Bárbaras #5

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BÁRBARAS

#5

JANEIRO DE 2021 | ANO 4

a s o r d e P a Cid s h t i l i L s a & n e d É o r t u o de


Carta às leitoras Cida Pedrosa tem a profundidade de um sertão em seu peito. Foi o que concluiu a repórter Bibiana Belisário após entrevistar a pernambucana que é muitas numa só: escritora, vereadora, militante, advogada… A tentativa de defini-la por completo é em vão; em cada uma de suas obras, ela renasce e se reencontra, inclusive quando fala das dores de mulheres de outro Éden no livro “Filhas de Lilith” (Claranan, 2017), onde narra histórias que ouviu de amigas e inspira a capa desta edição. A Bárbaras também é um abecedário de histórias de mulheres que ouvimos no dia a dia.

los XIX e XX. A jornalista Natália Oliveira entrevistou a cordelista e poeta Julie Oliveira, 28, responsável pelo Movimento Cordel Sem Machismo. A colunista Bárbara de Alencar continua o relato do seu convívio com a ansiedade no Diário de Uma Ansiosa. Num texto íntimo e corajoso, ela fala da adaptação ao trabalho remoto e de outros desafios que surgiram com a pandemia.

Para encerrar esta edição, a estudante de Medicina Andrezza Maia traz o conto “Participando do (re)nascimento”, onde ela descreve Na primeira matéria, Jayne Machado assi- ambientes, pessoas e sentimentos que fizeram na a coluna Quebrando o Armário, discutindo parte da sua primeira assistência a um parto sobre invisibilidade bissexual e como isso afeta normal numa maternidade de Juazeiro do a validação do “B” na sigla LGBTQIA+. Norte (CE). Na infância, a varzealegrense Joana MaceBoa leitura, do se locomovia com ajuda de muletas e não saía de casa nem para ir à escola. Hoje, aos 64 anos, ela já correu 10 km ininterruptos Laura Brasil na São Silvestre e coleciona 16 troféus como atleta de corridas. Também do município de Várzea Alegre (CE), Menésia Simião, 42, vem trilhando caminhos pela política, agricultura e movimento sindical. As histórias que rompem com barreiras do capacistismo e machismo são narradas pela repórter Aline Fiuza. Nas colunas de opinião, nossas colaboradoras do Grupo de Estudos de Gênero e Cidade refletem sobre a importância de cidades pensadas para mulheres; e a psicóloga Jéssyka Andrade explica os danos que uma educação baseada no sexo causa às meninas. A força do empreendedorismo feminino no Cariri também é pauta na Bárbaras #5. Oda Ferreira e Germana Nobre conversaram com nossa equipe sobre a atuação da Feira das Minas, coletivo de empreendedoras caririenses que vêm mostrando como a união de mulheres nos negócios e no artesanato gera resultados potentes na sociedade. O abecedário de mulheres desta edição também é marcado por trajetórias na literatura. A colaboradora Luciana Bessa nos apresenta ao universo das escritoras cearenses que eternizaram suas vivências em livros nos sécu-


Expediente Repórteres Aline Fiuza Bárbara de Alencar Bibiana Belisário Jayne Machado Laura Brasil Colaboradoras Ana Clara Benjamim Andréa Furtado Andrezza Maia Carla Rayssa Jéssyka Andrade Luciana Bessa Natália Oliveira

Revisão José Anderson Freire Sandes Julita Agapto Laura Brasil Diagramação Paulo Anaximandro Tavares Projeto gráfico Hanna França Menezes

Agradecimentos Cida Pedrosa Feira das Minas Grupo de Estudos de Gênero e Cidade Jardel Matos Ilustradoras Julie Oliveira Alice Carvalho Milena Abreu Jayne Machado Julia Marques Edição #5 Larissa Souza (capa) Juazeiro do Norte, Janeiro 2021 Stephany Barbosa de Souza Revista produzida pelo projeto “Bárbaras”, Vitória Jeankessya vinculado às Pró-Reitorias de Cultura e Extensão da Universidade Federal do Cariri (UFCA) Editora-chefe Laura Brasil Redes sociais Instagram: @revistabarbaras Professor orientador Revista digital: issuu.com/revistabarbarasufca José Anderson Freire Sandes


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Cadê as bi? Existência e validação da bissexualidade Página 6 Corrida e superação: Joana transformou sua vida pelo esporte Página 10 Se essa rua fosse minha Página 18 No Cariri, a união faz a força das mulheres empreendedoras

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Da Terra da Luz, as mulheres das Letras Página 28 A mulher antes do prêmio Página 32 Precisamos ser respeitadas desde a infância Página 42 Cordel é coisa de mulher, sim, sinhô! Página 46 A vida é muito valiosa para deixar de ser vivida Página 54 Menésia: mulher da roça, da política e da família Página 58 Participando do (re)nascimento Página 68

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COLUNA | QUEBRANDO O ARMÁRIO

Cadê as bi? Existência e validação da bissexualidade Quantas dúvidas nos transpassam durante nossa vida? Sobre o que gostamos, sobre para onde vamos, sobre quem somos. Parafraseando o Raul Seixas, “eu prefiro ser essa metamorfose ambulante”, mas isso não me deixa tão confortável com as dúvidas quando me vêm um estalo de onde elas nascem. Este texto vai abordar questões em torno da bissexualidade, afinal, o B de LGBTQIA+ não é de biscoito. TEXTO & ILUSTRAÇÕES | Jayne Machado

Quantos bissexuais você conhece? E quantos desses você duvidou ou já ouviu alguém duvidar? Frases como: “Ela é sapatão, mulher, nem dá para imaginar fulana com um homem...” ou “Menina, isso é bi de festa, duvido entrar num relacionamento com alguém do mesmo sexo”, são frases que acompanham a vida de um bissexual, seja no meio heterossexual ou no LGBTQIA+. Mas esse é um debate bem introdutório sobre bissexualidade. Eu quero ir para outro lugar, quero refletir com vocês de onde vem esse descrédito, essa dúvida, e trocar caminhos que minha mente me levou durante a escrita desse texto. Vocês conseguem legitimar a existência de algo sem nunca ter visto, presenciado, tido contato? Isso faz parte do processo de percepção do outro, saber que diferenças existem, e que somos únicos. Dentro desse processo de percepção do outro também podemos nos esbarrar com outro caminho, o caminho da identificação, onde nós conseguimos nos ver no outro, sentir a representação e o sentimento de não estar só. Nesse caminho da vida, poucas vezes tive o prazer de me ver na TV, nas séries, nos livros, na rua, nos locais, sempre me vinha um sentimento de me adequar, podar, mudar, mostrar só um pouco de 6 | Bárbaras

mim, porque os locais não me aceitariam inteira. Sou bissexual e sei disso desde que me entendo por gente, nunca foi uma questão me aceitar, mas sempre tive sede por me ver, me sentir “parte da galera”, me sentir no coletivo. Me lembro do primeiro filme que assisti que abordava o enredo de uma mulher bissexual, eu tinha uns 12 anos e o filme era “Imagine eu e você”. Em nenhum momento do filme a palavra bissexual é falada. A história é mais ou menos assim: A protagonista começa se casando com um homem perfeito e que todos o acham incrível, no andamento do filme ela se apaixona pela florista que cuidou da decoração do seu casamento, vê se pode? Mais na frente, descobri que esse é um clichê de representações bissexuais: um enredo caótico, cheio de dúvida e no fim: traição. Sim, eu amei o filme na época, me vi lá, porém, hoje, com alguns anos a mais e outra percepção de mundo, eu não tenho nada a ver com a Rachel, protagonista da história. Como legitimar algo que a maioria das representações são sobre promiscuidade, traição, dúvidas, erros, impulsividade, entre muitos outros adjetivos que dão total descrédito a qualquer sujeito? Caminhando para uma análise de repre-


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poucas vezes tive o prazer de me ver na TV, nas séries, nos livros, na rua, nos locais, sempre me vinha um sentimento de me adequar, podar, mudar, mostrar só um pouco de mim

sentatividade bissexual, quantos bissexuais você viu na TV, séries, filmes, e conseguiu os enxergar como bissexuais e não apenas “ex-hetero” ou homossexuais? A palavra bissexualidade dificilmente é dita nos meios de comunicação, os personagens não se afirmam, mesmo claramente tendo estabelecido vínculo emocional e sexual com pessoas de diferentes gêneros, entretanto, no fim das contas, só importa com quem aquele ser vai terminar a trama, é aquilo que vai traçar toda sua orientação sexual. Então, trançando um caminho do processo de autoconhecimento, já temos um impasse, que é a invisibilidade da bissexualidade, mas digamos que, mesmo assim, você se identifica e se afirma bissexual, quantas vezes você tem que sair do armário durante sua vida? Eu, hoje, vivo um relacionamento homossexual e muitas pessoas assumem minha “lesbianidade” à primeira vista, anulando todo meu passado, tudo o que sou, o que me construiu. É sobre mutilar e apagar uma parte de alguém, fechando os portões para uma parcela de pessoas que não se sentem completas, que se sentem em um limbo. Falar ou

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pensar na minha individualidade, sem fazer com que meu relacionamento me defina por completo não é pecado, muito menos anula a felicidade que tenho de ter minha companheira ao meu lado, é mais que isso, é sobre me afirmar politicamente, dar visibilidade aos meus e ajudar aqueles que se encontram perdidos, minha existência ajuda o coletivo, e esse texto faz parte dessa missão que eu identifiquei há não muito tempo atrás. Confesso que muitas vezes me peguei pensando se realmente sou bissexual, se tudo não foi uma ilusão ou impulso e convenções sociais. Acredito que identificação não é para sempre e estamos em constante mudança, mas a bissexualidade faz parte de mim, da minha história e de quem sou. Hoje, depois de muitas dúvidas, reflexões, me identifico e reafirmo como bissexual, tenho orgulho e fico feliz de ver tantos lutando junto pela visibilidade dessa causa, com informação, em busca de um bem maior. Para finalizar, queria pontuar a importância do respeito com o outro, que não é sobre opinião e sim sobre existências e validação da vida do próximo. Ser o que é não é errado, muito menos algo adaptável, ser inteiro é um direito, esconder isso é violar a felicidade e liberdade que pode ser o tempero da vida. Então, sejamos bis ou o que quisermos ser, afinal, é isso que vamos levar durante nossa estadia nesse plano, nossas vivências únicas e o que sentimos com cada uma delas. Por fim, um beijo pras bis!


Indicações Queria aproveitar este espaço para fazer indicações de pessoas que lutam pela visibilidade e produzem o conteúdo voltado a questões do mundo bissexual.

Bi na Mídia A primeira é a Talitta Cancio, que administra o perfil no Instagram @binamidia, onde ela aborda várias questões sobre representatividade bissexual e faz indicações decentes que abordam o tema, com o tato que ele merece. Inclusive foi um dos lugares onde me inspirei para fazer esse texto.

Podcast Biscoito Apresentado por Gui Neves, Babu Carreira e Tatiany Leite, também traz questões bis de forma humorada. Eles produzem conteúdo tanto para o Instagram, quanto plataformas de áudio, fica aqui minha indicação para os que são amantes de podcast.

Os sete maridos de Evelyn Hugo Obra da Taylor Jenkins Reid, foi um livro onde eu consegui me sentir representada de uma forma única, com uma sensação que jamais tinha sentido antes, inclusive, fiz uma resenha sobre ele no Instagram da Revista Bárbaras (@revistabarbaras), fica a dica para quem quiser dar uma olhada.

O B não é pra bonito O texto do trabalho de conclusão de curso da Andielli Silveira, com o título “O B não é pra bonito: uma análise das representações midiáticas da bissexualidade feminina em Orange Is The New Black” que vai para o lado acadêmico da coisa, se faz muito necessário, já que na pesquisa o nosso acervo ainda é pequeno quando se trata de análise sobre o tema.


ENTREVISTA


Foto: Jardel Matos

Corrida e superação Joana transformou sua vida pelo esporte A varzealegrense Joana Macedo, 64, teve que enfrentar dificuldades em sua vida desde cedo. Natural do Sítio Timbaúba, aos três anos de idade adoeceu e passou cerca de dois meses em estado de coma, o que a deixou com sequelas - ela possui o lado direito do corpo paralisado e também apresenta dificuldade na fala e na aprendizagem. Entretanto, nenhum desses fatores a impediu de se tornar uma atleta de corrida. TEXTO | Aline Fiuza

Durante sua infância, Joana se locomovia com a ajuda de muletas, sentia convulsões constantemente, não podia sair de casa, nem ir à escola e não possuía acesso a médicos para tratar seu problema. Em casa, ela e seus nove irmãos receberam uma criação com pais presentes. Joana relembra que sua família sempre foi unida e todo mundo trabalhava para ajudar com as despesas de casa. Mesmo com as adversidades, eles conseguiam manter uma relação de proximidade e muito amor, o que a ajudou a superar os obstáculos que encontrava na sua trajetória. A sua recuperação foi lenta. Ela tentou fazer tratamentos nas cidades vizinhas, mas nenhum

médico conseguia ajudá-la. Aos 20 anos, em uma nova consulta, encontrou remédios que a ajudaram a parar de sentir as convulsões e contribuíram para ela conseguir manter sua vida ativa. “Eu melhorei porque Deus foi muito grande e passou a mão na minha cabeça. Não tinha tratamento porque não tinha médico, não tinha como fazer fisioterapia naquele tempo. Mas Deus foi muito generoso comigo e me fez melhorar”, afirma. A partir daí, as sequelas se tornaram apenas marcas na história de uma mulher guerreira, e ela passou a conseguir fazer tudo o que desejava, sem restrições. Mas isso não significa que não encontrou novos desafios a serem superados. Janeiro 2021 |

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Joana ganhou medalhas em todas as 55 corridas que participou. Atleta há sete anos, ela também coleciona 16 troféus.

Nas corridas, eu nunca sofri preconceito de forma direta, mas na vida já passei por muitas situações. Uma vez eu estava correndo sozinha num treino e um rapaz parou o carro e disse ‘vamos ver quem chega primeiro?’, porque ele achava que eu não conseguia correr

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A atleta relata que sofreu com muitos olhares e comentários preconceituosos pela condição do seu andar, com a perna direita paralisada. “O povo sempre ficava perguntando ‘o que é isso, a tua perna tá doendo?’, e eu só respondia que não doía. O povo ria de mim. Uma vez, um rapaz mexeu tanto comigo que minha prima foi brigar com ele, porque ele tava dizendo as coisas comigo”, relembra. Por conta dos problemas de saúde, Joana não podia frequentar a escola e, durante a infância, teve apenas aulas em casa com sua mãe, que passava atividades e a ensinou a ler e a escrever seu nome. Ela revela que sempre teve o desejo de ir à escola e, por isso, quando teve a oportunidade de estudar, agarrou. Aos 25 anos, iniciou seus estudos no Colégio São Raimundo Nonato, em Várzea Alegre, onde concluiu até a quinta série, superando os desafios da aprendizagem. Foi nessa época em que ela decidiu mudar-se


Foto: Jardel Matos

para a cidade e morar com seus irmãos para trabalhar. Durante 12 anos, trabalhou como sacoleira, vendendo roupas de porta em porta, só parou com as atividades quando sua mãe passou a morar na cidade. Hoje, quando perguntada sobre sua profissão, se orgulha em responder: “Sou dona de casa e atleta”.

