Diversidade e genericidade humana

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Unidade, Diversidade e Genericidade humana na práxis social. Falar sobre diversidade não tem sido fácil, ainda mais quando tentamos ultrapassar a barreira do senso comum que se criou sobre esse termo. Primeiro é preciso pensar a diversidade, não como um conceito alegórico, mas como uma categoria própria do ser social da humanidade. Ela é uma constatação ontológica do desenvolvimento histórico e social dos seres humanos. Isso significa que ela é uma forma de existência do ser social. Isto é a humanidade não pode existir sem se diversificar. Não existe uma humanidade monolítica, que nasceu pronta e acabada para habitar o mundo, a humanidade se tornou humana em face da sua relação contraditória de apropriação e transformação da natureza. E esse processo de humanização é infindável, ou quase. O término dele pode ser dado pelo próprio homem, que tem destruído nas últimas décadas todas as condições de vida humana no planeta, porém esse é um assunto que não iremos tratar neste momento. Mas, o que é a diversidade humana? Faremos agora um breve comentário do que significa a diversidade para o Materialismo HistóricoDialético. Contudo, é em Hegel que encontramos uma teorização sobre a “identidade e diferença” (MELO, 2007). Para Hegel os sujeitos se relacionam uns com os outros, formando sua identidade num processo de contraposição e “suprassunção”, ou seja, a incorporação e a supressão do outro. O “outro”, é o diferente dessa relação, na qual os sujeitos se contrapõem enquanto “ser outro” e encontram consigo mesmos, afirmando assim a sua individualidade. Na visão hegeliana a identidade dos sujeitos estaria oculta e só se revelaria na medida em que ela se contrapusesse a um “outro”, formando a sua própria identidade, que é sempre singular e irrepetível. Na visão marxiana essa relação se encontra de “cabeça para baixo” (GRESPAN, 2002). Para Marx a diversidade se dá na formação da humanidade desde o princípio. É diferença que incorpora e determina a identidade e não o contrário. Desse modo, a identidade passa a ser compreendida como a “unidade do diverso”, resultado da “síntese de múltiplas determinações” (MARX, 2010) contraditórias que compreende assim o indivíduo concreto, isto é, o indivíduo inserido historicamente em relações sociais determinadas.


Para os marxistas a categoria diversidade não pode ser vista em separado da categoria unidade. E qual é essa unidade? É própria produção genérica da humanidade. A partir do momento em que o trabalho se consolida como atividade vital e consciente da espécie humana o processo de adaptação biológica, cede espaço a um novo processo de “adaptação ativa” da humanidade. O trabalho é a atividade pela qual os seres humanos transformam a natureza de forma consciente, a fim de obter dela os meios para a sua existência. Converte os objetos da natureza em objetos úteis para a vida humana. Nesse processo de transformação, os seres humanos não só modificam a natureza exteriormente, como também alteram a sua própria natureza. Cada processo de produção descoberto, cada uso diferente das forças da natureza (o fogo, a eletricidade, os ventos) cada novo objeto, que a humanidade põe na realidade objetiva, produz um efeito sobre a constituição dos indivíduos. Isso, de tal modo, faz com que a humanidade se reproduza não somente enquanto espécie animal, mas enquanto gênero humano. Enquanto espécime é possível observar a conservação das condições mais elementares da vida biológica. Esse é um processo ininterrupto e pertencente a todas as esferas da vida no planeta. Enquanto um ser orgânico o ser humano segue indiscutivelmente um processo de evolução e reprodução biológica, como as demais espécies da vida orgânica. Mas, é enquanto ser genérico que a humanidade se diferencia das demais espécies. A natureza se auto-produz enquanto espécie, e enquanto uma genericidade “muda”. Ou seja, a natureza tende a produzir sempre o mesmo, da mesma forma, somente quando uma grande modificação radical no ambiente ocorre se tem também uma modificação radical das espécies naturais. A genericidade humana pelo contrário está em permanente mudança. A produção da vida genérica dos homens, não elimina os processos biológicos da reprodução da vida animal, mas constitui sobre tais determinações orgânicas, novas necessidades cada vez mais puramente sociais. Assim, as necessidades decorrentes da fome, do sono, do frio, dos processos fisiológicos e psicológicos dos indivíduos, são mediadas pela produção sócio-cultural da humanidade (LUKÁCS, 2013). Se tomarmos os primeiros “homo sapiens” de pelo menos 200 mil anos atrás como referência, veremos que a sua constituição biológica permaneceu inalterada até os dias de hoje. Contudo, a


