Pardela 62

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As aves em revista

REVISTA DA SOCIEDADE PORTUGUESA PARA O ESTUDO DAS AVES NÚMERO 62 | PRIMAVERA/VERÃO 2021 | SEMESTRAL | GRATUITA

DIRETORA:

Joana Domingues | FOTO DE CAPA: © siaram.azores.gov.pt

Ave do ano PAINHO-DE-MONTEIRO: UM “EXCLUSIVO” DOS AÇORES P.12

Migrações OS MISTÉRIOS DA MIGRAÇÃO DAS AVES P.21

Felicidade DESCUBRA COMO AS AVES O PODEM FAZER MAIS FELIZ P.27


No seu dê voz à Natureza

NÃO CUSTA NADA

A si não lhe custa nada. Para a natureza portuguesa é uma ajuda preciosa. ATRIBUA GRATUITAMENTE 0,5% DO SEU IRS À SPEA

503 091 707 NIF SPEA

www.spea.pt


ÍNDICE 04

16

ARMADILHAS

A um passo da proibição?

Editorial Memória a longo prazo

05

Breves

08

Descobertas Novidades do mundo da ciência

Navarra Um pequeno grande mundo

12

Ave do ano 2021

© Luís Ferreira

10

Painho-de-monteiro: um “exclusivo” dos Açores

BIOLOGIA

Mistérios da migração

14

Ciência cidadã

21

Contribua para a ciência em 3 passos

16

Armadilhas A um passo da proibição?

17

LIFE Rupis

Biologia Mistérios da migração

27

Birdwatching

© Jaime Sousa

21

© Ana Luísa Quaresma

Cinco anos a proteger britangos e águias-perdigueiras no Douro Internacional

SPEA RESPONDE

Ovos na praia: O que fazer

36

Mais aves trazem mais felicidade, segundo a ciência

30

História(s) com aves Sobre as aves nacionais

32

Roteiro nacional Cascais além da beira-mar

Identificação de aves Tordos - robustos, mas melodiosos

36

A SPEA responde

37

Juvenis

© Cascais Ambiente

35

ROTEIRO NACIONAL

Cascais além da beira-mar

32 n.º 62 pardela | 3


EDITORIAL

Memória a longo prazo Long-term memory Graça Lima Presidente da Direção Nacional da SPEA

“Um dos castigos de uma educação ecológica é o de se viver sozinho num mundo de feridas”, é uma frase célebre de Aldo Leopold, eminente teórico da conservação de comunidades biológicas, que marcou uma geração que trilhava os primeiros passos na conservação de habitats nos anos 70 do século passado.

FICHA TÉCNICA

PARDELA N.º 62 | PRIMAVERA/VERÃO 2021 DIRETORA: Joana Domingues | joana.domingues@spea.pt COMISSÃO EDITORIAL: Joana Domingues, Mónica Costa, Rui Machado, Sonia Neves, Vanessa Oliveira PARTICIPAÇÃO REGULAR: Helder Costa FOTOGRAFIA DE CAPA: Painho-de-monteiro Hydrobates monteiroi © siaram.azores.gov.pt ILUSTRAÇÕES: Frederico Arruda, Juan Varela e Mike Langman (rspb-images.com) PAGINAÇÃO E GRAFISMO: Frederico Arruda IMPRESSÃO: Printipo – Global Printing Alto da Bela Vista, Est. Paço de Arcos, n.º 77, Pav. 20 2735-308 Cacém TIRAGEM: 1400 exemplares e digital

As feridas intensificaram-se desde o tempo em que esta frase foi escrita mas, agora, estamos menos sós do que estávamos. Sabemos também mais sobre o que nos poderá ajudar a travar o desaparecimento de algumas espécies.

PERIODICIDADE: Semestral

A descodificação do mapa mental das aves e de como memorizam trajectos e contornos geográficos durante as suas longas viagens migratórias, o estudo dos ritmos circadianos e a monitorização de genes responsáveis pelos sistemas de direção e distância, têm sido ultimamente um campo fértil de investigação e de partilha de conhecimento.

ESTATUTO EDITORIAL: Disponível em www.spea.pt/pt/publicacoes/pardela

Porém, perante alterações de habitat e clima, a alegria que sentimos à sua chegada é um sinal que a nossa memória, também ela, não esqueceu o eterno retorno das alegrias simples na vida.

‘One of the punishments of an ecological education is that of living alone in a world of wounds’ was a famous statement by Aldo Leopold, an eminent theoretician of the conservation of biological communities, who marked a generation which was taking the first steps in habitat conservation in the 1970s. The wounds have intensified since Leopold coined this phrase, but we are now less alone than we were. We also know more about how we might prevent some species from disappearing. The decoding of how birds map and memorise paths and geographic contours during their long journeys, the study of circadian rhythms and the monitoring of genes responsible for their direction- and distance-gaging systems have recently been a fertile field of research and knowledge. Despite changes to habitats and climate, the joy we feel at migratory birds’ arrival is a sign that our memory, too, has not forgotten the eternal return of life’s simple pleasures.

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ISSN: 0873-1124 DEPÓSITO LEGAL: 189 332/02 REGISTO DE PUBLICAÇÃO PERIÓDICA: n.º 127 000

Os artigos assinados exprimem a opinião dos seus autores e não necessariamente a da SPEA. A fotografia de aves, nomeadamente em locais de reprodução, comporta algum risco de perturbação das mesmas, tendo os autores das fotos utilizadas nesta publicação tomado as precauções necessárias para a minimizar. A SPEA agradece a todos os que gentilmente colaboraram com textos, fotografias e ilustrações. PROPRIEDADE / EDITOR / REDAÇÃO: Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). Pessoa coletiva n.º 503091707. Instituição de Utilidade Pública. CONTACTOS: Av. Columbano Bordalo Pinheiro, 87, 3.º Andar, 1070-062 Lisboa Tel. +351 213 220 430 | Fax. +351 213 220 439 spea@spea.pt | www.spea.pt

DIREÇÃO NACIONAL Presidente: Graça Lima Vice-presidente: Paulo Travassos Tesoureiro: Peter Penning Vogais: Alexandre Leitão e Martim Melo A SPEA é uma organização não governamental de ambiente, sem fins lucrativos, que tem como missão o estudo e a conservação das aves e dos seus habitats em Portugal, promovendo um desenvolvimento que garanta a viabilidade do património natural para usufruto das gerações vindouras. Faz parte da BirdLife International, organização internacional que atua em mais de 100 países. É instituição de utilidade pública e depende do apoio dos sócios e de diversas entidades para concretizar a sua missão.

Esta publicação foi impressa em papel reciclado Lenza Top com certificação FSC, a marca da gestão florestal responsável.

Esta edição contou com o apoio publicitário de: Opticron


BREVES

Atentado ao património natural da Madeira

AGENDA EM DESTAQUE VISITAS DE ESTUDO ORNITOLÓGICAS SPEA 2021 Aves e libélulas na Lagoa Pequena e no paul da Barroca d’Alva 3 de julho

Açores - São Miguel e Terceira 30 de agosto a 4 de setembro

Estreito de Gibraltar e La Janda Setembro (dias a confirmar)

Navarra Novembro (dias a confirmar)

PALESTRAS ONLINE 2021 © Cátia Gouveia

O Governo Regional da Madeira e o Município de São Vicente pretendem pavimentar um caminho florestal em plena Laurissilva (na zona das Ginjas), num claro atentado ao património natural da Madeira. Na consulta pública, demos parecer negativo ao Estudo de Impacte Ambiental do projeto, feito unicamente com o propósito de validar o projeto. Esta é uma posição partilhada por 8 outras Organizações

Não-Governamentais de Ambiente. O caminho em causa atravessa uma mancha de Laurissilva bem preservada: um património natural único, protegido por leis e convenções internacionais, e classificado como Rede Natura 2000, Património Mundial Natural da UNESCO e Parque Natural da Madeira. Se o projeto não for travado, ponderamos apresentar queixa na Comissão Europeia e na UNESCO.

Introdução às libélulas e libelinhas do sul de Portugal 2 de julho

Plantas insetívoras, parasitas e heterotróficas de Portugal 16 de julho

EVENTOS E ATIVIDADES 2021 12º Festival de Observação de Aves & Atividades de Natureza Sagres | 1 a 5 de outubro

EuroBirdwatch Todo o país | 2 e 3 de outubro NOTA: Devido à pandemia por Covid-19, a nossa agenda poderá sofrer alterações. Para ir acompanhando a situação, consulte www.spea.pt.

Calhandras-do-raso superam expetativas

MAIS ATIVIDADES EM

Na visita à ilha de Santa Luzia (Cabo Verde) em março, o número de calhandras-do-raso superou largamente as nossas expetativas. Durante os 10 dias em que a nossa equipa esteve a monitorizar a população destas aves, encontrámos pelo menos 50 calhandras e 9 ninhos, com um total de 10 crias e 4 ovos. Também encorajador foi o facto de não termos encontrado nenhum sinal de gatos assilvestrados, um predador invasor que poderia ser uma grave ameaça às calhandras-do-raso.

www.spea.pt/agenda

CENSOS DE AVES 2021 Conte as gaivotas da sua cidade Todo o país | até 31 de julho

III Atlas das Aves Nidificantes Todo o país | até 31 de julho

Venha ajudar-nos a contar periquitos Todo o país | 15 de outubro a 15 de novembro

© Joana Bores

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BREVES

Já jogou Tern Bubble?

