Chupa Manga Zine nº 9

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chupa manga zine

número 9 ● fevereiro 2018

entrevista exclusiva com irmão victor as marchinhas do café nice quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? e mais: o carnaval dos famosos e os discos mais vendidos do ano (de 1949)


chupa manga zine

número 9 ● fevereiro 2018

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Impresso, dobrado e grampeado em casa no fim do verão de 2018

Chupa Manga Records Porto Alegre • Brasil

na capa: sósia de Carmem Miranda, em anúncio do Cassino da Urca publicado na revista O Cruzeiro (1944)


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É, minha gente. O ano, enfim, começou pra valer. Como dizia aquela canção: "vamos viver da sobra da ceia de natal, vamos vender o peixe depois do carnaval", então já começamos a nos mexer para preparar as produções que preencherão a nossa duvidosa discografia durante mais essa volta em torno do sol. Mesmo assim, achamos um momento tão bom quanto qualquer outro para falar sobre a história da música carnavalesca, ou melhor, do ambiente em que muitas delas nasceram e foram postas na roda, para em seguida serem vendidas, compradas, editadas, gravadas, riscadas em cera e transmitidas via ondas de rádio para o imaginário popular brasileiro em meados dos anos 1940. Baseado em um livro encontrado por módicos dez reais em um sebo escondido em uma galeria da rua Riachuelo, na Lapa, há alguns anos, recontamos parte dessa história, em um texto com muitas citações e algumas notas de rodapé, que sequer chega a raspar a superfície. Fora isso, você pode conferir o novo lançamento da Chapa Mamba, um EP gravado em 2015 e só agora disponível, finalmente, ao grande público, além de uma entrevista exclusiva com o magnífico Marco Benvegnù, que acaba de lançar mais um disco pela Chupa Manga. Ao final desta edição disponibilizamos, ainda, a transcrição de um grande sucesso jamais divulgado: a marchinha "O Ovo e a Galinha", escrita há mais de dez anos, e cuja concepção improvável você encontra junto à partitura. Daqui a dois meses tem mais, mas se você não aguenta esperar, inscreva-se gratuitamente na nossa newsletter digital e acompanhe as novidades em tempo, se não real, talvez até mais rápido do que a própria realidade, como agora é de praxe.


SESSÃO MARMELADA

antes tarde do que nunca

CHUPA.026 Chapa Mamba Le Lab de Lux Sessions vol.2

Gravado em uma tarde de 2015, ao fim da primeira "turnê" do Chapa Mamba, este disco deveria ter saído, inicialmente como parte de uma série de compactos por assinatura da, então, recém inaugurada Lombra Records. Chegamos a divulgar a empreitada no segundo número deste zine, mas a coisa não foi pra frente, por motivos diversos. Seja como for, eventualmen-

te percebemos tratar-se da sequência natural do Le Lab de Lux Sessions vol.1, também gravado em um dia, na raça, entupido de overdubs, na marra, e arquitetado, na tora, por Biu para algo megalomaníaco que teve de se adaptar à realidade. O primeiro, inclusive, inaugurou timidamente este selo, com o número de catálogo CHUPA.000. Agora, junta-se a ele este título, com 3 anos de atraso, e que um dia ainda deve sair em vinil de tiragem limitadíssima pelo selo do nosso amigo. A seguir está o texto da contracapa, na íntegra, para registro: Após um hiato de mais de um semestre sem apresentações — mesmo tendo lançado, neste período, o seu terceiro disco, “O Campo Sutil” —, em novembro de 2015 o Chapa Mamba reuniu a sua recente formação de trio para realizar uma primeira turnê propriamente dita, ainda que reduzida, por três estados. Depois de alguns ensaios exaustivos no Rio de Janeiro, a banda seguiu de buzão em buzão para Belo Horizonte e Goiânia, terminando a sua jornada em Brasília, onde, em um par de horas


foram gravadas as faixas deste disco. A sessão, patrocinada por Biu, foi agendada para aproveitar a passagem pelo Distrito Federal, e marcaria o segundo lançamento de uma série de compactos exclusivos da Lombra Records que acabaram não saindo como o planejado — mesmo com milhares de capas já impressas e acabadas em serigrafia em algum lugar em Curitiba (é uma longa história). Reunindo canções antigas (“Seu Telefone” e “A Propaganda da Televisão” datam aproximadamente de 2006, quando eu ainda me apresentava como homem-banda. Dessa época, “Interurbano Blues”, “No Tempo da Vovó” e “A Soma do Quadrado dos Caretas” já haviam sido registradas pelo Chapa Mamba) e outras feitas para a ocasião (“Arranca-Rabo”, “Vale Nada” — que teve a letra terminada minutos antes da gravação — e “A Atual Conjuntura” — inventada na hora para aproveitar o tempo de sobra no primeiro lado), foi a primeira vez em que Binho participou de um álbum da banda, além de contribuir com o riff de baixo de “Vale Nada”. Fechando o segundo lado, incluí, por motivos puramente sentimentais, a versão de um acordeonista anônimo de rua para a canção “Camiños de Michoacán”, de Bulmaro Bermúdez (foi preciso ouvir horas e horas de mariachis para descobrir isso), registrada em uma lanchonete na Cidade do México também em 2015,

pouco antes de me mudar do Rio para o sul do país. Após uma série de desentendimentos com o estúdio — ao que parece, a propensão a ataques de estrelismo no meio fonográfico está intimamente ligada ao preço dos equipamentos e tratamento acústico, embora seja inversamente proporcional ao talento —, o jeito foi aproveitar a pré-mix asséptica e esterilizada (mas tudo gravado rigorosamente conforme o manual, como se isso bastasse) a que tivemos acesso, e arrastá-la um pouco na lama. Além dos overdubs, algumas pérolas pontuam o início de uma ou outra faixa: Biu tirando o corpo fora (“não tenho nada a ver com isso não!”) e roncando como uma motosserra, ambas registradas sorrateiramente com um gravador de fita cassete nos idos de 2011 em um hotel em Goiânia, onde o Chapa Mamba havia ido se apresentar. Fechando, finalmente, um ciclo que foi iniciado há mais de dez anos e agora se materializa neste pedaço de plástico com ranhuras sonoras que você tem em mãos (caso tenha tido a sorte de conseguir um) ou nas ondas digitais do seu aparelho de streaming, selecionamos, para a capa do disco, mais uma imagem da artista Larice Barbosa — que já havia cedido gentilmente seus desenhos para o pôster da turnezinha em que ele foi gravado.


