Revista Subversa Volume 6, nº5 - abril de 2017

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SUBVERSA ISSN 239-5817

Vol. 6 | n.º 05 | ABRIL de 2017

Ilustração Gerda Arns Gonzales e Gabriel Costa Ijui

MAX LIMA | NATANAEL OTÁVIO | FERNANDA GODINHO EBER S. CHAVES | RAFAEL SIMEÃO | GRASIELA FRAGOSO SAMUEL H. DIAS | GLAUBER COSTA | CAROLINE POLICARPO | GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 6 | n.º 05

© originalmente publicado em 15 de abril de 2017 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações Gerda Arns [GERDAOART@GMAIL.COM] e Gabriel Costa Ijui [GABRIEL.IJUI@GMAIL.COM]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


SUBVERSA VOLUME seis | NÚMERO 05

CAROLINE POLICARPO | SOBRE A MESA | 06 EBER S. CHAVES | LUCY | 09 FERNANDA GODINHO| ESFINGE NEGRA | 11 GLAUBER COSTA | OS RATOS | 14 GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS | RECORDAÇÃO | 17 GRASIELA FRAGOSO | O CONTO DA MENINA AFRICANA | 19 MAX LIMA | CANTIGA | 22 NATANAEL OTÁVIO| CORTANTE | 24 RAFAEL SIMEÃO| MEIA NOITE NA MESA DA COZINHA| 26 SAMUEL H. DIAS | O MONSTRO | 31

[Notícias] II Festival Literário de Ilhéus | 33 [Notícias] Exposição: “É verdade”, de Silvia Carreira | 35

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EDITORIAL “Llamóla Utopia, voz griega cuyo significado es no hay tal lugar.” Citação de Quevedo que anuncia Utopia de um homem que está cansado, de Jorge Luis Borges. As imagens enviadas pela dupla de ilustradores Gerda e Gabriel são tão interessantes que foi difícil escolher uma composição de capa para este número. No fim, o resultado foi bastante significativo para nós, pois tentamos transmitir a articulação entre medo e liberdade, dinâmica da qual se alimentam as formas artísticas em geral. O escritor é senhor de sua obra. Constrói seu mundo imaginativo, decide em que medida vai se fundir com a realidade, anda conforme seu próprio ritmo, com os tons que lhe colorem o mundo. Depois de terminada, a obra enfrenta a realidade externa, é entregue ao olhar do leitor, ao olhar da crítica, aos limites da interpretação e do próprio rigor do autor consigo mesmo. O leitor, beneficiado pela posição confortável da recepção, também enfrenta seus aprisionamentos, finitudes e limites. Arrisca-se um pouco mais, inspirado pela coragem do artista, que está sempre à beira de um ataque perceptivo. Parece ser na literatura, enfim, que os contornos ganham chance de se definir melhor, que a utopia tem a chance de se colorir com um bocado das cores da liberdade, mesmo que os olhos do medo ainda sejam cinzentos demais. Desejamos uma ótima leitura a todos. As editoras. GERDA ARNS GONZALES | Publicitária e artista gaúcha, residente em Berlim. Trabalha atualmente no projeto Retratos (instagram.com/gerdaoart), inspirados em fotos encontradas online. Para contato e encomendas: GERDAOART@GMAIL.COM GABRIEL COSTA IJUÍ | Fotógrafo. Mescla fotografias estilo street e travel. Camera Calling ( http://www.cameracalling.com/) é um projeto fotográfico onde vai compartilhando imagens e histórias de diferentes destinos para onde viaja. | GABRIEL.IJUI@GMAIL.COM

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Um livro que despertou minha paixão pela LITERATURA...

Não sei ao certo qual foi o livro que despertou a minha paixão pela literatura (talvez Crime e Castigo), mas preferi escolher o livro que despertou a minha paixão pela poesia: Poesia Reunida, de Maria do Rosário Pedreira. “A Maria do Rosário Pedreira trouxe-me a pungência da poesia de que sempre fugi, por medo, ignorância ou insensibilidade. Foi na inevitabilidade dos seus amores perdidos, no desamparo das suas saudades, na paixão pelos livros — objetos do dia a dia — e na, enfim, descoberta de um amor maior que me deixei seduzir. A poesia permanece um mistério para mim, mas senti cada uma daquelas palavras e gostava que outros as sentissem também.”