Pesca mais segura

Ajude a chilreta e a gaivota-de-audouin a fazer o ninho e cuidar das suas crias, no nosso divertido jogo de telemóvel Tern Bubble! Descarregue já na Google Play Store ou na App Store este jogo produzido no nosso projeto LIFE Ilhas Barreira.

© Elisabete Silva

Estimular a ciência cidadã Iniciámos em abril um projeto de ciência cidadã para estimular a participação dos cidadãos em iniciativas relacionadas com a monitorização da biodiversidade. Até 2023, pretendemos aumentar o número de voluntários nos programas de censos e monitorização de aves que desenvolvemos, melhorando as medidas e processos de acompanhamento e de reconhecimento do impacto da sua participação. Este nosso projeto é financiado pelo Programa Cidadãos Ativos/ Active Citizens Fund (EEAGrants), um fundo constituído por recursos públicos da Islândia, Liechtenstein e Noruega e gerido em Portugal pela Fundação Calouste Gulbenkian em consórcio com a Fundação Bissaya Barreto. 6 | pardela n.º 62

O projeto MedAves Pesca chegou ao fim em abril, após 2 anos e meio a trabalhar de perto com os pescadores de Peniche. O projeto demonstrou que o uso de um “papagaio afugentador” (uma espécie de papagaio de papel em forma de ave de rapina) evita que alcatrazes, gaivotas e pardelas se aproximem das embarcações, reduzindo assim a probabilidade de ficarem presas nas redes de emalhar. Este dispositivo parece também ter efeitos positivos na pesca de palangre, embora sejam necessários mais estudos para o comprovar cientificamente.

Um importante legado deste projeto é o envolvimento dos pescadores, que estão satisfeitos com este papagaio afugentador, uma vez que lhes poupa tempo e dinheiro, é fácil de usar e não afeta as suas capturas de pescado. Para ampliar este impacto do projeto, instalámos, nas duas associações de pesca da região, quiosques interativos onde os pescadores podem descobrir medidas para uma pesca mais sustentável. SAIBA MAIS EM

www.medavespesca.pt

Novidade: aves para construir Simples folhas de papel podem transformar-se em andorinhas, águias, mochos, flamingos e muito mais: é só cortar, dobrar, colar e brincar! Os novos brinquedos 3D para construir, em papel 100% reciclado de alta qualidade, já estão à venda na loja SPEA. SAIBA MAIS EM

bit.ly/SPEAloja

© Pukaca


BREVES

Proteger as águias da Grande Lisboa

Diclofenac: primeiro abutre morto na Península Ibérica

© Rafael Vila

Estamos a começar um novo projeto em que pretendemos juntar comunidades locais, autoridades e especialistas para proteger as águias-perdigueiras (ou águias-de-bonelli) que, na Área Metropolitana de Lisboa, vivem extraordinariamente perto das pessoas. No âmbito deste projeto, iremos criar uma rede de custódia composta por proprietários de terrenos privados e entidades públicas, que serão guar-

diões dos valores naturais da região, e em particular das águias-de-bonelli. Chamado LIFE LxAquila, o projeto visa também demonstrar que é possível compatibilizar a conservação de predadores com as atividades humanas. Cofinanciado pelo programa LIFE da União Europeia, o projeto, que coordenamos, junta 13 parceiros, incluindo 6 Câmaras Municipais da região. SAIBA MAIS EM

sosaguias.spea.pt

Sado com novas caixas-ninho

Em abril, foi confirmada a primeira morte de um abutre na Europa por causa do diclofenac veterinário. A morte deste abutre-preto em Espanha demonstra que o uso deste anti-inflamatório para fins veterinários é uma ameaça séria às aves selvagens. Um alerta que temos vindo a fazer há alguns anos, e que reiterámos mais uma vez perante a Direção-Geral de Alimentação e Veterinária e o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas: é fundamental manter toda a Península Ibérica livre desta substância para a qual existem alternativas seguras.

Conte as gaivotas da sua cidade Há um casal de gaivotas-de-patas-amarelas a nidificar no terraço do seu prédio? Observou um ninho de gaivotas enquanto passeava? Envie-nos as suas observações de gaivotas a nidificar em áreas urbanas. SAIBA MAIS EM

bit.ly/GaivotasUrbanas As aves do Estuário do Sado têm agora mais sítios para fazer o ninho: no início do ano, instalámos quase 50 caixas-ninho para diferentes espécies, na Herdade da Mourisca e na Península da Mitrena, numa colaboração com o Município de Setúbal. Acompanhar estas caixas-ninho, que já começaram a ser ocupadas por chapins-azuis e chapins-reais, vai permitir-nos conhecer melhor as aves que escolheram viver na região.

© Município de Setúbal

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DESCOBERTAS

CIÊNCIA

© Ana Marcos Morais

© Imran Shah

© Joana Andrade

Aves e pescas

Calado JG, Veríssimo SN et al. 2021 Mar Ecol Prog Ser 661: 187-201. DOI: 10.3354/ meps13601

pela Escola Superior de Tecnologias do Mar (ESTM) em Peniche, em colaboração com os nossos técnicos Isabel Fagundes e Nuno Oliveira verificou que a população desta planta está agora mais saudável, embora seja necessário continuar os esforços de conservação, particularmente no que toca ao controlo de espécies invasoras.

A galheta (ou corvo-marinho-de-crista, Gulosus aristotelis) alimenta-se de várias espécies de peixe procuradas pela pesca comercial, pelo que a competição por alimento pode ser uma ameaça adicional à espécie, segundo um estudo realizado pelo nosso técnico Nuno Oliveira e pela nossa voluntária Tânia Nascimento, em colaboração com a Universidade de Aveiro. Os investigadores realçam ainda o perigo acrescido de as galhetas serem capturadas acidentalmente nas pescas. Por outro lado, um outro estudo, também com colaboração de Nuno Oliveira, indicia que a ecologia alimentar da gaivota-de-patas-amarelas (Larus michahellis) e da gaivota-de-audouin (Larus audouinii) está ligada às rejeições das pescas. Nascimento T et al. 2021. Ardea 109: 7790. DOI: 10.5253/arde.v109i1.a9

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Torcicolos: onde ocorrem Os fatores mais importantes para prever a ocorrência de torcicolos (Jynx torquilla) na Península Ibérica são a temperatura, a precipitação e a altitude. É o que diz um estudo publicado recentemente na nossa revista científica Airo. Pinilla J 2021. Airo 28: 3-12. www.airo-spea.com

Mais um caso de sucesso A arméria-das-berlengas (Armeria berlengensis), uma pequena planta que apenas existe no arquipélago que lhe dá o nome, está a recuperar graças ao trabalho do nosso projeto LIFE Berlengas. Um estudo publicado

Mouga T et al. 2021. Plants 10(3), 498. DOI: 10.3390/plants10030498

Ave rara não sabe cantar A ave australiana “Regent Honeyeater” (Anthochaera phrygia, conhecida no Brasil por melífago-regente) é tão rara que os juvenis não conseguem aprender o canto da espécie. Nesta espécie, o macho canta para atrair uma fêmea. Mas com os poucos machos que restam espalhados por um vasto território, muitos


DESCOBERTAS

CIÊNCIA

E ainda... Albatrozes e pardelas requerem gestão sustentável das águas internacionais Beal M et al. 2021. Science Advances 7 (10): eabd7225. DOI: 10.1126/sciadv.abd7225

Primeiro registo de bufo-pequeno (Asio otus) na ilha do Porto Santo Gheorghiu AR et al. 2021. Airo 28: 13-19.

© David Cook

juvenis não conseguem aprender o canto da espécie: 12% dos cerca de 150 machos presentes no habitat natural já cantam como outras espécies. Estes machos que cantam a canção errada parecem ter menos sucesso em atrair fêmeas e reproduzir-se, pelo que os investigadores temem que a espécie possa estar à beira da extinção.

© Josh More

na Irlanda, a disponibilidade de comedouros tem-lhes permitido passar o inverno na região e manterem-se em melhor forma física do que as que migram para sul. Buechley ER, Oppel S, Efrat R et al. 2021. Journal of Animal Ecology. DOI: 10.1111/1365-2656.13449 Van Doren BM et al. 2021. Global Change Biology. DOI: 10.1111/gcb.15597

Impacto da pandemia no registo de observações no eBird Hochachka WM et al. 2021. Biological Conservation 254: 108974. DOI: 10.1016/j. biocon.2021.108974

Reação em cadeia causa mortes em massa de águias nos EUA Breinlinger S, Phillips TJ et al. 2021. Science 371 (6536): eaax9050. DOI: 10.1126/ science.aax9050

Crates R et al., 2021. Proc. R. Soc. B. 288: 20210225. DOI: 10.1098/rspb.2021.0225

Sobreviver ao inverno Para os britangos (ou abutres-do-egito, Neophron percnopterus), os custos da migração podem ser recompensados pela maior sobrevivência nos territórios de invernada, segundo um estudo com base em dados do nosso projeto LIFE Rupis. Já para as toutinegras-de-barrete (Sylvia atricapilla) no Reino Unido e

Espécie redescoberta após 170 anos Akbar PJ et al. 2020. Birding ASIA 34: 13-14. www.orientalbirdclub.org/ birdingasia-34

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NAVARRA

Um pequeno grande mundo Variedade é a palavra de ordem em Navarra: um magnífico destino outonal recheado de surpresas.

