmio Emílio Lansac Toha, para poesia; Prêmio Fábio de Carvalho Noronha, para prosa; Prêmio Especial Octávio Pereira Leite, para a terceira idade. Obrigada a todos que acreditaram em nosso trabalho. Parabenizo os vencedores deste Concurso, que agora fazem parte da nossa Antologia. Continuem nos dando esta honra, estando conosco nos próximos Concursos. Nívea Poli Barbosa Cadeira 35 Patrono: Casimiro de Abreu Coordenadora do XXVIII Concurso Literário - 11 -


PRÊMIOS

Emílio Lansac Toha (1897-1984) Exímio sonetista, é membro fundador da Academia de Letras de São João da Boa Vista. Natural de São Simão/SP, formou-se em Contabilidade e em Direito. Fundou o Instituto Comercial e atuou como professor titular de Direito Comercial na Faculdade de Ciências Contábeis e Administrativas (atual Unifae) e na Faculdade de Direito (atual Unifeob) de São João da Vista. Foi diretor dos jornais A Cidade de São João e O Constitucionalista, bem como redator dos jornais O Município e A Evolução. Em São Paulo, fundou o jornal literário O Colibri. Foi diretor e redator-chefe da revista Crepúsculo e da Revista de Contabilidade. Colaborou em todos os jornais, tendo-se destacado no período da Revolução Constitucionalista de 1932. Foi membro correspondente de academias e instituições culturais de todo o país. Publicou os livros Entardecer (sonetos), Mensagem, Remanso, Vigília de ternura, Todos cantam sua terra, Cântaro vazio, Antologia poética e Verbena. Quando faleceu, estava com outros dois livros prontos para publicação: Aclive e Música ao longe, este último com sonetos originais. Fábio de Carvalho Noronha (1918-1991) Prosador, poeta e jornalista, é membro fundador da Academia de Letras de São João da Boa Vista. Nascido nessa cidade, foi um autodidata com extraordinária cultura geral. Foi por muitos anos diretor da Câmara Municipal, além de radialista na Rádio Difusora de São João da Boa Vista e jor- 12 -


nalista em várias publicações, como O Município, A Gazeta de São João, A Cidade de São João (onde foi redator), além de jornais e revistas da região. Exímio comunicador e orador, grande conhecedor da história da cidade, era também multi-instrumentista, sendo o autor da melodia do Hino Oficial da cidade – com letra da acadêmica Lucila Martarello Astolpho. Escreveu contos, crônicas e poemas, entre os quais sonetos e trovas, modalidade que ajudou a divulgar. Deixou um livro póstumo, Estórias do cotidiano, com contos curtos, e o inédito Pérolas e plumas, de poemas. Octávio Pereira Leite (1928-1989) Jornalista e escritor, foi um dos fundadores da Academia de Letras de São João da Boa Vista, tendo sido seu presidente por três gestões consecutivas, de 1981 a 1989. Nasceu em Bananal/SP. Exercendo a atividade de cartorário, residiu em Mogi Mirim, onde também colaborava em jornais, e em São José do Rio Pardo, cidade em que chegou a prefeito. Mudou-se para São João da Boa Vista, onde atuou como tabelião, redator do jornal A Cidade de São João e vereador. Foi ainda cofundador da Sociedade Cultural de Debates e do Serviço de Assistência Social, além de presidente do Rotary Clube, tendo recebido o título de cidadão honorário sanjoanense em 1967. É autor dos livros Sob os céus da Europa, Velhas páginas, O Nordeste e a Amazônia e Minhas memórias.

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POESIA Prêmio Emílio Lansac Toha Até 12 anos

1º lugar - Escola - Thiago Marinho Dórea dos Santos - Rio de Janeiro - RJ 2º lugar - Brincar no arco-íris - Tomás L. de Souza - Macuco de Minas- MG 3º lugar - Mata Atlântica - Amana Baggio Pruss - Porto Alegre - RS

De 13 a 18 anos

1º lugar - Gênesis da sua falta - Helena Ricardo Rosa - Taubaté - SP 2º lugar - Sopro da noite - Igor Walfrido Lins - Canoinhas - SC 3º lugar - Sol - Daria Oleksandrivna Mykhailenko - Brasilia - DF

De 19 a 39 anos

1º lugar - Mariana - Marco Antônio Ferreira Trindade - Rio de Janeiro -RJ 2º lugar - Pretérito - Bruno de Carvalho C. Pereira - Rio de Janeiro - RJ 3º lugar - Veleiros no céu - Lidiane Santana Oliveira - Mauá - SP

De 40 a 59 anos

1º lugar - Trajetória - José Ivanildo de Almeida - Itajubá - MG 2º lugar - Covid-99 - Jair Lisboa dos Santos - Rio de Janeiro - RJ 3º lugar - Sopro da aurora - Maurício Cavalheiro - Pindamonhangaba - SP

Prêmio Especial Octávio Pereira Leite Acima de 60 anos

1º lugar - A rocha - Paulo Cezar Tórtora - Rio de Janeiro - RJ 2º lugar - Perguntas no ar - José Atanásio Borges Pinto - Lages - SC 3º lugar - Palavr(Arte)” de Iná de Fátima Araújo Siqueira - Baependi - MG

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POESIA COMISSÃO JULGADORA

Beatriz Virgínia C. Castilho Pinto Carmem Lia Batista Botelho Romano Lucelena Maia Luiz Fernando Dezena da Silva Maria Cândida de Oliveira Costa Maria Cecília Azevedo Malheiro Maria José Gargantini Moreira da Silva Ronaldo Frigini Silvia Tereza Ferrante Marcos de Lima Sonia Maria Silva Quintaneiro

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1º Lugar Poesia até 12 anos

Escola Sem escola não existe profissão Sem escola não existe opção Se sem escola você ficar Você nunca irá trabalhar. Sem escola não existe professor Sem escola nunca haverá trabalhador Porque, sem escola, você nunca vai aprender Sem escola não existe profissão pra você. Com escola, se criam várias profissões, como: Médico, enfermeiro Escritor, pedreiro Engenheiro e muito mais! Ah, e tem mais uma Que, pra mim, é a melhor de todas: O professor! Sem professor não existe escola Sem escola não existe professor.

Thiago Marinho Dórea dos Santos Rio de Janeiro - RJ

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2º Lugar Poesia até 12 anos

Brincar no arco-íris

Brincar no arco-íris é o mesmo que navegar em um mar com muitas cores. Deitar nas nuvens é o mesmo que deitar num lugar confortável. Pensar e relaxar em um hotel é o mesmo que você estar dormindo sonhando. O céu é colorido com o azul e o branco das nuvens. Isso é o mesmo que desenhar. Ver a natureza com paz é o mesmo que não incomodar nem um animal. Plantar árvores é o mesmo que cuidar da natureza. Brincar é o mesmo que abrir uma alegria de uma criança. Amar é o mesmo que fazer amizade no coração. Olhar para as estrelas é o mesmo que ver um eclipse bonito no céu. Navegar no arco-íris é o mesmo que escorregar no escorregador do parque. Ser criança é brincar, é sonhar, é navegar por um mundo de magia e fantasia.

Tomás Lima de Souza Macuco de Minas - MG

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3º Lugar Poesia até 12 anos

Mata Atlântica

Na Mata Atlântica a diversidade é grande mas a degradação da floresta é gigante. Muitos desmatam para criação e plantação a beleza e diversidade da fauna e flora sumirão. Mas com o aumento da conscientização os recursos se manterão!

Amana Baggio Pruss Porto Alegre - RS

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1º Lugar

Poesia de 13 a 18 anos

Gênesis da sua falta Nem que eu o procure pelos profundos vales da morte e tente achá-lo dentro dos escombros do meu coração, sua face se confunde com a de tantos que eu já amei, e, em meio aos meus cacos, não passa mais a sua mesma procissão. Não consigo entender se fui em quem cresci ou se a escolha foi sua em me deixar. Eu não sei onde eu errei, quais foram as minhas falhas, deixar alguém com um sorriso tão doentio me arrastar. Sentada à minha mesa, eu abro meu caderno procurando todos os poemas que não foram feitos para você. Inútil, indiferente e equivocada, eu acho apenas as migalhas que você me deu em forma de elogios. Romantizo a minha perda, a catástrofe de tê-lo amado. Por que eu insisti tanto que você deveria ficar? Por que eu não ouvi o que todos me diziam? Como uma gota de chuva, um pouco de orvalho, o vento machucando o meu rosto, a rosa se despedaçando do lado de fora da minha janela, eu nunca mais vou vê-lo. Helena Ricardo Rosa Taubaté - SP

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2º Lugar

Poesia de 13 a 18 anos

Sopro da noite

Um vento forte soprava sobre as folhas já enegrecidas pela escuridão da noite; a luz da lua, fraca e suave como sempre foi, me fazia pensar um pouco menos na morte. Oh, mas que sensação era aquela que transbordava por meu corpo?! O sopro da noite me acordara de meu sono de imundícies e pecados e agora eu ria da doce visão noturna da pálida noite e dos escuros prados. Ora, ora, ora, mas que belíssima visão tenho dos prados. De fato, tão bela que sequer Shakespeare saberia expressar em palavras. Mas se nem ele poderia expressar, quem sou eu para tentar? Digo o que sou, sou um homem a se apaixonar. Penso ser mero fruto de imaginação, mas não, é bem real, tão real que sinto arder em meu peito sem a menor ideia se isso é ruim ou bom. Apenas sei que aquilo que é bonito nos prados da noite É o sorriso que ela é capaz de dar com seus olhos.

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Olhos cativantes que nem mesmo o mais habilidoso dos poetas nem mesmo o mais apaixonante dos bardos e nem mesmo o sopro da noite que me dizia tantas coisas, que batia nas folhas e que movimentava o prado sem cessar poderiam descrever a tamanha beleza daquele olhar. Eu não quero mais a morte, quero apenas a ela. Ela e os prados falam comigo e eu os ouço sem hesitar. Um vento forte soprava sobre os cabelos escuros por sua natureza que haviam de tocar as pontas de meus dedos e me fazer delirar. Aquela dama era o meu sopro da noite um sopro apaixonante um sussurro delirante um motivo para continuar vivendo. Mas agora ela partiu E a noite nunca mais soprou outra vez.

