A sociedade capitalista e a educação do deficiente (artigo2)

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A Sociedade Capitalista e a Inclusão/ Exclusão. Saulo Rodrigues de Carvalho1 Lígia Márcia Martins2

Neste texto colocaremos em questão a natureza da sociedade capitalista em relação ao ideal de inclusão social nela proposto. Para além de questões morais a respeito do assunto, levantaremos indagações que entrecruzam a estrutura dessa sociedade e as reais possibilidades de inclusão social de pessoas com necessidades especiais de distintas origens, em especial, por meio da educação escolar. Nossa idéia central é a de que a natureza da sociedade capitalista não comporta, a rigor, um modelo de inclusão social, posto fundamentar-se no trabalho assalariado, ou seja, sob a exploração do trabalho humano. Ao considerarmos o trabalho como categoria fundante do mundo dos homens, como assegura Lukács, compreenderemos que todo fenômeno social, direta ou indiretamente, conjetura o trabalho com todas as suas implicações ontológicas. Desse modo buscaremos identificar na estrutura da sociedade os elementos determinantes que reproduzem as relações de exclusão – próprias do modelo produtivo do capital – para a superestrutura social. Neste caminho, para alcançar o objetivo geral proposto, recorremos aos pressupostos teóricos do materialismo-histórico-dialético, a partir dos quais analisaremos os elementos ontológico-históricos da sociedade capitalista, expressos, na propriedade privada, no trabalho alienado, na divisão das classes sociais e nas relações sociais fetichizadas.

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Mestrando do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciencias e Letras da UNESP/ Araraquara -SP. Pedagogo, Professor da Rede de Educação Pública Estadual de São Paulo. Email:saulorc1982@hotmail.com 2

Doutora em Educação, professora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP/Bauru-SP e do Programa de Pós-graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências em Letras da UNESP de Araraquara – SP.


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A Produção capitalista e a produção da exclusão/alienação O fim da Idade Média é marcado pelo surgimento de novas forças econômicas que lutavam pelo poder político da sociedade rivalizando com o império e o papado, que viram os alicerces de sua hegemonia ruírem. Essas forças econômicas traziam consigo o modelo de produção capitalista baseado na propriedade privada dos meios de produção e propriedade intelectual, e na liberdade de contrato sobre estes bens (livre-mercado), que superava o modelo feudal que regia a sociedade medieval. Segundo Beer (2006): O aparecimento constante de novas cidades, o aumento crescente da população e o desenvolvimento do comércio e da indústria deram origem a violentos antagonismos entre a burguesia e a aristocracia feudal. A nova forma de produção, criada pelas ghildes e pelas corporações artesãs, era intoleranvelmente entravada pelo sistema feudal. Não se podia desenvolver dentro dos limites da velha sociedade. A nova economia trouxe consigo a necessidade da livre locomoção popular. As novas relações sociais reclamavam a mais ampla liberdade de comércio, o direito de cada qual se dedicar ao ofício que lhe parecesse melhor e de alugar a sua força de trabalho ao proprietário de qualquer empresa de produção. (p. 231)

Nasce assim a sociedade moderna caracterizada pelo desenvolvimento do capitalismo como sistema de produção social e da burguesia como classe privilegiada pelo novo sistema econômico. O modelo capitalista, impulsionado pelos ideais iluministas e liberais, constituiu uma nova moral social. A moral burguesa. Esta, caracterizada pela defesa da ciência e da razão como formas de explicar o universo (iluminismo), e pela defesa intransigente da maximização das liberdades individuais, liberdade de expressão e livre concorrência econômica (liberalismo). A classe burguesa, outrora, revolucionária torna-se conservadora e reacionária, buscando assegurar os privilégios conquistados com as transformações políticas e econômicas da sociedade. Fundamentada sob a base do trabalho assalariado, a classe detentora dos meios de produção, é também a classe de ideologia dominante. Em seus pilares destaca-se a competitividade, o direito à livre iniciativa e o forte apelo a


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meritocracia. Mas o que caracteriza a burguesia, de acordo com Michel Pinçon e Monique Pinçon-Charlot é que: Mais do que qualquer outra classe, ela possui uma alta consciência de seus interesses e manifesta uma intensa mobilização, ao mesmo tempo individual e coletiva, visando a garantir sua realização e, por meio dela, a perpetuação de sua situação dominante. (Le Monde diplomatique, julho 2000).

