Marxismo, educação e formação da Individualidade: o caminho das objetivações genéricas em-si às obje

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CARVALHO, S.R. Marxismo, educação e formação da Individualidade: o caminho das objetivações genéricas em-si às objetivações genéricas para-si. Caderno Sala de Aula, UFAM, v. 1, p. 11-28, 2012.

Marxismo, educação e formação da Individualidade: o caminho das objetivações genéricas em-si às objetivações genéricas para-si. Saulo Rodrigues de Carvalho1

Resumo Neste artigo defendemos a idéia de que a educação escolar é um caminho indispensável na formação da individualidade para-si e, portanto necessária para a realização de uma sociedade socialista. De posse do conceito de individualidade para-si, desenvolvido de maneira mais acurada por Duarte (1999), buscaremos identificar na educação escolar os fundamentos para a formação integral do homem, isto é, “o homem necessitado de uma totalidade de manifestação da vida humana” (Marx, 1989 p.178). Deste modo, devemos salientar que o percurso que iremos realizar nada tem de novo e que nos referenciamos especialmente na obra “A individualidade para-si” (DUARTE, 1999) para compreender a relação da educação escolar com a formação da individualidade do sujeito.

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Professor do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM/ICSEZ – Parintins-AM. Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/FCL – AraraquaraSP.

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Introdução A discussão a respeito da função da escola tem se colocado hoje numa perspectiva negativa frente ao ensino sistematizado proveniente da educação escolar. A maioria das argumentações sobre esse assunto atualmente tende a valorizar mais o tipo de aprendizagem espontânea pautada nas relações cotidianas, em detrimento ao tipo de ensino escolar, ou seja, uma aprendizagem caracterizada por formas não espontâneas que fogem do contexto cotidiano. Para tratar dessa temática com mais propriedade, faremos o seguinte trajeto: na primeira parte enfatizaremos as formas espontâneas de educação identificando-as como formas necessárias à inserção dos sujeitos na sociedade. Contudo, essas formas espontâneas não estariam imunes à intencionalidade do modo de produção da vida social e por isso estariam sujeitas as contradições inerentes ao modo de produção do capital. Deste modo, as formas espontâneas de educação apenas possibilitariam aos indivíduos a apropriação das objetivações genéricas em-si, isto é, das objetivações necessárias a sua reprodução singular. No segundo momento, abriremos uma discussão a respeito da centralidade da vida cotidiana para os indivíduos. O cotidiano é identificado como uma matriz da produção de “formas superiores de recepção e reprodução da realidade”, onde se estabelecem e se desprendem conhecimentos superiores da realidade, para retornarem ao cotidiano como prática social. Contudo, argumentamos que na sociedade capitalista o movimento dialético entre o conhecimento e o cotidiano encontra-se cindido. Há uma cisão entre a apropriação das objetivações genéricas em-si e objetivações genéricas para-si aprofundando o “abismo entre o desenvolvimento humano-genérico e a possibilidade de desenvolvimento dos indivíduos humanos” (HELLER, 1972 p.38). Nesse sentido que entendemos a educação escolar como um elemento fundamental para a formação de uma individualidade para-si, por ser uma atividade que tem como finalidade a reprodução do gênero humano nos indivíduos, possibilitando seu desenvolvimento humano-genérico.

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A constituição da vida cotidiana e a educação para as objetivações genéricas em-si.