Igor Walfrido Lins Canoinhas - SC

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3º Lugar Poesia de 13 a 18 anos

Sol

Só quero ser seu sol do meio dia, Quero ser a sua lua na noite tardia, Quero ser a alma de sua poesia E o sentimento dessa melodia.

Eu quero ser o sol da tarde, Que infinitamente sobre a gente arde. Eu quero ser a lua da meia noite, Que os sonhos mais queridos para a gente conte.

Eu quero ser o pôr do sol em sua alma, Que lhe transmite infinita calma. Eu quero ser a lua em seu coração, Que todas as noites lhe cante essa canção.

Daria Oleksandrivna Mykhailenko Brasília - DF - 22 -


1º Lugar Poesia de 19 a 39 anos

Mariana

Mariana, Flor de minérios, Senhora do ouro, Origem de tudo, Primeira vila, primeira cidade, E tudo mais, Oxum das Minas Gerais. Mariana, Teu dorso ondulado, Teu ventre fecundo, Tuas matas vitais, São mistério a nos perseguir, Nebuloso planalto de paz. Mariana, História sem fim, Procissões de acalanto, Praças de afeto, Arquitetura de fé, Carnaval de alegria Do bloco primeiro.

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Mariana, Vastidão cristalina, Alimento do homem faminto, Infinito desejo de quem Tem sede de aventura. Mariana, O que fizeram com teu filho sadio? Pobre Rio Doce que agoniza em silêncio, Mataram a sinuosa poesia dos teus afluentes. Mariana, Com a lama peganhenta da ambição, Romperam o limite da crueldade, Arrebentando a barragem da sombra e do medo. Mariana, Se tuas águas claras Hoje são escuras, Se a vida padece em teu mundo, Se tu perdeste teu rumo, Saibas que as forças da natureza Hão de te regenerar!

Marco Antônio Ferreira Trindade Rio de Janeiro - RJ

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2º Lugar Poesia de 19 a 39 anos

Pretérito

Do céu, fez seu único teto. Do chão, seu íntimo tato. Nada a deixar de concreto, senão seu velho retrato de quando ainda tinha afeto ou mesmo vestia fato. Hoje a esperar pelo veto da vida em derradeiro ato contempla esse mundo incerto de dentro de um sonho pacato: foi de um cão que colheu, decerto, seu mais humano contato.

Bruno de Carvalho Castor Pereira Rio de Janeiro - RJ

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3º Lugar Poesia de 19 a 39 anos

Veleiros no céu moleques baldios atravessam a nado o mar de concreto brotam do asfalto feito erva daninha entre escombros e estatísticas são noticiados sem serem vistos filhos de pedras anônimas navegam à deriva e, dos lares desmantelados, avessos qual veleiros no céu naufragando em brancas nuvens sussurram por trás das vagas: — Mas por que foi que nos chamaram?

Lidiane Santana Oliveira Mauá - SP - 26 -


1º Lugar Poesia de 40 a 59 anos

Trajetória

Partiste desta vida transitória, deixando-nos teu riso de bondade presente dia a dia na saudade, que te retrata em tudo na memória. Atendeste ao chamar do Rei de Glória, que preparou lugar na eternidade àqueles que praticam caridade, fazendo da virtude a trajetória. Ah, neste mundo estamos de viagem! Mas quem cultiva o bem na caminhada não passa pela vida de passagem. Assim foi entre nós a tua estada: uma lição de amor, de fé e coragem. Rastros de luz deixaste em tua estrada.

José Ivanildo de Almeida Itajubá - MG

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2º Lugar Poesia de 40 a 59 anos

COVID-99 Há um monstro solto lá fora invisível e suspenso no ar que assalta o oxigênio que assedia as trancas do lar Bombardeios seguem há horas flutuando sobre as cabeças cadentes bombas atônitas cuspidas a todo lugar A cidade segue cercada o predador rastreia as presas ‘snipers’ a postos pro tiro minam vulneráveis defesas Trama em sigilo os destinos sem pátria, fé ou casta social o inofensivo amigo ao teu lado mutante ameaça viral Tropas em heroicas batalhas sem tanques ou artilharia no uniforme cores de sangue da paz perante lágrimas da alegria - 28 -


Sob um teto a ausência de chão confinados em cativeiro nas janelas engasga-se o grito cantos, risos e desespero Existirá um tempo de resistência tempo para se esconder existirá um tempo de reticências tempo para deixar de viver E tempo de abrir as portas emperradas do coração despido de máscaras da cegueira e da iniquidade de derrubar muros hasteados resgatar o tempo extraviado e julgando-nos mais vivos um dia sermos absolvidos

Jair Lisboa dos Santos Rio de Janeiro - RJ

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3º Lugar Poesia de 40 a 59 anos

Sopro da aurora Se a noite mal dormida impõe sequela devido à insônia, enfrento a madrugada rogando a paz numa oração singela, rogando o fim da minha cruz pesada. A cada aurora descerro a janela e fecho os olhos... E sinto a chegada daquela que me infunde a paz, daquela que nenhum dia chegou atrasada. Ao me cobrir com divinais afagos, desfaz de mim descomunais estragos e diz que os males já não são mais meus. E mais um dia envolto em doce enleio, mais uma vez energizado, creio que a santa brisa é uma das mãos de Deus.

Maurício Cavalheiro Pindamonhangaba - SP

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1º Lugar Poesia acima de 60 anos

A rocha No cume da montanha, a pedra colossal!... Solene, majestosa, intangível e fria, Imune à tempestade e ao vento que assovia, Viaja pelo tempo, impávida e imortal. Contempla o firmamento e a vida sempre igual, Devora cada século em paz e harmonia, Inerte ao sofrimento e aos guizos da alegria Prossegue inexpressiva, alheia ao bem e ao mal. Quisera um coração tal qual este rochedo, Que fosse indiferente e não sentisse o medo, Blindado ao choro, ao riso e à ilusão do amor. Uma alma empedernida, insensível deveras, Que, incólume, vogasse isenta de quimeras Sem ter que conhecer o látego da dor.

Paulo Cézar Tórtora Rio de Janeiro - RJ

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2º Lugar Poesia acima de 60 anos

Perguntas no Ar Aonde irão meus escritos No dia em que eu me for? Será que serão benditos Na voz de algum cantador?

Aonde irão as poesias Que escrevo na noite calma? E os cantos e as nostalgias Que eu levo dentro da alma?

Aonde irão os meus sonhos De ver um mundo melhor E as milongas que componho, No dia em que eu me for? - 32 -


E o meu cantar galponeiro, Minhas rimas, minhas palavras? Aonde irão, meus parceiros, Os versos da minha lavra?

Aonde irão referências Das minhas rimas e afetos? Será que terão sequência Na voz dos filhos e netos? Aonde irão meus pecados, Os meus erros e incertezas? Será que serão pesados Pelas leis da natureza?

Sempre que fico cismando, Nas horas de solidão, Eu me pergunto, até quando Vai bater meu coração?

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Como não tenho respostas Entrego a Deus os meus dias E faço as minhas apostas Trançando verso e poesia.

José Atanásio Borges Pinto Lages - SC

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3ยบ Lugar Poesia acima de 60 anos

Palavr(Arte)... Parole

Palabra Word

Palavra

Wort

A palavra lavra cรก dentro lรก fora lavora (in)verso - (in)versa

Ora por dentro - 35 -

Mot


ontem e agora banhada em tristeza – alegria Palavra é lavra dispersa adversa imersa em Poesia...

Iná de Fátima Araújo Siqueira Baependi - MG

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PROSA Prêmio Fábio de Carvalho Noronha

Até 12 anos

1º lugar - Depois do pesadelo - Damaris Enola Pinheiro Ricalo - Mindelo - Cabo Verde 2º lugar - O menino insatisfeito - Thiago Marinho Dórea dos Santos - Rio de Janeiro - RJ

De 13 a 18 anos

1º lugar - Os ensinamentos da solidão - Ana Julia Oliveira - São João da Boa Vista - SP 2º lugar - Soterrado de tristeza - João Povêda Balarini - São João da Boa Vista - SP 3º lugar - O olfato da vida - Maria Paula Aleixo Golrks - São João da Boa Vista - SP

De 19 a 39 anos

1º lugar - Cuscuz com manteiga - Marcos Nunes Loiola - Botuporã - BA 2º lugar - O farol - Sihan Felix - - Natal - RN 3º lugar - Monólogo do fim - Mariana Silva Moraes - Porto Alegre - RS

De 40 a 59 anos

1º lugar - O pintor de auroras - Maurício Cavalheiro - Pindamonhanga -SP 2º lugar - O rio sem fim - Cláudia Cristina Guelfi Faga - São Paulo - SP 3º lugar - Sobre todas as infâncias - Francisco Sinval Farias de Sousa Fortaleza - CE

Prêmio Especial Octávio Pereira Leite

Acima de 60 anos

1º lugar - Súplica do navio à deriva - Sarah de Oliveira Passarella Campinas - SP 2º lugar - Mudança de rumo - Pedro Diniz de Araújo Franco - Rio de Janeiro - RJ 3º lugar - O mestre das gargalhadas - Denivaldo Piaia - Campinas - SP - 37 -


Prosa COMISSÃO JULGADORA

Clineida Andrade Junqueira Jacomini Lauro Augusto Bittencourt Borges Maria Ignez dos Santos D’Ávila Ribeiro Raul de Oliveira Andrade Filho Sérgio Ayrton Meirelles de Oliveira Vania Gonçalves Noronha

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1º Lugar Prosa até 12 anos

Depois do pesadelo Era uma vez uma menina chamada Beatriz. Um determinado dia os pais disseram-lhe para ir dormir. Ela deitou-se mas não conseguia dormir. Então ela disse: “ Sono, vem”, “Sono, por favor, vem”. Depois de muitas vezes gritando “Sono, vem”, ela conseguiu adormecer. Essa noite sonhou com a COVID-19. Era um bichinho do tamanho e da mesma cor que uma formiga. A COVID-19 tinha surgido na cidade e infectado toda a gente. Beatriz acordou desesperada e saiu correndo em direção aos pais. Mas então olhou para fora e pareceu-lhe tudo normal. Ela perguntou aos pais: “A COVID-19, é verdade que já infectou todo o mundo lá fora?”. A mãe respondeu-lhe: “Não, filhinha, já passou. No entanto, continuaremos a sair o menos possível por um tempo”. Beatriz saltava de alegria: “Aleluia. Aleluia”. Beatriz abraçou seus pais de tão feliz que estava, e seu pai lhe advertiu que, depois da COVID, o mundo viveria um novo episódio, com comportamentos diferentes, com muito menos contato físico entre as pessoas. Beatriz perguntou ao pai se não poderia abraçar e beijar as suas amiguinhas e sua professora quando voltasse à escola, e ele lhe disse que seria melhor dar umas longas férias, mais longas que suas próprias férias, aos beijos e os abraços, pelo bem de todos. Beatriz passou essas férias em casa. Não foram à praia. Não foram à piscina. E não foram ao parquinho. Mas Beatriz era feliz porque passava os dias vendo desenhos animados, desenhando, tocando piano e lendo. - 39 -


Dois meses depois daquele sonho, a escola começou de novo. Beatriz saía à rua depois de muito tempo e era como se estivesse a acordar de outro sonho. Ela não ficou surpresa quando viu que sua turma de trinta alunos foi dividida em dois grupos, como medida preventiva. Já tinha sido anunciado na rádio, na televisão e na internet. Todavia, Beatriz ficou feliz quando soube que sua melhor amiga, Íris, estava na mesma sala que ela. Como todas as medidas tinham sido anunciadas, todos os alunos sabiam o que deviam fazer e como deviam cumprimentarse: com o dedo polegar para cima, com os braços abertos para simular um abraço, e soprando a mão aberta em direção à outra pessoa para simular um beijo. E, todos os dias, antes de começar as aulas, diziam todos juntos: “Contra a COVID e em prol da VIDA”.

