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Pedagogias não-críticas e as influências (neo)liberais: escola nova, tecnicismo e pedagogias do aprender a aprender em aquiescência com o fim da transmissão do conhecimento.. Carderno Sala de Aula, Parintins-AM, v. 1, n.2, p. 23-36, 2012.

Pedagogias não-críticas e as influências (neo)liberais: escola nova, tecnicismo e pedagogias do “aprender a aprender” em aquiescência com o fim da transmissão do conhecimento. Saulo Rodrigues de Carvalho1

Resumo Neste artigo discutiremos as proximidades políticas e metodológicas da Escola Nova e o Tecnicismo bem como suas relações históricas no desenvolvimento das pedagogias do “aprender a aprender”. A partir da abordagem Materialista Histórico-Dialética analisaremos as características comuns das pedagogias não-críticas no que diz respeito a negação da transmissão de conhecimento, como perspectiva de educação escolar.

Introdução O texto que segue exume uma parte dos estudos preparatórios desenvolvidos durante o período de elaboração de minha dissertação de mestrado2. Nele busquei sintetizar o conhecimento sobre alguns dos assuntos desenvolvidos durante o ano de 2008 discutidos principalmente na disciplina “Teorias pedagógicas, Trabalho Educativo e Sociedade”, ministradas pelo Professor Newton Duarte3. Dessa maneira, abordamos as pedagogias nãocríticas como expressão dos ideais liberais na educação e fizemos uma reflexão acerca das relações entre escola nova, tecnicismo e pedagogias do “aprender a aprender” ao que cabe à negação do conhecimento escolar, bem como o desprezo pela transmissão do saber como um aspecto ontológico na formação dos indivíduos em sua apropriação do gênero humano. 1

Professor do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Amazonas – UFAM/ICSEZ – Parintins-AM. Mestre em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/FCL – Araraquara-SP. Email para contato: saulorc1982@gmail.com 2

Cf. CARVALHO, S.R Políticas neoliberais e educação pós-moderna no ensino paulista. UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JULIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP). Dissertação de Mestrado, Araraquara, 2010. 3

Professor Livre docente pela UNESP, um dos principais críticos das tendências pós-modernas em educação. Autor dos títulos “A individualidade para-si: contribuição a uma teoria histórico-social da formação do indivíduo”, “Vigotsky e o ‘aprender a aprender’: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana”, “Critica ao fetichismo da Individualidade” entre outros.

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Da escola democrático-cidadã à escola eficaz e produtiva: proximidade entre a escola nova e o tecnicismo.

O embate pedagógico entre a Escola Nova e a Escola Tradicional fundamentou-se, principalmente, na forma como a pedagogia tradicional educava suas gerações. Tal formato privilegiava o conteúdo e a didática que se baseava em métodos de transmissão do conhecimento. Associado as críticas de caráter epistemológico, também foram enumeradas críticas em torno dos aspectos morais da educação tradicional caracterizados por seu autoritarismo e elitismo. Em contra partida, os “métodos ativos” propuseram, um novo modelo onde o aluno passa a ser o centro do processo de aprendizagem que deverá estimulá-lo à participação, atividade, pesquisa e comportamento crítico. Os métodos da Escola Nova também vieram carregados de um comportamento, caracterizado pela construção de relações democráticas, inclusivas e de respeito no interior da relação pedagógica. Tais críticas ganharam espaço no meio acadêmico brasileiro e vieram a influenciar a criação da ABE – Associção Brasileira de Educação em 1920 e posteriormente em 1932 com o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Essas influências que se tornaram predominantes até cerca de 1960, começam a perder espaço quando a pedagogia 2