Profissão atleta O esporte entrou na vida de Joana em 2014, através de sua cunhada, Silvana, que costumava participar de corridas de rua. “Silvana chegou aqui na minha casa toda arrumada para ir para um treino de corrida. Naquele dia, eu disse que ia também. Só calcei o tênis e fui para o treino”. Foi necessário apenas um treino para ela se apaixonar pela corrida e sua vida começar a ser transformada por meio dos exercícios físicos. A partir disso, ela integrou o grupo de corredo-

res de Várzea Alegre e começou a participar das corridas de rua da região. Sua primeira corrida foi na cidade natal, ainda em 2014, promovida por um empresário da cidade. Ela relata que percorreu 6 km em 58 minutos e que gostou tanto da experiência que passou a participar de outras competições. Em seus sete anos como atleta, participou de 55 corridas, conquistando medalhas em todas elas e ganhando 16 troféus. Por sua paixão e amor pelo esporte, Joana sempre tenta participar das corridas que acontecem na região. Já participou de eventos nas cidades de Crato, Juazeiro do Norte, Iguatu, Farias Brito, Irapuan Pinheiro, entre outras. Ela conta que arca com todos os gastos de inscrição, alimentação e locomoção. Além das medalhas e troféus que guarda com carinho, as corridas de rua trouxeram para ela mais visibilidade, amizades e felicidade. Através do esporte, a atleta passou a viajar para novos lugares e a conhecer novas pessoas, o que mudou sua realidade. “Quando comecei a correr, eu fiquei sendo mais conhecida. Hoje, em todo lugar o povo me conhece e eu tenho muitos amigos de corrida em todas as cidades”, diz ela, com orgulho. A corrida se tornou uma das prioridades na vida de Joana. Seus sonhos passaram a ter ligação com a vida de atleta, sendo um deles participar da Corrida Internacional de São Silvestre, evento que acontece anualmente na cidade de São Paulo, e reúne atletas profissionais e amadores de todo o mundo. Considerada uma das corridas mais importantes do país e da América Latina, tem um percurso de 15 km e acontece sempre no dia 31 de dezembro. “Correr a São Silvestre era o meu maior sonho e eu realizei. Fui com o meu irmão, em 2018, e fizemos 10 km sem parar. Depois fui parando e correndo devagarzinho, até concluir o percurso completo. Eu consegui. Mas deu um problema na hora de receber a medalha, porque eu não estava com o papel da retirada da medalha, só recebi depois de um tempo, quando o rapaz conseguiu me enviar pelo correio. Teve muita gente que não acreditou que eu fiz o percurso inteiro porque eu não trouxe a medalha. Mas eu fiz tudo. Só acreditaram quando viram a medalha”, conta.

Preconceito Mesmo com tantas realizações, Joana também teve que enfrentar as barreiras do preconceito na sua vida. “Nas corridas, eu nunca sofri preconceito de forma direta, mas na vida já passei por muitas situações. Uma vez eu estava correndo sozinha Janeiro 2021 |

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A atleta acredita que se não corresse, já não andaria mais. Por isso, nunca abandonou uma corrida no meio do percurso, mesmo chegando por último, ela não desiste.


Em 2018, Joana realizou seu sonho de correr a São Silvestre.

Foto: Arquivo Pessoal

Foto: Jardel Matos

num treino e um rapaz parou o carro e disse ‘vamos ver quem chega primeiro?’, porque ele achava que eu não conseguia correr. E ele ficou rindo, gargalhando no carro. Eu fiquei triste e até pensei em não correr mais, mas preferi não me importar”, recorda. Além disso, ela ainda teve que enfrentar outra dificuldade, a perda dos seus pais. “Foi o momento mais difícil da


Foto: Jardel Matos

minha vida. Quando meus pais faleceram foram só 22 dias de diferença de um para outro”. E foi o esporte que a ajudou durante o período de luto. Ao invés de ficar sozinha em casa, Joana saía para correr com os amigos do seu grupo de corrida para ocupar a mente.

Exemplo Ainda que tenha encontrado obstáculos, desistir nunca foi uma opção na vida dela. Ela relata que mesmo com as dificuldades físicas, nunca abandonou uma corrida no meio do percurso e nunca pensou em parar de praticar o esporte. “Eu chego por último, mas faço o percurso todo. Nunca desisti”. Na sua preparação, ela costuma treinar três dias por semana e também frequenta a academia, além de buscar manter uma alimentação saudável. Com tanta força de vontade e dedicação, a varzealegrense se tornou um exemplo para as pessoas que conhecem sua história. Segundo ela, muitas pessoas começaram a praticar atividades físicas depois que ela começou a participar das corridas. “Muita gente corre porque me vê correndo. Eles pensam ‘por que que eu não corro? Se Joana consegue, eu posso correr também’. E pode. Todo mundo que tenta, consegue”, pontua. Com o seu poder de transformar vidas e mudar realidades, o esporte proporciona sentimentos únicos na vida dos atletas. Joana revela que sentiu sua vida completa quando encontrou a corrida. “A melhor coisa que aconteceu na minha vida foi participar dessas corridas. Acho que se eu não praticasse exercícios, se não corresse, já teria parado até de andar. E, hoje, sou uma pessoa realizada. Meu sonho era participar da São Silvestre e eu consegui. Por isso, sou muito feliz por ser atleta e esse é o meu maior orgulho.”

Joana exibe sua medalha após o fim de mais uma corrida, na sede do Sesc de Juazeiro do Norte. Para se preparar, ela treina três vezes por semana, frequenta a academia e mantém uma alimentação saudável. 16 | Bárbaras



OPINIÃO

Se essa rua

fosse minha Há tantas maneiras de morar na mesma casa, como também de vivenciar a mesma cidade. Um cômodo pode ser moldado e transformado infinitas vezes, dependendo da intenção de sua dona ou dono. A cidade também é moldada. Mas quem é que manda na cidade e decide o que pode ser mudado e o que pode permanecer?

TEXTO | Ana Clara Benjamim, Andréa Furtado e Carla Rayssa, do GECID ILUSTRAÇÃO | Vitória Jeankessya

Para algumas pessoas é difícil associar o poder que temos em modificar os ambientes privados com a possibilidade de modificarmos ambientes públicos: “Como é que a decisão de mudar uma prateleira de lugar pode ser comparada às decisões que são tomadas na cidade?”, pode-se pensar. Acontece que, como a prateleira, alguns elementos na cidade também são alocados estrategicamente. Até o desleixo de deixar alguns lugares “empoeirados” é estratégico. Quando se vive em um ambiente privado - na casa, por exemplo -, todas as escolhas que tomamos nos impactam de forma direta; é o nosso território. Ainda podemos trazer para o debate a importância que damos para a transformação da casa em lar. Queremos ter a sensação de proteção! Queremos poder imprimir nossas marcas, ter nossas necessidades supridas! Quando colocamos a estante perto da escrivaninha sabemos que aquele é um bom local, porque quando precisamos pegar um livro, basta esticar o braço que o teremos sem dificuldade. Acontece que eu só sei que preciso da estante próxima da escrivaninha, porque quem faz uso daquele espaço sou eu. Na cidade, as coisas também acontecem dessa maneira. Porém, muito do que ocorre no meio ur18 | Bárbaras

bano só é experimentado por determinado grupo, por exemplo: toda mulher já mudou o trajeto porque achou a rua escura demais, ou porque ficou com medo do terreno baldio. Toda mulher já traçou mapas mentais de locais públicos baseando-se em suas experiências ruins ou de outro alguém. Toda mulher já ouviu aquele apelo de preocupação quando está voltando de uma festinha: “não vá sozinha! Pede para alguém te acompanhar!”. Geralmente esse alguém é homem, aquele amigo, o legal, sabe? Nós já vivemos isso e, se você for mulher, também. E se não viveu, já presenciou outra mulher vivendo ou ainda viverá. Quando a gente tem proximidade com essas situações, fica mais fácil criar estratégias para facilitar nosso cotidiano. Mas diferente de mudar uma prateleira de lugar, transformar as cidades em ambientes menos hostis para toda a população, principalmente para as mulheres, não é uma decisão tomada diretamente por quem faz uso desse espaço. O poder de decidir sobre as cidades é comumente dado a um conjunto de indivíduos cujas necessidades são refletidas na organização dos espaços públicos, o que não teria nenhum problema, se esse poder não estivesse concentrado nas mãos


Ilustração: Larissa Souza


de um só grupo, que por deter tal poder, se julga universal. Dessa forma, as cidades são pensadas para solucionar demandas que muitas vezes só satisfazem às expectativas de uma parcela das pessoas que são donas do espaço público. E aí? Como ficam as demandas dos demais grupos? Aqui estamos pensando nas mulheres, mas não acreditamos que as mulheres possam ser compreendidas de uma maneira homogênea. A gente sabe que as experiências das mulheres na cidade não podem ser vistas de forma única. Cada mulher enfrenta desafios no seu cotidiano de forma singular, em especial mulheres trans, periféricas e/ou negras. O que nos aproxima, na cidade, enquanto mulheres, é o medo. Medo do caminho, medo da volta, medo do “será que vai ter uma volta?” e como ela vai ser. Esse sentimento de insegurança que nos assola e aproxima umas às outras não é mera coincidência; é fruto de um urbanismo pautado em um falso sujeito universal e que se concentra em interesses específicos. Esse urbanismo idealizou e estruturou nossas cidades, de modo que fosse fiel aos interesses e segurança da classe dominante, representada por homens cis, brancos e heterossexuais. O que estamos afirmando aqui é que o nosso planejamento urbano, aliado à estrutura social e política, se baseia nas necessidades de um tipo específico de homem: o trabalhador produtivo, que supostamente é o sujeito que mais experimenta o espaço público. Nessa perspectiva, o cuidado está destinado às mulheres, fazendo com que suas vidas estejam

associadas aos afazeres domésticos e manutenção da vida. Mas, é isso mesmo? Os homens transitam mais pelas ruas do que as mulheres? É esse o motivo para que a lógica da cidade seja masculinizada? Dados sobre mobilidade urbana por gênero, divulgados no ano de 2016 pelo Plano de Desenvolvimento Urbano da cidade de São Paulo, apontam que o deslocamento feito a pé e em transporte público coletivo pelas mulheres é, na verdade, superior - expressando porcentagens de 34,1% e 40,5%, respectivamente; já as porcentagens de homens nestes dois tipos de deslocamento são de 27,8% e 34,7%.

Cidades pensadas para quem? Quando as mulheres atravessam a barreira invisível da dimensão privada que lhes é imposta, ou seja, quando uma mulher trabalha formalmente e passa a povoar a cidade como trabalhadora produtiva, percebe-se que os trajetos feitos por homens e por mulheres se apresentam de formas diferentes. Mesmo que a mulher trabalhe formalmente, é atribuída a ela, também, a carga do trabalho reprodutivo, aquele lá que o Estado não reconhece como trabalho, logo, não remunera. Tipo, quando sua mãe lava e passa a farda dela e faz o mesmo com a farda do seu pai, enquanto ele descansa de um dia pesado de trabalho; ou quando o filho fica doente e a mãe chega atrasada no serviço, porque teve que passar na farmácia, depois na creche e ambas ficam muito distantes do seu local de trabalho. Mesmo sendo dona de casa, a mulher é responsável pelas compras no supermercado, levar e

pensar cidades a partir de uma perspectiva de gênero é ampliar o repertório de planejamento urbano


buscar as crianças na escola, acompanhar os idosos nas consultas médicas, distrair as crianças em parques. Com todo esse trabalho, elas ocupariam menos a cidade do que os homens? O que justificaria o fato de as cidades serem pensadas para os homens? A cidade é, para muitos, local de liberdade, pertencimento, apropriação, lar. Mas a dinâmica da cidade e a forma como ela se apresenta e se estrutura, ocasiona uma ocupação que se expressa de forma diferente, de acordo com seus personagens. Ser mulher é ser de diversas formas. Todos os exemplos que listamos aqui vão ocorrer em menor ou maior número a depender de classe, raça e orientação sexual; todos os medos e coragens que envolvem o usufruir a cidade por parte das mulheres também se constroem com base na multiplicidade.

GECID

Então é importante que estejamos sempre cientes que questões de raça, classe e orientação sexual se sobrepõem e se intercruzam. Não se pode pensar uma dissociada da outra e, jamais, perder de vista que esses condicionantes nos fazem - enquanto mulheres - se expressar, se apresentar e usar a cidade de forma distinta e singular. Assim, pensar cidades a partir de uma perspectiva de gênero é ampliar o repertório de planejamento urbano, que promova encontros, experiências, vivência e afetos. É ir contra o modelo já estabelecido, onde apenas um grupo (homem, cis e hétero) tem noção de pertencimento e apropriação do espaço público. É entender que os grupos que compõem são diversos e múltiplos. E nunca perder de vista que cidade é substantivo feminino, e esta não é feita apenas de concreto.

O Grupo de Estudos de Gênero e Cidade foi idealizado por alunas do curso de Arquitetura e Urbanismo, devido à carência de um espaço de debate sobre cidade e do gênero dentro da instituição de ensino da qual elas fazem parte. A ideia foi abraçada pela professora Andréa Furtado, que indicou os primeiros textos e mediou os primeiros encontros, ocorridos no início do ano de 2020. Na medida em que o grupo se encontrava, mulheres de outros cursos passaram a também se unir, num debate interseccional, ajudando-lhes a compreender as especificidades da cidade. Com a pandemia, os encontros passaram a ser virtuais, ao menos uma vez por mês. Instagram: @gecid_cariri.