Damaris Enola Pinheiro Ricalo Mindelo - Cabo Verde

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2º Lugar Prosa até 12 anos

O menino insatisfeito

Era uma vez um pequeno menino. Ele era insatisfeito com tudo que ganhava e com o que fazia. Estava quase chegando o Natal, o menino era muito exigente. Ele pediu para seu pai e para sua mãe um presente muito caro, um IPhone8. Só que ele iria ganhar um celular pequeno da Samsung. Ele não ficou satisfeito. Então a mãe do menino resolveu não dar nada para ele! O menino queria da sua avó um computador. Só que a avó iria dar um notebook para ele. Ele não ficou satisfeito! Então a avó do menino não deu nada para ele. Na ceia de Natal do menino tinha diversas frutas. Só que, no lugar das uvas, o menino queria ameixas. Mas era muito caro, e a mãe não comprou. E o menino não comeu a uva. Quando chegou o Natal, percebeu que estava sem nada. Todo mundo se divertiu com os seus presentes, comeu as frutas que tinha e o menino insatisfeito ficou sem nada. Moral: agrade-se pelo que você ganhou, senão ficará sem nada, como o menino ficou!

Thiago Marinho Dórea dos Santos Rio de Janeiro - RJ - 41 -


1º Lugar Prosa de 13 a 18 anos

Os ensinamentos da solidão

Acordei. Mais um dia de quarentena se iniciava e, como em todos os outros, a atmosfera estática, ao redor de meus pensamentos inquietos, criava um clima agoniante. Levantei-me e fui lavar o rosto, na tentativa de lavar também minhas indagações, em vão. De ímpeto, olhei-me no espelho e percebi um reflexo oco, onde apenas uma tênue carcaça física escondia um vazio incomensurável. Eu poderia passar horas me olhando e, mesmo assim, não seria capaz de me encontrar. Entrei no chuveiro, procurando me desprender de minhas conclusões. Olhei para o véu de água que caía, percorria meu corpo e desaparecia no ralo. Era como se ele tivesse um caminho mais definido, e uma liberdade maior do que eu. Já na cozinha, enquanto minha mãe enchia minha xícara com café recémpreparado, o vapor emergente fazia acrobacias no ar, divertindo-se ao debochar de mim e de toda a sociedade. Analisando todo esse cenário, é nítido que a vida nos puxa o tapete para nos colocar no devido lugar, revelando que somos tão frágeis a ponto de um vírus, muito menor que uma única célula, ser capaz de instaurar o caos em meio a seres compostos por trilhões desta. Os humanos, convictos de serem superiores e autossuficientes, têm sua liberdade cerceada por uma simples partícula, alvo de - 42 -


divergências sobre ser ou não viva. Estes, agora, como nunca antes, enfrentam a solidão e percebem que ter apenas sua própria companhia é insustentável. A fauna e a flora tiraram um tempo para respirar da sua maior praga: a humanidade, fazendo-nos recuar, como fizemos com elas por tanto tempo. Trata-se de uma ironia existencial, tal como propunha Machado de Assis. Se antes alegávamos não ter tempo para usufruir das tecnologias e bens materiais tal como queríamos, agora que os temos todos ao nosso dispor, percebemos que nada é capaz de preencher o vazio causado pela ausência da presença e dos encontros físicos. Retornei ao meu quarto e comecei a percorrer a galeria do meu celular, vendo várias fotos de comidas, lugares e pessoas. Arrependo-me de ter me preocupado mais em registrar tais momentos de forma tão superficial em apenas um clique, em vez de ter me dedicado por completo a senti-los profundamente com todo o meu ser. A solidão alimenta a chama da saudade dentro de mim, tirando dos meus olhos a venda de egoísmo que me impedia de enxergar o real valor do toque, do abraço, do beijo, da companhia, quando o único risco era se contaminar pelo amor. A pandemia veio para nos acordar do nosso cotidiano mecanizado e agitado e nos ensinar a sermos mais humanos.

Ana Júlia Oliveira São João da Boa Vista - SP

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2º Lugar Prosa de 13 a 18 anos

Soterrado de tristeza A história que eu aqui vou contar não possui um final feliz. Ela é só uma história, e é assim que histórias de verdade são. Elas não precisam ser felizes. As desventuras iniciaram por volta de dez anos atrás. Morávamos eu, meu irmão e meus pais em uma pequena, porém aconchegante, casa no interior de Minas Gerais. O fim do expediente de trabalho de ambos era muito próximo. Então meu pai sempre buscava minha mãe. Eles chegavam juntos por volta das sete da noite. Nós devíamos estar lá quando eles chegassem. Meu irmão, diferente de mim, era mais calado. Brincava sem brinquedos, remexendo as mãos no ar e fazendo sons a que só ele atribuía algum sentido. Embora nós sempre tivéssemos comida na mesa, fruto do esforço de ambos os meus pais e de alguns trabalhos informais realizados por mim, não havia muitos brinquedos para nos entreter. Então, entre um trabalho e outro, eu levava meu irmão para brincar com alguns garotos que moravam perto de casa. Ele era sempre o mais novo, com cinco anos, porém não parecia se importar. Todas as nossas brincadeiras, até então, haviam sido coisas como futebol e pega-pega. Brincadeiras desse tipo. Típicas brincadeiras de rua. Até o dia em questão. Um garoto qualquer, chamado Carlos, Carlinhos para os íntimos, chegou animado saltitando com uma até que estranha animação. — Carlos, eu disse (não éramos íntimos). Tá feliz por quê? — Então, Paulo, não sei se isso funcionaria para você, por causa dele, ele disse, apontando para meu irmão. Encontrei um local muito legal para nós brincarmos. Um aterro. Estão construindo - 44 -


um, para virar um parque. — E como nós podemos brincar em um aterro?, perguntei. — Eu vou explicar: para finalizar o aterro, a prefeitura contratou um caminhão para levar terra até lá. Quando ele jogar terra, nós vamos estar lá em baixo. Aí, nós temos que sair antes que o caminhão volte com mais terra. Caso contrário, nós seremos soterrados. Óbvio que um bom irmão em sã consciência não levaria um garoto de cinco anos até um aterro em construção. Pelo visto, eu não era um bom irmão. — Vamos, eu disse. Ele não precisa brincar. Ele pode ficar de fora só um pouquinho, não é, Lucas? Ele me olhou meio choroso, mas aceitou. Após uns quinze minutos andando, nós chegamos ao local. As poucas pessoas que estavam lá não pareceram se importar com o fato de um bando de crianças invadirem um aterro em construção. Logo que chegamos, improvisei um bonequinho malfeito com uns galhos que estavam no chão e entreguei ao meu irmão. Eu o mandei brincar em um canto, longe do local onde o caminhão jogava terra, e fui correndo até onde os outros garotos estavam. A cerca de uns cinco metros ladeira acima, um enorme caminhão descia sua caçamba para jogar terra até lá em baixo, onde nós estávamos. A terra recém-jogada, ainda fofa sob nossos pés, engolia-nos até os tornozelos. Dei uma última olhada para meu irmão. Lá estava ele, brincando com o boneco de galhos. Sorri e voltei a olhar para cima. Uma mancha escura de terra vinha em minha direção, e fui coberto até o ombro. Eu, assim como os outros garotos, rapidamente saí da terra, mas não foi isso que pareceu para meu irmão. Ele pensou que eu estivesse em apuros e correu para me ajudar enquanto gritava meu nome aos prantos. Ele se aproximava quase no mesmo ritmo que o caminhão, voltando com mais terra. Ele não iria conseguir. Então eu corri. Eu o alcancei quando ele estava quase chegando. Visto que não daria tempo de eu pegá-lo e o levar de volta, dei um empurrão nele e caí no chão. Fui totalmente soterrado. Isso não foi um problema, já que consegui sair ileso, porém - 45 -


o medo de meu irmão sair machucado se converteu em raiva. Eu gritei com ele. Berrei e o empurrei dizendo que ele poderia ter morrido e que eu estava bem e que, caso eu precisasse de alguma ajuda, ele não iria servir para nada. Ele saiu correndo, choramingando, para onde estava antes, pegou o boneco que eu havia feito para ele e o quebrou. Ignorei e voltei para junto dos meus amigos para continuar a brincar, reprimindo qualquer tipo de culpa e tentando convencer-me de que eu estava correto. Eu fiquei por lá, sendo soterrado e saindo correndo à espera do próximo caminhão até o entardecer. Quando vi que já era hora de voltar, fui chamar meu irmão: — Lucas, vamos, a Mamãe e o Papai estão esperando. — Por que não me deixou brincar com você?, disse ele, com uma mistura de tristeza e raiva. Você acha que eu não consigo? — Você é muito novo. Não é que você não consegue. É que você é muito pequeno. — Mentiroso!, ele gritou. O Carlinhos disse que você estava rindo de mim! — Ele disse isso?, respondi, passando os olhos por todo o aterro, porém Carlos já havia ido embora. Ele que mentiu! Eu nunca diria isso de você! — Mentiroso!, ele disse, e saiu correndo em direção ao local onde a terra era jogada. Eu vou te mostrar que consigo! Quando eu me dei conta, ele já estava muito longe. Corri até ele por entre máquinas e materiais de construção, mas vi que não conseguiria. Minha mente estava vazia. Eu não pensava. Eu só queria alcançá-lo. Entre lágrimas e gritos chamando pelo nome dele, vi o chão se aproximar de meu rosto. Eu havia enroscado minha perna em um arame. Bati em uma quina de uma barra de metal, e tudo escureceu. Quando acordei, estava noite, então não havia como ter uma noção de que horas eram. Durante alguns segundos de dor de cabeça eu não havia me lembrado do Lucas. Quando sua imagem surgiu em minha mente, levantei-me aos prantos e corri até o local onde o caminhão jogava terra. - 46 -