Inês. | BOOKTUBER e BLOGGER no INESBOOKS.BLOGS.SAPO.PT

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SOBRE A MESA CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

ponho sobre a mesa um pão e uma faca nem prato nem toalha só pão e faca

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sobre a madeira da mesa no fogão um fogo aceso uma caneca de água para despejar no pó de café que deixei no coador que deixei sobre o bule que está na pia uma xícara lascada a minha preferida o café sem açúcar porque gosto de sentir o gosto das coisas a faca é afiada muito mais afiada do que uma faca precisa ser para estraçalhar um pão dou uns goles no café que queima minha boca o quente é que faz um café ser bom o quente e o amargo seguro o pão na mão esquerda ele parece um corpo um bicho um coração silencioso

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e selvagem eu acabo nem usando a faca enfio o pão na boca puro inteiro sem cortá-lo sem passar manteiga e meus dentes rompem a casca a pele as paredes do pão crocante a casca se esfarela e a mesa fica cheia de migalhas deixo a janela aberta talvez algum pássaro as veja e venha comer

CAROLINE POLICARPO cursa Letras, gosta de imaginar outros mundos e sonha o voo. No projeto Autômatos Poéticos, inventou a robô de conversação chamada Inventada. Tem vinte anos. Publicou nas revistas Trasgo, Raimundo e Subversa. | CAROL_POLICARPO1@HOTMAIL.COM

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LUCY EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA

Lucy em Afar com paus e pedras nas mãos – caminhando lentamente para morte, cruzando o espaçotempo: osso duro de roer!

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Lucy, caveira desfigurada espalhada como num quebra-cabeça – ossos e mais ossos espatifados sob a poeira que sobe ao céu e se espalha até que se cansa com tanta secura. Lucy cinquenta e dois ossos – quase esmagados pelas proporções do deserto de areias e sol cor de ouro e cor de fogo que consumiram o cérebro da mãe da humanidade com leves carícias. Lucy morta se apresentando nas solenidades dos vivos: imersa num mundo estranho e confuso, a caveira que um dia foi um corpo esbelto e resistente, vê quente a luz do sol que brilha tão longe. (Lucy in the sky with diamonds...)

EBER S. CHAVES é daqueles que acham que há uma certa glória em não ser compreendido. Baiano, natural de Itaquara/BA; reside em Vitória da Conquista/BA. Estudioso de psicanálise, história, religião e filosofia. Fã de rock/heavy metal, poesia, literatura fantástica, cervejas especiais e feijoada.

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ESFINGE NEGRA

FERNANDA GODINHO | Évora, Portugal.

Esfinge negra Que se espreguiça Majestosa No meu caleidoscópico

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Ventre Nebulosa existência Que me revolta O estômago. Contração contida Levando as patas À boca. Macio e negro O pêlo Simétricas e desfocadas Visões coloridas Das minhas vísceras. Pele desfiada Enchimento farto Para calar e enganar O gosto ferropénico Do regurgitado. Enigma açucarado Olhar cego e cinzento Outrora dourado. Disparo em cheio Na matéria negra

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Enjoada da espera e do mistério Dia interrompido Ventre dilacerado Cornucópias E gotas de mel transbordam Da cova feita pelo peso da criatura. Corpo felino, ventre vazio E desfeito De ilusão enfeitado.

FERNANDA GODINHO (25 anos, Évora, Portugal). Licenciada em Línguas e Literaturas, perfil Literaturas e Artes pela Universidade de Évora, e mestranda em Literatura e Poéticas Comparadas pela mesma Universidade, encontra na poesia portuguesa (séc. XX e XXI) o interesse pela temática do Corpo. Corpo enquanto matéria e produto visceral para o verso. FERNANDA.GODINHO91@GMAIL.COM

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OS RATOS GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

O expediente se largou do relógio, despencando os meus ombros nos meus outros ombros menores. Atrás de mim, pilhas de papéis e montes de pessoas e suas falas e seus hábitos, que me seguiram zumbindo por dentro e por fora do ouvido.

