Revista subversa vol 4 nº6 abril2016

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SUBVERSA

Vol. 4 | n.º 06 | abril de 2016

ISSN 2359-5817

ANDERSON FREIXO GRINGO CARIOCA EDSON DUARTE MARLON VILHENA VAGNER SILVA GLAUBER COSTA EDSON AMARO EBER S. CHAVES GUILHERME ANICETO SÉRGIO SANTOS Ilustração | NEAL PICKHAVER


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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 4 | n.º 06

© originalmente publicado em 01 de abril de 2016 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações NEAL PICHAVER| PORTFÓLIO | FACEBOOK | BEHANCE

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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SUBVERSA ANDERSON FREIXO | ACIDENTE DE TRÂNSITO | 6 EBER S. CHAVES | PÉ MÃO CÉREBRO | 9 EDSON AMARO | POR QUE AMO OURO PRETO? | 11 EDSON DUARTE | CINCO ESTUDOS PARA O RETRATO DE UM PÁSSARO | 13 GLAUBER COSTA | GODOFREDO E O ESPELHO | 17 GRINGO CARIOCA | AS NAVILOUCAS | 27 GUILHERME ANICETO | RUA CHEIA | 29 MARLON VILHENA | TEMPORADA DE ANDORINHAS| 31 SÉRGIO SANTOS | PEDIR PARA NÃO ROUBAR | 37 VAGNER SILVA | COSTURA AMOROSA | 41

SOBRE NEAL PICKHAVER: pintura digital, surrealismo e capas para LP´s | 43

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EDITORIAL “A indústria cultural perfidamente realizou o homem como ser genérico.” Adorno, Indústria Cultural e Sociedade.

Hoje, que é dia da mentira, optamos por revelar a verdade: a Subversa é uma réplica. Sim, isso mesmo que você acaba de ler, uma comum e proveitosa réplica. A réplica é necessária, “os poetas discursam em réplica uns para os outros, em aparte no meio do discurso geral do mundo” 1. É através dela que a literatura tem a oportunidade de se renovar incessantemente. A réplica permite que se diferencie o objeto estético do mero objeto didaticamente reproduzido, fomentado pela indústria cultural. É ela que permite o surgimento daquela vontade de ir numa direção um pouco diferente (contrária, lado a lado, sobreposta, transposta, etc.) e encontrar o ponto ainda mais importante de toda a arte: a autenticidade, a irrepetibilidade, que faz nascer na forma artística a sua própria verdade, independente da distância que tomou do objeto antigo. Uma réplica que se preze acaba por deixar de lado a própria influência; acaba, portanto, por recusar-se a ser cópia. A literatura é uma forma de evitar o constrangimento da reprodução pela reprodução, uma oportunidade de revelar o inexprimível e o irrepetível, de oferecer ao espectador algo para saborear, num tempo em que a indústria cultural nos dá mais e mais motivos para engolir calados. Se, daqui dez ou vinte anos, depois de muito trabalho, tivermos conseguido passar essa única e singela mensagem, poderemos descansar tranquilas. Neste número, estamos subvertendo um pouco a própria Subversa: o ilustrador, Neal Pickhaver, é do Reino Unido; trabalha com pintura digital, produz capas para EPs e, eventualmente, design de tatuagem. Desejamos a todos uma boa leitura. As editoras. 1

Alberto Pimenta. O Silêncio dos Poetas.

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Em breve, Subversa vers達o impressa #2 5


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ACIDENTE DE TRÂNSITO ANDERSON FREIXO | Salvador, BA.

Você pode ser bonita inteligente, cuidadosa e ter uma pele sedosa mas também tem uma perna maior que a outra como eu tenho porque viemos ambos do mesmo barro do mesmo erro do mesmo espirro do mesmo esporro do mesmo urro do mesmo jorro do mesmo tiro do mesmo berro do mesmo barro Somos tortos, antemortos Acreditamos no mesmo deus Pagamos na mesma moeda Colamos as mesmas figurinhas

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Em dois álbuns diferentes. em mamilos mamamos ambos ambos mijamos ambos cagamos A sujeira da minha casa é a mesma da sua cama Vivemos variações de uma mesma vida, A única possível e existente A porta da minha casa dá pro seu mundo E de sua janela você encara o meu. Somos cópias mais desgastadas do que fomos ontem e mais estúpidas que as cópias que seremos amanhã E, muito em breve, depois da derradeira cópia, nossos corpos vão virar outros corpos, de outros seres Enfim, você não está esperando o ônibus, querida, você está esperando o fim.

ANDERSON SOARES FREIXO é carioca, tem 25 anos e reside atualmente em Salvador, onde estuda Letras. Já teve contos publicados por outrass revistas, como Mallarmargens, Samizdat e Desenredos. Atualmente publica seus textos no blog zonadofreixo.blogspot.com e em sua página do Facebook (Zona do Freixo). | ANDERSON.FREIXO@GMAIL.COM

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PÉ MÃO CÉREBRO EBER S. CHAVES | Vitória da Conquista, BA.

Veja aquele bicho caindo da árvore genealógica: Senta Alerta! Postura ereta. Caminha sobre os pés Zanza da floresta à savana

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Mexe as pernas maiores e mais poderosas Corra da fera! Cabeça agitada no topo da coluna vertebral Olha lá no céu aquela nuvem em forma de elefante Olhe agora seus dois pés Eles estão caminhando correndo pulando E esse jeitoso polegar disposto em relação aos outros dedos? Veja, olhe suas duas mãos! Elas estão livres e prontas a intervirem e controlarem o mundo Segura carrega apunhala agarra manipula. O custo da evolução alargou-se ainda mais Pé mão cérebro Viva o progresso!

EBER S. CHAVES (Itaquara, 1979) atualmente reside em Vitória da Conquista/BA. Graduado em Administração, é blogueiro, apreciador de psicanálise, filosofia, poesia, literatura fantástica, filmes de ficção e fantasia, rock’n’roll, cervejas especiais e feijoada. | http://eberchaves.blogspot.com.br/ | EBER.CHAVES79@GMAIL.COM

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POR QUE AMO OURO PRETO? EDSON AMARO| São Gonçalo, RJ. "Para Guilherme Ferreira Aniceto e Fabio Ferreira, lindo e feliz casal".