ENTREVISTA

No Cariri, a união faz

a força das mulheres empreendedoras O Brasil tem 24 milhões de mulheres donas do seu próprio negócio, segundo o Monitoramento de Empreendedorismo Global (GEM). O movimento de trabalhar por conta própria, entretanto, não deve ser glamourizado. Para muitas, empreender é uma escolha estimulada pela falta de espaço em cargos de destaque no mercado formal: nas 500 maiores empresas do país, mulheres ocupam apenas 13% destas posições, mesmo representando mais da metade (52%) da população brasileira. No Cariri cearense, a iniciativa de duas artesãs vem estabelecendo uma rede de empreendedoras que, além da venda de produtos, compartilha saberes profissionais e pessoais. TEXTO | Laura Brasil ILUSTRAÇÕES | Julia Marques

Aos 25 anos, Oda Ferreira diz que desde sempre gostou de vender. Na infância e adolescência, vendeu roupas, maquiagens e adesivos. “Sempre procurei vender alguma coisa e aprender a fazer algo também, aprender a pintar… Apesar de achar que não faço muito bem, gosto de tentar aprender. Tenho amigas ao meu redor que sabem. Uma amiga faz crochê e outras mulheres do Cariri também fazem isso”, conta. Hoje, ela é graduada em Psicologia, produtora cultural, empreendedora e ciente de que o que ela faz é simples, mas não é fácil. Durante uma viagem à Garanhus (PE), em julho de 2019, Oda conheceu uma feira itinerante e teve a ideia de reproduzi-la, apenas com mulheres, em Juazeiro do Norte (CE), onde reside. “A ideia inicial era bem descompromissada: juntar quem sabia fazer artesanato e vendia, e também compartilhar conhecimentos. Como tenho uma lojinha, eu pensei que isso também poderia ser algo mais consistente e beneficiaria outras mulheres que trabalham com isso”, explica ela, que administrava a loja virtual “BelchStore”, hoje, 22 | Bárbaras

“Piscou Arte”, onde comercializa camisetas, quadros e bordados personalizados. Quando voltou da viagem, Oda entrou em contato com empreendedoras e artesãs da região, através das redes sociais, para explicar a ideia e convidá-las a participar. “Só que ficou algo solto e não foi pra frente. Um tempo depois, Germana me viu e perguntou se ia dar certo. Aquilo me instigou”, Oda relembra o encontro com Germana Nobre, 22, também dona de uma loja de itens de artesanato - a “Quintal da Frida” - que lhe incentivou a colocar a ideia em prática. “Eu coloquei na minha cabeça que isso ia pra frente”, diz Germana que, na época, acabara de se tornar mãe de Frida, hoje com um ano. Para a artesã, a ideia de Oda lhe proporcionou um reencontro com sua individualidade: – Logo quando engravidei, me afastei um pouco do artesanato e de trabalhar na minha loja. Nos primeiros meses de vida de Frida foi bem difícil a adaptação. Era um mundo novo para mim e para ela. Acabei me perdendo nesse tempo, esquecendo


culturais - principalmente formados por mulheres - para compor os momentos. Até o início da pandemia no país, em março de 2020, foram nove eventos, que contaram com a feira de artesanato, apresentações musicais, saraus de poesia e rodas de conversa sobre assuntos relacionados a vivências de mulheres. Segundo Oda, as feiras eram marcadas por diversão e troca de saberes pessoais e profissionais - principal motivo apontado por ela para a continuidade e ampliação do coletivo.

Feira das Minas, avante!

de mim, das minhas vontades. Eu só conseguia focar na criação da minha filha, na rotina da casa... Quando Oda ‘jogou’ a ideia de que queria fazer uma feira aqui na região, comecei a me encontrar novamente, a conhecer outras pessoas, mulheres mães que entravam no projeto, para trocar experiências. Isso foi me enchendo de vida novamente, foi uma libertação. Eu sentia que ainda tinha aquela Germana de antes de ser mãe, só que agora uma mulher, aprendendo a entender seus defeitos e que falha, e não vai se sacrificar por isso e tudo bem. Juntas, Oda e Germana fundaram a Feira das Minas, um coletivo de mulheres - na sua maioria, artesãs - que compartilham conhecimento e promovem eventos de venda dos seus produtos na região do Cariri cearense.

Mais que uma feira A organização inicial da Feira durou poucos meses e ocorreu, principalmente, através do perfil no Instagram, grupo no WhatsApp e inscrições das interessadas por e-mail. “No final de outubro [de 2019], começamos a recrutar mulheres e, logo depois, realizamos as feiras itinerantes”, conta Oda. Os primeiros eventos da Feira das Minas não se resumiam à exposição e compra de itens produzidos pelas integrantes; as organizadoras sempre buscavam parcerias com bares, lojas e grupos

Com a pandemia, houve uma intensa mobilização nas redes sociais para que as pessoas se atentassem à importância de valorizar comércios locais. A rede social Instagram, inclusive, diversificou seu leque de ferramentas para lojas virtuais, facilitando processos de divulgação e de compra e venda de produtos. Germana, a responsável por criar e gerenciar o perfil da Feira na rede, diz que esse cenário foi positivo porque possibilitou que elas ampliassem a forma como usavam a plataforma. “Fizemos até a Feira on-line, onde a gente tinha um grupo com as expositoras e suas clientes, para facilitar ainda mais as vendas. Com as novas ferramentas, abriram oportunidades bem legais de trabalhar o conteúdo no Instagram. Formas dinâmicas que chamam a atenção rapidamente”, explica a artesã. Antes, o perfil da @feiradasminas era alimentado apenas com divulgação e fotos de eventos; desde março de 2020, porém, são postadas curiosidades sobre empreendedorismo feminino, dicas sobre estratégias de venda e breves biografias sobre cada expositora no quadro “Conhecendo as expositoras”. No meio das incertezas que a situação pandêmica trouxe, a Feira das Minas conseguiu se organizar de maneira primorosa. Além da presença digital, também foi possível ampliar a equipe gestora - antes formada apenas por Oda e Germana. Das 13 expositoras que compõem o grupo atualmente, cinco estão na gestão, são elas: Darla Natanaele, da comissão pessoal e de recursos humanos, Tainara Reis, agente cultural, Oda e Dinha Janeiro 2021 |

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Fonseca, do financeiro, e Germana, responsável pelo marketing. Sobre a atuação das expositoras nas decisões da Feira, Oda frisa: “A gente não quer só que elas participem da Feira, algo alheio, queremos que elas tenham o conhecimento do que é e o que está acontecendo. A pandemia desestimulou muita gente, mas antes desse período já acontecia”.

Visibilidade Quando pergunto sobre a volta das feiras presenciais, Oda fala das possíveis mudanças: “Não sei como vai ser o ano [2021], mas estamos planejando de ter uma sede para a Feira. Não que ela deixe de ser itinerante, mas que a gente possa ter um local de fazer oficinas. Temos a ideia de fazer grupos de leituras, de trabalhar com grupo de mulheres nos Centros de Referência da Assistência Social [Cras] do Juazeiro e, talvez, do Crato. A ideia é expandir para além da feira, além do momento de vendas. A gente quer, também, ensinar e aprender com mulheres”. A equipe gestora sabe que serão necessárias parcerias financeiras para que parte dessas ideias se concretize. Pensando nisso, segundo Oda, a função da agente cultural Tainara também engloba a busca por editais de fomento à cultura de órgãos públicos e privados a níveis local e nacional. No fim do ano de 2020, a inscrição da Feira num edital da Secretaria Municipal de Cultura de Juazeiro do Norte foi indeferida devido à falta de

Foto: Arquivo Pessoal

Oda e Germana, fundadoras da Feira das Minas.

documentação exigida pela publicação. Já Oda conseguiu o registro individual como produtora cultural e foi contemplada com a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc. Neste momento, a produtora ressalta, a ajuda financeira é muito importante para a Feira das Minas: – Iria nos ajudar a ter nossa sede, a nossa locomoção para reuniões e eventos, a trazer bandas, atrações culturais e, assim, multiplicar o dinheiro. Além de comprar mesas, banquinhas, materiais que não temos e, quando voltarem as feiras presenciais, será complicado fazer sem. Ainda não conseguimos nenhuma ajuda externa, apesar da gente já ter ‘saído’ em jornais daqui, a gente ainda não tem uma grande visibilidade para uma região como o Cariri. Um dos passos pra esse ano é tentar buscar essa visibilidade.

Potencial Quem conhece a Feira das Minas e ainda não enxerga o potencial que ela possui, só pode estar cego em relação ao poder que mulheres têm quando se juntam. “Não tem outra feira especificamente feita por mulheres na região, com esse impacto social de empoderamento, mantida de forma independente, que busca dar visibilidade para mulheres microempreendedoras”, reitera Oda. O grupo atua como incentivador da inserção feminina no mercado de trabalho autônomo, da produção artesanal, da promoção de cultura e eco-


nomia local e, ainda, fortalece uma rede de mulheres de realidades distintas. São mães, estudantes, algumas em vulnerabilidade socioeconômica buscando viver daquilo que gostam de fazer: criar e produzir. O Monitoramento de Empreendedorismo Global (GEM) aponta que, somente no Brasil, já são 24 milhões de trabalhadoras donas do seu próprio negócio. Esse movimento de trabalhar por conta própria, entretanto, não deve ser visto de forma glamourizada. Muitas vezes, empreender é uma escolha estimulada pela falta de espaço para mulheres em cargos de destaque no mercado formal. Nas 500 maiores empresas do país, ocupamos apenas 13% des-

Foram nove eventos realizados, antes da pandemia. As feiras contavam com apresentações culturais e conversas sobre assuntos de interesse das mulheres.


tas posições, mesmo representando mais da metade (52%) da população brasileira.

‘Tão simples’ Mesmo com a grandiosidade da Feira das Minas, Oda, sua idealizadora, afirma que teve dificuldade em valorizá-la: – Só com um tempo, eu fui percebendo que aquilo que eu tava fazendo era algo muito maior. E que tinha - e tem - mais potencial do que só a ideia inicial. Autossabotagem, né? Eu sempre penso que aquilo que eu faço não é algo tão grandioso. Como eu disse, a ideia da Feira, no início, era muito descompromissada, porque eu não via que isso tinha um potencial, um impacto social. Eu pensava: ‘ah, sei lá, é algo tão simples, qualquer pessoa pode fazer’, mas agora eu vejo que não. Talvez seja simples pra mim, mas é algo que tem importância, é algo massa. Eu me vejo melhor, me vejo como profissional. O fim da nossa conversa é marcado por estas palavras e eu, Laura, arrisco sair do meu lugar de entrevistadora para partilhar saberes - e dificuldades - sobre méritos e autoconfiança: “É simples de fazer, mas não é fácil, né? O simples não precisa ser fácil” - comento sua fala. “Isso!” - Oda ri e eu também. Naquele momento, sei que o riso compartilhado é um sinal de apoio, de “estamos juntas”, resultado da potência que é o encontro de mulheres. 26 | Bárbaras


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RELATO

Na imagem, Henriqueta Galeno e a fachada da Casa Juvenal Galeno.


Da Terra da Luz,

as mulheres das Letras Com a palavra, Luciana Bessa. Atualmente, ocupando a cadeira número um da Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno e doutoranda na Universidade Federal do Ceará, Luciana rememora escritoras cearenses, mulheres que usam da força contida nas palavras para eternizar suas vivências em livros e antologias. É preciso lê-las. TEXTO | Luciana Bessa ILUSTRAÇÃO | Jayne Machado

Durante os anos de 1870 e 1900, a capital Fortaleza viveu um grande período de efervescência cultural, chegando a ter registros de pelo menos 37 agremiações, como Clubes e Gabinetes de Leitura, Grêmios Literários etc. A relevância de tais instituições está no fato de fomentar ideias e formar um público leitor, já que antes do surgimento destas agremiações não havia nenhum incentivo às produções artísticas e intelectuais. As mulheres foram excluídas de todas as instituições que contribuíram para a formação e consolidação da Literatura Cearense. Dessa forma, a história literária cearense, durante o século XIX, foi contada pelos homens. Imperou a dominação masculina. Entre a passagem do século XIX e início do século XX, houve escritoras de grande expressividade, mas que não tiveram a repercussão merecida, como é o caso de Emília Freitas, autora de A rainha do ignoto (1899); Francisca Clotilde, com o romance A divorciada (1904); Alba Valdez, memorialista na sua novela Dias de Luz (1907); e Ana Faço, com Páginas íntimas (1938). Não nos esqueçamos de que o início das atividades intelectuais da mulher coincide com o nascimento da modernidade. Na década de 1930, Fortaleza respira outros ares e a literatura se abre para

outros mares quando Rachel de Queiroz (19102003), primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras, publica a obra “O Quinze” (1930). Mas não para por aí: “Caminhos de Pedra” (1937), “Dôra, Doralina” (1975), “Memorial de Maria Moura “(1992), trazendo narrativas de mulheres fortes e guerreiras, como: Conceição, Noemi, Dôra e Maria Moura, respectivamente. Há a ganhadora do prêmio Osmundo Pontes pelo romance “A Casa” (1999), Natércia Campos, e a vencedora do prêmio Funarte, Tércia Montenegro, com o livro de contos “O vendedor de judas” (2011). Depois de cento e dezesseis anos, a Academia Cearense de Letras (ACL) tem como presidenta a escritora Ângela Gutiérrez, autora dos livros O Mundo de Flora (1990), Canção da Menina (1997), Avis Rara (2001), O Silêncio da Penteadeira (2016), entre outros. Contudo, uma das instituições literárias fortalezenses ganhou um novo caráter. Em 1936, a filha do poeta Juvenal Galeno, Henriqueta Galeno (1887-1964), cria a “Falange Feminina”, hoje, Ala Feminina, seguindo o modelo de uma Academia de Letras com 40 patronas, cujo objetivo era acolher a intelectualidade feminina silenciada ao longo da História. Janeiro 2021 |

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A residência do poeta Juvenal Galeno, construída pelos idos de 1888, é hoje a Casa de Juvenal Galeno e localiza-se à Rua General Sampaio, nº 1128, bairro Centro, na Terra do Sol, Fortaleza (CE). Ela sempre foi frequentada pelos nomes mais importantes da cultura cearense, como Patativa do Assaré, Raquel de Queiroz, Demócrito Rocha etc. Atualmente, é um equipamento social mantido pelo Governo do Estado e abriga mais de dez instituições literárias, dentre elas a Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno. Rompendo com o ambiente essencialmente masculino, nos primeiros anos de sua existência, a Ala enfrentou muitas pedras no caminho e não conseguiu, por exemplo, preencher o seu quadro de participantes. Apesar das dificuldades, há 83 anos, todo segundo domingo de cada mês, ao cair da tarde 16 horas -, a Ala Feminina, com sessenta cadeiras, recebe mulheres e discute para além do fazer literário questões relevantes de interesse do público feminino. Trata-se de uma agremiação que contribuiu para tirar a mulher do silêncio imposto pelo século anterior. Em 1949, Cândida Galeno (1918-1989), neta de Juvenal Galeno, cria a “Revista Jangada” com o propósito de levar para outros mares a Literatura

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Feminina cearense que, durante décadas, foi construída somente por homens. Durante 26 anos, a Revista cumpriu seu propósito, mas por questões financeiras encontra-se submersa em águas alencarinas

‘Elogio às Patronas’ O ingresso na Ala Feminina ocorre mediante a realização do “Elogio às Patronas”, ou seja, um trabalho em torno da vida e da obra de uma determinada escritora. Com a aprovação do texto - de natureza acadêmica -, ele é publicado em forma de Antologia; Mulheres do Brasil, atualmente, está no sexto volume. Outra publicação é o Livro da Ala, que está na sua segunda edição. Em virtude do aniversário de 83 anos da organização, no ano de 2019, foi lançado o livro Mulheres Notáveis, todos na gestão da presidente Matusahila de Sousa Santiago. As mulheres, antes restritas ao espaço privado, têm na Ala Feminina um espaço público onde podem se fazer ver e ouvir. Seus trabalhos, antes guardados a sete chaves, podem ser lidos, debatidos, publicados, sendo, também, levados para lugares longínquos. Como a linguagem é poder, a mulher lutou e conquistou o direito de narrar sua própria história. A Ala Feminina contribuiu para esse protagonismo.