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Quase sem o nó na gravata, a paisagem, feito anta, e o dia quase indo... Embora não desse aviso de nada. Nadava. Passei rápido pela calçada enxuta, e olhei para trás para conferir: esse quadro enorme, inexistente, por entre os postes, parecia enlaçar o meu pescoço e me puxar para cima, em sucção. Parei de olhar. Preferi cefaleia. Dobrei, então, a esquina, para arejar a visão. Passou. Passou outra vez o um quê. Passei por uma reta. Transpassei o meu olhar na avenida tão reta. Muito reta. Suspirei. E apressei o passo para entrar em casa, que já estava bem embaixo dos meus pés. Abri a tampa e entrei, deixando a roupa deslizar pela umidade do concreto. Tratei de encolher o corpo, dobrando ao meio a coluna, para não machucar os ratos. A xícara de chá peguei pelo pé. E chamei as cigarras para uma música de respirar. No escuro, o limo compunha, ao som do vento pelo cano vazio, da fundura de uma luz. Esperava pelos anões, que viessem algumas noites, com as suas mesinhas e os seus banquinhos, contando histórias, gesticulando. Acabei cochilando em algum tempo sem dentro. Avancei um pouco, sem notar, tocando nos ratos, que ficaram tremendo de medo de mim. Tentei me afastar. Mas não consegui o suficiente. Abri a boca, por logística, dobrei o pescoço para olhar pro céu e deitei o rosto para fora. E nada vi. Tudo escuro. Que nunca vi. Vou sair do chão. Deitado nessa rua. Preciso andar. Por baixo. Pela manhã. Já vai florescer o sol. Que dor! A mão que me entrega pacotes, desconhecida. Meu coração, eu posso chorar. Mas tenho esse ferro na estrutura da face. Que caiu pela grade, sendo a grade. A grade. Preciso fechar a grade. ... e abrir depois os braços esticando o corpo, de volta até me esticar mais pelo espaço. Muitos sorrisos chegando, conversas fechadas em movimento. Pessoas, escárnios, olhos demais e rostos. Sem solução que solvesse nesse ar. Respirando sem o pulmão, com o pulmão, sem o

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pulmão, com o pulmão, na realidade. Quem sou eu... dentro de mim, quicando do canto da cabeça à quina do pé. Meus ombros esbarram nas bestas interiores deles, que não realizam nada, dos rostos de sempre, lascados por dentro feridos, repetidos. Nem os próprios desejos. Até os próprios desejos. Salto para dentro de mim mesmo; me tranco, me calo, me engulo. Papéis e pessoas e cuspes. Visto meu melhor terno bonito. Farrapo à luz de feixes de janelas de fim de tarde. Lá fora, por essa janela exata, sonhada, as nuvens escuras. Eu encolho o meu ombro com força e abaixo a cabeça sob as mãos, sem testemunhas, por puro reflexo, sem caber nesse espaço finito. Já vou encostar nos ratos.

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou os contos “Meu velho” e “O homem com cabeça de urubu”, na Revista Subversa, textos que fazem parte do primeiro e segundo volumes impressos. Escreve no blog http://glauber-manuscritos.blogspot.com.br/ e na Fanpage: Manuscritos. | GLAUBER.COSTA@HOTMAIL.COM

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RECORDAÇÃO

GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS| Oliveira, MG.

Eu criança. Ela desdicionarizava e me dizia: recordação é quando se tira um passado da algibeira.

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A palavra retalho era costurada em colcha a linha se arrebentava, mas em nada me lembrava as moiras. Têm horas em que a morte não Espanta E que é inumano falar dum destino. A colcha que ia sendo tecida Comunicava sem medo: são diferentes, mas convivem.

GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS é de Morro do Ferro, Oliveira-MG. Graduando em Direito na Universidade Federal de Lavras- UFLA. Em 2014, por escrever o poema "Saudade sem métrica", foi premiado no Concurso Literário promovido pela Academia Madureirense de Letras. Desde criança Giovane demonstrou gosto pela leitura e escrita. | GIOVANESANTOS@GMAIL.COM

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O CONTO DA MENINA AFRICANA GRASIELA FRAGOSO

| Niterói, RJ.