Não havia mais caminhão, apenas uma pilha de terra e nenhum sinal do Lucas. Nesse momento, eu me desesperei. Cavei a terra, aos prantos. Nem sei quanto tempo fiquei ali. Podem ter sido horas. Podem ter sido minutos. Eu não prestei atenção no tempo. Comecei a pensar que talvez meu irmão tivesse ido para casa. Talvez ele se lembrasse do caminho e foi sozinho. Talvez, na hora em que ele viu o caminhão com terra, tenha se assustado e saído de perto. Ele estava seguro. Resolvi então voltar para casa. Corri por cima do enorme monte de terra, com dificuldade, pois o terreno cedia sob meus pés. Até que houve um deslizamento de terra forte o suficiente para me derrubar. Quando levantei e limpei a terra dos meus olhos, vi algo que havia sido revelado com o deslizamento e que me chocou como nada havia chocado antes. Eu vi uma mão. Uma mão pequena e meio gorducha, que eu reconheceria em qualquer lugar: era a mão do Lucas. Corri desesperado até ela. Com lágrimas nos olhos, puxei a mão com toda minha força. Era ele. Lucas estava morto. Eu o peguei no colo. Não havia como ligar para ninguém, pois eu não tinha celular. Um passo atrás do outro, entre lágrimas e soluços, eu fui andando com meu irmão morto até minha casa. Quando virei a esquina, avistei o fusca de meu pai. Ele e minha mãe já estavam em casa, provavelmente muito preocupados. Com um aperto no coração, segui andando até a porta de casa. Hesitei, mas não havia o que fazer. Abri a porta, com meu irmão no colo. Meus pais estavam na sala e, em um primeiro momento, não perceberam o que havia acontecido. Porém, ao verem meu rosto, suas expressões foram da raiva à tristeza. Meu pai pegou Lucas de meus braços e disse algo para minha mãe, que na hora começou a espernear e a abraçá-los. Nem meu pai, um homem sempre tão duro, conteve suas lágrimas. Eu desabei no chão, de exaustão e tristeza, e apaguei ao som de minha mãe a berrar. João Povêda Balarini São João da Boa Vista - SP - 47 -


3º Lugar Prosa de 13 a 18 anos

O olfato da vida

Escolhi um dia nublado, sem graça por natureza (no sentido mais literal possível) para executar uma faxina generalizada, insuportável, agendada há anos, que eu nunca tinha reunido suficiente coragem para transferir do mundo inteligível para o sensível. Em meio à poeira, porém, havia pedaços de velhos recados, moedas, patinhas de inseto e, quem diria, uns trabalhos escolares esquecidos. Mais que depressa, então, me coloquei a espiar as peraltices documentadas na tenra idade, e encontrei um bloco de sulfite em cuja capa estavam desenhadas duas bolas azuis, um retângulo marrom e duas outras bolas laranjas, com um cabeçalho a elucidar que se tratava de algo sobre os “cinco sentidos”. Ademais, nem é preciso explicar que a faxina passara ao segundo plano, visto que eu me permiti mergulhar em figuras recortadas de revistas, desenhos impressos e autorais, até mesmo fotos de meus próprios olhos, nariz e mãos. E, em meio àquela multiplicidade de expressões artísticas, encontrei uma página que versava sobre qual dos sentidos seria o menos essencial. Assim, passei os olhos pela resposta por mim escrita, que era certeira em eleger “a audição de uma orelha, já que eu tenho duas”. Nesse ponto, pude perceber quão grande era a inocência que me incapacitava de conhecer os incômodos e prejuízos que acometiam esse tipo de surdos. No entanto, hesitei tão pouco quanto a menininha ingênua de outrora para nominar o olfato como menos notável, porque mal se enquadrava de modo próprio como deficiência, e quase rabisquei o feito antigo para substituí-lo de modo mais assertivo. Mas, antes que eu conseguisse dar corpo à nova besteira, - 48 -


esbarrei num retrato que mostrava, além de meus pais, primos e entes já falecidos, meu tio Joaquim. Ademais, como a repugnante faxina já tinha sido abandonada, me demorei a apreciar aquela relíquia de família. No entanto, não pude deixar de perceber quão menos vivacidade esbanjava aquele tio Quim em relação ao que ele era no momento. Seria o horrendo acidente de carro, que lhe arrancou, por milagre, somente o faro, responsável por um acréscimo tão notável de sorrisos, abraços, zelo com a saúde? Seria a perda de uma parte da vida a chave para abraçar o restante? Não era possível afirmar, visto que eu tinha em mãos somente um momento congelado. Entretanto, ao passar os olhos pela fotografia, pude ler a mensagem singela e linear que ele me deixara: “Percorra seus caminhos com a leveza das personagens de desenho animado, que flutuam por suas tortas e bolos. E não se esqueça que a arte é o olfato, é a efemeridade, é a delicadeza da vida”. De acordo com a data, soube que se tratava de um presente de aniversário que ele me dera, e não poderia ter aparecido para mim em um momento melhor. Então, levantei num salto, enxuguei os olhos e mirei de novo as nuvens, que vestiam seu mais belo terno gris para me ver. E, mais que depressa, descolei um rádio velho e alguns discos enquanto selecionava os melhores panos e produtos de limpeza, porque, se alguém de vida inodora podia me fazer chorar com uma mensagem sobre o aroma motriz dos desenhos animados, eu era capaz de executar a tal faxina. Todavia, além da faxina na casa exterior, sacudi a poeira que me comia por dentro, como numa epifania, e aproveitei para esticar meu corpo, olhar em volta, apreciar os pássaros, admirar a ligeireza da vassoura em minhas mãos e puxar o ar de modo profundo, superlotando os pulmões. Devo dizer que o entorno, apesar de imundo, cheirava ao otimismo do tio Joaquim.

Maria Paula Aleixo Golrks São João da Boa Vista - SP - 49 -


1º Lugar Prosa de 19 a 39 anos

Cuscuz com manteiga

Dona Amélia despertou do sono no momento em que os primeiros e grossos pingos de chuva começaram a cair sobre o telhado. Ainda sob o quentinho prazeroso da coberta, virou-se para a brecha da janela e, pela pouca quantidade de luz que adentrava o quarto, não conseguiu identificar mais ou menos a hora, como sempre fazia em dias ensolarados. Então, passou a mão sobre o criado-mudo, pegou o celular e confirmou o horário: cinco e quarenta da manhã. Já era tempo de levantar. Sentada na cama, fez o sinal da cruz e, baixinho, rezou suas orações. Em seguida, acendeu a luz do quarto, beijou as pontas dos dedos e tocou a imagem de Cristo crucificado na parede. Tirou a camisola branca, colocou seu vestido florado e foi ao banheiro tratar das necessidades básicas. Entrou na cozinha abrindo a boca e espreguiçando. Tinha vontade de aproveitar mais o tempo chuvoso debaixo da coberta, mas o costume de madrugar falava mais alto. Resignada, porém contente, retirou a massa de cuscuz da geladeira, encheu a vasilha até a metade e colocou para cozinhar. Enquanto o fogão trabalhava, torrou o café. Para ela, café bom só servia se torrado na hora. Nunca usara esses de mercado. A fumaça exalando o cheirinho forte de café e o barulho da chuva lá fora produziam uma atmosfera de puro encantamento. E ela ficou ainda mais deslumbrada quando derramou a manteiga caseira sobre o cuscuz quentinho. Não havia, em sua opinião, casamento mais certeiro que o desses dois ingredientes. A barriga, ainda - 50 -


em jejum, até fez barulho. No momento em que, finalmente, sentou-se à mesa para saborear o café da manhã, ouviu toques na porta lateral da cozinha. Era Valdenilson. Com a cara fofa de satisfação pela visita inesperada, mandou o velho entrar. Ele limpou os pés enlameados no tapete, retirou o chapéu de palha e o pendurou no cabideiro de prego improvisado na parede. Com um pano de prato, Dona Amélia secoulhe o rosto. — Que surpresa boa, Valdenilson! Estava fazendo falta. — O cheirinho de cuscuz com manteiga tá indo longe, Amélia... Vim ver se tem um pedacinho aí pra mim. — Um, dois, três... quantos você quiser. Anda, vamos chegar! Valdenilson, apaixonado por tamanha generosidade, encostou na amada e lhe ofereceu um terno abraço, seguido de um cheiro demorado no pescoço, como de costume. Sentaram-se à mesa. Ele, enquanto saboreava o cuscuz, a ouvia comentar, com peculiar entusiasmo, sobre a chuva e sobre as plantações no quintal. As expectativas eram as melhores possíveis naqueles tempos. Esperava colher boa safra de mandioca e milho. Para confirmar sua empolgação, Dona Amélia levantou-se e se sumiu pela despensa. Instantes depois, voltou puxando um saco cheio de feijão por debulhar e o expôs ao velho, como um troféu: — Olha só que belezura! Passei o dia de ontem todo colhendo. Hoje farei feijão farofado com toucinho no almoço, do jeito que você gosta. Faço toda questão da sua presença. Não aceito desfeita. — Sua vontade é uma ordem, minha querida! Minutos depois, foram interrompidos por um barulho na cancela de acesso ao corredor lateral da casa. Dona Amélia, temerária, mandou Valdenilson se apressar e sair pelo outro lado. Pelos passos, era Eduardo, que há dias não aparecia. Ela até se assustou com a visita do filho àquela hora da manhã. — Sua bênção, mãe! — Deus abençoe! Que milagre por aqui logo cedo? Aconteceu alguma coisa? — Não. Hoje fui levar Adriana na escola, por conta da chuva. - 51 -


