Chupa Manga Zine nº 18

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chupa manga zine

sessão marmelada: lançamentos 2 twitter bots y sonidos latinos 4 especial discos marcus pereira

chupa manga play along

drummond e o punk

quadrinhos inéditos

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22 MARCUS PEREIRA: O PUBLICITÁRIO QUE MAPEOU O BRASIL (pág. 8) Nº 18, ANO 5 — NOVEMBRO DE 2020
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chupa manga zine

Nº 18, ANO 5 — NOVEMBRO DE 2020

REDAÇÃO, EDIÇÃO-GERAL, PROJETO GRÁFICO

Stêvz PARTICIPAM DESTA EDIÇÃO José Celestino

FALE CONOSCO chupamangarecords@gmail.com

acima: arte de Brunno Balco

na capa: Marcus Pereira em foto de Wilson Chumbo para a revista Manchete nº1200

Edição criada exclusivamente para integrar a coleção Chupa Manga Zine nº 11-18

Stêvz é o nosso fantástico editor, e apesar de preferir não empregar superlativos, referir-se a si mesmo na primeira pessoa do plural ou na terceira do singular, é exatamente isso que está fazendo agora. Assina todos os textos deste zine, exceto onde indicado.

Chupa Manga Zine é uma publicação independente e de periodicidade irregular do selo musical Chupa Manga Records, atualmente localizado em São Paulo, Brasil.

EXPEDIENTE

e di to ri al

Ufa! Chegamos ao fim do ano mais louco dos últimos tempos com a nossa décima oitava edição, que fecha outra coletânea de fascículos do Chupa Manga Zine — somando mais de 500 páginas de material até aqui. A maldita pandemia de coronavírus ainda não acabou, o neoliberalismo e o neofascismo muito menos, estamos no meio das eleições municipais e, apesar de uma ponta de esperança quanto ao futuro, não temos lá muita razão para comemorar. Mas veremos o que há de vir por aí…

Confira neste número: os últimos e incríveis lançamentos da Chupa Manga, incluindo um cover inusitado de Tom Zé; uma matéria especial sobre a gravadora Discos Marcus Pereira e seu legado de resgate folclórico e cultural; dicas quentes de documentários musicais, programas de rádio e artegenerativa no twitter; um conto inesperado de Carlos Drummond de Andrade sobre a filosofia punk; uma transcrição porca da música "Perebarebariboró"; e quadrinhos inéditos de José Roberto Celestino, diretamente de Petrolina-PE, que também faz os seus sons por aí (soemsonho.bandcamp.com).

Por hoje é só, até o ano que vem.

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SESSÃO MARMELADA

STVZ > QUEM SABE ANO QUE VEM

Novo single instrumental guitarrístico de Stvz, "Quem Sabe Ano que Vem" transporta ouvintes em uma viagem meio aquática e ventilada rumo a um possível futuro mais brilhante. Dias melhores virão, ao menos é o que esperamos.

arte das capas (desta página, em sentido horário) por Clara do Prado, Augusto Serquiz e Stvz

OUÇA chupamanga.bandcamp.com soundcloud.com/chupamanga youtube.com/chupamangarecs
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últimos lançamentos

SUDÁRIO > CHUTE

Novo single de Adriano Sudário, com a participação de Pedro Lucas (bateria) e Stvz, que deve constar no próximo álbum do artista.

que reiada no ego meu vilão, meu pobrezinho ego foi um chute no ego meu irmão mau, coitadinho, ego mas quem sentiu fui eu doeu que só, doeu

BAGDÁ MIRIM > TODOS OS OLHOS

A banda sazonal Bagdá Mirim volta às paradas com uma versão horrível deste clássico de Tom Zé. "Todos os olhos" em 180 bpm, desculpa Zé.