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por

pensadores

crítico-reprodutivistas,

no

cerne

do

movimento

escolanovista há elementos que o aproximam do tecnicismo. Partindo do pressuposto da categorização realizada por Saviani (1989), tanto a Escola Nova como o Tecnicismo, são consideradas pedagogias não-críticas. O escolanovismo, apesar de apresentar críticas ao modelo educacional vigente, não contesta, de maneira alguma as relações sociais que determinam o ensino escolar. Os problemas identificados no âmbito escolar de autoritarismo, elitismo, entre outros levantados pelos escolanovistas, são vistos como particularidades da instituição escolar. Nesse sentido a opção por um modelo democrático de ensino que fundamenta suas práticas nos interesses dos alunos é uma concepção que se encerra em si mesma, ou seja, não aspira transformações na sociedade. Para a Escola Nova a democracia liberal é o modelo a ser adotado pelo ensino formal. Deste modo, deve ser fundamental para o interesse individual de cada sujeito, que a escola se encarregue de criar hábitos, comportamentos, atitudes e práticas de convivência nesse sistema democrático. A escola não visa, nessa perspectiva, a ascensão social, mas sim um tipo de estabilidade no qual, cada indivíduo reconheça e satisfaça-se plenamente, com sua posição social, dentro de um sistema democrático liberal. Ora, mas o que a Escola Nova possa ter em comum com o ensino tecnicista? Aparentemente, ambas são colocadas em lados opostos, contudo podemos aproximá-las dentro do seu não-criticismo e principalmente na perspectiva de uma educação que vise o equilíbrio social em uma democracia liberal. No modelo educacional da Escola Nova visava-se o fim do ensino propedêutico da escola secundária, almejando-se, nesse grau, um ensino de tipo industrial, técnico, comercial, que capacite os indivíduos para trabalhos de natureza prática em concordância com a dinâmica da expansão industrial. Os “métodos ativos”, no entanto, criaram técnicas para que as atividades escolares pudessem ser significativas ao aluno, de modo que o conhecimento que ele venha conceber seja de 3


Pedagogias não-críticas e as influências (neo)liberais: escola nova, tecnicismo e pedagogias do aprender a aprender em aquiescência com o fim da transmissão do conhecimento.. Carderno Sala de Aula, Parintins-AM, v. 1, n.2, p. 23-36, 2012. maneira espontânea em congruência com as necessidades práticas que a sociedade democrática estabelece. No tecnicismo esses ideais são levados as últimas conseqüências. Em face da demanda de mão-de-obra para o trabalho fabril nas multinacionais que se instalam no país durante o regime autoritário, o tecnicismo passou a ser um método mais rápido e eficiente para sustentar as necessidades do mercado. Embora, as discussões ideológicas a respeito desse modelo educativo sejam de grande importância, não o faremos neste momento. A partir disso temos que para o tecnicismo, assim como para a pedagogia nova, o professor ocupa um lugar secundário cabendo aos procedimentos técnicos a responsabilidade de orientar o conhecimento, dentro de um pressuposto utilitarista, daquilo que é necessário para a resolução imediata de problemas. Mesmo que as filiações mais próximas do tecnicismo sejam o behavorismo, o pragmatismo deweyano parece presente pelo fato das modalidades de aprender estejam fundamentadas em respostas práticas para problemas práticos. O fato é que o tecnicismo mecanizou as “situações problema” que seriam os esquemas responsáveis por mobilizar as faculdades do aluno para a construção do saber. Do ponto de vista ideológico, o tecnicismo com sua visão a-crítica da sociedade, tem a educação como uma estrutura funcional, na qual, os indivíduos ao se qualificarem, possam assumir os postos de trabalho necessários para a manutenção harmônica da sociedade. Com o trabalho docente a relação não era diferente: o professor como uma peça da organização social, seguia os procedimentos técnicos necessários para a realização da atividade educativa. Daí resulta o elemento mais próximo entre a escola nova e o tecnicismo, para ambos o conhecimento resulta do ambiente propício para aprendizagem: para um através dos métodos ativos, para outro através do sistema técnico. Em ambos, o ponto de partida é individual, na primeira supõe-se que o indivíduo não seja parte do todo, o mesmo desenvolve-se naturalmente sem relação com a totalidade social. No segundo o indivíduo é visto como parte do todo social, mas uma parte da somatória dessa totalidade, desprovida de sínteses e sem contradições.

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Até aqui procuramos buscar as proximidades entre a escola nova e o tecnicismo, agora pretendemos avançar mais um pouco em nossa análise, verificando o que destas tendências, vieram suscitar as pedagogias do “aprender a aprender”. Como vimos escola nova e tecnicismo são consideradas pedagogias não-críticas, isso se deve muito pelo fato de acreditar na democracia liberal como fim último da sociedade. Seu ideal de educação fundamentou-se na formação de indivíduos que se ajustariam às necessidades do mercado, que se modernizava e se industrializava. Nas pedagogias do “aprender a aprender”, a sociedade é vista como um todo complexo e embora apareçam críticas ao modelo vigente, este parece nunca poder ser superado, contudo, são adeptas da formação para o convívio neste tipo de sociedade e não para sua superação.

