Especial Subversa e Julho Literário V.13 nº5

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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 13 | n.º 05

© originalmente publicado em 15 de janeiro de 2021 sob o título de Subversa

Edição e Revisão: Tânia Ardito, Fabíola Weykamp, Dan Porto

Ilustração da capa: Américo Joaquim

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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Índice

Editorial |4 As vozes do Projeto Julho Literário | Dan Porto| 5 Céu particular | Alvaro Posselt| 6 AQUI | Ângela Vilma|7 Deslocar | Danilo Mendonça Martinho|10 Canto do canto e solto a voz do centro de um coração roraimado | elimacuxi|12 Lições | Felipe Fleury|15 Torquato | Fernanda Paz|16 é como uma canção nos lábios | Pedro Belo Clara|18 Lição encontrada sob a pedra | Rodolfo Minari |20 Linhagem | Thássio Ferreira|24 [Entrevista -Ângela Vilma] “Sou uma desajustada no mundo. Cheguei até aqui por conta da Literatura. Sem ela não teria vingado” | por Dan Porto|29 [Entrevista- Itamar Vieira Junior] Somos privilegiados: presenciamos o nascer de um clássico | por Dan Porto e Tânia Ardito|32

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Editorial

O ano da Subversa inicia com um laço bem escolhido e bem-feito com o projeto Julho Literário, tocado por Dan Porto, para quem somos uma

espécie

simultaneamente.

de

hospedagem,

Desta

mas

também

vez, desde os últimos meses

hóspedes, de 2020,

trabalhamos em conjunto para formar este número composto por nove autores de diversos recantos do Brasil, passando evidentemente por baixo das águas – ou por cima, como o leitor preferir – até alcançar também Portugal. A coedição entre Subversa e Julho Literário traz para cá o movimento que a literatura promove entre os atos de continuar e romper com a tradição ou de continuar/romper com os ares do futuro. Nós, editoras da Subversa, assim como Dan Porto, que publicou em 2016, e, também, o poeta Pedro Belo Clara, que publica uma coluna todos os meses por aqui, fazem a recepção dos autores estreantes nesta página, materializando o espaço de alteridade e convívio de diferenças, também próprios ao fazer artístico e editorial. As entrevistas de Itamar Vieira Jr. e de Ângela Vilma abrem ao leitor suas perspectivas autorais sobre o processo infindável de criar e publicar. Convidamos a nossos leitores contumazes a embaralhar (o quanto lhe baste) os nomes dos meses do ano, já que afinal não é sempre que temos a oportunidade de ler o Julho em janeiro, pelos da Subversa, que também olha com os olhos do Julho, visto pela Subversa, e assim por diante. Desejamos uma boa leitura. Os editores, Tânia Ardito Fabíola Weykamp Morgana Rech Dan Porto 4


As vozes do Projeto Julho Literário | Dan Porto

Incentivar a leitura: o objetivo principal do Projeto Julho Literário. Em 2020, a segunda edição exigia, como diz Eliane Brum: “deslocarmos o centro do mundo”. Em parceria com o Blog Best Não Tão Seller, ampliamos o projeto para o formato audiovisual e buscamos autoras e autores

contemporâneos

e

independentes.

Foi

uma

jornada

maravilhosa, para a qual contamos com a ajuda de amigas e amigos espalhados pelo país. As descobertas acarretaram gratas surpresas: coletivos organizados e atuantes, além de artistas refinados nas suas diversas vozes, estilos e gêneros. Durante o mês de julho de 2020, pelo YouTube do Dan Porto, lemos e indicamos vinte autoras e autores de doze estados do Brasil, mais Portugal, essa nossa ponte sempre estendida sobre a Língua Portuguesa. À época, eu dizia: “esta edição do Julho Literário será um espaço em deslocamento. […] se permitam descobrir escritoras e escritores atuais, que estão narrando histórias de suas aldeias, histórias universais por conta da potência. A gente precisa encontrar nossa voz dentro de nós mesmos”. E sustento, sempre foi tempo, mas agora é mais porque é a nossa vez, a nossa voz, a nossa hora de manter acesa a arte, a literatura, as periferias, as resistências, os afetos. Por agora, chegamos nesta edição especial com artistas do Brasil e de Portugal, neste espaço que a Subversa, muito gentilmente, nos cedeu. Que apreciem e levem adiante. É preciso seguir. A gente se vê por aí!

Dan Porto – RS/PR – @danportoeu

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Céu particular | Alvaro Posselt

Uma estrela do mar na beira da praia. A filha questiona a mãe, que diz ser uma estrela que se desprendeu lá do alto e ficou daquele tamanho. Procuram e acham outras. Em casa, a menininha monta o próprio céu na parede da garagem. Aplausos dos adultos. O sorriso da criança é mais amplo do que o infinito que ela criou no reboco. A noite é clara. Novamente as duas passeiam na beira da praia. Mais algumas estrelas para completar aquele céu. A mãe procura e procura. Só algumas conchinhas. A menina, estática, olha para aquele enorme infinito e compara. Nem presta atenção nos lamentos da mãe e nas pequenas pérolas do céu. Só espera que aquela bolona iluminada caia para que ela complete seu céu particular.

Alvaro Posselt | é poeta curitibano. Tem 9 livros publicados. Seus haicais aparecem na cidade em vitrais instalados pela ACBG. Também circulam impressos em copinhos de café, embalagens de pão e sorvete. De forma voluntária, faz oficinas de haicai em escolas públicas. Transformou sua casa em espaço cultural, a Casa Posselt, onde recebe alunos para oficinas. 6


AQUI | Ângela Vilma

Não sei quem me deixou aqui onde não há água nem comida nem afeto.

Pergunto ao mundo: meu coração sabia de tudo antes de entrar no navio?