ENTREVISTA

de passo fundo para o mundo


Agora radicado em Florianópolis, o passofundense Marco Benvegnù está de volta com seu projeto Irmão Victor, que acaba de lançar outro álbum pela Chupa Manga Records. Conversamos com ele para conhecer um pouco mais sobre o cara por trás da obra.

antes de mais nada: como nasceu o irmão victor, e quais são os próximos planos para o projeto? Nasceu da forma mais despretensiosa possível. Eu andava mexendo nesse programa bem básico de gravação, o Audacity, só gravando umas bobagens mesmo. Um dia um amigo meu mandou uma música do Mc Livinho e eu resolvi gravar uma versão meiosamba-meio-rock. Só de sarro. Coloquei aquela capa da Lisa Simpson no episódio da Casa da Árvore dos Horrores, careca, fumando um charuto, e botei no Youtube com esse pseudônimo inspirado num irmão marista da escola na qual eu estudava quando era criança. E deu. Não tinha planos de fazer um "projeto" de fato... Na época eu tinha essa convicção de que não conseguia compor de jeito nenhum, já tinha largado de mão a ideia de ser músico. Mas gravar em si foi uma experiência muito engraçada, muito divertida, de forma que comecei a gra-

var outra, pensando que não conseguiria finalizá-la. Quando ficou pronta pensei que não conseguiria começar outra. Mas foi rolando... Nunca pensei que ia conseguir fechar um álbum, quanto menos três, de composições próprias. Agora tô tentando organizar uma turnê pra tocar essas músicas por onde der. Se tudo der certo começamos em março. Tirando isso, acho que vou passar um tempinho focando em aprender a parte mais teórica da música do que gravando. Vou dar uma estudadinha... após sair de passo fundo (rs), você passou um tempinho em porto alegre e em outros lugares até parar em florianópolis, certo? o que o levou até aí? pretende ficar por um tempo? já se inteirou da "cena" local? O que me trouxe pra Floripa foi uma série de coisas, algumas não diretamente ligadas à música. Eu e o Duds


— que toca bateria quando a gente faz o Irmão Victor ao vivo e que tem um monte de projetos massa — estudávamos em Porto Alegre mas estávamos bem saturados de lá. Estávamos meio perdidos na faculdade, com as nossas musiquinhas como principal interesse. Decidimos largar aquela cidade que, sinceramente, estava começando a entrar na minha cabeça, me deixando meio mal. Foi antes uma decisão por viver melhor do que qualquer coisa. Não poder andar de noite na rua me envenena. Agora, sobre Floripa: não tenho certeza se a cena local é reduzida mesmo ou se sou eu que tô meio por fora, mas a impressão que eu tive até agora é que tem bem poucos lugares que fecham com o som que eu faço. Tem uns 2 ou 3 picos que eu imagino que a gente possa acabar tocando. Depois, não sei. Mas eu confesso que ainda conheço pouco da ilha. agora as referências passo-fundenses e piadas internas vão começar a perder lugar nas letras do irmão victor? Sim. Acho que no "Cronópio?", esse que saiu faz pouco, esse tipo de referência é quase nula. Fala sobre outros lugares. Fala sobre Porto Alegre, por exemplo, na música "Os Garçons" ou

"Insônia & Rinite Alérgica". Faz referências à Barra da Lagoa, onde eu morei por um tempo aqui em Florianópolis, nas "Reflexões Navais"... Vejo minhas músicas sempre como um retrato de um momento em algum lugar, elas são estranhamente "geográficas". Pra mim, pelo menos. Mesmo as instrumentais me remetem a lugares. Mas enfim, acho que esgotei um pouco essa obsessão que eu tinha por Passo Fundo. Sem querer fazer uma auto-análise nem nada do gênero, mas a realidade é que o "Passos Simples para Transformar Gelatina em um Monstro" funcionou quase que como uma terapia para eu lidar com uma nostalgia enorme que eu sentia pela minha antiga cidade. As músicas do "Cronópio" vão em outra direção: são mais sobre evasão do que sobre nostalgia. em "cronópio?" houve algumas participações de outras pessoas e faixas gravadas em estúdio, diferente do disco anterior (me corrija se eu estiver errado). o que você acha de gravar tudo sozinho, em casa? há alguma vantagem nisso ou é por pura necessidade? Então, algumas faixas foram gravadas no estúdio do Bruno Philippsen, o estúdio Dom Rodolfo, em Passo Fundo.


O Bruno me convidou para gravarmos uma música por lá, que acabou sendo "Escondi uma baleia embaixo da cama (pra cantar enquanto tu dorme)". Gravar com o Bruno foi muito massa porque eu conseguia dar minhas opiniões livremente, ele é muito respeitoso com a forma que os músicos enxergam a própria música. Antes de ir para um estúdio eu tinha certo receio de ficar constrangido demais para me expressar e a música acabar saindo muito diferente do que eu gostaria. Acabamos gravando mais duas lá: "Insônia & Rinite Alérgica" e "Os Garçons" — além da bateria para "Queliceradinhos". Nessas músicas o Bruno se encarregou de tocar as teclas, já que ele é tecladista e eu sou bastante desajeitado diante de um teclado. Como passei o ano me mudando e pulando de um lugar pra outro, ficou impraticável gravar todas as canções no Dom Rodolfo. Sendo assim, gravei o restante sozinho por necessidade. Mas gosto de gravar sozinho, vejo algumas vantagens sim. Acho mais ágil, além de me sentir mais à vontade para testar umas ideias esquisitas, mais livre para retalhar a musiquinha, mexer nela. Claro, nada se faz completamente sozinho: sempre mostro as músicas que estou fazendo para certas pessoas para receber um retorno, uma opinião.

onde você aprendeu a tocar tantos instrumentos? teve alguma formação musical formal? considera algum deles seu "instrumento principal"? Tive pedaços de uma formação formal. Comecei a me interessar por instrumentos por causa de um primo mais velho que tocava baixo. Ele tirava tudo de ouvido e lembro de ter me ensinado alguns riffzinhos de "Boris de Spider" do The Who e "Sweet Leaf" do Black Sabbath, esse tipo de coisa. Mais tarde comecei a fazer aula de violão com um professor uruguaio chamado Asdrúbal, lá em Passo Fundo, que me ensinou algo de bossa nova, uns rocks que eu pedia e alguma coisa de música clássica (ele provavelmente detestaria minhas músicas, por sinal). Mas era um lance mais de olho e ouvido, de forma que não sabia quase nada de harmonia e tinha uma noção bem precária de leitura de partitura e teoria num geral. Lá também aprendi os rudimentos do saxofone e tive uma meia dúzia de aulas de trompete. Mais tarde tive aulas de violão erudito com o Rodrigo Nassif, que é um baita músico e me apresentou um monte de coisa que agora eu idolatro como Erik Satie e Leo Brouwer. Agora eu tô preenchendo umas lacunas estudando