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Pedagogias não-críticas e as influências (neo)liberais: escola nova, tecnicismo e pedagogias do aprender a aprender em aquiescência com o fim da transmissão do conhecimento.. Carderno Sala de Aula, Parintins-AM, v. 1, n.2, p. 23-36, 2012. As pedagogias do “aprender a aprender”, como define Duarte (2001) são uma ampla corrente educacional contemporânea que defende o tipo de aprendizagem, no qual o indivíduo realiza “espontaneamente” sem a necessidade de transmissão, na qual a atividade autônoma permita sua própria construção do conhecimento que possui uma utilidade adaptativa às transformações da sociedade. No artigo “As pedagogias do ‘aprender a aprender’ e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento” Duarte (ibid.) aponta as proximidades entre a pedagogia das competências, a escola nova e o construtivismo, ao citar as afirmações de Perrenoud a respeito da utilização dos métodos ativos e da contigüidade com a construção do conhecimento. Lá fica clara a aproximação dessas pedagogias e, a concepção educacional que as engloba, voltada especificamente para a formação das capacidades adaptativas dos indivíduos. Como afirma Duarte (2001): Quando educadores e psicólogos apresentam o “aprender a aprender” como síntese de uma educação destinada a formar indivíduos criativos, é importante atentar para um detalhe fundamental: essa criatividade não deve ser confundida com busca de transformações radicais na realidade social, busca de superação radical da sociedade capitalista, mas sim criatividade em termos de capacidade de encontrar novas formas de ação que permitam melhor adaptação aos ditames da sociedade capitalista (p.38)

O que novamente nos chama a atenção é a visão de mundo que perpassa todas essas pedagogias descrevendo, um tipo de sociedade democrática, moderna, competitiva e informacional. Essa visão apregoa uma sociedade em constante mudança, contudo essa “sociedade” parece ser um ente que possui vida própria, os homens ao contrário são caracterizados como estáticos, resistentes a mudança. Como descreve Fonseca (apud Duarte 2001) A miopia gerencial e arrogante e a resistência à mudança, que paira em grande parte no sistema produtivo, devem dar lugar à aprendizagem, ao conhecimento, ao pensar, ao refletir e ao resolver novos desafios da atividade dinâmica que caracteriza a economia global dos tempos modernos. Tal mundialização da economia só se identifica com uma gestão do imprevisível e da excelência, gestão essa contra a rotina, contra a mera redução de custos e contra a simples manutenção. Em vez de se situarem numa perspectiva de trabalho seguro e estático, durante toda a vida, os empresários e os trabalhadores devem cada vez mais investir no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de empregabilidade, o que é algo substancialmente diferente do que se tem praticado. O êxito do empresário e do trabalhador no século XXI terá muito que ver com a maximização das suas competências cognitivas. Cada um deles produzirá mais na razão direta de suas maior capacidade de aprender a aprender,

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Disso resulta a necessidade de criar um tipo de educação que insira os homens no bojo das mudanças da sociedade. Uma educação que valorize as iniciativas individuais e o conhecimento surgido da experiência prática. São concepções que se tornaram hegemônicas no mundo contemporâneo. Tais concepções remetem as críticas realizadas por Marx (1965a) aos economistas clássicos. Na Introdução à Crítica da Economia Política, Marx criticou o idealismo de Smith e Ricardo, que concebiam a produção individual isolada. A produção material não era vista como um complexo de relações sociais determinadas historicamente. Ao contrário, essas relações, para os economistas clássicos, eram ligações naturais e independentes entre os sujeitos. Não eram, portanto, determinações sociais historicamente dadas, mas determinações dadas pela “natureza humana”. Assim as concepções hegemônicas de educação idealizam uma sociedade que se modifica sem a presença dos homens e um ser humano que produz sem a relação com a sociedade, numa versão atualizada da “mão invisível” de Adam Smith. E justamente por essa compreensão que destacam a educação para a prática cotidiana como um tipo ideal de formação humana. Ora, o tipo de conhecimento tácito, defendido pelas pedagogias do “aprender a aprender”, não é senão o conhecimento prático adquirido por indivíduos isolados, que naturalmente se relacionam segundo seus interesses individuais. Uma educação pautada por esses valores, só poderia resultar na supervalorização da prática cotidiana, que a priori é decorrente da alienação na “natureza” do trabalho. É impossível que essas concepções compreendam a sociedade como produto do trabalho humano determinado historicamente. Bem como, é impossível compreender que o produto do trabalho humano se materializa em objetos que não podem ser apropriados pela maioria dos seres humanos na sociedade capitalista, numa estreita relação de classes que se antagonizam. 7