Desse ponto de vista temos uma sociedade moldada por uma mentalidade produtiva. O “chavão” do liberalismo “laissez faire, laissez aller, laissez passer“, que significa literalmente "deixai fazer, deixai ir, deixai passar" se faz presente nesta sociedade. No entanto, essa produtividade é caracterizada pela extração cada vez maior e mais eficiente da “Mais- valia”. A Mais-valia foi denominada por Karl Marx (2006) como a diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao trabalhador, que seria a base da exploração no sistema capitalista. Ao comprar a força de trabalho do operário e ao pagar o seu valor, o capitalista adquire, como qualquer outro comprador, o direito de consumir ou usar a mercadoria que comprou. A força de trabalho de um homem é consumida, ou usada, fazendo-o trabalhar, assim como se consome ou se usa uma máquina fazendo-a funcionar. Portanto, ao comprar o valor diário, ou semanal, da força de trabalho do operário, o capitalista adquire o direito de servir-se dela ou de fazê-la funcionar durante todo o dia ou toda a semana. [...] como vendeu sua sua força de trabalho ao capitalista, todo o valor ou todo produto por ele criado [pelo operário] pertence ao capitalista, que é dono, por tempo indeterminado, de sua força de trabalho. ( p.113-114)

Nesse sentido, as relações humanas transformam-se em relações entre mercadorias. Por essa via são excluídos

todos os indivíduos que não possuem

condições ideais para a participação na produção e no mercado consumidor. Os ideais burgueses se mostraram, cada vez mais, defensores da liberdade individual apenas de um pequeno grupo de pessoas e ao mesmo tempo, na prática, o liberalismo e o capitalismo levaram ao mais alto grau a desumanização da pessoas. Tal como analisado por Duarte (2004)


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Numa sociedade de classes como ocorre no capitalismo, as relações entre a vida individual e a cultura acumulada pelo gênero humano tornam-se particularmente complexas e contraditórias em consequência da propriedade privada dos meios de produção, da exploração da força de trabalho pelo capital e de consequante divisão social do trabalho. Tanto ao longo da vida de cada indivíduo como ao longo da história da humanidade, a humanização e a alienação ocorrem muitas vezes de forma simultânea e no interior da mesma processualidade sóciocultural (p.231)

E esta sociedade tem demonstrado históricamente sua incapacidade para efetivar a igualdade, já que obriga os homens a entrar num conflito constante pela sobrevivência. A supremacia de uma classe sobre a outra pressupõe que haja a desigualdade como combustível para o desenvolvimento do tecido social. Para o capitalismo, liberdade e igualdade se expressam pela capacidade que os indivíduos têm de participar do mercado. A liberdade vista a apartir desse ângulo, não é nada mais que a livre concorrência entre mercadorias. Se, portanto, a relação entre os homens é considerada uma relação fetichizada entre mercadorias, a liberdade dos indivíduos nada mais é do que a liberdade da circulação de mercadorias. Referindo-se ao fenõmeno da fetichização, Duarte (2004) afirma: O fetichismo da mercadoria não é um fetiche religioso, mas sim um fetiche que contém uma naturalização de algo que é social. Um produto das relações humanas é visto pelos próprios seres humanos como se fosse comandado por forças da natureza, como se tivesse vida própria. Trata-se do que poderia ser chamado de fetiche secularizado. A secularização dos fetiches é um fenômeno da sociedade capitalista (p.11)


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Diante desse cenário podemos, então, nos perguntar qual o espaço social disponibilizado às pessoas que possuem necessidades especiais, sejam elas de origem orgânica, psíquica ou social. Em face da estreita relação entre o ser e produzir, aqueles que tenham a sua capacidade de produção reduzida terão menor, ou quase nenhuma prioridade na escala social. Quanto a isso, Friedman (1985) deixa bem claro: O principio ético que justificaria diretamente a distribuição de renda numa sociedade de mercado livre seria “a cada um de acordo com o que ele e seus instrumentos de trabalho produzem”. (p.147)