#eggpunk #devocore #tropicalia

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DICAS bots musicais

PARA SABER MAIS botwiki.org

Cada vez mais pessoas aderem à criação da chamada "arte generativa", pelo uso de programação e/ou inteligência artificial. Um exemplo dos mais simples são os twitter-bots, contas automatiza das que publicam conteúdo conceitual em inter valos regulares. A variedade de estilos e assuntos é enorme, mas separamos uma seleção de alguns bots com tema musical, como o nosso próprio @resenhabot, já mencionado nesta publicação.

abaixo, imagem do ótimo @thelickbot, que criava letras para o famoso jazzlick mas, infelizmente, teve a conta suspensa na página ao lado, a chilena Violeta Parra em esúdio

Siga: @musictakesbot, @hotmusictakesbr, @graphicscorebot, @mtbotprofound, @fakegenrebot, @foleyartists, @oblstrats, @obliquelists, @melodybot3456, @instrumentbot, @soundadvicebot

sonidos latinos

Nosso amigo Daniel Villaverde, entrevistado no segundo número deste zine, além de ter criado meia dúzia de bandas nesse meio tempo, atual mente apresenta dois programas na Virus Rádio Comunitária (viruscomun.carrd.co) — plata forma coletiva surgida na quarentena de 2020.

São eles: Sonidos Latinos, que vai ao ar todos os sábados às 20h e traz sons do norte do México ao sul da Argentina, e Ako Ba Ho, também aos sábados, às 22h, com a musicalidade do con tinente africano em todos os seus ritmos.

Villa alimenta uma playlist para cada pro grama no spotify, e participou de uma con versa muito interessante sobre o cenário musi cal na América do Sul dos anos 1960-70, no podcast Balanço e Fúria, de Rodrigo Corrêa.

PARA SABER MAIS mixlr.com/viruscomun instagram.com/virus.comun instagram.com/ programa_sonidos_latinos

Sonidos Latinos

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Ako Ba Ho Balanço e Fúria

ESPECIAL a jornada musical de marcus pereira contra o esquecimento

abaixo, o ex-publicitário da Marcus Pereira Publicidade, Marcus Pereira, dono da gravadora Discos Marcus Pereira

Assim como o Café Nice (do qual fala mos no número 9 deste zine) nas déca das de 1940 e 50, no Rio de Janeiro, a cidade de São Paulo também teve o seu quartel-general da música, fundado em 1966 na recém-inaugurada Gale ria Metrópole. O bar, totalmente dedi cado à música brasileira, em oposição à invasão das guitarras elétricas e do iê-iê-iê — e que ainda teria outros dois endereços —, se chamava “Jogral”, e tinha na sua figura central o compositor Carlos Paraná. Paraná, que havia traba lhado como lavrador, agente do IBGE, e depois chegou a dividir um quarto de pensão com João Gilberto, tira ria segundo e quinto lugar nos festivais da canção de 1966 e 67, respectiva mente — o último com “Maria, Carna val e Cinzas”, interpretada por, veja só, Roberto Carlos —, mas passou a dedi car-se profissionalmente apenas ao Jogral. Povoado por uma constelação de nomes diversos do cancioneiro nacio nal — como Adoniran Barbosa, Gilberto Gil, Luis Gonzaga, Jorge Ben, Lupicínio Rodrigues, Ismael Silva e Clementina de Jesus, que se apresentavam no pequeno palco —, o bar tinha até condecora ção oficial, a "Ordem do Jogral".