Pedagogias não-críticas e as influências (neo)liberais: escola nova, tecnicismo e pedagogias do aprender a aprender em aquiescência com o fim da transmissão do conhecimento.. Carderno Sala de Aula, Parintins-AM, v. 1, n.2, p. 23-36, 2012. Cria-se então, uma pedagogia para a convivência no mundo da alienação, um sem número de técnicas e argumentações que coadunam para a coexistência de um mundo altamente desenvolvido e de relações cada vez mais desumanizadas. Escola nova, tecnicismo, pedagogias do “aprender a aprender”, cumprem uma função ideológica ao reproduzir a ideologia da sociedade capitalista e nessa direção cumprem uma função material de produzir a força de trabalho necessária ao modo de produção capitalista. Cada uma dessas tendências, entretanto, estão situadas historicamente em determinados momentos da produção capitalista; obedecendo as regras de estágios circunscritos de produção e acumulação de capitais. Desse modo podemos enxergar a contundente necessidade de negar a transmissão de conhecimento como processo legítimo de formação. Assumir a transmissão de conhecimentos como educação é assumir a “desnaturalização” da sociedade, é admitir que os indivíduos dependem e fazem parte de uma vasta totalidade, que só pode ser captada através de mediações e não da maneira puramente imediata como propõem essas pedagogias. A transmissão de conhecimento, no entanto, está associada à pedagogia tradicional, que também, num outro momento do desenvolvimento da sociedade burguesa, contribuiu com a realização da produção capitalista. Não se trata, no entanto, de defender a educação tradicional, o que queremos destacar aqui é transmissão do saber como um aspecto ontológico da mediação do gênero humano. Como Marx definiu, o trabalho é a atividade característica do gênero humano, isto é, a atividade pela qual o homem transforma a natureza direcionando à produção necessária a sua própria existência. Contudo como afirma DUARTE (2007), “para que o gênero humano se reproduza é necessária a reprodução das pessoas e da sociedade” (p.13). Tal reprodução só é possível diretamente e/ou mediada pelo trabalho, a medida que o ser humano, por meio da produção, cria as condições para sua sobrevivência ele também cria as condições para a existência do gênero humano. Sobre isso afirma Duarte (ibid.) O trabalho, que pode ser considerado a unidade antropológica fundamental, foi historicamente o solo comum a partir do qual tanto se desenvolveu a esfera da vida cotidiana como também foram surgindo e ganhando autonomia em relação à

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A partir disso, suscitamos os questionamentos: não seria um tanto absurdo se a cada estágio do desenvolvimento humano, os homens tivessem que recriar novamente as condições de sua existência? Não demoraria o triplo do tempo para desenvolver a sociedade civil se os homens obedecessem a “evolução natural” das forças produtivas? Muito embora seja uma afirmação imprecisa, podemos concordar que a transmissão do saber foi e é uma mediação ontológica pela qual o ser social reproduz a sua existência. Deste modo, afirma Marx (1965b) A história é apenas a sucessão das várias gerações, cada uma explorando os materiais, o capital, as forças produtivas, que lhes são transmitidas por todas as gerações precedentes. Assim, cada geração continua, de um lado, a atividade que lhe é transmitida, mas em circunstâncias radicalmente modificadas por uma atividade radicalmente transformada; essa verdade é deturpada pela especulação de tal modo que a história recente se torna a finalidade da história antiga (...) (p.44)

