Revista Subversa Vol. 14 -nº2

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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 14 | n.º 02

© originalmente publicado em 15 de junho de 2021 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Tânia Ardito e Fabíola Weykamp

Ilustração de capa: Eliana Machado

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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Índice SESSÃO DA TARDE | Fernando Ignez ANICCA | Sara Vinhal Poema | Luciana Francis Ascendente | Sam Moura MANCHETES DOMÉSTICAS | Leandro Costa Um grito silencioso | Maria Martins Torres Depois da metamorfose | João Vitor H Jaeger Conversão | Andreza Andrade NA AREIA DA CORNUALHA | Leonardo Ramos Plexo Solar | Isadora Lobo Água salgada | Andriele Moraes VOYEUR DE MIM MESMO | Anaximandro Amorim Gênesis | Raul K. Souza O SEGURO NÃO COBRE | André Mellagi está tudo certo | Paulo Arce [FEBRIL] | Pedro Pedrosa De ouvido | Diogo Bogéa CULTIVO | Lucas Luiz 1989, | Felipe Eduardo Lázaro Braga ainda que cantemos, é miragem todo espelho | Raí Prado Morgado Gentileza | Bruna Rocha Israel | Herbert do Nascimento Interdito | Jessica Ziegler de Andrade “Velhice” e “O leitor à janela” | Sidnei Xavier dos Santos Capivaras | Gusthavo Gonçalves Roxo ainda não | Juliana Maffeis

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Gavião peneirador | Valeska Brinkmann Dois poemas em silêncio | Milena Martins Moura “RECORTE DE JORNAL” e “FRAGMENTOS” | Aderbal Bastos Barroso Os tomates | Daniella Guimarães Araújo Colunistas Especial Solstício

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Editorial

Dizem que não se trata de reconhecimento, que não se trata de fama nem dinheiro nem prêmios ou flores ou homenagens. Que não se trata de propaganda nem de conversa para boi dormir, tampouco elogio ao poder. Menos ainda se trata de manual de como furar barreiras para encontrar um lugar ao sol. Dizem, e fica ainda mais forte quando é dito com força e coragem e sem pretensão nenhuma de dizer nada, que é melhor dizer quando há algo inescapável a dizer de uma forma específica que não pode ser outra de dizer o que deve ser dito. Dizem que é quando a forma é a própria coisa do dizer, que o desejo é grande de falar, que a necessidade é urgente de não calar, quando é questão de sobrevivência que seja logo dito. Dizem que é quando o microfone ficou mutado, que é um certo modo de apertar no unmute de certa forma que só pode ser aquela, que é um jeito de dizer que ganha espaço na hora em que é dito porque esse próprio jeito de dizer é o próprio espaço que ele procura ocupar. Que é como dizer que a imagem travou, enquanto o mundo todo está travado, se não for dito o que tem que ser dito dessa forma. Que assim seja. E que, não sendo outra coisa qualquer que se possa dizer o que é, tornase arte. Desejamos a todos uma boa leitura. As editoras, Tânia Ardito Fabíola Weykamp Morgana Rech

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SESSÃO DA TARDE | Fernando Ignez Minha urgência vai se esvaindo Vou me resignando com esta ausência onipresente As horas monótonas já não carregam tanta culpa É isso mesmo É tudo tão pouco Para quem espera demais Para quem foi iludido quando criança Pelas aventuras de Hollywood Me resta caminhar pelas estradas de terra sem fim Observar de perto os formigueiros Escutar as conversas alheias Que tem gosto de ficção Pedir um pudim na padaria Depois tomar um trago Enxugar as lágrimas E fingir que nada aconteceu E é a mais pura verdade Nada aconteceu A não ser a vida

Fernando Ignez | São Paulo, Brasil|Paulistano. Poeta e tradutor. | fignez@gmail.com

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ANICCA | Sara Vinhal

Bip-bip-bip O alarme anuncia que começa mais um dia.

Os dois-sete-nove de antes e os oitenta e seis restantes. Dia? Mês? Ano? Tudo vira poeira (só não sobra mesmo pra Dona Caveira).

Se acabou, é porque tinha que acabar. Chega de chororô: outro jeito não há. Piscou? O momento passou. Mas o novo abre espaço pra jogar fora o bagaço.

Bip-bip-bip Hora de encarar a curva no meio do caminho, De frente, sem medo. Que o vir-a-ser costuma chegar cedo.

Sara Vinhal | Belo Horizonte, Brasil | cresceu no interior (beeeem interior) de Minas Gerais e reside atualmente em Belo Horizonte, ainda cercada por verde. Advogada por formação, encontra, na literatura, alento contra a aridez do cotidiano. | saracvinhal@gmail.com

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Poema | Luciana Francis Os dias são poemas — abrem-se às folhas verdes, e brancas as nuvens.

O sol se levanta. O céu azul e nobre se cobre em mantos de estrelas.

Por entre às horas buscamos o canto da casa, a cadeira, o pote, a água. E a janela

nos mostra a vista, o que plantamos durante os anos — as flores, os ramos de árvores adolescentes.

E em cada um deles, os planos e os pássaros pousados, fluentes na língua que mal copiamos

Luciana

Francis |Biggleswade,

Inglaterra

|

(neé

Saldanha)

é

uma

escritora

paulistana, residente no Reino Unido desde 1998. Graduada em Antropologia e Mídia na Goldmsiths, University of London. Poesia e textos estão disponíveis ns seguintes publicações: Popshot Magazine (Reino Unido), Visual Verse (Reino Unido), Kissing Dynamite (USA), Whale Road Review (USA), Literary Mama (USA), Motherscope (USA), entre outras.

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Ascendente | Sam Moura Renata acordou cansada, espreguiçou-se longamente e levantou para fazer seus exercícios de respiração. Ao final de dez minutos, já se sentia bem disposta. E até mesmo um sorriso tomou seus lábios. Começou a pensar no seu dia e se deteve: queria tomar um café da manhã com calma e ler um pouco, de preferência coisas sem importância, daquelas que preenchem a rotina. Procurou o jornal e se sentiu grata ao marido por ter insistido que retomassem a assinatura do jornal em papel. Não queria nada com tecnologia naquele momento. Tinha saudade do passado, até mesmo daquele que não era dela. Sentou com o seu café, abriu o jornal e seus olhos foram diretamente ao encontro do horóscopo. Começou a ler com a curiosidade de quem, sem saber, espera encontrar ali uma justificativa ou provocação. Foi então que Luiz surgiu na varanda com cara de quem havia acordado em cima de um porco espinho. Ele despejou todas as preocupações que tinha para o dia, e cobrou de Renata respostas a questões práticas sobre as quais ela não queria pensar naquele momento. Renata se sentiu como uma bola de festa de criança que, dançando no ar, encontra uma luz quente o suficiente para estourá-la. Os últimos tempos vinham sendo difíceis. Luiz era a amargura ambulante, sempre pronto para o embate. Faltavam ouvidos e sobrava boca. Talvez ela estivesse sensível demais: já não conseguia ser nem ouvidos, nem boca. As interações entre eles eram sempre desastrosas: invariavelmente saíam estourados ou murchos. Ela explicou que não queria falar sobre aqueles assuntos e precisava de um tempo. Ele veio atrás insistindo que precisavam falar, que ele precisava saber. Ela deixou o café, pegou o jornal e se dirigiu ao banheiro, onde constantemente se refugiava. Teve vontade de gritar. Sentada no tapete, pensou em como havia ido parar ali. Havia conhecido Luiz com quinze anos. Apaixonou-se por ele e pela ideia de estar com ele, um cara bonitão cinco anos mais velho que já frequentava a faculdade e tocava violão como ninguém. Parecia que tudo vinha na direção dele, que o mundo o abraçava. Adorava pensar nos dois juntos e quando pensava, se via, e quanto mais se via com ele mais se apaixonava. Começaram cedo a fazer planos. E assim seguiram juntos. Nunca havia se permitido questionar essa escolha feita há vinte anos. Apesar da agitação, não quis desistir do que estava fazendo. Não queria se dar por vencida. Voltou ao horóscopo:

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“Seu poder de comunicação está em alta. Vão prestar atenção a suas palavras. Escute-as também. É um bom momento para apostar em novas saídas. Com cautela, trarão bons frutos.” Pensou em como sentira orgulho do seu signo: intenso, misterioso e profundo. De uns tempos para cá, simplesmente não se identificava com ele. Uma amiga havia dito que depois dos trinta o que valia era o ascendente. Adorou. Nem mesmo com o signo conseguimos ficar a vida toda, pensou. O ascendente vem como uma segunda chance. Qual seria o ascendente de Luiz? Sorriu ao se escutar. Leu o ascendente: “Dê asas aos seus desejos de mudança. Nunca é tarde para recomeçar. Aposte em um clima descontraído.” Saiu do banheiro decidida a ter um dia leve, e secretamente esperando que Luiz houvesse sumido. Ele também estava esperando. Por ela. Queria saber a que horas o eletricista vinha, se ela ia ligar para o encanador, como iriam fazer com os armários, se a mãe dela viria ficar com as crianças ao meio dia ou às treze horas. Ela cantarolava mentalmente para não ouvir. Perguntou ao Luiz qual era o seu ascendente. Ele não entendeu. Mesmo quando entendeu continuou sem entender. Ela insistiu que precisava saber. Ele não sabia. Ela perguntou a que horas ele tinha nascido. Ele se irritou, ainda mais pela certeza de que era isso que ela queria. Ele não sabia a hora que tinha nascido, não se importava e não entendia a relevância daquilo, ao contrário dos assuntos que ele trazia que, de fato, precisavam ser resolvidos. De repente, sem lembrar do que o horóscopo dizia sobre a força de suas palavras, ou talvez por isso mesmo, ela disparou: talvez não devêssemos continuar juntos. Ele olhou para ela atônito. Pegou o seu violão e foi para o quarto. Mesmo se vendo sozinha, como havia desejado, ela continuava querendo fugir. Colocou uma roupa qualquer e agarrou a bolsa. Saiu decidida. Foi bater a porta de casa atrás de si, e uma outra porta veio em sua cara. Ela gritou mais de susto do que pela dor no nariz. Era a porta do elevador que havia sido aberta com um empurrão de força desproporcional. Ao perceber o que tinha acontecido, o vizinho pediu desculpa imediatamente. Ela entrou no elevador em modo automático e depois de passar pelo quinto andar, se olhou no espelho e desatou a chorar. Chegou ao térreo e não conseguiu sair. Subiu novamente ao seu andar. Precisava ver o Luiz. Entrou e não ouviu o violão. Procurou pelo apartamento. Luiz não estava. Ele havia levado a sério suas palavras. Sentiu um desespero tomar conta de si. E se de fato acontecesse o que ela queria? Se deixou escorregar 9


em um canto e chorava alto. Até que, entre soluços, ouviu passos. Era Luiz que voltava de jogar o lixo fora. Ele tinha o olhar perdido e exausto de quem tenta, ao fim de um dia cheio, aprender alemão. Não olhou para ela. Renata se sentiu aliviada. “Luiz, esquece o que falei. Devemos continuar juntos sim. Não quero saber do seu ascendente!” Ele subiu o olhar para ela. “O que houve com o seu nariz?” “Deixa pra lá. Foi um sinal de que não deveria ir a lugar algum.” “Onde você ia? É, deixa pra lá. Que horas a sua mãe vem?” Renata suspirou resignada. Ainda guardava a intensidade do seu signo e preferia a amenidade do sol que ainda a aquecia ao que poderia surgir, ou não, no horizonte. Decidiu que não mais leria horóscopo.

Sam Moura | Rio de Janeiro, Brasil | PhD em Direito pelo Instituto Universitário Europeu em Florença, mãe, psicanalista em formação, apaixonada pela singularidade que universaliza. Instagram @dumbigopralem.

