Revista Subversa

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SUBVERSA Vol. 4 | n.ツコ 07 | abril de 2016

ISSN 2359-5817

Ilustraテァテ」o | LILA BITTEN

GLAUBER COSTA | GERALDO LAVIGNE DE LEMOS ANDERSON S. FREIXO | CAROLINE POLICARPO MARCILANE SANTOS | HERBERT DO NASCIMENTO LUCIENE BERNARDES | ELLEN MARIA VASCONCELLOS RAFAEL ZACCA | JOテグ CERQUEIRA


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 07

© originalmente publicado em 15 de abril de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações LILA BITTEN| INSTAGRAM | lila1197@gmail.com

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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SUBVERSA ANDERSON S. FREIXO | MITO DA CARTEIRA | 6 CAROLINE POLICARPO | PERSONA(GEM) | 8 ELLEN MARIA VASCONCELLOS | PANORÂMICA | 11 GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | A MEU TEMPO | 13 GLAUBER COSTA | A HOMENAGEM SECRETA | 15 HERBERT DO NASCIMENTO | LÍQUIDO | 22 JOÃO CERQUEIRA | O DITADOR E A POESIA | 26 LUCIENE BERNARDES | O VENDEDOR DE BALAS| 34 MARCILANE SANTOS | ECO | 37 RAFAEL ZACCA | UM SONHO | 40

SOBRE LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil) | 42

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EDITORIAL "Penso que, no grande medo do livresco, se subestima a referência 'ontológica' do humano ao livro que se toma como fonte de informações, ou como 'utensílio' para aprender, como um manual, quando é, na verdade, uma modalidade do nosso ser. Com efeito, ler é manter-se acima do realismo ou da política -, da preocupação por nós mesmos, sem desembocar, contudo, nas boas intenções das nossas belas almas, nem na idealidade normativa do que 'deve ser'". Emmanuelle Lévinas, Ética e Infinito

Número 7, volume 4. Prestes a completar dois anos de projeto, essa Subversa conta histórias sobre ser o centro das atenções: um escritor que não consegue escrever, um pinguim em plena praia de Copacabana, um ditador que quer proibir a poesia, e por aí vai. Um texto literário é uma forma de centro de diversas atenções. A grande liberdade da leitura é poder introduzir esse centro de maneira mais ou menos dogmática, mais ou menos agressiva, com menor ou maior atenção, etc. Tentar estabelecer uma única função para a literatura é, ao mesmo tempo, afirmar a sua falta de liberdade, o corte das suas asas. Um dos problemas das discussões sobre o que é literatura é esse: para dizer o que é literatura é preciso negar o que ela não é? O que tentamos fazer na Subversa é permitir que a literatura simplesmente exista, que exista alguém para recebê-la e para trabalhar por sua própria liberdade e autonomia. Talvez essa seja melhor forma dessas páginas continuarem a refletir as mudanças e as contradições sociais e individuais pelas quais constantemente passamos. É isso que a literatura é, afinal: um reflexo que nunca acaba. Com muito gosto, convidamos a todos a apreciar e a colocar como centro de sua atenção as imagens que a artista Lila Bitten oferece ao número. Com apenas 18 anos, iniciando o curso de design da UFSC, Lila mostra nas ilustrações o cuidado e a profundidade da ligação que estabeleceu com os textos. Vocês podem conhecer mais trabalhos da @lilabitten e acompanhar a @revistasubversa no Instagram! ;) Desejamos a todos uma ótima leitura.

As editoras

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Em breve, Subversa vers達o impressa #2 5


“Prisão de caixa”, ilustração de Lila Bitten

MITO DA CARTEIRA ANDERSON S. FREIXO | Salvador, BA.

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O último cigarro da carteira Viu, um a um, seus amigos serem puxados para fora E sentiu o cheiro da fumaça Do corpo queimado De seus 19 colegas de quarto Gelou de medo Quando sentiu um par de dedos Puxando ele Pelo rabo Já com a cabeça pegando fogo O último cigarro Que teve o tempo hábil pra ser sábio Consolou-se Sacudido e aturdido no universo circundante: "É melhor que viver dentro da caixa"

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outras revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página do Facebook (Zona do Freixo). | ANDERSON.FREIXO@GMAIL.COM

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“Agonia”, ilustração de Lila Bitten

PERSONA(GEM) CAROLINE POLICARPO | São Paulo, SP.

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essa garota que precisa tanto cre(r) (scer) ser tornar-se essa garota que precisa tanto ir embora essa garota tão necessária e necessitada sempre com medo das próprias perguntas do próprio fascínio intenso demais ela nunca pediria pra ser salva ela tentaria salvar (-se) mas talvez fracassasse essa garota que precisa tanto entender os passos as asas a poeira da estrada a insuficiência dos mapas imprescindíveis essa garota que não sabe o quanto está perto -(e longe) de si essa garota que ainda não percebeu que o inalcançável pode estar tocando-a e mesmo assim ser inalcançável

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essa garota com medo de perder-se nos espelhos e mapas precisa perder-se antes de encontrar-se (re)criar-se descobrir-se ela, outra, tantas, e enfim fazer-se quem quiser (ver-se no espelho, enfim, e enfim entender os mapas) essa garota, tão eu, é outra, é uma quase personagem que ganhou vida e tornou-se a minha

CAROLINE POLICARPO é autora do livro de poemas Palavras Andarilhas, publicado em 2015 pela Penalux. Estudante de letras, participou de várias coletâneas de contos, incluindo Sonhos Lúcidos, Ponto Reverso, O Corvo um livro colaborativo e King Edgar Hotel. Também tem publicações nas revistas Trasgo e Friday. É fascinada por astronomia, aspirante a desbravadora de universos (inclusive os inventados) e escreve por necessidade existencial. | CAROL_POLICARPO1@HOTMAIL.COM

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“Padrão repetitivo”, ilustração de Lila Bitten

PANORÂMICA ELLEN MARIA VASCONCELLOS| São Paulo, SP.