Henriqueta Galeno Nascida em Fortaleza, filha de Maria do Carmo Cabral Galeno e Juvenal Galeno da Costa e Silva - criador da poesia popular brasileira. Estudou no Colégio da Imaculada Conceição e no Liceu do Ceará, graduando-se pela Faculdade de Direito do Ceará. Em 1919, fundou o Salão (atual Casa) Juvenal Galeno, onde foram criados o Centro de Estudos Juvenal Galeno, a Ala Feminina e a Editora Henriqueta Galeno. Foi secretária do pai - deficiente visual - e lia para ele livros, revistas e jornais diários. Também foi professora da Escola Normal e do Liceu, poetisa, pioneira do movimento feminista no Ceará, membro da Associação Cearense de Imprensa e da Academia Cearense de Letras, onde ocupou a cadeira n° 23, sendo seu pai o patrono. Como ensaísta, alguns dos títulos publicados foram “Maria Quitéria, a primeira mulher-soldado do Brasil”, “Henriqueta Galeno no Congresso Feminino e na Academia Carioca de Letras”, “Juvenal Galeno, o legítimo criador do Popularismo Literário no Brasil” e “Mulheres Admiráveis”, obra póstuma. Faleceu em Fortaleza, no dia 10 de setembro de 1964.

Foto: Acervo Casa Juvenal Galeno Ilustração (foto adaptada): Paulo Anaximandro Tavares

Fonte: Academia Cearense de Letras e “1001 Cearenses Notáveis”, de F. Silva Nobre (2003), extraído do site: http://www.portal.ceara.pro.br/


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CAPA

A mulher

antes do prêmio Cinco meses antes de vencer o prêmio Jabuti nas categorias “Livro do ano” e “Poesia” com Solo Para Vialejo, publicado em 2019 pela Cepe Editora, Cida Pedrosa, atual vereadora do Recife (PE) pelo PCdoB, narrou - via Google Meet e deitada na rede de sua casa na capital pernambucana -, como foi nascer de um aparecimento, descobrindo-se na literatura e na luta pelas causas sociais. TEXTO | Bibiana Belisário FOTOS | Arquivo pessoal

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“Vim do pó das estepes do sertão Batizada no fogo da quimera Fui testada no reino da monera Pra dizer que o certo não é são”

– Trecho do “Poema III” do livro Claranã (Confraria do Vento, 2015)

Em meio à floração do umbu, nascia Cidinha de serviço dele, ia contar história pra gente. Eram as hisSeu Assis ou Cidinha de Dona Senhora, no sítio Chi- tórias mais incríveis. Ele interpretava, pulava como se co Lopes, a 6 km do município de Bodocó (PE). fosse um bode”. Chegou ao mundo em pleno sol do mês de outuAos seis anos, Cida aprendeu a ler em casa, com bro de 1963 e é fruto de promessa à Nossa Senhora sua mãe, que aprendeu com uma tia, a qual nunca foi Aparecida. “Minha mãe tinha entrado na menopau- à escola. Seu pai acreditava que o estudo era o único sa, pensava que não ia vir mais ninguém, decidiu sentido de crescimento do ser humano. Quando ele brincar de novo e aí eu nasci”. ia à feira, voltava com cordel pra casa, e sempre que A caçula de 15 filhos viveu no sítio até os seis anos um dos filhos aprendia a ler, a prova era versar um de idade. A cidade só lhe acontecia quando Frei Damião chegava nas missões, ou quando alguém da família adoecia e tiIsabel Pedrosa e Francisco de Assis Bezerra, nha que ir para o farmacêutico, pois não pais de Cida Pedrosa e de outros 14 filhos. havia médico. “A gente não tinha banheiro, não tinha energia, mas tinha fartura de comida… Mamãe separava as comidas pra dar pro pessoal ao redor que passava fome”, lembra. Cida cresceu incomodada, rodeada por injustiças, vendo as pessoas passarem fome na seca. Mas a visão que apontava do alpendre de sua casa, trazia-lhe norte e rasgava seus olhos com luz. De lá, tinha o retrato, em meio à serra, da Pedra do Claranã, que invadiu seu horizonte e suas ideias, conduzindo ela aos lugares que hoje ocupa.

“É daí que vem minha poesia” Os primeiros versos escutados pela escritora foram as ladainhas rezadas por sua mãe e canções entoadas por seu pai. Foi apresentada ao cordel por seu Zé Pedro, “um conhecedor de histórias clássicas que vieram do além-mar de boca a boca” e serralheiro, trabalhava fazendo cochos para as vacas e porteiras. “Quando ele ia lá pra casa, a gente esperava ele como se o rei fosse chegar. Fazia fogueira e quando ele terminava o 34 | Bárbaras


Em sessão de fotos para o livro Gume, no Museu do Estado de Pernambuco. Em Recife, Cida sentiu falta do “bom dia” dos vizinhos e essa indiferença lhe invadiu dia após dia.

cordel inteiro para todo mundo. Assim fez Cida. Conheceu cordelistas, violeiros e emboladores. Se perdia no jogo de palavras, no toque da viola e do pandeiro. Pedrosa conta que isso tudo é, na verdade, um encontro ancestral, pois das mulheres de sua família têm-se registros escritos de poemas, poesias populares e diários repletos de memórias afetivas, por sua mãe, tias e irmãs. Aos 14 anos, partiu de Bodocó para Recife. Passou a estudar no Colégio 2001, do qual seu irmão era proprietário. Lá, teve incentivos para escrita de seus colegas e também da sua irmã Flor, que foi sua professora de literatura. No ano de 1978, organizaram na escola um fanzine chamado “Momento Poético”: “Essa foi a primeira vez que eu publiquei”.

Cida Cidade “Sair de Bodocó e vir morar em Recife, tu imagina o choque? Eu brigava no meio da rua”. Aos nove anos, Cida percorria a feira de sua cidade natal, visitava o “Beco Estreito” e todas as moedas que recebia em casa dava aos pedintes moradores dali. Ao mudar-se para Recife, descobriu que “a cidade é uma porrada, tá ali dita, denunciada”, e seu dinheiro já não era mais suficiente para todos aqueles que dormiam na calçada. “Como é que você dá moedas numa cidade cheia de pedintes?”. Vivências próprias e de passantes alimentam a engrenagem de sua escrita. No livro Gris (Cepe, 2018), o poema “Empatia” relata o dia em que, sentada em sua privada, um bem-te-vi lhe apareceu na janela. Ali percebeu a ausência de ninho dentro dela tão grande quanto a dele. “Na verdade, nós somos parcela desse mesmo átomo, seja pedra, mulher, homem ou pássaro. Nós

somos feitos das mesmas moléculas e sofremos, mesmo assim sofremos com a solidão inseparável das espécies”. Das ausências que lhe invadiam dia a dia, estavam o “bom dia” e a indiferença dos vizinhos. Mas com o tempo, compreendeu que, na verdade, Recife é muito maltratada como todas as grandes cidades do Brasil, com suas desigualdades e diferenças sociais. Logo, fez com que o cinza do asfalto se misturasse ao colorido de sua visão, atitude e poesia.

O advogado militante e o bom advogado “Na verdade, eu não queria Direito. Eu fiz pra Jornalismo”. No ano do movimento das Diretas Já, em 1981, a profissão da moda era ser narrador de fatos. Na época, havia a opção de fazer três escolhas para concorrer no vestibular. Cida optou por Jornalismo, Direito e Sociologia. Acabou passando para Direito na Faculdade de Direito do Recife, e a família queria um advogado na família a todo custo. “Ia estudar nos dois primeiros anos chorando”, relata, até que em meio ao curso elitizado encontrou uma turma que também gostava de escrever. Descobriu a faculdade como um instrumento de luta, passou a ser monitora do professor Gentil Mendonça, que ministrava Direito do Trabalho e se apaixonou pela ideia de exercer, através daquela área, a justiça social. “Uma boa advogada é ouro em pó para os movimentos sociais. O advogado militante quase nem sempre é um bom advogado”. Pedrosa ainda completa o raciocínio com sua tese: “Se você vai lutar com quem tem um monte de dinheiro, se o dono da terra vai contratar a melhor banca de advocacia para influenciar na sentenJaneiro 2021 |

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ça, o advogado do lado de cá tem que ser ‘tampa de crush’, além de ser um militante da causa”. A paixão pelo Direito levou-a até a região da Zona da Mata, em Palmares (PE), no ano de 1989, onde casou e constantemente sofria ameaçada pelos donos de engenho, principalmente quando ganhava uma causa na justiça contra eles. Grávida de sete meses, foi vítima de um atentado no qual perdeu a criança e, três meses depois, teve seu marido assassinado, tendo vivido junto dele só por um ano e meio. De lá, Cida partiu para Petrolina (PE), em 1992, onde advogou para a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Pernambuco. “Fizemos um trabalho lindo no Vale do São Francisco”, relata. Pedrosa trabalhou na I e II Convenção Trabalhista do Vale do São Francisco. “Ninguém tinha carteira assinada, numa ‘tacada’ só conseguimos assinar a carteira de todo mundo no processo de convenção”. Em 1994, grávida do seu filho Francisco, ainda antes da primeira lei contra assédio sexual ser vigorada pelo legislativo brasileiro, a advogada garantia direitos às mulheres no Vale: “Tinham muitas mulheres jovens. Nós conseguimos garantir, na Convenção, o pedido à recisão indireta de contrato de trabalho com todas suas indenizações… Também efetivamos o apoio para denúncia do assédio sexual e o pedido de demissão à empresa, do assediador”. Além disso, assegurou que a trabalhadora e o trabalhador estudante pudessem faltar ao trabalho em dia de provas e coordenou o primeiro projeto brasileiro de erradicação do trabalho infantil junto à Organização Internacional do Trabalho. Engolida pela guerra cotidiana e pela política sindical camponesa, a escritora deu cria ao livro Cântaro (edição independente), publicado em 2000. “Conciliar tudo isso com a poesia, hoje, é mais fácil que antigamente”. A escritora afirma ainda que, aos seus 20 anos, ficava bem dicotômica, dividindo-se entre a advogada, a poeta e a militante política. No entanto, sempre que era apresentada pelo seu partido, o PCdoB, não havia jeito e lá estava as três em uma só: “‘Aqui é Cida Pedrosa, poeta e advogada’… Eu era uma poeta que sabia de Direito. Hoje em dia, eu vou pra uma reunião política e meto um verso, me assumi uma unidade, mas isso só depois dos 30”.

Cida (2ª da direita para a esquerda) e seus colegas do Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco.

Como advogada, Cida garantia direitos às mulheres e crianças do Vale do São Francisco.

Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco Em 1980, nascia uma grande “balbúrdia” na vida política e cultural do Recife. Junto de “outros escritores fora da escola”, Pedrosa principiou o Movimento dos Escritores Independentes de Pernambuco. Eduardo Martins - primeiro namorado de Cida 36 | Bárbaras Cida, grávida do 1º filho, em evento com trabalhadores rurais do Vale do São Francisco.


Cida e seu fiho mais velho, Francisco.

-, Fátima Ferreira, Hector Pellizze e Francisco Espinhara são alguns dos nomes que passaram pela construção do movimento. Foram realizados dois grandes encontros estaduais e um nacional, em Fortaleza (CE). Logo mais, em 1986, disputaram a presidência da União Brasileira de Escritores, ano que Cida considera o marco do movimento. “Teve uma briga tão grande que rachamos”. A escritora conta que, se o mesmo movimento acontecesse hoje, “seria mais feminista”, pois existiam atitudes machistas às quais ela não conseguia se contrapor. “A minha poesia era feminista, mas eu não tinha representação ali dentro, tudo era os meninos e não era uma coisa pra ter chefe, era pra tudo ser horiontalizado”. O maior agradecimento que Pedrosa confere a esse tempo, é o da traição que sofreu do seu namorado Eduardo Martins. “Bem na época do desemprego no Brasil, ele arranjou um trabalho em Rondônia e cismou de casar antes de ir e casarmos. Quando chegou lá, se apaixonou por outra pessoa e nós não vivemos nem um dia de casados”. Depois disso, Cida se desabrochou mulher.

Poeta, advogada e gestora pública “Eu nunca fui concursada, mas nunca passei um dia desempregada, mesmo sem ganhar muito dinheiro, nunca faltou comida na mesa”. Quando retornou ao Recife em 1995, recebeu o convite do PCdoB para trabalhar como chefe do departamento jurídico do Instituto de Peso e Medidas do Estado, onde continuou exercendo o Direito do Trabalho e permaneceu por quatro anos. Daí, abriram-se as portas para a gestão pública, onde pôde atuar de 2001 a 2013, como Secretária-Executiva do Comitê Municipal de Direitos Humanos e Segurança Cidadã, Diretora da Secretaria de Direitos Humanos e Segurança



Cidadã e Vice-Presidenta da Autarquia de Saneamento. Entre 2013 e 2016, foi Secretária de Meio Ambiente e Sustentabilidade e, no período de janeiro de 2017 a março de 2020, exerceu o cargo de Secretária da Mulher, saindo apenas para lançar sua pré-candidatura à vereadora da capital pernambucana. Sobre sua experiência como Secretária da Mulher, Cida afirma que o fato de ser feminista e assumir um cargo de gestão nesta área foi de grande satisfação, afinal, quando estava em outras funções, assumia todos os grupos de gênero que pudesse para apoiar as mulheres, sempre atenta ao assédio sexual e moral. Ela pontua que foram realizadas grandes conquistas, como o Fundo Municipal da Mulher e a criação da Brigada Maria da Penha, que acompanha mulheres vítimas de violências e que estão com medida protetiva. Cida deixou, na gestão pública, um dos maiores marcos de sua felicidade, a criação do plano diretor do Recife, “com recorte de gênero de cabo a rabo em todas as políticas”. O plano foi aprovado pela câmara em 17 de dezembro de 2020 e contém diretrizes para a cidade pelos próximos dez anos. “A poesia me dá um prazer enorme, mas isso é algo muito concreto que você vai deixando para a comunidade, sociedade”.

O corte de um abecedário

“A mulher sempre esteve presente na minha poesia em conteúdo e forma. Está viva no recorte de classe, nos gritos de denúncia contra a opressão machista, no erotismo rebelde e despudorado, nas dores e lutos, nas risadas e celebrações, nos silêncios e entrelinhas.”

– Trecho de “Sobre esse fogo ancestral que me consome”, na segunda edição do livro Filhas de Lilith (Claranan, 2017)

Assim como Lilith, são inúmeros os nomes apagados no cotidiano de nossas memórias. As várias possibilidades de corpo, autonomia e denúncia guiaram a escrita do livro Filhas de Lilith, mas foi com a poesia Milena que ele se concretizou. A narrativa em primeira pessoa despertou o espaço de fuga de um mundo de opressões. Assim, nasceram os 26 poemas em um abecedário de A a Z. Histórias que ouviu de amigas vivem dentro de suas personagens e são crias de outro Éden. Cida Janeiro 2021 |

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Quantas vezes eu ouvi: ‘menina feche as pernas, não ria alto que mulher tem que ter classe, baixe os olhos e só escute’, existe um corte simbólico da nossa sexualidade

confessa se encontrar em cada uma delas, com suas perdas e dores. “Da safada Rosana até Tereza, vítima de feminicídio”. A escritora acusa, ainda, que a mulher possui o clítoris cortado permanentemente, mesmo que de forma simbólica, em todas as vezes que foi imposta a situações onde era diminuída pela morada de vênus que carrega entre as pernas. “Quantas vezes eu ouvi: ‘menina feche as pernas, não ria alto que mulher tem que ter classe, baixe os olhos e só escute’, existe um corte simbólico da nossa sexualidade”.