A paisagem desértica de Bardenas Reales já vale a visita Eduardo Martinez

D

as montanhas às planícies, das estepes às zonas húmidas, passando por escarpas e bosques, Navarra é todo um mundo. Naturalmente, esta diversidade de paisagens alberga uma impressionante variedade de aves: mais de 300 espécies já foram registadas nesta que é uma das mais pequenas comunidades autónomas de Espanha. Nesta panóplia de paisagens, uma curta viagem pode trazer oportunidades de observar todos os grupos de aves terrestres da Europa. No outono, esta é uma região especialmente interessante para observar aves migradoras: vindas do norte, depois de atra-

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vessarem os Pirenéus encontram nos campos e zonas húmidas de Navarra um abrigo acolhedor para repousar.

A não perder: Floresta de Irati Se for a Navarra no outono, não pode deixar de visitar a Floresta de Irati: um dos mais famosos bosques de Espanha, que nesta estação atinge o expoente máximo do seu esplendor. As faias vestem-se de ouro, pontilhadas com as silhuetas verde-escuras dos abetos mais ocidentais da Europa, num paraíso para as aves florestais. Entre as mais procuradas destacam-se os pica-paus, como o pica-pau-preto

(Dryocopus martius), o pica-pau-de-dorso-branco (Dendrocopos leucotos) e o pica-pau-médio (Dendrocopos medius). Por entre estes bosques encantados surgem ainda belos prados de montanha, alguns acima dos 2000 m de altitude.

Parque Natural das Bardenas Reales A paisagem desértica do Parque Natural das Bardenas Reales, com os seus desníveis moderados pontuados por cabeços abruptos e barrancos encaixados, merece, por si só, uma visita. Mas a oportunidade de ver espécies como a ganga (Pterocles alchata), a


águia-real (Aquila chrysaetos) ou, com alguma sorte, o chasco-preto (Oenanthe leucura), aumentam ainda mais o interesse desta zona classificada como Reserva da Biosfera pela UNESCO.

Estas e outras espécies, tanto residentes como migradoras, encontram nesta zona protegida um importante refúgio.

Lagoa de Pitillas

Reservas Naturais de Foces de Arbaiun e de Lumbier

Situada no seio de uma estepe, entre as localidades de Pitillas e Santacara, a Lagoa de Pitillas surge como um oásis onde abundam as aves aquáticas invernantes, entre as quais se destacam o abetouro (Botaurus stellaris) e o chapim-de-bigodes (Panurus biarmicus).

Já a cheirar a Pirenéus, as impressionantes escarpas rochosas das Reservas Naturais de Foces de Arbaiun e de Lumbier, escavadas ao longo dos tempos pelos rios Salazar e Irati, são bons locais para observar aves como o grifo (Gyps fulvus), a trepadeira-dos-

-muros (Trichodroma muraria) e até o quebra-ossos (Gypaetus barbatus). Entre paisagens arrebatadoras e aves emblemáticas, Navarra é o destino ideal para uma escapadela de outono.

Visita SPEA a Navarra Novembro (dias a confirmar) www.spea.pt/agenda

Autoras | Sonia Neves e Lara Broom SPEA

Chapim-de-bigodes Radovan Vaclav

Quebra-ossos Derek Keats

Pica-pau-de-dorso-branco Derek Keats

Pica-pau-preto Kva Pharm

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AVE DO ANO 2021

Painho-de-monteiro: um “exclusivo” dos Açores O painho-de-monteiro (Hydrobates monteiroi), uma pequena mas intrépida ave que apenas nidifica no arquipélago dos Açores, foi eleito Ave do Ano 2021, na votação que promovemos online. Ao longo deste ano estamos a celebrar esta espécie e a alertar para os perigos que correm as aves marinhas (o grupo de aves mais ameaçado do mundo) e, em particular, as aves que dependem de ilhas.

Painho-de-monteiro Siaram.azores.gov.pt

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“Esta pequena ave tem uma resiliência impressionante: chega a viver mais de 20 anos, a maior parte do tempo no mar. Estamos a falar de uma avezinha de 50 g que resiste às tempestades que assolam o Atlântico, ano após ano” diz Azucena de la Cruz Martín, coordenadora da SPEA Açores. Esta espécie apenas existe nos Açores, e só nidifica nalguns pequenos ilhéus junto às ilhas da Graciosa, das Flores e possivelmente do Corvo. Por isso, está muito vulnerável a qualquer ameaça que surja nestas colónias, como os ratos e outros predadores que não ocorrem naturalmente nestes ilhéus e podem chegar “à boleia” das atividades humanas. Entre estes predadores exóticos que podem pôr a espécie em perigo encontra-se também a lagartixa-da-madeira, que tem sido observada a alimentar-se de crias de painho-de-monteiro. Para ajudar a proteger esta espécie, em 2018 lançámos o Plano de Ação Internacional para a Conservação do painho-de-monteiro. Este documento, que define as prioridades de conservação para a espécie, foi desenvolvido com o apoio de vários parceiros a nível nacional e internacional. Estas ações prioritárias, que incluem a recuperação de habitat, a implementação de planos de biossegurança, a avaliação do impacto de predadores introduzidos e a monitorização do estado das populações da espécie, estão a ser implementadas na Graciosa através do Projeto LIFE IP Azores Natura, do qual a SPEA é parceira. O nome desta espécie é uma homenagem ao biólogo Luís Monteiro, que nos anos 90 demonstrou que deveria ser considerada uma espécie distinta, e não uma variante do roque-de-castro (ou painho-da-madeira Hydrobates castro). A mais pequena ave marinha dos Açores, o painho-de-monteiro é de facto muito parecido com o roque-de-castro: é todo preto à exceção da mancha branca na base da cauda. Tem a cauda ligeiramente mais bifurcada, mas só os observa-

Os nossos investigadores monitorizam painhos-de-monteiro pelo som Carlos Mendes

dores experientes conseguem detetar essa diferença. Uma outra particularidade da Ave do Ano 2021 é que se reproduz no verão, enquanto o roque-de-castro se reproduz no inverno. Faz o ninho em cavidades, muitas vezes em escarpas de difícil acesso para quem não tem

Esta espécie apenas existe nos Açores, e só nidifica nalguns pequenos ilhéus.

asas, pelo que os nossos técnicos estão a recorrer ao som para estimar quantos painhos fazem o ninho em cada colónia. No projeto LIFE4BEST Seabirds Macaronesian Sound, os investigadores da SPEA usam os sons produzidos pelas aves para determinar quantas são e onde estão. O som é, aliás, outra característica utilizada pelos especialistas para identificar esta espécie: as vocalizações do painho-de-monteiro têm menos uma sílaba do que as do seu “primo” roque-de-castro. A votação decorreu de 14 de janeiro a 4 de fevereiro, através de um formulário online que desafiava a escolher entre o painho-de-monteiro e a gaivota-de-audouin para Ave do Ano. O painho-de-monteiro obteve 80% dos 1580 votos recebidos.

Autora | Sonia Neves SPEA

Poster das Aves dos Açores Não há painhos-de-monteiro ao pé de si? Compre o nosso poster Aves dos Açores, e poderá ver um todos os dias.

Painho-de-monteiro Juan Varela

bit.ly/SPEAloja

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CIÊNCIA CIDADÃ

Contribua para a ciência em 3 passos Colaborar no III Atlas das Aves Nidificantes está ao alcance de qualquer um e pode significar a junção de um momento de lazer com um contributo para a ciência. Aceite o desafio e esteja atento às pistas.

01

Esteja atento ao dia a dia das aves

Ouviu um cuco a cantar? Viu um pardal a transportar palhas, ou um melro a alimentar uma cria? Estes dados ajudam-nos a confirmar que determinadas espécies nidificam em determinado lugar. Anote o nome da espécie, as coordenadas, a data e a atividade da ave.

02

Saiba identificar a espécie

Se está a ler esta revista é provável que saiba, pelo menos, identificar um melro, um pisco-de-peito-ruivo ou uma

gaivota-de-patas-amarelas. Mas se vir uma ave que não reconhece, pode sempre “pedir ajuda” ao nosso Guia de Aves Comuns de Portugal, que faz parte do nosso kit para novos sócios, ou investir num dos guias de aves disponíveis na nossa loja.

03

Insira a informação no PortugalAves/eBird

Se ainda não iniciou o seu percurso de “eBirder”, esta é a sua oportunidade. Crie uma conta no PortugalAves/eBird e comece a registar as suas observações, sempre com atenção para selecionar os códigos de nidificação adequados.