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Apesar de não originais, hoje, eles se bastavam. Tantas vezes decepcionados pela previsível repetitividade do mundo hoje se surpreendiam com a textura de uma pele. Ora, todas as peles não são apenas células mortas? Não enxergam o contato entre elas ou o que as agarram ainda a outras mais profundas camadas mas de fato, também não há nada de original nelas. Uma pele, um pouco queimada, da mesma cor que tantas outras com pelos, pintas e pontos além de pequenas cicatrizes, marcas de obstruções de poros e picadas... Apesar de não originais, velhos e cansados e necessitados de uma camada não muito fina de vidro, lente de aumento em armação de aço que já começara a perder a tinta, enxergam essa pele como se nunca houvesse outra pele retida por essas retinas, nunca houvera passado nenhuma imagem e ainda que datassem mais de quarenta anos de vida, luz, sombra, poeira e lágrimas, aquela pele ademais histórica e impregnada de memória de outras miradas refúgio de alguns corpos e comida para ácaros, recebia o presente de ser admirada, recém-nascida, pelos olhos deste homem. ELLEN MARIA VASCONCELLOS é autora do livro de poemas bilíngue (português/espanhol) Chacharitas & gambuzinos (Patuá, 2015) e tradutora do livro Ângulo de guinada, do autor estadunidense Ben Lerner (book,e-galáxia). Tem textos e traduções de poetas de toda América publicados em diversas antologias e revistas impressas e digitais no Brasil, Chile, México e Espanha. Colaboradora da Malha Fina Cartonera, e editora da Revista Adelitas. http://ellenmartins.wix.com/home ellen.martins@hotmail.com

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“A vida no tempo”, ilustração de Lila Bitten

A MEU TEMPO GERALDO LAVIGNE DE LEMOS | Ilhéus, BA.

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faço muito uso do quando porque o tempo me parece inconstante às vezes é água represada por outras, atira-se como cachoeira sabido desta verdade não costumo confiar nas máquinas pois meu tempo confunde os relógios confio, sim, na linha da vida que, tesa, dispara o carretel e, frouxa, para-o

GERALDO LAVIGNE DE LEMOS é membro da Academia de Letras de Ilhéus, autor dos livros À Espera do Verão (2011), amenidades (2014) e alguma sinceridade (2014), todos de poesia e pela Editora Mondrongo. | GERALAVIGNE@HOTMAIL.COM | INSTAGRAM: @GERALAVIGNE

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“Frustração”, ilustração de Lila Bitten

A HOMENGEM SECRETA GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

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Matutava, com o olhar para cima, querendo pegar a ideia do que escrever. Precisava retribuir tamanha receptividade da firma. Estava feliz, era bem aceito, como quase nunca tinha sido antes. Iria escrever uma homenagem aos patrões e aos colegas de trabalho, estava decidido. Só não sabia bem o quê. Mas iria fazer. Agradeceria, com certeza, a alguém em específico, que estava sempre a postos a ajudar, apesar de sua destacada misantropia. E a outro também, que sempre lhe dava dicas, que depois ele foi vendo serem mesmo imprescindíveis para lidar com aquele lugar. Aquele lugar, que se abria como uma casa agora, que se repetia como uma casa agora. Acordar era penoso, mas sempre fora mesmo antes do emprego. E, depois, foi vendo como era bom estar acordado o dia todo, exercitando-se de deveres feitos. Às vezes, sentia que decepcionava em certo ponto ali ou acolá, mas logo refletia que esse era um defeito seu. Queria perfeição demais. Tanto que em alguns dias até desanimava... Mas, no outro, tudo voltava às rotinas. Finalmente, trabalhar estava funcionando. Daí a homenagem. Pois para ele, sempre tão desconfiado, sentir-se acolhido era algo que merecia recompensa. Quer dizer, nunca pensara assim, mas agora essa vontade contente lhe surgiu. E ele não sabia outra forma de expressar a gratidão. Sob uma forma mais espontânea e natural ele ficaria encabulado. E não seria isso ainda resquícios de desconfianças? Pensou. Mas logo abandonou a dúvida. Não, não, era apenas cautela. Mas, por quê? Começou a suar as mãos. Em casa, a mulher estranhava a apreensão na frente do computador, com o editor de texto aberto. Ele não era de ficar assim estranho desse jeito. Nunca foi. Mas a mulher só ficou reparando de longe mesmo. Sentia uma angústia vendo-o assim concentrado, mas pensava que fosse alguma incumbência do trabalho. E era, de certa