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MANCHETES DOMÉSTICAS | Leandro Costa ALQUIMIA GOURMET De Suspiro à Quebra – queixo, o nocaute da rotina foi, aos poucos, mastigado. A deglutição quadrada deu o prego no caminho e a carcaça enferrujada, vez e outra, ainda arranca uns pigarros que não pegam.

BANDEIRA VERMELHA Há dias não chove o chuveiro elétrico. Aderiu à greve do sindicato das nuvens.

DJAVU No Cine Terra, o longa Brasil. De Cheia passou à Minguante e sumiu com os créditos. Noves fora: eclipse.

VERANEIO Mão de brisa e cantiga de maré. Na rede branca, o menino é marinheiro. Sonhar é preciso.

LITÍGIO O varal viu-se vencido. A chuva estendeu-se primeiro. Seu liame era menor que a vara dela.

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COACHING DOMÉSTICO O sono estava grande. O frio estava intenso. Não encontrou os pares. Os ímpares, calçou. A diferença fez o calor.

RAIOS, TROVÕES E BRIGA DE VIZINHOS No telhado digitou, boa nova que a goteira fofocou. Não podia perder o furo.

ACIDENTE NO POSTE DA RUA PROJETADA Amor platônico também mata! Que o diga a mariposa apaixonada

QUERELAS PAISAGÍSTICAS Uma esperança justiceira , em verde ira perguntou: “Qual é o grilo?” E a insone cantilena acabou

BELEZA À PICASSO O calor do ferro desfez as rugas da segunda pele. As da primeira o são, pergaminho de história indelével. Leandro Costa | Tianguá, Brasil | poeta e contista brasileiro, traz como rubrica em seus textos

a

presença

das

memórias

afetivas

e

o

cotidiano.

|

costafranciscoleandro@gmail.com

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Um grito silencioso | Maria Martins Torres Durante anos a fio Calou-se

E um silêncio profundo Instalou-se

Queria gritar Dizer o que sentia O que queria O que sofria

Mas o receio Do que os outros pensavam Instalou-se

Viveu assim Durante décadas

Os gritos saíam Mas eram silenciosos Ninguém os ouvia

O seu olhar perdia-se Na imensidão daquela luz Que refletia sobre o mar

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Como queria ela Que o reflexo do seu grito Fosse tão audível Como visível era Aquele reflexo

Maria

João

Torres |

Peso

da

Régua,

Portugal|

Publicou

“Crescer

com

histórias”(2016), “A libertação das letras” pela Editora Litere-se (2017) e o livro “Aventuras na Escola”, pela Chiado Books Kids (2018). Os seus poemas “A incerteza” e “Quero sentirme leve” integraram, respetivamente, o VIII volume da Antologia de Poesia Portuguesa Contemporânea: “Entre o sono e o sonho” da Chiado Editora, 2017 e o 1º Prémio Nacional de Literatura de Belford Roxo, Mozerart Edições, abril de 2018.

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Depois da metamorfose | João Vitor H Jaeger Um sonho me acordou. Lamento não recordar o que se passou em minha vida onírica, mas estou certo de que a mesma fora intensa no profundo da madrugada. Às vezes, tenho a impressão de que a passagem do sonho para a vigília se dá por algum elemento intermediário, comum a ambos os estados da alma. Assim foi, tenho certeza, apesar de minha memória me pregar peças a essa hora da noite. Mas conservei, ao longo do dia, um estado de espírito. Talvez uma estesia. Acrescento que tenho notado algo de diferente na minha forma de perceber os sentidos. Por isso, ressalto que estesia seja a palavra mais precisa quanto a isso que noto estranho e impreciso desde então. Consigo apenas registrar que essa noite passada foi densa. O escuro que vivi entre o dia anterior e hoje teve uma densidade própria. As noites, todas as noites, se tornaram noites densas. Lamento não conseguir descrever de forma mais correta, ainda que seja essa minha presente volição. De fato, tomo esses apontamentos também na tentativa de compreender o que apenas percebo esteticamente estar outro. Ergui-me, ainda com os olhos semicerrados, tentando distinguir o que se punha diante de mim. Não era claro tudo o que estava vivendo naquele suposto despertar. O quarto era preenchido por uma luminosidade baça que atravessava as frestas da persiana quase fechada. Olhos e janelas, pálpebras e cortinas semicerrados. Ela permanecia deitada enquanto eu avançava para dentro da manhã. Algo estava diferente. Ela já está de pé e se aproxima de mim. Algo mudou Soubera eu desenhar retratos. Substituiria as letras pelas linhas do seu rosto. Acompanho seu caminhar um pouco desajeitado como quem atravessa o umbral do mundo dos sonhos para o mundo da vigília. Talvez sua mente ainda esteja noutro paralelo onírico relutando contra o magnetismo do corpo desperto. Agora a claridade está mais intensa e reluzente na pele alva. Com a luz desenhando-a pelos flancos, observoa encurtar a distância de nossos corpos. Hesitante, ela se aproxima sem ver o que estou vendo. É noite que se forma do outro lado. Ela ali servindo de ponto de contato entre o claro e o escuro, a luz e a sombra. Ela me toca com um beijo e serve uma taça de café passado. O que aconteceu? Volto às minhas notas depois de um breve cochilo. Tenho dificuldade de permanecer atento e desperto, mesmo que intente não perder nenhum instante da escrita. Às vezes, as ideias flutuam e apenas de maneira fugidia consigo capturar o que elas querem dizer. Porém, distraio-me com a ventilação ora suave ora intensa dela aqui tão perto. O ar balança para dentro, para fora de suas narinas criando assim, uma cadência noturna. Como nunca tinha notado isso? Como, depois de tantas noites ao seu lado, somente agora percebo o ritmo da noite que tantas outras 15


vezes senti sem compreender? Ela dorme, e mesmo dormindo, captura meu olhar. Contemplo-a estirada na cama sob os lençóis como alguém que observa uma escultura realista e se encanta com a sutileza e maciez do mármore. Buscando encontrar nesse estado intermediário entre o sono e a vigília, a pedra angular de uma existência na carne. Assim, vou flutuando também para dentro dela. Dentro de mim. Fui para o banho como era de praxe. Sempre preferi molhar meu corpo pela manhã. Acrescento que continuo preferindo banhar-me em um chuveiro frio. Não importando qual seja a estação, as águas a contornarem meu corpo precisam estar geladas. Essa manhã não foi de outra maneira. Ao toque da primeira gota sobre o ombro direito, fui levado para as águas gélidas das cachoeiras no inverno. São memórias que revivo na temperatura da minha pele, no tremelique incontrolável e no grito inevitável de dor e satisfação. Através da contração de todos os músculos do meu corpo, rememoro, revivo histórias sem poder trazer uma fotografia. São episódios grafados na pele enrugada depois de horas em baixo da água, episódios pintados na roxidão dos lábios e da ponta dos dedos. Lembranças acalentadoras de um tempo que me rasgou e que evoco pela temperatura. O chuveiro passou a ser uma espécie de cachoeira urbana. É preciso uma parcela anoitecida para que se possa tecer a trama aquosa dessa experiência. O que percebo agora é que a água, a pele, a memória, se compuseram em um único instante. Ali, trazendo para dentro de casa a cachoeira da minha história, domesticando também as águas, controlando seu fluxo conforme minha vontade enquanto abro mais intensamente o registro, ou interrompo seu movimento, pude e posso viver também o que se registra em mim. Eu ali, tomando em meus braços, torso e ventre, as águas gotejantes que se lançam na minha direção. As águas também buscam o colo. Revivendo, de um jeito outro, a primeira vez que me lancei nas águas, saltando na direção do imprevisível. Estou nu. Visitamos seus pais, como se faz habitual e sistematicamente. Enquanto ela se aproximava da família, eu me retirava para o jardim. Ali me sentei, como muitas outras vezes o fiz. Dessa vez, foi durante o entardecer que outro acontecimento banal me surpreendeu por sua novidade. Algo dessa novidade torna complexo o ato de escrever, pois percebo que não consigo encontrar uma palavra horizontal, que sirva para experiência vertical do texto que escrevo. Eu estava sentado sob o abrigo da sombra de uma caneleira. Era final de tarde. Poderia tentar assim: O sol se punha. Todavia, não acredito que fosse servir plenamente, pois o sol também caía. Então, o sol caía no entardecer. Que idílio avistar a cena cadente de uma estrela candente se jogando, se arremessando, caindo no entardecer que a acolhe em toda sua extensão. Parece que não consigo mais, restrito à linearidade da escrita, descrever de forma suficiente o que vivi. Pois eu também era parte desse sol que me 16


entregava para os braços da noite que se aproximava. Eu estava ali, recostado, desfalecendo, confiante que a noite pudesse me receber em seu colo. O sol se despedia. O sol estava se ponto nesse movimento paradoxal em torno da terra que orbita entorno dele. O sol, fixado no centro do sistema solar, mantém o movimento pendular da vida e da morte a cada ida e vinda. Vê-lo nascer a cada manhã satisfaz a nostalgia de uma era em que habitávamos o centro do universo. O sol, nascente e morrente, era também um pouco de mim que ali nascia como percepção. Deixava seu rastro flamejante no alaranjado celeste. As nuvens ardem a cada entardecer. Era a primeira vez que via a incidência dos raios solares atravessarem o verde das folhas. Eu estava seguro na sombra, contemplando essa despedida. Algo acontece no momento intermediário entre o dia e a noite. Tonalidades doiradas, levemente opacas, recheavam a atmosfera. A tarde caía como um véu. Eu ali olhando para o alto dessa árvore tentando buscar seu cume, observando a claridade baça, ainda que penetrante. Pois estava eu, desconhecendo o tempo em que vivia. Eu estava ali, onde acredito já ter estado antes, mas dessa vez num ali que habitava pela primeira vez. As folhas, a persiana, meus olhos, tudo semicerrado, permitiam apenas uma semivisão do que acontecia no todo. Tenho muita dificuldade para exprimir o exato sentimento e percepção que me acompanharam e ainda me acompanham. Mas o que vivi, tentando recompor e ordenar os acontecimentos do dia, o que vivi, de fato, poderia se traduzir assim: eu vivi o entardecer. Estava ali mesclado com a temperatura, as tonalidades, as cadências do fluxo natural da vida. Eu vivia, no que é mais íntimo do que se pode dizer estar vivo, eu vivia o pôr-do-sol. Tentei capturá-lo como uma fotografia, encarando-o em sua queda sem mover as pálpebras. Tentava queimar, no filme da retina, a sua imagem. Tentava fotografar na carne da visão sua existência fugidia. Eu queria carregar essa tatuagem estelar para dentro de onde habito. Voltamos para casa. Tentei, ao fechar os olhos, encontrar o ruído amarelecido e incandescente daquela estrela que vi partir. O sol partia. Não me satisfiz com o escuro em meu olhar. Almejava manter a imagem estanque, ainda que estivesse em movimento. Não queria ter dito adeus. Queria ser visto também diante dos olhos de fogo dessa esfera solar. O sol partia. Quedava tentando captar seu movimento, saber algo de sua trajetória. Quantas vezes acompanhei teu movimento sorrateiro diante da minha cabeça sem que tu pudesses perceber minha contemplação? Como redigir esse estado de espírito? O sol partia. E também partia meu ser. Queria mesmo trazê-lo para dentro de casa, domesticar também sua energia, calor e luz. Mas o sol me escapa, apesar de qualquer esforço. Vestígios, apenas, de uma trajetória sideral que permanecem cravejados 17