Desse modo, se o indivíduo não tem capacidade de produzir, ou tem essa capacidade reduzida, a ele não será dado nada, ou será apenas reservado aquilo que suas parcas forças de trabalho conseguiram produzir. A não ser que ele pertença à classe burguesa e tenha outros indivíduos produzindo por ele, este indivíduo terá sua participação limitada, ou estará simplesmente excluído da sociedade de mercado. A liberdade e a igualdade numa sociedade de capitalismo competitivo são reconhecidas apenas àqueles indivíduos considerados

responsáveis. Segundo

Friedmam (id) A liberdade é um objetivo válido somente para indivíduos responsáveis. Não acreditamos em liberdade para crianças e insanos. A necessidade de traçar uma linha entre indivíduos responsáveis e outros é inevitável; contudo, significa que existe uma ambigüidade essencial em nosso objetivo último de liberdade. O paternalismo é inevitável para aqueles que definimos como irresponsáveis. (p.38)

Como é possível observar, a liberdade é negada justamente àqueles que têm sua capacidade de produção e consumo reduzida, para os quais, fica reservado o paternalismo, ou seja, a caridade por meio de instituições, estatais ou privadas. Ainda segundo Friedmam (ibid) O caso mais claro é talvez dos insanos. Estamos dispostos a não permitir que desfrutem de liberdade, mas, ao mesmo tempo, não podemos permitir que os


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eliminem. Seria ótimo se pudéssemos contar com a atividade voluntária de indivíduos para alojar e cuidar dos insanos. Mas acho que não devemos afastar a possibilidade de que tais atividades filantrópicas sejam inadequadas, quanto menos por causa do efeito lateral envolvido no fato de eu me beneficiar se outro homem contribuir para o cuiadado dos insanos. Por essa razão, podemos achar mais conveniente deixar que sejam cuidados pelo governo.

É nesse intuito que grandes instituições passam a ter a responsabilidade sobre a vida, instrução e educação de pessoas deficientes, atendo-se especialmente ao atendimento e internação de deficientes mentais. Contudo, um grande contingente de indivíduos, particularmente composto por aqueles que não conseguem atender as exigências da escola, e/ou que não conseguem se manter no sistema produtivo passam a ser considerados também como deficientes. A educação para estes indivíduos começa e se generalizar no fim do século XIX, com o objetivo de supostamente atender as necessidades especiais. Tendo em vista o favorecimento da integração social posterior, a maioria dessas pessoas passa a ser relegada a instituições que irão treiná-los para trabalhos de baixa complexidade e remuneração a título dessa aparente inserção social. A sociedade capitalista do século XX, porém passa a introduzir novos nichos de mercado, a preleção do capital torna-se hegemônica e apodera-se de novos trabalhadores e novos consumidores, aludindo de maneira camuflada as minorias à inserção para o mercado. É nesse contexto que a condição pós-moderna cria possibilidades de inclusão dos excluídos. E que as políticas contemporâneas sugerem a prática da inclusão social. Segundo Moreira, “(...) a modernidade, com a sua busca de um código mestre, produz excluídos, enquanto a pós-modernidade, na aceitação da diferença, busca a inclusão” (Moreira, 2003, p. 52). Se, pois, não temos mais um único ideal de subjetividade, por que então não incluir a deficiência? Mas que preço se paga para essa inclusão? Com efeito, a lógica suprema da pósmodernidade é a lógica do mercado, que quer aproveitar tudo e todos para se garantir a produção e o consumo, inclusive criando leis de inclusão das minorias no mercado de trabalho. (OLIVEIRA et. Al. 2006, p.82)


