Bárbaras #4

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BÁRBARAS JULHO/AGOSTO DE 2020 | ANO 3

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Carta às leitoras Durante uma palestra em Juazeiro do Norte (CE), a jornalista e escritora Eliane Brum afirmou que escrever é “fazer marcas no corpo”. Isso me lembrou imediatamente o trabalho realizado na Bárbaras. Entrar em contato com diferentes vivências de mulheres, ouvir sobre dores e amores, é um ato parecido com o de arrancar casca de ferida. Sempre dói em alguma parte de nós - por sororidade ou por sentir na pele o quê aquelas narrativas significam. Ao fim da escrita, estamos repletas de buracos. Quando atravessadas pelo quê é ser mulher, quebramos - como diz Brum - por partes ou por inteiro. E como é bom ter esta revista, onde expressamos nossos acontecimentos. A pandemia do novo Coronavírus marcou o ano de 2020 e atravessou a vida de mulheres. Nossa capa é assinada pela ilustradora Larissa Souza e retrata as profissionais da linha de frente dessa batalha; sobrecarregadas, elas têm seu trabalho romantizado e são chamadas de “super-heroínas” pela mídia e por governantes. Nos hospitais ou no ambiente doméstico, mulheres estão na base da pirâmide que ampara a sociedade na batalha contra a Covid-19. É o que mostram as reportagens de Izabelly Macedo e Laura Brasil. Você conhece a jogadora eleita seis vezes consecutivas a melhor do mundo no futsal? Ela é cearense e não deixou o Brasil para continuar fortalecendo o esporte aqui; Aline Fiuza traz essa e outras duas histórias. Nesta edição, a repórter também narra a trajetória de Renata Alencar, fundadora da Casa Mãe, lugar que acolhe crianças cujas mães trabalham em tempo integral. Aline e a repórter Bárbara de Alencar conversaram sobre o fortalecimento do taekwondo no interior do Ceará com Maria Ribeiro (27). Assim como todas as atletas que sofrem discriminação

de gênero, Maria revela que é tão capaz de praticar o esporte quanto homens. Natália Alves lança o questionamento acerca da pouca representatividade feminina na tecnologia e traz narrativas de mulheres que revolucionaram a área, mas permanecem invisibilizadas pela História. A juazeirense Claudete de Sá (39) contribui para o debate revelando situações da sua vida profissional como professora graduada em Sistemas de Informação. Para a repórter Julita Agapto, Francilene Pereira, de Altaneira (CE), expõe sua busca por identidade que perpassa a História e o silenciamento de seus ancestrais. Na infância, Zenilda Bispo sonhava em ser aeromoça, mas teve que alçar outros voos. Hoje, aos 60 anos, ela acredita que sua história pode inspirar mulheres e meninas e enfrentou o desafio de contar suas dores e conquistas para a repórter Jayne Machado. Nesta edição, você também vai ler os textos de estreia das colunas Diário de Uma Ansiosa e Quebrando O Armário. Na primeira, a colunista Bárbara de Alencar fala da sua relação com a ansiedade após perder a mãe e vivenciar a pandemia. Já Bento Caetano traz um relato importante sobre sua trajetória de se reconhecer como homem trans e denuncia a transfobia velada das redes sociais. A edição #4 encerra narrando a potência da colagem como comunicação visual através do olhar de Lara Alencar. Ela fala da importância dessa arte na sua formação enquanto mulher e estudante de Jornalismo, e questiona a pouca representatividade lésbica no meio artístico. Boa leitura! Laura Brasil


Expediente Reportagem Aline Fiuza Bárbara de Alencar Bento de Oliveira Jayne Machado Julita Agapto Lara Alencar Laura Brasil Natália Alves Professor orientador José Anderson Sandes Projeto gráfico Hanna França Menezes Diagramação Paulo Anaximandro Tavares Revisão José Anderson Sandes Laura Brasil Edição #4 Juazeiro do Norte, Julho/Agosto 2020 Revista produzida pelo projeto “Bárbaras”, vinculado às PróReitorias de Cultura e Extensão da Universidade Federal do Cariri (UFCA)

Colaboração Izabelly Macedo Ilustrações Alice Carvalho Andréa Sobreira Julia Marques Lara Alencar Larissa Souza Agradecimentos Fom Conradi (Leoas da Serra) Hanna França Menezes Karla Lima Revista AzMina Rose Severo Vitor Antônio Wandenberg Belém Redes sociais Instagram: @revistabarbaras Revista digital: issuu.com/revistabarbarasufca