Meu coração foi auscultado e visto do grande telescópio? Caso tenha sido, quem o conteve

de sair fugindo?

Quem o amarrou à proa, como se faziam aos escravos?

Alguém à noite ouviu seu canto desesperado? Seu banzo, sua febre, sua doença santificada?

Meu coração quis outras plagas,

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mas não essas, de água contaminada e pessoas com branco pálido.

Meu coração quer a procissão dos anjos e braços, levando nos ombros os santos com seus ares indiferentes de festa.

Mas no exílio não há estética, há ramerrão, e esse mundo, tenho certeza, é velho e estúpido, sem esperança.

Nunca dá, por exemplo, para sustentar uma prosa em verso com os transeuntes que param diante do sinal aberto.

Todos não estão preocupados com as máquinas que nos esperam: será que elas, um dia mortas, ainda enforcarão as crianças?

Sou muito mais o nonsense para o meu coração enganado, levado num navio, às cegas,

aprisionado.

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Aqui não tem nada: comida, afeto, respeito.

Me deixem sair.

Ângela Vilma nasceu em Andaraí-BA. Publicou, entre outros, Poemas para Antonio (P55, 2010) e A solidão mais funda (Mondrongo, 2016). Participou de algumas antologias, entre elas, Concerto lírico a quinze vozes – uma coletânea de novos poetas da Bahia (Aboio livre edições, 2004) e Mulheres poetas e baianas (Caramurê, 2018). Escreve no Facebook e no Instagram.

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Deslocar | Danilo Mendonça Martinho

Para mim tudo era passageiro, as vidas que cruzava, os prédios e casas que ficavam para trás. Reconhecia seus rostos, inventava histórias, imaginava encontros. Ilusões. Como tudo efêmero deste lugar, basta dobrar a esquina para se esquecer. Vi o calor castigar, a chuva escorrer por essas janelas que recortam o mundo. Aqui dentro éramos um amontoado, como os grãos de uma safra e, embora do mesmo tipo, nossos destinos e caminhos não poderiam ser mais diferentes. É engraçado que o animal humano seja aquele com a linguagem mais desenvolvida e ainda assim é o animal que menos a usa. Passei a maior parte da minha vida aqui, em trânsito. Indo de um lugar ao outro, coincidindo com outras pessoas mas nunca nada além do acaso. Quantas vezes aqui não pensei no interior de lugar nenhum. Onde o mundo é só até onde a vista alcança, onde tudo é controlável, onde o futuro não promete, nem decepciona; onde a sociedade ainda não apagou a natureza. Quando as pessoas vêm para as capitais muitas vezes se sentem perdidas, oprimidas, maravilhadas. Mas não há motivo para tanto. Os que aqui vivem apenas fingem saber a direção. O tempo desfaz o concreto. E a beleza está nas fortes e sobreviventes árvores que destoam no horizonte que na verdade esconde o horizonte. Acho que é mal humano sempre desejar outra vida que não a do seu caminho. Mas não reclamo, apenas constato. São os anos de experiência que os ônibus me deram. Este tempo de olhar para fora, de olhar para os outros, de sentir o que parece rotina mas na verdade é vida. É interessante perceber que a vida não está apenas no nosso olhar sobre o mundo. Ainda assim, tudo passou. As paisagens que reconheço, mas não reparo. As pessoas que se repetem e sempre partem. Independente da nossa consciência é preciso chegar na próxima estação.

Pois agora veio essa nova era que isolou, sem dúvida, nossos corpos, mas tenho certeza de que a cada dia mais percebemos que isolaram nossas almas. Dentro do meu carro tudo passa ainda mais rápido e com o olhar focado no caminho todo resto fica mais irrelevante. Nem mesmo a minha preciosa chuva tem tempo de escorrer pelo vidro, de me sussurrar um verso. Odiamos semáforos, engarrafamento e qualquer outra coisa que nos faça parar no tempo, nos faça perceber nossa realidade, que estenda a mão pedindo ajuda. Nesse ar-condicionado já não entendo mais o calor, tudo tem sabor artificial. Só há o meu caminho, ninguém que desce no mesmo ponto, que trabalha no mesmo lugar. Só os meus próprios pensamentos. Nenhuma perspectiva diferente, nenhuma anedota para contar. Meu trânsito virou um lugar perigoso. Muita raiva, muita briga, muita inconformação, muita coisa errada, muita irritação. 10


Quem diria, o engarrafamento é o verdadeiro câncer dessa sociedade. Não olhamos na cara de ninguém, só precisamos da nossa própria razão, indiferentes, solitários, arrogantes. Todo mundo nessa cidade tem um “eu motorista” que se olhar de perto, ninguém deveria se orgulhar. O som desse lugar é buzina, escapamento, sirene, motor. Onde se acha a palavra nisso tudo? Que voz pode ser ouvida? E qual diz a verdade? Na rádio em que a gente liga buscamos uma música conhecida, para distrair a cabeça, esquecer nossa condição. Desligar-se é a melhor maneira de dirigir, mas nada nos faz esquecer. Somos animais sensíveis ao contato que reagem a timbres de voz, que se emocionam com os olhos de uma criança. O que a gente vê por esse vidro fumê? O que a gente sente nesse tempo, se não a solidão?

Ah, mas na natureza dessa cidade tem uma garoa fina. Eu aproveitei para não ligar o para-brisa. Quem sabe esses pequenos prismas me façam enxergar melhor. Abro uma fresta do vidro para também te ouvir. Você vem tímida, sem força, discreta. Logo você é foco antes de qualquer depois. É assim que se sobrevive. Não existe nada mais presente na fala de um paulistano do que a sobrevivência. Identificar de onde vem as pessoas não está apenas no jeito que se fala, mas no peso que cada palavra carrega. Aqui sempre temos um leve tom de lamentação. O encontro que não deu tempo, o amigo que não se encontra, tudo que se adia, tudo que te consome. A busca constante por fôlego, o silêncio sem direção. Mas ali espremida antes do ponto final uma esperança, quase tola, e imprescindível. Sinto falta das caminhadas, tinha mais chance de encontrá-la. Ser passageiro faz mais sentido.