por conta própria, todo esse lance teórico que eu costumava evitar. Acho que a guitarra é o instrumento que eu me sinto mais à vontade, que eu tenho mais familiaridade. vi uma entrevista em que você disse que vai compondo a música enquanto grava, é isso mesmo? tem algum processo recorrente, nesse sentido? Isso. Eu começo a gravar uma música com um material bem mínimo: uma frase, um pedaço de melodia, uma ideia no baixo ou na guitarra. Depois eu vou desenvolvendo. É raro começar com algo pronto, seja a letra, seja algum instrumento. Eu já tenho alguma ideia do direcionamento que eu quero dar pra música antes de gravar, tenho uma ideia geral e tudo mais, mas via de regra ela que acaba decidindo pra onde quer ir. Se eu quisesse me ater ao meu "plano" inicial, eu não acabaria nunca uma música, porque ela sempre vai para outro lado. Além disso eu só sei como os instrumentos vão soar juntos quando estão gravados, porque obviamente eu não consigo tocá-los ao mesmo tempo. Então acontece umas bizarrices. Na música "D.U.R.O." por exemplo, do "Passos Simples...", eu fiz aquela guitarri-

nha que abre a faixa com o intuito de fazer um lance meio oriental, imitando aquelas harpas chinesas... enfim, acabou virando algo completamente diferente. Tenho mais interesse em assistir ao rumo que a música acaba tomando do que propriamente ter tudo prontinho, definidinho e só então começar a gravar. Gravar sozinho te possibilita isso. Se tu inventasse de fazer isso num estúdio, nunca daria certo. O cara da mesa ia querer te degolar. o irmão victor já se apresentou ao vivo, com banda, algumas vezes. podemos esperar mais shows no futuro próximo? e quanto a outros projetos musicais teus? Esse ano vai ser bem mais focado em shows. Eu e a banda estamos nos programando para fazer uma turnê a partir de março, tocar em todos os lugares que der. Quanto a outros projetos, sim, eu ando tentando desenvolver algo além do Irmão Victor. Algo que não seja tão íntimo, que não me deixe tão apavorado na hora de tocar em shows. Tô juntando umas ideias, mas ainda não comecei a gravar nada. mudando de assunto, o que você tem escutado ultimamente?


Finalmente consegui um toca-discos, que era algo que eu queria por muito tempo. Então eu tenho escutado quase que incessantemente os únicos 4 discos que eu tenho em mãos. A saber: "Geraes", do Milton Nascimento; uma coletânea de sambas da velha guarda; uma coletânea do Georges Brassens e uma do Louis Armstrong. pergunta bônus: há relatos de uma aparição sua no distrito federal ano passado, com direito a jam session e tudo. o que tu foi fazer por lá (se não for muita intromissão perguntar), e o que achou? Fui pra Brasília tocar guitarra e teclado pra um cara aqui de Florianópolis que tem um projeto chamado Frabin. Foi muito estranho porque acabei conhecendo algumas figuras que curtiam meu som. Foi assim: achei uma resenha sobre o "Passos Simples para Transformar Gelatina em um Monstro" num blog chamado Do Próprio Bolso. Fui atrás de quem escreveu no Facebook e para minha surpresa ele era lá do Distrito Federal mesmo, de forma que falei que estava na capital e ele me chamou pra dar um rolê. "Ele", no caso, é o Tiago Rabelo, que é um baterista monstruoso. Acabei parando no Guará, na casa de um figura chamado

Mário Pazcheco, um puta colecionador, louco por música, escreveu uma biografia do Arnaldo Baptista no final dos anos 80 que hoje é bem rara. Um maluco de pedra. Os dois são enciclopédias musicais ambulantes. Me levaram pra conhecer a cidade: fomos ver um cover dos Beatles na Ceilândia. Aquilo tudo foi muito inesperado pra mim.

CHUPA.025 Irmão Victor Cronópio? OUÇA chupamanga.bandcamp.com /album/cron-pio



RESENHAS ALEATÓRIAS

de onde veio essa marchinha? Com a crescente repopularização do carnaval de rua pelo Brasil afora, é interessante notar como quase ninguém conhece — ou se importa — com a história das suas marchinhas, e como algumas delas sobreviveram, até hoje e pelos mais diversos motivos, ao desgaste do tempo.

Quem não conhece "Alá-lá-ô", "A turma do funil", "Mamãe eu quero", "As águas vão rolar" e um punhado de outras seleções do nosso cancioneiro que já fazem parte do domínio público — se não oficialmente, pelo menos por estarem tão entranhadas no nosso DNA —? De algumas, só se canta uma parte. De outras, a letra e a melodia acabaram sofrendo alterações, atualizações e adaptações diversas, mas todas ainda servem ao nobre objetivo de alegrar a vida dos participantes dos blocos e importunar a dos demais. Onde não foram substituídas por sucessos mais ou menos recentes da música pop travestidos de canções carnavalescas, continuam sendo repetidas à exaustão pelos jovens foliões atuais. Mas, muito mais do que meros versos engraçadinhos e melodias simples e contagiantes, a composição e a interpretação — em discos, e principalmente no rádio — de marchinhas para a folia momesca já foi ofício importante e lucrativo no país, para o qual o mercado musical se preparava o ano inteiro, e que tinha seu centro gravitacional em um pequeno café no Rio de Janeiro.


Chamava-se, na realidade, Casa Nice. Inaugurado em 1928, existiu por quase 30 anos, e ficava na Avenida Rio Branco nº 174, onde hoje se encontra a Caixa Cultural. O Café Nice[1] (para os íntimos), imortalizado na canção de Milton Carlos e Isolda, era onde qualquer cantor e compositor popular podia ser encontrado nos anos 1940 e 50 — e quando lá não estivesse, bastava deixar recado com os garçons ou algum grupo de fregueses. Mais do que isso, era onde compunha-se, vendia-se e roubava-se grande parte do repertório popular da época. No livro "MEMÓRIAS DO CAFÉ NICE Subterrâneos da Música Popular e da Vida Boêmia do Rio de Janeiro" (Editora Conquista, Rio de Janeiro, 2ª edição, 1970), o jornalista pernambucano Nestor de Holanda conta, em detalhes, um pouco sobre esse templo profano da música popular brasileira e seus célebres frequentadores. Mas não só isso. Como o texto da orelha deixa logo claro, o livro vai além dos factóides de coluna social: Denuncia os monopólios internacionais do direito autoral, mostra os bastidores das sociedades de cobrança, aponta os que ele chama de gangsters do samba e

os falsos autores, os negociantes da música, criminiosos e contraventores que se fizeram passar por compositores para despistar a polícia e que hoje são tidos como verdadeiros musicistas. (...) indica os plágios e os aproveitamentos ilícitos praticados, impunemente, em todos os tempos, por nossos compositores.