no universo visual. O apartamento reluz uma cor outra. Talvez seja eu outro a olhar o suposto mesmo apartamento. Ainda reluto em acomodar isso outro que está aqui. Ao escrever essa palavra, sou tomado de um encanto profundo. Esse termo e arquitetura, essa habitação que nos coloca a parte. Que de certa forma nos aperta, que nos faz viver também apartados. Esse substantivo abstrato montado em concreto. Substantivo concreto para uma vivência abstrata. Assim, em apartamentos, vasos, ou em outras formas de distanciamento, criamos uma forma de metasobrevivência que nos sustenta na ilusão de estarmos juntos. Passei a me sentir como se também fosse parte das coisas com as quais me relaciono. Os órgãos dos sentidos, grãos de sentido, parece, passaram a ser um portal de comunicação e comunhão com o que antes eu compreendia estar lá fora, diante e alheio a mim. Agora, quando ouço um pássaro cantar, ouço um canto difícil de distinguir se dele ou meu. Difícil também me posicionar no que antes chamava de interior. Minha anatomia que me parecia ser tão própria, da forma como costumava vivenciar, se transformou. Agora, fico com a impressão de que os termos que costumava utilizar para nomear as coisas perdem seu sentido, perdem seu valor taxonômico, de modo que precisaria, portanto, reformular todo o glossário do tempo que tive até aqui. Vejome, conforme percorro esta pena por sobre o papel, na difícil tarefa de definir – redefinir seria um engano – coisas que, desde então, vivo de forma outra. Releio alguns trechos até aqui, revivendo neste texto, a sombra que vi se formar ao lado dela, a sombra-ela que via também presente nessa manhã. A água que me banhou e que se acolheu em mim. A tarde que caiu diante de mim. A tarde que caiu em mim. O sol que se pôs diante de mim. Eu que me pus diante do olhar desatento do mundo. A tarde que caí. O sol que me pus. A noite que nasci o agora da noite que escrevo. Eu não encontro um ponto-origem. O momento parcialmente exato que me pudesse servir como referência para dizer com calma e solenemente quando foi que aconteceu. Eu mesmo escolhi o termo metamorfose por força de expressão, sem mesmo saber exatamente se é de uma metamorfose que se trata. Eu não era assim. Agora, parece, a maciez do vento frio acaricia meu pudor como nunca outra vez pude sentir. Contorna-me em sussurros como que me convidando a entrar em casa. Estive vento do lado de fora de casa. Estive vento. Onde a pequena troca de um d por um t pode causar a confusão em que persisto. Eu-vento vendo o pondo no verbo da carne rarefeita sob efeitos que me respiram. Talvez a casa seja uma referência material que me permite compreender um dentro e um fora. Ainda assim, vejo-me sendo visto de dentro e de fora simultaneamente. 18


Refletido e refletindo a imagem das coisas que chamo eu. Talvez vão. Vão – substantivo e verbo – para contemplar a carne do vazio e o instante do movimento. Observo a noite pela eu-janela vista através de outra janela que vê através de outra janela que observa através de outra janela a necessidade de olho-janela ter um observador para ver seu vão. Quando se vai ainda estando no mesmo lugar para outro lugar buscando a diferença marca do que distingue a realidade da ficção da vigília e do sono como se houvesse um esqueleto capaz de osso entre a carne do músculo e a carne daquilo que se vive no lobo occiptal e na visão buscando um olhar no olho na pressão do que se ouve e do que se escuta entre a pele véu no poro janela de uma abertura semicerrada umolharqueseperdenotempopornaotertempoque caibanoinstantedeolharacoisaquesebuscaconto rnarcomaforcadoqueseveumcontornoseriaosufic ienteparamarcaradiferencaentreoqueateentao chameidecorpoeoqueateentaochameideoutrosq uandoperceboqueoutroseeuecorposaoumaform aimpossiveldedeclararoquesejapelaforcadoabis moqueseimpoeentreaterraobarroocimentooconc retoeaterradenovoosoloondearaizseiludeacredi tandoestarnosolofazendobrotarparaomundoopr odutoesforçodasuailusao Volto, sem ter partido. A noite que a rua observa sou eu. Minha pena é o lampião do acaso. Outra vez tento dormir com a dificuldade de alguém que tenta acordar de um pesadelo. Eu queria dormir para viver no tempo onírico o pesadelo que hoje vivo em vigília. Não importa a hora da noite, tampouco onde me encontro. Aquilo continua lá fora. Outra piscadela. Não sei quanto tempo. Aqui e agora. Ainda escuro. Somente isso. Eu escuro. Sem dizer se o escuro é lá ou cá. Escuro. Ainda. Somente isso. Sem dizer quando foi que iniciou ou qual a previsão para concluir. Ainda.

João Vitor H Jaeger |Porto Alegre, Brasil | é psicanalista bilíngue (Português e Libras) em Porto Alegre. Dedica-se majoritariamente à prática clínica escutado surdos e ouvintes. Realiza pesquisa em psicanálise junto ao programa de Mestrado do PPG da UFRGS. Escreve por lazer e inquietação. | joaojaeger@hotmail.com

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Conversão | Andreza Andrade

O mundo inverteu, As águas voltaram ao céu, O frio se converteu ao ócio, Tudo que era tornou-se óbvio, As palavras deixaram o sentido, Inocentes e perseguidas, Bandidos bons, A guerra era mais vantagem, A fome não mais novidade, Deus deu de ombros e se foi.

Andreza Andrade | São Paulo, Brasil | graduada em Letras Espanhol pela UNESP, Mestre em Literatura e Vida Social também pela UNESP campus de Assis, Pedagoga, atua como diretora de escola efetiva na Prefeitura de São Paulo, e atualmente cursa pósgraduação em Educação em Diretos Humanos pela UFABC.

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NA AREIA DA CORNUALHA | Leonardo Ramos I

em treze de novembro de dois mil e dezenove tento escrever um ensaio sobre cenas picturais em virginia woolf tentando e caindo para trás

quem tem medo de virginia woolf?

tento desver [de soslaio quartos e lados mas de onde ver? como ler sem um olhar direcionado? ser escolhido pela imagem então

é assim: “jacob se abaixou e pegou a mandíbula da ovelha, que estava solta ali na areia, não muito distante daquele casal, jazia o velho crânio de ovelha sem sua mandíbula. Limpo, branco, varrido pelo vento e polido pela areia, não havia pedaço de osso mais impoluto na costa da Cornualha. As plantas marinhas haveriam de crescer naquelas órbitas; o crânio viraria pó, ou talvez algum jogador de golfe, batendo em sua bola, um belo dia, dispersaria aquele montinho de poeira”

isto é o inquietante: a mandíbula da ovelha na costa da cornualha então será isto um tema 21


toda uma vida em uma nota melancólica um frame repetido voltar voltar voltar os castelos na minha conta a dinastia nas minhas costas ondas e ostras observando a concentração de uma ordem os primeiros dias disformes esperando o estalar dos dedos depois seremos o pozinho o montinho de poeira pisado por um par de sapatos agora somos príncipes das alturas

II

ao sudoeste de uma península

da inglaterra cornualha tem um passado medieval cornualha é uma terra de ruínas fantasmas do rei arthur

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já não me inquieta tanto a mandíbula da ovelha o fantasma de um império

se uma cidadezinha à beira-mar também sofre seus assaltos este texto também será reescrito e talvez também preserve montinhos de crianças envergonhadas [ou a beleza persistente de uma ordem que foi transposta

III

quando jacob vai dormir gaguejo gravetos gorjeios cutículas e os grandes dentes amarelos do meu avô

meu avô não é um crocodilo mas descobri recentemente que crocodilos podem ter relação com o divino [ou lorenzo bernini cair para trás estamos todos tentando eu sou uma tentativa existe uma linguagem inerente: somos partes perdidas dos primeiros pais eles quiseram se eternizar uns nos outros pela morte e nascemos nós: caranguejos opalas no baldinho da modernidade

IV

cornualha é a terra dos meus pássaros Leonardo Ramos | São Gonçalo, Brasil | e-mail: leonardorbgomes@gmail.com | instagram: @oalbatroz

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Plexo Solar | Isadora Lobo Arde a vela ao ler as cartas olhos olheiras de sombra de luz amarela, que é como que ao mesmo tempo brilho de sol e febre

Falo do peito aberto, Solar, mareado Esse das travessias de uma vida inteira

Do estômago matriz resultante de sentir e surpreender-se desarmado quando cede

Falo enquanto a vela (a tremular na carne) uma clareira a cintilar por dentro

Um lento marisco a descer pela garganta e o corpo quente, o corpo mole tatuado de um sol sem fim

Seguido de vinho e arrastados gestos descendo arde, conforme o corpo

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Vai abrindo, e aos trancados assusta.

Tudo isso ao ler as cartas e os olhos e a vela a garganta queimando as mãos respirando e o corpo caindo num abismo amarelo

E é por isso que quando se encontraram os olhos por um milésimo de segundo Deus suspendeu o tempo dando luz a uma zona vazia Limítrofe. entre a inspiração e a expiração.

Um par de lembranças, flashes, memórias vidas minhas e também de outros no tempo ou fora dele de viagens, Oceanos.

As crianças no mar seus ombros ardendo nem uma nuvem no céu

O que é o que é um pontinho amarelo no meio da gente? 25


E fora do Tempo, uma onda grande demais para poder existir te engolindo, e acordar assustado com gosto de água salgada na boca os pés afundando na areia a cada onda

E num relance novamente o olho me olhando no quarto amarelo, e as cartas no chão Imóveis

Assim será o Infinito no Instante aos que tiverem a coragem de permiti-lo

E voltar dele será como acordar de manhã.

Isadora Lobo | Brasília, Brasil | https://www.instagram.com/idrlobo/

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Água salgada | Andriele Moraes Denise se afundava em água salgada toda vez que a dor doída criava buraco no corpo. Preenchia com o sal aquilo que já doía até demais pelos braços, pernas, cabeça. Carregava nesse modo de lidar com a própria dor um jeito do mar levar e ficar. Levar a dor e fincar com as cicatrizes pra lembrar que ferida que é ferida dói em gente grande até formar cascas de não sei o quê. Do corpo de Denise, de buraco nada dava pra ver depois que, sem muito gingado, saia da água funda sem as rachaduras na pele. Antes de entrar, do corpo se avistava cova, rasgo, brecha feia, vácuo de mulher sem saída pra sofrimento. Quando Denise olhava-se no espelho e reparava esses caboucos, tratava de curar com a água salgada. O olho, a boca, o cabelo, todo corpo de Denise tinha era rastro de sal. De sal só não. De água também. A coitada da mulher vivia molhada. Era o jeito que arranjava pra curar a dor funda no peito. Ela já havia nascido com o rombo da vida no próprio corpo. Batizada no mar, ninguém tinha conhecimento do próprio nascimento. Registro tinha não. Nome foi dado pelos outros. A existência de Denise já era cheia de buraco. De família, só as coisas ruins que ficavam em casa. Do mar, o próprio nascimento e renascimento. Foi assim que aprendeu a se curar de coisa ruim. A coisa ruim do marido. A coisa ruim do filho. A coisa ruim da vida. Era coisa ruim de rombo bem arrombado que era curado com água salgada que batia no ferimento de dor bem funda. Naquela profundeza de angústia e da água salgada, Denise esquecia quem era. Não reconhecia o próprio corpo feito de matéria de rachadura. O sal juntava todo o rompimento do torso de Denise. A mulher sentia o acolher de todo esse ajuntamento. Quando se preparava pra sair do mar, já saia com os vazios dos buracos sem dor pra voltar pra vida de quem é o tempo todo perfurado pelas entranhas, de quem não vê nem a identidade.

Andriele Moraes | São Paulo, Brasil | pernambucana, 24 anos, jornalista, uma das criadoras do clube de leitura e do podcast Clube do Livro Feminista.

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VOYEUR DE MIM MESMO | Anaximandro Amorim

Voyeur de mim mesmo [No reflexo do seu corpo-espelho é a mim que me vejo]

Um ópio-recôncavo volitivo de um convexo

[Porque a felicidade é fugaz e meu desejo-decidido arde em mim um todo desejo de amar um amor de iguais]

Anaximandro Amorim |Vitória, Brasil | Professor de língua francesa, escritor, licenciado em Letras-Francês e Mestrando em Estudos Literários pela Ufes.