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A inclusão de quem tem qualquer défece ao livre mercado consumidor, não elimina a questão da desigualdade, já que o mercado capitalista a pressupõe como um elemento necessário à sua constituição. No cerne das relações nada foi alterado. Entre os próprios capitalistas, a idéia de criação de leis que permitam que as minorias sociais possam participar das relações econômicas e do mercado de trabalho não é tão bem aceita. Entre os liberais mais radicais tal interferência legal é uma afronta a liberdade individual. Conforme Friedmam (id) Comissões que estudam as práticas discriminatórias na contratação de serviços por motivos de raça, cor ou religião foram criadas em numerosos estados com a tarefa de evitar a “discriminação”. A existência dessas comissões constitui clara interferência na liberdade individual de estabelecer contratos de trabalho com quem quer que seja. (p.103)

Friedmam (id.) também defende a liberdade de o empregador contratar o indivíduo que melhor o satisfazer mesmo que isso expresse uma inúmera relação de ranços e preconceitos, contanto que não o prejudique economicamente. Dessa forma, descreve: Considerem, por exemplo, a situação de uma loja situada num bairro habitado por pessoas que têm forte aversão a serem servidas por negros. Suponhamos que uma destas lojas tenha vaga para um empregado, e o primeiro candidato a se apresentar seja negro e preencha todas as exigências estabelecidas pelo empregador. Suponhamos ainda que, como conseqüência da lei em questão, a loja seja obrigada a contratá-lo. O efeito de tal ação será a redução do movimento de negócios e a imposição de prejuízo ao proprietário. Se a preferência do bairro é realmente firme, poderá levar ao fechamento da loja. Quando o proprietário de uma loja contrata empregados brancos em vez de negros, no caso de não existir uma lei a respeito, ele pode não estar manifestando preferência ou preconceito ou gosto próprios. Pode estar simplesmente transmitindo os gostos da comunidade a que serve. Está na realidade oferecendo aos consumidores os serviços que estes desejam consumir. (p.103-104)

No exemplo de Friedmam podemos facilmente trocar o adjetivo negros por deficientes. Ali, podemos verificar claramente que a preocupação do capital com a liberdade e igualdade não está relacionada com a relação social entre os seres humanos, mas com a mera relação econômica.


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Neste sentido qualquer tentativa de inclusão através do sistema capitalista, seja por meio de uma educação inclusiva, seja por meio de leis que obriguem a inclusão ao mercado de trabalho, está fadada ao fracasso. Isso, porque a natureza do capitalismo não comporta uma sociedade igualitária, sendo assim, a inclusão de uns poucos não prevê a inclusão de todos ao sistema, e mesmo tal inclusão é restrita a alguns setores e produtos da sociedade. Tecidas estas considerações gerais entendemos que duas observações são, ainda, importantes. A primeira refer-se a expressão exclusão, pois efetivamente, não exiset ninguém excluído, isto é, que exista fora da sociedade e que necessite ser nela incluído. O que se convencionou chamar de exclusão, outra coisa não é, senão, mais um dos reflexos da alienação dos indivíduos em realão ao patrimônio humanogenérico3. Nessa direção, qualquer análise que pretenda superar a artificialidade presente nos ideários inclusivos não pode preterir a análise das bases econõmicas que engendram a alienação, abortando os indivíduos do seu pleno processo de humanização. Não podemos perder de vista que é no processo ativo e objetivo que vincula o homem à realidade social que ele supera seus limites e desenvolve suas potencialidades e capacidades, apropriando-se das conquistas humano-genéricas para, de fato, alçar a condição de e para ser humano. A segunda observação, em intima relação com a primeira, diz respeito à naturalização que cerca os fenômenos da exclusão/alienação em geral, mas em especial, aqueles referentes às anomalias físicas e mentais. Essa naturalização induzindo visões reducionistas, preterem a análise das condições excludentes como síntese de multiplas determinações expressa, fundamentalmente, no alijamento dos indivíduos em relação aos direitos sociais básicos dentre os quais se

destacam a

saúde e a educação. Urge que analisemos as condições geradoras da exclusão numa via de mão dupla: por um lado, a precariedade ou inoperância dos serviços de atenção à saúde e educação destinados à classe trabalhadora corroboram para a produção de 3

Por patrimônio humano-genérico concebemos o produto do trabalho material e intelectual dos homens realizado ao longo da história.


