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RAFAEL SIMEÃO| MEIA NOITE NA MESA DA COZINHA

MEIA NOITE NA MESA DA COZINHA

RAFAEL SIMEÃO | Nova Iguaçu, RJ.

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Precisamos conversar. Foi o que ela disse. O outro nunca foi muito de conversa, mais de silêncio. Mas com ela, conversava. Taí inclusive um dos motivos pra gostar tanto dela, com ela tinha vontade de conversar. Com outras pessoas, sempre calado, só falava se por necessidade. Acabou gostando dessa novidade e, na companhia dela, chegava até a falar por falar. Mas quando ela disse que precisavam 26

conversar, não, não gostou. Soou-lhe mal a necessidade. Conversa boa era espontânea, assim, peremptória, não. O que dava a ela o direito de proclamar que aquela era a hora de conversar, e não alguma outra qualquer, quando o assunto que ela julgava necessário viesse à tona naturalmente? Por que forçar a barra, marcar hora, sentar à mesa numa noite de calor abafado e em vez de servir o jantar preparar um café forte, sentar cara a cara, ombros encolhidos, olhar baixo pra toalha de mesa já puída e dizer, cheia de decisão, que precisavam conversar. Incomodava o sujeito, calado, adepto mais do olhar e dos gestos. Conversar sempre lhe pareceu muito complexo, um exercício hercúleo de alinhar as emoções e as palavras, sopesar cada tom, tomar cuidado pra não deixar escapulir uma mentira qualquer, sempre tão sedutora e, por isso mesmo, deveria ser uma atividade livre e natural. Depois de tanto tempo juntos, de tudo que tinham vivido, a vida dura que enfrentavam naquela comunidade, naquela casa velha, mas que conseguiam levar em harmonia porque tinham um ao outro, amargando juntos as imposições, exercendo os papeis historicamente escritos pra eles, mesmo que nem soubessem, mas felizes, e tudo isso na base da conversa espontânea e dos sentimentos, pra que isso, como que agora ela vinha dizer pra ele que precisavam conversar, e lhe servia um café negro e não o arroz com feijão, sempre tão batalhado, sol a sol, nas balas e amendoins vendidos na rua, logo no início, varrendo chão, limpando casa de madame, obedecendo ordens imbecis e se sujeitando a humilhações veladas por tantos anos, até que juntaram um dinheirinho e conseguiram abrir o botequim, que ele tomava conta, porque ela precisava ainda trabalhar em casa de família e dizia, agora que ficou bom pra gente, com todos esses direitos, eu não vou largar, como, depois disso tudo, ela ainda precisava proclamar, feito num discurso, que precisavam conversar? Sempre conversaram, afinal, nunca precisou disso, quando ele foi demitido da vaga de auxiliar de serviços gerais não haviam conversado, ela não

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tinha lhe dado todo o apoio, dito que superariam tudo juntos, que durante um tempo dava pra segurar a barra sozinha, e quando ele veio com a ideia dos picolés no trem não foi ela quem bancou o primeiro isopor e não o deixou desanimar frente a todos os empecilhos, seguranças, concorrência, dor nas costas? E aquele episódio, então, em que a acusaram, quando trabalhava na casa de uma atriz decadente, de ter roubado um colar de pérolas da década de 20, quando insinuaram que o colar estava ali até ontem à noite, que a madame tinha ido a um coquetel com ele e tinha largado na mesa de centro quando voltou, na sala, do lado do cinzeiro transbordando cinzas, e que, no outro dia, quando foi procurar, já não estava mais, quem, quem esteve a ponto de abordar a velha em pleno calçadão e esbravejar poucas e boas, ainda mais quando encontraram o colar caído atrás do vaso sanitário, e foi só então que a atriz se recordou que chegara naquela noite passando muito mal, meio alta, e o colar devia ter se desprendido do seu pescoço quando foi ao banheiro, isso, passando muito muito mal, vocês sabem, lógico, não é preciso entrar em detalhes, entenderam, normal esquecer quando a gente passa um pouquinho da conta na bebida. Quem foi que deu toda a força pra ela largar o emprego naquela casa e disse que dobraria a venda de picolés enquanto ela não arrumasse um serviço pra substituir aquele, quem deu um sorriso e disse que o sol tava dizendo e o picolé tava saindo mais que água? Foi ele, e sem sequer insinuar a necessidade de uma situação tão formal para conversarem. Tudo isso sem precisar sentarem mudos à mesa, atmosfera pesada, juntando os farelos de pão do café da manhã na toalha puída, cabeça baixa, e uma xícara de café preto, forte, quente, mesmo no calor que fazia. Pra que esse teatro, nunca foram de teatros, sempre foram espontâneos e se amavam naturalmente, atendendo por pressentimento ao que um esperava do outro. Se ajudando nas doenças, rindo juntos nas conquistas, feito naquela vez que ela ganhou no bicho, mas que foi