O cotidiano é um tema central para a compreensão do comportamento humano frente à realidade objetiva. Como assevera Lukács (1966) o primado da vida social é o cotidiano. “O comportamento cotidiano do homem é o começo e final ao mesmo tempo de toda atividade humana” (p.11) Em conseqüência disso iniciaremos nosso estudo observando o significado da educação como ponto de partida para a apropriação das objetivações genéricas mais elementares para a realização da vida cotidiana dos homens. Segundo Duarte (1999) as objetivações genéricas em-si constituem o campo da vida cotidiana e formam a base da vida social, pois implicam na apropriação do comportamento, da linguagem, dos costumes, regras e manuseio de instrumentos comuns dentro de determinada sociedade. Ao transformar a natureza através do trabalho, ainda que tal transformação pouco ultrapassasse, no inicio o processo de humanização do gênero humano, o nível de utilização de objetos em seu estado quase natural, o homem, de qualquer forma já estava se constituindo enquanto ser genérico, mas um ser genérico em-si. As objetivações humanas limitavam-se aos utensílios (os objetos “produzidos” pela atividade humana), os costumes e a linguagem. Essa três objetivações constituíram a primeira e indispensável esfera de objetivação do gênero humano. Nenhuma sociedade seja ela alienada ou não, pode prescindir dessa genericidade em-si. (p.136)

A característica comum da apropriação dessas objetivações é a reprodução singular dos indivíduos. Muitos desses processos de apropriação ocorrem no interior da sociedade por meio de procedimentos não-intencionais. Contudo, não podemos deixar de destacar a presença da educação nestes casos. Embora não apareça de forma sistematizada e elaborada a educação enquanto uma atividade de formação humana, aparece nas suas formas mais espontâneas de transmissão de 3


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conhecimentos. Podemos observar isso, por exemplo, no processo de apropriação da fala pelas crianças. É comum que os adultos estabeleçam uma comunicação com os bebês ensinando-lhes o nome e função dos objetos e seres a sua volta. Esse processo assistemático permite que as crianças se apropriem da fala e dos conceitos mais elementares que garantem a sua sociabilidade num determinado contexto. Disso resultam também dois aspectos fundamentais da transmissão de conhecimentos, que incorporados às formas mais desenvolvidas de educação encontram-se de forma sistemática e elaborada, o automatismo e a imitação. O automatismo é uma condição inseparável para a liberdade. Ou seja, quando automatizadas algumas atividades fundamentais, abre-se um leque de possibilidades para a apropriação e incorporação de novas atividades e conhecimentos mais desenvolvidos. Como afirma Saviani (2003)

(...) A liberdade só poderá ser atingidas quando os atos forem dominados. E isto ocorre no momento em que mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições de exercer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos. Então, a atenção liberta-se, não sendo mais necessário tematizar cada ato. (p. 19)

A imitação é outro aspecto elementar da educação, Heller (apud Duarte 1999) irá apontála como elemento fundamental para a constituição da sociabilidade dos homens que permite aos indivíduos a incorporação de objetivações fundamentais para a constituição de sua individualidade. É fato que o desenvolvimento da individualidade e da personalidade dos homens só pode se concretizar em sociedade. Portanto, mesmo os processos de transmissão de conhecimento mais espontâneos, só podem ser realizados no interior de uma relação social. Assim sendo, o modo de produção da existência dos homens irá determinar o conjunto de objetivações genéricas necessárias para a vida dos indivíduos em sociedade. Quando falamos em modo de produção não nos referimos unicamente do nível econômico de produção material. Mas, ao conceito em que inclui a produção de bens materiais e os demais níveis de realidade social, ou

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seja, a própria superestrutura jurídica e política que se eleva do nível econômico (Harnecker, 1978) Nesse sentido, a educação até mesmo nas suas formas mais espontâneas, está marcada em larga medida, pela intencionalidade do modo de produção social. Significa que o modo de produção da vida material seleciona e estabelece os conteúdos da vida social dos indivíduos. Portanto, numa sociedade em que prevalece o modo capitalista de produção, a sociabilidade dos homens predominantemente irá refletir a realidade social que a determina. Em outras palavras, a vida cotidiana no capitalismo encontra-se repleta de valores que fazem parte do funcionamento do capital e das contradições inerentes a ele. Em que pese às contradições que se levantam da ordem do capital, a alienação do trabalho é um fator predominante que delineia toda a sociedade capitalista determinando a vida cotidiana. Mas em que consiste a alienação do trabalho? O trabalho alienado é o fundamento do capital. Como um fenômeno da exploração capitalista o trabalho alienado não só permite a ilimitada produção de mercadorias, como também consiste na própria produção e reprodução do capital. Diz Marx (1989) O trabalhador se torna tão mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho Não produz só mercadorias; produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na proporção em que produz mercadorias em geral. (grifos do original p. 148)