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forma. Aquilo virou obsessão. A escrita não saía. Ele pensava, pensava, até ficar nervoso. Começou, então, a ir estressado para o escritório. E somente lá, aos poucos, é que ele ia se acalmando. Ou melhor, era uma gradação ainda misteriosa para ele. O agito interno parava. E ele ia ficando meio que sedado. Sedado, mas não anestesiado. Pois doía. Aquilo doía de uma forma absurdamente desnecessária. E ele sentia pela primeira vez essa dor charmosa de ter flagrado algo na mente e não conseguir repelir para o papel. Aquilo era um peso, uma agonia. Foi ficando distante, foi se sentindo sozinho... Até que, em casa, a mulher, diante da repetição desproporcional daquilo, tomou coragem e procurou saber, de uma vez por todas, do que se tratava. Mas ele relutava como quem aperta forte os lábios para não mostrar o que está mastigando. E ela insistia, como sabia insistir, até ele ficar bem irritado, ela o conhecia, até ele desabar sua muralha para ela, como de costume. Depois, vendo-a ler, pensou que seria até bom uma leitora para aquilo. Pois essa coisa toda não parecia ter futuro com ele sozinho. Estava mais para um devaneio daqueles bem fortes, incoerentes e passageiros;

sem

testemunhas,

sugados

pelo

filtro

das

coisas

imperceptíveis e insignificantes. E o que ele sentia não era bem um bloqueio, mas um engasgo maluco, misturado a gostos de clipes, de mesas, de documentos, de óculos... Talvez ela desbloqueasse tudo com aqueles seus olhos que sempre sabiam como olhar. Ele alertara logo que não precisaria ser nada descomunal. Era só uma coisinha que sensibilizasse. Enquanto ela lia e ajudava como quem ajuda em um trabalho prático e sério, ele ficava imaginando os colegas admirados pelo talento secreto de poeta e o patrão satisfeito por ver aquela originalidade na firma. Depois de semanas, enfim, saiu. A mulher aplaudiu. Ela dera os seus pitacos. Ficou bem arrumadinho, fácil de ler. Talentos de

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advogada. Porém, depois que imprimiu, ele não levou logo. Guardou em uma gaveta para pegar logo mais. E ficou nisso: todo dia pegava e colocava de novo lá. O que temia? Talvez fosse uma antiga inconstância que sempre lhe acometia nesses momentos. Que momentos? O que ele fazia? Aonde ele se carregava com uma ideia assim impensada, infantil? Ele dizia. Mas a cada dia ele via e sentia que os colegas mereciam o tal agradecimento, que ele não conseguiria jamais expressar pessoalmente e que, por isso, estava até se achando antipático já. E esse sentimento só piorou depois da homenagem pronta, guardada em casa, cada vez mais amassada e abandonada no quarto. Foi em uma segunda-feira, então, que é o dia da novidade do espírito, o dia de algo lá no interior suspeitar de qualquer mudança, o dia daquela preguiça, mas, por isso mesmo, da coragem, do pavor cristalizado, sacudido e gelado, de coisas aleatórias sendo repousadas, assentadas, que ele se revolveu. Meio disperso. Na verdade quem resolveu foi o corpo mal acordado, do qual a mente se aproveitou sem pensar. Nada era muito claro, algo nele sentia que só a insensatez levaria isso adiante. Mas nele, só existia a homenagem. Algo que havia construído, afinal. Uma intimidade de si para si confundida com um poder desejado. E era um texto bonito, todo suspirado para fora. Quase um acalanto. Pensou no sorriso discreto do patrão, na gargalhada do colega de brincadeiras. Suspirou mais alguma coisa que ainda estava circulando por dentro e partiu. Colocou no bolso e não tirou dessa vez. Pois tinha que ser hoje, do contrário, estaria sendo o maior dos ingratos. Logo que chegou à repartição, sentiu que estava sendo notado por todo mundo. Seria isso efeito da ocultação? Natural que fosse. O prestativo colega logo lhe fez uma brincadeira e um elogio. Sua mão suava. Tocou no bolso. Viu o chefe. Não seria tudo aquilo ridículo demais? E se fosse ridículo? Ou pior, se não fosse nada? Se não fizesse efeito algum e fosse subitamente esquecido? Todo inseguro, todo

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incerto e desajeitado, ele convivia com esses pavores. Pegou o papel. Olhou para todo lado para confirmar se estava sendo vigiado mesmo. Não estava. Ninguém olhava. Quem sabe se ele deixasse o papel na mesa do patrão e ficasse tudo acabado? Seria mais fácil. Não, não, isso não valeria. Seria covarde, pior até do que qualquer nulidade. E também podia originar algum mal entendido. E se comentasse com aquele colega antes? Podia ser uma boa ideia... Mas logo temeu ser imediatamente exposto. Guardou. Só que era exposto que teria de ser. Bem, pensou, se tinha de ser, que fosse, então, na hora que o próprio fôlego permitisse. Assim, manteria ainda o orgulho, que não podia perder. Ainda mais em uma situação dessas, desarticulada, de quebrar qualquer um. Passou em frente à sala da chefia, olhou e foi logo flagrado. Estava à vista. O patrão deu o velho sorrisinho leve de sempre e o chamou. Agora, ele se sentiria mais nervoso do que de costume. Tremeu e suspirou, tentando ficar relaxado. Não tinha razão, tudo aquilo. Afinal, era só um papel, ele poderia queimar, jogar fora, rasgar. Não era obrigado a nada, pensou. E o chefe foi falando do trabalho, da rotina, naturalmente de certos descuidos, de momentos que só foram testemunhados por alguns colegas de risinhos. Aquilo foi ganhando texto. O chefe foi fazendo recomendações, pedindo reflexão universal, para além da firma, para além do medo, do pavor de tudo, pavor que foi pegando sua respiração, intensificando seu olhar, boquiabrindo-o a partir da cabeça. Ouvindo: é tanta ajuda dos seus colegas. O que é bom para você? O que é bom para você? O que é bom para...? O eco, o ouvido, a flutuação do espírito... Que o chefe soubesse das relações entre os colegas, não seria novidade, mas aquilo foi ganhando detalhes demais, até ficar estranho de vez. Nesse momento, esquecera o que tinha no bolso. Esquecera até que havia bolsos no mundo, nas calças... Sentou. Ouviu muito mais. E um abatimento maior foi pairando, causando certo ensurdecimento.