Assim como o Café Nice (do qual fala mos no número 9 deste zine) nas déca das de 1940 e 50, no Rio de Janeiro, a cidade de São Paulo também teve o seu quartel-general da música, fundado em 1966 na recém-inaugurada Gale ria Metrópole. O bar, totalmente dedi cado à música brasileira, em oposição à invasão das guitarras elétricas e do iê-iê-iê — e que ainda teria outros dois endereços —, se chamava “Jogral”, e tinha na sua figura central o compositor Carlos Paraná. Paraná, que havia traba lhado como lavrador, agente do IBGE, e depois chegou a dividir um quarto de pensão com João Gilberto, tira ria segundo e quinto lugar nos festivais da canção de 1966 e 67, respectiva mente — o último com “Maria, Carna val e Cinzas”, interpretada por, veja só, Roberto Carlos —, mas passou a dedi car-se profissionalmente apenas ao Jogral. Povoado por uma constelação de nomes diversos do cancioneiro nacio nal — como Adoniran Barbosa, Gilberto Gil, Luis Gonzaga, Jorge Ben, Lupicínio Rodrigues, Ismael Silva e Clementina de Jesus, que se apresentavam no pequeno palco —, o bar tinha até condecora ção oficial, a "Ordem do Jogral".

musical, resolveu lançar, como brinde de fim de ano da sua agência, um disco inédito de outro célebre frequentador: o sambista Paulo Vanzolini, que ocupava o cargo de diretor do Museu de Zoolo gia da USP, e já tinha algum reconheci mento com seu clássico absoluto “Volta por Cima”. O disco se chamava Onze sambas e uma capoeira, trazia diversos intérpretes — dentre eles, um iniciante Chico Buarque — e saiu com selo “O Jogral”. Distribuído para os clientes da Marcus Pereira Publicidade, era o primeiro de 144 lançamentos que depois ele faria com a sua gravadora Discos Marcus Pereira (nome pouco criativo, como o da agência, mas que demons tra o fator pessoal?), fundada em 1974 e que relançaria este e outros três títu los promocionais do Jogral — como o único disco, póstumo, de Carlos Paraná.

musical, resolveu lançar, como brinde de fim de ano da sua agência, um disco inédito de outro célebre frequentador: o sambista Paulo Vanzolini, que ocupava o cargo de diretor do Museu de Zoolo gia da USP, e já tinha algum reconheci mento com seu clássico absoluto “Volta por Cima”. O disco se chamava Onze sambas e uma capoeira, trazia diversos intérpretes — dentre eles, um iniciante Chico Buarque — e saiu com selo “O Jogral”. Distribuído para os clientes da Marcus Pereira Publicidade, era o primeiro de 144 lançamentos que depois ele faria com a sua gravadora Discos Marcus Pereira (nome pouco criativo, como o da agência, mas que demons tra o fator pessoal?), fundada em 1974 e que relançaria este e outros três títu los promocionais do Jogral — como o único disco, póstumo, de Carlos Paraná.

Em pouco tempo o publicitário Marcus Pereira, assíduo frequentador do esta belecimento, passou de cliente, amigo e admirador de Carlos Paraná a sócio (simbólico, dizia) dele na empreitada. Instigado pelo ambiente de alto nível

Em pouco tempo o publicitário Marcus Pereira, assíduo frequentador do esta belecimento, passou de cliente, amigo e admirador de Carlos Paraná a sócio (simbólico, dizia) dele na empreitada. Instigado pelo ambiente de alto nível

A Discos Marcus Pereira surgiu com a nobre proposta de documentar as mani festações culturais populares brasileiras que estavam ameaçadas de extinção, por conta do avanço do capitalismo e da modernidade, ecoando as preocupações de Mário de Andrade e sua Missão de Pesquisas Folclóricas nos anos 1930.[1] O projeto mais ambicioso nesse sentido foi o Mapa Musical do Brasil, uma cole ção de 4 volumes para cada região do país, somando 16 LPs (as regiões Centro -Oeste e Sudeste foram lançadas juntas), que procurava resgatar manifestações populares em fonograma através da

A Discos Marcus Pereira surgiu com a nobre proposta de documentar as mani festações culturais populares brasileiras que estavam ameaçadas de extinção, por conta do avanço do capitalismo e da modernidade, ecoando as preocupações de Mário de Andrade e sua Missão de Pesquisas Folclóricas nos anos 1930.[1] O projeto mais ambicioso nesse sentido foi o Mapa Musical do Brasil, uma cole ção de 4 volumes para cada região do país, somando 16 LPs (as regiões Centro -Oeste e Sudeste foram lançadas juntas), que procurava resgatar manifestações populares em fonograma através da