Danilo Mendonça Martinho, escritor e poeta desde 2002. Um livro lançado Poeta da Colina – Um romântico no século XXI e participação em diversas outras coletâneas. Atualmente produz conteúdo de prosa e poesia para as redes sociais. Basta procurar por Poeta da Colina.

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Canto do canto e solto a voz do centro de um coração roraimado | elimacuxi

Roraima é nome de monte, montanha antiga em forma de mesa, em volta dela terras planas foram se empestando de gente, mas o Roraima é de antes de gente andar na Terra. E é terra habitada, disputada, amada e desprezada por gente que nela anda. Tomo pra mim a tarefa de falar do sotaque da minha terra. Feito gente que se apropria inapropriadamente do que é de todos: “minha terra”. Essa Roraima, que está na Terra antes dos homens andarem sobre ela e muitos dirão: é distante, é desconhecida. Eu não. Mesmo em São Paulo nascida, digo que Roraima é meu centro, lugar de onde avisto céu e chão. Centro de toda confusão. Voltas no tempo. Makunaima entre irmãos. Eram deuses ancestrais e quando criaram a riqueza dessa terra, já o fizeram derrubando árvores. Wazaká caiu e todos seus frutos se espalharam. E os deuses antigos nem era velhos nem sábios, mas homens guerreiros entre outros homens, vencendo dificuldades comezinhas. Assim me chegam as narrativas que o vento preserva do passado, reverberado na voz das, agora, indígenas vovozinhas. Esses deuses não me espelham. É nelas que me vejo, nas vovós com suas peles vincadas e cabelos longos, as vovozinhas que um dia homens de longe disseram indígenas, as vovozinhas nascidas perto da montanha velha, agora velhas e vincadas, e retas, como ela: montanhas. As vovozinhas que sabem os segredos do barro e das plantas, a quem ensinaram o canto das areruias quando ainda eram moças de pele esticada e cujas vozes não foram ouvidas. Mas hoje essas vozes silenciadas são as mesmas que dão conta de nos contar tanta história. Meus espelhos não são as águas do rio da minha terra: me vejo melhor refletida nas vovós que, um dia, homens de longe disseram indígenas. É nelas que prevejo minha futura memória. E quando chegaram os homens de longe, logo afirmaram que longe era ali. E foi ficando, fincando ideia de lonjura, de sertão, de abestada barbárie que não aproveita riqueza. No tempo em que as vovós não tinham nascido. O monte assistindo a tudo. Gente que trouxe gente, que trouxe vidro, que trouxe roupa. Que trouxe dinheiro e papel. Gente que trouxe dinheiro e papel pra quem não assinava nada e nem usava dinheiro e papel, assinar papel e sair dali de onde estava, “nas lonjuras” 12


pra outra gente fazer dinheiro. Gente que não ouvia o canto do vento soprando fendas nos montes, arribando poeira no campo, ondulando a pele das lagoas, gente que eram reis, que eram “A coroa”, que era gente que não se misturava com essa gente e queria limpar essa terra, queria fazê-la brilhar revirando suas entranhas expostas em ouro. E foi ficando e fincando essa ideia de lonjura e de riqueza escondida na terra e a montanha que já era mesa e já era Roraima antes, quase deixa de ser vista, porque essa ideia de lonjura e riqueza a se explorar era fumaça, não fumaça pra avivar espírito nem fumaça pra fazer roça, fumaça que escondia tudo e entorpece e mata. E sob ela não se via mais nem montanha nem a mata, porque a fumaça das gentes que tinham papel e dinheiro e assinavam tudo, assassinava as coisas trocando seus nomes. Queçoene virou Branco e era longe e era riqueza escondida. Aqui: nem cheia, nem vazante, nem tamanduá, nem jabuti. Na fumaça do desejo vindouro, nem monte verde, nem céu azul, nem homem nem mulher vermelhos: apenas sol e amarelo ouro. O tempo passa, acaricia a montanha, voa alto, cai no chão, feito vento, cruviana. E ouro não se comia e veio mais gente, que trouxe gado e que trouxe cerca e que trouxe pólvora e que trouxe mais papel e mais dinheiro e que sal e que trouxe açúcar, feito de sangue e de suor de preto. Os produtos do tempo nas entranhas da terra, diamante e ouro, foram rasgados por essa gente estranha de longe, que tudo era longe pra essa gente que vinha subindo rio, enfrentando chuva, com suas botinas e suas capas e suas armas e suas coisas de seduzir e sujeitar, essa gente que também vinha pra casar e calar moças, desbotando suas peles e mudando seus nomes: brancas, como o rio. O tempo roça a pele de quem anda pela terra e, na liça, gente não se sente mais se afirma mestiça, e se afirma de fora e se afirma de dentro e gente e gente que se afirma. E a montanha assiste, impávida, ao movimento surdo que ecoa em sotaques que são um: grunhidos de gente que, se afirmando, passa. O monte, velho, vincado e sábio como uma vovozinha, permanece sólido em sua força e graça. Eu sou gente que como toda gente que essa terra abraça, é parasita na pele dessa que eu canto e digo terra minha. Ora tomada da soberba dos deuses antigos e da gente que veio de longe, ora entoando o encantamento da vovozinha. Meu canto não é de lonjura senão para quem longe está. Sai do centro do meu peito para se integrar ao centro do que por ora é o meu lugar. Lugar onde ecoam antigos e novos sotaques expressos em diversos jeitos de nomear. E sob o tempo, tudo se choca, tudo colide, tudo disputa, tudo exige. Menos a montanha. Ela diz a quem quer ouvir, assim como eu proseio com você que lê, se me lê. Ensaiando vida e amor, no centro 13


de nós, atados por tantos descaminhos. Sem ilusão de ser mais do que sou. Quando escrevo, me amontanho, me roraimo. E o Roraima segue impávido, como quem a um tempo, sobrevivendo ao tempo, guarda e despreza todas essas gentes, que assim como o tempo, não param de passar.