Por que amo Ouro Preto? Sendo ateu, Em seus templos respiro a fé perdida E nas ladeiras tortas como a vida Piso as dores que a vida já me deu. Piso as pedras pisadas por Dirceu. Menos que a sua, mia lira vai sentida Por trilha que é também menos florida Mas em pedras equivale o vale meu. Não repito, Marília, não repito Como Gonzaga os verbos de meu verso Nem redondilhas deixo-te expedito. Se Vila Rica em versos eu converso É por acalentar sonho bendito: Em pastor despertar um dia converso. (17 e 18 de outubro de 2015)

EDSON AMARO DE SOUZA é professor de Língua Portuguesa na rede pública estadual do Rio de Janeiro. Publicou pela editora Buriti sua tradução do romance "Valperga", de Mary Shelley e no site Amazon, em formato e-book, sua tradução da tragédia "O Rei Saul: Davi em Gilboé" de Vittorio Alfieri. | PLANTEARVORES2@GMAIL.COM

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CINCO ESTUDOS PARA O RETRATO DE UM PÁSSARO EDSON DUARTE | Campinas, SP / Dublin, Irlanda. I Não tenho asas mas sei o tormento do pássaro. Confabulo com a chuva e há muito canto meu canto. Sou mudo raras vezes canto. O peso do silêncio me abate quando menos espero. Das cinzas do meu sonho renasço pássaro. II Coleciono penas feito criança implume. Afogo minhas mágoas meus desafetos no sonho de ser pássaro.

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III Conheci as cinzas do fogão à lenha. Desde menino armei arapucas. Meu pai pagava para eu soltar os passarinhos. Conheci desde cedo a angústia de ser preso desespero e medo. Hoje das cinzas do que fui construo o pássaro. IV Um canto nunca se esquece. Ecoa até a alma. Floresce feito flor implume. Nunca fenece. V Do bem-te-vi guardo o canto.

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Essa dor de estar preso a um corpo. E outros trinados mais graves menos amenos que o grito de um ser humano. SOLO O pássaro que fui canta em bem-te-vi. Ai, bem-te-vi, ai ai. O canto que ouvi Rubro longe daqui. Ai, bem-te-vi, ai ai. O canto que eu vi Triste-alegre nada ali. Ai, bem-te-vi, ai ai. EDSON COSTA DUARTE (Pratápolis, MG) estudou letras na Unicamp (1988-1991), fez mestrado sobre a obra de Clarice Lispector (1992-1996) na mesma universidade, e doutorado na USFC (2002-2006), sobre a poesia de Hilda Hilst. Entre 2007 e 2009, fez pós-doutorado no IFCH, Unicamp, sobre e prosa de Hilda Hilst. Escreve poesia e prosa há muitos anos, tendo publicado quatro livros: Diário de um P.M.D. ou Diário de um diagnóstico (CBJE, 2008); Lírica impura III (CBJE, 2008); Cartas para o Nunca (Madio Editorial, 2010); Líricia impura I (EDUFSC, 2011). Publicou também vários textos em sites da internet e em revistas impressas. Trabalha com preparação e originais, revisão de textos e aulas particulares de português desde 1996. Corrigiu as redações dos vestibulares da Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente vive em Dublin, desde outubro de 2015. | DUARTEAZUL@IG.COM.BR

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GODOFREDO E O ESPELHO GLAUBER COSTA | Ubatã, BA.

Aquela não era uma situação da qual dava para ficar ignorando. Godofredo andava com dificuldade de enxergar o seu próprio reflexo no espelho. Estava com dificuldade de se enxergar em qualquer

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superfície espelhada. Fosse em janela de ônibus, em vitrine de loja, ou até mesmo diante da tela da TV desligada, o fato é que ele não estava mais conseguindo distinguir bem o seu reflexo. Apenas nos momentos em que parava para se olhar no espelho do banheiro é que conseguia ver a sua imagem claramente. Por conta disso, com o passar dos dias, Godofredo, para se sentir seguro, passou a ficar, todos os dias, minutos inteiros ali, contemplando a nitidez de sua imagem, trancado no banheiro. E muitas vezes, lá, reflexivo, chegava a considerar que poderia bem ser coisa da idade. Tinha quase setenta anos. Apesar de tratar-se de uma questão totalmente particular, para a qual a solução deveria ser a procura de um médico, Godofredo começava a sentir alguns efeitos sociais daquela sua nova experiência. Sobretudo nas vezes em que tinha que passar diante de algum espelho, junto com outras pessoas, e acabava enxergando o reflexo de todos, menos o dele. Isso sempre lhe dava certa aflição, que o obrigava a andar mais rápido ou a disfarçar de algum outro modo. Dias atrás mesmo, aconteceu de estar sentado em uma pracinha movimentada, e um carro preto, brilhoso e espelhado, estacionado à sua frente, refletir a imagem de todo o movimento da praça, exceto a dele. Ele, então, antes que alguém notasse aquilo, olhou para todos os lados e fugiu rapidamente para casa. Para evitar essas situações, Godofredo passou a sair cada vez menos e a voltar cada vez cedo para casa. E sempre que estava lá, de hora em hora, ficava repetindo aquele ritual de ir conferir a nitidez da sua imagem no espelho do banheiro. Lá ela se encontrava, como sempre, firme e completamente nítida. Só que isso não deixava de ser espantoso, visto que, desse modo, a invisibilidade estava sendo seletiva. Diante disso, passou também a ficar testando o seu reflexo em todas as superfícies espelhadas da casa, o que o levou a descobrir,

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após alguns dias, que a quantidade de êxitos na exibição de sua imagem estava diminuindo. Na solidão das noites, deitado em sua cama, Godofredo começava a pensar em contar tudo para alguns familiares e amigos. Mas sempre lhe surgia o receio de simplesmente o taxarem de caduco, e acabava dormindo sem se decidir. Um dia, pela manhã, tomou coragem de puxar assunto com o amigo vizinho, porém, sem conseguir chegar ao ponto desejado, limitou-se a falar sobre a velhice de modo geral. Eles eram quase da mesma idade e o amigo sempre dava tom bem humorado quando falavam sobre a terceira idade; o que o fez pensar em aproveitar tal tom para expor a dificuldade de enxergar o reflexo. Mas naquele dia o amigo estava meio apressado e ele permanecia hesitante. Talvez fosse melhor procurar mesmo um médico. Concluiu, pensativo. E mesmo depois de o amigo já ter ido embora, Godofredo continuou ali, parado, sozinho, na porta de casa, ainda pensativo. Quando retomou a consciência, respirou fundo e decidiu caminhar um pouco. No caminho, começou a ponderar que talvez pudesse ser, afinal, algum problema nos olhos. As pessoas da sua idade geralmente o tinham. Resolveu, então, testar a sua visão em superfícies opacas também. Às vezes, a visão embaçava, de fato. Mas não era sempre. E nada ficava tão invisível quanto os seus reflexos. Seguindo pelas ruas, assim, atento a tudo, acabou flagrando, pela fresta de uma janela, uma senhora arrumando vários espelhos pela casa. E como demorasse tempo demais olhando para aquela cena, hipnotizado pela quantidade de espelhos que aquela mulher possuía, imaginando-a a se olhar em cada um deles durante os seus dias, acabou sendo flagrado por ela, que se mostrou um tanto irritada, por

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estar

sendo

observada

com

aquela

insistência.