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como se os dois tivessem ganho, porque, apesar da insistência dele, ela não quis comprar algum agrado pra si, renovar a escova progressiva, trocar o celular, não, fez questão foi de dar entrada num jogo novo de sofás pra sala, pros dois usufruírem de um pouco mais de conforto. E por que agora aquilo, depois de tanta falta de grana, noites em claro no calor com a luz cortada, tantos tiroteios na hora de ela chegar em casa do serviço, e ele preocupado e ao mesmo tempo ameaçado, baixando rápido as portas do bar, toques de recolher, lutos por chefes do tráfico, dias perdidos sem faturamento. E tudo isso sozinhos, os dois, apoiados um no outro, enfrentando, resignados mas firmes, conscientes do que deveria ser feito e alicerçados no amor que nutriam um pelo outro, porque agora aquela necessidade premente de conversar, que não podia esperar nem por um banho? O dia cansativo pesando nas costas, suor, poeira, corpo colando, depois de ter lidado ainda com um playboy bêbado que subira o morro com os amigos pra tomar umas curtindo o visual e não tinha se conformado com a saideira, sem disposição pra entender que era terça-feira e passava da hora de fechar. Afinal, não era o playboy que amanhã teria que madrugar pra entregar o resultado do exame ao médico, urologista do sus, que andava desconfiado da sua dificuldade pra mijar. Cansativo pros dois, o dia, afinal, e meia noite a cabeça ainda fervia. Tempo agora, só pra um banho, janta e talvez uma zapeada na televisão sem prestar atenção em nada. E ela ainda vinha com essa de que precisavam conversar, atrasando o hábito, desestabilizando a rotina que já era pesada o bastante. Mas foi aí que ela levantou a cabeça e tentou encará-lo nos olhos, com dificuldade, porque ele se mantinha na tarefa de formar com as migalhas de pão um monte, entre um gole e outro de café. Ela pediu, olha pra mim, e o que ele viu foram dois olhos brilhando, mistura de aflição e felicidade, olhos feito aqueles ele nunca tinha visto no rosto da sua mulher, apesar de todos os anos de companheirismo, desse jeito nem naquele episódio em que

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conseguiram ficar juntos, ela juntada com um sujeito metido a machão que não aceitava a separação e queria manter a união à força, até que numa madrugada fria de junho, ela se lembra até hoje, garoa fina caindo e o sol demorando uma eternidade pra iluminar o dia, estendendo ainda mais a angústia, ela fugiu e o encontrou no local combinado, a kombi que ele havia alugado lá esperando com suas tralhas, pronta pra levar os dois pro cantinho onde vivem até hoje, e nem naquele dia ele viu aqueles olhos, feito ali, naquela hora. Fala logo, foi o que a ansiedade assoprou pela sua boca, num tom ríspido que ele não pretendia e que, surpreendentemente, fez assomar no rosto dela um sorriso, a mão pegar na sua e finalmente a voz expelir, meio engasgada, a fala, tô grávida.

RAFAEL SIMEÃO (28 anos, Rio de Janeiro) não quis nos contar muito sobre ele, mas fornece algumas pistas quando escreve. |

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