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Era tarde quando chegou a notícia. Uma criança nascera para aquela casa. Reuniram-se os anciãos. Buscaram os papéis. Desenrolaram em tinta e letras quase 350 anos de ancestralidade. Como há de se chamar a menina? Não havia ali um nome de mulher. A construção de todo aquele passado familiar fora apossado pela rubrica do nome do homem. O pai agora estava no assento da dúvida. “Que nome escolher?” Perguntava-se enquanto desenhava com os dedos a leitura daqueles atávicos nomes a compor o sentido no papel. “O que espero eu dessa pequena criança que chega a minha casa?” – percorria o pai em seus pensamentos. O que carregava no peito em perguntas, não era o fato de receber uma criança, já cuidava de dois meninos, era pai há quase uma década! Mas o fato de ser uma menina... isso lhe acordou o juízo de aperceber-se. “O

que

será

da

minha

menina?”

Murmurava-lhe

a

preocupação... Quanto apagamento que pesara sobre aquela genealogia! Sua mãe, suas irmãs, as irmãs de seu pai, de sua mãe, a cozinheira, sua ama de leite, a mulher que o fizera homem... Com a dor do discernimento, refazia a sua inquieta pergunta - “O que será da minha menina?” A lembrança que vinha lhe falar nessa hora era um conto de quando menino, que falava sobre um fazedor de tecidos.

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Diz-se que há muito tempo atrás, havia naquelas redondezas um fazedor de belos tecidos. Um homem educado, de bons tratos e lindas filhas. Cada visita de encomenda que recebia, o tal homem contava a mesma estória sobre o presente que queria dar para as filhas. Havia ele separado uma caixinha para cada uma delas, eram três. Dentro de cada caixinha, dizia o incauto homem guardar àquilo que a vida tem de melhor, e quando chegada a hora de cada uma partir para o mundo daquilo que há de vir a ser, levaria consigo seu presente. Assim terminava a lembrança do Pai sobre o tal conto. A caixinha, pensava ele, já a tenho, mas o que era esse melhor da vida que o tal fazedor de tecidos tanto dizia... Nesse breve tempo de ler nomes e escolher, repetiam os anciãos a pergunta ao Pai - “Como há de se chamar a menina?” Reuniu o Pai em uma palavra – Possibilidade, que em Iorubá se diz – Seese. Bem vinda menina Se!

GRASIELA FRAGOSO é Mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente estuda Psicologia nas Faculdades Integradas Maria Thereza - FAMATH- Niterói. Dedica-se, como estagiária, à Clínica Psicanalítica, na Associação Fluminense de Reabilitação – AFR – Niterói, RJ. Autora do blog www.finatempera.wordpress.com | GRASIFRAGOSO@GMAIL.COM

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CANTIGA MAX LIMA | Rio de Janeiro, RJ.

Minha rua é um rio Que escorre dura Feito memória Minha rua é história

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De concreta carnadura A bater na armadura De uma ostra de gordura Com toda força e alguma glória Até que a fura. Se essa rua minha fosse Eu mandava ladrilhar Com pedras do esquecimento E as plantava no cimento Como pedras de um colar Encerrando-as com o moldar Do meu eterno firmamento

MAX LIMA (1992) estudou Letras na Universidade do Rio de Janeiro, onde desenvolveu pesquisas em Melopoética e Literatura Brasileira sob a orientação de professores da instituição. Tem poemas e artigos publicados em antologias e revistas e foi vencedor de alguns concursos literários nacionais. Além de poeta, é também músico e contista.

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CORTANTE NATANAEL OTÁVIO| Bastos, SP.

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O motoqueiro vislumbrou a pipa. Não viu a linha. Um passeio rápido pela vida.

NATANAEL OTÁVIO (Bastos, 1980) é autor do livro Reconstruções (2016). Publicou o conto Pedaços do Mundo Rasgado – Alanis D. e o Esmerilhão (2016) em ebook na Amazon. Participou da antologia O Corvo: um livro colaborativo (Editora Empíreo, 2015). É colaborador do site CultEcléticos e integra o Grupo de Sarau Semeando Poesias.

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MEIA NOITE NA MESA DA COZINHA

RAFAEL SIMEÃO | Nova Iguaçu, RJ.