Não há um ponto de chegada Talvez todos nós tenhamos um lado sacro e um revolucionário. Para a poeta, seus dois filhos representam cada um deles. O primeiro, Francisco, lavou os pés no Rio São Francisco assim que saiu da maternidade, e o segundo, Wladimir, é sua grande homenagem ao poeta russo Maiakovski (1893-1930). “Tive meu primeiro filho com 30 anos. Eu me casei quatro vezes. Com o pai dos meus filhos, eu só me juntei, quando estávamos com 12 anos juntos, ele morreu de câncer. Depois eu refiz minha vida com o companheiro que tenho hoje, o Sennor Ramos”. Cida Pedrosa tem a profundidade de um sertão em seu peito. Em cada obra se reencontra com um pedaço de si e faz renascer-se em suas experiências. No livro Solo Para Vialejo, mergulhou na infância de sua história com uma jornada ordenada por memórias individuais e coletivas, voltando ao princípio de tudo e partindo em busca do seu ser. Contudo, não há um ponto de chegada. Há uma genealogia de sons contando os versos construídos conforme ia descobrindo a vida e narrativas da diáspora de oprimidos que se fazem verbos e são constantes.

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Cida no caldeirão de pedras da casa de uma de suas irmãs em Bodocó (PE).


OPINIÃO


Precisamos ser respeitadas

desde a infância Medo de falar em público, de cobrar por respeito, de não construir uma família nos moldes tradicionais e “ficar para titia”, de não ser uma “boa mãe”, estas são algumas das consequências da educação baseada no sexo (sexista), ainda cultivada na nossa sociedade. Seja em casa, na escola ou em círculos sociais, quando a educação separa “coisas de menino” e “coisas de menina”, e exige de nós, mulheres, uma postura passiva, ela segue os moldes patriarcais. A psicóloga Jéssyka Andrade (CRP 11/15234), pós-graduada em Educação e Psicologia, fala sobre a importância do respeito às crianças e de outros caminhos possíveis. TEXTO | Jéssyka Andrade - Psicóloga (CRP 11/15234) ILUSTRAÇÕES | Vitória Jeankessya

São alarmantes os números de violências sofridas por meninas e mulheres no mundo. Essas violências podem se apresentar de formas físicas, sexuais, psicológicas e econômicas; elas também envolvem intersecções entre gênero, raça e classe. Mas como elas se configuram em nossa sociedade? bell hooks*, no livro “o feminismo é para todo mundo” (Editora Rosa dos Tempos), aponta que o pensamento sexista é ensinado às mulheres desde o nascimento, onde há uma noção de que o domínio do desejo e do prazer é concernente ao masculino. Similarmente, a filósofa francesa Simone de Beauvoir destaca que desde os primeiros anos é esperado de nós, mulheres, a passividade, a partir de imposições dos educadores, familiares e da sociedade. Por isso, é urgente que falemos sobre essa construção e sobre o sofrimento que atravessa também as nossas vivências na infância. Torna-se difícil e revoltante ler os dados estatísticos de violência contra crianças, adolescentes e mulheres. De acordo com os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), entre 2011 e 2017 foram registrados 83.068 casos de violência sexual (estupro, assédio sexual, pornografia infantil, exploração sexual) contra crianças de zero a nove anos, sendo 74,2% destas do gênero feminino. Em relação à raça e cor das vítimas, 45,97% são negras, 38,52% brancas, 1,18% indígenas e 0,49% amarelas. A maioria dos casos acontecem na própria residência e por autores com vínculo familiar, além disso, a escola ocupa o segundo lugar. Esses são dados referentes à violência sexual, mas, desde cedo, as mulheres também são vítimas de violências físicas, econômicas e psicológicas, logo, é notório que existem relações de poder, controle e dominação sobre esses corpos. Infelizmente, seja na infância, adolescência, idade adulta ou senescência, temos inúmeros direitos violados e impactos à nossa saúde mental. Por

isso é importante refletir e dialogar acerca dessa problemática em sua estrutura e origem. Em nossa sociedade, as crianças recebem uma educação machista que pauta o que é “coisa de menino” e “coisa de menina”. Isso carrega inúmeros preconceitos e consequências, afinal, as crianças internalizam e reproduzem o discurso sexista. Pensemos nos brinquedos: para as meninas, são dadas bonecas e itens de cozinha, recursos relacionados ao cuidar, além disso, as vestimentas reforçam a postura passiva, submissa e doce que é exigida de nós, assim, há uma exigência social para que nos mantenhamos quietas, de pernas fechadas em nossos vestidos e saias e de boca calada. Portanto, é notório que as violências são desde cedo permeadas por relações de poder, controle e dominação sobre o feminino. Muitas de nós escutam discursos como: “sente e se comporte como uma moça”, “feche suas pernas”, “ele fez isso com você porque te ama, é a forma dele demonstrar”, “sorria e seja educada”. Dessa forma, vamos crescendo sem autonomia, inclusive sobre o nosso próprio corpo. As brincadeiras com corridas, carrinhos e aventuras muitas vezes são consideradas “coisas de meninos”, quase como uma exigência de ser forte e dominador. Poucas são as famílias e escolas que possibilitam brincadeiras livres, onde as próprias crianças descubram suas formas de brincar e ser no mundo. Enquanto isso, a educação machista busca encaixar gêneros em papéis sociais. Crescemos nessa rigidez e polarização. Você já refletiu sobre a relação entre os contos de fadas e a naturalização de relacionamentos abusivos? Bem, somos influenciadas a acreditar na espera de um amor que nos salve, que nos complete, que possamos cuidar, nos dedicar e aceitar qualquer atitude, sacrificando nossos desejos para alcançar o ideal de “felizes

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para sempre”. Mas quem de fato está feliz sem liberdade? Crescemos e cada vez mais é imposto de forma sutil que nossos corpos não pertencem a nós, mas ao outro, ao masculino. Cresce a vergonha pelo corpo, se instaura a culpa. A culpa de não ser boa o suficiente, de não ser bonita e doce o suficiente, de não estar no padrão o suficiente, de não ser desejada e agradar o suficiente. A cisheteronormatividade se torna cada vez mais cruel, inclusive. Precisamos refletir: de onde vem o nosso silêncio? Se somos ensinadas a nos calar, a aceitar, a naturalizar, a nos envergonhar, crescemos com o medo de denunciar, de sermos culpabilizadas mais uma vez.

Formação repressiva da sexualidade feminina O machismo na contemporaneidade envolve também uma erotização e adultização de crianças e adolescentes, especialmente do gênero feminino. Isso acontece também através da mídia e da publicidade, induzindo ao hiperconsumismo e reforçando os padrões e o mito da beleza, a objetificação dos corpos femininos, a violência e a exploração. Em relação à adolescência, há a intensificação de alguns fenômenos dessa construção machista. A preocupação estética e a rivalidade feminina são reforçadas, onde vemos um número crescente de transtornos alimentares e procedimentos estéticos, visto que a cultura idealiza um padrão de corpo feminino magro e jovem. Ao mesmo tempo, a educação sexual é escassa, e segue sendo cada vez mais criticada em um desmonte de direitos na nossa realidade brasileira atual. Similarmente, muitas autoras apontam, em seus estudos feministas, que a sexualidade feminina envolve uma dicotomia moral de pureza e impureza, ou seja, ao passo que há uma hipersexualização de nossos corpos, é cobrado que sigamos “comportadas” e “puras” ao conter nossos desejos sexuais e o conhecimento do próprio corpo para que não sejamos criticadas. Afinal, o intuito invisível do sexismo não é que vivenciamos a nossa própria sexualidade, mas satisfaçamos os desejos dos homens, silenciando os nossos. Isso envolve também a cultura do estupro, pornografia e pedofilia, onde nossos corpos são erotizados, culpados e associados ao pecado, à censura, ao servir. Muitos dos que deveriam nos proteger violam nossos direitos.

Por uma educação feminista e libertadora Assim sendo, é indispensável que possamos lutar pela construção de um diálogo horizontal com desconstruções, de modo que nossa relação com nossos corpos não envolva medo, vergonha, submissão ou culpa, mas conhecimento, proteção e garantia de direitos (inclusive no campo reprodutivo). Não só isso, precisamos também lutar por uma educação feminista e não sexista, que contemple respeito e

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novas ressignificações no campo do gênero. Essa deve ser uma luta social desde a origem da nossa educação. Nesse aspecto, a educação sexual se faz relevante no âmbito social, familiar e escolar, de modo que meninas e meninos possam ter acesso a informações de forma acolhedora, confiável e adequada para cada faixa etária, construindo uma relação mais saudável e respeitosa com seus corpos e com os corpos dos outros, aprendendo sobre limites e autoconhecimento. Isso contribui na formação de pessoas mais conscientes sobre formas de se relacionar de maneira saudável, prevenir infecções sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada, assédio e violências sexuais. Afinal, sexualidade não diz respeito somente ao sexo, mas a nossa relação com nossos corpos, autoestima, afetos, equidade e liberdade.

Refazendo caminhos juntas! Refletindo sobre as fases do desenvolvimento, é cônscio que essas questões se apresentam também na idade adulta, envolvendo inclusive nossas configurações em relação ao mundo do trabalho. Na senescência, percebemos também diversos estereótipos, tabus e repressões sobre o corpo, o envelhecimento e a sexualidade. Em suma, nota-se que essas questões atravessam nossos caminhos em diversas fases da vida, apresentando similaridades e especificidades de acordo com intersecções entre gênero, raça e classe. Muitas de nós sofrem constantemente com o racismo, as vulnerabilidades econômicas e com a transfobia. Precisamos urgentemente proteger as nossas crianças, todas elas. Ressalta-se que nós mulheres temos avançado imensamente quanto aos nossos direitos e ruptura de táticas de silenciamento, mas é preciso seguir lutando por conquistas, diálogos, desconstruções, políticas públicas e educação, afirmando a nossa liberdade e nossa voz para que possamos resistir e romper paradigmas patriarcais. Ademais, homens devem também receber uma educação não sexista e contribuir para essa luta. É necessário que não nos esqueçamos de nossas conquistas. É necessário seguir produzindo novas desconstruções e desvios, para que possamos vivenciar o mundo, desde muito cedo, com menos vergonha, culpa e medo, mas nos apropriando e conhecendo nossos próprios corpos em constante mudança, para estabelecermos uma relação cada vez mais saudável com nós mesmas e com os outros. Precisamos seguir atentas e juntas, sem esquecer de nossas crianças que são tão silenciadas em uma lógica capitalista que visa a produtividade, o lucro e estabelece relações de poder desiguais entre questões referentes ao gênero, raça, classe e sexualidade desde o nosso nascimento. Precisamos ser voz, abrir o espaço para a espontaneidade. Nossos corpos, por muito tempo, foram alvos de relações de poder, mas não esqueçamos que eles são os mais potentes espaços de resistência frente a isso. Somos o nosso próprio lar. Que o respeito e a proteção venham desde a infância!


bell hooks: Nome adotado pela escritora feminista norte-americana Gloria Jean Watkins, em homenagem à bisavó. É escrito em letras minúsculas como forma de não destacar a pessoa ou seus títulos, mas os conteúdos e ideias de suas obras.


Foto: Saullo Alves

ENTREVISTA

Julie acredita que pautar direitos das mulheres é uma ação educativa, tanto para mulheres, quanto para homens.


Cordel é coisa de mulher,

sim, sinhô! O cenário da mulher na cultura popular ainda é desafiador. A ausência de visibilidade e o patriarcado que domina o cenário continuam enraizados na sociedade. Apesar disso, não podemos esquecer de que mulheres cordelistas estão conquistando o seu espaço com muita luta. Mas ainda há quem queira colocá-las na posição de coadjuvantes. A colaboradora Natália Oliveira conversou com a poeta, cordelista e escritora Julie Oliveira, 28, nascida e criada em Fortaleza (CE), sobre suas referências na escrita, feminismo no cordel e luta contra o machismo. TEXTO | Natália Oliveira

Filha do também poeta de cordel Antônio Carlos da Silva (Rouxinol do Rinaré), Julie é uma das fundadoras do Coletivo Cordel de Mulher, faz parte do grupo de mulheres que lançou o Movimento Cordel Sem Machismo, e possui 10 títulos publicados - um deles marca a sua estreia no movimento feminista, o cordel intitulado “Mulher de Luta e História”. Apesar do currículo extenso, nada disso a impede de passar por situações desagradáveis, como ter a autoria de seus textos questionada e ser assediada. Segundo ela: “O cordel cabe em todo lugar, mas nem tudo cabe mais no cordel”. Por esse e outros motivos, o feminismo está inserido nos folhetos como grito de emancipação e combate ao patriarcado e misoginia que ainda é reproduzido nas relações sociais. Leia a entrevista completa a seguir: Natália Oliveira: Atualmente, como as mulheres são vistas no meio cordelista e pelo público? Julie Oliveira: Acho que é possível fazermos vários recortes para responder essa pergunta e, no fim, não chegaremos a nenhuma conclusão (risos).

Mas, vejo que tem a turma do “não existe machismo no cordel”, que são os mesmos que acreditam que queremos dividir o cordel, são os que têm um receio de “manchar” algo, como se nossa literatura fosse um cristalzinho frágil como a masculinidade deles. Por outro lado, tem uma galera que genuinamente se interessa pelo que estamos produzindo e tem se achegado, como pesquisadores e leitores em geral. E, mais uma vez, reafirmo, são estes últimos que nos dão a energia necessária para seguir em meio aos percalços. Você já enfrentou dificuldades no meio cordelista pelo fato de ser mulher? Quais? Me considero muito privilegiada, se comparada a outras companheiras. No entanto, meu privilégio não me faz emudecer ou enxergar as coisas na superficialidade. De maneira direta, as situações mais constrangedoras que vivenciei incluem o fato de ter a minha escrita questionada, uma escrita que era sempre relacionada ao meu pai, como se eu não tivesse capacidade de escrever bem. Então, no começo, principalmente, isso se deu de maneira muito forte, vários homens questionavam a autoria dos meus textos. E isso não se dava apenas pela miJaneiro 2021 |

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Xilogravura que ilustra a capa do cordel “Mulher de Luta e História”.

nha idade, como pode se pensar. Isso é algo recorrente na nossa trajetória feminina, independente de ser cordelista ou não. Ser mulher na sociedade em que vivemos é ter sua competência testada a todo momento. Ocorreram outras situações desagradáveis, como ser assediada por um cordelista em decorrência de um evento que produzi. O simples fato de ser uma mulher fez com que ele se sentisse no direito de me importunar com mensagens telefônicas durante um bom tempo. E isso é algo que precisamos falar abertamente, pois há quem diga que não existe machismo no cordel… É lógico que sabemos muito bem que machismo não é exclusividade do cordel, óbvio, mas neste momento, estamos falando do lugar que estamos, e precisamos que nossa fala seja respeitada.