elimacuxi | poeta e historiadora. Pode ser encontrada na web pelo @elimacuxi e em sites de poemas, www.elimacuxi.blogspot.com

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Lições | Felipe Fleury

Falemos do mal, que se aprende mais fácil, que entra pelos poros, osmose a céu aberto, nem precisa de escola, nem de regras grafadas em pedra, tão acessível quanto sinal de wi-fi sem palavra secreta.

Falemos agora do que resta, que, por sua vez, é mais complexo, parte do princípio de que é o seu oposto, de que deveria habitar cada gesto, como, por exemplo, estender as mãos

ao aflito, sem lavá-las depois, abaixar-se até aos que estão de joelhos, aprender o mal só para desaprendê-lo.

Felipe Fleury | Formado em Direito, é funcionário público e mora em Petrópolis/RJ. Tem poemas publicados na antologia do concurso de poesias da Universidade Federal de São João Del Rey (2018), nas Revistas Literárias Aboio, Contexto, Cult, Diversos Afins, Mallarmargens e Ruído Manifesto. Instagram: @felipefleuryffc

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Torquato | Fernanda Paz

Era um dia comum na vida de Torquato. Chegava cedo na firma. Sempre às sete ou sete e vinte, porque vez ou outra o ônibus das seis e meia passava lotado e não parava no ponto. Assim, ele tinha que pegar o próximo e atrasava vinte minutos. Às nove e quarenta e cinco, Torquato tirava da bolsa um saquinho de biscoitos de polvilho que sua mãe fazia, esse era o seu lanche. O relógio de Torquato era pesado, mas não tão pesado como o da firma. Parece que os ponteiros não se moviam. Talvez porque Torquato olhava muito ou pelo simples fato do relógio ficar pendurado na parede em frente à sua mesa. Meio-dia Torquato arrumava os papéis, desligava o computador e saía para almoçar no self-service da esquina. Comida à vontade com direito a dois pedaços de carne sem aumentar o preço. A comida não era tão boa, meio sem sal e sem tempero. Torquato escolhera o lugar pelo preço. Escolher pelo preço não se resumia apenas ao almoço, mas a quase tudo na vida de Torquato. Ou tudo? Sempre ficava imaginando em como seria poder escolher algo do cardápio porque realmente desejava comer ou beber. Adorava cervejas e as melhores eram as mais caras. Juntando um dinheiro, vez ou outra conseguia tomar duas ou três, um porre nunca, só das mais baratas. Uma da tarde Torquato já estava de volta à mesa. De olho no relógio. Lembrava de como era bom ser criança. Brincar pela rua sem ter que contar o tempo. Acordar tarde. Criança não tem que pensar sobre o tempo, nem sobre dinheiro. Poderia ter um botão na vida que te permitisse ver como seria o futuro e, dependendo disso, optar a continuar sendo criança. Torquato apertaria esse botão e vendo tudo isso sem sombra de dúvida optaria em ficar retido na ingênua liberdade da infância. Com muita luta o relógio chegava às seis da tarde. Torquato arrumava os papéis na mesa, desligava o computador, pegava sua bolsa e ia à parada de ônibus. O ônibus das seis e quinze era sempre lotado. Ia espremido como uma sardinha em lata, ninguém pedia para segurar sua bolsa. 16


Torquato bocejava a viagem inteira. Quarenta minutos ou mais. Sete anos. Torquato começou na firma aos vinte, assim que se formou. Já somavam sete anos. Em casa, só o tempo de preparar algo para comer, tomar um banho e dormir. Talvez uma cerveja. Mas comecinho de mês sempre era aperreado. Era nove de novembro. Dia seguinte seria dez. Seu aniversário de vinte e oito anos. Mais um ano. Mais um dia. Mais uma hora. Mais um minuto. Mais um segundo. Torquato insone, relógio marcou três da madrugada. Levantou-se da cama, foi até a cozinha levando um colchonete que comprou para acampar, mas nunca acampou. Acamparia essa noite. Na cozinha. Arrumou o colchonete com travesseiro, lençol e tudo. Talvez agora conseguisse dormir o sono dos justos. Antes de deitar ligou o gás.

Fernanda Paz | Escritora, Artista Visual, Produtora e Professora. Graduada em Artes Visuais e Especialista em educação infantil pela Universidade Federal do Piauí. Atuou em curtas-metragens e montagens teatrais; Publicações: O Buraco e Outras Histórias (Editora Multifoco) e Olhos de vidro (Editora Quimera). Insta: @nandapazss Blog: https://fernandapazs.wixsite.com/lapsos

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é como uma canção nos lábios | Pedro Belo Clara é como uma canção nos lábios pronta a voar

um pássaro que de boca em boca vai bebendo as cores ao arco-íris

e de súbito evola-se no leve linho das aragens para dar lugar ao brilho dos olhares silentes

nunca ninguém sabe quando voltará com corpo de semente em que boca abrirá em lírio ou rosa ou jasmim talvez até caracol ou grilo de trova pronta

mas enquanto existe de diferentes acordes faz uma só melodia numa dança que alisa as loucas curvas das estradas

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mesmo ao silêncio retornando invariavelmente sempre sobra um sorriso como prova de vida

quem já provou o sal do vento nos cais da despedida bem sabe do que falo

Pedro Belo Clara | Lisboa, Portugal. Um ocasional preletor de sessões literárias, atualmente é colaborador e colunista de diversas publicações literárias portuguesas e brasileiras. O seu último trabalho foi dado aos prelos sob a epígrafe de Lydia (2018). É o autor dos blogues Recortes do Real, Uma Luz a Oriente e The beating of a celtic hear.