Precisamos conversar. Foi o que ela disse. O outro nunca foi muito de conversa, mais de silêncio. Mas com ela, conversava. Taí inclusive um dos motivos pra gostar tanto dela, com ela tinha vontade de conversar. Com outras pessoas, sempre calado, só falava se por necessidade. Acabou gostando dessa novidade e, na companhia dela, chegava até a falar por falar. Mas quando ela disse que precisavam

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conversar, não, não gostou. Soou-lhe mal a necessidade. Conversa boa era espontânea, assim, peremptória, não. O que dava a ela o direito de proclamar que aquela era a hora de conversar, e não alguma outra qualquer, quando o assunto que ela julgava necessário viesse à tona naturalmente? Por que forçar a barra, marcar hora, sentar à mesa numa noite de calor abafado e em vez de servir o jantar preparar um café forte, sentar cara a cara, ombros encolhidos, olhar baixo pra toalha de mesa já puída e dizer, cheia de decisão, que precisavam conversar. Incomodava o sujeito, calado, adepto mais do olhar e dos gestos. Conversar sempre lhe pareceu muito complexo, um exercício hercúleo de alinhar as emoções e as palavras, sopesar cada tom, tomar cuidado pra não deixar escapulir uma mentira qualquer, sempre tão sedutora e, por isso mesmo, deveria ser uma atividade livre e natural. Depois de tanto tempo juntos, de tudo que tinham vivido, a vida dura que enfrentavam naquela comunidade, naquela casa velha, mas que conseguiam

levar

em

harmonia

porque

tinham

um

ao

outro,

amargando juntos as imposições, exercendo os papeis historicamente escritos pra eles, mesmo que nem soubessem, mas felizes, e tudo isso na base da conversa espontânea e dos sentimentos, pra que isso, como que agora ela vinha dizer pra ele que precisavam conversar, e lhe servia um café negro e não o arroz com feijão, sempre tão batalhado, sol a sol, nas balas e amendoins vendidos na rua, logo no início, varrendo chão, limpando casa de madame, obedecendo ordens imbecis e se sujeitando a humilhações veladas por tantos anos, até que juntaram um dinheirinho e conseguiram abrir o botequim, que ele tomava conta, porque ela precisava ainda trabalhar em casa de família e dizia, agora que ficou bom pra gente, com todos esses direitos, eu não vou largar, como, depois disso tudo, ela ainda precisava proclamar, feito num discurso, que precisavam conversar? Sempre conversaram, afinal, nunca precisou disso, quando ele foi demitido da vaga de auxiliar de serviços gerais não haviam conversado, ela não

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tinha lhe dado todo o apoio, dito que superariam tudo juntos, que durante um tempo dava pra segurar a barra sozinha, e quando ele veio com a ideia dos picolés no trem não foi ela quem bancou o primeiro isopor e não o deixou desanimar frente a todos os empecilhos, seguranças, concorrência, dor nas costas? E aquele episódio, então, em que a acusaram, quando trabalhava na casa de uma atriz decadente, de ter roubado um colar de pérolas da década de 20, quando insinuaram que o colar estava ali até ontem à noite, que a madame tinha ido a um coquetel com ele e tinha largado na mesa de centro quando voltou, na sala, do lado do cinzeiro transbordando cinzas, e que, no outro dia, quando foi procurar, já não estava mais, quem, quem esteve a ponto de abordar a velha em pleno calçadão e esbravejar poucas e boas, ainda mais quando encontraram o colar caído atrás do vaso sanitário, e foi só então que a atriz se recordou que chegara naquela noite passando muito mal, meio alta, e o colar devia ter se desprendido do seu pescoço quando foi ao banheiro, isso, passando muito muito mal, vocês sabem, lógico, não é preciso entrar em detalhes, entenderam, normal esquecer quando a gente passa um pouquinho da conta na bebida. Quem foi que deu toda a força pra ela largar o emprego naquela casa e disse que dobraria a venda de picolés enquanto ela não arrumasse um serviço pra substituir aquele, quem deu um sorriso e disse que o sol tava dizendo e o picolé tava saindo mais que água? Foi ele, e sem sequer insinuar a necessidade de uma situação tão formal para conversarem. Tudo isso sem precisar sentarem mudos à mesa, atmosfera pesada, juntando os farelos de pão do café da manhã na toalha puída, cabeça baixa, e uma xícara de café preto, forte, quente, mesmo no calor que fazia. Pra que esse teatro, nunca foram de teatros, sempre foram espontâneos e se amavam naturalmente, atendendo por pressentimento ao que um esperava do outro. Se ajudando nas doenças, rindo juntos nas conquistas, feito naquela vez que ela ganhou no bicho, mas que foi