Aproveitei para vir lhe ver, minha mãe. Como está? — esclareceu o filho único, enquanto a abraçava com zelo. — Estou indo, meu filho... Bastante animada com essas chuvas, as plantações agradecem. Olha só a fartura (apontando o dedo para o saco de feijão). Sente aí, toma um cafezinho comigo. Havia tempo que Eduardo não comia um cuscuz tão gostoso. Mesmo morando na mesma cidade, não tinha ele o hábito de visitar a mãe todos os dias. A consciência, aos poucos, ia pesando cada vez mais por deixá-la naquela casa, sozinha. Sentiu compaixão e decidiu, pois, passar aquela manhã toda em companhia dela, dando-lhe total atenção. Aproveitou, inclusive, para debulhar todo o feijão verde. Conversa vai, conversa vem, as horas foram passando sem que percebessem. Mais precisamente às onze horas, Eduardo pegou a chave do carro para buscar a filha na escola. Depois, pegaria a esposa, em sua casa. A mãe o havia intimado para o almoço. No exato momento em que entrava no carro, o vizinho, reconhecendo-o, chamou-lhe a atenção: — E aí, Eduardo?! Descobriu quem é a pessoa com quem Dona Amélia tanto conversa o dia todo? — Descobri, sim, seu Gilson. Depois que o senhor me alertou, resolvi aparecer hoje, de surpresa. Tenho uma cópia da chave da cancela. Destravei com todo cuidado, dei a volta pelo outro lado do corredor e fiquei espiando pela fenda da janela da cozinha. Acabei presenciando uma cena comovente, seu Gilson. — Mas então, o que foi? — Vi minha mãe preparando o cuscuz com manteiga e coando o café. Aparentava bem alegre, satisfeita. Depois a ouvi conversando sobre a chuva, sobre plantação de feijão, toda orgulhosa. Por fim, seu Gilson, a ouvi convidando meu pai para o almoço, como se vivo fosse. Marcos Nunes Loiola Botuporã - BA

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2º Lugar Prosa de 19 a 39 anos

O farol

Só havia uma cama de solteiro e um armário baixo no quarto. Deitado, com o travesseiro dobrado embaixo de sua cabeça, Pedro folheava um pequeno livro de poucas páginas. Os mosquitos, de vez em quando, tentavam provar de seu sangue, mas não eram rápidos o suficiente. Pelo vão da porta aberta só era possível ver a parede do corredor e, lá no alto, um quadro pintado pelo seu pai – era um farol em uma ilhota no meio do mar, parecia enorme e imponente. Ele jurava que, à noite, a luz daquela pintura iluminava o quarto e o deixava dormir tranquilo. Pedro ainda era uma criança que não imaginava como era crescer. Ele vivia o momento, e seu momento era, quase sempre, aquele: ali, deitado com seu velho travesseiro dobrado em sua cama dura como tábua, ele folheava algumas páginas. Às vezes, fantasiava, imaginando ser um personagem. Mas também dormia e, quando acordava, via o livro em cima do armário, bem organizado. O tempo passava devagar para Pedro. Tanto que não percebeu que a luz do farol ia se extinguindo à medida que seus olhos ficavam na mesma altura do quadro, o que ele só perceberia anos depois. Enquanto isso, começava a sonhar como seria ser adulto. Trabalhar e ter outra família parecia algo tão distante que Pedro não imaginava nada como uma possibilidade. Tudo era sonho. A vida real ainda era doce e o instante era sonhar.

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Não demorou muito para o sonho se transformar em desejo. Não por um beijo ou algo que fosse fruto de um instante. Pedro desejava sentir, folhear os dedos de alguém. Ele queria algo para a memória afetiva. Então, o tempo acelerou. Sabendo de amor somente por tudo o que lembrava dos livros, ele amou uma vez. Amou novamente depois. E de novo. Quando amava, podia jurar que, à noite, via a luz do farol acender mais forte. Ele dormia sorrindo. Já era pouco mais que um menino quando seus olhos alcançaram o ponto mais alto do farol. Aquela pintura perdeu a cor, seu quarto ficou apertado, seu mundo tornou-se incompleto. Pedro havia amado tanto que se esqueceu de ser amado. Toda noite, com os olhos embaçados, via as ondas se chocarem contra o farol, revoltosas. A luz piscava nervosa e, sem entender muito bem o que estava acontecendo e sem ler mais uma página sequer, ele pegava no sono. O mar calmo do quadro indicava que havia amanhecido. O velho travesseiro sempre acalmava as ondas. Aos poucos, trabalhar e ter outra família passou a ser uma possibilidade. Pedro investiu seu tempo em acreditar. Deixou de viver o momento e passou a tentar construir um futuro. Mas ele não perdera o hábito de ver o instante como um sonho bom. Foi quando ele se jogou. E amou como nunca voltaria a amar. Amou por tempos. Amou como quem não teme. Amou como nem imaginava que conseguiria amar. Construiu seu barco, jogou-se ao mar, remou contra a correnteza e viu ondas gigantes e revoltosas se chocarem contra o farol. Pedro foi amado. Trabalhar e ter outra família não só era real como passou a ser a sua salvação, o motivo para estar vivo. Ele era feliz e, talvez, não acreditasse mais. A um momento, tudo passou a ter aparência de sonho. Ou de um longo pesadelo. Ele não sabia mais se amava e nem se era amado quando tudo escureceu. Sem enxergar um palmo à frente, Pedro perdeu a noção de para onde remar. Remou, remou e remou. Os braços cansados insistiam. Ele não podia perder tudo. Dias e noites passaram e não havia um raio de luz. - 54 -


O tempo parou. O barquinho de Pedro bateu em algumas pedras. Um mosquito picou sua perna. Ele não era mais rápido o suficiente. Aquele inseto piscou, como um vagalume. Pedro o seguiu. Depois de entrar em uma construção vertical e subir mil degraus, ele estava no alto de um farol. Lá de cima, tudo ainda estava escuro. Começou a chover. Sentado ali mesmo, no chão, Pedro retirou um pequeno livro do bolso molhado. Velho, amarelado e com poucas páginas. Leu uma, duas, três... e dormiu. Acordou com o choro de um bebê. Era dia. Ali, do alto do farol, ele olhou por uma das janelas e viu um bebê sendo embalado nos braços da mãe até pegar no sono. Com muito carinho, ela colocou o filho em um berço bem simples. E ficou encarando como quem analisa uma pintura o que parecia ser o sono mais lindo do mundo. Algum tempo depois, com os olhos já deixando algumas lágrimas escorrerem, ele escutou a voz do seu pai: – Como tá meu Pedrão? – Dormindo como um anjinho, respondeu sua mãe. Aquele era, enfim, o amor necessário. Pedro só percebeu naquele momento. Ele não sabia se já era tarde para incluir os pais em sua vida, em seus textos, no último ato dos seus contos. Havia passado tanto tempo perdido, longe de casa e, ao mesmo tempo, tão perto... Ele amou como quem não teme e foi amado até não acreditar mais. Sem ter para onde ir, decidiu viver ali. Caminhava por longe do alcance da vista externa e, toda noite, acendia a luz do farol para o bebê dormir tranquilo. Lá de cima, Pedro viu sua mãe pegar um mordedor que estava no berço e colocá-lo bem organizado em cima de um armário baixo. Com um beijo de despedida no bebê que dormia profundamente, ela chegou bem perto da pintura e disse: – Esse farol do seu pai vai te proteger, meu filho – e sorriu. Sihan Felix Natal - RN - 55 -


3º Lugar Prosa de 19 a 39 anos

Monólogo do fim

Que roupa a gente usa para dizer adeus? Pensei em preto, mas, apesar da nossa relação estar morta, ainda estávamos bem vivos. Não posso usar nada muito extravagante e nem parecer arrasada. Talvez, o uso do perfume seja adequado, visto que as pessoas nunca esquecem o cheiro de quem um dia amaram. Eu nunca vou esquecer o dele. Vou de cabelos soltos, assim posso pegar uma mecha e colocar atrás da orelha quando não souber mais o que falar. Imaginei um almoço, mas seria cruel demais terminar uma relação durante uma refeição. A comida não ia descer de jeito nenhum. Ou, no mínimo, sempre nos lembraríamos dos semblantes tristes um do outro ao sentir o gosto de uma lasanha. Tinha que ser no final do dia, tipo uma quarta-feira depois do expediente. Assim, podemos ir para casa chorar sem chance de encontrar algum conhecido pelo caminho. Além disso, talvez ele esteja recuperado até o final de semana e ainda saia com os amigos. Como a gente diz que não quer mais? Juro que o vi chorando na minha cabeça, pedindo para ficar. Lembrei do dia em que a gente se conheceu, das minhas unhas coloridas batendo no copo de cerveja, do seu hálito de cigarro, das piadas bobas, de um beijo demorado. Por um segundo, eu quis ficar. Não sei quando o amor virou rotina. Quando os beijos se transformaram em cordialidade. Quando a gente passou a se tocar, mas sem se sentir. Eu tenho que - 56 -


dizer que o problema sou eu e garantir que o fim vai ser o melhor para nós. Mas... e se eu me arrepender? Eu tenho que ser firme. Vai ser no dia vinte e oito de abril, assim que passar a prova do concurso público e o aniversário da mãe dele. Eu vou dar sinais, me afastar pouco a pouco. Posso dar a desculpa da distância. Por que eu preciso de uma desculpa? Eu só não quero mais. Por favor, que ele não chore! É errado dormir na mesma cama da pessoa com quem você planeja terminar? Talvez, as coisas melhorem. Talvez, não. Vai ser no dia vinte e oito de abril, às sete da noite, no bar perto da casa dele. Aquele em que a gente tomou o maior porre no meu último aniversário. Na verdade, não dá para ser lá. Tem que ser em um lugar que não possa destruir as boas lembranças. Será que ele vai me odiar? Imaginei a gente na rua, daqui a uns dois anos. Ele andava distraído, eu apressada. Nossos olhares se cruzavam, e assentíamos um ao outro com a cabeça. Como se a gente estivesse “devendo” uma disciplina na faculdade. Como se fôssemos amigos de infância que não convivem há muito tempo. Como se a gente nunca tivesse se visto pelado. Como se a gente nunca tivesse tocado a alma um do outro. Acho que esse é o preço que se paga ao colocar pontos finais ao invés de vírgulas. Quanto tempo falta para nos tornarmos dois estranhos cordiais? Agora doeu, mas daqui a pouco não dói mais. A solidão ainda parece melhor do que a incerteza de estar amando ou me apegando a coisas que deixaram de existir. Ele é tão lindo. A risada é tão gostosa. Vou ter que ir ao cinema sozinha. Depois do dia vinte e oito, vou ter sempre um espaço vazio. “Tá usando essa cadeira? Não, pode pegar”. Talvez, separados, o tempo nos mostre que temos que ficar juntos. Talvez, não. Que roupa a gente usa para dizer adeus?