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Gênesis | Raul K. Souza quando vou ao litoral sinto que as sardas e a pele que descasca a mão que toca levemente a curva sinuosa e próxima do oceano estão ficando num lugar onde não permaneço a um paraíso que se abandona com outras roupas que se cobrem vergonhas e se planeja o trabalho. olho com toda a minha finitude trás do banco do motorista para o castelo de areia e o surfista olho com finitude como alguém que morre nas férias e não se sabe o que fazer, pois é verão. ouço aos 10 anos numa mistura de dr. manhattan os poemas do raça negra no banco de trás do meu anti-herói tem o samba pós mar, fritura & sal e sei que posso dormir porque estou indo pra casa

Raul K. Souza | Curitiba, Brasil com formação em Filosofia, largou uma especialização em Direitos Humanos para andar de bicicleta e depois também largou a bicicleta. Atua como Editor na Kotter Editorial. “Ligações que rasgam” (Kotter, 2021) é seu primeiro livro. Muito crítico, pois virginiano. | raul.kevinss@gmail.com

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O SEGURO NÃO COBRE | André Mellagi

A primeira vez que pude ver a serpente gigante de perto foi quando a polícia resolveu liberar a entrada ao prédio. Ela permanecia ali, enroscada em volta do arranha-céu, a cauda começando no terceiro andar e terminando a cabeça até a cobertura, no vigésimo-primeiro. Após avaliações conjuntas de engenheiros e biólogos, decidiram que a serpente estava numa espécie de hibernação e que não causaria danos à estrutura do prédio, nem perigo aos seus frequentadores. Descartaram que estivesse num forrageio de espreita, prestes a atacar quem se aproximasse. Análises de seu abdômen apontavam a uma localizada dilatação na circunferência, onde apuravam que havia engolido um ou mais animais de grande porte, cujas espécies ainda eram tema de conjecturas. Os escritórios, as lojas e a empresa onde eu trabalhava pressionavam as autoridades a tomar uma rápida decisão, uma vez que todos arquivos estavam no interior do prédio e os prejuízos aumentavam a cada dia sem expediente. O Tavares, desde o momento que se deparou com a serpente enrolada no prédio, não parava de olhar o relógio, como contasse o tempo se esvair enquanto ficava do lado de fora e os prazos do balanço do mês apertavam. Entramos em silêncio, alguns correndo apressados, receosos de que aquele corpo longilíneo pudesse apertar a construção até esmagá-la. Finalmente!, foi o alívio que saiu do Tavares ao marcar no relógio o término daquele sufoco. Acendemos as luzes, ligamos os computadores, acessamos os bancos de dados, os e-mails. A contabilidade teve que trabalhar o tempo todo com a visão do ventre da serpente, que tampava a janela da sala. Naquele dia o Tavares só liberou a gente sair depois das 23 horas, dado o serviço acumulado. Nos intervalos quiseram ver mais da serpente. Foram até a cobertura, tiravam selfies com aquela cabeça inerte de fundo que parecia impassível à nossa presença. Um jornal da cidade veio até me entrevistar para coletar um depoimento de como era trabalhar com aquele monstro que escolheu nosso prédio de morada. Um monte de perguntas para sair só duas linhas de tudo o que falei na reportagem. Os dias se passaram e aos poucos conseguíamos recuperar o cronograma atrasado. Iria ter hora-extra e adicional de periculosidade, prometeu o Tavares. Vai saber. Não era a primeira vez que ele passou a perna na gente, quando garantiu que o vale-refeição daria até o fim do mês. Só se fosse para comer um sanduíche no trailer da rua. E o pior, é que o Galego aumentou o preço do sanduba depois que muitos curiosos vieram até aqui para ver a serpente. Aos poucos conseguimos atingir a meta e o adicional viria parcelado nos dois meses seguintes. Fazer o quê. Já era hora de me esforçar mais e procurar outro lugar para trabalhar, 30


oito anos na mesma empresa e sem uma promoção que justifique a má vontade do Tavares. Ele com seu tique de olhar o relógio e eu tomando um café enquanto encarava o dia se pôr, refletido nas escamas da serpente. Foi quando me colocaram no quinto andar, no almoxarifado, pois a Sônia não aguentou e pediu as contas. Ela tinha pavor de cobra. Dois meses sem ninguém organizar aquela bagunça. Contei 53 caixas. E cinco ovos de serpente.

André Mellagi | São Paulo, Brasil |47 anos, é paulistano, psicólogo e escritor. Publicou pela editora Patuá os livros de contos Bricabraque (2017) e Interfaces (2019), além do ebook de minicontos Prosas Breves, Mínimas e Semifusas (2021). Já colaborou com contos,

textos

e

fotos

em

diversas

revistas

eletrônicas

e

impressas.

| agmellagi@gmail.com

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está tudo certo | Paulo Arce I mendigos e dementes amontoam-se na praça do centro em meio a pombos, cães vadios e uma multidão que está morta por dentro II no pé da escadaria da igreja matriz um louco começa uma briga que não pode vencer: cai de costas estendido e cospe no chão com vigor III duas mulheres conversam alto com as bocarras destampadas à mostra sobre o valor da vida: se for pra morrer, morrem mas não vão ficar presas em casa IV um ônibus lotado passa ao meu lado uma adolescente prensada no interior luta para manter o rosto afastado do turbilhão como se lutasse pela própria vida e não é pela vida? V o programa no rádio dos dois idosos que bebem na calçada e fumam conta que somos governados por psicopatas arquitetos desta realidade fétida que temos que habitar os dois dão de ombros e servem mais cachaça: a verdadeira ameaça é vermelha VI chego no escritório e meu colega de sala me conta que está há três dias com falta de ar Paulo

Arce |

Campinas,

Brasil

|

é

funcionário

público

e

professor.

|

paulob.eduardo@gmail.com

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[FEBRIL] | Pedro Pedrosa

Só disso sei, deixei o sentido às traças do que já fui. Fecho os olhos e ainda vejo estes Campos de Carvalhos, o que em outra vida poderia ter sido, mas ele domina melhor o meio que o naufraga, a gramática, os tempos. Ficha técnica, ritos iniciais, a vigorosa novela de Aldous, me cercam obrigações, reflexos mal ajambrados, trechos e cacarecos do que interrompi no meio ou do que se deve finalizar, mesmo que não se saiba como. Não domino o meio, mal ele me domina também, são apenas palavras, eu tento me convencer, não são bichos, não são monstros. Não há nada de eticamente reprovável em se apagar uma palavra, não é como tirar uma vida, por mais que pareça. Não é um crime errar uma vírgula, as vírgulas não se ofendem. Se eu nunca mostrar este texto a ninguém, a gramática não será ferida, não desperdiçarei o tempo de nenhum leitor, o novo acordo ortográfico não será descumprido. Não existe palavra de má índole.

Talvez índole seja a única palavra de má índole.

De qualquer modo, É só uma luta que travo contra o febril. Toda vez que penso ou escrevo essa palavra, ouço o cantar (gritar?) de um gavião. Não suporto mais seus limites, sua visão dormente, os medos que sempre se consultam a terceiros para se legitimar como medos, e, pelo amor de deus, ainda bem que falou: os sonhos. Os sonhos do febril. Ainda tento me convencer que são sonhos. Como seriam sonhos, se não dormi? Foi uma noite inteira de virar de um lado para o mesmo, ignorando o outro, nadando em meu suor e nas toalhas que ele consumiu, lembro perfeitamente bem da parede rente ao meu rosto, como seriam sonhos? Como seriam sonhos se nos próprios sonhos, eu descrevia meus sonhos, já duvidando que fossem sonhos? Peguei uma van com meu pai, passando por vários municípios do interior de meu subconsciente, raras vezes vou até lá. A verdade é que se pareciam e muito com as quadras comerciais de Brasília, mas entupidas de fliperamas e de rostos conhecidos. Era madrugada, uma daquelas madrugadas que duram dias, numa loja de inconveniências eu contava à caixa de um sonho que tinha tido, minutos atrás, onde eu estava na casa de um casal de professores de palhaçaria e os contava do febril. Eles riam, com os cantos dos olhos, e se usavam de seus silêncios para me 33


chamarem de vitimista. O homem, irônico, e sua maneira italiana de me apressar a amarrar os sapatos, e a mulher, linda, silenciosa, seu olhar fala mais que um manifesto, ela parece dominar toda a estranheza que me aflige e me tira o sono. Como fui parar ali? Novamente desperto. Procuro o termômetro derrubando tudo que há de pé ao meu redor. E antes que o encontre, estou no Jardim de Alah, com meu pai e meu irmão, voltando para casa, passo por Rahira, mas não a cumprimento, com medo de ela não me reconhecer. Conto a meu irmão do sonho onde eu e meu pai pegávamos uma van e passávamos por várias cidades pequenas como Guaraíra, Joyce e Carne Assada*. Poderia ficar a noite inteira, se fosse noite, assim, como de fato fiquei, reconectando os sonhos onde eu contava de meus sonhos aos personagens de meus sonhos.

Por isso me aflige tanto o febril a ponto de eu querer expulsá-lo da primeira pessoa: nem sei.

Vá pra porra. Vou tomar uma novalgina.

*Destas cidades, a única que sei que realmente existe fora do meu subconsciente é Carne Assada. Fica na Bahia.

Pedro Pedrosa | Rio de Janeiro, Brasil | é graduado em Bacharelado em Interpretação Teatral pela Unirio, integra o duo musical Pedroso&Pedrosa e colabora com os coletivos Grupo Sem Cara e Semáforo Afogado. | pedropedrosamar@gmail.com

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De ouvido | Diogo Bogéa

Ouve o som do verdejar campestre que ao toque afável do invisível vento treme, embalado por este acalento o que nos diz a vibração terrestre?

Ouve o som dos astros murmurantes obedientemente percorrendo elípticos ciclos, translações constantes o que nos diz o universo, havendo?

Ouve o ritmo algorítmico dos números zeros e uns num pulular frenético sob a atenção de arcaicos energúmenos não ouve a voz dos ciclos cibernéticos?

Ouve o som da face avermelhada do arrepio e do olho que desvia da brasa interna, muda e acelerada o que o ardor amante nos diria?

Ouve o som errático das máquinas estranha sinfonia barulhenta reproduzindo dissonâncias sádicas que tem a nos dizer a ferramenta?

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O que? O que? O que nos dizem afinal as coisas? Todas as coisas dizem: Nada… Nada… Pra quem souber ouvir o seu silêncio.

Diogo Bogéa | Niterói, Brasil

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CULTIVO | Lucas Luiz p/ Beatriz Helena

Quereria saber os mecanismos do encanto: se basta o encontro.

Ou se é possível firmá-lo quando somente na raiz da palavra.

E diria, então, quem sabe algo de beleza inconteste:

o verso a germinar orquídeas na seiva do peito.