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como se os dois tivessem ganho, porque, apesar da insistência dele, ela não quis comprar algum agrado pra si, renovar a escova progressiva, trocar o celular, não, fez questão foi de dar entrada num jogo novo de sofás pra sala, pros dois usufruírem de um pouco mais de conforto. E por que agora aquilo, depois de tanta falta de grana, noites em claro no calor com a luz cortada, tantos tiroteios na hora de ela chegar em casa do serviço, e ele preocupado e ao mesmo tempo ameaçado, baixando rápido as portas do bar, toques de recolher, lutos por chefes do tráfico, dias perdidos sem faturamento. E tudo isso sozinhos, os dois, apoiados um no outro, enfrentando, resignados mas firmes, conscientes do que deveria ser feito e alicerçados no amor que nutriam um pelo outro, porque agora aquela necessidade premente de conversar, que não podia esperar nem por um banho? O dia cansativo pesando nas costas, suor, poeira, corpo colando, depois de ter lidado ainda com um playboy bêbado que subira o morro com os amigos pra tomar umas curtindo o visual e não tinha se conformado com a saideira, sem disposição pra entender que era terça-feira e passava da hora de fechar. Afinal, não era o playboy que amanhã teria que madrugar pra entregar o resultado do exame ao médico, urologista do sus, que andava desconfiado da sua dificuldade pra mijar. Cansativo pros dois, o dia, afinal, e meia noite a cabeça ainda fervia. Tempo agora, só pra um banho, janta e talvez uma zapeada na televisão sem prestar atenção em nada. E ela ainda vinha com essa de que precisavam conversar, atrasando o hábito, desestabilizando a rotina que já era pesada o bastante. Mas foi aí que ela levantou a cabeça e tentou encará-lo nos olhos, com dificuldade, porque ele se mantinha na tarefa de formar com as migalhas de pão um monte, entre um gole e outro de café. Ela pediu, olha pra mim, e o que ele viu foram dois olhos brilhando, mistura de aflição e felicidade, olhos feito aqueles ele nunca tinha visto no rosto da sua mulher, apesar de todos os anos de companheirismo,

desse

jeito

nem

naquele

episódio

em

que

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conseguiram ficar juntos, ela juntada com um sujeito metido a machão que não aceitava a separação e queria manter a união à força, até que numa madrugada fria de junho, ela se lembra até hoje, garoa fina caindo e o sol demorando uma eternidade pra iluminar o dia, estendendo ainda mais a angústia, ela fugiu e o encontrou no local combinado, a kombi que ele havia alugado lá esperando com suas tralhas, pronta pra levar os dois pro cantinho onde vivem até hoje, e nem naquele dia ele viu aqueles olhos, feito ali, naquela hora. Fala logo, foi o que a ansiedade assoprou pela sua boca, num tom ríspido que ele não pretendia e que, surpreendentemente, fez assomar no rosto dela um sorriso, a mão pegar na sua e finalmente a voz expelir, meio engasgada, a fala, tô grávida.

RAFAEL SIMEÃO (28 anos, Rio de Janeiro) não quis nos contar muito sobre ele, mas fornece algumas pistas quando escreve. | RAFA.SIMEAO@GMAIL.COM

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O MONSTRO SAMUEL H. DIAS | Muzambinho, MG.

Existe um monstro que vive constantemente se alimentando da obscuridade Ele não possui um nome e nem mesmo um rosto Também não possui uma história e não procura ter uma para ser contada Não existe algo como uma família para ele

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Não existe algo que se aproxime do que possa ser dito como amor Apenas existe uma forma que o defina Uma sombra A sombra também caminha pelos sonhos e se alimenta dos pesadelos Em dias turbulentos, ao dormir ela pode ser vista, se prestar bastante atenção Ninguém sabe a quanto tempo existe Mas está lá e talvez sempre estivesse Então podemos definir que nós o criamos? Mas quando o criamos? É ruim existir um ser que se alimenta de nossos temores? Mas o monstro sabe e observa Ele nos enfraquece Nos mantém reféns da inutilidade Como quer avançar o próximo dia sem os seus temores? Você precisa deles? O monstro está bem aí basta sentir Continuará se alimentando à medida que recuamos Isto nos quebra e se torna a fraqueza E nada se alimenta da fraqueza a não semos nós mesmos

SAMUEL H. DIAS tem 26 anos, é estudante de ciências biológicas pelo Instituto Federal do Sul de Minas - Campus Muzambinho. Colaborador frequente da Subversa que busca através de seus poemas se expressar de uma maneira completamente honesta.