Estes dados fornecem indícios de nidificação da espécie, uma informação que vai complementar mapas elaborados com dados recolhidos sistematicamente por outros observadores mais experientes para produzir o III Atlas das Aves Nidificantes de Portugal. Este censo nacional pretende compilar dados importantes para aferir o estado das populações das diferentes espécies de aves no nosso país e informar decisões e políticas sustentáveis. Os dados recolhidos vão ainda contribuir para a atualização de dois instrumentos importantes para a conservação das espécies: a Lista Vermelha das Aves de Portugal, e o relatório nacional da Diretiva Aves. SAIBA MAIS EM

bit.ly/ContarAves Autora | Joana Domingues SPEA

As suas observações podem ajudar a ciência Don DeBold

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Venha descobrir um pequeno grande mundo Perca-se na variedade deste destino, aqui tão perto. Das montanhas às planícies, das estepes às zonas húmidas, passando por escarpas e bosques, a variedade é a palavra de ordem deste destino apaixonante.

Devido à pandemia por Covid-19, a nossa agenda poderá sofrer alterações. Para ir acompanhando a situação, consulte

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ARMADILHAS

A um passo da proibição?

Pisco-de-peito-ruivo apanhado numa esparrela Luís Ferreira

Os deputados do BE, PEV, PAN, PSD e PS mostraram-se favoráveis em abril a alterar a lei para que o fabrico, posse e venda de armadilhas para aves selvagens passem a ser proibidos. Com esta posição, os deputados deram um passo importante para impedir a morte e captura ilegal de milhares de aves todos os anos em Portugal.

E

m discussão na Assembleia da República, além da nossa petição #ArmadilhasNÃO, que foi assinada por mais de 4000 cidadãos, estiveram projetos de lei do PAN e do PEV, bem como projetos de resolução do BE e do PSD, todos com o intuito de proibir as armadilhas. “É bom ver que a maioria dos deputados apoia a proibição das armadilhas, que o nosso esforço para informar os grupos parlamentares a este respeito deu frutos, e que estamos a um passo de tornar a lei mais eficaz, com resultados positivos para a bio-

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diversidade”, diz Joaquim Teodósio, coordenador do nosso Departamento de Conservação Terrestre. Em causa está a proibição de armadilhas de mola e de visgo, usadas para capturar aves para consumo como petisco ou venda como animal de companhia. Estas armadilhas apanham indiscriminadamente qualquer ave que nelas caia. Proibir o seu fabrico, venda e posse virá tornar mais eficaz a lei, que atualmente apenas proíbe a morte e captura de aves selvagens, mas não os meios que o permitem.

A questão será agora debatida na especialidade na Comissão de Ambiente, que definirá propostas concretas para a criação de novo decreto-lei ou alteração da legislação existente. “As poucas dúvidas levantadas por alguns deputados durante o debate podem ser facilmente resolvidas na discussão na especialidade na Comissão de Ambiente, pelo que esperamos que as lacunas da lei venham a ser colmatadas em breve e que assim se possa evitar a morte de milhares de aves selvagens todos os anos,” conclui Joaquim Teodósio.


LIFE RUPIS

Cinco anos a proteger britangos e águias-perdigueiras no Douro Internacional

Ao longo dos últimos cinco anos, no nosso projecto LIFE Rupis trabalhamos com oito parceiros para recuperar britangos (ou abutres-do-egito, Neophron percnopterus) e águias-perdigueiras (ou águias-de-bonelli, Aquila fasciata), reunindo populações e entidades locais dos dois lados da fronteira, no Douro Internacional.

Britango Artemy Voikhansky

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Joaquim Teodósio, coordenador do LIFE Rupis e do nosso Departamento de Conservação Terrestre, fez um balanço do projecto em entrevista à revista Wilder – Rewilding your Days, da qual apresentamos aqui um excerto. No que respeita à águia-perdigueira e ao britango (ou abutre-do-egito), qual era o vosso principal objectivo? Aumentar as populações dessas espécies?

lhos, as perdizes e outras aves de que se alimentam. E tudo isto tem muito a ver com as dinâmicas territoriais e com o abandono rural. São zonas muito remotas quer para Portugal quer para Espanha.

As duas espécies estavam em declínio acentuado, com reduções de cerca de 30% nos últimos 20 a 30 anos, e um dos nossos objectivos foi avaliar quais eram as ameaças para ambas. Já havia dados sobre os problemas da perturbação, das linhas eléctricas e do uso ilegal de venenos. Tentámos avaliar esses impactos e implementar ações que permitissem reduzir a mortalidade das aves adultas que acontece por origem humana. Também tentámos melhorar as condições em termos de habitat e de recursos alimentares. São aves que vivem facilmente mais do que duas dezenas de anos e por isso a sobrevivência dos adultos é fundamental.

O abandono humano desses territórios tem influência nas duas espécies?

E como é que se trabalha para isso? É muito importante assegurar que os territórios [tradicionais] se mantêm ou que se recuperam as condições daqueles que foram abandonados recentemente. Muitas das ações estiveram relacionadas com este tipo de questões. Também procurámos reduzir a perturbação em zonas mais sensíveis e os factores de ameaça identificados, como alguns postes de eletricidade que tinham causado a mortalidade de aves por electrocussão. Tivemos ainda de lidar com a questão da disponibilidade de alimentos, que para os abutres está muito relacionada com a agricultura e o pastoreio. Para as águias, está mais relacionada com as presas: os coe-

Sim, sim. Uma das vantagens deste tipo de ecossistemas está relacionada com a diversidade da paisagem e o mosaico que existia, o que tem muito a ver com a parte agrícola e a utilização do território. Com o abandono rural, relacionado com as migrações e o envelhecimento, foram-se perdendo áreas agrícolas que eram um misto de áreas abertas e de áreas com arvoredo mais denso. Foram sendo cada vez mais substituídas por zonas de arvoredo denso, com menos clareiras, o que para as águias e para as suas presas não é tão bom. No que respeita aos abutres, temos as questões ligadas às políticas agrícolas aplicadas depois da doença das vacas loucas [encefalopatia espongiforme bovina].

A questão da proibição de abandono de animais mortos nos campos… Apesar da legislação ser igual para toda a Europa, a aplicação da lei foi variando. Em Portugal, tornou-se obrigatório retirar todos os animais que morriam, mesmo em zonas muito afastadas e onde há abutres numa quantidade muito grande, que teriam permitido a remoção de forma natural destes cadáveres. Isso reduziu muito o alimento para os abutres. Do lado espanhol foram-se encontrando alternativas menos rigorosas.

Arribas do Douro Inês Matos

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Para já, o LIFE Rupis e outros projectos têm gerido estações de alimentação para os abutres. No caso do LIFE Rupis, as estações geridas – e que irão continuar a sê-lo – aplicam desde o início uma estratégia pensada para beneficiar o britango, que é uma das espécies alvo. E realmente os dados mostraram que essa é a espécie que beneficia mais, apesar do grifo e do abutre-preto utilizarem também as estações. Mas estas são sempre ações de emergência, em especial para a época de reprodução. Não estão pensadas para o longo prazo.

Houve outros grandes desafios? Por exemplo, a questão das linhas eléctricas. Os abutres têm menos capacidade de manobra para se desviarem de linhas ou utilizam os postes como poisos e o risco de

electrocussão é muito elevado. Devido às barragens, o Douro é um dos grandes produtores de energia em Portugal, o que significa que existem muitas linhas eléctricas naquele território. Algumas são bastante antigas e foram instaladas quando ainda não se ligava muito à questão do impacto nos ecossistemas. Por isso, uma das ações grandes foi a correção de postes eléctricos para evitar a electrocussão, e nalgumas situações a remoção de linhas que já eram utilizadas ou a sinalização para diminuir o risco de colisão. Fizeram-se protocolos com a EDP Distribuição, do lado português, e a Iberdrola do lado espanhol. Foi estabelecida uma prioridade de linhas em função do seu perigo, mas nos próximos anos irão sendo trabalhadas outras que foram sendo identificadas. É mais uma ação que continua e que está a ser desenvolvida no terreno.

Britangos e grifo num campo de alimentação LIFE Rupis

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Abutres-pretos Bruno Berthémy

No final do projecto, houve aumento das populações das espécies? Nestes projectos de conservação da natureza, uma das coisas mais complicadas é que entre o projecto começar, implementar as ações e ver depois os efeitos, dependendo das espécies, não se alcançam resultados de um ano para o outro. Ainda para mais em predadores de topo. Aquilo que se consegue fazer é lançar as bases para resultados a médio e a longo prazo. Neste caso algumas das ações tinham efeito imediato, como a correção de linhas eléctricas. É uma redução de uma ameaça que começa logo a ter efeitos e fica para o futuro. Já as questões ligadas com o habitat e com os recursos alimentares estão muito mais dependentes de outras variáveis e isso nem sempre é tão fácil de avaliar. Mas o LIFE Rupis contribuiu principalmente para três espécies: tínhamos o britango e a águia-perdigueira como objectivos principais, mas também esta colónia muito especial de abutre-preto, que acabou por ter uma dedicação grande a nível das ações e foi também uma das espécies que beneficiou. 20 | pardela n.º 62

No caso do britango, depois de um declínio grande nas últimas décadas, parece que esse declínio foi travado e que há agora mais estabilidade. Houve também alguns anos melhores e outros piores em termos de reprodução, relacionados muitas vezes com as condições climáticas, que nem sempre são possíveis de controlar. Tivemos sempre em torno dos 120 casais. Com a águia-perdigueira também temos boas notícias. Depois de muitos anos a perder casais reprodutores na região, no início estavam identificados 13 territórios desta espécie, e agora estão 15 – incluindo territórios que tinham sido abandonados e voltaram a ser ocupados.