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A Casa de Francilene: raízes e identidade Página 6 Casa Mãe: solidariedade e amor em Várzea Alegre Página 14 Páginas finitas: altos e baixos da vida de uma ansiosa Página 18 Amandinha: a melhor do mundo no futsal luta por igualdade Página 22 Mulheres ultrapassam conexões na história da tecnologia Página 30

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O espelho emocional de profissionais da saúde na pandemia Página 34 “O trabalho dignifica o homem”, mas e a mulher? Página 40 O voo de Zenilda Página 46 Quem está te obrigando? Página 52 Mulher lutadora: a busca pelo reconhecimento no esporte Página 62 Colar o quê? Página 70

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Ilustração: Julia Marques

O coração da terra, que batia no peito dos teus ancestrais, achou morada pra bater no peito teu.


PERFIL

A Casa de Francilene

raízes e identidade Em meio a tantas raízes seguras no solo rico, fértil e repleto de histórias da cidade de Altaneira (CE), começa a trajetória de Francilene Pereira Oliveira (24). Menina com pressa de viver, mulher que fez da natureza refúgio e, de suas origens, identidade. Diante de todas vocês, leitoras, afirmo: se a terra pudesse, abraçaria Fran de volta, da mesma maneira doce e gentil que por ela foi abraçada… TEXTO | Julita Agapto FOTOS | Arquivo pessoal

Nascer é um processo, mas esperar não parecia ser a coisa mais divertida do mundo para a pequena Francilene que, no dia 19 de março de 1996, quase fez sua mãe dar à luz em casa. “Nasci em Altaneira, no antigo Hospital Municipal. Quase nasci em casa, não sei porque essa pressa de nascer, querendo vir logo ao mundo”, conta ela, dando risada. Filha de pais agricultores, passou grande parte da vida no Sítio Tabuleiro, localizado na cidade de Altaneira, onde dona Francisca Nair Pereira, sua mãe, e José Luiz de Oliveira, seu pai, realizavam o plantio, que garantia o sustento da família. Sobre a vida no campo, Francilene fala com carinho. “Ter contato com a natureza, de você estar ali, poder brincar na terra, ter acesso à água, ao plantio, de forma tranquila e natural, é uma coisa que a criança da cidade não tem acesso. Então isso, para mim, foi muito importante”. A conexão com o solo e o amor pela natureza são coisas que a acompanham até aqui e fazem parte de sua essência. Apesar de ter sido feliz com a quietude da vida no sítio e carregar no peito o orgulho da própria terra, ela não pôde deixar de notar e questionar a forma como o homem do campo era visto na sociedade. “É uma situação de desigualdade social muito grande. A discriminação, a diferença da criança que vive no sítio e da criança que vive na

cidade. Porque tem essa questão de que na cidade é o mais evoluído, é o certo. E o homem da roça é atrasado, tem que pensar em sair de lá, ou seja, os filhos tinham que crescer com a ideia de que aquele mundo não era pertencente a eles”. Essas concepções equivocadas nunca abalaram o orgulho que sentia, pelo contrário, fizeram com que ela desejasse ainda mais representar o lugar de onde veio. Francilene conta que sempre teve gosto por aprender, e que quando criança queria muito frequentar a escola. Seu sonho era conseguir ler, porém, morar na zona rural não permitia que ela tivesse acesso às mesmas oportunidades de quem morava na zona urbana. Aos cinco anos, tentou ingressar direto na primeira série, mas foi recusada por não ter idade suficiente, o que só lhe seria permitido cursar no ano seguinte. “Desde pequena, eu vivenciei esse processo, de ter dificuldades por conta do acesso... Naquele dia, eu voltei para casa chorando, porque eu queria muito estudar, eu chorava para aprender a ler. No ano seguinte, fui direto pra primeira série, numa escola rural e, no final desse mesmo ano, já conseguia ler, juntar as palavras, as sílabas. Isso foi um marco pra mim, finalmente ter acesso a esses estudos”, lembra, orgulhosa. As adversidades não pararam por aí, mas Fran sempre teve o apoio e o incentivo dos pais, que emJulho/Agosto 2020 |

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era como se eu realmente tivesse chegado em casa. Isso fez parte de me reconhecer, reconhecer a minha história. A espiritualidade trouxe esse preenchimento da falta que eu sentia na minha vida

bora não tivessem terminado os estudos, sabiam ler e escrever. Sua mãe, inclusive, chegou a cursar a Educação de Jovens e Adultos para terminar o Ensino Fundamental II. “Ela trabalhava durante o dia na roça e à noite ia estudar”. Fran também recorda, com gratidão, o quanto sua mãe se fazia disponível, mesmo com o cansaço da jornada de trabalho. “Eu pedia pra ela me ensinar a ler, e ela cansada do trabalho ia ler para mim. Tinha dificuldades, problemas de vista e, na época, ela não tinha óculos, ela usava os óculos do meu pai pra conseguir enxergar e me ensinar a ler”.