Mariana Silva Moraes Porto Alegre - RS - 57 -


1º Lugar Prosa de 40 a 59 anos

O pintor de auroras

Não conheço quem o supere nos pincéis. Não conheço quem consiga retratar com delicadeza e precisão todos os pormenores em tela. É impossível plagiar os matizes que utiliza. Ninguém, nem Monet, nem Van Gogh, Taraborelli ou qualquer outro gênio da história da arte conseguiu se aproximar da perfeição. De todas as telas sobre amanheceres que pintou, guardei algumas em minha memória. Ele retrata as auroras com todos os detalhes pertinentes a cada estação. Na primavera, por exemplo, a delicadeza dos pincéis anuncia a última estrela espiando os primeiros fios solares despertarem flores e joaninhas, enquanto o riacho desassossegado escorrega da colina. Abelhas e beija-flores coletam néctar e polinizam. No verão, atribui cores mais intensas à aurora para registrar o sol acordando mais cedo e encontrando gatos voltando da noitada. As borboletas brincam sem se assoberbar pela beleza de seus vestuários. Os passarinhos sinfonizam orações e inauguram o voo do amanhecer. Na aurora outonal, os matizes são gris ao reproduzirem a chuva tamborilando no telhado para desafiar o sol. O hálito fresco da brisa arrepia o arvoredo. Preguiçosamente, as nuvens se deslocam e permitem que o astro-rei reassuma o comando. O cachorro brincalhão corre atrás do coelho assustado. - 58 -


No inverno, o sol nasce devagarinho, tímido, e vai diluindo, aos poucos, o orvalho que aveluda o rendilhado das aranhas. O vento, indomesticável, assobia canções polares. As nuvens são cachecóis que envolvem a montanha. Da janela do meu quarto, nessa casa sem requintes, mas aconchegante, observei, e observo, as telas desse grande artista. Da janela do meu quarto, observo as magníficas obras de arte produzidas por... Deus.

Maurício Cavalheiro Pindamonhangaba - SP

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2º Lugar Prosa de 40 a 59 anos

Um rio sem fim

– Pegou o presente da Vitória? – Sim, peguei. Podemos ir. A caminho da casa de nosso filho Artur, para comemorar o quarto ano de vida de nossa netinha, atravessamos o viaduto da rua Loefgreen em direção ao Ipiranga. Num relance, avistei a avenida Ricardo Jaffet congestionada. Os carros enfileirados, com suas lanternas acesas, aguardavam o momento de continuar seu destino. E pensar que, muito antes de existirem semáforos e escapamentos, ali devia ter sido um rio caudaloso, separando os dois morros. E como se atravessasse uma ponte mágica e secreta entre dois tempos, fui ao encontro das lembranças. Fiz aquele percurso tantas vezes antes, e a cada vez, quer dentro de um carro ou dentro de um ônibus, indo ou voltando do trabalho, surgia um sonho diferente, uma esperança que se desenhava com suavidade no coração. Hoje, não saberia dizer se há sonhos ainda por desejar. Não que esteja amarga, não. Nem tampouco porque o tempo os leva embora. É que os sonhos nunca terminam e todos eles vão dar no mesmo lugar. – Quer passar pela rua da sua antiga casa? – meu marido perguntou. Ele sempre perguntava. Achava que a presença física da casa - 60 -


era necessária para suscitar boas recordações. Absorta na ponte secreta para o passado, lembrei da antiga casa e de vários momentos que lá vivi. Cada um cabia na conta de um colar. Um colar grande, que podia dar várias voltas em torno do pescoço, até sufocar. Quantas vidas a gente não vive dentro de uma mesma vida? Um tempo em que o mundo cabe dentro de uma sala. E depois o choque ao descobrir que existe um outro mundo lá fora, maior, depois da porta de entrada. A época da adolescência, a rebeldia, os hormônios. O primeiro amor. O sofrimento e o abismo. Depois de um tempo, só o abismo. E as pessoas que povoaram aquela sala? As tias que encheram as tardes de conversa e baralho, os primos que encheram a cara no carnaval, o churrasco em família e a fumaça das brasas adormecidas no anoitecer de domingo? Tudo está dissolvido. As fronteiras do ontem e do hoje distanciam-se. No meio dos tempos, um rio contínuo de memórias. E seu fluxo vai dar invariavelmente no mar. – Não. Não precisa – respondi. – Você está ficando velha, mesmo. Faz tempo que fiz a pergunta – Armando sorriu. Também sorri. É a decrepitude que chega vagarosamente. Ou o esquecimento seletivo? A não obrigação de responder a uma pergunta inútil ou importuna? O silêncio é reparador. Depois da infância, povoada de gente e esperança, vem outra fase de ambição e expectativa: o casamento, o filho, a escola. Trabalhar fora e pagar escolinha. Gripe e febre. A leitura, a escrita, a formatura. Nada sem muito esforço. Outras pessoas, novas pessoas e nova configuração de família. Amigos ainda nos visitam. E a família é dividida entre a atual e a de origem. Algumas pessoas nos deixam, outras chegam e novas memórias são fabricadas. O colar aumenta suas contas e agora temse um passado do qual podemos sentir falta, recordar, comparar. A lua brilhava mais no céu, que era menos poluído, que era mais estrelado, que inspirava os namorados, que eram menos agitados e - 61 -


apreciavam o luar no céu, nas noites de serenata e prazer. Uma onda de sentimento arrastou-me para fora das lembranças. Os olhos ficaram úmidos e tentei impedir que uma lágrima caísse, repreendendo-me. Que tola! Mas por que essa emoção fora de hora? Ah! Sim, é verdade. Saudade dessa época, quando o passado é lembrado com nostalgia e apego, quando é fonte de inspiração, quando nos comove e nos deixa vulneráveis a ponto de dizermos: foram bons aqueles dias. – Chegamos – meu marido anunciou. Não por minha culpa, mas de minha nora que deu a sugestão, mais três bonecas iguais à que eu havia comprado para Vitória estavam espalhadas pela sala. – Ah! Não faz mal. Ela adora essa boneca, que é a personagem de um desenho que ela ama! Não se preocupem – consolounos Débora. Mas Vitória veio me abraçar com um sorriso de felicidade. Disse que adorou a boneca e agarrou meu pescoço com força e ternura. Deu vários beijinhos no meu rosto e, quando se afastou, não percebeu que meu colar de pérolas havia enroscado na sua fivela de cabelo. Nem eu mesma antecipei o que ia acontecer. O cordão do colar arrebentou e as pérolas pularam saltitantes pela sala. Algumas pularam bem alto, indo parar a metros de distância, outras rolaram para baixo dos móveis, espalharam-se, afastaram-se com altivez, como se tivessem sido alforriadas e, com medo de que o dono se arrependesse de ter-lhes dado a carta de liberdade, fugiam, escondiam-se rapidamente. Não esbocei reação, mas Vitória e suas amigas divertiram-se tentando agarrá-las, correram atrás delas, colheram as danadas em recônditos inimagináveis. Divertiram-se até recolherem uma boa parte delas. – Conforme for achando, separo para a senhora! – preocupou-se Débora. Na volta para casa, percorrendo o mesmo trajeto da ida, ao passar pelo viaduto, pude perceber a Ricardo Jaffet fluindo bem, - 62 -


sem nenhum sinal de engarrafamento. – Está chateada pelo colar? – perguntou Armando. – Não. – Manda restaurar. – Não. – Quer que eu compre outro? – Também não. Estou bem, Armando. Eu estou bem. Não sei quantas vidas ainda vou viver dentro desta minha vida. Não sei quantas vezes vou amadurecer ao longo do caminho rumo ao mar. Mas é chegada a hora de deixar as lembranças do passado se soltarem do cordão, desprenderem-se, desgarrarem-se. A viagem tem que ser fluida e leve. Não há mais nostalgia nem apego. Tudo está dissolvido. A inspiração, se tiver que vir, que venha do agora. A saudade, se tiver que vir, que venha deste momento. O rio sem fim que carregue a antiga memória rumo ao mar do esquecimento para dar espaço a outras mais novas e breves lembranças.

Cláudia Cristina Guelfi Faga São Paulo - SP

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3º Lugar Prosa de 40 a 59 anos

Sobre todas as infâncias Que coisa é o tempo! Tantas páginas em branco jogadas de lado, sem sequer um rabisco. Neste exato momento, meu filho cantarola alguma coisa sem nexo, uma musiquinha enfadonha de algum desenho animado japonês. E eu aqui, escrevendo sobre ele. Acabei de convidá-lo para darmos uma volta por aí, ver coisas e pessoas. Quando eu tinha a sua idade, a uma hora dessas, estaria me esbaldando pelas praças, correndo feito louco atrás de uma bola. É que não tínhamos computador, internet, celular. Aliás, ninguém tinha. Tudo isso só virou coqueluche muito depois. Computador portátil dentro de casa era invencionismo hollywoodiano, não mais que isso. Nos tempos dos meus áureos doze anos, bastavam o cheiro fresquinho da liberdade e uma manhã de domingo. Eram demais as presepadas que aprontávamos. Certa feita, por desafio, armaram que eu deveria, às onze da noite, sem lanterna nem vela, encarar um terreno baldio que ficava na rua onde morávamos. Tinha que ir até os fundos daquele lugar abandonado, onde repousava uma carrapateira, pegar um cacho de mamonas e depois contar todas as vantagens do mundo. Foram os cinco minutos mais assustadores da minha vida. Outra foi quando deram de subir na velha caixa-d’água da praça do Conjunto Polar. Uma escalada sem defeitos: quinze metros de altura. Lembro que, no meio da subida, minhas pernas amoleceram. Uma câimbra. Eu era o terceiro da fila de intrépidos alpinistas, mas havia uns quatro depois de mim, que acabaram estancando - 64 -