Lucas Luiz | Guararema, Brasil | lucas.gma@hotmail.com

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1989, | Felipe Eduardo Lázaro Braga

O som era um disparate de pancadas. Até virar música, eram altos e fechados timbres como tiros. A voz grave, metálica, conferia unidade à falta de coesão. Uma queda seca era seguida de dois metais, o quarto som era sempre inesperado, o tempo variante do intervalo impedia expectativas. A voz puxava o ar em volta pra cantar com agressão um verso meio pronunciado, o som pulmonar chiava a duração inteira da música. A velocidade rítmica aumentava e diminuía na sequência física daquela respiração enferma, alucinada, os sons entravam no corpo daqueles gritos. Uma sequência rápida de batidas elétricas e idênticas cortava o volume dos socos e tiros, aqueles sons literalmente caminhavam entre a gente, atravessavam a porta do quarto branco e infiltrado, tinham cores e cheiros. O percurso era átono em suas unidades, mas formava, no conjunto, tudo o que precisávamos ouvir. Era uma unidade perfeita de aparições sonoras, cada ruído isolado sangrava, para recompensar no conjunto. A percussão da madeira quebrada vibrava minhas sensações mais remotas, vibrava órgãos e músculos, de modo que quem produzia o som era meu próprio corpo, de dentro pra fora, até a saliva do Gabriel. Meu medo era de que a música ficasse insuportável demais a ponto de não aguentar tanto prazer, de não seguir mais a altura da última nota, de pular da janela desesperado e agradecido. Era isso que a gente fazia, ouvia música juntos. Esse trecho do Otávio tá amarelo e oxidado na borda, e o raciocínio, intacto, permaneceu em mim por causa da ausência: nós três tivemos o privilégio de transformar a generosidade política dos anos 60, que herdamos via lucidez afetiva dos pais, em uma compreensão íntima de Minas Gerais, nós iniciamos o intervalo de uma adolescência que durou até não ser urbana. Naquele janeiro de 1989. O plano de viagem, premeditado de formatura, e colorido na véspera de um fusca azul, transformou em escala nossa proximidade de anos: levar o carro à penha por vários municípios, com os Montes meio sem prazo no fim da estrada. Fugir de toda a caceteação dos anos mais irritados, que nem eram tão ruins. Aliás, que eram puro privilégio. Seguindo as sensações do corpo mútuo, abandonadamente lisérgicas, corpo e consciência um do outro: critérios de afinidade. Enfim, viver um conteúdo remotamente ideológico que a gente batizou de ócio. Nós éramos jovens e homens. Portanto, só conseguíamos compreender o mundo a partir da nossa vontade mais imediata. Todos os ideais que professávamos, não passavam de uma caricatura de pertencimento, aprendemos a pronunciar corretamente as expectativas ideológicas do entorno. Esse foi o verdadeiro conteúdo

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da nossa revolução: não melhoramos coisa alguma, mas fomos suficientemente corajosos para viver as consequências da imaturidade. Durou alguns meses, e foram bons. Não durou meses, a nossa viagem, como todas as juventudes: duraram pessoas. Centenas de milhares, devastando um muro de secessão comunista. Dezenas de milhões, votando pra presidente pela primeira vez na vida. Cazuza lançando seu último O Tempo não Para. E um sujeito completamente anônimo, carregando uma sacola de frutas, parou em frente a uma fileira de tanques, impedindo-os de chegar à Praça da Paz Celestial: 1989, Santana dos Montes – Minas Gerais. De quanto à pressa, a pessoa na minha frente era sempre uma continuidade enorme. A parte mais interessante de estar na presença de alguém, era recolher os sintomas que me permitiam enxergar a distância mais interessante dela. Eu queria encontrar, no tom de voz impositivo ou na simpatia caricata e subalterna, o compromisso físico daquele sujeito com o próprio prazer, com as várias complexidades do corpo disponíveis à exploração. Encontrar as pessoas na rua era, pra mim – e também pro Otávio e pro Gabriel, depois que eu compartilhei essa minha pequena obsessão –, o mesmo que encontrá-las no quarto branco com as paredes infiltradas. Ou no escuro, na vegetação cerrada, em Minas Gerais. Eu não fantasiava nenhuma reciprocidade, eu gostava de julgá-las fechadas em seu próprio egoísmo, eu queria encontrar, em todos, a violência, o rosto contorcido, as expressões sem controle, eu queria que as pessoas escorressem diante de mim. E não comigo. Elas eram, a todo momento, uma presença expandida, elas eram o efeito colateral passageiro de um outro mundo mais genuíno, onde o melhor de mim se realiza apenas na fração de prazer que eu ainda não aumentei. Em cada uma delas, na rua, nas compras, quem visitava, eu enxergava o mesmo desespero de satisfação, ou desprezava a inércia comedida de quem não aceitou enfrentar o próprio esgotamento. O erotismo universal conduzia minha empatia, de modo que o critério de interesse de uma personalidade era a personalidade que se realiza longe, era sua incapacidade de banalizar o prazer, de produzir sempre e renovadamente novos impulsos de sensação. Até onde uma pessoa é capaz de ir era nosso critério pra julgar até onde uma pessoa chegou. Ou, dito de outro modo: só existem duas formas de terminar a juventude, e a pior delas é envelhecer.

Não tenho, de minha parte, o mais remoto medo de voltar a janeiro, aquele mesmo que em Santana dos Montes se manteve ileso: 31 anos inviolados. Olha o que eu achei, no meio de A Insustentável Leveza do Ser. É do Otávio, amarelo e oxidado na borda: “O tato contornava a 39


temperatura de nós três, éramos três artesanatos de suor. O fim do meio dia colava nossos corpos até o melhor suspiro, num segredo grato demais pra guardar. Tão próximo um do outro, que é outro até onde eu mesmo?”. Sensacional, Ota. O “melhor suspiro”, porém, é um palpite autoral meu, a caneta azul começou a falhar na frase anterior, e obrigou o texto dele a terminar de preto, com o “melhor suspiro” no contorno reforçado dos dois tons. E a caligrafia, extensa e amaneirada, mais exibicionista do que clara, é sinônimo de uma personalidade feminina, que ele sempre teve. O Otávio merecia ter vencido a juventude, ninguém com tamanha multidão dentro de si tem o direito de terminar impune. É o nosso mártir da juventude: ao se transformar na juventude que termina, ele acabou humanizando o fim, virou o tempo de quem se lembra. De modo que as durações sejam pessoas, para que acabem, é o Ota. O quarto do limite anterior, com as paredes infiltradas e antigas de tinta branca, é sempre insuficiente, há o passo mais largo depois da exaustão que o corpo exige de novo, pra fora das mesmas paredes brancas transpirando. Esse corpo não entende o meio termo: ou ele é mais, ou ele desiste. De modo que a vida começa a convulsionar tão violentamente, que deixa atrás de si um rastro irrespirável de destruição e palidez, uma beira de espasmos que é dor, agonia e sobrecarga, no meio de tanto prazer. Até ser sangue, eu realmente pensei que fosse prazer inédito, um rosto bonito, sorridente e contorcido, no limite insuportável de si mesmo, linha em que o prazer cruza o desespero. E depois disso, tudo já é inevitável: sangue, vómito e sémen, e gente jovem demais deitada de bruços. Eu e o Gabriel. Acabar é a intensidade impossível – a própria definição de intensidade absoluta – que não pode ser maculada com medo ou culpa. Por que pedir desculpas? A gente tem que ter convicção dos próprios erros, sentir até o fim, quando o corpo se divide em inúmeras velocidades antagônicas, cada centímetro mobilizado para sua própria satisfação. Com sede. Experimentar o limite descarrilado desse percurso. Chegar ao prazer definitivo sem uma lágrima. Melhor se sujo, exausto, amado pelos amigos. E no instante definitivo em que a última respiração ainda é sensação, presa no pulmão até o segundo exato que me ultrapassa, a paga: finalmente extrema, insuportavelmente aliviada. Todos os guitarristas, no auge de suas próprias adolescências, prometeram que, como um shot de heroína, o último prazer até onde o corpo dá conta, é.

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Felipe

Eduardo

Lázaro

Braga |Osasco,

Brasil

|

sociólogo

e

linotipista

| braga.felipe@aol.com

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ainda que cantemos, é miragem todo espelho | Raí Prado Morgado “se eu quiser falar com deus tenho que aceitar a dor” Gilberto Gil

I. amar ainda e mais o que se perde não ficou pra trás se ainda existe na memória

mesmo que seja só a silhueta o barro suspenso de quem vai embora

II. toda morte é em si uma festa o fim do mundo ou o cabo da espera como uma chuva de estrelas cadentes em uma grande nuvem de solo água prédio e gente finalmente devolvida ao universo

e o horror de saber que o mesmo deus tem vários nomes vários tempos vários povos a mesma falta de rosto

Raí Prado Morgado | São Paulo, Brasil

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Gentileza | Bruna Rocha

O passo que alguém da para trás Para que o outro siga em frente Um sorriso em dia de chuva Um bom dia num dia mau

A sutileza de um gesto Capaz de mudar um ser inteiro Se hoje eu fui o alvo Que amanhã eu seja o arqueiro

Bruna Rocha | São José do Rio Preto, Brasil | runalaisrocha@hotmail.com

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Israel | Herbert do Nascimento

Poderia ter sido numa sessão de análise – se eu fosse burguês o suficiente para gastar o dinheiro que não tenho com isso – quando fiz umas ligações malucas na minha cabeça. Meu cérebro não tem conserto, não adianta chorar e nem espernear, minha vida adulta começou em algum momento entre o dia em que eu bati minha primeira punheta e o dia em que eu troquei sozinho uma resistência de chuveiro pela primeira vez. Minha vida adulta terminou, porém, em algum momento entre o dia em que eu quebrei a porta do meu quarto com um soco e o dia em que eu quebrei minha testa na parede. Que não exista definição para o meu problema, contento-me em reclamar das injustiças na minha vida e das relações de consumo que ditam as regras de interação entre as pessoas na sociedade contemporânea. Não aceito nenhuma das duas. A vida e as relações. As injustiças e as interações. Se pudesse, ficaria comendo miojo de cueca com a cortina fechada o dia inteiro, sabe Deus o porquê. Provavelmente porque quando nasci, um anjo torto, desses que vivem nas sombras, disse: vai, H., vai tomar no meio desse seu cu. Mas divago. Como em toda boa sessão de terapia (ou assim eu imagino que elas sejam), eu começaria o processo de livre-associação falando da minha infância. Quando eu era garoto… Mas isso numa crônica sobre as pessoas mais singulares da maior metrópole do mundo fica chato para caralho. O caso é que meu pai tinha um Opala (teve três ao longo da vida) e o que protagoniza a lembrança era branco. Um carro sólido: por fora tinha massa e ferrugem no lugar de lataria; um carro confortável: por dentro tinha molas e queimados de cigarro no lugar de bancos; um carro moderno: tinha um siri dentro de uma bola de vidro no lugar da manopla de câmbio (na verdade essa eu inventei, mas bem que poderia ter). Um Opala branco. Na época em que carro branco em SP era táxi ou ambulância, era o que dava para o meu pai. Pisa no freio. Solta o freio. Pisa no freio. Solta o freio. Era esse o diálogo entre pai e filho num domingo ou sábado à tarde na garagem de casa. O cheiro de cigarro e o calor dentro do carro me agoniavam. Não tinha escolha. Pisa no freio. Solta o freio. Não, caraio, o freio, moleque! Isso é a embreagem! Meu pai se irritava porque tentava sangrar o burrinho. Muito do vocabulário que eu ouvia sair da boca do meu velho tinha a ver com o Opala. O burrinho, o alternador, o cabeçote e a junta do cabeçote, a cebolinha, o radiador, o carburador, a embreagem, o trambulador, o homocinético (para nós era uma peça masculina, quem 44