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Como

se

ele

estivesse

mergulhando

em

um

rio

bem

fundo,

devagarzinho. Tinha mãos, mas não as sentia. Era mais fácil a parte da alma que equivale à mão sair sozinha, sem o corpo, para tentar tocar em vão o papel onde residia a homenagem. Ah, a homenagem, agora tão sólida como uma pedra naquele bolso. Sair com desvios de olhares dos colegas, espalhados como pingue-pongue entre as paredes, foi qualquer coisa sufocante. O papel pesando no bolso de trás. Os passos lentos. Quase não chegaria ao portão,

se

não

fosse

pela

amálgama

espacial

que

confere

superpoderes aos atordoados. Por um momento pensou se não iria refletir sobre tudo aquilo. Se não iria comparar logo aquilo com outras experiências. Mas não conseguiu nem formular um raciocínio. O ensurdecimento permanecia, e zumbia. E ele arrastava uma cauda. A homenagem... A homenagem... Que palavra vergonhosa... Corava. A homenagem... Uma vontade fora dele, como um anjo ao redor, pensou em voltar e entregá-la. Mas se isso tinha sentido, só o anjo sentia, porque ele mesmo não sentia nada. Continuou saindo, saindo, saindo, mesmo já na rua. Não sabia mais de onde sair. A decepção arrasa mesmo, como se diz na língua. Ele constatou. O papel, ele pôs na mão direita. O papel era amassado. Sim, parecia ter sido forjado já amassado. Era algo assim que sentia. Era algo assim que continha naquele papel. Algo amassado, desde o princípio. Como se desde a vontade inicial, ele já adivinhasse tudo. Como em um sonho do destino, que ele encarnou em um repente, fraco como é e sempre foi. E seus os ombros encolhidos não o negavam. Afirmavam um drama estranho, que se causasse asco em alguém, ele nem teria as forças de se importar. Ele era a fraqueza, a própria frescura... Uma homenagem... Em um momento, indagou-se distraidamente por que não estava pensando no que dizer à mulher. Não obteve resposta. Mais, a própria pergunta foi para o vácuo. A cada passo, ele se fazia mais traste, rumo ao nada que seus olhos enxergavam. Um nada que apareceu até

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quando tentou ler o papel elevado ao sol. Papel que não largou da mão direita, amassado, carregado como um sorriso de criança interrompido, sendo levado pelo braço, como em um cortejo fúnebre, muitos anos atrasado, de uma infância antiga, de berros distantes, de umas paisagens distraídas, por onde se vai o homem com a sua homenagem secreta escorregada no vento poeirento da cidade...

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto “Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume impresso. Escreve no blog glaubermanuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage do Facebook chamada Manuscritos. | GLAUBER.COSTA@HOTMAIL.COM

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“Amor no olhar”, ilustração de Lila Bitten

LÍQUIDO HERBERT DO NASCIMENTO| São Paulo, SP / Dublin, Irlanda

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– “E eu que nunca amei a ninguém”... – ele cantarolava na cama quando foi interrompido por ela. – Está errado. Não precisa de preposição. – Obrigado. Estranho, né? Falta algo, se você tirar o ‘a’. – Qual o melhor livro que você já leu? – A Fera na Selva. – O que é a Fera na Selva, pra você? – A Fera é o Devir, é a dialética... – E a dialética é o que? – A dialética... a dialética... Segurou a pia do banheiro como um náufrago segura uma boia, olhouse no espelho e respirou fundo. Mais um dia que começa. Andava pela cidade meio sem destino, disse para si mesmo que ia comprar material de arte, que ia fazer uma pintura pra colocar na parede da sua casa, para ornamentar um pouco aquele espaço espartano. Iria fazer uma deusa africana num pedaço de compensado. A cor da madeira seria a pele dela e colaria pedaços de jornal e flores e tudo ficaria bonito. Mas parou na frente da loja de material para pintura, girou nos calcanhares e voltou pelo mesmo caminho. Choveu, fez sol, ventou, choveu de novo. – O que aconteceu com você? Você virou um porra-louca! Todo rodeado por meninas nas fotos, os amigos fazendo declarações públicas de amor... – Você ainda está com o Bruno? – Ele me mandou uma mensagem para a gente tomar uma cerveja um dia desses. Mas ele some, fico irritada com isso. Eu estou saindo recorrentemente com o Léo, ele é amigo do Gordo...