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Marcus Pereira largou uma carreira sólida na publicidade para dedicar-se aos discos, e por isso operava de forma peculiar, quixotesca, e até inconsequente em relação às gravadoras tradicionais. É possível que tenha sido o primeiro independente do ramo.

pesquisa in loco. Foi, provavelmente, o trabalho mais abrangente deste tipo já realizado no Brasil, mas não sem contra dições: a gravadora acreditava, por exemplo, que era preciso “polir” o mate rial coletado, reinterpretando várias das composições em estúdio, para adap tá-las aos ouvidos do público consumi dor urbano.[2] Tratava-se de medida mercadológica, em certa medida com fundamento, o que incluía o emprego de intérpretes mais conhecidas como Nara Leão e Elis Regina. É também contro versa a escolha iconográfica para apre sentar alguns dos volumes da coleção, apelando para o exotismo das paisa gens áridas do sertão na Música Popu lar do Nordeste — como lembra José Magossi em uma tese de mestrado sobre a Marcus Pereira, de 2013 —, por exemplo, mesmo que grande parte dos gêneros musicais ali apresenta dos fosse de regiões litorâneas e gran-

des cidades como Recife e Salvador. Mesmo assim, o projeto contava com a participação de especialistas, pesqui sadores e estudiosos na escolha do repertório e nos textos de apresenta ção, e cumpriu, pelo menos em parte, o seu objetivo de registrar manifestações populares que estavam se perdendo. O risco real de esquecimento fica claro em alguns casos curiosos, como o dos carregadores de piano registrados pela Missão de Pesquisas Folclóricas, que não conseguiam cantar a sua música ritmada de trabalho caso não estivessem com o enorme instrumento sobre as cabe ças. Ou das rendeiras de Florianópolis, já numa tentativa de registro para o LP Música Popular do Sul, que haviam prati camente esquecido as suas cantigas, depois de terem substituído a cantoria no expediente pelas telenovelas.

Além do resgate folclórico, a grava dora também investiu em novos artis tas, como o Quinteto Armorial, surgido no contexto do Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna nos anos 1970. O Quinteto fazia música de câmara erudita com raízes popula res, e gravou quatro discos pela Marcus Pereira. Apenas no seu primeiro ano de existência, a gravadora lançou 23 LPs e 3 compactos, numa sucessão de discos de choro, samba, frevo, fado, coral, MPB e folclore. Mesmo sendo aclamada pelos críticos, não vendia em núme ros expressivos, com algumas exceções.

Alguns títulos da Discos Marcus Pereira, em sentido de leitura: Paulo Vanzolini — Onze Sambas e Uma Capoeira, A Música de Carlos Paraná (ironicamente em uma reprensagem da Som Livre), Música Popular do Nordeste, os dois de Cartola, A Música de Donga, Marcus Vinícius (que seria o último diretor artístico da gravadora) — Trem dos Condenados, Música Popular do Norte, Quinteto Armorial — Do Romance ao Galope Nordestino e Papete — Bandeira de Aço.

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ao lado, chamada na extinta revista Manchete, 1975 abaixo, Marcus Pereira e Martinho da Vila, provavelmente no Jogral, na década de 1970