Para a reprodução da sua existência os homens precisam trabalhar. O trabalho é a atividade vital que consiste na própria criação da sociedade e do ser humano, enquanto um ser genérico. Como afirma Marx (1989) O homem é um ser genérico, não só na medida em que teórica e praticamente faz do gênero, tanto do seu próprio quanto do das demais coisas, o seu objeto, mas também – e isto é apenas uma outra expressão para a mesma coisa – na medida em que se relaciona consigo mesmo como // com // o gênero vivo, presente, na medida em que se relaciona

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consigo mesmo como // com // um ser // Wesen // universal e livre. (grifos do original p. 155)

A atividade pela qual o homem estabelece o intercambio orgânico com a natureza na constituição do gênero e do próprio “corpo inorgânico” do homem, é o trabalho. O que nos habilita dizer, amparados por Marx, que na relação alienada de trabalho encontra-se o cerne da alienação da sociedade capitalista. Assim diz Marx (1989) O trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz desnudez para o trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas mutilação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquinas, mas joga uma parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas. Produz espírito, mas produz idiotia e cretinismo para o trabalhador. (p.152)

Na contradição do trabalho alienado cria-se o gênero humano. Quanto mais objetivações o trabalhador realiza da sua atividade, mais distante do gênero ele se encontra. Portanto, toda a riqueza dessa criação encontra-se condicionada na apropriação privada dos meios de vida. Essa relação estendida a todos os níveis da vida social é uma marca indelével da vida cotidiana sob a égide do capital. Como escreve Marx (1989) A relação imediata do trabalho com seus produtos é a relação do trabalhador com os objetos de sua produção. A relação do abastado com os objetos da produção e com ela mesma é só uma conseqüência desta primeira relação. (p.152)

É o trabalhador que cria a sociedade. Da objetivação do seu trabalho se constitui a “base real da sociedade sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política” (MARX, 1965). Contudo a apropriação dos meios de vida pelo trabalhador realiza-se de modo alienado. “Os meios de subsistência do trabalhador” se apresentam como um poder “estranho” a ele que o domina.

(...) quanto mais o trabalhador se apropria do mundo exterior, da natureza sensorial, através do seu trabalho, tanto mais ele se priva de meio[s] de vida segundo um duplo aspecto; primeiro, que cada vez mais o seu mundo exterior sensorial cessa de ser um

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objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho; segundo, que cada vez mais cessa de ser meio de vida no sentido imediato, meio para a subsistência física do trabalhador. Segundo esse duplo aspecto o trabalhador se torna, portanto um servo do seu objeto, primeiro ao receber um objeto de trabalho, isto é, receber trabalho, e segundo ao receber meios de subsistência. Portanto, para que possa existir primeiro como trabalhador e segundo como sujeito físico. O extremo desta servidão é que apenas como trabalhador ele [pode] se manter como sujeito físico e apenas como sujeito físico ele é trabalhador. (MARX, 1989 p.152. Grifos do original.)

A vida cotidiana dos trabalhadores sob esse duplo aspecto resume-se na apropriação dos elementos essências à sua subsistência, para manter-se enquanto sujeito físico, enquanto trabalhador. No que tange as formas de transmissão de conhecimento mais espontâneas para a vida social, elas não poderiam passar imunes a essa contradição. Afirmamos nesse sentido, que as formas espontâneas de educação dão conta apenas da formação de funções elementares que possibilitam ao individuo a apropriação das objetivações genéricas em-si. Com outras palavras, elas garantem aos sujeitos, de forma precária, a sua reprodução singular, a sua relação imediata com os produtos do seu trabalho na garantia de sua subsistência. Dessa forma consideramos que, embora cumpra uma função primeira e essencial na constituição da sociabilidade dos sujeitos, as formas espontâneas de educação devem ser superadas na direção da formação de um ser universal e livre. Com isso, deixamos aqui em suspenso o debate sobre as formas mais espontâneas de educação, buscando em certa medida, desmistificar o romantismo criado em torno do espontaneísmo como forma natural e livre de educação dos sujeitos. Muito embora seja preciso um aprofundamento maior a respeito desse debate, nos debruçaremos agora a entender a educação escolar (o ensino dirigido) identificando-a como uma atividade mais desenvolvida e capacitada para a formação de uma individualidade para-si.