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– Gordo?... – É, o Paul. – Ah... O que significa saindo recorrentemente? – Quase todo fim de semana. Esse sábado mesmo eu saí só com as meninas, ele me pediu para dormir com ele depois. Não é estranho? Eu cheguei lá toda suada, cheirando a álcool e cigarro e tinha jantinha quentinha pra mim às cinco da manhã... – Homem 2.0... – Você devia fazer design. O Léo montou um estúdio, tá se dando bem! – Quem é Léo? – O amigo do Gordo... Acordou suada, assustada, pensou ter gritado enquanto dormia. Já era quase manhã, o céu já estava ficando claro. Não que ela tivesse visto, seu quarto não tinha janelas. Subiu os degraus de pijama, bateu na porta. – Eu to com medo. – Entra, fecha a porta, deita aqui. – Obrigado. – Isso, se cobre, tá frio. Quer que te abrace? – Não, obrigada. Tá tudo bem agora. – Qual é o problema? – Eu tive um pesadelo. – Quer me contar? – Não, não quero falar sobre isso. Eu sou estranha, não sou? Eu não consigo me definir enquanto pessoa. – Sabe quando você vai pegar um copo d’água na cozinha? – Sei. – Aí você derruba o copo do nada e de repente tem água e vidro espalhado pela sua cozinha inteira?

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– Sei. – Isso é você. Não se lembrava da última vez que tinha ficado sóbrio por tanto tempo. Já fazia mais de vinte e quatro horas que não bebia. Tirou as botas e acendeu um cigarro, com os pés na grama gelada. – Tô me divertindo sem reflexão, agora. Vai dar merda, não vai? – Por que daria? – Sei lá... – A gente só não dá certo um com o outro, não é? – Você fazia chantagem emocional comigo e nunca foi capaz de andar com as próprias pernas. E eu era uma idiota que corria da vida, me escondia de mim mesma... mas se sete anos é não dar certo... Era uma e meia da manhã e ela chorava baixinho sobre o travesseiro, virada para a janela enquanto ele lia um livro qualquer. Um grande clichê de novela. – Não me olha assim! Você está me julgando! – ela brincou. – Não, eu só estou te olhando! – ele sorriu. – É porque eu estou comendo como um elefante? – ela sorriu. – Eu não disse nada, mas você está fazendo um juízo pesado sobre si mesma, moça... – Você está o típico porra-louca mesmo. – riram juntos, terminaram o café. Ela foi trabalhar e ele foi andar um pouco pela cidade. HERBERT DO NASCIMENTO era um operário. Agora é escritor e tradutor. Já participou de diversos concursos literários. Nunca venceu nenhum. Pudera… Fanático por todo tipo de literatura e por prosear com quem cruza seu caminho, é dessa experiência que toma inspiração para escrever. Fugiu do calor do Brasil há um tempo para a Irlanda, de onde escreve. Atualmente pensa em fugir do frio da Irlanda. Talvez para o Brasil. | HERBERT_HN@HOTMAIL.COM

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“Repreensão poética”, ilustração de Lila Bitten

O DITADOR E A POESIA JOÃO CERQUEIRA | Viana do Castelo, Portugal.

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O ditador estava preocupado com o estado do país. Corriam rumores de que o povo andava triste, tinha perdido a alegria de viver, não demonstrava iniciativa. O ditador não podia compreender por que tal sucedia. Afinal, ele tomava conta deles, dava-lhes tudo o que eles precisavam, resolvia-lhes todos os problemas. ‘’Porquê?’’, perguntavase, ‘’o que terá acontecido?’’ Não sabia a resposta, mas tinha a certeza de que só poderia ser algo muito grave. Os seus opositores – todos presos – diziam que a razão era a falta de liberdade. ‘’Tolices’, pensava o ditador, no seu país não existia nenhuma falta de liberdade, toda a gente podia sair de casa, ir trabalhar e passear com a família quando quisesse. Só as pessoas que criavam problemas é que eram presas. Os restantes cidadãos eram até mais livres do que os povos de outros países porque estavam protegidos por si. Desesperado, reuniu-se com os seus três conselheiros. - Quero saber o motivo do meu povo andar deprimido! A minha reputação está em jogo. Dou-vos uma semana para me apresentardes relatórios. Os conselheiros olharam uns para os outros assustados. - Os motivos são complexos, senhor presidente… - disse um deles. - A culpa é dos nossos inimigos… - disse outro. - O povo é assim mesmo, nunca está contente com nada… - disse o terceiro conselheiro. - Calai-vos – gritou o ditador. Quero provas concretas. E se dentro de uma semana não conseguirdes descobrir o verdadeiro motivo, ides todos para a cadeia. Está encerrada a sessão. Uma semana depois o ditador voltou a reunir-se com os três conselheiros. Estavam pálidos, com olheiras e mais magros. O ditador mandou-os sentar e começou a interrogá-los. - Começas tu – e apontou o dedo a um dos homens. O visado estremeceu, engoliu em seco, e só então falou.