E quanto ao abutre-preto? Também foi muito interessante acompanhar esta colónia com características um pouco especiais. Da informação que vamos tendo da Europa, é a única colónia que se formou a uma distância tão grande de outras. Estamos a falar de uma colónia que se formou a quase 100 km das mais próximas, o que não é normal nesta espécie. E durante muitos anos tínhamos apenas um casal reprodutor e agora temos dois casais a reproduzirem-se no Douro. Esperemos

que nos próximos anos esta colónia também vá crescendo.

Neste momento, com o projecto terminado, quais são as prioridades? Um dos pontos fortes destes projectos LIFE é a capacidade de se conseguir um investimento grande em quatro a cinco anos que permite lidar com condições urgentes de conservação, criar capacidade nos parceiros e lançar bases para o futuro. Porque, tal como eu dizia, muitas vezes os resultados não se vêem ao longo de quatro a cinco anos, até tendo em conta que os primeiros dois são para preparar e começar a implementar. Uma árvore demora 10 anos a crescer e isso replica-se em muitas outras situações. Mudar mentalidades também demora muitos anos. Portanto, estes projectos são excelentes para criar capacidade e lançar bases para o futuro, o que no caso do LIFE Rupis é muito evidente. Autor | Inês Sequeira WILDER NOTA: Este autor não segue o acordo ortográfico

LEIA A ENTREVISTA COMPLETA EM

www.wilder.pt

MAIS SOBRE O PROJETO EM

www.rupis.pt


BIOLOGIA

Mistérios da migração A capacidade de ir passar parte do ano ao outro lado do mundo é um dos comportamentos mais fascinantes das aves e encerra múltiplos mistérios, alguns ainda por desvendar.

Porque é que as aves migram? Em Portugal, todos os invernos recebemos a visita de aves como o grou-comum (Grus grus) e o abibe (Vanellus vanellus), que aqui se refugiam das intempéries, do frio e da escassez de alimento mais a norte. Por outro lado, na primavera e verão espécies como as famosas andorinhas vêm do sul para aqui se reproduzir. Estes dois cenários ilustram o debate entre cientistas: o comportamento migratório terá evoluído como forma de escapar aos rigo-

res do inverno das latitudes mais altas, ou como forma de evitar as “multidões” nos trópicos, e assegurar maiores hipóteses de ter espaço e recursos para criar a prole? Para desvendar este mistério, cientistas da Universidade de Michigan percorreram a árvore genealógica de cerca de 800 espécies de aves americanas, analisando onde os sucessivos antepassados se reproduziam e onde passavam o inverno. Para a maioria das espécies estudadas, os resultados traçam uma rota de norte para sul: aves que inicialmente viviam todo o ano na América do Norte terão gradualmente

avançado para sul durante o inverno, até chegar ao padrão atual. Mas há aves cuja migração os cientistas continuam, até à data, sem conseguir explicar. É o caso da torda-miúda-do-pacífico (Synthliboramphus antiquus), uma ave da família dos airos e papagaios-do-mar, que todos os anos voa do Canadá até ao Japão e à China: uma viagem de quase 8000 km, atravessando o maior oceano do planeta, para chegar a um destino onde as condições são aparentemente muito semelhantes às que deixou para trás.

Grous em migração Nick Upton (rspb-images.com)

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Como sabem quando partir? Um dos fatores mais importantes é o comprimento do dia: quando as aves se preparam para fugir ao inverno, o encurtar dos dias é sinal de que chegou a altura de partir. Mas este não é o único sinal a que respondem, até porque quando regressam aos territórios de reprodução, o seu ponto de partida são os trópicos, onde a duração do dia pouco muda. E em estudos em que os cientistas mantiveram as aves em condições em que o comprimento do dia era mantido constante (com recurso a luzes artificiais), várias espécies de aves migratórias continuaram a saber quando partir.

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Como? Por um lado, indícios de que o tempo vai mudar, como alterações na pressão atmosférica, por exemplo, parecem induzir as aves a iniciar a migração. Outro fator parece ser a disponibilidade de alimento, com alguns estudos a demonstrar que as aves partem mais tarde das zonas de invernada em anos em que lá há menos alimento disponível, provavelmente por precisarem de mais tempo para conseguir acumular a energia necessária para a viagem. O mais certo é que todos estes fatores ajudem a determinar o momento da partida, tendo pesos diferentes para diferentes espécies e em diferentes condições.

Como sabem o caminho? Muitas aves seguem a mesma rota ano após ano, ao longo de milhares de quilómetros, sem recurso a mapas ou GPS. O mistério de como se orientam não está ainda totalmente desvendado, mas temos algumas pistas. Sabemos que as aves conseguem usar a posição do Sol e das estrelas, e que conseguem sentir o campo eletromagnético da Terra, embora os cientistas não tenham ainda conseguido perceber exatamente como o fazem. Quando repetem o percurso, usam também pontos de referência visuais para confirmar que estão na rota certa. E, sobretudo no caso das aves marinhas, sabemos que usam também o olfato.


Apesar de a maioria seguir repetidamente as mesmas rotas, é comum alguns indivíduos, afastarem-se do “caminho certo”, quer por o conhecerem mal (como no caso das aves jovens que anualmente se veem na zona de Sagres, que “falharam” a passagem por Gibraltar), ou devido a intempéries (o que explica o surgimento das apelativas “raridades americanas” na ilha do Corvo, em outubro e novembro).

Como reconhecem o destino? Quando uma ave parte no seu primeiro voo migratório, como é que sabe quando parar? A resposta, como

em tantos aspetos da migração, varia consoante a espécie. Para aves que migram em bandos, é simples: basta seguir os adultos que já fizeram a viagem antes. Já no caso de muitas aves marinhas, por exemplo, as rotas de migração são menos fixas: no hemisfério Norte, as aves voam em direção ao sul, nos chamados movimentos dispersivos. Uma ave que num ano passa o inverno na costa de África, no ano seguinte pode invernar no Brasil. Mesmo as espécies de aves marinhas com territórios de invernada mais fixos parecem partir sobretudo com esse instinto de procurar melhores condições, e com o

passar dos anos começam a reconhecer locais com abrigo e alimento. Na viagem de regresso ao território de nidificação, as aves reconhecem a zona onde nasceram.

Porque não tomam o caminho mais curto? Por vezes, a resposta é evidente. É perfeitamente compreensível, por exemplo, que aves que não possam pousar no mar voem ao longo da costa, e que venham até Gibraltar, em vez de tentarem atravessar diretamente o Mediterrâneo. Mas outros casos parecem mais extremos.

Na viagem de regresso ao território de nidificação, as aves reconhecem a zona onde nasceram.

Aves que migram em bando aprendem com as mais velhas Autora | Julia Zarankin Wouter de Bruijn Tradução | Sonia Neves

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Garajaus-do-ártico Mark Peck

O garajau-do-ártico (ou andorinha-do-mar-ártica, Sterna paradisaea) voa do Ártico à Antártida todos os anos, numa viagem de ida e volta de 40 000 km. O garajau-do-ártico (ou andorinha-do-mar-ártica, Sterna paradisaea) voa do Ártico à Antártida todos os anos, numa viagem de ida e volta de 40 000 km. Seria de esperar que o fizesse pelo caminho mais curto possível, mas não. Quando os cientistas equiparam estas aves com transmissores GPS, descobriram que algumas chegam a percorrer quase 100 000 km (mais de duas voltas ao mundo). É provável que as aves sejam forçadas a seguir rotas menos diretas para poderem ter onde descansar pelo caminho, e o vento provavelmente também tem um papel nesses desvios. As aves voam a velo24 | pardela n.º 62

cidades comparáveis às velocidades típicas do vento, portanto muitas vezes as rotas migratórias são definidas, em parte, pelos ventos favoráveis. No sul de Portugal, no outono, o vento sudeste muitas vezes traz consigo os pequenos passeriformes, que deixam de conseguir voar para sul até que o vento mude. Na altura de regressar aos territórios de nidificação, várias espécies seguem uma rota diferente da que tomaram ao partir. No regresso, tomam um caminho mais direto, pois quem chega primeiro pode escolher os melhores locais para fazer o ninho, e quanto mais tarde se chega menor a probabilidade de ainda encontrar parceiro. Na migração outonal, essa pressa não se põe, e a escolha de rota é provavelmente mais influenciada pela disponibilidade de alimento e refúgio nos locais por onde passam.