Em pleno Estado Novo, Nestor chegou ao Rio de navio em 1941, aos 21 anos, vindo do Recife. A marchinha mais cantada do ano era, então, "Aurora", de Mário Lago e Roberto Roberti — famosamente composta na quarta-feira de cinzas do carnaval anterior. Emendando uma lembrança na outra, de forma não-linear e afetiva, logo nos primeiros capítulos são diversas as histórias sobre o mundo das trapaças e dos jogos de azar, das pensões baratas e cassinos. Da malandragem dos cafetões, dos taxistas espertinhos e dos bicheiros; mas também sobre as amizades, noitadas, anedotas e a vida de jornalista nas redações e nas ruas. Mesmo a ambientação realista de um tempo muito mais simples (e difícil), não impede uma certa romantização do ofício e das penúrias do jovem repórter. Segundo um companheiro intrometido que conheceu na viagem, ainda a bordo do Ita [2]: "No Rio de


Janeiro, vive mais jornalista que gente. Você encontrará garçons, ascensoristas, choferes, camelôs, detetives, cafetões, botequineiros, contrabandistas, todos com carteira de jornalista no bolso". Já no trajeto pôde sentir o gosto do que o esperava na, então, capital federal. Com o colega, jogador profissional, aprendeu as trapaças de diversos jogos de azar: o pôquer de cartas marcadas na unha, o truque da roleta nas listras da parede, e o ditado que estava disposto a contrariar: "o Cristo, no alto do Corcovado, de braços abertos, vive bancando o guarda de trânsito, a fechar o sinal para impedir a entrada de novos nordestinos". Amigo de Abelardo Barbosa, outro pernambucano, antes deste tornar-se o "Chacrinha" — e que lhe arrumou o primeiro trabalho no rádio carioca —, Nestor era também compositor. Foi parceiro ocasional de Luiz Gonzaga, Ari Barroso, do próprio Chacrinha e, com mais frequência, de Jorge Tavares e Ismael Netto. São de sua autoria canções como "Xem Em Em", "Balance Eu" e "O Periquito da Madame". Àquela época, o cafezinho ainda custava um tostão. O autor contextualiza: Com o advento do cruzeiro, em 1942, seu preço não subiu logo. Permaneceu,

por algum tempo, nos 10 centavos. Depois é que a xícara passou para 20 e a chávena (a média) para 40 centavos. Mesmo assim, os estabelecimentos comerciais do gênero continuaram tendo prejuízos, porque a maioria dos fregueses ocupava as mesas, durante horas, em longas palestras, e gastava, tão-só, o correspondente a duas ou três xicrinhas.

E foi nesse sistema que o Café Nice prosperou como bolsa de valores do mercado fonográfico, durante a maior parte da sua existência. Tamanha era a sua fama como ponto de encontro de compositores e intérpretes, que era impossível não frequentá-lo caso se quisesse entrar nesse meio. Ninguém negociava música fora do Nice. Compositor dificilmente colocava produções, se não comparecesse à famosa esquina e lá se plantasse para fazer amizades e esperar sua vez. Cantor que não passasse pelo café tinha dificuldades de renovar o repertório. Era o Nice, talvez, o maior mercado (do mundo) de música popular. Porque não temos notícia de outro local, na época, tão movimentado, tão procurado, e onde canções de todos os gêneros tenham sido tão vultosamente transacionadas. A qualquer hora, pois o café abria cedo


O Café Nice, e seus frequentadores, no traço inconfundível de Nássara.



e só fechava à meia-noite, ali se encontrava gente ligada à música popular, em função. Quadro comum era cantor cercado de dois ou três compositores, todos batendo o ritmo na mesa ou na caixa de fósforos, preparando gravações. Frequentemente, igualmente, os músicos que escreviam as melodias dos que compunham de ouvido.

que após compor uma melodia no trajeto de barco de Paquetá ao Rio, pediu ao primeiro músico que encontrou que lhe escrevesse a composição. A seguir, foi passar alguns meses na Ilha do Governador e, quando voltou, encontrou a sua canção gravada, com o nome de outro autor, que a comprara. As paredes do Nice tinham ouvidos.

O chorão Augusto Vasseur conta que quando estava sem dinheiro, ia para o Nice, levando lápis e papel de música: "Logo aparecia quem quisesse que eu escrevesse. Eu ganhava dez cruzeiros por peça. Cem cruzeiros por orquestração. Em duas horas, tomando cafezinho, defendia minha féria".

"Música é comércio", era a frase que mais se ouvia. Negociar parcerias em canções, por dinheiro ou favores, era prática costumeira. Segundo o autor, José da Rocha Piedade (autor de "Chora Doutor", "Navio Negreiro", "Tudo Acabado" e outros) era conhecido como o maior vendedor de músicas do Café Nice. Chegava a oferecer a mesma música para vários compradores, com um ou outro verso trocado. Um exemplo cômico é o de quando propôs parceria, pela mesma canção, a Ari Monteiro e Luiz Gonzaga: a este, com o baião "Minha Sanfona"; àquele, com o samba "Meu Pandeiro". Quando descobriram que haviam comprado a mesma composição, cada um resolveu reivindicar a sua metade, deixando de

Era constante esse tipo de trabalho por parte dos músicos de formação. Dezenas deles passaram melodias para o pentagrama nas mesas do Nice. Orquestraram, consertaram métricas musicais e sofreram com os desafinados.

Isso também gerava, por vezes, o roubo deslavado de ideias alheias. O livro conta o caso de Eratóstenes Frazão,


fora o nome do verdadeiro autor. Mas, se havia os compradores interessados no dinheiro, também havia os puramente vaidosos: Alguns elementos não eram falsos autores por interesse comercial. Queriam ver o nome nos discos, anunciado pelos locutores de estações de rádio. Eram vaidosos. Todo mundo desejava ser compositor, a começar pelos garçons do Nice. De tanto conviverem com a gente da música, a servir cafezinho o dia inteiro, muitos acharam que já sabiam compor. E houve até os que não voltaram à velha profissão...