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- Senhor presidente… estudei a fundo o problema e cheguei à conclusão de que o povo anda deprimido por causa… por causa do aquecimento global… - Idiota. Guardas, prendam-no! – gritou o ditador. E agora fala tu – e apontou o dedo a outro conselheiro. Este fechou os olhos e pareceu entoar uma reza antes de falar. - Senhor presidente… fiz uma pesquisa entre os cidadãos e conclui que… que as pessoas estão preocupadas com o seu estado de saúde… - Quem vai ter problemas de saúde és tu. Guardas, prendam-no. Sabendo-se perdido, o terceiro conselheiro aceitou o seu destino e, de entre as várias teorias que tinha inventado para agradar ao ditador, escolheu aquela que lhe pareceu mais disparatada. Pelo menos, gozaria um pouco com ele. - Senhor presidente, a razão é a poesia… O ditador não contava com aquilo. - O quê? - Sim, senhor presidente. O povo anda a ler demasiada poesia e depois fica triste. O ditador olha-o desconfiado. - A poesia põe as pessoas tristes? Eu pensava que os poetas falavam de amor, felicidade, gozo da vida… - Alguns poetas sim, mas os nossos só compõem versos deprimentes. Ouça este: Não haverá um cansaço Das coisas, De todas as coisas, Como das pernas ou de um braço? Um cansaço de existir, De ser,

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Só de ser, O ser triste brilhar ou sorrir...1 - Realmente é horrível! Até a mim me deprime. - Está a ver? É esta a verdadeira razão do povo estar infeliz. - Malditos poetas. Eu bem sabia que havia alguma coisa errada com estes tipos. Que tipo de homem é que perde o seu tempo a fazer versos? - São pessoas fracas, incapazes de suportar os problemas da vida. Os homens verdadeiros, como o senhor presidente, pegam em armas e lutam. Os poetas baixam os braços e choram. A poesia é isso mesmo: uma choradeira sem fim. - Tens razão, os poetas são uns desgraçados que corrompem a sociedade. - Muitos deles suicidam-se para provarem que a vida não tem sentido. Por muito que um governante faça, os poetas deitam tudo abaixo. E basta-lhes uma caneta e uma folha de papel… - Nunca pensei que pudesse ter um inimigo assim. - A poesia é a maior ameaça ao seu governo, senhor presidente. Os outros opositores dizem o que pensam, são previsíveis, podemos controlá-los. Os poetas, não, dissimulam as suas intenções e nunca sabemos o que andam a tramar. - A poesia é uma arma… - Eu diria que é um veneno… - A partir de hoje, acabaram-se os poemas. Prende esses tipos! No dia seguinte, todos os poetas e poetisas que tinham publicado livros ou escrito versos para revistas e jornais foram presos. Foi decretado que doravante a poesia, escrita ou declamada, ficava proibida. A posse destes livros seria considerada um acto de terrorismo. A

1

Fernando Pessoa – Tenho dó das estrelas.

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população foi obrigada a entregá-los e fez-se uma grande fogueira numa praça. Pelo ar enrolaram-se versos de fumo. O ditador fez algumas aparições públicas e comprovou que já se notavam algumas melhorias no humor da população. Viu até uma adolescente a sorrir. ‘’Isto leva algum tempo, mas daqui a alguns meses já deverão ser felizes outra vez’’ – disse para consigo. Ter erradicado a poesia fora a melhor decisão da sua vida. Foi então que numa festa em honra de um diplomata recémchegado conheceu Madalena, a sua esposa. Era uma ruiva de olhos verdes, alta e elegante. Tinha um vestido azul colado ao corpo. O ditador nunca vira uma mulher assim. A voz dela silenciou o barulho à volta. O toque da sua mão deixou-o arrepiado. Durante o serão, seguiua com os olhos, tentou manter-se perto dela, mas não foi mais capaz de lhe falar. O coração atravessava-se-lhe na garganta e a boca fechavase como uma cela. Quando se deitou sonhou com ela o resto da noite. No dia seguinte mandou chamar o único conselheiro que lhe restava. - Eu quero a mulher do embaixador. A ruiva… O conselheiro percebeu que estava de novo em apuros. - Senhor presidente, esta mulher é diferente das outras. Não pode raptar a esposa de um diplomata. Haveria uma guerra… O ditador ficou a olhar para o chão. Sem muita convicção, perguntou. - E qual é o problema? - O problema, senhor presidente, é que o país dele é mais forte do que o nosso. O ditador coçou o queixo durante alguns segundos. - E se ela vier ter comigo de livre vontade? Já não haverá nenhum problema, pois não? - Nesse caso, suponho que não…

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O ditador dá uma gargalhada. - Pois então, será fácil. Como poderá ela resistir-me? - Sim, como poderá ela resistir-lhe…? Nesse mesmo dia, o ditador enviou um convite ao embaixador para uma festa dentro uma semana. Chamou o seu alfaiate para lhe fazer um fato novo, deixou que o barbeiro lhe aparasse as sobrancelhas e, pela primeira vez na vida, mandou comprar um perfume. Madalena apresentou-se com um vestido preto e uns sapatos de tacão alto. O seu cabelo parecia estar em chamas e os seus olhos cintilavam como pirilampos. O ditador achou-a ainda mais bela. Como o conselheiro fora encarregado de entreter o marido, ficou com o caminho livre. E desta vez não lhe faltou a coragem para a abordar. Convidou-a a sentar-se numa varanda com vista para o mar e ofereceu-lhe champanhe. Depois, conservou com ela sobre os seus temas favoritos: o governo do país, as medidas em prol dos cidadãos, o futuro da humanidade. Estava tudo a correr bem quando ela disse algo inesperado. - Se realmente deseja o bem do seu povo, deve libertar imediatamente os presos políticos. O ditador ficou perplexo. - Mas não existem presos políticos no meu país. Eu apenas prendo pessoas perigosas para a sociedade. Madalena levanta-se. A brisa espalha-lhe os cabelos. - Se não prometer que vai libertar essas pessoas, não poderei voltar a conversar consigo. O ditador abre os braços e entorna a garrafa de champanhe. - Está bem, prometo. Se isso a faz feliz, amanhã mando libertá-los. No fim da festa, o ditador estava radiante. Que importância tinha libertar aqueles patetas? Dali a uns tempos voltaria a prendê-los de novo. Por agora, o importante era agradar àquela deusa. Libertava até os poetas, se ela lhe tivesse pedido.