já viu um sabe o porquê), o abafador, o silencioso, o cachimbo, a vela, o chicote, o coxim. Tudo isso quebrou, estava para quebrar, foi consertado ou ficou para consertar. O Opala (branco) foi sucedido por um Corcel, depois por outro Corcel (branco e dourado, respectivamente), por um Verona (prata), por um Tipo (prata) e por um Classe A (prata). Na última vez que conversei com meu pai, falamos da válvula termostática, da tampa do reservatório e da suspensão (a do lado posterior direito do Classe A está fazendo um barulho que pode significar que esteja seca). Ele pensa em comprar um Peugeot (preto). Prevejo vícios ocultos nessa futura aquisição. Mas que diabos era sangrar o burrinho? Mais de dez anos depois, descobri que aquela porcaria tinha a ver com freio (por algum motivo, não era tão óbvio quando eu tinha 8 anos) e, portanto, tinha a ver também com a segurança da família e que meu pai, que não era mecânico, dependia do filho mais velho apertar o freio para poder consertar. Não tinha, como temi na primeira vez que me foi pedida ajuda, absolutamente nada a ver com sacrificar um pequeno animal de carga. Penso que tal associação não se deva ao fato de eu ter sido sempre maluco, mas, antes, por eu ter sido uma criança religiosa – o que, digase, é quase a mesma coisa. Pois é, uma passagem que me fascinava quando menino era a de Abraão, quando Deus ordenou que imolasse Isaque nas montanhas de Moriá (Gênesis 22:2 para referências). Deus, no fim, manda um carneiro – ou bicho que o valha – para que Abraão ofereça em sacrifício e poupe o sangue do próprio filho (spoiler alert?). Não era um burrinho, mas um carneirinho. Ainda assim sangrar o burrinho sempre me lembrava do quase holocausto de Isaque, e, quando conheci o Israel numa travessa da 9 de Julho, a história toda veio na minha cabeça. Porque Israel foi o nome que Jacó (filho de Isaque – o que ia ser sacrificado, mas não foi) adotou por algum motivo que não me lembro, depois de trocar de lugar com Esaú (o maior burrinho que aparecerá, ainda que brevemente, nesta história) pelo direito à primogenitura. Eu estava bebendo uma cerveja, minha vira-latas branca, como sempre, amarrada na minha perna pela coleira, em um boteco ali perto da 14 Bis, depois de mais um dia de briga intensa com a minha mulher. Ficava pensando no meu dinheiro, que ainda demoraria mais dois meses para cair depois do último trabalho, e comprava mais um litrão com dinheiro emprestado. E eis que chega o Israel. Apresentou-se, maltrapilho e sujo, as manzorras nodulosas estendidas numa saudação desajeitada. Pediu não um cigarro ou um gole de cana, mas algo para comer. Pensei na minha carteira, na grana para cair e nas 45


brigas todas e falei, patrão, o senhor me desculpa, mas olha bem para mim e me diz se não tem ninguém melhor pro senhor pedir um lanche. Uma puta de uma resposta escrota, eu sei. Mas como numa sessão de análise – ou num tribunal –, estou aqui para falar a verdade e somente a verdade. Uma moça na mesa ao lado pagou um pastel para Israel e ele começou a puxar papo. Falou do restaurante comunitário que não tinha senhas suficientes para todo mundo. Falou dos documentos que tinham roubado dele. Falou dos serviços que faz e pelos quais não recebe. Ofereceu uns livros que tinha consigo. Enfatizou, entretanto, que não tocássemos nos livros de inglês, já que ele estudava o idioma. Carregavaos numa bolsa velha, dessas que deveriam levar tacos de golfe ou cadáveres, dessas que se usam para carregar roupas para uma viajem longa até o norte. Conversamos por mais uns minutos, ele me falou dos joelhos que já não eram mais os mesmos e que por isso não conseguia trabalhar, mas que no seu tempo podia descarregar um caminhão de tijolo e até mais do que isso. Disse que agora ele já era. E que tinha que ir. Agradeceu a mim, que não tinha feito absolutamente nada, numa atuação mais inútil que tentar ajudar meu pai com os freios do carro. A mim, que há três décadas não tenho prestado para nada além de reclamar das injustiças na minha vida e das relações de consumo que ditam as regras de interação entre as pessoas na sociedade contemporânea. E agradeceu também à moça que pagou o pastel (e que, no fim, não pegou nenhum livro dos de Israel, já que o que ela queria de verdade era o de inglês). Eu disse a ele que por favor ficasse bem, que Deus que lhe abençoe porque tudo vai dar certo para o senhor, viu? Ele meteu a bolsa nas costas e se foi. Eu fiquei e me sentia um lixo. O Israel bíblico dormia com a cabeça sobre uma pedra a caminho de Padã-Arã quando Deus deu a ele uma visão. Nela, o filho de Isaque recebe promessas de bênçãos diversas, a si e à sua descendência. Não precisa ser um gênio para saber que o Israel da Praça 14 Bis vai ter sorte se conseguir uma pedra sobre a qual repousar a cabeça. Ele não terá a visão de uma escadaria que se estende aos céus e pela qual sobem e descem anjos e, certamente, não terá bênçãos diversas como as que foram prometidas ao seu homônimo bíblico. Ele não vai ficar bem. Eu sei disso. Ele sabe disso. Você, agora, também sabe. Fiquei no bar mais um pouco, terminei a cerveja já quente e voltei para casa com a cachorra. Tinha um gosto amargo na boca. Pensava ainda nas contas, nas brigas e agora também em Israel. Às vezes me pego pensando em como não sou capaz de processar essas coisas como deveria, como tenho uma visão adolescente (romântica, autodestrutiva

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e reclamona) desses eventos, grandes e pequenos, que acontecem comigo ou passam pela minha vida mais ou menos rápido. Porque minha vida adulta começou em algum momento entre a morte do meu primeiro cachorro no interior de SP e quando adotei a atual cadela com a minha mulher na Zona Leste paulistana. Porque minha vida adulta acabou em algum momento entre eu ter largado meu emprego para viajar e ter voltado da viagem. E porque, sobretudo, a jornada da Terra Prometida até o bar sob o viaduto da 14 Bis é apenas um passo para quem não tem a mente amarrada à perna pela coleira e nem dinheiro para uma sessão de terapia.

Herbert do Nascimento | Belo Horizonte, Brasil | “Ex-operário. Às quartas, escrevo.” |herbert_hn@hotmail.com

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Interdito | Jessica Ziegler de Andrade

O apelo do corpo, imbróglio obscuro trepida

O desejo constrói caminho no atalho sem saída

O sentido penetrável do riso esconde-se no risco interdito

Sonhar tem um cheiro vivo que só quem se masturba no escuro decifra

Jessica Ziegler de Andrade |Rio de Janeiro, Brasil | autora de “O tanto que me habita” (Patuá, 2021), mestranda em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ) e advogada graduada em Direito (UNIRIO). Compõe o conselho editorial da Revista Mallarmargens. Compartilha escrita e literatura no perfil do instagram @jzpoesia

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“Velhice” e “O leitor à janela” | Sidnei Xavier dos Santos

Velhice os avós morrem porque sabem algo sobre o mundo que ignoramos, já que somos tolos e apegados aos penduricalhos da vida, quanto mais velhos e senis daqui partem mais certos ficamos que queriam revelar-nos o enigma quanto a que nos dedicarmos enquanto vivos, por isso se agarram até o último sopro mesmo sem voz e juízo, inertes na cama com o segredo nos lábios, observados por quem lhes abriu o mistério, incrédulo que ainda tentem exercer o livre-arbítrio. O leitor à janela leio este livro grosso até o segundo capítulo não porque canso de lê-lo, pelo contrário, decerto o leria todo sem levantar da cadeira a semana inteira, porém, vou lento até a janela e olho a rua vazia, a cidade calada, as entregas que chegam às casas sem alegria do espanto e estardalhaço, e o enfado dentro de mim se desloca

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das pernas que querem voltar para a rua ao cérebro que afere o contraste que há entre o murmúrio penoso escondido debaixo das portas e a vida assombrosa e impalpável que leio, chorando, nos livros.

Sidnei Xavier dos Santos | São Paulo, Brasil| (1973) é professor de Literatura e doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, autor de Radares da tarde (poemas, Selo Badaró, 1998), Adão desdenha o Paraíso (poemas, Quelônio, 2017), vencedor do Prêmio Nascente USP 2016, e A linha augusta do campo (novela, Quelônio, 2020). | sidneix@hotmail.com

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Capivaras | Gusthavo Gonçalves Roxo

Esse lugar tá cheio, gente por todo lado, livros por toda parte, dizem que esse é o maior público da Bienal na História e ainda não é nem meio dia. Meus amigos e eu marcamos um lugar em comum, entre três estandes, para nos encontrarmos durante as buscas literárias. Comecei procurando um livro da Wisława Szymborska, grande poeta polonesa, seu livro fino e um tanto caro não coube no orçamento do meu bolso, pouco mais de cem páginas, metade em português, metade em polonês, não faria muito sentido dar 70 reais para 50 poemas, tendo apenas 43 trocados incluindo a passagem. Quando voltei do estande e fui ao ponto de encontro, uma amiga minha sorria de lado a lado, “Encontrei o Daniel”, perguntei que Daniel?, “O Daniel que estudou com a gente, dá 203 pô”, não lembrava de nenhum Daniel, ela sabiamente percebeu completando “Tudo bem ele também não lembra de você”. Ela me apresentou um livro laranja, era uma longa história em quadrinhos chamado Persépolis, disse que foi sugestão do tal Daniel, pelo visto ela valorizava muito o que esse cara comentava. Me despedi e fui a outro estande, procurei uma obra de Saramago, Claraboia, o segundo livro escrito por ele e publicado apenas depois de sua morte, achei um exemplar defeituoso custou apenas 8 reais e tinham tantos, parece que as pessoas só pegam os seus títulos de maior sucesso e não ouviam o que o jovem José queria dizer. No retorno mais uma vez minha amiga sorrindo disse “Encontrei a Amanda!”, respondi, Que Amanda? “A que ficava com a gente na ponte depois da aula no sétimo ano!” Não lembro, adimiti, acho não andava com vocês naquela época.“Tudo bem, ela também não lembrava de você”. Sorrindo minha amiga me mostrou um livro verde do Neil Gaiman, o título se escondia embaixo do nome em fonte alta do autor, Lugar Nenhum, ela não soube me dizer sobre o que era o livro, mas pareceu empolgada, foi sugestão da Amanda, ela disse, um livro que ela nunca se esqueceu. Nos separamos mais uma vez, fui em outro estande procurar um livro da Clarice que nunca tinha lido “A legião estrangeira”, contos cotidianos, escritos por uma jovem nada comum que só viria encantar o mundo de verdade, muito tempo depois. Voltando para o meio do pavilhão, encontrei minha amiga Larissa sorrindo para um livro, Memórias do Subsolo de Dostoiévski, dizia em voz alta que esse era o livro favorito de André Cardoso. Perguntei a ela quem era André Cardoso, ela olhou

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para mim e perguntou “Quem é você?”, disse que não sabia quem era e ela respondeu “Tudo bem, eu não te conheço também”.

Gusthavo Gonçalves Roxo | Rio de Janeiro, Brasil | Carioca, Museólogo e Escritor. Atualmente

é

Mestrando

em

Arqueologia

no

Museu

Nacional/UFRJ.

|

gusthavogoncalvesroxo@gmail.com

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ainda não | Juliana Maffeis

ainda não se sabe muito bem como desenrolar um mecanismo porque o organismo falha. o risco existe quando nosso corpo vive às voltas de outros corpos. a carne estranha os olhos cansados e a maior parte dos vínculos busca pelo desconhecido antes do arrependimento. uma euforia distrai há bem pouco tempo, desde ontem. nenhum fato impede o organismo da tentativa de defesa. se a curiosidade é perigosa, o corpo sabe lutar. uma batalha consciente sugere a dor como um lugar quentinho capaz de acolher o peso do futuro na força de meu punho.

Juliana Maffeis |Porto Alegre, Brasil | é professora e escritora. Licenciada, mestra e doutoranda em Letras, na área de Escrita Criativa (PUCRS). É autora de Solitária companhia de teatro (Patuá, 2017) e Quantas festas (Urutau, 2021), além de poemas e contos

publicados

em

antologias

e

revistas

literárias.

| @maffeisjuliana

/ maffeisjuliana@gmail.com

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Gavião peneirador | Valeska Brinkmann para meu avô

Gavião velho peneirador, peneirador gavião velho…

na restinga restou a ave no arbusto buscou areia boa para peneirar

Gavião velho peneirador, peneirador gavião velho…

o norte abriga a ave árvores grandes são raras os campos diversos cheiro de sal areia boa para peneirar há que se ter perseverança

Valeska Brinkmann | Berlim, Alemanha| nasceu em Santos, estudou Radio e TV na FAAP (SP). Escreve poemas e contos. Textos em diversas revistas literárias, traduções de poesia alemã nas revistas escamandro e Intempestiva; e em diversas antologias na Alemanha, Brasil, Portugal. É integrante do coletivo GLENSE – guerrilha literária espontânea na sala de estar. Trabalha na emissora de Radio e TV pública de Berlim, onde vive há 18 anos.