Naqueles tempos realmente se pagava a conta do boteco, do barbeiro ou do hotel com um samba ou um poema — mesmo que fosse roubado —, e o Nice, reunindo compositores e intérpretes, atraía pessoas das mais variadas tendências, de todos os tipos físicos e morais. Apesar do imenso número de autênticos musicistas, havia a invasão dos cafiolas, bicheiros, bookmakers, contraventores

diversos, até contrabandistas. Esses homens compravam músicas, pagavam a cantores e a discotecários, gastavam fortunas com chefes de orquestras, e, assim, faziam-se passar por compositores, para esconder a verdadeira profissão e despistar a polícia. Em consequência, muito nome conhecido, anunciado pelas estações de rádio, jamais colocou uma vírgula na letra de qualquer canção. Comprou repertórios inteiros. Diversos deles, agora, figuram em livros sobre a história de nossa música popular, citados como se fossem excelentes musicistas. E alguns já estão legalmente aposentados, como compositores, pelo Instituto Nacional da Previdência Social.

Dentre eles, o livro destaca alguns casos, como o de Milton de Oliveira, a quem o autor atribui a invenção do "jabá" no Brasil: Foi Milton de Oliveira o primeiro caititu. (...) Constava que ele nada fazia nas músicas em que figurava como autor. (...) Milton iniciou o processo de pagar a pistonistas e trombonistas de sujos, na Avenida, para tocar determinadas músicas.


É a ele atribuída a autoria dos métodos de subornar os chefes de orquestras, em bailes e em batalhas de confete, e os discotecários de estações de rádio. Quando levava um disco à emissora, era sabido que inutilizava a face em que não estava gravada composição sua. E, muitas vezes, visitou discotecas e arranhou, com um prego, as gravações de músicas que começavam a ameaçar a carreira das em que ele aparecia como parceiro... O resultado desse processo foi que as rádios, contra todos os preceitos legais, passaram a cobrar dos autores, com tabelas fixas, para irradiar músicas de carnaval — isto quando deviam pagar direitos autorais. Discotecários decidiram achar normal receber propinas de sociedades, editores, autores e gravadoras, e muitos resolveram aparecer como compositores, em troca de execução de músicas pelo rádio. O processo deu oportunidade maior aos falsos autores, os que chamávamos de comprositores (...) E hoje não mais se obtém vitória no carnaval sem o capital de alguns mil cruzeiros novos, para cada música...

Os autores que não se submeteram a essa prática foram perdendo lugar e parando de compor para o carnaval. Parceiro recorrente de Milton de Oliveira, Haroldo Lobo foi um que beneficiou-se do esquema:

Haroldo Lobo foi o maior compositor do carnaval carioca — e não há dúvida de que ficou devendo muito à caitituagem de seu parceiro e compadre. O volume de sucessos por ele adquiridos supera o de qualquer outro, inclusive contando com Lamartine Babo. Certa vez, me confessou: "Começo a compor, durante o carnaval, para o ano seguinte. No calor da festa, a inspiração chega mais facilmente."

É dele a autoria de "Alá-lá-ô", gravada em 1941 por Carlos Galhardo. Inicialmente uma canção sobre a Índia, baseada nas fantasias dos foliões do Bloco da Bicharada, na Gávea, foi seu outro parceiro David Nasser quem chamou a atenção para o fato de que não eram indianos, mas árabes. Nasser o ajudou a fazer, às pressas, nova letra. Porém, no carnaval no ano seguinte, Haroldo chamou Antônio Nássara para escrever novos versos para o mesmo tema, aproveitando o seu famoso estribilho e sem comunicar o amigo, que jamais foi creditado. Mas apesar de Haroldo Lobo ter sido o compositor de mais sucesso do carnaval carioca, foi Lamartine Babo a sua maior força. Autor de inúmeros sucessos (dentre eles os hinos dos principais clubes de futebol do Rio de Janeiro, além de "Eu Sonhei que Tu Estavas Tão Linda", "No Rancho


Fundo", "Rasguei a Minha Fantasia" e "O Teu Cabelo Não Nega" — esta última, infelizmente, ainda reproduzida até hoje)[3], afastou-se por não concordar com a excessiva comercialização da música de carnaval. Outro que saiu de cena devido à "mercantilização nociva e desenfreada das melodias de Momo" foi Eratóstenes Frazão, autor, dentre outras, da marchinha "Lero-Lero". Se afastou da folia carioca diante da infiltração de "bookmakers, gigolôs, bicheiros e outros criminosos e contraventores" que se apoderaram do mercado. Morador de Paquetá, após um caso de antraz deu nome de amigos aos diversos furúnculos que lhe apareceram pelo corpo: "Roberto Martins" na nuca, "Nássara" no braço esquerdo, "Benedito Lacerda" no direito, "Sílvio Caldas" no peito, ao lado de "Nestor de Holanda", e por aí vai. De resto, o livro conta a história dos primórdios das sociedades de arrecadação de direito autoral, e como isso sempre foi uma questão complicada para os autores. Muitos foram lesados por administrações corruptas ou simplesmente venderam seus direitos por muito menos do que valiam. Zequinha de Abreu, por exemplo, precisando sempre de dinheiro, preferia não esperar pelo direito autoral

e vendia as suas composições ao editor Vicente Vitalle. É dele a autoria de "Tico-tico no Fubá", da qual, segundo consta, não viu um tostão depois que essa tornou-se um grande sucesso na voz de Carmem Miranda. Desde a SBAT (Sociedade Brasileira de Autores Teatrais), que deu origem à ABCA (Associação Brasileira de Compositores e Autores), e que, por sua vez, transformou-se na UBC (União Brasileira de Compositores, à qual sou filiado) sempre houve[4] controvérsias e reclamações quanto ao pagamento do direito aos compositores. Nestor de Holanda não se intimida e acusa, extensivamente, o então tesoureiro da UBC, Osvaldo Santiago, de enriquecer às custas de outros autores. Era mesmo notória a corrupção de Santiago à frente da entidade, como denunciado à época por seus afiliados, nos jornais. Em matéria na Folha Carioca de 2 de abril de 1946, o autor assinava artigo entitulado "O bookmaker que quer ser compositor", o que lhe rendeu uma série de ameaças e intimidações obscuras, apesar do apoio de diversos colegas do meio musical. Isso levou a outro artigo, dessa vez no Imparcial, em 1º de outubro do mesmo ano, chamado "Cuidado com ele!". Este, trazendo a primeira grande denúncia, realmente incontestável, das imensas falcatruas


existentes nas sociedades de cobrança do direito musical, para espoliar os compositores, e que levou à criação da SBACEM (Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e Escritores de Música), fundada por 44 deles — dentre Orestes Barbosa, Donga, Ismael Silva e Pixinguinha — quando as irregularidades da novel entidade passaram a ser do conhecimento de todos. Logo depois aderiram Ari Barroso, Benedito Lacerda, Herivelto Martins, David Nasser, Dorival Caymmi e outros. Em uma guerra aberta contra Santiago, o autor e outros representantes da recém-criada sociedade chegaram a depor na justiça, em processo no qual respondiam por calúnia e difamação. Em entrevista entitulada "Estamos sendo roubados!", ao Diário da Noite de 27 de setembro de 1948, Ari Barroso também acusava o tesoureiro da UBC. O livro narra os trâmites pelos quais as quantias arrecadadas por uma canção tinham de passar para chegar — se chegassem — aos seus autores, ainda mais no caso da reprodução internacional, onde imperava o monopólio da ASCAP e da CISAC. "O monopólio internacional era de tal maneira (...) que qualquer música brasileira executada na Argentina tinha seus direitos pagos a Nova Iorque, para que