É o caso do lendário primeiro LP de Cartola, então com 65 anos e desacre ditado, também de 1974. O produtor João Carlos Botezelli, conhecido como Pelão[3], foi o incumbido de registrar os sambas do fundador da Estação Primeira de Mangueira. Com menos de um ano de experiência, ele já havia produzido os primeiros álbuns de Nelson Cava quinho e Adoniran Barbosa, ambos pela Odeon, e cumpriu a missão com maestria. Mas os 28 minutos históri cos para a música brasileira quase não viram a luz do dia, é famosa a anedota de que Marcus Pereira implicou com o som do disco pois, segundo ele, havia um cachorro latindo nas gravações. Esse cachorro era a cuíca de Mestre Marçal, o que demonstra certa ignorância ines perada por parte do dono da gravadora. Cartola ainda lançaria mais um disco pela Marcus Pereira, mas o maior sucesso comercial desta acredita-se ter sido o LP duplo Arthur Moreira Lima interpreta Ernesto Nazareth. A empresa parecia alcançar um público fiel, com algum poder aquisitivo, interessado na música popular brasileira. Mas a pouca experiência de Marcus no ramo fonográ fico, e mesmo a sua ousadia, acabaram por criar mais dívidas do que lucro. Sem possuir estúdios de gravação, fábrica própria de prensagem ou bons contra tos de distribuição, a Marcus Pereira estava em clara desvantagem em rela ção às multinacionais que começavam a se consolidar no Brasil. Essas e outras

empresas com grande poder financeiro, como a Som Livre (criada pelo grupo Globo para vender trilhas de novela, com espaço publicitário gratuito, uma fórmula perfeita de sucesso) se benefi ciavam de uma lei de 1967 que possibi litava o abatimento do ICM (Imposto de Circulação de Mercadorias) dos direitos pagos a artistas domiciliados no país. Os produtos que se enquadra vam nessa lei recebiam o famoso selo “disco é cultura”. Segundo Magossi, “isso permitiu que essas gravadoras construíssem um catálogo lucrativo de música brasileira no país, o que conso lidou a carreira da maioria dos artis tas de MPB durante a década de 1970, que não possuíam grande vendagem.” O empresário via nisso uma competição injusta, o que fez questão de deixar claro em entrevistas e artigos na imprensa.

Mas o maior inimigo de Marcus Pereira talvez fosse ele próprio. Apesar de ter conseguido parcerias interessantes com fundações culturais e governos estaduais — como a Fundação Cultural do Estado da Bahia, que possibilitou o lançamento de Interregno, LP de Walter Smetak, em 1980 —, os investimentos na produ ção, fabricação e divulgação dos discos ultrapassavam o ganho com vendas. Conforme as dívidas aumentavam, Marcus foi obrigado a declarar falên cia. A Copacabana absorveu o seu catá logo, que permaneceu inexplorado por toda a década de 1980. Marcus Pereira

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suicidou-se em 1981. A empresa ainda duraria alguns meses na mão da sua viúva — Carolina Andrade, que trabalhou no Mapa Musical do Brasil — mas foi o fim de um belo e importante traba lho de resgate cultural, extremamente idealista, que não pôde ser concluído. Com sua morte, Marcus Pereira deixou de realizar projetos que havia divul gado em livros e na imprensa, como a produção de um Mapa Musical da América Latina, a criação do Balé Popu lar do Brasil e da Embradisco, um orga nismo estatal que seguiria os moldes da Embrafilme, para distribuir a produ ção musical de pequenas gravadoras. Nos anos 1990, foi a vez da Copaca bana ir à falência e ser vendida para a distribuidora paranaense ABW. Em seguida, a ABW foi vendida para EMI (hoje, Universal), atual proprietária do catálogo. A EMI chegou a licen ciar direitos para a pequena Microser vice, que realizou alguns relançamentos remasterizados de títulos da Marcus Pereira, mas, hoje, a maior parte desse acervo continua no limbo.[4]

É possível pensar na trajetória de resgate da cultura popular realizada pela Discos Marcus Pereira como um certo com plexo do “homem branco salvador”, e de fato grande parte dos seus títulos nessa área trouxe uma visão paternalista ou apropriadora, tendo de reinterpretar e explicar essas manifestações. Em vez de guardá-las puras, tentou-se tor-

ná-las mais palatáveis para um público sudestino urbano e elitista. Mas isso não diminui a importância do seu acervo e dos registros realmente históricos que a gravadora foi capaz de realizar, como o Mapa Musical do Brasil, ou a História das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Talvez tenha faltado, como José Magossi sugere, que esse salvamento da cultura, ameaçada pelo avanço do capitalismo, passasse por ações diretas para pre servar a prática das próprias tradições que estariam desaparecendo. Mas seria esse o papel de uma gravadora? Um livrorreportagem de André Picolotto sobre a Marcus Pereira Discos dá uma ideia da importância deste acervo:

Em menos de dez anos, a Discos Marcus Pereira (1973 -1981) editou cerca de 140 discos, dos mais variados estilos. Lançou os primeiros LPs de Cartola, Donga, Paulo Vanzolini, Quinteto Armorial, Canhoto da Paraíba. E documentou, de forma pioneira no mercado fonográfico do país, manifestações folclóricas e populares de todas as regiões do Brasil. Do ponto de vista financeiro, a empreitada pode ser vista como um fracasso. Seu valor artístico e histórico, ao contrário, é um monumento (...) ao povo brasileiro.

Trata-se de questão de preservar a memória (de um selo, cena, tradição, povo?), algo que bem anda em desvoga por aqui, com o descaso de instituições e políticas a esse respeito. Onde tentam, mesmo, reescrever a história, deixando

NOTAS

, ao final

queimar museus e cinematecas. Seria impossível contar a completa e com plexa história da Discos Marcus Pereira, e de todas as pessoas envolvidas, em tão pouco espaço. Por isso, recomendase procurar as obras citadas ao final deste texto, que podem ser encontra das na internet — o mesmo lugar onde tamanha discografia parece continuar, ainda, viva. Isso, provavelmente, Mar cus Pereira jamais poderia imaginar.

gravados em campo, chegando, inclusive, a incluir faixas da Missão de Pesquisas de Mário de Andrade, gravadas 40 anos antes.

[3] A Rádio Batuta tem um programa inteiro de 2018 dedicado ao produtor musical Pelão, com participação do próprio: radiobatuta. com.br/especiais/pelao-heroi-brasileiro/

[4] Ainda segundo Magossi, “o fato do acervo da Discos Marcus Pereira estar armazenado em um contêiner no subúrbio carioca de Cordovil pela EMI revela pouco interesse em conhecer o conteúdo dos 144 discos da gravadora”. Felizmente, é possível encontrar vários deles no youtube.

[1] Mário de Andrade já havia viajado nos anos 1920 à Amazônia e ao Nordeste, onde coletou manualmente melodias e canções populares. Em 1938, chefe do Departamento de Cultura de São Paulo, enviou equipe às mesmas regiões para registrar danças e cantos que julgava ameaçados de extinção, dessa vez empregando o poder do registro fonográfico para melhor captar as nuances dessas manifestações. Mas, segundo Magossi, “enquanto Mário de Andrade coletou material fonográfico tendo em vista a pesquisa e a educação musical de compositores, para que tivessem acesso aos elementos formativos da música brasileira, o objetivo do registro de Marcus Pereira foi formatar um produto que introduzisse esta cultura brasileira nas casas de um novo consumidor urbano.”

[2] Curiosamente, conforme foi operando com menor e menor orçamento, os últimos volumes da coleção trazem muito mais registros

BIBLIOGRAFIA

MAGOSSI, José Eduardo Gonçalves. O folclore na indústria fonográfica: a trajetória da Discos Marcus Pereira. Dissertação (Mestrado em Meios e Processos Audiovisuais). São Paulo: USP, 2013.

PEREIRA, Marcus. Música: Está chegando a vez do povo. 1. A história do Jogral. São Paulo: Hucitec, 1976.