Raízes e ancestralidade Quando falamos sobre raízes e ancestralidade, ela conta o quanto isso foi relevante em seu processo de autoconhecimento e descoberta da própria identidade. Sua descendência indígena sempre esteve presente, mesmo quando ela ainda não tinha consciência da magnitude e do impacto que traria para sua vida. “Eu cresci sendo chamada de ‘indiazinha’. É comum as pessoas verem uma pessoa de pele preta, um pouco amarronzada, como elas dizem, porém com um cabelo liso, e já chamar de índio”. Seus traços físicos, tão aproximados dos de seus ancestrais, estão presentes em muitos membros da família, como nos pais e primos, e é comum que as pessoas comentem o quanto todos se parecem uns com os outros. Fran explica que o fato dessas características serem tão fortes se dá por conta do parentesco entre os familiares. “O que é tão forte nos meus traços, 8 | Bárbaras

na minha herança familiar de caboclos, é que as minhas avós paterna e materna eram irmãs, meu pai e minha mãe são primos, da mesma família”, explica. As práticas passadas de geração para geração, como o contato com a terra e o plantio, a utilização das plantas de formas medicinais são, para ela, herança de um povo que teve sua história silenciada.

‘A dente de cachorro’ Francilene afirma ter passado a vida escutando relatos sobre seus avós e bisavós, contados principalmente por sua mãe. “Quando eu era criança, ouvia histórias e via como uma coisa distante. Histórias como ‘antigamente, fulano próximo, que morava no mesmo sítio, foi encontrado nas matas ‘a dente de cachorro’’. Na minha família, minha mãe me contou que a bisavó dela foi encontrada na mata, também ‘a dente de cachorro’ e o esposo a ‘domesticou’. Essa era a forma de as pessoas denominarem aquelas que moravam na mata, caboclos ou nativos, e quando encontrados passavam por essa ‘domesticação’”. Ela diz que esses relatos a faziam imaginar como tinha sido a vida para seus antepassados, mas a ausência de representatividade na sociedade não permitia que ela reconhecesse isso como parte de sua identidade e história. “Eu não via essa representatividade quando era criança. Na escola, falavam sobre isso normalmente só no Dia do Índio, mas sempre de uma forma rasa, por isso essa dificuldade da gente se auto afirmar descendente”.

Em busca de identidade O desejo de se conectar mais com a própria história foi florescendo conforme o tempo passava e, no Ensino Médio, Francilene passou a buscar mais sobre suas raízes. “Eu tive excelentes professores que me ajudaram nesse processo. Nicolau e Fabrício foram meus professores de História que me trouxeram, no período do Ensino Médio - ainda em Altaneira -, muito mais questionamentos do que eu já tinha”, conta. A jovem passou a enxergar as experiências, práticas e cultura dos avós e bisavós como parte da sua identidade também. “Os meus antepassados trazem essa ligação com a descendência indígena. Para mim, é como se fosse um retorno, porque a partir desse silenciamento que houve na nossa história, dificultando saber de detalhes perceptíveis em traços e costumes, assim como na de diversos outros povos, isso é uma forma de se reconectar com a minha essência. Então, se a gente tem um ciclo na nossa família, a


Ao lado de sua mãe Francisca, Fran comemora a graduação em História na Universidade Regional do Cariri (Urca).

gente não se perde. Um dia, alguém daquela família vai sentir a necessidade de buscar e se conectar, e foi assim que eu percebi que precisava conhecer melhor a minha história”. Foi por meio dos estudos e dos programas sociais que fez parte, enquanto ainda morava em Altaneira, que Francilene recebeu esse incentivo. Ela relata que sempre buscou ir por um caminho humanitário, por considerar suas raízes e a sua história como mulher, de pele preta e descendência indígena, filha de agricultores e moradora de zona rural. A preocupação com o alcance dessas causas e debates sociais, questões indígenas, raciais e de desigualdades, a levou a cursar História na Universidade Regional do Cariri (Urca), decisão muito

importante para sua evolução e jornada em busca de autoconhecimento. Antes de iniciar na Urca, Fran também trabalhou um período como comunicadora na rádio comunitária Altaneira FM, experiência que a aproximou de histórias de vida semelhantes a dela. Na rádio, ela tinha a oportunidade de dar espaço para que a comunidade se fizesse ouvir. “Era muito bom conversar com as pessoas e levar aquilo pro rádio ou até escrever matérias sobre diversas situações, desde questões políticas, a questões da zona rural ou da cidade. Foi um tempo bem proveitoso pra mim”. O ingresso na universidade foi possível graças ao ensino público e aos programas de bolsas que permitiam a ela, estudante de outra cidade, dar Julho/Agosto 2020 |