Nova Iorque, depois, remetesse o saldo para o Brasil. Em consequência, ainda com a participação da sociedade, da editora e do Governo argentinos (impostos), o samba de Ari Barroso que rendesse Cr$ 1000 em Buenos Aires deixaria o autor devendo..."

Tanto que Ari Barroso morreu pobre. O autor arremata: "Enquanto Cole Porter ficou milionário, nos Estados Unidos, apenas com o sucesso de "Night and Day", nenhum musicista brasileiro ganhou para viver. No entanto, as sociedades de compositores enriqueciam seus diretores, e os editores musicais estavam quase mais ricos que Cole Porter..." A conclusão, infelizmente, já era de que "compositor sem outra profissão morre de fome no Brasil". E para citar exemplos da época, o autor chega a listar, durante seis páginas (102-107), as outras profissões e bicos que uma série de compositores célebres teve de exercer para manter o seu sustento. Holanda também relembra os casos de Catulo da Paixão Cearense (autor de "Luar do Sertão") e de Orestes Barbosa, jornalista e um dos primeiros críticos de rádio na imprensa, criador do samba urbano e autor do clássico "Chão de Estrelas", a cujo verso "tu pisavas os astros, distraída" Manuel Bandeira supostamente atribuiu


a alcunha de o mais bonito da língua brasileira. Em 1954, em dificuldades financeiras e tendo saído da SBACEM após desentendimentos, Orestes acabou vendendo toda a sua obra a José Batista da Costa, o "China", comerciante de música conhecido entre os apostadores de corridas de cavalos, da qual nunca pode reaver-se. O "China" também já havia, a essa altura, adquirido todo o repertório de J. Piedade. Do outro lado, também estavam as apropriações, plágios e roubos descarados que, naturalmente, ocorriam por parte dos compositores. As marchinhas sem dono do carnaval de 1946 (p.130) evidenciam o fenômeno dos músicos "do asfalto" que subiam o morro para roubar melodias. Mas eram vários os lugares onde se constumava buscar inspiração: Muitos compositores de carnaval, intencionalmente, adaptaram trechos de músicas sérias, líricas, ou mesmo de canções folclóricas, e fizeram alegres sambas ou marchas que se popularizaram na folia de Momo. Isso é diferente do plágio propriamente dito, do aproveitamento indébito de outras composições. (...) Segundo o Maestro Batista Siqueira, "Peixe Vivo" é na verdade da ópera Dinorah, de Meyerbeer, certamente divul-

gada no Brasil, com versos populares, no século 19. (...) Muitas vezes, o povo canta músicas antigas, já em domínio público, ou de autores desconhecidos, julgando tratar-se de novas produções. (...) Outro manancial inesgotável, para o musicista de asfalto: os pontos de terreiro (umbanda, quimbanda, candomblé, xangô, etc.). Muitos viraram samba.

Como diria o russo Igor Stravinsky, "artistas menores pegam emprestado, grandes artistas roubam", Mas nem mesmo o maestro Heitor Villa-Lobos escapou de acusações desse tipo, chegando a ter discos proibidos por conta disso. Segundo consta, o caititu Guimarães Martins, "dono" da obra de Catulo, o processou por ter citado o motivo de "Rasga Coração" nos seus "Choros nº10". O livro relata dezenas de casos e anedotas do tipo: os jingles e propagandas de marcas e lojas que viraram marchas, a apropriação do folclore e do repertório clássico pela música popular e as denúncias e protestos que isso causava. Holanda analisa o caso da lendária canção "Mulher Rendeira", hoje em domínio público e que já foi atribuída a diversos autores, além de figurar no repertório do bando de Lampião. A sua utilização em um filme americano chegou a gerar revolta por parte dos brasileiros.



É impossível, também, falar sobre o samba, o carnaval e o Rio de Janeiro na primeira metade do século 20 sem mencionar a Lapa. E em um capítulo à parte, o autor não se faz de rogado. Na sua época, ainda eram constantes as histórias de brigas envolvendo malandros famosos, como o "Meia-Noite" (originalmente Otávio José Pinto, mas a alcunha foi usada por outros, assim como "Moleque Pernambuco"), "Miguelzinho" — que apanhava da mulher em casa — e o mais conhecido deles, "Madame Satã". (...) ainda peguei a Lapa com os cabarés, mulheres e malandros famosos, cafés ruidosos, trottoir, brigas, pensões onde as damas vendiam amor a 20 mil réis (...) A vida boêmia da Lapa iniciou-se por volta de 1915, quando suas ruas (...) começaram a ser invadidas por pensões de mulheres. Durante trinta anos, mais ou menos, o famosos bairro manteve o prestígio, viveu no cancioneiro popular, figurou no noticiário policial. Quando passei a frequentar a Lapa, o poeta Manuel Bandeira ainda morava na Rua Morais e Vale, que vai da Joaquim Silva à Rua da Lapa, no prédio de número 57, em frente ao Beco das Carmelitas

[5], que acaba no 40. Isto figurou, várias vezes, em sua poesia.

Noel Rosa também chegou a frequentar o Nice — antes do período narrado no livro —, mas preferia os bares e cabarés da Lapa. Tinha rixa com Wilson Batista, e se provocavam através de canções, numa rivalidade se não saudável, certamente produtiva. O autor destaca: "Lenço no Pescoço" x "Rapaz Folgado", "Feitiço da Vila" x "Conversa Fiada", "Palpite Infeliz" x "Frankenstein da Vila" e "Terra de Cego"[6]. As brigas entre artistas, às vezes divertidas ou pitorescas, também podiam ser mais sérias, como a rivalidade entre Emilinha Borba e Linda Batista — por causa de Orson Welles, no Brasil para filmar seu documentário nunca terminado "É Tudo Verdade" — no indefectível Cassino da Urca[7]. Eram tempos em que não existia assessoria de imprensa, tudo era mais cru. Ainda nos anos 1970, o autor lembrava: Hoje, os empresários determinam até o guarda-roupa dos artistas. (...) Antigamente, qualquer cantor que fazia nome se transformava em ídolo popular, e cometia as maiores gafes.