Qual o efeito da ação humana?

Papa-moscas Fyn Kynd

Um dos efeitos mais generalizados da ação humana ao longo do último século são as alterações climáticas. Não é surpreendente que estas alterações tenham um impacto num processo tão intimamente ligado às variações sazonais como é a migração. Espécies que se reproduzem no norte da Europa, onde o tempo primaveril está a chegar cada vez mais cedo, estão a antecipar o seu calendário migratório; mas pode não ser suficiente. É o caso do papa-moscas (Ficedula hypoleuca). Nos últimos anos, estas aves têm abandonado mais cedo os seus territórios de invernada a sul. Mas, em resposta às temperaturas mais amenas, os insetos de que dependem para alimentar as suas crias anteciparam ainda mais a sua reprodução, pelo que, quando os papa-moscas chegam, o boom de insetos já passou. Tal como o papa-moscas, várias outras aves migradoras veem a sua reprodução comprometida por este desfasamento entre os ritmos de resposta de aves, insetos e plantas às alterações climáticas. E, para complicar ainda mais, para muitas espécies estas alterações não se fazem sentir da mesma forma ao longo de toda a sua rota migratória: sair mais cedo dos territórios de invernada, além de permitir menos tempo para acumular as calorias necessárias para a viagem, pode implicar encontrar mais tempestades e mau tempo pelo caminho, pois no sul da Europa, por exemplo, a chegada do tempo primaveril não se antecipou ainda tanto como no norte. Entre o amainar das condições climatéricas e o aumento do alimento disponível graças à presença humana, aves como a cegonha-branca (Ciconia ciconia) poderão estar a abandonar de todo a migração nalgumas regiões, incluindo na Península Ibérica.

Cegonhas-brancas

Para as aves que continuam a empreender estas viagens regulares, a presença humana traz ainda outros riscos.

Ronald van der Graaf

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Melro Xulescu_g

Para os pequenos passeriformes que atravessam continentes, e que voam sobretudo durante a noite, orientando-se pelas estrelas, as luzes dos grandes centros urbanos são, literalmente, desnorteantes. Mesmo que consigam evitar embater em edifícios (sobretudo arranha-céus), são forçadoas a despender energia extra, chamando e esvoaçando desorientados, e a exaustão deixa-os mais vulneráveis a outras ameaças. Nos Estados Unidos, a Audubon criou o programa Lights Out, que, à semelhança dos apagões que promovemos nos Açores e Madeira para proteger as aves marinhas, incentiva populações, empresas e entidades públicas a desligar as luzes nos períodos mais críticos da migração. Outra ameaça, infelizmente muito significativa em Portugal, é a captura ilegal. Todos os anos, milhares de aves são mortas ou apanhadas em ar26 | pardela n.º 62

madilhas, para serem vendidas como petisco ou animal de estimação. Uma ameaça que estamos a combater, batendo-nos por melhor legislação e trabalhando com as autoridades para melhorar a eficácia do combate a estes crimes, em projetos como o LIFE Nature Guardians.

A migração das aves parece ter vindo para ficar, para gáudio dos observadores de aves e dos investigadores que poderão continuar a desvendar os mistérios deste comportamento fascinante. Autora | Sonia Neves SPEA

Vale a pena? O grande número e variedade de espécies de aves que anualmente se deslocam entre territórios indica que, apesar de todos os riscos, a migração compensa. Num estudo publicado em 2017, investigadores do Instituto Max Planck de Ornitologia, na Alemanha, demonstraram que os melros (Turdus merula) que migram para sul no inverno têm maior probabilidade de sobreviver do que aqueles que permanecem todo o ano na Europa central.

Desfrute do espetáculo da migração Festival de Observação de Aves & Atividades de Natureza Sagres | 1-5 outubro

EuroBirdwatch Todo o país | 2-3 outubro www.spea.pt/agenda


BIRDWATCHING

Mais aves trazem mais felicidade, segundo a ciência Novos estudos mostram como as aves melhoram o nosso bem-estar, juntando-se a um conjunto cada vez maior de evidências de que as aves são um antídoto à nossa melancolia.

Q

uando estava no meio de uma penosa mudança de carreira, e a experimentar novos passatempos, assumi que a minha curiosidade sobre aves seria um namorico passageiro. Mas depois vi a graúna-d’asa-vermelha (a ave americana, “Red-winged Blackbird”, Agelaius phoeniceus). As fogosas manchas escarlates nos ombros desta ave, contrastando com o seu brilhante “fato” negro, apanharam-me de surpresa.

As fogosas manchas escarlates nos ombros desta ave, contrastando com o seu brilhante “fato” negro, apanharam-me de surpresa.

Graúna-d’asa-vermelha Fyn Kynd

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Não estava à espera de um “fato” tão elegante. Afinal, o meu conhecimento do mundo das aves tinha estado limitado a pombos. Mas ao observar esta ave a equilibrar-se sobre uma tabúa (planta típica dos pauis), absolutamente magistral na sua indumentária, não pude deixar de ficar maravilhada. Não sei bem o que me chocou mais: descobrir que estas aves são um dos mais comuns sinais da primavera aqui no Canadá, e não as migradoras raras que eu inicialmente tinha pensado, ou que provavelmente já tinha passado por elas centenas de vezes, sem nunca ter parado para olhar e absorver o seu esplendor. Estas aves fizeram-me questionar seriamente sobre que mais teria eu andado a perder... Esse momento, há 12 anos, é o culpado de tudo o que aconteceu a seguir, incluindo ter-me envolvido num caso de amor de meia-idade com as aves, cujo resultado foi o meu livro Field Notes from an Unintentional Birder (“Notas de campo de uma observadora de aves acidental”), publicado em outubro de 2020.

sementes para aves, caixas-ninho e outros materiais para observação de aves dispararam também em 2020, à medida que mais pessoas passaram algum tempo a olhar para o céu.

damente mais felizes. Aliás, o estudo revelou que ver 10 por cento mais espécies de aves gera uma satisfação equivalente a um aumento de salário comparável.

Aves e bem-estar

A variedade de aves que se vê não é o único aspeto que afeta o nosso humor: ouvi-las também. Segundo outro estudo recente de investigadores da California Polytechnic State University (Cal Poly), caminhantes que ouviram o canto de aves ao percorrer um trilho têm uma experiência mais positiva e sentem maior alegria. Os observadores de aves sabem isto intuitivamente: o canto das aves eleva-nos o espírito, em grande parte porque restaura a nossa fé na ordem natural do mundo e na saúde dos ecossistemas. É precisamente por isso que o capítulo de abertura de Rachel Carson em Silent Spring (Primavera Silenciosa, na sua edição em

Há cada vez mais evidências científicas de que a felicidade trazida pelas aves não acontece só em casos isolados. Cada vez mais, a investigação liga a exposição à natureza, e às aves em particular, com um aumento do bem-estar. Em dezembro, um novo estudo do Centro Alemão para a Investigação Integrativa em Biodiversidade (iDiv) associou uma maior biodiversidade de aves a uma maior satisfação com a vida para mais de 26 000 pessoas, em 26 países europeus. As pessoas que vivem perto de áreas naturais com maior diversidade de espécies de aves eram comprova-

Agora, acredito mais do que nunca que a observação de aves é o antídoto para o desespero. Agora, acredito mais do que nunca que a observação de aves é o antídoto para o desespero. Este sentimento tem tido eco em muitas pessoas nestes tempos incertos de pandemia. Tem havido uma explosão de interesse na observação de aves enquanto atividade ideal que pode ser praticada perto de casa e mantendo um distanciamento social seguro. Durante as ondas iniciais da pandemia na primavera de 2020, por exemplo, o uso da app eBird do Laboratório de Ornitologia de Cornell [na qual está integrado o PortugalAves/eBird] atingiu novos recordes. As vendas de

Estudos comprovam que ver e ouvir aves traz felicidade Freepik

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Galinhola-americana Fyn Kynd

Português), em que ela antevê o perigo de um mundo sem o canto das aves, é um alarme tão sonante: “Pelas manhãs, que outrora haviam vibrado em consequência do coro matinal de piscos, tordos, rolas, gaios, carriças, e de vintenas de outras aves canoras, não havia, agora, som algum; somente o silêncio pairava por cima dos campos, bosques e pântanos.” Não há outra forma de o dizer: as aves realmente fazem-nos felizes. Obrigam-nos a parar e prestar atenção, a reparar mais intensamente nos detalhes. Quando observamos aves, vivemos a felicidade de estar inteiramente imersos no momento presente, muito na linha do que advogam as práticas de mindfulness. E como as aves não querem saber dos nossos pequenos problemas, servem como lembretes poderosos de que fazemos parte de algo maior do que o mundo dentro das nossas próprias cabeças. Quando vejo a espetacular dança nupcial aérea da galinhola-americana (“American Woodcock”, Scolopax minor), em que esta rezingona ave castanho-acinzentada se atira ao éter emitindo chamamentos anasalados, descreve

uma série de círculos colossais no ar e desce para elação da fêmea, olho o mundo com mais fascínio. No início, quando me tornei observadora de aves, admito que, para grande vergonha minha, temi que a migração primaveril se tornasse enfadonha quando tivesse visto todas as felosas. Agora, apenas abano a cabeça a essa pessoa que fui outrora. Quando muito, a minha alegria na primavera tornou-se mais intensa, com o meu calendário interno recalibrado para aguardar ansiosamente o mês de maio. Sei que nunca me fartarei das aves: elas surpreendem-me regularmente com os seus comportamentos engenhosos, as suas capacidades de adaptação imaginativas, a sua resiliência e a sua determinação colossal. Observar as aves de perto, seja no nosso alimentador ou no campo, é uma experiência multi-sensorial brutal, que traz felicidade (a par dos embaraçosos, mas inevitáveis, erros de identificação) e momentos extasiantes de descoberta. Haverá coisa mais gratificante? Autora | Julia Zarankin Audubon Magazine Tradução | Sonia Neves SPEA