Ele

corou,

envergonhado, e seguiu adiante. Mais à frente, do outro lado da rua, viu um senhor idoso receber um carregamento por caminhão. Tratava-se de uma entrega de muitos espelhos. Godofredo, achando aquilo coincidência demais, parou e ficou olhando, com interesse. Mas novamente foi notado, e recebeu do homem um aceno negativo com a cabeça. Horas depois, em casa, batidas na porta o acordaram de um torpor de pensamentos. Era o carteiro. Godofredo, ainda distraído, pensou em comentar algo sobre aquilo. Mas, a tempo, reconheceu a ideia como tola. Resolveu, então, que daquele dia não passaria a ida ao

consultório.

Despediu-se

do

carteiro,

com

uma

estranha

cordialidade melancólica. Entrou em casa e abriu o envelope. Dentro, havia uma carta de alguém que dizia ser seu parente, mas que não se identificava. Apenas comunicava que iria chegar uma encomenda de espelhos para ele. E no final, fazia uma despedida emocionada, que Godofredo não compreendia bem. Aquilo o fez pensar mais uma vez em telefonar para alguém. Mas estava convicto de que não lhe dariam crédito. Dirigiu-se, então, meio mecanicamente, para a janela, a ficar olhando, absorto, o movimento da rua. E lá viu o seu amigo vizinho carregando um espelho com fios. Parecia um objeto eletrônico diferente.

Godofredo,

surpreso,

esfregou

os

dois

olhos

e

logo

reconheceu que havia sido só impressão sua. Na verdade, era um espelho e um computador sendo carregados juntos. Achou que aquilo estava desgastando a sua mente. Foi tentar dormir. Sonhou que todas as pessoas, de todas as casas por onde passava, olhavam-se em espelhos ligados em tomadas. Todas elas demonstravam alegria por estar se enxergando. E ofereciam olhares esporádicos de piedade para ele.

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No outro dia, acordou tarde e com dor de cabeça. De mau humor, decidiu evitar espelhos, por ora; pelo menos até que conseguisse ir ao consultório. Porém, tratava-se de um desafio difícil agora que aquilo havia ganhado aquela dimensão. Acabou, sem querer, vez ou outra, durante o dia, deparando-se com superfícies espelhadas. Não só. Foi também notando que estava ficando ainda mais raro encontrar uma que o refletisse. Mais tarde, à noite, com o esfriamento dos ânimos, Godofredo resolveu conferir direito aquilo, sem medo. E dessa vez pareceu definitivo: Nenhum espelho da casa o refletia mais. Nem o do banheiro. Era hora de procurar ajuda. Quem sabe não estivesse ficando cego ou doido? Com o coração acelerado de medo, sentou-se na sala. Como não encontrasse saída lógica para aquilo, deu nele um repentino furor improvisado, que o fez juntar vários espelhos na sua frente, para ver se, pela quantidade, forçava a formação de sua imagem refletida. Funcionou! Surgiram, aos poucos, várias imagens dele, nos vários espelhos. Porém, elas se mexiam muito e acabaram deslizando para um único espelho, dando forma a um único reflexo, que foi ficando borrado, até sumir. Com raiva, quebrou todos os espelhos que havia juntado. E acabou se cortando. O corte interrompeu o furor. Foi, então, tentar sanar a dor e descansar,

porque

estava

ficando

muito

cansado,

estava

lhe

chegando uma sonolência estranhamente hipnotizante. Adormeceu. No outro dia, acordou muito tarde, perdendo a hora de ir ao consultório médico sem pegar longas filas. Ficou em casa, no quarto. Iria amanhã. Na ociosidade da tarde, enquanto almoçava, com umas colheradas distraídas, notou que havia um espelho enorme deixado em cima da mesa. Não se recordava de ter colocado aquele objeto ali.

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Talvez tivesse esquecido lá durante a irritação anterior. Notou, no entanto, que a moldura daquele espelho era muito diferente da dos que ele tinha em casa. Aliás, só agora se dava conta de que não tinha tantos espelhos em casa. E que todos aqueles que ele quebrara eram de uma quantidade absurda. De onde eles vieram? Lembrou-se da carta do parente. Da encomenda que ia chegar. Levantou-se, no intuito de perguntar a alguém lá fora se teriam visto alguma entrega chegar à sua casa ou se alguém tinha entrado enquanto ele dormia. De pé, deu-se conta de que a cozinha estava um pouco escura, ainda que não estivesse anoitecendo. No caminho para acender a luz, colocou a louça do almoço na pia. Foi quando flagrou. Outro espelho estava brotando do ralo da pia. Parecia ter saído por osmose. Esfregou, então, os olhos para se desfazer daquela alucinação, mas só conseguia ver os seus próprios olhos refletidos ali, naquele objeto nascido do nada. Como estava escuro, atribuiu aquela ilusão de brotamento ao susto de ter encontrado um espelho dentro da pia. De todo modo, não deixou de continuar dando passos discretos para trás. Até que, em certo ponto, viu, na parede ao lado, mais um espelho. Esse, agora, estava saindo do concreto, a oferecer a imagem do seu rosto espantado, bem de perto. Fugiu rapidamente da cozinha. Chegando à sala, boquiabriu-se. A sala estava infestada de espelhos. Eram espelhos de todos os formatos e de tamanhos variados. E todos, agora, refletiam-no muito bem, deixando-o tonto. Os espelhos pareciam se mover. Sem se desfazer da tontura da visão, distinguiu o celular na mesa da sala e pegou-o para ligar para alguém. Porém, quando o segurou, olhando diretamente para a tela apagada, a tontura aumentou, pois surgia, a partir da tela, uma progressão de reflexos advinda de um outro