Muitas delas são narradas nas páginas do livro. Cheio de outras curiosidades — como o método de compor uma letra em cima da melodia de outra marcha já existente, para aproveitar


a sua métrica, e depois entregá-la para ser devidamente musicada [8] —, além de inúmeras outras histórias cuja busca fica, infelizmente, dificultada pela ausência de um índice onomástico, o título preenche uma lacuna importantíssima no resgate dos costumes da época, dando vida à figura dos compositores dessa fase crucial da nossa música. Chega a listar os apelidos dos frequentadores do Nice — Orlando Silva, sempre perfumado: sovaco; Nelson Gonçalves, com roupas coloridas: arco-íris (depois, devido à sua gagueira: metralha); Francisco Alves, notório pão duro: chico duro, carne assada; David Nasser: songa-monga; Mário Lago: lagartão; Wilson Batista: virilha; Nássara: pé de pavão; Dolores Duran: caxumba; para citar alguns — e ainda traz um extenso glossário de termos e jargões engraçadíssimos ao final. É uma pena que até agora não tenha sido reedita-

do (pelo menos que saibamos), mas fica a sugestão, para que não aconteça como em um dos muitos casos narrados nele: A falta de cuidado com a nossa história fez perder-se verdadeiros marcos, como a parede do bar Villariño — onde nasceu a bossa-nova —, com autógrafos e desenhos de dezenas de frequentadores ilustres, dentre eles Dorival Caymmi, Ari Barroso, Manuel Bandeira, Di Cavalcanti e Lígia Clark. O dono do estabelecimento mandou pintar por cima, na intenção de agradar os clientes e limpar o ambiente, e pôs fim ao monumento. Lá se reuniam músicos, artistas e escritores, como Sérgio Porto (vulgo Stanislaw Ponte-Preta) e Millôr Fernandes, foi onde se conheceram Tom Jobim e Vinicius de Moraes, e para onde migrou parte do fluxo de compositores após o fim do saudoso Café Nice. Mas aí já é outra história...


NOTAS [1] Não confundir com o estabelecimento de mersmo nome, fundado em 1939 e ainda em funcionamento na Av. Afonso Pena 727, no centro de Belo Horizonte. [2] Os navios da Companhia Nacional de Navegação Costeira eram assim chamados, porque todos tinham nomes com o mesmo prefixo: Itanajé, Itaquicé, Itajiba, Itapagé, Itaqüera, Itaçucé e outros. [3] cartacapital.com.br/sociedade/o-teudiscurso-nao-nega-racista [4] E até hoje, com a discussão sobre a remuneração do Spotify, YouTube e outros serviços de streaming. [5] Mudou-se, depois, para a Avenida BeiraMar nº 406, na Esplanada do Castelo, onde foi retratado no excelente curta "O Poeta do Castelo", de Joaquim Pedro de Andrade, em 1959. [6] Não confundir com o estrondoso sucesso, de mesmo nome, do grupo Chapa Mamba. [7] O caso também é narrado, em maiores detalhes, no livro "O Rei da Roleta - a incrível vida de Joaquim Rolla", de João Perdigão e Euler Corradi (Casa da Palavra, 2012), sobre o dono do famoso cassino. Nestor também lembra do caso do burro Canário. [8] Um truque conhecido: o letrista utilizava a melodia de uma música já existente, para aproveitar a sua métrica, e depois a entregava para o musicista sem dizer de onde viera, para que ele não sofresse influência. Como exemplo, cita os versos de "Ai, que saudade da Amélia!" (Mário Lago e Ataulfo Alves), que cabem perfeitamente no "Hino à Bandeira" (Francisco Braga e Olavo Bilac).

PARA SABER MAIS immub.org

PEQUENO GLOSSÁRIO DE EXPRESSÕES DA ÉPOCA

ABOTOAR O PALETÓ: Morrer. AVENIDA: Corte feito com navalha. BARBEIRA, ESPELHO: Navalha. BERRANTE, BUFOSA, DRAGA, MÁQUINA: Revólver. BONECO: Fotografia, na gíria de jornal. CAFIFA, CAFIOLA: Cafetão. CAITITU: Compositor que tudo faz pela divulgação de sua música. Suborna discotecários e chefes de orquestra, canta nos bailes e nas batalhas de confete, etc. CARAMELO, CHUMBO: Projétil de arma de fogo. CARTAZ: Fama, prestígio, renome. CÊRA: Disco. CHAPOLETADA: Bofetada. CHUCHU: Mulher bonita (em alusão a Chouchou, uma francesa famosa, dona do cabaré Imperial na Lapa). COMPROSITOR: Falso compositor, comprador de músicas dos outros. CU-DE-BOI, SURURU: Briga, confusão, encrenca, desordem, algazarra. GAITA: Dinheiro. LANTEJOULA: Elogio. SE COÇAR: Levar a mão à cintura, para puxar a arma. SUJO: Bloco de sujos; grupo de foliões que brincam nas ruas, durante o carnaval. Mesmo que espontâneo. TETO: Chapéu. VIRAR OS SUJOS: Fazer com que os sujos, que passam cantando determinada música, cantem outra. Os caititus do Nice conseguiam virar os sujos à custa de um pistonista ou trombonista contratado para esse fim.


XEROCÃO

“escuta orlando, desiste dessa mania..." Aquele rapaz, franzino e nervoso, não nascera decididamente para um emprego burocrático. Pelo contrário, em sua veia corria o sangue ardente de um artista, o temperamento incompreendido de um gênio... Seu espírito penetrante sabia descobrir belezas nas coisas mais vulgares, seu talento criador era capaz de elevar à expressão da mais pura estética o mais prosaico coaxar de um sapo de sargeta [sic]. Era isso que Orlando Coelho queria que se dissesse a seu respeito. Mas, para tristeza sua, ninguém jamais lhe reconheceu aquelas qualidades. Os amigos lhe diziam: "Escuta, Orlando, desista dessa mania de compor música. Tu não dás para isso. Vai guiar um caminhão, que farás melhor negócio". "Não faz mal" — murmurava — "um dia hei de fazê-los chorar de emoção com a minha música!". E saia mastigando entre dentes que "Schubert, Wagner e outros gênios também sofreram a campanha hostil da ignorância, da inveja e da incompetência". Em casa, no silêncio da noite cheia de estrelas, Orlando saía de mansinho e ia procurar inspiração na feérie maravilhosa do céu carioca. Um dia sua obstinação foi recompensada. Da confusão