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Dias depois, planeava o ditador o próximo passo para a seduzir – uma nova festa? enviar-lhe flores? uma parada militar? - quando recebe uma mensagem dos seus espiões: ‘’A mulher do embaixador apanhou um avião e foi-se embora…’’. O ditador não quis acreditar devia haver algum engano. Como poderia aquela mulher tê-lo deixado sem sequer se despedir? Estava praticamente seduzida. Pegou no telefone e ligou para o embaixador. - Senhor embaixador, disseram-me que a sua esposa partiu… - Sim, não se adaptou ao clima e à comida… O ditador deixou cair o auscultador. Nesse dia cancelou todos os compromissos. Nos dias seguintes o ditador continuou a isolar-se, dando ordens para ninguém o incomodar quando se fechava no seu gabinete. Às refeições comia pouco, mas bebia demais. Na cama enfrentava noites de insónia. Quando sonhava, Madalena aparecia-lhe nos braços de outros homens. Aos poucos, começou também a emagrecer, a ficar pálido e a ganhar olheiras. Deitou fora o perfume. Vagueava pelo palácio como um fantasma e ficava horas à varanda a olhar para o mar. Se alguém lhe perguntava se precisava de algo, não respondia. Mas, por vezes, falava sozinho. Por fim, desinteressou-se do governo do país e deixou que o seu conselheiro tomasse decisões por ele. Uma manhã, a porta do quarto do ditador abre-se num estrondo e surge um grupo de soldados que lhe apontam metralhadoras. Atrás deles estava o conselheiro. - Informo-o que foi deposto. Agora o presidente sou eu. Vista-se por que vai ser fuzilado. O ditador pareceu aceitar a sua sorte e obedeceu sem um protesto. Vestiu o fato novo e deixou-se algemar. Duas horas depois estava morto. O povo saiu à rua e deitou foguetes. Toda a gente sorria.

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No dia seguinte, estava o novo ditador a instalar-se no palácio quando, ao abrir um armário, descobre uma caixa de marfim. Julgando que poderiam estar ali documentos importantes, abriu-a. Encontrou várias folhas escritas à mão e sentiu um aroma de perfume. Começou a ler a primeira: ‘’Madalena, luz da minha vida levaste contigo o meu coração….’’

JOÃO CERQUEIRA é doutorado em História da Arte pela Universidade do Porto. É autor de oito livros, entre eles A Tragédia de Fidel Castro, publicado nos EUA com o título The Tragedy of Fidel Castro, que venceu diversos prêmios, como o USA Best Book Awards 2013, Beverly Hills Book Awards 2014 e o Global Ebook Awards 2014. Em 2015 será publicado em Espanha pela Funambulista, na Itália pela Leone Editore, no Reino Unido pela Freight Books e na Argentina pela Eduvim. Seus textos são publicados em uma série de revistas internacionais. | JOOMCERQUEIRA@GMAIL.COM

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“O desastre”, ilustração de Lila Bitten

O VENDEDOR DE BALAS LUCIENE BERNARDES | Belo Horizonte, MG.

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A mamãe não tinha com quem nos deixar e todos os dias nos carregava atravessando a cidade para nos levar para casa. Já havia me acostumado a ver e andar entre vultos que iam e viam sem parar, imersos nas cores cinzentas dos prédios e do asfalto da cidade. Apesar do movimento dos carros e ônibus que paravam e continuavam, era tudo um silêncio absoluto. E mesmo com a multidão que seguia desordenadamente por todas as direções, era um vazio tão grande que a gente sentia o quão pequeno e minúsculo que éramos dentro da imensidão. Estávamos parados em um ponto de ônibus quando papai chegou para nos encontrar. Agora estávamos completos e podíamos seguir para a nossa casa. Passamos a esperar pela condução. Eu estava ali, sempre atenta e à espreita vendo o movimentar e o parar das pessoas, quando de repente uma criatura franzina me chamou a atenção. Era um jovem rapaz branco, muito branco, quase pálido. Tinha o cabelo liso escuro ensebado e mal cortado. A blusa encardida de listras vestiam um tronco magrelo e envergado. As pernas finas e os braços raquíticos combinavam terrivelmente com os traços profundos de um rosto sem muita expressão. Acompanhei com o olhar tal o que para mim foi como uma aparição. Ele trazia uma velha mochila preta quase vazia pendurada pelas costas, e à frente uma bandeja com muitas balas e chicletes coloridos. E como se a vida fosse um incessante caminhar, parar e balbuciar, ele caminhava não indiferente ao resto da multidão, quando de repente veio em nossa direção. Ele parou ao lado de minha mãe e balbuciou alguma coisa. Vi quando minha mãe, com seu aflito e bondoso

coração,

olhou

para

os

olhos

tristes

do

moço

e

silenciosamente buscou pelo meu pai que sacou uma moeda do bolso. Então a mamãe comprou uma bala colorida para a gente.