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espelho às suas costas. Um bem maior. Quase do tamanho da parede. Deixou o celular cair da mão. Como a tontura persistia, Godofredo resolveu sair, rapidamente, de casa para buscar ajuda, sentindo, no fundo, certa esperança de que, se alguém tivesse mesmo colocado aquilo tudo ali, pelo menos deveria estar por dentro do seu problema e, quem sabe, da solução. Mas, chegando à sala de entrada, um susto maior lhe acometeu. A porta da casa, que antes era de madeira, estava toda de vidro. E era agora um espelho, sem nenhuma fechadura. Tentou empurrá-la. Mas o material era muito grosso e pesado. Não saía do lugar. Buscou, então, a janela. E esta também estava assim, sob forma de vidro pesado, grosso, espelhado. Respirou fundo, passou as duas mãos pelo rosto e olhou para cima. O teto também estava de vidro. Desesperou-se. A passos rápidos, percorrendo a casa à procura de uma saída, confirmou: toda a casa estava repleta de espelhos. Não só. Até mesmo algumas paredes estavam puramente espelhadas. Gritou por socorro. Sem resposta por infinitos minutos, começou a esmurrar uma das paredes. Mas logo lhe doeram os punhos e os dedos. Reconheceu-se completamente preso. Berrou. Chorou forte feito uma criança. Chorou muito, como se pedisse ajuda pelo soluço, em uma reação de incompreensão diante daquilo tudo. O que o fez cansar, até encostar o corpo no material frio. Silêncio. Ninguém do lado de fora. Pior, tentou ouvir qualquer barulho e não ouvia nada. Nem mesmo os barulhos comuns da rua. Ergueu-se apenas quando, minutos depois, teve a ideia de procurar um martelo ou algum outro objeto para quebrar aqueles vidros. Atordoado, pegou uma ferramenta qualquer e começou a bater em uma parede. Animou-se, quando começou a ouvir o estalar de vidro se quebrando. Porém só foi perceber tardiamente que até mesmo os objetos eram agora de vidro espelhado, e o que estava se

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quebrando não era a parede, mas a chave de fenda em sua mão, agora ferida. Abriu a caixa de ferramentas e todas eram feitas de espelho, que refletiam, em conjunto, para ele, o seu rosto velho e assustado. Despejou todas no chão. O barulho de vidro quebrando despertou-lhe o ímpeto de quebrar todos os espelhos menores, todos os espelhos possíveis de serem quebrados. Saiu, então, pelos cômodos, quebrando tudo, aleatoriamente. Após ter quebrado muitos, respirou fundo e sentou-se no chão, aflito, fadigado. Depois, erguendo a cabeça lentamente, viu que as paredes em que antes estavam os espelhos menores, que havia quebrado, eram agora todas de vidro. Agora a casa inteira era um jogo de reflexos, que o deixava entontecido. Estava preso ali na multiplicação de sua própria imagem. Lembrou-se do telefone, dos amigos, da família, do consultório, dos números de emergência, quando viu que o celular também havia se tornado vidro e se partido. Desesperou-se por dentro, achando aquilo loucura. E no meio daquela confusão em sua cabeça, começou a jogar o próprio corpo contra as paredes, em desespero. Ia de encontro ao próprio reflexo e se batia. Primeiro, com algum cuidado, e um tanto desajeitado, pelo corpo já marcado pela idade; depois tombando forte, se machucando, até cansar e desmaiar. Cansado e dolorido, acordou, horas depois, e começou a se arrastar pela casa, adormecendo e despertando durante o rastejo. Num desses despertares oscilantes, viu um movimento estranho ao seu. Procurou, ao redor, com os olhos machucados, até conseguir ver, de relance, outra vez. Perdeu-o de vista! Mas sorriu, nervosamente, como se tivesse encontrado algo além do seu reflexo.

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Sentou-se no chão da sala e viu, sem procurar, alguns pedaços de fios saindo pelo espelho contra o qual tinha se batido. Levantou-se com dificuldade e foi na direção dos fios soltos. Agarrou um e começou a puxar. Era grande. Puxou com mais força. Era fácil de sair, mas parecia infinito. Pegou, então, a ponta de outro fio. A mesma coisa. Teve a ideia abrupta de puxar as duas pontas, esticandoas para os lados, abrindo os braços forçadamente; o que, por fim, resultou no rasgar daquela parede. Empolgado pelo êxito, quis repetir aquilo em todas as paredes da casa, já pressentindo sua libertação. Mas logo desistiu, quando notou que, após quebrar a primeira parede, o espaço vazio, que ficou, continuava refletindo, sem que se conseguisse ver o lado de fora da casa. Passou, resoluto, por cima dos cacos de vidro e dos fios, escombros da parede rasgada. Mas mesmo indo para frente, tudo o que via era seu próprio reflexo, como se não saísse do lugar. Parou, olhou para trás e deu de cara com um céu noturno estrelado dentro de sua sala. Esse céu parecia tão próximo, que Godofredo acabou sentindo, sem conseguir evitar, a vertigem da sua própria dimensão. Esfregava os olhos e a visão não saía. Parou de olhar para aquele espaço sideral que o enlouquecia e voltou-se para as outras paredes. Mas estas também pareciam estar começando a formar imagens. Com medo, ele começou a arremessar todo o vidro que encontrava pela frente em direção às paredes. O que, nos primeiros golpes, parecia inútil. Porém, de tanto insistir, percebeu que os objetos se quebravam cada vez mais longe, cada vez mais profundamente para dentro dos espelhos. Aproveitou, então, para correr rumo à profundidade. Correndo, sentia-se quebrando com o corpo inteiro alguns espelhos muito finos e leves em seu caminho, que iam deixando

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pedacinhos de vidro cortantes em sua pele. Até que, após algum tempo dessa insistência cega, as barreiras acabaram e, quando menos esperava, deu de cara com a rua. Todo dolorido e aliviado tinha, enfim, chegado à saída. E lá estava o mundo. Era mundo para todo lado. Estava livre para pedir ajuda. Mas, poucos segundos depois, quando olhou para o próprio corpo, Godofredo agora era de vidro. E, dele, pendiam fios interligados a outros vidros pela rua. Vidros grossos e resistentes, dentro dos quais, ele conseguia distinguir, embora um tanto embaçados, aquela senhora que dias atrás ele vira arrumando espelhos em casa, aquele senhor que recebera um caminhão de espelhos de encomenda e o seu amigo vizinho. Todos com olhares paralisados, como se estivessem mortos, em uma mistura bizarra de reflexo e fotografia. Agora, Godofredo, todo no vidro fechado, nunca mais iria mesmo conseguir enxergar a sua própria imagem envidraçada. Somente as imagens dos outros. Todas elas, para ele, mórbidas, paralisadas, pois não reagiam, nem jamais reagiriam, a todos aqueles seus socos espelhados, eternos e emparedados. Atrasados, alguns dias depois, bombeiros arrombaram a porta, à procura de Godofredo. Mas não o encontravam. O que viram mesmo, um tanto intrigados, foi apenas um espelho pequeno de vidro escurecido, em cima da sua cama, virado para cima, todo rachado.