Xilogravura: Maercio Siqueira

fiquei extasiada a primeira vez que vi uma mulher cantadora ao vivo... Esse impacto se deu porque eu nunca tinha visto uma mulher repentista nos eventos, e isso fazia eu pensar que éramos poucas

Em eventos literários, você já vivenciou alguma situação com a imprensa ou com o público, relacionada ao menosprezo e banalização da criação artística feminina? São tantas situações “embaraçosas”, pra não dizer desagradáveis, que é difícil elencar uma. Mas em 2020, por conta do nosso Movimento Cordel Sem Machismo, vivenciamos situações surreais, desde ataques em nossos [bate-papos] privados - e também comentários públicos -, por parte de homens cordelistas, até pessoas da imprensa agindo como investigadores. Neste último caso, uma jornalista chegou a nos pedir comprovação de que havia 70 coletivos ligados de fato ao nosso movimento, queriam prints e outras provas de que re-

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Ser mulher na sociedade em que vivemos é ter sua competência testada a todo momento

almente sofremos machismo... Um verdadeiro inquérito policial. O seu ativismo já ganhou espaço nas redes sociais através do Coletivo Cordel de Mulher. Fale sobre esse projeto, como surgiu a ideia e quais são os objetivos. O Cordel de Mulher é um coletivo nacional de mulheres e também um selo editorial - com catálogo a ser lançado em breve -, e o que mais quiser ser! É um espaço virtual de propulsão de mulheres cordelistas, xilogravadoras, editoras, pesquisadoras de cordel e todas as outras ligadas à cultura popular que desejem achegar-se. Faço parte do grupo de mulheres que lançou o Movimento Cordel Sem Machismo, um movimento que recebeu mais de duas mil assinaturas em sua nota de repúdio inicial e que, hoje, se soma a mais de 70 coletivos por todo o país. Me alegra ver a potência do que são capazes as mulheres que se unem. Nosso objetivo é apresentar a mulher com sua própria voz, sem intermediários. Nós por nós. Sussurrando ou gritando; santas, putas, pretas, brancas, índias e tudo o que somos ou quisermos ser. Reconhecemos que há avanços e conquistas, no entanto, sabemos também que o caminho ainda é longo, e é preciso resistirmos como for possível. Especialmente nestes tempos em que orquestram-se músicas antigas e que o velho quer retomar o poder. Afinal, urge relembrarmos de Simone de Beauvoir alertando: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.” Aqui estamos, sempre estivemos, na verdade. O cordel também é coisa de mulher, o cordel também é político, filosófico, pop, preto e possui infindáveis recortes. Assim como na vida, estamos em constante revolução. O que seremos, somente a força das que virão poderá dizer e ressignificar. Quando e por que você começou a escrever cordéis que falam sobre questões 50 | Bárbaras

de gênero? Oficialmente, publiquei um primeiro cordel (Mulher de Luta e História) sobre a temática, em 2019, mas o texto foi escrito em 2016. Minha percepção para minha condição de mulher e para a necessidade de fazer da minha arte essa seara de luta e debates se deu em 2015, com o chamamento da Rede Mnemosine de Mulheres Cordelistas, Cantadoras e Repentistas, instituição criada e encampada pela querida Josy Maria. Essa articulação nacional, o diálogo com outras mulheres e a troca de experiências, me fizeram atentar que muito do que tinha acontecido comigo e gerava incômodo não era algo banal. Era opressão, invisibilidade e machismo em diferentes graus. Desde esse entendimento da escrita como ato político, tenho pautado diversas questões sobre visibilidade feminina, com o objetivo de lançar luz sobre as nossas obras e práticas. Penso que, nessa tessitura, não me tornei uma autora proselitista ou monotemática, no entanto, sinto que não posso mais dissociar minha obra da luta. “E o que é ter razão? É ser a dona da verdade? Calma, amigos, explico, Com toda sinceridade: Ter razão é ter ação Na luta por igualdade” – Cordel “Mulher de Luta e História” (Julie Oliveira) O cordel “Mulher de Luta e História” funciona como enfrentamento ao machismo e à misoginia? Este cordel foi escrito a pedido do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), para um evento de enfrentamento às violências que sofremos e, posteriormente, resolvi ampliar um pouco o texto. Então, meu objetivo foi construir uma narrativa histórica de colocar luz sob o nome de mulheres notáveis, como Frida Kahlo, Anita Garibaldi, Rachel de Queiroz, e narrar sobre os movimentos que tiveram importância na luta feminista, como o Protesto Pão e Paz. Você acredita que os recortes de gênero influenciam no modo como a história do nosso país foi e é escrita? E de que maneira isso se relaciona com a nossa construção do ser mulher? Sim, com certeza. Abordar as questões de gênero é sobre representatividade. Precisamos nos enxergar nos espaços de poder, e em todos os es-


Xilogravura: Gabrielle Longobardi

Xilogravura que ilustra a capa do cordel “O Mito Grego e a Sabedoria de Pandora”.


paços que quisermos ocupar. Lembro de quando eu era criança, fiquei extasiada a primeira vez que vi uma mulher cantadora ao vivo... Esse impacto se deu porque eu nunca tinha visto uma mulher repentista nos eventos, e isso fazia eu pensar que éramos poucas. Hoje, tenho a certeza que somos muitas, e que a cada novo encontro, a cada novo movimento de mulheres, o mundo evolui e se fortalece. Quais são as suas referências femininas na literatura de cordel? Sem dúvidas, as grandiosas Izabel Nascimento, Paola Tôrres, Daniela Bento, Josenir Lacerda, Anne Karolynne e Salete Maria são as mulheres que mais inspiram minha escrita no momento. Você escreve cordel para tratar da pauta das mulheres por uma questão também de resistência cultural? Como sempre diz minha amiga e cordelista Izabel Nascimento: “Ser mulher no cordel é ser resistência dentro da resistência”, e eu penso que é por aí. Penso que tratar questões de direitos das mulheres ou quaisquer outros assuntos ligados aos “mulherismos” é uma ação educativa. Educativa não apenas para mulheres que ainda não sabem o que é o feminismo, por exemplo, mas sobretudo para os homens que precisam aprender que é tempo de ofertar escuta real às mulheres. Nós não queremos voz. Voz todas temos. Queremos escuta, e uma escuta qualificada. A importância dessa “militância” literária é “forçar passagem”, como diz Conceição Evaristo. É nesse forçar e nesse colocar-se ativo que vamos rachando as estruturas do capitalismo e do machismo entranhado em nossa sociedade. Na sua opinião, o cordel pode auxiliar a luta das mulheres por maior espaço e compreensão na sociedade? Claro, por tudo o que já foi dito e por eu acreditar na capacidade educativa do cordel ao longo de sua existência. Como recentemente eu disse num evento: o cordel cabe em todo lugar, mas nem tudo cabe mais no cordel. O que você espera alcançar com a sua escrita? Bem, espero que o que escrevi até hoje possa ser relevante para as pessoas e possa contribuir para um mundo com mais equidade, com um olhar mais humano. Sou adepta do [Eduardo] Galeano e de Manoel de Barros, e acho que a utopia é

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Exemplares do cordel “Mulher de Luta e História”, produzido a pedido do UNICEF. Julie diz que um dos objetivos foi narrar histórias de mulheres como Frida Kahlo, Anita Garibaldi e Rachel de Queiroz.


mesmo o que nos move a caminhar. Carrego água na peneira com a minha poesia. E o que te desmotiva a escrever? Costumo dizer que escrever pra mim é como respirar, por isso, escrevo todo dia. Mesmo que seja uma palavra. No aspecto mais formal, o tal do “bloqueio criativo” vem quando me sinto muito sobrecarregada ou quando estou engajada em projetos técnicos demais. Já tive hiatos de publicações, isto é, já passei alguns anos sem publicar, mas sem escrever, jamais. Qual é o seu cordel favorito? É difícil responder a essa pergunta, porque vejo todas minhas publicações como “crias”, mas a verdade é que nem mesmo os pais gostam igualmente de seus filhos (risos), embora se diga o contrário. Bem, no momento, meu xodó é a minha publicação mais recente, no caso, o cordel “O Mito Grego e a Sabedoria de Pandora”. “Foi assim que a esperança Ao nosso mundo chegou Pelas mãos de uma mulher Sábia, que a libertou Propiciando a cura Pra o mal que se instalou.”

Foto: Arquivo Pessoal

– Cordel “O Mito Grego e a Sabedoria de Pandora” (Julie Oliveira)

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COLUNA


A vida é muito valiosa

para deixar de ser vivida Num relato íntimo e corajoso, a colunista Bárbara de Alencar fala da sua relação com a ansiedade, da adaptação ao trabalho remoto e dos desafios dos últimos meses. Em meio aos altos e baixos, ela se descobriu ainda mais forte e se tornou inspiração para as pessoas que lhe cercam. TEXTO | Bárbara de Alencar ILUSTRAÇÃO | Alice Carvalho FOTOS | Arquivo Pessoal

Falar sobre ansiedade, pra mim, faz parte do meu processo de autoconhecimento, até porque não me recordo minimamente de viver sem que ela estivesse presente na minha vida. Desde os meus seis ou sete anos, sempre tive dificuldades para dormir ou sentia uma necessidade absurda de acordar antes do sol nascer em dias de eventos importantes, como provas, apresentações escolares etc. Tive vários momentos de febres emocionais, vômitos e choros que demorei muito tempo para conseguir dividir verdadeiramente com alguém, por ser um sentimento tão confuso que eu nunca conseguia expressar em palavras, e isso acabava me frustrando cada vez mais. Com o passar dos anos, a ida pro Ensino Médio trouxe com mais intensidade alguns problemas. O nervosismo não tinha mais motivação específica para chegar até o corpo, os picos de ansiedade se tornaram constantes e prolongados, a pressão psicológica para ser aprovada no vestibular só piorou tudo e, em alguns momentos, eu me olhava no espelho e não sabia mais quem eu era. Provas nunca foram meu forte, e testar meu conhecimento de anos em uma avaliação como o Enem nunca foi algo que me deixou muito feliz, ainda mais estudando em uma escola onde o objetivo de metade dos alunos era ser o melhor em tudo que pudesse. Isso sempre foi assustador. Ao entrar na universidade, tentei me cobrar menos, mas dentro de mim sempre existiu a ne-

cessidade de alcançar notas muito altas, ser muito boa, “minha única obrigação”. Escutei isso por tantos anos que ficou enraizado nas minhas ações e me prejudicou bastante por sempre me autossabotar e não me achar suficientemente boa em nada. Na graduação, algumas pessoas têm o poder de intensificar isso, e tentam te podar ao máximo para que você não cresça; uma ganância sem fim, mas ao se afastar de quem faz isso, você alcança vôos altos. Muita coisa deu muito errado até que pudesse dar muito certo, e sou muito feliz com isso. Até porque, como eu disse no meu primeiro texto des-

não me recordo minimamente de viver sem que ela [ansiedade] estivesse presente na minha vida

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Uma das minhas maiores metas de vida é reconhecer minhas conquistas com a mesma intensidade que me martirizo pelas coisas ruins

ta coluna, o equilíbrio não se trata de estabilidade, vem através da fluidez. Uma hora melhora, ainda que às vezes precise piorar muito para isso. Mas não é algo para ser romantizado e, sim, compreendido. Ninguém gosta de sofrer, mas os dias de dor te fazem comemorar mais ainda os dias de contentamento. Uma das primeiras tatuagens que eu fiz está escrito “Die with memories, not dreams”, que significa “morra com memórias, não com sonhos”. Me comprometi a viver uma vida que vale a pena ser vivida e estou prezando bastante por isso. Agora, em fevereiro de 2021, completa um ano que minha mãe faleceu e, desde então, muita coisa mudou. Apesar de tudo, finalizei meu tratamento com a medicação para a ansiedade, melhorei bastante, mas ainda não o suficiente. Tive

alta das medicações, mas não da terapia, como estava previsto para acontecer em dezembro. Tive muitas crises de coluna em que pensei que ia falecer de dor em cima de uma cama, mas tive a melhor companhia que podia, na tentativa de tornar os dias mais leves. Com as dores, vinham mais medicações e fisioterapias. Costumo dizer que melhorei de uma coisa e piorei de outra, é insuportável. Meus ataques ansiosos travam minha coluna e enrijecem meu corpo. Qualquer mínimo movimento necessita de um esforço máximo. Andar, sentar, levantar, machuca, me torno muito dependente de outras pessoas para fazer tarefas simples do dia a dia. Isso me faz ficar mais ansiosa e mais triste, por não gostar de depender de ninguém. Foram muitos dias difíceis, fisicamente, desde a metade do ano, e emocionalmente, desde o ínicio do ano, mas aprendi a celebrar as pequenas vitórias e procurar entender o que promove melhorias e trabalhar em cima disso para que se transforme em uma constante no futuro. Ainda assim, com toda dificuldade, consegui trabalhar bastante durante 2020, o que me deixou mais perto de realizar alguns grandes sonhos, concretizou menores e me trouxe muitas realizações pessoais e profissionais. Me descobri ainda mais forte, mais resistente, ultrapassei todos os meus limites de dor e medo e, durante essa caminhada, ouvi de muita gente que eu era uma inspiração para elas. Ao mesmo tempo em que isso me motiva, me entristece, por não conseguir enxergar 100% com esses olhos. Uma das minhas maiores metas de vida é reconhecer minhas conquistas com a mesma inten-


sidade que me martirizo pelas coisas ruins, mas isso é uma evolução constante e não linear que acredito que só o tempo ameniza. O ensino à distância não tem sido fácil. Às vezes, a melhor receita é enfiar a cara em um travesseiro e gritar bem muito, até não conseguir mais, pra tentar aliviar o coração, funciona, viu? Podem testar. Uma montanha russa de emoções que acompanha o final da graduação, a insegurança com o futuro, incerteza de como permanecerá a vida daqui por diante, pois ainda estamos em um cenário pandêmico. Continuo tentando lidar com minhas próprias emoções, mesmo sabendo que ninguém está conseguindo. Ter vinte e poucos anos é complicado, são muitas expectativas, muitos desencantos, tudo é muito intenso e complicado às vezes. Mas um dia de cada vez só faz sentido quando começa a ser

vivido. Algumas coisas você só enxerga quando aprende a desacelerar. Sem me demorar no futuro, estou escolhendo viver meu presente na minha melhor versão, que é aquela que eu posso e consigo ser, sem idealizar demais e me torturar por não conseguir atingir algo que está além do meu alcance. Não é fácil, mas viver o hoje vale muito mais a pena do que se prender a uma ideia de algo que não necessariamente vai acontecer da forma que você quer. Descanse, beba um chá, conheça alguém novo, cuide de uma planta, coma um doce, adote um animalzinho, pratique um exercício, dance como se ninguém estivesse olhando, se sinta vivo. Os segundos passam em instantes, viva seus dias como se fosse o último, se declare para as pessoas como se não houvesse amanhã. Priorize-se, cuide da sua saúde mental, a vida é muito valiosa para deixar de ser vivida.