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“necessidades especiais”, que, por outro lado, criam as “necessidades de inclusão”. Como resultado, ficamos diante de uma “paradoxal exclusão includente” (Saviani, 2007, p.4400). Tal paradoxo encerra mais uma contradição do modelo capitalista, que ao nosso ver, nele não se resolve. Assim sendo, cosideramos que as tentaivas de inclusão no bojo

desta organização social culminam em processos a meia, emso porque, a

inclusão de uns poucos a um pouco não prevê a inclusão de todos a tudo!

Educação Inclusiva: fato ou retórica? Definido como grupo “à margem” da sociedade, as pessoas com défeces sofrem as conseqüências por atitudes de discriminação e segregação produzidas pelas sociedades. Na sociedade capitalista brasileira a realidade dessas pessoas não difere muito da condição de exclusão mundial, contudo, o agravante da pobreza deixou esse grupo, por muito tempo, em um completo esquecimento pelo poder público. O Estado brasileiro, seguindo a lógica liberal, assumiu uma atitude caritativa e voluntarista ante as questões levantadas em relação as pessoas com deficiência. Somente à partir da década de 1980, quando uma hecatombe de movimentos sociais impulsionados pela resolução da Assembléia geral da ONU, que declarou 1981 como o "Ano Internacional das Pessoas Deficientes", mudanças significativas começaram a ser realizadas por pressão da sociedade civil. Até 1986, entidades de deficientes estiveram reunidas com o objetivo de organizar uma proposta que envolvesse as pessoas com deficiência para a elaboração de um documento a ser apresentado às comissões, para ser arrolado à nova Constituição Federal. Dentre essas entidades podemos citar a FEBEC- Federação Brasileira de Entidades de Cegos, a ONEDEF – Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, a FENEIS – Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (NEVES Acesso em: 9 set 2007) O documento entregue, com quatorze itens apontados, foi acatado em sua quase totalidade e seu conteúdo passou a fazer parte da Constituição Federal de 1988.


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Apesar dessa inclusão no texto constitucional, a grande maioria dos itens dependia de regulamentação sendo para isso, necessária força dos movimentos organizados, cujo poder de pressão e mobilização impulsionou o seu processo. Como expressão desses movimentos, a Constituição de 1988 garantiu, em seu Artigo 206, a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola: a educação como direito de todos é dever do Estado e da família (Art. 205) e deve estender-se também ao atendimento educacional especializado, quer dizer, aos deficientes (Art. 208, III), preferencialmente na rede regular de ensino. A nova Constituição rompeu com o modelo assistencialista predominante, pois embora a Convenção 159 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) 4 já existisse; preconizando a plena integração das pessoas com deficiência na vida social; nosso país ainda não havia disponibilizado qualquer ferramenta jurídica hábil nessa direção. Em 1986 o Decreto nº 9.3841/86 tinha instituído a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Deficiente (CORDE), órgão responsável pela gestão de políticas públicas, voltadas para a integração. Seu principal objetivo é garantir que o Ministério Público Federal e Estadual defenda em todas as instâncias a pessoa com deficiência. Desse modo, a regulamentação pelo Decreto nº 3.298 da Lei nº 7.853/89, que dispõe sobre o apoio a essas pessoas, dez anos depois é um fato historicamente relevante, possibilitando a concretização de princípios constitucionais. No final da década de 80, foram criados em todo o país vários órgãos voltados para sua integração, tendo como eixo principal a defesa dos seus direitos e promoção da cidadania. É contudo, nos meados da década de 1990, que se inicia com maior relevância a discussão sobre a inclusão social no país, através da educação. Assim reafirmando as declarações de Jomtiem5 e Salamanca6, o Governo brasileiro atende as orientações

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Conferência da OIT realizada em Genebra, no dia 1° de junho de 1983. O texto da convenção previa uma política de reabilitação e inclusão ao mercado de trabalho, para pessoas com deficiência. Ratificava que todo o país membro da organização deveria dispor em suas leis de dispositivos que garantissem a “plena participação” de pessoas com deficiência na vida social. 5

Conferência Mundial sobre Educação Para Todos, realizada em Jomtien na Tailândia de 5 a 9 de março de 1990, financiado pela UNESCO UNICEF, PNUD e Banco Mundial. 6

Conferencia Mundial de Educação Especial, realizada em Salamanca na Espanha entre 7 e 10 de junho de 1994.