GLAUBER COSTA publicou as crônicas “No longe, no dentro” e “Gênese”, ambas pela Coletânea Eldorado, da Celeiro de Escritores. Publicou o conto “Meu velho” na Revista Subversa, texto que faz parte do primeiro volume impresso. Escreve no blog glauber-manuscritos.blogspot.com.br e na Fanpage do Facebook chamada Manuscritos. | GLAUBER.COSTA@HOTMAIL.COM

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AS NAVILOUCAS GRINGO CARIOCA| Rio de Janeiro, RJ.

as naves conquistaram o mar, para não sermos apenas terrenos; as aeronaves conquistaram o ar, para não sermos apenas terrestres; as espaçonaves conquistarão Marte, para não sermos apenas terráqueos; as naviloucas conquistarão a arte, para não sermos apenas terríveis...

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GRINGO CARIOCA é uma figura ambivalente, intermediária e transcultural da América do Norte ao Sul, radica(liza)do na metrópole pré-pós-moderna do Rio de Janeiro, ex-capital do Brasil. É autor do livro Reflexos & reflexões (Oito e meio, 2014) e tem poemas publicados na antologia Novos talentos da literatura brasileira - Poesia, contos e crônicas (Confraria de Autores, 2014) e em revistas como Plástico Bolha, Mallarmargens e Otoliths. Participa em saraus e eventos como o CEP 20.000, e já expôs a sua obra no Museu de Arte Contemporânea (Niterói - RJ) e, mais recentemente, no Museu da Língua Portuguesa (São Paulo - SP), como integrante da exposição Poesia Agora (2015). É, também, o alter-ego do americano naturalizado brasileiro Marco Alexandre de Oliveira, Doutor em Literatura Comparada e Mestre em Línguas e Literaturas Neolatinas pela Universidade da Carolina do Norte (EUA). Atualmente é escritor, tradutor e professor de Letras da PUC-Rio. | GRINGOCARIOCA@GMAIL.COM

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RUA CHEIA GUILHERME ANICETO | Itajubá, MG. A chuva desceu com gosto. Na rua cheia, só se caminha se quiser se molhar. Na rua cheia, a água invade as casas, a água limpa mas suja. A dita cuja (a chuva) não dá trégua.

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Desce, gostosamente desce. Entra, forçosamente entra onde não é desejada. E o imposto, por onde escorre nessas enxurradas? E a obra prometida, o nivelamento da rua, quando começa? A dita cuja (a chuva) não tem força política.

GUILHERME FERREIRA ANICETO (Minas Gerais, 1991), Bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Federal de Itajubá, poeta, autor de “nós líricos”, livro de poemas publicado pela Editora LiteraCidade em 2015. | GUILHERMEFANICETO@GMAIL.COM

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TEMPORADA DE ANDORINHAS MARLON VILHENA | Belém, PA. É assim que será. Eu vou pular dessa ponte e abrir os braços. O vento vai me pegar em algum ponto, talvez logo no início da queda. Daí eu caio, caio, e espero que os olhos comecem a lacrimejar forte. Dessa vez é pra valer. Vou ter o baque me esperando no final. Cena de filme, iluminação natural, sem câmeras de zoom. O melhor presente que vou dar a mim mesmo nessa vida. Porque a gente sempre deixa o melhor para o final, é assim que é, assim que será. Porque o cansaço venceu, naqueles minutos finais do jogo. As andorinhas vão me amparar depois, eu sei que vão. É, soa como alucinação, mas eu sei

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que, no final, elas estarão comigo. Nelas eu tenho fé. Só tenho confiança nos pássaros hoje, têm suas penas, são perfeitos estrutura e esteticamente, e ponto final. Deus não se importa, porque tem mais o que fazer do que prestar atenção a essa ponte. Ele tem muito papel pra despachar, muitos carimbos pra carimbar, agenda lotada, essas coisas. Eu também não tenho muita conversa com ele. Nós nos deixamos em paz, cada um com seu inferno. Eu com minhas misérias, ele com a pilha de processos para serem processados. Fiz o que pude pra levar na boa os dias. Os dias se tornam cinza, bem lá no finzinho, ou melhor, aqui. Tentei ser bom, mas descobri que é preciso ter talento pra bondade, se você não nasce defeituoso. Todos nascem com falhas, alguns têm menos azar que outros. É difícil ser humano no sentido pleno. Na verdade, impossível. Então que se dane. Cansei da hipocrisia. Cansei da minha cara, das máscaras, dos escudos, dos sorrisos. Felicidade é uma propaganda de margarina com balões e um piano ao fundo. Tudo invencionice. Retirei o que tinha na conta do banco, enfiei num envelope e deixei com uma senhora imunda e seus cachorros cobertos de sarna no caminho. Pois que façam melhor proveito do que eu. A leveza é algo a ser admirado. Ninguém escutava o que eu dizia, agora não interessa mais. Que continuem surdos, pra mim já deu. A desistência também requer colhões. O cansaço possui suas recompensas. O cansaço não é para qualquer um. É preciso coragem para se cansar e desistir, firmeza para abrir a mão e largar a corda. Sem julgamento do mundo, por favor, sou apenas o cara de pé sobre a beira da ponte, numa tarde comum. Sinto falta das nuvens. Vou abrir os braços e elas não estarão lá em cima. Dessa vez vou com tudo, a gravidade faz o resto do serviço. Um carro acabou de passar, o motorista diminuiu a marcha, não parou, olhou para mim, seguiu o rumo. Acho até que tirou uma foto com o celular. Tanto faz. A filha pequena dele, no banco de trás, também olhou, disse alguma coisa ao pai, acenou um tchau. Não respondi, não vou me meter na vida dos outros a essa altura. Uma