Educação escolar: o caminho para a apropriação das objetivações genéricas para-si. Começaremos essa segunda etapa citando Lukács (1966) onde o cotidiano é identificado como a matriz da criação e realização das formas superiores de sociabilidade. 7


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Se nós representarmos a cotidianidade como um grande rio, podemos dizer que dele se desprendem, em formas superiores de recepção e reprodução da realidade, a ciência e a arte, se diferenciam, se constituem de acordo com suas finalidades específicas, alcançam sua forma pura nessa especificidade – que nasce das necessidades da vida social – para logo, a conseqüência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens, desembocar de novo na corrente da vida cotidiana. (p.12)

Com efeito, a contradição do trabalho alienado é um dado ineliminável da vida cotidiana sob o capitalismo. Entretanto, é sob as bases da vida cotidiana que se edificam “formas superiores de recepção e reprodução da realidade”. A apropriação dessas formas requer dos homens também formas superiores de educação. Uma educação que possibilite a apropriação das objetivações genéricas para-si. Ainda que na realidade objetiva não haja uma divisão entre as objetivações genéricas emsi e objetivações genéricas para-si, na organização social capitalista esta relação encontra-se cindida, já que as apropriações genéricas em-si permitem aos trabalhadores apenas a reprodução dos meios para sua subsistência, como discutido anteriormente. Todavia, é importante destacarmos e conceituarmos as objetivações genéricas para-si, a fim de entendermos melhor essa relação. Duarte (1999) irá afirmar que as objetivações genéricas para-si correspondem ao desenvolvimento de formas superiores do conhecimento da realidade, como a estética, as ciências, a matemática, a filosofia, a arte. Essas decorrem de processos de objetivação dos conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. São formas que impelem a uma apropriação sistemática e intencional, constitutiva de uma natureza “intelectual” do conhecimento. Isto é, o conhecimento das objetivações genéricas para-si é sempre mediato e nunca imediato. Assim sendo, as formas de educação espontâneas não possibilitam a compreensão exata desses conhecimentos que ao retornarem para a vida cotidiana se colocam como objetivações “estranhas” aos homens.

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Esse processo de desenvolvimento dos conceitos ou significados das palavras requer o desenvolvimento de toda uma série de funções como a atenção arbitrária, a memória lógica, a abstração, a comparação e a discriminação, e todos esses processos psicológicos sumamente complexos (...). (VIGOTSKY, 2001, p.246)

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Poderíamos escolher como exemplo também a medicina, as artes, a física, a filosofia, onde também é possível enxergarmos essas interpretações próprias do senso comum. 3

Constantemente vemos nos jornais presentes no cotidiano os termos, “o mercado acordou agitado”, “a bolsa de valores está em alta”, “o crédito acalmou a crise” expressões que afirmam a auto-determinação da economia como um ser de sentimentos e vontades próprias. 4

Fetichismo é entendido aqui como a naturalização de fenômenos sociais.