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dos organismos internacionais visando erradicar o analfabetismo e universalizar o ensino em resposta aos desafios do mercado mundial. (FRIGOTTO & CIAVATTA 2003) Segue-se, portanto, uma política pública de Estado que visa à publicização dos serviços destinados à educação especial, com o viés neoliberal de “correção” das desigualdades sociais através do crescimento econômico do país. A aplicação de medidas de inclusão social acompanha, no entanto, as necessidades do mercado e atende as suas leis. Nessa perspectiva o país aprova em 03 de julho de 2001 o parecer nº 17/2001, da Câmara de Educação básica, que dá as diretrizes para a educação especial neste seguimento educacional. Dispõem como ponto de partida a necessidade de regulamentação das ações referentes aos alunos com necessidades educacionais especiais. Ao dispor sobre as diretrizes do país para a educação especial,o referido parecer torna-se base para a implementação de políticas de educação especial. Por essa via, a inclusão escolar institui-se como meta, em consonância aos delineamentos da ”Educação para todos”. Tais diretrizes apresentam os princípios da inclusão das pessoas com necessidades educacionais especiais e uma discussão sobre o significado de não mais integrar o deficiente, mas projetar ações que viabilizem a sua inclusão, entendida como acesso aos direitos e representativa dos princípios de igualdade de oportunidades e valorização da diversidade. O texto do documento apresenta uma profunda conformidade com as declarações dos órgãos internacionais do começo da década de 1990. Os termos como “igualdade de oportunidades”, “valorização da diversidade”, “acesso aos bens e serviços”, presentes em Jomtien, Salamanca e nos documentos da UNESCO, UNICEF, Banco Mundial, FMI, entre outros, aqui ganham um amplo espaço. Alinhado à política dessas organizações os fundamentos do nosso parecer, subsidiado pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, nos deixa algumas pistas do que se tratam tais políticas de inclusão. De acordo com o Art. 227: II - § 1º - Criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o


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treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos. § 2º - A lei disporá normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. (grifo nosso)

A partir da leitura do documento, dois termos nos chamam a atenção: o “treinamento” para o trabalho e a “disposição” de normas para a adequação de prédios e transporte público. No primeiro caso o significado da palavra treinamento tem o sentido restrito de adestrar, habilitar o indivíduo para determinada atividade e vem de encontro ao panorama histórico exposto por nó s, acerca do lugar destinado às pessoas com deficiência na sociedade produtiva. Se compreendermos a educação como um processo amplo de humanização, veremos que o termo “treinar”, em questão, não comporta tal sentido universalizante do ato de educar. No segundo caso, a “disposição” das normas que visam a acessibilidade, os fatos nos mostram os limites ainda presentes para a efetivação das mesmas. Entre “dispor” e “realizar” existe uma diferença. Aparentemente o Estado se predispõe a organizar normas para a adaptação das construções, áreas de circulação e dos transportes públicos às necessidades de pessoas com deficiente. Contudo, em nenhum momento se compromete a realizar tais adequações. Dessa forma e invariavelmente, reafirma a lógica do modelo neoliberal e das implicações do Estado Mínimo 7, que conforme Frigotto & Ciavatta (2003), assume um papel de regulador e fiscalizador de políticas públicas de natureza instrumental, subordinadas à lógica do mercado. Contudo, não poderíamos negar que tal documento representa um avanço qualitativo na esteira das conquistas da Educação Especial no Brasil, saindo de uma quase completa inexistência de atendimento de qualquer tipo à proposição e “efetivação” de políticas de integração social. Entretanto, o amplo debate e a instituição de leis para garantir a inclusão escolar não conseguiu alterar significativamente a situação das minorias atípicas no país. Podemos ter um panorama da situação a partir de uma rápida reflexão acerca das informações apresentadas pelo Censo 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e 7

Segundo Frigotto e Ciavatta (2003), o Estado Mínimo assume uma característica cada vez mais reguladora e ficalizadora, do que executiva na sociedade.