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andorinha pousou perto de mim. Parece me encarar com aquele jeito neutro que elas têm de olhar para as coisas. Virou a cabeça, virou outra vez, deu uns passos, parou, pegou uma carona no vento que passava. Um sinal. Vai fundo, serzinho esquisito parado de pé sobre isso que você chama de ponte. Sim, vou fundo, pode acreditar. Aproveita o vento, ela disse, está uma delícia. Vou aproveitar, não se preocupe comigo. O azul ficou um pouco mais cinza. Aparentemente tudo está como devia, menos as nuvens. É delas que vou sentir falta, uma pena. Porque a Lili é minha boneca e minha amiguinha, minha melhor amiga, além da Raquel, eu gosto da Raquel, ela é legal, a gente brinca juntas, a gente estuda juntas, ela gosta de desenho animado, eu gosto de desenho animado, tem também a Juju, a gente brinca, a gente faz bolinho de mentirinha na casa dela, a gente corre juntas na hora do recreio, eu não gosto muito é dos meninos, eles tão sempre esfregando o nariz, se sujando todos, querendo mostrar o piu-piu deles, não sei por que eles têm mania de mostrar o piu-piu pra gente, aquela coisinha feia que parece um amendoim, outro dia eu comi amendoim, na verdade não foi amendoim, foi doce de amendoim, mas tava muito gostoso, mamãe disse que era pé-de-moleque, eu fiquei com medo, não quero comer pé de nenhum menino, não, chorei mas a mamãe riu e explicou que era só o nome do doce, que ali não tinha pé de moleque nenhum, ainda bem, né, que tinha mesmo era amendoim, daí eu falei que se fosse amendoim, eu comia, e comi, e foi gostoso, comi o pé-demoleque inteirinho, eu gosto muito de doce, dá uma sensação boa na boca da gente, a Raquel disse que já tinha comido em festa de São João, eu também gosto de festa de São João, a hora da quadrilha é bem divertida, tem as fantasias, tem as comidinhas, mamãe disse que eu não posso beber vinho quente, disse que é bebida pra gente grande, eu também nem gostei do cheiro disso, mas o resto é bem legal, tem canjica, tem musiquinha de forró, e na hora que acendem a fogueira, caramba, é muito bonito ver a fogueira bem alta, toda cheia

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de fogo, dá muito calor, né, se a gente fica muito perto, agora tô com saudade da Raquel, da Juju também, a Lili tá aqui comigo, ela é super minha amiga, só que não responde quando eu pergunto alguma coisa, o papai tá me levando pra casa da vovó, eu não sei bem porquê, ele falou que é aniversário do vovô, eu nem sabia que gente velha como ele fazia ainda aniversário, parece que é muito aniversário que ele já fez, todo enrugadinho, uma vez perguntei se ele tinha tido algum acidente e não tinham colado direto a pele dele de volta e ele riu muito, eu não entendi a risada, eu queria saber mesmo, o vovô tem um cheiro meio estranho, vai ver é a pele que tá descolando da cara e dos braços e das mãos dele, mas eu gosto dele, ele é bonzinho comigo, a vovó também, só que ela sempre fica perguntando se eu já comi, se eu dormi bem, se tá tudo bem na escolinha, tem vezes que a vovó é um pouquinho chata de tanto que pergunta as coisas pra mim, mas é bem legal também, enrugadinha também e até mais bonita que o vovô, a mamãe já tá esperando a gente lá na casa deles e sou eu que vou entregar o presente do vovô, foi o que o papai me disse, o presente tá aqui do meu lado, ele pediu pra eu tomar cuidado, não deixar cair nem amassar, por isso eu olho pra ele o tempo todo, pra não deixar cair no chão do carro. Ei, o papai parece que tá freando, será que aconteceu alguma coisa errada, ele esqueceu alguma coisa e a gente vai ter que voltar pra casa, hum, ele não tá parando, ele tá é olhando pra fora, tá olhando pra beira da ponte onde a gente tá, tem alguém ali, é um senhor que não se mexe, fica olhando pra cima, mas tá de costas pra gente, ah, agora ele virou a cara pra cá, não sei se é normal ter gente parada na beira da ponte assim, eu não fico ali, dá muito medo de olhar pra baixo, não sei bem por que, mas dá, o papai perguntou agorinha o que é que esse sujeito tá fazendo ali, acho que tirou uma foto com o celular dele, olhei bem nos olhos do homem, a cara parece um pouco fechada, mas acho que podia até conversar com ele, não parece uma pessoa ruim, feito aquelas que a mamãe diz que é pra eu

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evitar na rua ou em qualquer outro lugar, só que daqui de dentro não deve ter problema, né, acho que deve tá se sentindo meio sozinho, não sei como é que posso saber disso se nem nunca vi ele antes, dei um aceno e sorri um pouquinho, só um pouquinho, ele não respondeu, pode não ter me visto, tudo bem, eu sou pequenininha, ainda vou crescer muito, disse o papai uma vez, e vou ser mais bonita ainda do que já sou, não sei se sou bonita, a Raquel é, a Juju também, elas dizem que gostam do meu cabelo, eu também gosto do cabelo delas, agora acho que nem sei se quero crescer muito, é tão legal brincar e correr e fazer um monte de coisa divertida, gente grande não faz isso, não brinca quase nada, não corre, só vi a mamãe correr duas vezes porque tava atrasada pra sair pra algum lugar, acho que gente grande é tudo meio chata, gosto mais é das minhas amiguinhas, da Lili também, gosto de levar ela pra todo canto, gente grande devia brincar pra valer, eles devem esquecer como é isso quando crescem demais, eu sei lá, mas não tenho muita vontade de crescer, não, vai ver foi por isso que aquele homem tava ali na ponte, devia tá muito sozinho, sim, podia tá esperando alguém pra brincar com ele, agora fiquei um pouquinho triste, bem que o papai podia ter parado pra gente brincar com ele, não ia fazer diferença, eu acho, aliás, a gente até podia convidar ele pro aniversário do vovô, é, seria legal, super bacana, o vovô ia gostar, ele gosta de todo mundo, ele ri bastante, podia fazer aquele homem rir também, o papai vai achar estranho, mas será que dá tempo de pedir pra voltar e falar com o homem na ponte. Ora, e essa agora, minha filha quer que eu pare pra falar com aquele sujeito estranho, vê se pode. E convidar pra festa. Não tem o menor cabimento um negócio desses. Falei que podia até ser perigoso, e que ela deve sempre evitar falar com pessoas desse tipo, pessoas que ficam sozinhas são esquisitas, podem ser muito violentas, minha querida, não dá pra confiar. Lembra o que significa confiar, não é. Pois bem, fique longe de pessoas assim. De repente está na hora de comprar um