de sons que tumultuavam em seu espírito, emergiu uma maravilhosa composição melódica. "Eureka!" — bradou, exultante. Chegou à casa, derrubando cadeiras, nervoso e berrando para a família: "Venham ouvir, venham ouvir a minha suprema obra de arte". "De que se trata?" — perguntaram os parentes espantados. "Escutem" — disse ele suavemente... E começou a cantar. Quando terminou olhou cheio de orgulho às pessoas que o ouviam. "Que tal?" — perguntou comovido. Um silêncio gelado acolheu suas palavras. Por fim, alguém respondeu com indignação: "Batatas, cebolas, alhos e bugalhos. Essa 'tua' música seria maravilhosa se Lamartine Babo não tivesse tido a idéia de escrevê-la primeiro..." O pobre rapaz retirou-se indignado para o seu quarto. "De fato" — monologou — "eu nunca havia pensado nisso. Meu lugar é nos estúdios, no 'broadcasting'. Vou inscrever-me num programa de calouros. Ganho o prêmio na certa e, provavelmente, um bom contrato". Na manhã seguinte correu apressado a uma emissora e fez sua inscrição: Orlando Coelho, com 25 anos de idade, residente na rua das Missões, 57, casa VII. Vou can-


tar: "Pombo-Correio". No dia da estréia foi o primeiro a chegar. Quando a demonstração artística de algum modesto sambista era cortada pelo ruído inexorável do vil instrumento, ele sorria de íntima satisfação e dizia de si para si: "Um concorrente a menos. Está para mim." Chegou a sua vez. Aproximou-se do microfone e disse com desembaraço: "Vou cantar em homenagem à mulher que amo". Empertigou-se e berrou: "Soltei o meu primeiro pombo corrê-ê -êio..." — Pan!... O gongo impiedoso cortou a música. "Vamos, meu rapaz", — disse o locutor, fazendo espírito — "Você deve dedicar-se à compra de garrafas". "Injustiça, infame injustiça" — rugiu entre dentes. E aos amigos que o olhavam com sarcasmo, explicou: "Gongaram-me com medo do meu sucesso. Sabiam que eu ia desbancar o Francisco Alves, e meu homônimo Silva". Apesar do insucesso, não desanimou. Inscreveu-se noutro programa de calouros. A mesma cena se repetiu. O mesmo miserável gongo e os mesmos infames comentários: "São Diogo, meu rapaz, São Diogo tem uma bela pedreira"... Um dia, há dois meses passados, Orlando Coelho encontrou-se, no Café Nice, com um compositor seu conhecido, de nome Raul Marques. Palestra vai, palestra vem, o amigo começou a cantar baixinho um samba inédito de sua autoria. Orlando gostou da música, gostou tanto que ofereceu cem cruzeiros ao amigo para

seu nome figurar como co-autor. O compositor aceitou a proposta e foi logo embolsando o dinheiro. Nessa noite, Orlando dormiu inquito, pensando na enorme inveja que iria provocar nos amigos. Mas, os dias, semanas e meses se passaram sem que a "sua" composição fosse editada, e o pior de tudo é que nunca mais ele tornou a ver o compositor. Resolveu apresentar queixa à polícia. Dirigiu-se à 3ª Delegacia Auxiliar e lá contou sua história ao Sr. Demócrito de Almeida. O 3º delegado auxiliar, depois de ouví-lo, designou o investigador Rubens para proceder sindicâncias em torno do caso e intimar o compositor Raul Marques a comparecer à Polícia. Orlando Coelho, ao deixar aquela delegacia, deteve-se alguns minutos a contar detalhes de sua tragédia a um policial de serviço. Num dado momento, o policial notou que Orlando, enquanto falava, tamborilava com os dedos, ora sobre os joelhos, ora sobre o espaldar da cadeira. Franziu o sobrecenho e perguntou espantado: "Que é isso? Alguma doença"? "Não", respondeu Orlando calmamente. "É puro ritmo. Uma belíssima música. Quer ouvi-la"? E ante a justíssima indignação do policial começou a cantar: "No taboleiro da baiana tem... Vatapá — oi"!... Texto publicado no jornal A Noite, na quinta-feira de 14 de janeiro de 1943 (não creditado).


CHUPA MANGA PLAY ALONG

© Stevz

voz


o ovo e a galinha o ovo veio da galinha que veio do ovo que veio da galinha que veio do ovo que veio da galinha que veio do ovo que veio da galinha que fugiu do galinheiro para soltar a franga no carnaval do rio de janeiro e acabou rodopiando na televisão da cachorrada na padaria da esquina cantarolando a marchinha que dizia que o ovo veio foi da galinha da galinha que veio do ovo que veio da galinha que veio do ovo que veio da galinha que veio do ovo etc. Nos idos de 2007, ainda morando com os meus pais, em Brasília, descobri que a Fundição Progresso realizava concurso anual de marchinhas de carnaval no Rio de Janeiro. Ingênuo, ou talvez arrogante o suficiente, mas decidido a exercer a função de compositor, resolvi participar e fiz essa música ao lado. Tive que registrá-la toscamente, com o violão e o meu fiel gravador portátil de fita cassete, e depois passar para o computador, para enfim queimar em um CD, formato requerido para a inscrição, e só então enviar pelo correio. Se existe algo mais anacrônico do que isso, em pleno século 21, eu não sei o que é — bom, talvez publicar isso em um zine dez anos depois. É claro que não ganhei, tampouco fui selecionado. Mas qual não foi a minha surpresa, semanas depois, ao receber o telefonema de uma repórter querendo me entrevistar na televisão, pois eu era o participante mais jovem do concurso! A entrevista também não ocorreu, ainda bem, mas pre-

parando esta edição, me lembrei dessa que talvez pudesse ter figurado entre as marchinhas esquecidas de algum carnaval do passado. A letra não tem intenção de duplo sentido, é antes um exercício surrealista sobre algo que eu acho inexplicavelmente cômico, mesmo tendo me tornado vegetariano, que é o frango de padaria. Analisando hoje, talvez tenha a ver com o eterno retorno, e nesse sentido possa ser considerada até involuntariamente filosófica. A própria repetição ad aeternum — o grande propósito da marchinha infinita, que anima os foliões até eles perderem os sentidos — é como o uroboro, a serpente mítica mordendo o próprio rabo, e a alegoria perfeita para a espetacularização da alegria carnavalesca, a fuga através do desbunde, o desejo de morte sublimado e qualquer outra baboseira psicanalítica do tipo. Pelo menos no caso da pobre galinha da marchinha, em sua busca ilusória pela fama, sabemos que não leva a lugar algum.



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