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Lição encontrada sob a pedra | Rodolfo Minari

O primeiro erro é Menosprezar a folha em branco. Lutar com ela, Em vez de amá-la. Olha para a folha em branco e vê Que nela já está o poema, Já moram o sorriso, o gracejo, A dor, a lágrima de ternura, O opróbrio e a exaltação Do coração que o lerá. Portanto, rebelde De inquietas articulações, Respira. Aprecia o momento que Antecede a eclosão; Suga e sabe esse impasse; Hesita como quem dança; Flerta com a musa, Vê-lhe a beleza, a candura; Enche teus olhos, saliva Enquanto mira as curvas Da estrada de sonhos Por quais ela pode levar O teu talento.

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Voa, estende a folha em branco E não pega, ainda, o lápis. Toca, antes, a massa idília, Afaga a celulose, Sente o quanto há de água Em sua alquimia. Deixa-a esquentar as pontas dos teus dedos (isso só pode ser feito muito amavelmente), Deixa-a se lembrar da terra abraçada a suas raízes, Quem sabe outra árvore ao longe, Cócegas de passarinhos em sua copa. Acaricia. Percorre; Sente onde ainda pulsa a seiva, Ouve o murmúrio de sangue, Aos poucos descobre a história Que quer ser contada por ti. Sê digno. Erige-te. Finca os pés no chão para receber. Espalha teus ramos, desenha para o céu. Deixa fluir o silêncio, Que é mais importante? Coçar com desejos teu ego Ou que a pequeníssima princesa, Forjada na gota de orvalho, Em sono no cerne da flor Continue a dormir? 21


Acalma o teu gênio, à direita; À esquerda, o medo da morte. É cedo. Nem pensa em escrever. Abdica. Desapega desse anseio por palavras, Um poema é feito de outra coisa. Coisa, assim, mesmo, vaga, Pois quem poderia jamais afirmar O que é, Se é coisa diferente Para cada ser? O motivo do teu poema É teu e de mais ninguém. Serve só a ti, Como, para Kafka, a lei; Como, para Borges, o Aleph; Como o nirvana ou o céu, para a fé. Escrever Enquanto a folha Tenta te dizer O que tu buscas É o segundo erro e o mais mortal. Erros são permitidos. Também permitido é morrer. A única maneira de encontrar o teu motivo, Uma vez que ele é teu, teu somente, É seres tu. Enquanto fores vozes 22


Desta e de outras gerações, Nada encontrarás. Silencia-as todas; Detrás da pedra solitária, Signo de teu puro ser, O menor brotinho nascerá E te apontará a direção Do Sol. Se o vires, Começa a escrever.

Rodolfo Minari é advogado, editor e compositor. Diretor da editora 3 Serpentes e da casa de cultura Massemba. Premiado em dezenas de concursos literários e festivais da canção no Brasil e exterior. É paulista e reside no Acre há 11 anos, onde canta, toca e ensina composição musical popular para adultos e crianças. Face /minarimusik – insta @3serpentes

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Linhagem | Thássio Ferreira

A vó contava que a bisa era índia maxakali, do Vale do Mucuri, perto do Jequitinhonha. Que tinha se apaixonado e fugido com o biso, no tempo que a gente do litoral foi ocupar as terras entre o mar e as minas, depois dos portugueses levarem todo ouro e diamante que conseguiram. Mas a bisa dizia — a vó contava — que na época dela ainda mocinha, acontecia dos brancos laçarem as índias à força, feito bicho. — Imagina, preá! — Ela me chamava assim, toda dedos de terra úmida: preá, preazinha — Se fosse comigo, eu fugia! Como a tua bisa fugiu pra casar, eu fugia era do marido! Mas a mãe dizia que algumas até gostavam, já no início ou então depois… Quando mais nova eu não falava nada, meio vazia de mim, ainda. Mas depois comecei a responder a vó: — Isso não justifica, né, vó?! E se não? E mesmo quem gostava, tá errado, não ser de escolha, ser à força; no fim a gente é capaz de se acostumar com quase tudo, e até confunde com gostar; mas não justifica. A vó ria, às vezes um riso meio triste, outras franca gargalhada. Às vezes falava num fiozinho de voz “Ah, preazinha, mas se gostava…”. Noutras, mais raras, até me dava razão, arqueando as sobrancelhas e esfregando as mãos. Ela parecia

ter

orgulho quando eu

me

apoquentava assim, ensaiando rebeldia. Acho que era nessas horas que me achava mais parelha com ela. Mais que a mãe. É que a vó tinha um jeitão dona de si, que a mãe não tinha. Eu achava, né. A vó botava banca. Eu gostava. E matutava que isso vinha da bisa, sem medo de largar mundo obedecendo o coração. Mas ela