PICOLOTTO, André Guilherme Passos. Discos Marcus Pereira: uma história musical do Brasil. TCC (Centro de Comunicação e Expressão — Departamento de Jornalismo). Santa Catarina: UFSC, 2016. 193
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MAIS DICAS

filmes

O curta John Was Trying to Contact Aliens (2020), de apenas 16 minutos de duração, pode ter passado batido por muita gente no catálogo da Netflix. Mas se você foi uma dessas pessoas, faça-se um favor e assista à fascinante história de John She pherd, um norte-americano comum que passou os últimos 30 anos transmitindo um programa de rádio para o espaço. Sua esperança, obviamente, era de conseguir fazer contato com seres de outros planetas, mas ele não deixou que a inevitável falta de resposta dos ouvintes atrapalhasse a missão do projeto STRAT (Special Tele metry Research And Tracking). Muito lúcido e consciente do inevitável estigma de louco, John mostra parte do equipa mento que ainda resiste em um depósito e compartilha suas motivações inspira doras. Tentando alcançar uma audiên cia interplanetária, ele priorizava música instrumental, sem restrição de gênero ou nacionalidade. O solitário DJ passava lon gas madrugadas tocando reggae, afrobeat, krautrock, eletrônica, jazz e o que mais desse na telha, para quem quisesse ouvir.

ASSISTA netflix.com/title/81252991 youtu.be/Jr83bJsT6OA (trailer)

Outro títulos no serviço de streaming que valem a sessão: I Called Him Morgan (2016) conta a história do trompetista Lee Morgan, que teve uma carreira tão curta quanto brilhante tocando ao lado de len das do jazz como Art Blakey. Morgan foi morto em um crime passional aos 33 anos pela própria esposa, cujo depoimento guia o filme. Recomendado para quem implica com Yoko Ono, o documentário John e Yoko — Só o Céu Como Testemunha (2018)

demonstra a importante influência que a artista teve sobre Lennon, focando no período de criação do álbum Imagine. Para ficar no rock, assista à história do baiano Raul Seixas em Raul — O Início, o Fim e o Meio (2012), mas se a Bahia te lembra outra coisa, Axé — Canto do Povo de Um Lugar (2016) pode ser uma boa pedida. Dos mais recentes, é preciso procurar em outros lugares por Dom Salvador & Abolition (2020), vencedor do festival In-Edit deste

ano, sobre o pianista e arranjador brasileiro que vive há anos nos EUA; e Garoto — Vivo Sonhando (2019), sobre o virtuoso das cordas Aníbal Augusto Sardinha, nome fun damental do choro e precursor da bossa nova, contado a partir de seus diários.

na foto acima, John Shepherd bota um som na casa de seus avós, em Michigan, nos anos 1970

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joão brandão adere ao “punk"?

Carlos Drummond de Andrade, em crônica publicada no Jornal do Brasil, no dia 14 de abril de 1983.

João Brandão, estudioso de fenômenos sociais, modismos e frivo lidades, dedica-se no momento à pesquisa do punk.

— Ainda não cheguei a nenhuma conclusão — disse-me ele — mas suspeito que o punk veio atender às necessidades do País nesta conjuntura.

E acrescentou:

— Não me refiro, é claro, à modalidade do punk cultivada pelas classes alta e média da Zona Sul. Este é um punk de espírito e camiseta importa dos, jaqueta de couro valendo um punhado de dólares. É artigo de importação, que deve figurar na lista dos produtos proibidos pelo Delfim. Refiro-me ao outro, o de camiseta adquirida na Rua Senhor dos Passos e rasgada. O moço não a rasgou para demonstrar maior identificação com o punk; ela está rasgada porque é velha e muito batida. Em suma, o punk pobre.

— Que diferença faz, se esta é uma característica exterior? — perguntei-lhe.

— Faz muita diferença, porque o punk dos pobres, suburbano e sofrido, revela, no seu despojamento, que para ser punk é necessá rio enfrentar uma barra e abrir mão de toda a sociedade de consumo. Ao passo que o Leblon é consumista, no esquema clássico.

— O João, e todos dois não estão inseridos nessa tal sociedade burguesa de consumo, que se diverte com seus palhaços, contestadores ou oficialistas?