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celular simples para ela levar a todo canto. Pode ser bem útil. Hoje não dá mais para se sentir seguro de jeito nenhum, em lugar nenhum, em hora nenhuma. Além do mais, estamos em cima da hora pra chegar à festa. Sem condição de ficar parando pra qualquer um. Acho que aquele cara está pensando em se matar. Tinha toda a pinta. Se é que já não pulou da ponte, daqui não dá mais para vê-lo. Por via das dúvidas, tirei uma foto. Pra ser sincero, sei lá o motivo de ter tirado a foto. Curiosidade, talvez. Quem sabe reconheço ele quando a polícia ou os bombeiros retirarem o corpo do rio e o rosto estiver estampado na página de algum jornal, ou num site de notícias. Olha eu aqui, pensando na morte do outro. Ai, cacete, agora ela está com a carinha triste, conheço essa carinha. Mas não tem jeito, não mesmo. Ela pode até começar a chorar, eu não vou dar meia volta. Minha filha, entenda, a gente não conhece o homem, não adianta voltar lá, ele deve estar passeando, é isso, nada de mais. Vamos deixar o sujeito em paz e vamos pra festa, que o seu avô está lhe esperando. Ele ama você, todos nós te amamos muito, vamos nos divertir bastante hoje. Aquele homem tem a família dele, deve brincar com os filhos dele e gosta de olhar o rio correndo lá embaixo. Não, não sei onde os filhos dele estão, não sei quem são, eu não o conheço. Vamos deixar assim. Ótimo, parece que ela se conformou. Voltou a brincar com a boneca. Que cada um cuide da própria vida, pombas. Olha, quer saber, o cara que se dane pra lá. Mas vou ficar atento nas notícias de amanhã.

MARLON VILHENA é natural de Macapá, Amapá, Brasil. Em 2013 lançou a coletânea de contos As Horas Todas da Carne (All Print, 2013). Viveu em Minas Gerais e São Paulo, trabalhou como garçon e professor; fez bicos como segurança e músico. Formou-se como químico. Já colaborou com textos em diferentes mídias eletrônicas. Atualmente mora em Belém, Pará, Brasil. | http://marlonvilhena.blogspot.com/ | M.ITSARI@GMAIL.COM

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PEDIR PARA NÃO ROUBAR SÉRGIO SANTOS | Barreiro, Portugal. Estava na paragem do autocarro, penso que existiria uma fila com cinco pessoas que aguardavam o transporte. Um mendigo ou um drogado aproxima-se e com ar pesaroso pede que lhe facultem uma esmola para diminuir a sua dor. Há medida que as pessoas sobem para o autocarro, ele escuta desculpas ou apenas a mera indiferença. Revoltado e sem argumentos, perante as recusas, finge que pensa em voz alta e afirma. - Depois querem que um homem não roube! Metem-nos entre a espada e a parede e depois só nos resta pisar a poça e chafurdarmos. Bahhh!!!..

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Fico sentado a pensar no assunto enquanto o veículo arranca. Imagino então a seguinte situação: e se outros também fizessem o mesmo pedido ao público anónimo? Muitos para lá do ar respeitável e supostamente digno vivem acossados, antes de cometer o mal irremediável poderiam apelar a que os ajudassem. Fixo-me a olhar para a janela e observando o exterior imagino então as seguintes personagens que se passeiam na rua. .... Noutra paragem, um homem aparece está bem aprumado de fato e gravata, corte de cabelo impecável e usa um perfume agradável. Dirige-se às pessoas que estão na fila e começa o seu discurso. - Bom dia! Chamo-me Raimundo Esteves, sou gerente comercial de uma empresa imobiliária. Infelizmente influenciado pela mania das grandezas embarquei numa onda despesista e comecei a gastar mais do que devia. Eu e a minha mulher quisemos comprar um T5 numa zona nobre da cidade e actualmente pagamos uma exorbitância em juros. Temos também uma vida derreada, onde investimos muito em bens materiais e serviços que completam a nossa ilusão de felicidade: Boas roupas de marca, jantares em restaurantes exclusivos, mobiliário de luxo, bons vinhos, férias no estrangeiro de primeira classe, clube de golfe, carro de alta cilindrada. Um dia a bolha tinha que rebentar. As despesas eram mais que muitas, mesmo trabalhando mais horas para ganhar mais prémios de produtividade eu e a minha mulher não aguentamos o barco. Pedimos dinheiro a agências de créditos ao consumo para renegociarmos as dívidas, mas só nos atolávamos mais ainda. Tudo está hipotecado, desde a nossa casa, carro e escassas poupanças, inclusivamente valores de familiares próximos e amigos que quiseram ajudar-nos e acreditaram nas nossas mentiras e acabaram por ficar como nossos fiadores. Não vou conseguir aguentar mais, tudo se

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desmorona à minha volta, os tribunais perseguem-nos e eu não tenha mais por onde me virar. Peço-vos que me ajudem, preciso de 50.000 Euros! Já não sei o que fazer para arranjar esse dinheiro. Tem que me ajudar!!! Senão terei que roubar dinheiro no balanço de conta do imobiliário onde trabalho, falsificar a declaração de IRS, provocar um incêndio na casa dos meus avós e tentar sacar posteriormente o dinheiro do seguro, talvez tenha mesmo que me dedicar ao pequeno tráfico de droga pois sei que alguns amigos meus conseguiram desta forma um rendimento extra bastante agradável. Não quero actividades desonestas! Peço-vos ajudem-me! Estou desesperado!!! Preciso do vosso auxilio. ...... Mais à frente, observo outra fila e outro interveniente, é um miúdo traz um brinco na orelha, calças largas, ténis desabotoados, casaco desportivo com capucho. Tem um ar gingão e uma atitude desafiante, inicia então uma conversação com as várias pessoas que estão à espera do 145. -Olá "Barriles". Saudações! O meu nome é Fernando Gilas mas todos me chamam o "Mãozinhas", tenho apenas 17 anos mas já estou com muita rodagem!!! Ehhh!!! Bem!... É assim!... O meu velho é cadastrado e apanhou 15 anos que está a curtir em Monsanto, a minha velha trabalha como empregada doméstica a limpar as sujidades dos que se dizem grandes, mas são apenas ranhosos! Moro na Musgueira, numa casa ilegal e a cair aos bocados. Bem!.... A verdade é esta, eu não vou acabar podre como os que me rodeiam! Hei-de ter tudo o que mereço: Dinheiro, gajas, fama, prestígio, muitos bens materiais.... Como não tenho jeito para a escola que, aliás, também não ia dar em nada, nem para ser explorado num emprego de porcaria onde dou o litro e não ganho nenhum, não vejo outra alternativa senão dedicar-me a uma vida de crime. Já percebi que com pequenos