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também tinha, misturado, umas opiniões tortas, como tanta gente tem, até hoje, meu Deus. Passava uns panos, como se diz. Feito nesse caso de achar que tinha remendo laçar mulher, vê se pode! Podia de ser da mãe dela isso também, que fugiu porque quis, mas foi pra ir se submeter também, não foi? A mãe sempre foi mais caladona, não era muito de contar história. Eu queria que ela falasse da vó como a vó falava da bisa. Ainda mais que a vó era viva, né, eu queria saber dela pelo olho da mãe. Mas não. O pai que às vezes contava uns causos, mas com um tipo de inclinação da voz, do rosto, que parecia fazendo troça dela, um tanto. Um dia assuntei isso pra mãe: que ele parecia mangar da vó quando papagaiava os acontecidos com ela. A mãe disse que era inventação minha. O que ele contava mais seguido era da vez que a geladeira da chácara de um vizinho queimou. O Zezinho, amigão do peito dele. Tinha uma terrinha lá pros lados de Bom Riacho. O tio Zezinho pediu ajuda ao pai pra levar a geladeira nova pra chácara, mais a mãe: assim passeavam todos. A mãe quis levar a vó. Descarregaram a geladeira e a vó perguntou se iam fazer alguma coisa com o papelão grosso da embalagem. Foi responderem que não, pegou tudo e tomou rumo do morro, toda faceira — essa palavra antiga que o pai usava meio com deboche mas eu acho que combina com vó. Subiu um tanto, ritmo firme, deitou o papelão, sentou em cima, e escorregou ribanceira abaixo, despinguelada, toda trabalhada no riso. Danou-se a repetir, com os guris da redondeza olhando arregalado: às vezes descia de mais alto, outras dava impulso com as mãos, noutras tentava fazer curvas. Os guris se renderam: foi festa. Numa vez perguntei ao pai onde tavam as gurias nessa história, mas ele não lembrava de nenhuma. O pai se fosse da época da bisa era capaz de achar certo pegar mulher à força, capaz até fazer. Eu tentava 25


ensinar pra ele um amor mais largo, mas era difícil: o pai era muro. E eu nem podia contar com a mãe pra me ajudar. O principal da história era o final: um dos garotos, justo o mais capeta, se achegou nele e no tio Zezinho pra dizer, purinho espanto e excitação, que: a vó era louca! Eu muito não sei por que a mãe puxou só as opiniões tortas da vó. De se submeter. Não sei mesmo. Mas tenho palpite que viver com o pai fez só piorar esse malogro. O pai era duro. Talvez a mãe tivesse se acostumado a gostar dessa dureza, do jeito que eu falava pra vó podia ser o caso das índias laçadas, mas não justificava! Eu escapulia um tanto porque era filha, comigo ele era um pouquinho menos. Mas só um pouco. Eu queria o jeitão da vó, sem as tortices. Botar banca. Ela me ensinou muita coisa, viu. Cuidar de planta. Limpar, temperar e amaciar carne. Umas manhas de andar no mato: “Não dá passo grande que cansa mais rápido. Deixa pra abrir as pernas noutra hora” , e ria gostoso, matreira. “De vez em quando tem que olhar pra trás, preá, pra entender de onde cê tá vindo. Se precisar voltar.” Um dia ouvi por acaso o pai no telefone, dizendo “Tá chupada, já. Não quero mais, pronto. Acabou a vontade em ficar junto. É isso. Não tem porquê.” No dia seguinte ele saiu de casa. Disse que me amava e voltava pra me ver, mas era melhor dar um tempo pra mãe curar. Só não disse como. Nem quando. A mãe, feito liana agarrada no muro, despedaçou. Passava os dias chorando nos cantos, cabisbunda (a vó falava assim), perdeu até a mania de limpeza. Eu fiquei preocupada mesmo foi por causa de um detalhe: quando percebi que ela não trocava mais aquelas pastilhas de cheiro no banheiro: glade plug. A mãe era vidrada nesse troço. Tinha um cheiro adocicado que no início era até bom, mas logo parece que agulhava as narinas da gente, raivento: doce demais, forte demais, enjoativo demais. Botar pastilhas novas era das poucas alegrias 26


escancaradas que a mãe praticava, sempre cantando a musiquinha do anúncio: “Glade plug glade plug, glade plug eu vou usar.” Quando percebi que o banheiro não tinha mais aquele cheiro, chamei a vó. Ela veio ficar com a gente um tempo. Tentar animar a mãe. Mas era difícil: a mãe se entocava pelos escuros da casa, fugindo, pra chorar em silêncio ou escutando um bolero de que gostava, cantando junto, baixinho, quando chegava na parte que dizia “Y de noche, por la noche, por no sentirte solo, recordarás el sabor de mis besos…”. Essa, antes, era outra alegria escancacarada que eu lembrava dela: quando nós duas fomos ver um show na praça, no aniversário da cidade. Uma cantora altona, larga, toda imponente, muito linda, de olhos meio orientais e um vestido grafite e dourado, cantou várias músicas que a gente não conhecia. Dessa a mãe gostou mais. Disse: “Olha, filha, que lindo” e os olhos dela radiavam mais que as luzes do palco, eu achei. Depois procurei a música pra ela, e guardei pra mim aquela radiância. Agora, quando ouvia esses versos gemendo pela casa, eu sabia que os olhos da mãe não tavam radiando. Doía em mim também. Na mesa do café, a mãe no quarto ainda, a vó disse que não condenava o pai: “Se teve mais coisa eu não sei, mas tua mãe só me contou dele falar que o amor acabou, preazinha. Aí dói, mas vou enfezar? Não consigo. Amor quando tem tem, se não tem mais, não é pra ser.” Eu contei do pai no telefone, da mãe tá chupada. A vó me olhou comprido, desanimada. Disse que o pai não devia ter falado daquele jeito, mas que “mesmo com esse motivo bem capiroto de homem ruim, amor não tem razão nem desrazão. É o que é. Quando tua mãe entender isso, vai melhorar.” Na hora eu não consegui decidir se era tortice da vó ou se ela tava certa. Resolvi contar pra mãe: vai que ela melhorava. Eu acreditava muito nas manhas da vó.