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Contudo a escola não está imune as contradições do capital. Ela também é resultado da história das lutas de classe. Saviani (2003) ao historicizar a escola identifica sua gênese no modo de vida escravista do mundo antigo. A partir do momento em que a apropriação da terra – que era, então, o meio de produção fundamental – assume a forma privada, surge a classe dos proprietários; estes por deterem a propriedade da terra, colocavam para trabalhar aqueles não-proprietários. Sobre essa base, constitui-se o modo de produção antigo ou escravista, no qual os escravos trabalhavam para produzir a sua existência e a dos seus senhores. Esta propriedade privada da terra, que ocorre tanto no modo de produção antigo ou escravista quanto no modo de produção medieval ou feudal, propicia o surgimento de uma classe ociosa, que não precisa trabalhar para sobreviver porque o trabalho de outros garante também sua sobrevivência. É ai que podemos localizar a origem da escola. (SAVIANI, 2003,p.94)

A escola surge tão somente como o lugar do “ócio”5 reservado aos proprietários de escravos, que libertos do trabalho manual, da necessidade de garantia dos meios de subsistência, podiam se entregar a reflexão da realidade e ao desenvolvimento de formas superiores de conhecimento. Na história da luta de classes a escola toma lugar decisivo na constituição da vida material dos homens, com a ascensão da burguesia e domínio do capital como intercambio orgânico com a natureza e modo de produção social. As forças produtivas liberadas pelo capital exigiam de modo ampliado um conhecimento cada vez mais elevado das propriedades e legalidades da natureza e das relações humanas necessárias a sua produção e reprodução enquanto metabolismo social. A ciência incorporada ao capital por meio da tecnologia e da compreensão de formas mais eficientes de extração de trabalho excedente, tornou-se uma condição necessária para a própria existência do capitalismo.

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Segundo Saviani (id) : “Escola, em grego, significa “o lugar do ócio”. O tempo destinado ao ócio. (...) Na Idade média, evidenciou-se a expressão latina otium cum dignitate, o “ócio com dignidade”, isto é, a maneira de se ocupar o tempo livre de forma nobre e digna”.(p. 95)

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O movimento das forças produtivas do capital impulsionou de certo modo a burguesia, enquanto classe que vive do trabalho excedente, a se posicionar em favor da universalização da educação. A educação mais elementar e espontânea somente, não podia assegurar as necessidades de produção e reprodução social do sistema capitalista. Foi preciso instituir a escola para todos, cumprindo assim a dupla função de educar para a sociabilidade de mercado livre e formar a força-de-trabalho deste modelo social. A escola, no entanto, precisava ter formas superiores de educação que possibilitassem a superação da apropriação imediata do conhecimento, para atingi-lo em sua forma mais desenvolvida por meio de processos mediatos e intencionais de ensino.

Assim, se até o final da Idade Média a forma escolar era parcial, secundária, não generalizada, quer dizer, era determinada pela forma não-escolar, a partir da época moderna ela generaliza-se e passa a ser a forma dominante, à luz da qual são aferidas as demais. (SAVIANI, 2003, p.96)

Com efeito, a burguesia enfrenta nesse processo a contradição própria da divisão social do trabalho. A escola por sua natureza mostrou-se um instrumento contrário a divisão do “trabalho manual” e “trabalho intelectual” na sociedade, o que em certa medida colocou em cheque o privilégio dos que “pensam a produção” sobre os que “fazem a produção”. Desta forma a classe dominante estabeleceu formas de controle sobre a escola, selecionando criteriosamente os conteúdos a serem ensinados, na observância de uma educação em “doses homeopáticas” (Smith apud Saviani, 2003, p.99) À medida que se desenvolve o capital as exigências para sua própria existência se tornam determinantes em grande medida às exigências da educação escolar, do ensino geral da população. A luta econômica travada pela classe trabalhadora e a classe dos capitalistas se estende em maior e menor grau à luta pela educação. A burguesia restringindo o conhecimento ao mínimo necessário para a sociabilidade e os trabalhadores exigindo mais e melhores escolas para garantia de sua inserção no mercado de trabalho. De outro modo, destacamos que a forma como o conhecimento – a seleção dos próprios conhecimentos científicos, artísticos, filosóficos, estéticos – é ensinado nas escolas possibilita a 11