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O moço recebeu a moeda e qual não foi a minha surpresa ao vêlo esboçar um sorriso grande, mesmo que por segundos fosse um lampejo temporário. Pensei que fosse a primeira moeda que ele tivesse ganhado no dia, ou talvez em longas horas. Mas depois descobri que foi a última. O moço andou alguns passos com o rosto iluminado. Com certeza foram poucos os que ouviram o estrondo do ônibus no corpinho magro do jovem rapaz. Quase que tudo passou despercebido no burburinho imenso da cidade se não fossem as balas coloridas que se espalharam logo pelo chão. E como se anunciassem uma grande festa, todas elas inocentes começaram a picar e a pular cada vez mais alto até chegarem lá no meio do escuro do céu, iluminando a escuridão numa infinita e brilhante explosão. O acontecimento fez parar toda a cidade. Papai e mamãe nos seguraram junto ao corpo com medo de nos perderem. Logo se aglomerou uma multidão cinzenta de gente admirada e boquiaberta assistindo ao espetáculo de luzes e cores. Mas quando o fogo se apagou, as pessoas encabuladas consultaram os seus relógios, tentaram algum balbucio com o vizinho e logo se puseram a marchar os seus passos apressados em rumo aos seus trajetos. Vi quando mamãe olhou para o papai e ele consentiu com a cabeça. Ela entrou numa loja e conversou com a mulher do balcão. Depois foi em direção aquele corpinho acabado. Parou um instante e ficou em silêncio. Depois cobriu o moço com jornal velho. Quando ela vinha em nossa direção começaram a chegar carros com sirenes e luzes piscando, trazendo os homens de uniformes que cuidavam da ordem da cidade. E também vieram aqueles engravatados com seus microfones, como urubus. Então nós olhamos nos olhos e entendemos que naquele dia a volta para casa seria diferente. LUCIENE BERNARDES escreve para se esvaziar, para se sentir livre, até que novamente novas histórias pululam ao redor querendo ganhar vida. Autora do blog O Véu de Ìsis, quando brotam as palavras (oveudeisis.wordpress.com) | LUCIENEBERNARDES9@GMAIL.COM

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“Somos um”, ilustração de Lila Bitten

ECO MARCILANE SANTOS | Santa Rita, PB.

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ECOA ECOA A VOZ A VOZ NO MURO A VOZ NO MURO ESPALHA-SE

ESPALHA-SE A ALMA ESPALHA-SE A ALMA E FECHA-SE O OLHAR ESPALHA-SE A ALMA E FECHA-SE O OLHAR AO SENTIR AO SENTIR LIVRAR-SE DAQUILO AO SENTIR LIVRAR-SE DAQUILO QUE ESTAVA PRESO DAQUILO QUE ESTAVA PRESO NO PEITO E QUE DO PEITO QUERIA SAIR

ECOA ECOA E SOA ECOA E SOA O ECO ECOA E SOA O ECO NO VERSO NO VERSO ECOA O SOPRO DAQUELA ALMA

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A ALMA A ALMA SOA

O VERSO O VERSO ECOA SOA A ALMA ECOA O VERSO.

MARCILANE SANTOS, 22 anos, natural do Rio de Janeiro – RJ, reside na Paraíba desde a infância. Logo nesta fase da vida, se apaixonou pela literatura. Costuma ler e escrever crônicas, poesias e contos. Em 2011 criou o blog “Simples Inspirações”, onde publica trabalhos de sua autoria. Inspira-se em seus próprios sentimentos e no cotidiano à sua volta. | MARCILENE.SANTOS@GMAIL.COM

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“Centro das atenções”, ilustração de Lila Bitten

UM SONHO RAFAEL ZACCA | Rio de Janeiro, RJ.

Um pinguim amanheceu a febre dos turistas na praia de Copacabana.

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Não tinha nado. Não era frio. Tinha um peixe podre na boca enquanto sonhava o nosso filho um acumulado de noites. Nasceria já velho calculando o tanto de aviões fracassados no Atlântico. O super filho de todas as noites em que não fizemos amor. Salvando o mundo, limpando o lixão – Mas não tinha filho. O pinguim, asa de tripa, fingia o voo. Todo sem jeito... O amor doído nas cartilagens... E as fotos dos turistas.

RAFAEL ZACCA é poeta e crítico literário. É doutorando em filosofia pela PUC-RJ. É membro do corpo editorial da Revista Chão, integrante do Núcleo de Estudos da Cultura no Capitalismo Contemporâneo (UFF) e participa da Oficina Experimental de Poesia, no Rio de Janeiro. Dá oficinas de criação poética. Publicou o livro de poemas Rafael Zacca | Kraft (Ed. Cozinha Experimental, 2015). | ZACCA.RAFAEL@GMAIL.COM

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LILA BITTEN (Florianópolis, SC, Brasil) INSTAGRAM | E-MAIL: lila1197@gmail.com Lila Bitten tem 18 anos e estuda design na UFSC. Se interessa pelo desenho desde a infância e associa a ligação com as artes à sua formação escolar de método Waldorf. A artista utiliza principalmente a caneta nanquim, misturando diversas técnicas e traços e privilegiando a experimentação de outros materiais como a aquarela, o grafite e a esferográfica. Lila garante que continuará treinando e aprendendo novas técnicas para cada vez mais conseguir passar pela sua arte as sensações, sentimentos e pensamentos que lhe inspiram.

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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