PERFIL

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Menésia: mulher da roça,

da política e da família Menésia Simião, 42, é natural do Sítio Caiçara, zona rural de Várzea Alegre. Ela desenvolveu seu trabalho na agricultura, na política e no movimento sindical, derrubando barreiras do machismo e rompendo padrões nos cargos que ocupou. Sua atividade principal é a agricultura e, paralelo a isso, ministra aulas em faculdades, promove cursos, trabalha com educação popular e está como vereadora pelo Partido dos Trabalhadores (PT) na Câmara Municipal de sua cidade. TEXTO | Aline Fiuza FOTOS | Arquivo pessoal


Criada por uma família humilde, Menésia teve uma infância simples e cheia de memórias felizes. A mais velha de seis filhos, aos três anos de idade foi morar com seus avós maternos e por eles foi criada, recebendo amor, cuidado e muito incentivo para estudar, trabalhar e nutrir uma paixão pela agricultura. Ela conta que seus avós não sabiam ler, mas tinham um filho que estudava na cidade e possuía vários livros didáticos. Assim, ela passava tardes folheando esses livros, observando as figuras, o que contribuiu para sua aprendizagem da leitura, começando a ler muito cedo. Desde então, desenvolveu uma afinidade com a leitura e com os livros. Deu inícios aos estudos com sete anos de idade, no grupo escolar de sua comunidade, onde estudou até a terceira série do Ensino Fundamental. A partir daí, teve que enfrentar os primeiros desafios que surgiam na sua caminhada. Menésia passou a estudar na cidade, na Escola Figueiredo Correia, localizada a 15 km da sua comunidade. Assim, fazia diariamente esse longo percurso para

poder manter seus estudos ativos. Mas a distância não era a única dificuldade, ela também teve que enfrentar o bullying na escola. “Foi um período que eu me encontrei com várias dificuldades. Eu sempre fui do sítio, meu jeito sempre foi de pessoa da zona rural e eu sei que não existia essa expressão de ‘bullying’ ainda, mas hoje eu tenho certeza que o que eu passei naquela época é o que hoje é considerado bullying. Por eu ser uma menina do sítio e poucas pessoas serem do sítio na escola em que eu estudava, durante o inverno, eu chegava na escola suja de lama e durante o verão era a questão da poeira, de terra nos olhos e nos pés. Isso chamava muito a atenção dos colegas da cidade, que ficavam rindo da gente, cochichando”, recorda. Mas essas dificuldades não a impediram de sonhar e de dar continuidade aos seus estudos. Nesta escola, permaneceu até a sétima série e depois passou a estudar no turno da noite na Escola Presidente Castelo Branco, onde concluiu o Ensino Fundamental e o Médio, em 1997. Por não ter opções de cursos superiores Menésia deu seus primeiros passos na política no grêmio estudantil da sua escola, em 1993. ou trabalho para desenvolver, ela decidiu cursar o “Ensino Médio Científico” na Escola Professora Maria Afonsina Diniz. Em 2000, após a conclusão desta modalidade, a estudante teve a oportunidade de fazer uma capacitação, em Minas Gerais, para trabalhar com jovens e adultos através do programa “Alfabetização Solidária”. “Isso me abriu os olhos para muitas coisas que hoje eu compreendo e respeito na educação e também com os adultos, as dificuldades que eles têm de aprender”, diz. Ela ainda cursou a graduação em Letras pela Universidade Regional do Cariri (Urca). “Eu sou defensora assídua do ensino público. Estudei a minha vida inteira em escola


Se a gente pudesse viver exclusivamente da roça [...] seria muito bom. Porém, ainda falta muita organização, muito trabalho e, principalmente, políticas públicas

pública, universidade pública e meus dois filhos também estudam em escola pública. Eu sou defensora do serviço público no Brasil e eu acredito que tanto o SUS [Sistema Único de Saúde], como o Sistema Educacional no Brasil, só vão melhorar a partir do momento em que as pessoas que têm influência na sociedade fizerem parte dele”, observa.

Agricultura e qualidade de vida Até a geração dos seus pais, toda a família de Menésia viveu exclusivamente da atividade rural. Porém, com as mudanças ocorridas ao longo do tempo, hoje é necessário conciliar a agricultura com outras atividades, para conseguir uma melhor qualidade de vida. Mesmo diante dessa realidade, a vereadora sempre foi motivada por sua família a gostar da agricultura e, por isso, permanece nessa função até hoje, buscando alimentar essa paixão também nos seus filhos. Para manter o vínculo com a agricultura, eles cultivam, no quintal de casa, algumas hortaliças, milho e feijão e criam galinhas, exclusivamente para o consumo da família. Segundo a agricultora, desde os seis anos, ela acompanhava seus avós na roça e até praticava matemática contando os grãos que se colocavam nas covas. Aos 10 anos, a pequena agricultora permanecia na plantação durante todo o expediente, das 6h30 às 10h30, e voltava para casa apenas na hora do almoço. “Eu ia por prazer, não era forçada. Inclusive, meus avós nutriam sempre essa história de que eu precisava estudar, queriam que eu fosse uma

Para manter o vínculo com a agricultura, Menésia incentiva os filhos à atividade e eles cultivam hortaliças, milho e feijão e criam galinhas, no quintal de casa, para consumo familiar.

professora, não queriam que eu vivesse apenas de roça”, lembra. Apesar de motivada e gostar de trabalhar na roça, ela sabe que viver exclusivamente da agricultura é um desafio muito grande. Por isso, adentrou nos movimentos sindicais em busca de melhores condições de trabalho para a classe rural, e avalia a situação: - Para o agricultor e a agricultora, conseguir conciliar outras atividades ao trabalho agrícola é fundamental para que se tenha melhor qualidade de vida. Se a gente pudesse viver exclusivamente da roça, das atividades agrícolas, seria muito bom. Porém, ainda falta muita organização, muito trabalho e, principalmente, políticas públicas, para que a gente possa de fato implantar uma agricultura que seja totalmente sustentável e que nos dê a garantia de uma vida digna.

‘Eu fazia política inconscientemente’ No âmbito político, Menésia deu seus primeiros passos ainda no colégio, com sua participação no grêmio estudantil da Escola Figueiredo Correia, no ano de 1993. Na agremiação, ela atuou como secretária e, junto com seus colegas da diretoria, começou a fazer sugestões e questionamentos à esJaneiro 2021 |

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Desde 2000, Menésia é filiada ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Várzea Alegre. Em 2013, foi eleita a primeira mulher presidenta da organização.

cola, sobre fatores que poderiam melhorar ou que eles não concordavam. Hoje, ela atua na Associação Comunitária do seu sítio, desde a sua fundação, no início dos anos 90. A organização foi criada com o intuito de buscar melhorias para a comunidade, como acesso à energia elétrica, abastecimento de água e uma beneficiadora de arroz. Assim, foi através das ações políticas da instituição, que a comunidade alcançou as melhorias necessárias. “Eu lembro que quando a Associação foi fundada, eu tinha 13 ou 14 anos e não era idade suficiente para participar, mas eu já estava lá nas reuniões e no livro de ata já constava minha assinatura. No tempo, eu fazia política inconscientemente”, diz.

Carreira sindical Em 2000, Menésia decidiu expandir seus trabalhos políticos e se filiou ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Várzea Alegre (STTR/VA). A organização visa a melhoria da qualidade de vida e, principalmente, a manutenção e a obtenção de direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. No ano seguinte da sua filiação, a sindicalista recebeu o convite para fazer parte de uma chapa 62 | Bárbaras

para concorrer às eleições da diretoria. Assim, ela foi eleita a primeira Secretária da Juventude da instituição. Mais de uma década depois, em 2013, Menésia foi indicada para a presidência e eleita a primeira mulher presidenta do Sindicato. Sua trajetória na organização soma os cargos de membro efetivo da diretoria durante quatro mandatos, sendo o pri-

Não é mérito exclusivo meu. É mérito de uma luta histórica das mulheres para ocupar esses espaços e de fazer alguma coisa para que outras mulheres, no futuro, conseguissem


meiro como Secretária de Juventude, dois mandatos como Secretária de Políticas Sociais e um como Presidenta. A sindicalista afirma que, em seu último mandato, buscou valorizar e fortalecer o elo com as comunidades e os associados. Foi nesse período em que eles conseguiram estar mais próximos das pessoas do campo, pois realizavam, constantemente, reuniões de associações, rodas de conversa e outros encontros, visando a formação pessoal e profissional das pessoas do campo. - Quando eu cheguei no Sindicato, eu compreendi que aquilo que eu sempre fiz era um ato político. A partir daí, não parei mais. Também foi graças ao Sindicato que eu tive a oportunidade de fazer muitos cursos de formação na área política e sindical e foi assim que descobri o feminismo e passei a militar nesse movimento.

Desafios partidários Seu passo seguinte foi no Partido dos Trabalhadores (PT), onde Menésia encontrou uma grande escola de formação para sua vida política. Filiada desde 2001, ela participou de inúmeras atividades, palestras e cursos, como a especialização em Gestão Estratégica em Políticas Públicas. Com sua trajetória no movimento político, foi eleita, em 2017, presidenta do Diretório Municipal do PT de Várzea Alegre - mais uma vez, como

a primeira mulher a ocupar um cargo -, através de eleições diretas. O episódio aconteceu menos de um ano após o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff e, por conta disso, ela relata, foi muito difícil, principalmente por ser mulher e estar à frente de um partido depois de ver o poder de uma mulher - presidenta do Brasil - ser tomado. Além disso, também no período da sua presidência do partido, ocorreu a eleição de Jair Bolsonaro (sem partido), em outubro de 2018, que foi considerada uma derrota do PT nas urnas, desencadeando diversas consequências que o diretório municipal precisou lidar. Ela relata que o período pós-eleições não foi fácil. Conduzir o diretório em meio àqueles acontecimentos foi um grande desafio, pois havia muitas divergências e problemas internos. “Apesar de todos os obstáculos, eu sempre trabalhei em equipe, dividindo tarefas e colaborando em tudo o que eu participava. A gente chegou ao fim deste mandato com a avaliação de que foi muito difícil de ser conduzido, mas chegamos ao final e o partido estava totalmente legalizado”, relata. Por indicação do partido, a militante fez parte da gestão municipal de Várzea Alegre a partir de 2018, na Secretaria de Agricultura. No ano seguinte, assumiu o cargo de Secretária de Desen-

Mesmo exercendo outras atividades, Menésia permanece na função de agricultora até hoje, motivada pela família.

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volvimento Agrário, abrindo as portas para outras mulheres ocuparem esses espaços de liderança. Ela permaneceu no ofício por quinze meses e, por ser a primeira mulher a assumir a Secretaria de Desenvolvimento Agrário de Várzea Alegre, havia muita expectativa. “Eu assumi em meados do mandato, então já tinham se passado dois anos de gestão. Foi um trabalho de coordenação, de apoio, de acompanhamento, de muitas visitas, de muito corpo a corpo com os agricultores, ouvindo bastante, e fomos reconhecidos como uma boa gestão durante os quinze meses que passei à frente da Secretaria”. Em 2020, Menésia encarou e venceu um novo desafio: se candidatou à vereadora e foi eleita. Agora, ela cumpre o mandato de 2021 a 2024, ao lado de outras quatro mulheres na Câmara dos Vereadores do município. Com o novo cargo, a representante política pretende inspirar a classe feminina a participar cada vez mais desse âmbito: - Sei que muitas pessoas, principalmente mulheres, me vêem como referência e esperam algo novo e positivo do meu mandato. Por isso, procuro estar atenta aos acontecimentos e demandas da população. Tenho provocado várias reflexões sobre o ser mulher na sociedade. Busco chamar as demais para fazer valer a nossa voz em defesa das mulheres e das políticas públicas que atendam às necessidades dos que mais precisam. Nessa legislatura, nossa atuação poderá abrir um debate mais amplo para o envolvimento de mais mulheres nos espaços de decisões políticas.

Mulheres na política

volvimento Agrário, além de estar entre as quatro vereadoras na gestão atual; com essas conquistas, a varzealegrense não esconde seus sentimentos de gratidão e felicidade, principalmente, por saber que contribuiu com a história da participação das mulheres nesses espaços do município. - Eu sou meio desprovida de vaidades, mas me sinto lisonjeada por ser a primeira a estar à frente desses espaços e reconheço a dedicação de todas as mulheres que me deram forças para que eu pudesse chegar até aqui. Também reconheço o trabalho das que tentaram e que não alcançaram. Não é mérito exclusivo meu. É mérito de uma luta histórica das mulheres para ocupar esses espaços e de fazer alguma coisa para que outras mulheres, no futuro, conseguissem. Eu apenas ocupo um espaço que já estava sendo discutido há muito tempo, a necessidade de mulheres na política. Apesar de haver poucas mulheres ocupando os cargos majoritários nos municípios, nas Assembleias Legislativas e no Congresso, a vereadora já enxerga sinais de possíveis mudanças e se diz esperançosa. Para ela, o principal desafio de ser uma mulher na política é se impor e se colocar no mesmo nível de discussão dos homens sem abaixar a cabeça: - Quando a gente começa a frequentar debates e espaços onde predominantemente, em toda a História, foi dominado, ocupado e pensado para homens, a gente chega lá de forma bem minoritária e é claro que nos sentimos meio perdidas e um pouco pequenas diante de tudo. Isso dificulta muito a nossa entrada de forma mais acirrada e efetiva na política. Diante dessa realidade, ela diz que já sofreu discriminação por ser mulher e ocupar um cargo político. “Não aquela discriminação aberta e declarada, mas a gente consegue perceber algumas formas de discriminação até na forma das pessoas nos olharem e se dirigirem. Algumas vezes, a gente se apresenta dizendo o espaço que está ocupando e as pessoas nos olham dos pés à cabeça. Você percebe que estão fazendo um julgamento prévio”, pontua. Apesar disso, Menésia reafirma sua esperança pelo fim dessa discriminação, já que muitas coisas mudaram numa velocidade maior do que se imaginava. Ela acredita que, por existir muitas mulheres empoderadas e outras se empoderando, esse movimento em busca de mudanças tem se fortalecido.

Menésia foi a primeira mulher a ocupar as presidências do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais, do diretório municipal do PT e a assumir a secretaria municipal de Desen-

Quando as mulheres compartilham suas vivências e experiências, falando o que passam e o que enfrentam, encorajam outras mulheres a acredita-

Eu compreendi que aquilo que eu sempre fiz era um ato político. A partir daí, não parei mais

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Feminismo


Quando resolveu ser mãe, Menésia achava que não seria “toda a maravilha” que lhe diziam. Mas foi com o primeiro filho que ela “encontrou o amor verdadeiro”.

rem que não estão sozinhas, que podem mudar a realidade e que juntas são mais fortes. Assim é a atuação de Menésia no movimento feminista, além de realizar ações cotidianas, dialogando com homens e mulheres. “Eu sou defensora da igualdade de gênero na sociedade. Eu não defendo que nós, mulheres, estejamos na frente. A gente só não quer estar tão atrás. A gente quer estar de igual para igual, ou seja, do lado”. A agricultora sempre procura causar reflexões sobre o papel das mulheres na sociedade, abordando temas como a exploração sofrida por elas ao longo da História e como os diversos conceitos de inferioridade atribuídos às mulheres, que persistem até hoje, podem ser desconstruídos. Entre as expectativas de Menésia para o futuro está o desejo por uma sociedade mais justa e igualitária: “Eu quero ver a paridade acontecer em todos os espaços da sociedade. Quero que políticas públicas sejam implantadas com capacidade de atender às necessidades básicas de educação,

saúde e cultura a todas as pessoas do campo e da cidade”, destaca.