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compreensão mais exata da realidade objetiva, um elemento fundamental para a construção de outro nível de sociabilidade fundada no socialismo. Fator expressivo que sempre mobilizou a luta política dos socialistas pela escola. De fato, a educação escolar cumpre atualmente uma função primordial na formação da individualidade dos sujeitos. Para Duarte (2006) a constituição da individualidade envolve um processo dialético nas atividades de apropriação e objetivação da realidade. Compreende a dinâmica entre apropriação e objetivação num patamar histórico, determinado e determinante para a inserção dos indivíduos na história. A efetivação dessa relação se dá através da produção dos meios que permitem a satisfação das necessidades da vida humana, e na própria produção da linguagem e das relações sociais. A relação entre apropriação e objetivação, por ser resultado de uma ampla prática social acumulada historicamente, é sempre mediada pela ação de outros sujeitos. A apropriação das objetivações históricas realizadas pelo homem dependerá em grande medida da qualidade das mediações necessárias a sua formação enquanto um ser genérico (DUARTE, 2006). A educação escolar, por aquilo que ensina, cumpre um papel fundamental na mediação entre indivíduo à apropriação das objetivações do gênero humano. Curto e grosso modo, a educação escolar remete o indivíduo ao gênero, à produção histórica e social da humanidade. Por esta razão, não poderíamos deixar de relacionar a função histórica da educação escolar na formação de uma individualidade para-si. Nesse sentido aponta Duarte (1999) O indivíduo para-si é o ser humano cuja individualidade está em permanente busca de se relacionar conscientemente com sua própria vida, com sua individualidade, mediado pela também constante busca de relação consciente com o gênero humano. (p.184)

Vale dizer que na atual etapa da produção histórica da humanidade, o caminho para a superação da alienação do conhecimento, na direção da apropriação das objetivações genéricas para-si, encontra-se também no cerne da educação escolar. Contudo, a alienação do conhecimento só pode ser superada na sua base material, isto é, na própria superação da alienação do trabalho, de maneira que o trabalho deixe de ser meio de subsistência para tornar-se meio de vida. 12


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Para nós significa que a atividade dos homens se desfaz de qualquer separação entre a subjetividade e a objetividade e que é tão verdade que “as circunstâncias fazem os homens como os homens fazem as circunstâncias”. Para acabar com as idéias que legitimam a situação de opressão e alienação dos homens é preciso acabar com as circunstâncias que geram essas idéias. Equivale dizer que não há possibilidade de uma individualidade para-si nos marcos do capitalismo. Enquanto o modo de produção da existência dos homens permanecer sob a base da dominação de classe, sempre irá prevalecer por parte dos indivíduos o processo de apropriação da generecidade em-si, isto é, apropriação das objetivações necessárias para a sobrevivência em sociedade. No entanto, a sociedade capitalista possibilitou surgimento das condições para a realização de uma individualidade para-si como uma tendência do real. Tendência que tem na educação escolar os fundamentos para sua realização. Nesse sentido, encaramos a educação escolar como uma atividade privilegiada na superação da alienação do conhecimento. Concluímos nosso texto reafirmando a necessidade de uma teoria para a formação da individualidade para-si, identificando na educação escolar seus fundamentos. Compreendemos também a educação escolar como um elemento essencial e em disputa na esfera da luta de classes e que, portanto, urge a necessidade de fazer prevalecer os interesses da classe trabalhadora também nesse âmbito da sociedade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MARX, Karl. Trabalho alienado e a superação positiva da auto-alienação humana. In: FERNANDES, Florestan (Org). Marx & Engels: História. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1989. _______ Introdução à uma crítica da economia política. In: MARX. Karl, A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1965. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2003. VIGOTSKY, Lev Semenovich. A construção do pensamento e da linguagem. Martins Fontes, 2001.

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DUARTE, Newton. A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo. Campinas: Autores Associados, 1999. _____________. Vigotsky e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pósmodernas da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados, 2006. LUKACS, Georg. Estética I: la peculiaridad de lo estetico. Barcelona – México: Ediciones Grijalbo, 1966. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. HARNECKER, Marta. O capital: conceitos fundamentais. São Paulo: Global, 1978.

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