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A mãe primeiro me encarou, parecendo na verdade olhar pra dentro, mais que pra mim. Suspirou uma largueza e falou devagar, a voz pingando mágoa: — Ela pode tá certa, até. Mas pra ela é fácil dizer do amor assim, sem sangrar. A tua vó tem dois. Senti minha cara desalinhar, esticando susto. Depois que uma nuvem passou nas vistas dela, continuou: — É. Além do teu vô, ela tem outro homem. Desde muito tempo. Me contou quando eu virei maior. Diz que ia fazer o mesmo contigo, mas agora falei. Teu vô sabe, eles vivem bem assim. Talvez que cada pessoa tem seu jeito de amar. Deus queira o teu seja feito o dela, e não o meu. Levantou, crispada, e se trancou no quarto, antes que eu pudesse lhe tocar os cabelos, dizer “Eu também te amo, mãe”. Que ela tinha muito amor também. Não é o mesmo tipo, mas é amor. Todo modo, Deus quis, sim, fazer meu jeito de amar mais parecido com o da vó. Acho. Um tanto. Mas não deu tempo dela me ensinar mais dessas manhas de amor. A mãe já tinha melhorado, o pai tinha vindo algumas vezes, mas eu ainda não tinha coragem de falar com a vó dos dois homens dela, até que ficou tarde. Deus bota mais banca que a vó da gente, né? E também tem as tortices dele, as pessoas não falam?

Thássio Ferreira | (twitter: @thassiogf) * Este conto integra o livro Nunca Estivemos no Kansas, a ser publicado em 2021 28


[Entrevista -Ângela Vilma] “Sou uma desajustada no mundo. Cheguei até aqui por conta da Literatura. Sem ela não teria vingado” | por Dan Porto

“Porque nós, os infelizes, faremos uma festa”. Foi assim, por meio da publicação do poema Balada dos infelizes no Jornal Rascunho de setembro de 2019, que o universo me alcançou Ângela Vilma. O texto foi parar no 2º Julho Literário; eu ousei marcá-la em uma postagem, ou enviar o vídeo por mensagem, não lembro bem; A Solidão mais funda veio parar na minha estante; minha série poética foi parar na estante da Ângela; e cá estamos: em diálogo.

Poetisa, mas também contista, cronista e professora de Literatura na Universidade Federal do Recôncavo Baiano, radicada nas graças de São Salvador (Deus guarde a Bahia!) Ângela Vilma resiste à realidade: “enfrento-a com a poesia”. Na resistência, durante o ano passado, batemos um papo, ela de lá e eu de cá. * Em 2015, no blog Aeronauta (http://wwwaeronauta.blogspot.com) você registra que “Escrevo para dar o tapa na cara que eu não dei […] para lavar a minha honra. Todos os dias quero […] me vingar”. Você segue escrevendo? E segue escrevendo para se vingar? De quê ou de quem? Sim, continuo escrevendo, mas neste ano terrível, 2020, quase nada. Passei um ano doente, muito doente. Por não conseguir escrever, vivi menos, morri demais. Sem escrever, não consigo descontar os murros que a realidade me dá, todos os dias. Guardo, entalada, a dor. A pandemia me deu a tensão extrema, a total falta de vontade de viver, a atrofia. Os sentimentos ficaram encalacrados, adoecidos. Há uma confusão aqui dentro muito grande. Escrevi poucos poemas, quase nada. A minha dor não consegue ganhar forma, está em estado de nebulosidade total.

Você publicou livros e textos em coletâneas de 1990 a 2006, depois no blog de 2007 a 2016. O que escreveu após 2016? Em 2016 publiquei o livro A solidão mais funda, de poesia, pela editora Mondrongo. Participei, com alguns poemas, de alguns números da revista Organismo (Salvador) e de outras antologias, como Mulheres poetas e baianas (Caramurê, 2018) e Poesia Brasileira em contracorrente (o retorno estético do século XXI) – também pela Mondrongo, em 2019, bilíngue com tradução francesa, organizada pelo poeta Wladimir 29


Saldanha. Publiquei poemas também nas revistas Mallarmagens e Germina. E não deixei de escrever textos no Facebook e no Instagram.

De algum modo, a formação potencializa a escritora?

acadêmica em

Letras/Literatura

A formação acadêmica ajuda no sentido da consciência formal da arte. Estudar a Literatura enquanto forma artística, texto orgânico, e não só mero tema, contexto social, nos ajuda a sair da inocência – e cegueira – do sentimento. Conhecer os mecanismos da forma nos liberta da emoção fácil, das gratificações pequenas, e nos lança no universo maior: este que a forma artística dá ao sentimento, tornando-o atemporal e belo, mesmo em sua miséria.

Seus textos foram objeto de estudo em um programa de mestrado em 2016. Você se tornou uma escritora cult? Isso foi programado? Acredito que não; cult jamais. Sou povão. Sem contar que, infelizmente, os textos acadêmicos são pouco lidos. Quem me lê hoje são os amigos do Facebook e do Instagram. As redes sociais deram uma recepção instantânea ao escritor solitário, que faz livros e poucos leem. Tanto que a aluna da UFBA, autora do trabalho de mestrado – Naiana Pereira de Freitas – , me conheceu lendo o meu blog Aeronauta (objeto de sua dissertação), pela internet. Só a conheci pessoalmente muito tempo depois.