A transmissão de conhecimento entre gerações é, portanto, um elemento não-natural do desenvolvimento social e histórico do gênero humano. Ao negar esse elemento, as pedagogias que se fundamentam na visão (neo)liberal elaboram uma ilusão à respeito da formação do gênero humano ao encará-lo como resultado de ações comandadas pela “natureza do homem”. Ao mesmo tempo provoca uma deformação na educação dos indivíduos, ao despojá-los da noção de totalidade histórico-social, possível por meio da transmissão de conhecimentos mais elaborados desenvolvidos pelo gênero humano. Segundo Heller (apud DUARTE, 2001) as atividades cotidianas são realizadas especificamente para a reprodução individual, enquanto que as atividades não-cotidianas estão voltadas para a reprodução da sociedade, das objetivações “genéricas-para-si”. Quando, porém, uma pedagogia se pauta pelo cotidiano para a formação, ela está diretamente ligada ao desenvolvimento de uma atividade voltada para a reprodução singular dos indivíduos. Por outro, lado a transmissão de conhecimento é necessariamente uma atividade realizada para a reprodução da sociedade. O que tentamos desenvolver até aqui é que escola nova, tecnicismo e as pedagogias do “aprender a aprender”, tem suas filiações no pensamento (neo)liberal e portanto, negam

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Ao evidenciar a prática cotidiana, negando a transmissão de conhecimentos, essas pedagogias deixam de ensinar os conhecimentos mais desenvolvidos e ricos construídos pela humanidade historicamente. O que vale dizer, que o ensino de habilidades e competências necessárias para a vivência da prática cotidiana, como formulado por elas, são formas de conservar uma circunstância, na qual, as relações sociais são fundamentadas no processo produtivo alienado. Como ressalta Duarte (2007) é preciso superar as pedagogias que negam o conhecimento escolar, “superar a educação escolar em suas formas burguesas sem negar a importância da transmissão, pela escola, dos conhecimentos mais desenvolvidos que já tenham sido produzidos pela humanidade” (p.17). Nesse sentido, creio que a transmissão de conhecimento possa ser uma atividade, pela qual seja possível obter uma visão sobre a totalidade do processo histórico e que por sua vez, confirma a necessidade de transformação da sociedade.

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Considerações finais Pelo exposto buscamos mostrar como Escola Nova e Tecnicismo se aproximam como pedagogias que negam a transmissão do conhecimento, apoiando-se na criação de ambientes de aprendizagem onde os indivíduos desenvolvem “naturalmente” seus conhecimentos. Outro fator importante em nossa análise sobre essa proximidade está no fato de que ambas as pedagogias citadas se orientam numa perspectiva liberal de mundo. Para elas o modelo democrático liberal, seria o tipo ideal de sociedade para o qual as pessoas deveriam ser formadas, para a convivência e para a sua manutenção. Neste sentido consideramos que a não-criticidade ao modelo de sociedade capitalista, resulta da concordância com os ideais do liberalismo. Adiante, relacionamos as pedagogias do “aprender a aprender” ao âmbito dos ideais (neo)liberais. Na raiz dessa junção, a negação da transmissão do conhecimento seria uma forma de reafirmar a crença no desenvolvimento natural das capacidades humanas e da “natureza” dos desdobramentos sociais e históricos na constituição da sociedade civil. Por fim, salientamos a necessidade de superação das pedagogias que se situam na abordagem do saberes cotidianos, identificando a transmissão de conhecimento como um elemento que possibilita a noção de conhecimento da totalidade histórica e social. Contudo, sabemos que tal superação não significa o fim da alienação, mas trata-se de ressaltar, que vivemos em uma sociedade capitalista, fundamentada nos valores do mercado, do trabalho assalariado e da propriedade privada, que necessita ser superada pelas formas mais evoluídas da existência humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DUARTE, Newton. O debate contemporâneo das teorias pedagógicas. Artigo elaborado em 2007, não publicado. UNESP/ Araraquara. _____________. As pedagogias do “aprender a aprender” e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento. Revista Brasileira de Educação, n.18, p. 35-40, 2001. 11


Pedagogias não-críticas e as influências (neo)liberais: escola nova, tecnicismo e pedagogias do aprender a aprender em aquiescência com o fim da transmissão do conhecimento.. Carderno Sala de Aula, Parintins-AM, v. 1, n.2, p. 23-36, 2012. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores Associados, 2005. _____________. Escola e Democracia. São Paulo: Cortez & Autores Associados, 1989. MARX. Karl. Introdução à uma crítica da economia política. In: MARX. Karl, A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1965a. ____________. A ideologia alemã. Rio de Janeiro: Zahar, 1965b.

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