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Dois poemas em silêncio | Milena Martins Moura 1. porque tato é pacto esquecido porta afora, é frágil todo toque úmido é frágil a palavra molhada no vinho lambida e mastigada pelas fomes latejantes uma pele crua é qual banquete gosto e cheiro carne e grito leite e sal uma carne crua se deve comer de joelhos bem próxima à terra

que é onde rastejam as vontades insubmissas

2. o meu silêncio é pobre e tem chagas nas mãos de esfregar arestas para que não cortem outras peles

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reclama para si as coisas mortas [esquecidas] como fotos de família muito velhas nas paredes e saudades que não se tem mais

os girassóis de mercado murchando ao sol são o meu silêncio

[que aprendeu a ser silêncio em criança na fila da cantina carregando sua bandeja de fomes para sentar-se só]

tudo é meu nas minhas mãos que afagam o azimute

a sede dos cactos e dos camelos polaris mostrando o norte mas não a mim

e uma infinitude de surpresas mal executadas que se revelam nos sussurros

o meu silêncio não nasceu nos cantos mastigando nêmesis nem comigo

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[numa quinta-feira de oitenta e seis dois de outubro sete da noite]

ele veio depois feito irmão mais novo e cárie dente definitivo e tumor dançando com vassouras e engolindo o choro

ele veio depois

para aparar arestas que devem ser rombas e macias onde se mostram deixando apenas para dentro o fuso frio com que me envenena

Milena Martins Moura | Rio de Janeiro, Brasil | é mestre em literatura brasileira e tradutora. É autora dos livros Promessa Vazia (2011), Os Oráculos dos meus Óculos (2014) e A Orquestra dos Inocentes Condenados (Primata, 2021, no prelo). É também editora da revista feminista cassandra e integra as equipes de poetas do portal Fazia Poesia e colunistas da revista Tamarina Literária. Publica suas produções em diversas esferas artísticas no Instagram @oraculos_dos_oculos.

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“RECORTE DE JORNAL” e “FRAGMENTOS” | Aderbal Bastos Barroso

RECORTE DE JORNAL

Céu aberto com pancadas de chuva e fuga em massa da prisão. Na sessão variedades emoções à flor da pele para quem sofre de solidão. O sul tem safra recorde de uva, nasce bovino Bucéfalo. Silêncio total nas cidades pois este ano não teremos o Carnaval. Número onze. Deu cavalo, é a vida em um simples recorte de jornal.

FRAGMENTOS

Eu nasci palavra escrita, ouvindo poesia 58


e cantiga de roda, em uma noite de lua sextante a mergulhar no remanso do rio, o meu paraíso prosaico.

Cheguei ao mundo em uma sexta-feira morna, fim de tarde já quase ao anoitecer que se despedia da lua minguante e que acenava pela lua nova a três dias do ano novo judaico.

Cresci tomando sopa de letras e alimentando os meus sonhos entre livros e um cantar atávico.

O que eu sou hoje deixo pelos caminhos, fragmentos, desse meu mundo mágico.

Aderbal Bastos Barroso (Betinho de Celina) | Aracaju, Brasil |Nascido às margens do Velho Chico em Neópolis/SE. É autor de: “No Remanso do Rio” (2014); “À Sombra dos Oitizeiros” (2017); “Agridoce Melaço de Cana e Jabuticabas Maduras” (2018); “Carvão Aceso” (2019) e “A Casa que só tinha janelas”. Ed. J. Andrade, Aracaju/SE, 2021.

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Os tomates | Daniella Guimarães Araújo

todas as coisas deveriam se iniciar com uma vírgula

um respiro se contrapondo aos jogos vorazes

uma vírgula entre o assanho dos alfabetos

a cólera tem uma cor apressada e o ruído é ruivo e uiva

uma pausa é como o início das chuvas sobre as alpínias

gota a gota

a boca da terra no aguardo das chuvas

clarice, a lispector , sabia que a lentidão tem asas

por isso respiro mesmo sem respostas e um sem número de perguntas

ontem na hora do almoço no instante de sentar à mesa recolhi do canteiro os tomates

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lavei , cortei, salguei ,comi

eram tomates com gosto de vírgula.

Daniella Guimarães de Araújo | Sete Lagoas, Brasil| daniellaaraujo@yahoo.com.br

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Coluna | Coisas que o vento conta

por Pedro Belo Clara

Abril de 2021 TARDE DE CHUVA Cai com a cadência dos poemas brancos, das sonatas nascidas de beijos secretos e noites de luar. Se as margaridas riem e cantam sob graça tamanha, quatro pombos de asa agitada empurram-se no estreito friso da casa que tomou às rosas a cor. Um melro, mais dado a festejos, equilibra-se num ramo, cantando uma primavera de espigas e papoilas ao vento. Mas a velha senhora, espantada na sua solidão, só pergunta às nuvens: quem de vós me roubou as lágrimas?

Maio de 2021 O PRINCÍPIO DA COMPAIXÃO Margaridas silvestres sorriem ao sol da manhã. Quando apura o astro

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o mel do néctar que espalha, alisam as pequenas flores a alvura das suaves pétalas – como quem abre braços no culminar duma antiga dança de puro louvor.

Ao lume do olhar, do deslumbre irrompe o aperto duma ilusão tola. Porém, sábia a mão hesita. Que direito de num só golpe arrancar tão rudemente o coração à primavera?

E a lição do velho jardineiro é recordada entre grinaldas de perfume e luz:

as flores do teu carinho serão dádiva para os pássaros errantes.

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Junho de 2021

ACONTECEU EM MAIO Era uma dessas manhãs em que toda a vida canta, ao saber-se por uma graça imensa enfim despertada dum longo sono de gelo.

Algo de indizível crescia no secreto seio de tudo, fermentava e consubstanciava-se até não sobrar força que detivesse o mistério.

Então, as flores abriram viçosas como nunca, as pequenas ervas reverdeceram pela mão da alegria e até o mais pequeno insecto parecia dançar a cada breve passo seu.

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Chegou uma toutinegra, escorrendo raios de sol do bico. Tomando para si um ramo aberto a louvores, ofereceu ao mundo colorido uma ária que de todo o instrumento fazia companhia obsoleta.

Sem esperar aplauso, partiu de pronto num êxtase feliz. Diante tamanha maravilha, logo o pequeno chapim abandonou toda a pretensão de ser cantor.

(Em breve saberá da luz que o habita.) PEDRO BELO CLARA nasceu em Lisboa, Portugal. Um ocasional preletor de sessões literárias, atualmente é colaborador e colunista de diversas publicações literárias portuguesas e brasileiras. O seu último trabalho foi dado aos prelos sob a epígrafe de “Lydia” (2018). É o autor dos blogues Recortes do Real, Uma Luz a Oriente e The beating of a celtic hear.

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Coluna |Astronauta de Pulôver Azul Néon por Fabíola Weykamp

Abril de 2021 A GENTE LONGE para Ben e Theo a gente longe costumava cantar para falar da saudade da casa da infância rua sem saída futebol picolé e sol

a gente longe hoje não canta parece que a voz faz ninho na garganta cria passarinho que é choro mas a gente diz ter asas que é para o peito não arrebentar

a gente longe 66


dor que dói à beça pressa que se arrasta acumulando bolsas debaixo dos olhos olhos que se apertam para enxergar longe o que nem de perto se vê

a gente longe e o futuro à sombra como quem não nos vê chegar

é castigo meu passarinho quer bater asas mas só mergulha e nada nada feito bicho perdido bicho que não encontra outro bicho que não leva comida no bico que não alimenta ninguém

bicho preso não serve de nada

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a gente longe não serve para nada

só faz chorar um canto que não escapa voz que não chega aonde o coração da gente se demora quando ama

Maio de 2021 três Para Thamires Araújo há semanas a enxaqueca a acompanha e toda vez que lembra, porque há um momento de dor em que se acostuma à dor e ela só dói quando lembra, e, toda vez que lembra, masca logo de cara três bolinhas de chicletes e masca como se estivesse em um concurso televisionado de mascar chicletes de bolinhas masca ao tomar banho com a ferocidade que só as disputas por primeiro lugar afagam o ego cozinha mascando chicletes de bolinhas anda com o pote de chicletes no bolso viciada talvez recém-saída da reabilitação em competir 68


precisa mascar com raiva para produzir movimento ondas calor serotonina sinapses que só acontecem quando liga a tevê e masca chicletes de bolinhas, três de uma vez porque disse, certa tarde no terapeuta, estar em um triângulo amoroso onde todas as partes contribuíam com um pouco uma bolinha de si para o outro mas nenhuma das três partes sabiam que estavam em um triângulo amoroso como não sabemos a localização exata do triângulo das bermudas quando vestimos calças e escondemos as canelas peludas do frio do sal do mar que arde pernas depiladas e virilhas escuras expostas fujam da praia depois de depilar as axilas

Fabíola Weykamp | Pelotas, Brasil | Editora convidada e colunista pela Revista Subversa, dois livros publicados.

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Coluna | Sem palavras por Lucas Grosso Abril de 2021 Garotas Mortas – Selva Amada Reportagem romanceada sobre três feminicídios sem solução, prescritos, ocorridos na Argentina, na década de 1980, quando o termo “feminicídio” ainda não era conhecido, e a luta feminista ainda engatinhava (devido à cruel Ditadura militar que acabava naquela década). É um livro curto, mas envolve pela linguagem intimista, fluída, dinâmica, porém extremamente desoladora; torturante… Selva utiliza suspenses com primazia para falar sobre suas investigações e entrevistas; sua construção de personagens é enérgica, dentro de uma estética “minimalista-Hemingwayana”. É um livro verdadeiramente angustiante e memorável, porque evidencia todos os comportamentos e falas machistas e antifeministas que fazemos, sem perceber. Um romancereportagem urgente. Tradução de Sérgio Molina. Todavia, 2018

Maio de 2021 Se Deus me chamar eu não vou – Mariana Carrara Salomão Um dos mais espirituosos romances brasileiros dos últimos anos. Aqui, acompanhamos o relato de Carmen, menina de 11 anos, vivendo os problemas do mundo adulto e de sua transição da infância para a adolescência. E para a “adultidade”, por assim dizer. Carmen vivencia, com a mesma intensidade as primeiras paixões, sentimentos de rejeição e não-pertencimento, a recessão econômica (afetando a loja de seus pais), o preconceito e homofobia, e o início de sua individuação. Sem proselitismo, a narrativa de Carmen não é infantilizada ou moralista; por isso, é cativante e divertida. Um romance sobre enfrentamentos, transformações e conciliações necessários hoje. Nós Editora, 2019. 70


Junho de 2021 Os supridores – José Falero Romance de formato tradicional, e mesmo filosófico, onde acompanhamos a tentativa dos supridores de supermercado Pedro e Marques na busca pelo enriquecimento vendendo maconha, em meio a uma sociedade moralmente corrompida. Questões como criminalidade, capitalismo, racismo, violência e consumismo são abordadas por José, ao melhor estilo dos autores russos: fazendo suas personagens se tornarem idealistas, que debatem as ideias que vivem e acreditam. Por isso, reafirmo, é um romance profundamente filosófico. Porém, a linguagem da obra a destaca de um proselitismo acadêmico: é direta e também coloquial, com palavrões e gírias e profunda ironia, romance sobre ideias postas em prática.

Editora Todavia, 2020.