XEROCÃO
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— Não importa que a sociedade como estamento seria dos dois grupos e os tolere igualmente, enquanto a indústria fabrica objetos sofisticados para o uso do punk de salão. Importa é a atitude deles diante da vida. Um finge contestar, outro contesta mesmo.

— Contesta em verso, em som, em gesticulação, em aparência.

— Mas contesta (eu acho) com convicção, né? Porque os punks malditos sabem que, passada a moda, eles terão de inventar outra forma de lazer que seja protesto, ou outra forma de protesto que seja lazer, ao passo que os ricos não estão ligando para isso, o futuro deles está garantido, na medida em que pode garantir alguma coisa no mercado de vida. Então eu simpatizo com o punk despojado, mau poeta e mau cantor, mas empolgado pela missão que se atribuiu, de destruir a ordem conser vadora por meio da música, do grito, do gesto e do anarquismo primário.

— Eles são inocentes, talvez.

— E daí? A inocência ainda não

chegou a ser crime, embora não esteja muito longe disso. Os punks trazem uma receita de aparência ingênua, mas que tem sentido. Se tudo está errado por aí — e todos nós estamos mais ou menos convencidos disso — uma postura punk, descrente dos métodos e processos consagrados para nos salvar do abismo, tem razão de ser. Os garotos dizem as coisas com franqueza selvagem. A arte deles não é mozartiana ou sequer seresteira de Diamantina, mas tem função, explica-se pela circunstância.

— Desculpe: são todos uns alienados.

— É possível, mas os alienados do lado de cá, do meu, do seu lado, curtem uma alienação maior ainda, porque reconhecem o erro e nele perseve ram, como se não o reconhecessem. O punk pode não ser novidade, e parece que depois do Antigo Testamento não apareceu nada de novo sob o sol. Mas ele dá um recado. Não é à toa que o punk de verdade tem seus arraiais em São Paulo, onde outro dia aconteceu aquilo que você sabe. A maioria dos

rapazes nem mesmo está desempre gada, porque ainda não conseguiu emprego. Vestem-se de preto porque a situação deles está preta, a roupa é rasgada porque não há outra. Os versos são detestáveis, porque a vida ficou detestável para o maior número. O som é infernal, porque o inferno está aí. Os punks não pretendem ser simpáticos, eles querem mesmo é gozar da antipatia geral. Estão divididos, eu sei, e não só entre ricos e pobres. Dividem-se entre pobres e pobres, cada grupo achando que o outro grupo está errado, mas na própria variedade dos erros está a marca geral deles, um sinal de incon formismo até consigo mesmos. Não há praticamente duas pessoas no país, neste momento, que tenham opiniões concordantes sobre o que é preciso fazer para consertar o torto social. Todos acham que é urgente aquele milagre que não seja milagre falso, mas ninguém conhece a fórmula ou, se conhece, não conta. O punk é mais sério do que ousa mos imaginar. Até seu nome impres-

siona. Que quer dizer punk? Madeira podre, isca, mecha, fedelho, segundo os dicionários. Não quer dizer nada de unívoco. Pra mim, punk, londrino, quer dizer pum, em português coloquial. E é isso mesmo: um gás importuno, estrondoso, no salão de festa, na rua, no gabinete da autoridade. É um som altamente contestatório das conveniências, preconceitos e ideias congeladas.

— João, estou te estranhando.

— Eu também estou me estranhando. E estou gostando de me estranhar. Mas sou apenas um observador, desculpe. Como disse, não concluí nada, por enquanto. O que disse são palpi tes. Talvez eu tenha de descobrir uma velha camiseta rasgada, pregar nela uma estampa de caveira ou de enfor cado, e sair por aí, passando para trás roqueiros e newaveiros, e cantando a anarquia como forma de pagamento da dívida externa. Quem sabe? O bom observador tem de infiltrar-se no meio observado e adotar os seus códigos.

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