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[NOTÍCIAS] II FESTIVAL LITERÁRIO DE ILHÉUS (FLIOS)

A Caligrafia sul-baiana é o tema para o II Festival Literário de Ilhéus com três dias dedicados a debates, oficinas culturais, lançamentos de livros entre outros momentos, que após o sucesso da primeira edição, migra para o Teatro Municipal de Ilhéus. A concepção do Festival Literário de Ilhéus surgiu em 2015, a partir de reuniões entre atores locais envolvidos com a literatura, sendo a atual edição prevista pelo projeto proposto por Anna Lívia Rosa Ribeiro, aprovado na política de editais do Estado da Bahia. A edição atual conta com Geraldo Lavigne de Lemos como curador e Fabrício Brandão como cocurador, convidados pela Coordenação Geral composta por Anna Lívia, André Rosa, Anarçeide Menezes, Eloah Monteiro e Cabeça Isidoro.

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Os curadores procuraram dinamizar ações com a inclusão de outras atividades de interesse coletivo que contam com apoio do Governo do Estado da Bahia, ficando a realização do evento a cargo da Academia de Letras de Ilhéus. Por ser uma demanda da região, segundo Geraldo “o público, a mídia, os escritores e os artistas afirmam ser uma ação deveras importante para a região, que possui tradição literária consolidada e constantemente apresenta novos escritores e artistas. Os apoios recebidos refletem tal realidade”. A cada edição, o Festival Literário de Ilhéus escolhe um autor para ser homenageado. A primeira edição homenageou Jorge de Souza Araújo. A presente edição homenageia o autor Florisvaldo Mattos, que publicou um livro chamado A caligrafia do soluço & poesia anterior, atraindo a atenção dos organizadores do Festival que assim adotaram o tema Caligrafia sul-baiana. O objetivo é traçar uma intertextualidade entre a obra do autor homenageado e um dos objetivos do festival, que é lançar luz sobre a literatura regional e ainda, observando que caligrafia remete à pessoalidade da escrita. Quando o festival foi concebido, também foi pensado o concurso literário Prêmio Sosígenes Costa de Poesia. A Universidade Estadual de Santa Cruz e a Academia de Letras de Ilhéus promovem o concurso, que objetiva premiar livro inédito de poesia possuidor de mérito literário. São admitidas inscrições de autores baianos ou residentes na Bahia. O nome do prêmio homenageia o relevante autor baiano Sosígenes Costa, vinculado à segunda geração do Modernismo e que teve o seu primeiro livro, Obra Poética, laureado com Prêmio Jabuti de Poesia, em 1960. Programação: www.flios.com.br

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[NOTÍCIAS] Exposição “É verdade”, de SILVIA CARREIRA.

Está patente até o dia 26 de maio de 2017 a exposição “É verdade”, de Sílvia Carreira. A artista que ilustrou a revista em maio de 2015, apresenta ao público o resultado de seu trabalho que consiste em uma brincadeira com a data da inauguração da exposição (01 de abril) isto é, o dia da mentira, para apresentar como verdade quadros com paisagens e elementos de diversas partes do mundo, misturados com desenhos e partes de notícias de jornal.

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Com essa mistura de diversos elementos, surgem cidades artificiais, segundo Sílvia: “criada pelos media que está conjugada com uma cidade real e ainda pela cidade imaginária que trago na memória”. Surgindo ainda dentro como destaque o coração e o cérebro que criam asas, sendo “ora o cérebro que voa, ora o coração”. Informações: Hotel Eurostars das Artes Rua do Rosário, 160- Porto, Portugal Entrada Livre

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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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Articles inside

GRASIELA FRAGOSO | O CONTO DA MENINA AFRICANA

2min
pages 19-21

SAMUEL H. DIAS | O MONSTRO

4min
pages 31-37

RAFAEL SIMEÃO| MEIA NOITE NA MESA DA COZINHA

6min
pages 26-30

VOLUME seis | NÚMERO

1min
page 5

NATANAEL OTÁVIO| CORTANTE

1min
pages 24-25

GLAUBER COSTA | OS RATOS

2min
pages 14-16

GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS | RECORDAÇÃO

1min
pages 17-18

EBER S. CHAVES | LUCY

1min
pages 9-10
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