LUCAS GROSSO | Mestre em Letras. Estudou Milton Hatoum na graduação e Milan Kundera no mestrado. É professor de inglês na prefeitura de São Paulo. Lançou “Nada”, pela

Editora

Patuá,

é

colunista

da

Subversa

e

escreve

no

blog www.lucasgrosso.blogspot.com

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[Especial Solstício] Seja ao redor de uma lareira ou com os pés querendo tocar a areia, a Revista Subversa convoca os hemisférios para trazer o Especial Solstício para essa rede. Aqui, movimentamo-nos de acordo com a Literatura Contemporânea e Independente, quando o dia é mais longo à espera de novas publicações ou quando a noite é mais longa porque não queremos esgotar nossas leituras. Com as mãos livres ou dentro de luvas quentinhas, o Especial Solstício celebra essa grande conjunção.

“Obirici” e “A Flor e a Insônia” | Bruno Blum

Obirici

É a água que cai Ouve, é a água que cai

Conta como é essa água que cai Pois não vejo essa água quicar

Escuta, preste atenção Bem aqui, debaixo do asfalto, ouve. Um rio ainda corre, a água ainda cai. Nasceu, o rio, como choro, pingando clara e salgada 72


pesando tonelada. Viveu doce, regando os passos n’areia Morre, pelo concreto, sufocado e calado. Volta a vida pela morte. Ouve a água que cai dos olhos dos corpos que caem.

Mas, meu velho, Do que foi a primeira lágrima? E quem pôde por tanto tempo chorar? O rio não se vê O rio mal se ouve Por que é tão invisível essa água que cai?

Lhe conto, pois, escute só. Filha preferida de cacique Tapimirim, Povo que se espraiava ao norte nas margens do Rio Gravataí, viveu aqui a índia Obirici. Achava-se escondida na mata sem saber que, percebida,

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pela flecha do amor fora atingida. Utapã, Abaetê ou Arakén, todos nomes do mesmo amado guerreiro da tribo Tapiaçu.

Não enxergo rio, mas já o ouço, o que há para chorar, nesse amor, é o que não alcanço.

Aconteceu que Paraí, sangue do sangue de Obrici, pelo mesmo homem se apaixonou. E, por costume ou ordem de Tupã, amarrou-se uma disputa. As irmãs se enfrentariam competindo à arco e flecha aquele cobiçado coração. A quem melhor atirasse seria dado o amor do indígena E poderia, ao seu peito, em qualquer areia atirar-se.

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A quem foi guardado o amor? Aquém Já escuto com clareza a leveza da água que cai Com pesar.

Vejo-te, e a água que cai, percebo que agora escuta. O guerreiro amado amava, das duas irmãs que por ele lutavam, mais Paraí que Obirici. Sabendo que a segunda, preferida do pai Tapimirim, no manejo do arco tinha mais destreza. sua vitória, para todos, era uma certeza. O dia da disputa não tardou pois o amor não é coisa que espera. Frente, mesmo que ao longe, (Ainda ouve?) ambas encaravam o mesmo alvo. O fogo da paixão enchia o peito de Obirici, tão quente quanto nervoso,

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e como se queimando as pontas dos dedos A mira mosca O tiro entorta O alvo intacto O peito vazio E a água que cai. Sua irmã, Paraí, porém, de amor calmo e toque macio Levou na ponta da flecha o coração desejado de Arakén.

Não precisa mais nada contar Já escuto, nítida, a água que cai É Obirici a chorar.

Já que escutas, então diga, É preciso o amor? É preciso a dor? É preciso o chorar? É preciso o sofrer? A quem se assemelha essa precisão, A mira de Obirici ou de Paraí?

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Nada disso é preciso, É tudo precioso, para que seja preciso navegar. Foi precisa Obirici, ao ver o novo casal sair abraçado Rumando a novos lares, Ao se acabar de tanto chorar. Sua lágrima escorreu-lhe o corpo, Prantou a terra, cavou um canal. Fez-se rio, a água que cai. E não parou de encher enquanto não cessou a lamúria. O choro calou apenas quando, Afogada pelas lágrimas que vertia, transformou a própria índia No rio que ali surgia.

Que conto lindo que a dor nos dá! Como é triste, encoberta e silenciada a história dos povos de cá.

Justamente pela impossibilidade

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de parar, Obirici, de chorar, Pela dor que segue sentindo, Pelos mercados, carros e concretos Que tomam a volta dessa água que cai Como castelos a um Passo D’areia, Pelos amores e horrores, Por ter de lutar por amor, Por ter de ainda lutar contra nossas próprias irmãs, É que ainda chora Obirici. É que ainda cai a água que cai. A mais cristalina expressão da dor Sob nossos próprios pés Cavamos. Cá, vamos, estamos atrasados.

A Flor e a Insônia

Preso a minha classe e minha nudez, Deito nos brancos lençóis da minha cama. Está escuro e já não se vê as cores, Não se distingue a noite, a cama e eu.

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Não é possível me ver pelado, apenas sentir a falta de pijama Não é possível ver a noite, apenas sentir a escuridão Não é possível dormir, apenas sentir.

A noite adentra meu quarto pela janela, Em mim adentra pelos olhos quando me reconheço nela E pelos ouvidos através do silêncio. O breu que me abraça escava profundo meu peito O revira e acelera Cochicha aos meus ouvidos “hoje você não dorme” E vai narrando tudo que dói, Meus crimes, culpas e dolos. Entre o sadismo e a melancolia escuto a sentença. Sussurra tão alto que desconcentra qualquer leitura que tento. Há algo escondido no escuro, Algo que precisa e me cobra atenção. Assim foram sendo minhas noites até que a última terça-feira trouxe sua madrugada.

Acordei, pois até agora sempre acordei, E uma flor nasceu no travesseiro! Não sei por onde ou como se poliniza uma almofada,

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E mesmo ignorante, reguei por várias noites. Agora ela me aparece, é como se eu não, Possivelmente por causa dos sussurros da noite, Estivesse dando atenção àquele broto que crescia.

Hoje a vejo, a reconheço, Tenho sorte de tê-la no travesseiro Assim não escuto apenas o escuro Mas também a flor.

Nas primeiras noites me preocupei em não apoiar-me nela, A achava frágil, que quebraria fácil. Não, apenas me via nela como num reflexo confuso e falso de vitrine. Apenas projetava nela O que sentia com o escuro. Foram dias em que a escuridão dormiu fora, Apenas pude ouvir a flor e sonhar. Ontem, porém, o breu voltou pedindo abrigo, Não sou de negar ajuda porque depois me culpo, Então dei entrada, abri a janela para ele Que entrou de súbito e por completo.

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Tive medo de não rever a flor. Apenas agora, acordando e limpando remelas, Percebo que ela segue aqui, E pelo tanto que reguei ontem Talvez meu travesseiro vire jardim.

Bruno Blum | Porto Alegre, Brasil | brublum@hotmail.com

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[Especial Solstício] “Fotografia” | Daniela Valverde Quando cheguei o sol já ia alto. Subi os três lances de escada que davam acesso ao alpendre e sacudi a poeira dos sapatos de forma automática, o corpo agindo intuitivamente, movido pela lembrança do som da voz de mamãe mandando que a gente limpasse os pés antes de entrar. Entrei na sala e olhei ao redor. Tudo parecia exatamente igual ao que eu tinha deixado dez anos atrás. O chão batido impecavelmente limpo. A delicadeza das flores de plástico num vaso branco enfeitando a mesinha de centro com pés entalhados e tampo de mármore. Amaldiçoei, como sempre, as poltronas tubulares num tom vermelho escuro. Elas substituíram o antigo sofá, compradas quando Ricardo, meu irmão gêmeo, arrumou um emprego no centro. Sentei-me na poltrona mais próxima à porta e suspirei de calor. Apesar das treliças que rodeavam toda a sala, não ventilava. Não sei se pelo clima abafado ou se angustiada pelos motivos que me haviam levado de volta até ali, senti que ficava um pouco tonta e um zumbido persistente ocupava todo o espaço do silêncio que parecia emanar das paredes de madeira. O assovio do vento por entre as frestas das ripas, apesar de ser um velho conhecido, me deixou estranhamente assustada. A fotografia na parede e tudo mais naquela sala me remetia a lembranças de um passado onde estávamos todos ali, vivos. Agora só restava eu. E o corpo de mamãe no hospital, me esperando fazia dois dias para enfim descansar debaixo da terra ao lado de papai, Ricardo e Antônio, o mais velho que virou anjo quando tinha quatro anos. A morte de Antônio foi o primeiro baque. Não cheguei a conhecê-lo porque mamãe engravidou de mim e de Ricardo dois anos depois do acidente. Mas ela contava pra gente que ele era um menino velho, que os seus olhos eram muito profundos e que parecia que tinha pressa de viver. Sempre achei que mamãe pensava assim pra se consolar, por ele ter partido tão cedo. De certa forma eu sentia que ele estava sempre conosco. Não de um jeito religioso ou místico, nunca acreditei nessas coisas, mas materializado pelas histórias que mamãe nos contava. Essas conversas aconteciam sempre na ausência de papai. Mamãe nos dizia que ele a repreendia, pois achava que com isso a alma não descansava. Um dia, papai já tinha partido, ela nos contou a verdade: Estava no mar com Antônio e se descuidou por um momento, perdendo-o de vista. Pescadores escutaram seus gritos e vieram ajudar, em vão. O pequenino foi levado pra areia já sem vida. 82


Quando eu e Ricardo fizemos dezoito anos, mamãe arrumou um dinheiro e chamou um fotógrafo, ou melhor, um retratista, como se dizia. Por esses tempos papai andava sumido, a gente não sabia, mas imaginava que entorpecido pela cachaça, vagando em alguma cidade vizinha. Entregou para o retratista uma foto 3×4 de Antônio, único registro dele, e fotos dela, de papai, minha e de Ricardo. Por esses tempos papai andava sumido. Lembro dela com a foto emoldurada nas mãos, sorrindo e orgulhosa, olhando para nós cinco posando com dignidade, Ricardo e papai de gravata, eu e ela com roupas alinhadas, e o pequeno Antônio ao centro. Isso foi pouco antes de eu ir embora. O segundo baque foi encontrar o corpo. Já fazia três anos que a gente não tinha notícias de papai e começamos a considerar a hipótese de que talvez ele estivesse morto. Uma noite mamãe acordou gritando. Eu e Ricardo fomos ao seu encontro e ela contou que estava sonhando e que havia com um corpo num terreno descampado, rente a um muro e cercado por um matagal. Ela chorava e repetia, balançando seu corpo, abraçada aos joelhos, que tinha certeza de que era ele. Sempre fui muito cética em relação a premonições de qualquer tipo e minha razão ainda me leva a considerar que tudo não passou de uma coincidência. A gente não fazia ideia de que Ricardo vinha já há algum tempo entrevistando algumas pessoas nos bairros mais afastados, em busca de alguma pista de papai. Ninguém falava nada. Depois do sonho de mamãe ele passou a vasculhar terrenos abandonados até que, enfim, encontrou o que procurava. Não fazia muito tempo que tinha acontecido, pois ainda conseguiu distinguir as feições de papai naquele corpo já quase amorfo, vestido com uma camiseta do Flamengo e uma bermuda de poliéster. Pouco tempo depois Ricardo se foi. Encontraram seu corpo boiando no mar. Mamãe nunca mais foi a mesma.

Daniela Valverde | Nascida em Alagoinhas, na Bahia, vive em Brasília há 11 anos. É formada em História pela Ufba e estuda Letras e produção editorial. Selecionada para a

edição

2021

do

Prêmio

Off

Flip

de

Literatura,

categoria

conto.

|

danielasvalverde@gmail.co

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Edição e Revisão Tânia Ardito e Fabíola Weykamp

Ilustração de capa Eliana Machado

Recepção de originais CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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