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Estatística (IBGE). Segundo os dados, cerca de 14,5% da população brasileira apresentavam algum tipo de incapacidade ou deficiência. Se este percentual estiver correto, levando em conta que no ano de 2000 atingimos aproximadamente os 170 milhões de habitantes, teremos cerca de 24,65 milhões de pessoas com necessidades especiais. De acordo com a Sinopse Estatística da Educação Básica/Censo Escolar de 2000, do MEC/INEP, havia 300.520 alunos matriculados em estabelecimentos escolares. Se tomarmos estes dados como referência, os pouco mais de 300 mil alunos que se encontravam matriculados, podem ser considerados como uma ínfima parte desta população. O que será que deu errado? Por que a mudança de mentalidade em relação ao deficiente não foi capaz de garantir o pleno acesso à educação? Mesmo com a mobilização da sociedade civil e a abertura do Estado brasileiro em discutir e implantar leis e medidas para a inclusão da pessoa com deficiência na sociedade, os dados demonstram haver um grande número de pessoas ainda sem acesso à educação. Quase doze anos após a adoção da constituição federal o governo demonstrou muita debilidade na implementação das almejadas medidas inclusivas, vide os escassos investimentos destinados à estrutura e infra-estrutura das escolas do país e sob tais condições, o saldo advindo parece não ser o de, realmente, promover a inclusão dos excluídos, haja vista que sequer foi vencido o desafio de não se excluir os excluídos. Como afirma Souza (s.d): Todas as alterações são proclamadas como saltos qualitativos quanto ao que se concebe por deficiência, ao que se pensa e se faz na educação especial, quanto ao tipo de relação possível a partir de uma educação inclusiva. Há, no entanto, elementos que nos dizem que as alterações estruturais não são, na mesma proporção, modificação de concepções.

Como podemos observar, existe uma ação no sentido de provocar uma mudança de caráter moral e pedagógico. Porém, uma profunda transformação no seio da sociedade e no sistema escolar, que exige uma ampla reorganização dos espaços físicos e das instituições, concentrando uma série de esforços econômicos e políticos, ainda não nos foi apresentada.


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Considerações finais

Desde meados da década de 90, vemos em cena uma ampla discussão sobre inclusão social no país, particularmente por meio da educação escolar e da inserção no mercado de trabalho. Um debate em aberto que tem de um lado, a comunidade de pessoas com necessidades especiais reivindicando um atendimento público que seja cada vez mais igualitário e justo, e do outro lado, um modelo de organização social sob a égide do estado mínimo. Não discordamos que o país deu um salto qualitativo ao normatizar os direitos destas pessoas, especialmente no âmbito da educação escolar ao implementar políticas de educação especial orientadas pela meta da inclusão e da ”educação para todos”. Entretanto, a sociedade capitalista nos mostra, sem tréguas, a sua incapacidade para assegurar aos indivíduos um lugar de igualdade, ampliando a olhos vistos inúmeras formas de exclusão/alienação. Os documentos e os defensores da inclusão insistem em proclamar a criação de uma nova mentalidade que tememos estar longe de ser alcançada. Até o presente, em nada se alterou o padrão burguês de normalidade que continua a ser o indivíduo competente, competitivo, hábil e empreendedor. Outrossim, é previsível que em uma sociedade na qual as condições de vida revelam um quadro contraditório de máxima riqueza e máxima miserabilidade, as crenças na ascensão social e nas conquistas pelo mérito pessoal são necessariamente mantidas. Nesse sentido as dificuldades em relação à inclusão ultrapassam a esfera da deficiência para encontrar respostas no próprio modelo de sociedade que se estabelece. Ainda que se busque a inclusão por meio de leis e mecanismos que insiram o deficiente no livre mercado e na escola, sua condição de desigualdade o acompanhará dentro desses sistemas, uma vez que real e concretamente inexistem as condições objetivas para a almejada inclusão social.


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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