comigo. Por fim, nada de mais aconteceu, e fincamos bandeira no alto da velha caixa-d’água. Descemos duas horas depois, tempo necessário para recuperar a coragem. E como brigávamos meus camaradas e eu. Cães e gatos. Mas possuíamos uma estranha capacidade de regenerar amizades. Se discutíamos ou mesmo se chegávamos às vias de fato, seguíamos uma espécie de manual tácito de sobrevivência. Primeiro, o choro, porém sem demonstrar dor, porque faziam questão de nos ensinar que homem não chora por dor, mas por raiva, fúria, desejo de vingança. Segundo, mesmo com vontade de matar um ao outro, os brigões não podiam sair cada um para o seu lado: precisavam ficar ali, impávidos, feridos, esperançosos de que o algoz tomasse a iniciativa das desculpas. Terceiro, alguém da turma, como casualmente, havia de puxar alguma conversa estranha, descontraída, que, de repente, fazia esquecer o episódio burlesco da contenda. Por fim, na medida em que todos estavam imbuídos de novas distrações, outra brincadeira se armava e, num passe de mágica, eis os recém-desafetos conversando, rindo, brincando feito amigos que nunca deixaram de ser. Essa é a melhor receita de perdão que pode existir. Quando viramos adultos, uma das primeiras atitudes que tomamos é, infelizmente, rasgar essa prescrição. Não tenho mais contato com os amigos da época. Sumiram no tempo ou na memória, se é que há coerência nessa distinção. O pequeno Totonho, negrinho marrento, nosso cocheiro-mor, emprestava do irmão carroceiro a carruagem oficial da turma, e seguíamos pelas ruas, senhores de tudo, como nos antigos filmes de capa e espada. O terrível Claudionildo, o louco, um estraga-prazeres que se vangloriava de ter batido em todos da rua. Certa vez, organizei um levante contra a sua tirania. Nove moleques contra um. Entanto, na hora h, todos deram no pé e sobrou para mim. Apanhei. Mas nunca deixei de acreditar que as verdadeiras mudanças sustentam-se nas grandes mobilizações, mesmo surtindo alguns hematomas. O inesquecível Jean, um companheiro sem igual, de uma solidariedade ímpar. Foi com ele que aprendemos que as pessoas que amamos - 65 -


não são eternas. Jean morreu por causa de uma leucemia. Estivemos em seu último aniversário, e ele se divertiu muito nesse dia. Sem falar da esperteza de Augusto e suas ideias descoladas, da ingenuidade de Rogério e suas gafes históricas, da boa-pinta de Gilberto e seus indefectíveis olhos claros. O tempo passou. O pior é que, com ele, todos aqueles amigos também se foram, de uma forma ou de outra. Meu filho está aqui, ao meu lado, perguntando sobre o que estou escrevendo. Não sei o que responder. De certa forma, não escrevo sobre mim, mas sobre tudo que se pode resgatar nesse mundo, sem a obrigação de um mouse ou de um modem. Sinto falta das velhas traquinagens. Não espero, é claro, que meu filho invente algo tão perigoso quanto escalar uma caixa-d’água. Mas, se fizer, que se torne uma lembrança tão boa quanto as que trago comigo hoje.

Francisco Sinval Farias de Sousa Fortaleza - CE

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1º Lugar Prosa acima de 60 anos

Súplica do navio à deriva

Senhor, em súplica lhe peço, liberte-me deste mar revolto de ondas encapeladas, em que estou perdido. Mostre-me a rota certeira e firme em que a trajetória seja amena e que no fim deste nevoeiro seja possível ver uma luz positiva. Não uma luz bruxuleante de palavras vãs, promessas que não serão cumpridas, mas a realidade necessária para que eu sobreviva com minha preciosa carga humana, moral, material que espera de mim a salvação. Faça, Senhor, que o meu comandante não abandone o barco, dê-me uma tripulação competente, de alta perícia, que me tire destas dificuldades e aflições. Quero voltar a ser um barco, até uma caravela, singrando em águas mansas como a retina do mar, promissora, com possibilidade de sucesso e bem-estar para tantos passageiros que esperam meu atracar para pisarem em terra firme. Mas como, meu Deus? Se alcançam a maçaneta da porta, ela está contaminada; se vão à proa imaginando uma brisa salobra e fresca, poderá ela também lhes trazer o vírus ameaçador. A água também poderá estar contaminada e se misturar com as gotículas espargidas de suas próprias bocas. Unidos todos numa só força; aglomeração, nem pensar; receber ou dar um abraço, jamais. Como trabalhar? Não tem transporte e, se tem, tem risco de contágio! - 67 -


O nevoeiro é grande, tantas nuvens de tempestades ameaçando, vagalhões, rochedos, tenho medo de soçobrar. Dê-me, Senhor, um timoneiro experiente, honrado de pulso firme e ideias claras, sem pilhérias, com o desejo firme e que esta viagem acabe bem, sem interesses diversos que vão ao desencontro da missão principal: salvar a embarcação, abrindo aos passageiros possibilidades para uma saudável trajetória por este mesmo mar. Permita-me, Senhor, ter, em minha tripulação, capitão, marujos, marinheiros, imediatos com coragem e bons propósitos, incansáveis, que consigam limpar as águas apodrecidas em que estou mergulhado. São sujeiras antigas, novas e, acostumado que estou, penso não ser possível despoluir o oceano. Mas não quero me acomodar, prender as amarras, soltar o ferro ancoradouro no velho píer e ficar em águas estagnadas esperando a maré abaixar. Preciso de águas limpas e despoluídas para navegar, pois nestas em que ora navego boiam algas da injustiça, restos de madeira podre da soberba e da irresponsabilidade, que prendem a minha quilha e me fazem flutuar devagar num mar morto de benesses e muito vivo de corrupção. Senhor, minhas tábuas estão velhas, estalam, tremem, meus motores falham, minhas velas estão rotas, mas mesmo assim dizem que minhas queixas são mentirosas, que tudo está sob controle. Tempos atrás já disseram “é só uma marolinha”. Estou desiludido, meus passageiros desinteressados, pensando em navegar outros mares. Preciso de ajuda. Conceda-me, Senhor, pessoas que acreditem em mudanças, que não se deixem corromper, que transformem estas águas turvas em verdades e esperanças para minha tripulação, para o menino do cais que me espera na esperança de vender suas balas para levar comida para casa. Meus porões estão infestados de ratazanas ávidas do poder, da ganância, espezinhando a democracia, única salvação de um povo que luta por liberdade, mas liberdade liberta, como as asas do - 68 -


condor que plana no céu contemplando a imensidão azulada, certo de que alcançará suas aspirações. E assim, Senhor, quem sabe, numa difícil empreitada, eu escape dos redemoinhos fatais e volte a equilibrar-me, redescobrindo a melhor rota e, com motores liberados de conchavos perniciosos, propina para navegar em meu próprio mar, velas abertas a ventos benéficos, eu retorne ao meu destino certo e com bem intencionados passageiros, e possamos nos livrar da ruína final. Da peste que assola nossa gente, que lhes tira o trabalho, o dom operário, o salário, o pão e até a vida. Há muito, Pai, despertei do berço esplêndido, não fugi à luta e, apesar da minha luneta embaçada, busco o sol radiante e os raios fúlgidos do futuro. Dê-me, Senhor, a dádiva da sabedoria, para que eu seja um navio respeitado e nunca um velho barco carcomido num naufrágio em uma ilha esquecida...

Sarah de Oliveira Passarella Campinas - SP

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2º Lugar Prosa acima de 60 anos

Mudança de rumo Complexa era sua situação. Começara por baixo na fábrica de cimento, como servente juvenil, e chegara a diretor do Departamento de Vendas. E poderia chegar à vice-presidência em breve. E agora precisava mudar. Antes de entrar para a fábrica com dezesseis anos, estudara em colégio marista e, ainda que não fosse um carola, mantinha uma linha de conduta moral irrepreensível. Casara-se cedo e nunca reclamara do casamento. Estava com quarenta e oito anos; a mulher, com quarenta e cinco e entrando na menopausa. Uma alteração hormonal aparentemente tranquila, exceto por discreto desinteresse sexual. E o Dr. Ernesto Gouvêa, que era doutor porque se formara em Direito em curso noturno e com muito sacrifício, queria sair da firma, onde era prestigiado e ganhava muito bem. De outras vezes recusara excelentes propostas, mas, naquele momento, depois de longa reflexão, viu que era a hora de sair. E por quê? Porque temia cair em tentação – “e nos livrasse do mal, amém”, rezou vezes sem conta. “Cherchez la femme”, ditam os franceses – e aqui acertariam, pois entendem de mulheres. Nunca temera ser corrompido por forças pecuniárias, mas sempre tivera medo de cair em tentação pelo sexo oposto. Tinha certeza de que sua mulher perceberia que estava tendo um caso, pois se conheciam desde a adolescência. E até então nunca pensara em ter uma relação extraconjugal. E logo com sua secretária? Sua mulher, Isabelle, era loura de olhos azuis e tinha ori- 70 -


gem sueca. Sua secretária era morena, uma mistura norte-sul do País, tipo Paraná com Ceará. Permita-se um clichê, Márcia era uma tentação morena. E a tentação ficara mais visível quando diretores, famílias e respectivas equipes passaram uma semana de trabalho e divertimento em hotel na Costa do Sauípe. E lá viu Márcia de maiô. Comportado maiô, mas que corpo tinha Márcia!, ouviu vários comentários de colegas de diretoria. Isabelle e ela se davam muito bem, o quanto podem ser amigas a mulher e a secretária de um importante executivo. E uma ajudava a outra nas suas funções, pois para esses homens de trabalho as atividades funcionais, sociais e familiares se imbricavam. Márcia tinha trinta anos, era estenodatilógrafa bilíngue, muito eficiente, e até a presidência tentara tirá-la do Departamento de Vendas, mas ela própria recusara a promoção, dizendo que estava bem ali e que, para mudar sua rotina, preferiria até mudar de emprego. Era sua secretária havia três anos, e havia quatro se divorciara. Não tinha filhos e sua ocupação na fábrica preenchia inteiramente sua vida. Era calma, comportada, vestia-se de forma recatada e nunca dera motivo para duvidar de sua eficiência. Todos percebiam que adorava ser sua secretária. Como fizera sua vida toda na fábrica e todos conheciam seu padrão de comportamento, a conduta de Márcia transcorria sem maiores fofocas. Para ela, bastava-lhe trabalhar bem. Ernesto começou a pensar muito em Márcia, sonhar com ela e, até em seus momentos mais íntimos com sua agora desinteressada mulher, pensava no corpo da secretária. Quando estavam a sós, agora, tinha ímpetos de agarrá-la. Mandar Márcia embora do departamento seria uma maldade e, sem motivos, seria até interpretado da devida forma. A fábrica tinha outros quatro diretores; um deles era seu compadre e fora seu colega no colégio marista. Tinha total liberdade com ele, que estava no terceiro casamento e mantinha um permanente caso com sua secretária, uma falsa loura de decotes pouco recomendáveis para os hábitos da firma. Sendo protegida do diretor, continuava com suas minissaias e decotes generosos. O compadre - 71 -