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HISTÓRIA(S) COM AVES

Sobre as aves nacionais As chamadas «aves nacionais» são escolhidas pelos países como forma de os representar e, de certa maneira, são encaradas como símbolos da identidade nacional. Hoje existem cerca de 90 países que, de forma oficial ou oficiosa, possuem uma ave nacional. Portugal não é um deles. Brasão dos E.U.A

O

primeiro país a adoptar uma ave selvagem como símbolo nacional foram os Estados Unidos da América. Não se tratou propriamente de uma decisão inocente ou trivial. Antes pelo contrário, obedeceu a uma estratégia de reforço da coesão e identidade nacionais. Saído de uma longa guerra pela independência, o novo país precisava de símbolos próprios para se afirmar no contexto internacional. Era necessário criar uma imagem para o «grande selo» oficial da nação e, após algum debate, chegou-se à conclusão que uma águia seria a melhor opção. Desde a antiguidade que as águias foram encaradas como representações do poder e foi nessa perspectiva que a escolha se baseou. Para além disso, entendeu-se também que essas aves representavam a liberdade, a coragem e a beleza. A imagem utilizada acabou por ser a do pigargo-americano Haliaeetus leucocephalus (também conhecido por águia-americana, águia-calva ou águia-de-cabeça-branca) e em 20 de Junho de 1782 o então denominado Congresso Continental aprovou

o novo símbolo que, no entanto, só em 1787 viria a ser oficialmente aceite como representação nacional. Reza a história que o assunto não foi muito pacífico e personalidades como Benjamin Franklin mostraram algumas reservas em aceitar a ideia. Numa carta dirigida à sua filha Sarah

Franklin Bache, escrita desde Paris a 26 de Janeiro de 1784, teceu algumas considerações acerca da questão e, entre outras coisas pouco abonatórias para a ave, não se coibiu de dizer: «Pela minha parte gostaria que o pigargo-americano não tivesse sido escolhido para representar o nosso país. É uma ave de mau carácter moral…».

Pigargo-americano The Tardigrade

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Charneco José Luiís Barros

A controvérsia perdurou no tempo e mesmo na primeira metade do século XX ainda havia quem achasse que o pigargo-americano não ilustrava da melhor maneira aquilo que se designava como o «carácter americano». Assim pensava, por exemplo, o famoso ornitólogo Arthur Cleveland Bent, que no fascículo dedicado às aves de rapina da sua obra monumental Life Histories of North American Birds publicado em 1937, embora reconhecendo que se tratava de uma ave imponente, não deixou de escrever: «…Os seus hábitos necrófagos, o seu comportamento tímido e cobarde, os seus ataques predatórios à mais pequena e fraca águia-pesqueira dificilmente inspiram respeito e por certo não exemplificam o que existe de melhor no carácter americano…». Aos poucos, com o passar do tempo, outros países foram nomeando aves nacionais. Em 1960 o assunto foi abordado no decurso da conferência mundial do International Council for Bird Preservation (ICBP, antecessor da BirdLife International) realizada em Tóquio. Como resultado, foram emitidas

recomendações para que os países que ainda o não tivessem feito, escolhessem a sua ave nacional. A ideia era aumentar a visibilidade das aves junto do público, chamando a atenção para o seu valor intrínseco e contribuindo assim para a criação de uma consciência conservacionista. Na sequência dessas recomendações, em finais dos anos 1960 o ICBP contactou o Professor Santos Júnior, presidente da então recém-formada Sociedade Portuguesa de Ornitologia, no sentido de Portugal passar a ter também uma ave nacional. No fascículo I do primeiro volume da revista Cyanopica desta sociedade, publicado em 1969, este descreve o processo: «Fiquei hesitante entre várias aves que, ou pela sua beleza, ou pela maviosidade do seu canto, ou pelo grande interesse económico e agrológico, poderiam, qualquer delas, ascender à realeza de rainha das aves de Portugal. Ouvidos os companheiros do Conselho Director da Sociedade Portuguesa de Ornitologia e alguns sócios

fundadores, nomeadamente o Professor G.F. Sacarrão, da Faculdade de Ciências de Lisboa, e o Engº Saldanha Lopes, Director dos Serviços de Caça e Pesca dos Serviços Florestais e Aquícolas, foi escolhida a pega-azul (Cyanopica cyanus cooki Bonaparte) que, na Europa, só existe em Portugal e na Espanha. O nome do seu género foi escolhido para título da nossa revista, e os dois primeiros artigos deste fascículo são-lhe consagrados.» A escolha, há que dizê-lo, não foi a melhor e nunca vingou. O charneco (ou pega-azul) não ocorre em todo o espaço territorial português e não é propriamente uma ave inspiradora ou que reflicta de alguma forma as qualidades e virtudes portuguesas. Assim, quem hoje pesquisar na internet acerca do assunto, o mais provável é que encontre o galo de Barcelos mencionado como a nossa ave nacional. Autor | Helder Costa NOTA: Este autor não segue o acordo ortográfico

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ROTEIRO NACIONAL

Cascais além da beira-mar

Visita obrigatória: Quinta do Pisão Filipa Machado

Quando se fala em Cascais, é quase impossível não pensar logo em praia e mar, rolas-do-mar e corvos-marinhos… Mas o concelho tem muito mais para oferecer: além de vários espaços verdes, faz também parte do Parque Natural Sintra-Cascais, no qual está integrada a Quinta do Pisão, de visita obrigatória, em qualquer altura do ano.

A

Quinta do Pisão, situada na vertente sul da serra de Sintra, no território cascalense do Parque Natural Sintra-Cascais, ocupa uma área aproximada de 380 ha. Este parque de natureza, aberto ao público desde 2010, é gerido pela Câmara Municipal de Cascais que, além da dinamização de um diversificado programa de atividades, onde já se incluíram passeios para observação de aves em parceria com a SPEA, possibilita também a visitação livre do espaço, durante o seu horário de funcionamento. A exploração do terreno, só pos32 | pardela n.º 62

-sível a pé ou de bicicleta (ou a cavalo, cujos passeios é possível reservar), é muito acessível. Deixada a viatura no parque de estacionamento da entrada, localizada a sul da Barragem da Mula na EN9-1 (também conhecida por estrada da Lagoa Azul – Malveira da Serra), a rede de trilhos e caminhos existentes oferece diversas possibilidades para um bom passeio em família, em qualquer altura do ano.

Paisagem com história A ocupação humana deste território é antiga, havendo vestígios arqueo-

lógicos que remontam ao Calcolítico e à Idade do Bronze. Depois, durante a Idade Média, estabeleceu-se no local o denominado Casal de Porto Covo. Mais recentemente, durante o século XIX a quinta era utilizada para o fabrico de cal durante os meses mais quentes do ano. A partir dos anos 1930 foi aqui instalada uma colónia agrícola gerida pela Santa Casa da Misericórdia de Cascais. A receção e centro de interpretação deve o seu nome à história da quinta – Casa da Cal. Além da interessante exposição sobre os valores naturais e histórico-culturais da quinta, o edifício contempla ainda um espaço de loja, outro para atividades de pequenos grupos e uma cafetaria. No exterior, há ainda um espaço com mesas de piquenique e outro, cujos ocupantes fazem a delícia de miúdos e graúdos: o picadeiro dos burros (lanudos, da raça mirandesa) e dos cavalos. Toda esta história moldou uma paisagem surpreendente para quem, quando ouviu (ou leu) o nome Cas-


Um dia em família em Cascais... sem praia Cascais Ambiente

cais, inicialmente só pensou em mar. No espaço da quinta é possível encontrar terrenos abertos com vegetação rasteira de sequeiro, manchas florestais dominadas por pinheiros-bravos e árvores exóticas, matagais com características mediterrânicas, pequenas hortas (onde é possível realizar atividades como a colheita dos próprios alimentos biológicos) e dois açudes com alguma vegetação ripícola. Este mosaico de habitats permite a existência de uma avifauna interessante e diversificada, tendo sido já registadas pelo menos 133 espécies de aves, segundo os dados da plataforma PortugalAves/ eBird, consultados em abril.

caeruleus; chapim-real, Parus major), a estrelinha-real (Regulus ignicapilla), o tentilhão-comum (Fringilla coelebs) ou picapaus como o peto-real (Picus viridis) e o pica-pau-malhado (Dendrocopus major). Chegados ao Pasto da Alta do Refilão, zona de pastagens com pinheiros dispersos, vale a pena estar atentos ao pombo-torcaz (Columba palumbus), à cotovia-dos-bosques (Lullula arborea), ao verdilhão (Chloris chloris), pintassilgo (Carduelis carduelis) e milheirinha (Serinus seri-

nus), e a vários tordos, como o tordo-pinto (Turdus philomelos), o tordo-ruivo (Turdus iliacus) e o tordo-zornal (Turdus pilaris). Junto ao estábulo do Refilão abre-se uma vasta área desarborizada (o Pasto dos Fornicos), habitualmente frequentada por espécies como a perdiz-comum (Alectoris rufa), a poupa (Upupa epops), a laverca (Alauda arvensis), o chasco-cinzento (Oenanthe oenanthe), o pintarroxo (Carduelis cannabina) e o trigueirão (Emberiza calandra).