sua forma de vida tem se modificando radicalmente pelo menos nos últimos 50mil mil anos, em que se têm notícias do seu comportamento moderno (ou seja, o uso de ferramentas, a linguagem e arte). No desenvolvimento genérico da humanidade, cada pequena alteração no seu modo de vida, pode gerar modificações profundas na sua genericidade (Idem). Isso faz com que a produção da genericidade dos indivíduos humanos seja diversa, em todo âmbito da sua vida social, inclusive na sua sexualidade. Enquanto a natureza produz organicamente enquanto espécie, o macho e a fêmea, a produção genérica da humanidade se auto-produz como gênero homem e mulher, mas essa produção do gênero sexual do ser humano extrapola simplesmente os aspectos reprodutivos da sexualidade, englobando em seu ser social elementos representativos da afetividade, do erotismo, do romantismo e do amor, que são sempre características do comportamento especificamente humano construídos historicamente. Evidentemente essa produção genérica da sexualidade dos seres humanos, não poderia se limitar à relação entre o homem e a mulher, mas de maneira diversa ela sintetiza as relações afetivas entre todos os indivíduos da humanidade, dando origem a uma gama de comportamentos afetivos que tão logo se manifestam nos indivíduos orientando suas preferências sexuais. De tal forma a humanidade se caracteriza não só pela sua reprodução sexual como espécie, mas também como gênero, provocando uma diversidade de comportamentos sexuais que são produto da produção genérica da vida humana. Assim, gays, lésbicas, trans-gêneros, bissexuais, homens, mulheres, expressam de modo particular o desenvolvimento genérico da sexualidade dos seres humanos, o modo como a humanidade se relaciona com o sexo em seu ser social. Alienação e Diversidade sexual Como já foi dito, a diversidade sexual é parte do desenvolvimento genérico da humanidade que expressa à relação social dos indivíduos humanos com sua afetividade e sexualidade. Mas, esse entendimento não é assim tão bem aceito em nossa sociedade atual. Por muito tempo o comportamento homo-afetivo, (pessoas que se relacionam amorosamente com pessoas do mesmo sexo), foi considerado como um tipo de comportamento


“desviante” fruto de um processo de degenerescência moral (principalmente por parte das concepções religiosas), ou de alguma doença genética (por parte da comunidade científica).

Por conta disso, muitos homossexuais, no mundo

todo, foram e hoje são perseguidos, violentados e mortos. Tidos como pervertidos, em muitos períodos da história humana, foram considerados, por governos tiranos e por concepções autoritárias, como os principais detratores dos costumes da moral das sociedades. Ainda hoje, nas sociedades democráticas são considerados como cidadãos de segunda classe. Em alguns países são proibidos de se casarem e de constituírem legalmente uma família. São as vítimas preferidas do ódio dos moralistas e reacionários. No Brasil, durante a discussão do último Plano Nacional de Educação, assistimos a uma movimentação muito grande de setores reacionários da sociedade quando se buscou discutir as questões relativas à identidade de gênero e diversidade sexual nas escolas. Muito daquilo que os contrários a essa discussão dentro do ambiente escolar apresentaram como argumento, se baseava em preconceitos religiosos e convencionalismos infundados. Mas, se somo uma genericidade diversa, de onde vem tanto ódio aos homossexuais? A partir do momento em que as sociedades comunitárias dão origem e são “engolidas” pouco a pouco pelas sociedades de classe, as diferenças entre os indivíduos passam a ser acentuadas como elemento decisivo na reprodução social. Trocando em miúdos, a sociedade de classes só se mantém por meio da submissão do trabalho dos indivíduos por outros indivíduos, isto é: “a exploração do homem pelo homem” (MARX, 2012). A escravidão foi à primeira forma de exploração do homem, que mais tarde em face do seu desenvolvimento histórico, deu origem a formas mais eficientes de submissão originando o trabalho assalariado na sociedade capitalista. A divisão de classes impôs deste modo uma divisão social do trabalho, na qual se torna cada vez mais preciso se identificar os sujeitos dessa produção. A partir do momento em que o trabalho começa a ser dividido, inicia-se também uma distribuição 1 igualmente desigual dos resultados do trabalho. Cada pessoa passa a ter uma “[...] esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é imposta e da qual 1 A distribuiçãã o segundo Mãrx (1983, p.207) “[...] determinã ã proporçãã o (ã quãntidãde) de produtos que cãbem ão indivííduo; ã trocã determinã os produtos que cãdã indivííduo reclãmã como pãrte designãdã pelã distribuiçãã o”