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Na busca por suas raízes, Fran se encontrou no espaço xamânico Morada da Jurema, onde pôde se conectar ainda mais à natureza e práticas indígenas.

continuidade ao sonho de se graduar. Francilene mudou-se para o Crato, em 2015, e começou o curso de História, onde pôde enxergar melhor o silenciamento de suas origens e os motivos pelos quais demorou a se encontrar nelas. “Eu comecei a enxergar uma realidade muito além do mundo que eu vivia, comecei a perceber ainda mais minha própria história”, diz ela. Fran relembrou algumas histórias contadas por sua mãe, que refletem o embranquecimento vivenciado por sua família, o qual ela só veio entender melhor ao ingressar no ensino superior. Em um dos relatos, está o caso de seu avô, Jupi Tertuliano de Sousa, que teve o nome modificado por ser considerado “nome de animal”. “O nome do meu avô era Jupi Tertuliano, foi dado a ele por índios do Pernambuco. O pessoal chamava de Júpiter, falavam que era em relação ao planeta que regia quando ele nasceu. Minha mãe não sabe qual era a etnia desses índios, ela era muito nova e é uma coisa que minha avó contava e que as pessoas não davam importância”. Ao concluir a crisma e casar, o nome do avô passou a ser Joel Pereira. Hoje, Fran diz que essa história tomou um significado diferente e é visto por ela como uma marca da opressão que povos indígenas e de descendência indígena vivenciaram e ainda vivenciam.

Morada da Jurema A vinda para o Crato também permitiu a estudante conhecer o espaço xamânico Morada da 10 | Bárbaras

Jurema. “Eu conheci um professor que é ligado ao espaço. E esse lugar me trouxe a vontade de conhecer e de participar, coisa que eu não sentia por nenhum outro lugar, e eu comecei a frequentar e conhecer melhor as práticas que vêm de tradições indígenas, práticas a partir da fé. O xamanismo é algo que eu sempre gostei, por ter o contato com a terra, com a natureza, o gostar de plantas, e isso foi o que me encantou a princípio”, conta com entusiasmo. Francilene diz que apesar da espiritualidade ser algo presente em sua família, buscou se manter distante disso e trilhar um “caminho mais cético”. Porém, ao buscar se conectar com suas raízes, optou por abraçar sua credulidade e, na Morada da Jurema, encontrou o que procurava. “Eu não sabia exatamente o porquê, mas eu me senti bem, e era como se eu realmente tivesse chegado em casa. Isso fez parte de me reconhecer, reconhecer a minha história. A espiritualidade trouxe esse preenchimento da falta que eu sentia na minha vida, e eu sei que faz parte da minha ancestralidade e sei que vai fazer parte do resto da minha vida, porque é uma coisa que não tem como separar mais. Foi e é algo muito importante para minha caminhada”. No espaço xamânico, Fran fez amigos e encontrou pessoas que viriam a ser mais um incentivo pra ela na vida e na espiritualidade, dentre elas está Ciçô Inventor, seu padrinho na Morada da Ju-


rema e uma das pessoas que mais deram apoio em sua trajetória de autoconhecimento. “A pessoa que mais me incentivou e incentiva a ter orgulho das minhas raízes é Ciçô, ele é meu padrinho, já me conhecia, já conhecia minha história desde pequena, e isso me trouxe um conforto de ‘você está no caminho certo’”. Fran até brinca em como parece destino, a Morada da Jurema praticamente foi até ela e não o oposto. “Eu realmente caí de paraquedas… Foi tipo, ‘minha filha, você vai por esse caminho aqui, pega teu rumo’”.