Pelos caminhos do Pisão A partir do parque de estacionamento, podemos enveredar pelo o caminho que segue para a esquerda (oposto à receção), em direção ao ponto central do Refilão. O percurso atravessa, inicialmente, uma mancha florestal junto a uma linha de água, onde se podem encontrar algumas espécies de chapins (chapim-carvoeiro, Periparus ater; chapim-azul, Cyanistes

Tordo-pinto Allan Hopkins

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Estrelinha Arend Vermazeren

Chapim-carvoeiro

Poupa

Smudge 9000

Este é também o terreno de caça de algumas aves de rapina, como a águia-d’asa-redonda (Buteo buteo) ou o peneireiro (Falco tinnunculus). Do Refilão, seguimos pelo Caminho da Volta da Lagoa até a um pequeno açude situado a sul da Quinta (a lagoa Pequena), um bom local para encontrarmos algumas espécies aquáticas como o mergulhão-pequeno (Tachybaptus ruficollis) e a galinha-d’água (Gallinula chloropus). Durante a migração pós-nupcial do final do verão/outono as zonas envolventes tornam-se bastante favoráveis para observar passeriformes como o papa-amoras (Sylvia communis), o rabirruivo-de-testa-branca (Phoenicurus phoenicurus), o papa-moscas (Ficedula hypoleuca) o taralhão-cinzento (Muscicapa striata) e a felosa-musical (Phylloscopus trochilus). Antes de voltarmos ao Caminho do Refilão, que nos permitirá fazer um

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Imran Shah

percurso circular, vale a pena fazer um pequeno desvio pelo Caminho do Olival. Este atravessa uma mancha de vegetação mediterrânica utilizada por diversos passeriformes, passando depois junto a outro açude (a lagoa Grande), ideal para as aves aquáticas. O percurso prossegue pelo Vale das Hortas, passando pela receção, antes da chegada ao ponto de partida.

mente o local, procurando os insetos de que se alimentam.

O percurso, sendo circular, pode começar-se no sentido inverso, mas seja qual for a opção escolhida, convém estar sempre atento ao céu, pois por vezes são avistadas aves de rapina em voo como o gavião (Accipiter nisus) ou o açor (Accipiter gentilis). Além disso o andorinhão-pálido (Apus pallidus), o andorinhão-preto (Apus apus), a andorinha-dos-beirais (Delichon urbicum), a andorinha-dáurica (Cecropis daurica), a andorinha-das-chaminés (Hirundo rustica) e a andorinha-das-rochas (Ptynoprogne rupestris) sobrevoam regular-

Este parque, onde a história, a agricultura e a arte (incluindo a exposição anual de Land Art) têm andado de mãos dadas com a conservação da natureza e as atividades de educação e voluntariado ambiental, é, sem dúvida, uma boa surpresa. Esperamos ter aguçado a sua curiosidade para uma visita a este Cascais diferente, com campo e serra à vista…

Além das aves, do diversificado elenco faunístico da Quinta do Pisão há ainda a destacar a geneta (Genetta genetta), a raposa (Vulpes vulpes), a lagartixa-do-mato (Psammodromus algirus) e a salamandra-de-pintas-amarelas (Salamandra salamandra).

Autora | Vanessa Oliveira SPEA

SAIBA MAIS EM

www.ambiente.cascais.pt/pt/ quinta-do-pisao


IDENTIFICAÇÃO DE AVES

Tordos - robustos, mas melodiosos Aves de bico e corpo relativamente robusto e com colorações mates e acastanhadas, os tordos podem passar despercebidos aos olhares mais desatentos. Mas o seu canto certamente irá chamar-lhe a atenção. Os tordos são bastante abundantes em Portugal, e pertencem ao mesmo grupo que os melros, que pululam alegremente pelos nossos jardins e que tão facilmente identificamos pelo seu canto característico e bico amarelo. Mas outras espécies, mais adaptadas a zonas arborizadas, também por cá residem ou vêm passar o inverno ao nosso país.

Tordo-pinto © Mike Langman (rspb-images.com)

Peito castanho arruivado Peito e barriga com pintas em forma de seta/ coração invertido

Tordo-ruivo © Mike Langman (rspb-images.com)

Sobrancelha grande e esbranquiçada

Tordo-pinto Turdus philomelos

Mais pequeno e compacto Na primavera/verão nidifica no Norte e Centro de Portugal

Tons acastanhados no dorso

Pintas no peito

Axilas e flancos de tons laranjas

No inverno é comum por todo o país Encontra-se em bosques e florestas

Tordo-ruivo Turdus iliacus

Chega do Norte da Europa a partir de outubro/novembro Ouve-se durante a noite, na migração outonal

Tordoveia © Mike Langman (rspb-images.com)

Distribui-se por zonas agrícolas e orlas de bosque

Dorso acinzentado e barriga clara

Tordoveia Turdus viscivorus

Cauda comprida

Ave grande e de aspeto elegante Muito comum no Nordeste transmontano Presente durante todo o ano, mas mais abundante no inverno Prefere zonas de bosque e floresta

Pintas redondas no peito e barriga

Autores | Mónica Costa e Rui Machado SPEA

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?

A Spea responde Autora | Sonia Neves SPEA

Muitas vezes, a melhor ajuda é manter a distância. Sem querer as nossas boas intenções podem perturbar os ritmos naturais das aves.

Encontrei uma cria de ave na praia. Como posso ajudá-la?

A não ser que a cria esteja ferida, por mais incrível que pareça, o melhor que pode fazer é deixá-la onde está, e afastar-se. Aves como a chilreta e os borrelhos põem os ovos sobre a areia, num ninho pouco elaborado (pode ser apenas uma pequena depressão na areia, com algumas conchas e pedras em redor), fiando-se na excelente camuflagem tanto dos ovos como das crias para as manter a salvo. Na verdade, ovos e crias passam tão despercebidos que se arriscam a ser pisados! Assim, o melhor que pode fazer, se vir uma cria na praia, é afastar-se para que os progenitores percebam que o perigo passou e que podem voltar. Se tiver um cão consigo, tenha também o cuidado de o manter afastado, usando a trela se necessário. No âmbito do nosso projeto LIFE Ilhas Barreira, colocámos placas e

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© An

vedações nalgumas praias da região da Ria Formosa (Algarve) para evitar que os ninhos sejam pisados, mas o risco existe um pouco por todo o país, portanto esteja atento!

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Caso encontre um animal ferido, o nosso conselho é sempre contactar o centro de recuperação mais próximo. Consulte a lista de contactos em www.icnf.pt/ondeestamos/linhassos


Pássaro-Tempo 1

Na primavera podes encontrar chilretas por algumas das praias do sul de Portugal, a fazer os seus ninhos. Sabias que são muito difíceis de ver? Os ovos são parecidos com a areia para passarem despercebidos aos predadores. Caminha até à praia sem pisares nenhum dos seus ovos. Por Mónica Costa (texto) e Frederico Arruda (ilustração)

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Pássaro-Tempo 2

Das vistosas joaninhas aos discretos bichos-de-conta, passando pelas abelhas e formigas, há todo um mundo de pequenos seres que ajudam a combater pragas, polinizar plantas e manter a saúde dos ecossistemas. Dá-lhes uma ajuda, construindo um “hotel” onde possam abrigar-se. Por Sonia Neves (texto) e Frederico Arruda (ilustração)

Vais precisar de: Paus

Pede a um adulto uma lata usada, sem partes afiadas, e lava-a até ficar bem limpa.

Enche a tua lata com os vários materiais que reuniste.

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Cascas de árvore

1 Lata

Começa por enrolar o cartão de maneira a fazeres vários rolinhos.

Coloca o teu hotel para insetos num sítio abrigado.

Cartão

Corta os teus materiais do tamanho da altura da lata.

Visita o teu hotel de vez em quando e descobre que "inquilinos" lá vivem.*

* Se tiveres espaço, experimenta pôr vários hoteis com tubos de diferentes diâmetros, ou em locais com mais ou menos sombra, e vê se atraem insetos diferentes.


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