não pode fugir [...] e assim tem de permanecer se não quiser perder seus meios de existência [...]” (MARX e ENGELS, p.29, grifo nosso). Mas a divisão do trabalho na sociedade de classes, não é somente a divisão estreita das tarefas do trabalho, senão a divisão política dos indivíduos na estrutura social. Ela estabeleceu de tal modo um “padrão” de humanidade a ser seguido, tendo como modelo a forma de vida das classes dominantes, como o exemplo de humanidade a ser atingida. Os gregos antigos, por exemplo, consideravam os escravos como “ferramentas que falavam”, somente os homens, senhores de escravos eram considerados humanos, às mulheres era reservado apenas o espaço do gineceu, onde lhe cabia cuidar dos filhos e administrar a casa. Na sociedade capitalista o modelo de humanidade que se impôs é o do homem, branco, heterossexual, europeu, cristão, e tudo o que foge a esse padrão passa ser visto com desconfiança. A sociedade de classes consolidou também um modo específico de sociabilidade, a propriedade privada pelo “patriarcado”. Ou seja, a submissão da mulher à escrava particular do homem. Estabelecendo como ordenamento social o casamento monogâmico, como forma estrita de reconhecimento dos herdeiros do homem. Como tendência histórica o casamento monogâmico cumpriu assim para a organização social fundada na propriedade privada, uma função claramente determinada por leis sociais instituídas, ora pela religião e ora pelo Estado, que estabelecem como objetivo a garantia da reprodução sexual de certo tipo de indivíduo. Sua particularidade em vista da manutenção da propriedade privada e da subalternização do homem pelo homem sobre patamares elevados de alienação da sexualidade e a afetividade recíprocas entre os indivíduos. Grande parte do ódio destilado aos homossexuais se destaca da opressão que a sociedade patriarcal dirige as mulheres. A alienação consiste, sobretudo, no processo de negação da humanidade do outro. O não reconhecimento da sexualidade de gays, lésbicas e transgêneros representa na sociedade o grau de alienação e opressão com os quais as pessoas estão submetidas capitalismo. Isso faz com que a luta contra o preconceito e a discriminação aos homossexuais se transforme também numa luta contra a opressão de classe da sociedade capitalista. O exemplo vivo da história foi a Revolução Russa de 1917, que tinha como objetivo instaurar uma sociedade socialista. No período czarista os


homossexuais eram perseguidos e presos simplesmente pela sua existência. Durante o processo revolucionário as leis czaristas foram abolidas e o casamento se tornou igualitário. Em 1926 a revolução bolchevique permitiu que qualquer pessoa tivesse sua identificação de gênero mudada nos documentos oficiais, conforme a sua vontade pessoal. O caso mais conhecido foi o do soldado Evgenii Fedorovich, antes chamado Evgeniia que se casou com uma empregada dos correios e continuou a servir o exército. Georgy Chicherin, também se tornou outro caso emblemático da revolução. Declaradamente homossexual Chicherin foi comissário das relações exteriores e foi nomeado delegado para acompanhar as negociações que deram origem ao tratado Brest-Litovski. Mas o isolamento da revolução russa e a ascensão de Josef Stalin ao poder, deu início à um processo de restauração das de algumas das antigas leis autoritárias. Stalin, havia feito um tratado com as burguesias locais, o qual deu início a um resgate dos valores morais burgueses, dando-lhes terminologias “marxistas-leninistas”. Em 1933 a homossexualidade voltou a ser proibida e condenada a 5 anos de trabalhos forçados. Houve uma perseguição sistemática aos gays na União Soviética e países que sofriam a sua influência direta. Até hoje a Rússia continua sendo um dos países mais autoritários e fechados à questão LGBT. Para concluir é preciso pensar a diversidade humana numa perspectiva ontológica, isto é, uma condição do ser social, que é irrevogável. O que não é “natural”, o que é fruto da alienação do homem é toda opressão contra a diversidade, que tem uma gênese histórica e uma objetividade funcional, que é a manutenção das sociedades de classe e em particular da sociedade capitalista. Mas, não podemos ser ingênuos, de achar que podemos construir uma sociedade justa e diversa, dentro de um sistema injusto e opressor, nem de achar que podemos simplesmente acabar com os preconceitos, a discriminação, o sexismo, o racismo, a homofobia e a transfobia, apenas acabando com as classes. O socialismo é o pressuposto para eliminação das barreiras políticas e econômicas que impedem a livre e autêntica expressão das individualidades humanas, mas não é uma fórmula mágica que irá transformar de um dia para o outro o pensamento e o sentimento das pessoas, é preciso, desde já, muito trabalho e muito convencimento e a educação é nossa principal aliada nesse processo de transformação das consciências.


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