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assaltos a supermercados também não vou lá, isto tem mesmo que ser com assaltos à mão armada a ourivesarias e a gasolineiras. É assim meus, eu não queria entrar nessa vida, porque sei bem o que aconteceu ao meu pai e a amigos meus. Para entrarmos nesta onda, tem que haver uma grande organização e muitos cuidados senão a "judite" e os latas apanham-nos. Sei que não sou cuidadoso e acabaria por cometer erros fatais, ainda acabo numa prisa sodomizado por algum gorila. De modo que venho pedir-vos, ajudem este puto aqui! Precisava de 780.000 Euros. Acreditem se tiver essa massa vou curtir à boa e não incomodo ninguém. Compro uma alta mansão com piscina, crio uma editora de música Hip-Hop, contrato umas garinas para fazerem parte do meu harém privado, dou altas festas, conduzo grandes carrões e faço altas corridas na minha pista privada, apareço nas revistas de sociedade e na televisão. O mundo ia ganhar uma estrela e todos teríamos a ganhar com isso. Não é justo eu ter nascido nesta condição, não pedi isto! Estou condenado a ser um ranhoso de merda que não tem horizonte nenhum! Quando eu vejo tantos poltrões que tem uma alta vida e não fazem nenhum, eu penso como tudo isto é injusto! Aqueles "mans" da TV, dizem umas baboseiras e ganham milhões, aproveitam as coisas boas da vida e nós aqui a apodrecer a vermos os outros crescerem. Não aguento mais! Vá lá dêem-me o dinheiro a bem porque senão tenho que ir buscá-lo a mal. Só peço 780.000 Euros por agora!

SÉRGIO SANTOS é formador e webdesigner. Fundador do colectivo albatrós dedicado à escrita ficcional colaborativa. Editor da revista digital de BD H-alt. Adora escrever ficção e criar BD. | SERGUS@GMAIL.COM

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COSTURA AMOROSA VAGNER SILVA | Lavras, MG.

Precisamos,

urgentemente,

reescrever

este

relacionamento

que

tecemos em conjunto. Escrito com excesso de sentimentalidade, faltalhe clareza, coerência, coesão e, por que não dizer, fundamentação. Precisamos, imediatamente, deixá-lo fluído e compreensível. Sinceramente, já não aguento mais estas reticências frias, sem graça e sem gozo que, hoje, definem a nossa história. Por isso, acredito que a interrogação nos ajudará a refletir sobre os nossos alicerces. E a exclamação será responsável por revelar nossos sentimentos – espanto, súplica, entusiasmo, surpresa.

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Porém, antes de prosseguir, preciso te advertir de três questões. Primeira, preze pela sua autenticidade quando estiver conversando comigo e esqueça na gaveta de cuecas, ao menos dessa vez, as suas queridas aspas; por favor, sem citações diretas, assim como indiretas. Segunda, procure não se esconder atrás dos seus parentes e parênteses; busque a objetividade. Terceira, respeite os travessões de nosso diálogo; também se disponha a me ouvir. Diante desse processo de costura amorosa, acredito que nós temos possíveis orientações: (i) talvez fosse o caso de pensarmos nos dois pontos contidos num café da manhã e explicarmos, abertamente, nossos sentimentos, até os mais dolorosos e sombrios; (ii) talvez fosse o caso de pensarmos naquela vírgula, presente numa viagem de final de semana, que é momentânea, mas reveladora; (iii) talvez fosse o caso de pensarmos naquele ponto e vírgula, presente num jantar romântico de despedidas, sem abraços, sem beijos, sem investidas, sem mãos dadas, que, no entanto, oculta olhares desejosos de reconciliação, de retorno, de continuidade; ou, optando pela medida mais drástica, (iv) talvez fosse o caso de pensarmos naquela luz no fim do túnel (?) chamada ponto final, que não trará, necessariamente, inimizade, desrespeito e desconsideração, e nos possibilitará outras histórias, outras pessoas,

outros

amores,

isto

é,

outras

introduções,

outros

desenvolvimentos, outras (in)conclusões.

VAGNER DA SILVA BATISTA é graduando do 6º período do curso de Direito da Universidade Federal de Lavras (UFLA) e membro do Núcleo “Artes, Direito e Literatura”. Publicou, em 2015, o poema “Mudo (n)o mundo” no livro “15º Concurso de Poesias”, organizado pela Campanha Nacional de Escolas da Comunidade (CNEC) de Capivari/SP. Interpretou o poema “Corpo negro”, de sua autoria, no 2º Encontro do Orgulho Crespo em Lavras, ocorrido no 2º semestre de 2015. | VAGNERSB94@GMAIL.COM

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NEAL PICKHAVER: pintura digital, surrealismo e capas para EP´s PORTFÓLIO | PORTFÓLIO| FACEBOOK

Neal Pickhaver é um artista de Cornwall, United Kingdon, o primeiro ilustrador que recebemos de outra nacionalidade que não luso-brasileira. A vida de Neal sempre esteve entrelaçada pelo desejo de produzir obras artísticas, tendo iniciado com tintas e aquarelas até chegar no trabalho de pintura digital que realiza hoje. Passou, dessa forma, de uma influência realista para assumir um teor surrealista, fantástico e de ficção científica, traços explícitos em suas produções. Atualmente, Neal trabalha com design e produz capas para EP´s para algumas gravadoras locais. Eventualmente, trabalha com o design de tatuagem. | NGN_81@HOTMAIL.CO.UK

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais: CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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