A literatura te conduziu na vida? Como? A Literatura me mostrou a verdadeira vida: que é a vida da imaginação; me conduziu pela vida prática. Desde criança sempre gostei muito de ler. Meu pai lia muito, não dormia antes de ler o jornal e um pouco de literatura. Ele amava Jorge Amado, e a gente cresceu nesse ambiente, minha irmã e eu. A família dele toda era ligada ao cordel, eram repentistas também. Depois, fui estudar Letras sem imaginar que gostaria de ser professora. Só fui descobrir quando dei minha primeira aula, ao terminar o Mestrado. A literatura foi me levando pela vida prática, e hoje vivo dela. Sem ela eu acho que estaria num hospício ou teria me matado. Só a literatura me conecta à realidade. Este poema de Wislawa (A realidade, Wisława Szymborska) diz muito sobre o que penso da realidade: “A realidade não cede”. Enfrento-a com a poesia. 30


* Ângela ainda publicou Poemas para Antonio (P55, 2010). E além das publicações em revistas, como é o caso do poema que acompanha esta edição, prepara seu novo livro de poemas, Inúteis, que deverá ser lançado pela Editora Patuá. Trata-se da seleção de mais de oitenta textos escritos entre 2013 e 2016. Desde já aguardamos com ansiedade essa novidade que a Patuá, certamente, saberá editar com esmero. Como não bastasse, o estupendo A Solidão mais funda acaba de ganhar nova impressão pela Editora Mondrongo, da Bahia. A mesma editora ainda deve lançar a seleção de textos publicados no referido blog, organizada por Emmanuel Mirdad.

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[Entrevista- Itamar Vieira Junior] Somos privilegiados: presenciamos o nascer de um clássico | por Dan Porto e Tânia Ardito

“Escrever é estar vivo. Acho que escrevemos de inúmeras formas com nossas vidas através do mundo-tempo. O que convencionamos chamar de escrita é apenas um registro. Todo escritor escreve talvez para registrar um testemunho do seu tempo, acho que esse é o meu mobilizador para escrita.” Itamar Vieira Jr.

Salvador, Bahia. De lá Itamar Vieira Junior tem registrado o nosso tempo, o cenário do Brasil profundo na sua amplidão de vozes. Professor com doutorado pela Universidade Federal da Bahia, funcionário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra –, pesquisador das temáticas étnicas, estreou na literatura em 2012, com o livro de contos Dias (Caramurê, 2012), vencedor do Concurso XI Projeto de Arte e Cultura. Na tarefa de registrar o tempo, em 2017 lançou A oração do carrasco (Mondrongo), o segundo livro de contos, indicado ao Prêmio Jabuti e vencedor do Prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores (Seção Rio de Janeiro) biênio 2016-2017. O livro mais recente, e merecidamente incensado, é Torto arado, chegado ao Projeto Julho Literário por indicação de Marcos Fernandes, do Blog Best Não Tão Seller. O romance foi o vencedor do Prêmio Leya 2018, publicado por esta editora, e no Brasil pela Todavia. Além do prêmio em Portugal, foi vencedor no Brasil do Jabuti (2020) na categoria romance e também vencedor do Prêmio Oceanos (2020). Já foi traduzido para o italiano e teve os direitos comprados para o audiovisual recentemente. Crítica e público têm apontado as qualidades técnicas do romance, como o domínio das palavras, em uma escrita suave que se contrapõe a uma atmosfera árida, sem exageros estilísticos ou rebuscamento da linguagem, respeitando o som das palavras. Por ocasião do resultado do Prêmio LeYa, diz o júri: “O Prémio LeYa 2018 é atribuído ao romance Torto arado, de Itamar Vieira Junior, pela solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, na sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade patriarcal.”

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Na leitura da obra, encontramos um diálogo com a tradição do romance rural brasileiro, incluindo temas como identidade, ancestralidade e da religião de matriz africana. A ausência de fala de uma das irmãs, silenciada e convivendo com uma cicatriz, toma um lugar universal, pois o silêncio imposto é vivido na pele não só pela grande parte da população brasileira, mas além-fronteiras. Diante do sucesso de vendas de Torto arado e das tantas solicitações para eventos, Itamar nos atendeu gentilmente por e-mail para a breve entrevista que você confere abaixo:

Todos os seus livros de ficção foram premiados. Foram escritos pensando em concursos literários? Foram escritos, a princípio, por um compromisso comigo mesmo de exercitar a escrita, já que a literatura é uma das minhas paixões. Ocorre que como eu não conhecia o mercado editorial, editoras, e mesmo escritores vivos, só me restava submeter os meus escritos a concursos e prêmios literários.

Sobre o enredo de Torto arado, em entrevista para a São Paulo Review, você diz tê-lo escolhido por conta das inúmeras farsas na história do país. Como pesquisador, professor, escritor, você acredita que teremos uma revisão dessas farsas e sua consequente reparação? A revisão já ocorre pela pesquisa acadêmica, pelos movimentos civis organizados, e por alguns de nós que, como cidadãos, refletimos sobre nossa própria história. A literatura é apenas um registro, mas que tem um poder único como expressão artística de deslocar o leitor para o lugar do personagem, onde ele pode exercitar a alteridade.

Houve algumas tentativas de aproximação de Torto arado com o filme Bacurau. Isso te incomoda ou ajuda? Há aproximações possíveis? Algumas referências são feitas, sim. Não só com Bacurau, mas também com Sobre os ossos dos mortos, da Olga Tokarczuk, e mesmo Parasita, de Bong Joon-ho. Acho que são obras que tratam do tema da não conciliação, por isso a referência. Sou admirador de todos os citados, então para mim é uma honra.

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Acredita que o trabalho dos escritores contemporâneos, em alguma medida, ainda pode contribuir para uma expansão de consciência coletiva e volta ao humanismo? O nosso projeto de escrita não deve ser movido por essa premissa. Ele deve se aproximar da experiência humana, livre, sem censura. Mesmo que essa experiência não pareça relevante para alguns ou desagradável para outros. Mas é inegável a contribuição da literatura para a expansão do horizonte humano. É uma experiência muito íntima e envolvente, que nos transfere para o lugar do outro. * No horizonte, Itamar promete um novo livro de contos, por enquanto sem título pela Editora Todavia. “Torto arado é parte de um projeto maior que se debruça sobre a relação do homem com a terra. O próximo projeto parte dessa premissa, mas não há prazo para concluí-lo”, acrescenta.

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Edição e Revisão Tânia Ardito, Fabíola Weykamp, Dan Porto

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM


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