tinha com Ernesto a liberdade que só os conhecimentos de infância permitem. Quando soube que ele estava cogitando mudar de emprego, ainda que a mudança fosse financeiramente tentadora e até porque o conhecia bem, disse-lhe: “Compadre, uma aventura não tira pedaço. Veja, estou inteiro”. Estavam os dois trancados na sala de Ernesto. Não havia escutas, pois a fábrica tinha cuidados permanentes, e o compadre completou: “Depois que vi Márcia de maiô e aquele seu olhar pidão, pensei comigo, o compadre está ferrado. Mas pensei que você, como todo homem normal procede, fosse ceder à tentação. Mas o velho aluno marista não quer ceder. Também não quer machucar a moça e, então, pretextando vantagens financeiras, para as quais nunca ligou, vai largar nossa fábrica, onde em breve seria o vicepresidente. Pruridos maristas!” Não adiantava negar. Ernesto não deu andamento à conversa e foi tratar com a presidência a respeito de sua saída. Alegou a oportunidade, a oferta que lhe fora feita, o desafio que enfrentaria no novo posto; enfim, deu razões de peso e combinou sair da firma logo, deixando as portas abertas. Comunicou a todos do Departamento de Vendas, por memorando, que sairia e não se despediria de nenhum dos funcionários, pois detestava despedidas. Agradecia de coração o que todos fizeram por ele. Fez tudo às vésperas de suas férias e assim nem de Márcia teve que se despedir. A mulher e ele foram conhecer Paris. Só depois de vinte dias de férias assumiria o novo emprego. Procurou não pensar em Márcia, mas em meio a algum passeio lá vinha a lembrança da moça. Um par de pernas, uns olhos, um sorriso, quase uma obsessão. Até Isabelle perguntou como estaria se dando Márcia com seu novo chefe. Como se não desse muita importância ao assunto, disse que ela se daria bem, pois era boa funcionária. Isabelle perguntou se, depois de assumir o outro cargo, não poderia chamar Márcia. Ele disse que na nova firma já lhe tinham apresentado Dona Maria Estela, uma velhota que parecia ser uma eficiente secretária. E, para mudar de assunto, mostrou-lhe uma vitrine, onde se via um livro de Machado - 72 -


de Assis traduzido para o francês. Ernesto sabia que teria muitos problemas a resolver na nova firma, que fabricava vidros especiais. Tinha nome na praça, só que estava sendo mal administrada, daí o excelente salário oferecido. Não era por seus lindos olhos que ganhara aquela diretoria. Se não fossem seus problemas pessoais, não teria aceitado aquela mudança. No dia seguinte à volta de Paris, apresentou-se na fábrica de vidros. Foi ter com o presidente, que o levou até seu departamento. No caminho, muitas apresentações e votos de felicidades. O presidente, um velhote empertigado, filho do fundador da fábrica, era todo sorrisos. Entrando na sua diretoria, foi recebido com flores por Dona Maria Estela. Suas instalações eram amplas, modernas e decoradas com gosto. Muitos processos a ler, empilhados na sua mesa. Já tinha feito seu primeiro dever de casa em Paris, lendo vários documentos. Em três horas teria um encontro formal com os diretores no gabinete da presidência. Sabia que o início não seria fácil, principalmente com o diretor do Departamento de Vendas, que tinha, pelo que lera, ideias ultrapassadas. E era primo do presidente. De trabalho não tinha medo. Estava tão bem na antiga diretoria... Começou a reler um dos regulamentos da fábrica, que deveria ser totalmente mudado. Pediu pelo interfone a Dona Maria Estela um café descafeínado. “Com leite pingado e quatro gotas de adoçante”, disse-lhe ela com sua voz eficiente. E completou com um “já estou levando”. Pensou que não simpatizava com ela, ainda que parecesse competente, tendo arrumado sua mesa como ele gostava. Duas batidas na porta. O “entre” de costume. Dona Maria Estela entrou. Sem seu café. Em seguida, Márcia, com sua voz modulada, entre tímida e risonha, lhe disse que fora contratada porque Dona Maria Estela estava para se aposentar. “Espero que não se importe. Foi Dona Isabelle quem teve a ideia da minha contratação”. E lhe serviu o café. Pedro Diniz de Araújo Franco Rio de Janeiro - RJ - 73 -


3º Lugar Prosa acima de 60 anos

O mestre das gargalhadas

– Mestre, qual é o segredo da vida? A pergunta do discípulo ficou no ar enquanto sua face enrubescia diante da estrondosa gargalhada do mestre. Ele ainda aguardava por uma resposta óbvia, direta e clara, mas cada pausa na gargalhada era seguida de outro acesso de riso, que começava entre os dentes falhos do ancião, como se tentasse segurar a reação. Desapontado e sem nada entender, o jovem se retirou com um gesto solene que, na verdade, tentava disfarçar seu espanto. Assim que se foi, o mestre silenciou, voltando a se concentrar na libélula que resvalava a água do pequeno lago no jardim do templo. Não demorou muito para que outro jovem aprendiz passasse pelo local e, diante da oportunidade, logo se instalasse ao lado do velho, absorto em sua contemplação. – Mestre, qual caminho devo seguir para alcançar a verdade da existência? A força da gargalhada assustou o jovem com expressão séria, fazendo com que se afastasse rapidamente, pensando estar diante de um velho senil. Em pouco tempo a fama do velho mestre que somente ria espalhou-se pela região, sempre tido como caduco, tornado alvo de gozações por parte de muitos que passavam defronte ao templo e o viam contemplando a natureza. Alguns ainda se faziam de discípulos curiosos a questioná-lo, mas sempre na intenção de provocar suas famosas gargalhadas. - 74 -


Algum tempo ainda se passou até que outro mestre, de uma aldeia próxima, inspirado e instigado por diversos discípulos que o desafiavam, resolveu fazer uma visita ao já conhecido “mestre das gargalhadas”, a fim de compreendê-lo. Chegando no templo encontrou-o da mesma forma que de costume, sentado defronte ao lago observando a natureza. Fez um respeitoso gesto de saudação e sentou-se ao seu lado, passando a fazer o mesmo, ou seja, contemplar os pequenos gestos da natureza, calado. E assim permaneceram durante horas, em completo silêncio, somente quebrado algumas vezes por ruidosas gargalhadas de ambos, aparentemente sem motivos, até que o visitante se dirigisse ao outro com apenas uma frase: “Concordo com você”. Em seguida se retirou, voltando para sua aldeia. Ao chegar, dezenas de discípulos o rodearam para saber o que havia ocorrido e conhecer a sua opinião sobre o “mestre das gargalhadas”. – Não entender as respostas daquele sábio mestre é como não enxergar a abelha que pousa em seu próprio nariz, disse ele. E continuou: – Está claro, para quem quiser entender, que a resposta para todas as indagações que lhe são feitas está na alegria; a alegria de ser parte da natureza que o rodeia; a alegria de viver. Aí repousa o segredo da vida, a verdade da existência: a alegria! Indiferente ao que pensam ou falam, o “mestre das gargalhadas” ainda é visto no mesmo local, aprendendo com o silêncio da natureza e ensinando com suas estrondosas gargalhadas.

Denivaldo Piaia Campinas - SP

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ACADÊMICOS NA ATUALIDADE Antônio “Nino” Barbin

Luiz Antonio Spada

Antonio Carlos Rodrigues Lorette

Luiz Fernando Dezena da Silva

Antônio de Pádua Barros

Luiza Nagib Eluf

Beatriz Virgínia C. Castilho Pinto

Marcos César Pavani Parolin

Carmen Lia Batista Botelho Romano

Maria Cândida de Oliveira Costa

Celina Maria Bastos Varzim

Maria Cecília Azevedo Malheiro

Pe. Claudemir Aparecido Canela

Maria Célia de Campos Marcondes

Clineida Andrade Junqueira Jacomini

Maria Ignez dos Santos D’Ávila Ribeiro

Cyro Gilberto Nogueira Sanseverino

Maria José Gargantini Moreira da Silva

Donisete Tavares Moraes Oliveira

Marly Teresinha E. de Camargo Fadiga

Francisco de Assis Carvalho Arten João Baptista Scannapieco João Batista Gregório João Batista Rozon João Otávio Bastos Junqueira Jorge Gutemberg Splettstoser Pe. José Benedito de Almeida David José Ricardo Bittencourt Noronha José Rosa Costa Lauro Augusto Bittencourt Borges Lincoln Amaral Lucelena Maia

Neusa Maria Soares de Menezes Nívea Poli Barbosa Raul de Oliveira Andrade Filho Ronaldo Frigini Sérgio Ayrton Meirelles de Oliveira Silvia Tereza Ferrante Marcos de Lima Sonia Maria Silva Quintaneiro Susana de Vasconcellos Dias Vania Gonçalves Noronha Vedionil do Império Wildes Antônio Bruscato Wilges Ariana Bruscato - 76 -


DIRETORIA ATUAL Biênio 2019-2020

Presidente: Lucelena Maia Vice-Presidente: Vania Gonçalves Noronha Secretária: Nívea Poli Barbosa 1º Tesoureiro: Lauro Augusto Bittencourt Borges 2ª Tesoureira: Beatriz Virgínia C. Castilho Pinto Conselho Fiscal: Donisete Tavares Moraes Oliveira

João Otávio Bastos Junqueira

Wilges Ariana Bruscato

ACADEMIA DE LETRAS DE SJBV NA INTERNET: www.alsjbv.art.br secretaria@alsjbv.art.br facebook.com/alsjbv Instagram: @alsjbv www.youtube.com/c/academiadeletrasdesaojoaodaboavista

São João da Boa Vista - 2020 - 77 -


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