‘Função que me faz mais feliz’ Além do sucesso profissional, Menésia fala da sua satisfação pela vida pessoal: a família que constituiu é o seu maior orgulho. Mãe de Bernardo e José, ela diz que encontrou na maternidade a sua maior felicidade: - Eu só fui mãe aos 36 anos de idade. Eu não achava que ter filhos era a melhor coisa do mundo e preferi fazer outras coisas antes. Dei prioridade aos estudos, trabalhos e viagens. Quando decidi pela maternidade, ainda achava que isso, talvez, não fosse toda a maravilha que diziam ser. Mas, hoje, acho que se eu tivesse sido mãe mais cedo, teria me dedicado exclusivamente, porque ser mãe é uma coisa sem explicação. Eu tive meu primeiro filho e foi um encontro com o amor verdadeiro. Após cinco anos, tive o segundo, que considero meu extraordinário, pois foi sem esperar e sua chegada veio só aperfeiçoar as nossas vidas. Eu conJaneiro 2021 |

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sidero a maternidade a minha função que me faz mais feliz.

‘Nunca impossível’ Ao longo da caminhada, Menésia enfrentou dificuldades e superou obstáculos sem pensar em desistir dos seus ideais. Com luta e determinação, quebrou barreiras impostas pelo machismo, assumindo cargos na agricultura, no movimento sindical e na política, nunca antes ocupados por alguém do gênero feminino. Assim, ela abriu espaço para que outras mulheres e meninas sonhem e adentrem esses espaços que também são nossos por direito. Mulher da roça, da política e da família, Menésia prova, todos os dias, que nós somos tão capazes quanto os homens de ocupar qualquer espaço, acreditando que é através dessa luta constante e diária que será possível ver mulheres cada vez mais em evidência e sendo respeitadas. “Ser mulher na sociedade em que vivemos é muito difícil. Ousar ocupar espaços de poder e decisões é, então, quase impossível. Mas eu digo: quase. Nunca impossível”, finaliza.

Menésia com seus filhos, Bernardo e José.

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CONTO

Participando do

(re)nascimento 19h. Esse era o horário de início de mais uma noite de estágio e de plantão de Maria Andrezza Gomes Maia, estudante de Medicina da Universidade Federal do Cariri (UFCA) e bolsista do projeto “Arte de Partejar”, vinculado à Pró-Reitoria de Cultura da instituição, que divulga informações sobre gestação, parto e pós-parto, estimulando a autonomia e empoderamento feminino nessas fases. Neste conto, Andrezza traz percepções do seu cotidiano no ambiente hospitalar enquanto estagiária e descreve sua primeira assistência a um parto, numa maternidade de Juazeiro do Norte (CE). TEXTO | Andrezza Maia ILUSTRAÇÃO | Stephany Barbosa de Souza

Naquela noite, subi os vários e vários degraus molhados após uma leve neblina bem comum durante o mês de janeiro na terra do Padre Cícero. Degraus pretos, molhados e cobertos pelas folhas e poeira que caiam daquela imensa árvore, que dava as boas (ou más) vindas a todas e todos que chegavam naquela maternidade. Degraus que já presenciaram chegadas esperançosas, tristes, preocupadas e saídas cheias de alegria, renovação, mas também de angústia. Subi os degraus, cumprimentei o pessoal da recepção como sempre fazia. A recepcionista já era conhecida por mim e passava a informação de quem seriam os médicos que eu teria o gosto (ou o desgosto) de passar as próximas 12 horas. Passei pela triagem e, para minha surpresa, não havia nenhuma buchuda* esperando atendimento. Os estudantes e profissionais do turno do dia realmente haviam cumprido seu papel de atender. Desci as escadas. Eram muitas escadas. Várias vezes ao longo do estágio, me perguntava o porquê de tantas escadas, de tantos degraus, não conseguia aceitar que era apenas um assunto da engenharia, da construção. Degraus faziam com que você se esforçasse, saísse de um nível menor para um maior ou o contrário. Os degraus presentes naquela maternidade transportavam as buchudas, que chegavam cheias de dores - na sua maioria -, para um andar superior, onde teoricamente teriam 68 | Bárbaras

atendimento e conseguiriam ser curadas daquela dor. Pensando nisso, lembrei do debate sobre o paraíso, que ainda hoje é um mistério tão discutido por religiosos e não religiosos. Cresci ouvindo que as almas bondosas tinham um lugar reservado no céu após a morte e diziam que lá era lindo. Tentei fazer uma analogia com as escadas daquela maternidade, será que o motivo de tantas escadas seria levar as buchudas para um hipotético céu, onde participariam de um ritual de cura e depois voltariam novamente para o andar de baixo, que seria aqui a Terra, onde estariam curadas e seguiriam felizes sem dor? Confesso que tinha muitos pensamentos e criei muitas teorias sobre aquela maternidade ao longo dos vários e vários plantões do estágio. Desci os numerosos degraus até chegar ao repouso dos estudantes. Nunca entendi porque chamavam de repouso, eu mesma nunca consegui repousar de verdade ali. Era um quartinho improvisado, duas beliches e duas camas, uma geladeira e um armário sem tranca no canto, diziam que não podíamos confiar em deixar os pertences ali, mas eu nunca me preocupei muito até porque não tinha nenhum pertence tão valioso assim para ser roubado. Também tinha um banheiro no quartinho, nunca vi aquele banheiro limpo, era aquele lugar da mater-


nidade que o pessoal da limpeza sempre se esqueceu de dar uma passadinha para olhar. Coloquei meus pertences na cama de solteiro que tinha o melhor colchão, sempre chegava uns minutinhos mais cedo para garantir aquela cama. Segui pelos corredores, subi as escadas e fui para a ala da maternidade. Logo vi que o plantão de hoje seria com duas técnicas maravilhosas. Era para compensar, pois eu nunca dava sorte de ter plantão com obstetras que realmente fizessem o certo. O movimento na maternidade não era dos maiores, tinham duas buchudas em trabalho de parto e duas esperando para realizar curetagem. Duas sensações tão diferentes em quartos do mesmo corredor. Enquanto duas aguardavam a chegada da vida, o encerramento de um ciclo de espera e início de um ciclo de maternidade e de amor, as outras esperavam o procedimento para finalizar aquela dor que, quando não se refletia na dor física, compensava na dor emocional pela interrupção de um sonho ou idealização. Nunca gostei de romantizar esse processo de gestação. Sempre que começava a pensar em toda a alegria de um nascimento, lembrava de tantas e tantas mulheres que conhecia e já havia participado do atendimento, que não sabiam como criariam aquela nova vida, não tinham o apoio do genitor da criança, não tinham o apoio de familiares. Realmente a gestação e o parto não são lindos para todas as mulheres, da mesma forma que um abortamento não é encarado com tristeza por tantas outras. Perder algo que não se queria é doloroso? Definitivamente não, e por que seria se tratando de uma gestação? Mais uma de tantas reflexões que fiz durante meus plantões no estágio. As técnicas maravilhosas me disseram que os partos das buchudas na maternidade ainda demorariam um pouco para acontecer, pois estava um pouco longe da dilatação total. Desci novamente a escada e fui para a sala de triagem. Antes de perguntar à recepcionista legal quem seriam os médicos de plantão no dia, os encontrei no corredor. “Mais um plantão no estágio que não conseguirei aprender o certo a se fazer”, pensei. Uma sensação de desgosto brotou dentro de mim. Que eu lembrava, aquele era o décimo plantão do estágio e eu não havia conseguido ainda prestar assistência a um parto normal; sempre que tinha um parto, eu chegava atrasada ou alguém passava na frente e segurava o menino primeiro que eu. Logo eu que gosto tanto de falar com buchudas, de orientar, ainda não consegui sentir a sensação de partejar* e participar do (re)nascimento. Segui para a triagem. As horas foram passando e as buchudas foram chegando para compartilhar

suas dores, ansiedades e medos. Enquanto colhia a história de mais uma buchuda em pródromos*, escuto o choro de mais um recém-nascido chegando a esse mundão, filho de uma buchuda que estava na maternidade. Eu já estava perdendo as esperanças de conseguir auxiliar em um parto naquele plantão. Meia-noite. Essa hora marcava a divisão dos horários dos estagiários. Para minha felicidade, eu havia ficado com o primeiro horário, que significava ficar acordada até às 3h e depois só acordar na hora que o plantão terminasse, imaginava eu. Já era quase 1h da madrugada, quando vejo o nome de uma nova buchuda no sistema. Pedi para que ela entrasse e se sentasse, estava com seu companheiro. Mulher jovem, 21 anos, minha idade. Negra, com algumas tatuagens pelo corpo que demonstravam que apreciava bastante as flores. Eu também acho as flores lindas. Era a buchuda das flores. Trazia no rosto umas marcas de preocupação, de medo, era o seu segundo filho e aparentemente não tinha contato com o primeiro. Todos meninos. Poucas consultas de pré-natal e uma gestação não planejada, mas que desejava. Já estava no tempo de parir e tudo indicava que realmente estava em trabalho de parto. O médico chegou, examinou e lá estava com 5 cm de dilatação. Papéis prontos para a internação e ela foi para a maternidade. O hipotético céu onde suas dores seriam curadas. Esqueci de falar do companheiro. A representação de tantos e tantos homens que tive o desprazer de me deparar nos vários e vários plantões do estágio. Também jovem. Não transmitia nenhuma preocupação nem ansiedade com a chegada da criança. Não apoiava a buchuda nem a ajudava a enfrentar as dores que vinham a cada contração. Mais uma buchuda que sofria calada sem o apoio do companheiro, que não devia nem ser chamado assim, pois nem companhia parecia que estava disposto a fazer. Senti que aquela era a oportunidade que teria de participar e auxiliar em um parto. Decidi que naquela madrugada não iria dormir. Fiquei na ala da maternidade a madrugada inteira, ia até o quarto ver a buchuda das flores, estimulava a se movimentar, a fazer exercícios na bola, incentivei. Estava realmente aprendendo a partejar. Sentei em uma cadeira na sala das técnicas, já eram quase 5h da manhã. A buchuda das flores resolveu caminhar pelo corredor e disse que não precisava de ajuda. Fiquei a pensar quantas e quantas mulheres que já caminharam por aqueles corredores à espera das suas crias. Já caminharam para pensar como iriam criar seus filhos, como seria sua Janeiro 2021 |

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vida após o nascimento e rezando para que aquilo passasse logo para acabar com a dor que vinha a cada contração. A buchuda das flores voltou para o quarto e expressou o aumento das dores. Fui chamar o médico. Dilatação total. Eu e as técnicas maravilhosas a levamos para a sala de parto. O companheiro não estava no quarto nessa hora, tinha ido atrás de café, realmente não fazia nem companhia. “Agora é que não vou sair de perto dela”, pensei e seguimos para a sala de parto. Olhei no relógio e já eram 5h30. Uma das técnicas a colocou na cama. A buchuda das flores gritava a cada contração e cada grito chegava para mim como uma flecha de ansiedade e medo. Sim, eu estava com medo. Finalmente estava auxiliando no primeiro parto normal que tanto esperei e estava com medo. Pensei em tantas outras situações na minha vida que tive medo. Lembrei também que em todas elas eu havia conseguido. Acho que o medo impulsiona e junto com a coragem faz com que consigamos alcançar o que tanto queremos. Coroou e eu tive que colocar a luva para conseguir aparar aquele recém-nascido. O medo e a ansiedade fizeram que eu quase não acertasse cada dedo nas luvas. Ajeitei ali, ajeitei aqui e as luvas estavam nas mãos aguardando a grande chegada. A técnica maravilhosa estava ao meu lado falando o que eu deveria fazer, enquanto isso, minhas mãos já envolviam quase instintivamente aquela cabecinha pequena. Em meio a um grito, o menino nasceu. Foi tudo bem rápido. No intervalo de um piscar de olhos me vi segurando aquele menino. Coloquei quase instantaneamente na barriga da não-mais-buchuda das flores. “Nasceu!! Parabéns!!”, falei quase gritando. Ela havia conseguido, nós havíamos conseguido, ela e eu. Ela conseguiu parir seu filho e eu consegui auxiliar ativamente no primeiro parto normal. Senti um alívio imediato. Acho que é um alívio parecido com o que o da ex-buchuda das flores sentia. O nome era Davi. O menino Davi. Eu, mais uma vez, parei para imaginar quantos meninos e quantas mães já haviam nascido e renascido naquela sala de parto. Pensei também em quantas mães naquela sala de parto não puderam segurar seus filhos com vida. Pensei também nas mães que sonham em ter um filho para segurar. Pensei em tudo. A mãe das flores estava bem e feliz com seu Davi. Não havia laceração nenhuma e o bebê estava chorando bem. Lembrei da minha professora da faculdade que sempre dizia que um parto sem laceração é um parto com uma assistência boa. 70 | Bárbaras

Pensei que fiz uma primeira assistência ao parto boa e isso me deixava ainda mais feliz. Aquela sensação de paz, de alegria e de realização tomava conta de mim. Por causa de toda correria da faculdade, não lembrava da última vez que tinha me sentido daquela forma. “Eu auxiliei no primeiro parto normal”, não tirava essa frase da cabeça. O pai chegou com um copo de café, atordoado, sem saber o que fazer. “Já nasceu?”, interrogou. “Lindamente”, fiz questão de responder. Olhei no relógio e eram 6h15min. Abri um longo e grande sorriso para a mãe das flores e desejei saúde na nova fase. Sempre desejo saúde para as pessoas. Pessoas com saúde podem lutar e conquistar o que querem. Naquele dia, estava desejando saúde para todos. Desejei saúde para a moça da cantina que me entregou o bom café com leite. Fui para o “repouso” pegar minhas mochilas, que naquele plantão não haviam sido abertas. 7h e o plantão acabou. Desci os degraus pretos, molhados e cheios de folhas. Degraus que estavam presenciando uma estudante radiante após ter participado do primeiro (re)nascimento.


Glossário Buchuda: Termo regional e carinhoso, escolhido pela autora, para

retratar as mulheres gestantes, por ser muito ouvido em seu ambiente familiar. É usado no texto para demonstrar proximidade e acolhimento à história de cada mulher que marcou seu período de estágio na área de ginecologia e obstetrícia.

Partejar: Verbo usado para se referir ao ato de auxiliar a gestante

durante o trabalho de parto, zelando pela saúde dela e do bebê. Um profissional que sabe partejar é aquele que monitora a saúde da mulher e do seu filho, não interferindo na autonomia feminina no parto.

Pródromos: Contrações uterinas irregulares, que variam de intensi-

dade e duração. Podem se iniciar dias ou semanas antes do trabalho de parto propriamente dito, que é caracterizado por contrações uterinas de maior intensidade, regulares e em intervalos de tempo menores. É importante que as gestantes saibam diferenciar os pródromos das contrações do trabalho de parto, para evitar ir à maternidade antes do tempo.


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