Questão racial Pergunto sobre os preconceitos que a acompanharam durante sua trajetória e ela fala que houve um período em que não enxergava a cor da sua pele ou sua descendência como algo que a faria sofrer discriminação: “Eu via como algo normal, eu era como muitos brasileiros são, e pensava que teria uma vida normal, que isso não influenciaria, porque eu estava dentro de uma sociedade que prega as formas de você se comportar, viver… Mas era normal”. Entretanto, sua visão mudou ao perceber as diferenças de tratamento motivadas pela cor da sua pele, condição social, econômica e de gênero. O preconceito passou a ser muito mais evidente para ela. “Não tem nem como negar, primeiro porque uma mulher, considerada negra, vinda de zona rural, filha de agricultores, já é vista com um olhar pelas outras pessoas, como se elas fossem superiores, foi o que eu mais vivi. Na própria família, pessoas brancas se achavam melhores pela questão da cor e também pela questão do gênero. Foi uma coisa que desde pequena eu vivi e vivo até hoje”, relata com pesar. A jovem de 24 anos resiste e afirma que, mesmo com as dificuldades e com o fato de precisar lutar bem mais que outros - por não usufruir dos privilégios que a sociedade concede a brancos, homens cis e ricos -, conseguiu garantir seu diploma em História e orgulhar a mãe. “Para mim foi uma vitória mesmo, de uma menina pobre que veio da zona rural lá de Altaneira, cidade com menos de oito mil habitantes, e que enfrentou as dificuldades e pôde realmente dizer ‘eu consegui, eu vim de determinado lugar e estou aqui conseguindo e lutando pelos meus objetivos, pelos meus sonhos’”. Ela sabe que essa luta não para, mas cada vitória já vem com grandes motivos para comemorar. “É a luta diária de mostrar que estamos aqui, que eu estou aqui, que sou mulher, descendente de negros, de índios e que a gente é igual, mas ainda não

somos vistos dessa forma, por causa da desigualdade de tratamento, do preconceito”, conclui.

Feminismo Fran também fala sobre como o feminismo foi importante na sua luta por igualdade, mesmo quando ainda não sabia exatamente sua definição. “Todas as conquistas de direitos das mulheres contribuíram para cada passo meu, assim como para fortalecer a caminhada de reconhecimento da minha história. Desde pequena busquei me posicionar como responsável por minhas escolhas, da liberdade de ir e vir, sem me submeter ao controle que o machismo impõe. A definição do feminismo e um maior aprofundamento teórico foi algo que fui ter contato na faculdade, mas a luta por espaço, respeito e igualdade sempre foi presente na minha vida”. Ao passo que ela teve mais contato com o movimento e seus princípios, veio a entender como o sistema estava pautado numa cultura machista e patriarcal. Indignada, ela afirma: “A estrutura de sociedade que a gente vive faz com que as mais diversas relações, sejam elas de família, amizade ou relacionamentos afetivos, sejam limitadas a um modelo de vida patriarcal. Um grande desafio enfrentado diariamente”.

Espiritualidade Os comentários preconceituosos também são, muitas vezes, direcionados às suas crenças. “Aquela coisa que as pessoas colocam como ‘isso é certo, isso é errado’, mas não conhecem, e fazem afirmações preconceituosas, mesmo sem ter o conhe-

A fé, hoje, é o que me move, é o que me mantém de pé, é o meu caminho. Não é um caminho fácil, mas é um caminho a ser seguido e que traz um amparo

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Das raízes indígena e nordestina, Francilene moldou sua identidade.

cimento”, relata, falando da intolerância religiosa que já sofreu. Isso ocorre, principalmente, quando a espiritualidade não é baseada no cristianismo tradicional ou no catolicismo. O julgamento e a condenação daquela crença são impostas na sociedade e Fran vivencia isso em sua fé, mas não se deixa abalar, pois tem nela uma das coisas mais importantes em sua trajetória: -A fé, hoje, é o que me move, é o que me mantém de pé, é o meu caminho. Não é um caminho 12 | Bárbaras

fácil, mas é um caminho a ser seguido e que traz um amparo, uma força maior para lidar com as coisas da vida, da sociedade, porque a gente sabe que o dia a dia não é nada fácil. Então, ter fé, acreditar num dia melhor, num amanhã melhor, em pessoas melhores, em nós mesmos melhores, é o que me move e eu não me vejo sem.

Velha amiga A natureza é uma outra paixão da historiadora. Sua conexão com a terra e com a mata foi o que a fez buscar um curso técnico em guia de turismo, o


negra, vinda de zona rural, filha de agricultores, já é vista com um olhar pelas outras pessoas, como se elas fossem superiores

que ela afirma ser um dos ingredientes da sua essência, sua ligação com o meio ambiente. “Estar em contato com a natureza, hoje, para mim, é essencial. Estar fazendo trilha é uma coisa que eu me identifico bastante. Estar em contato com pessoas, guiando, conhecendo novas culturas, me comunicando... Essa troca de experiências, de vivenciar mesmo, estar na mata, trilhar, é uma coisa que realmente não faz sentido estar distante de mim”. Além das trilhas, rapel, escalada, acampamentos e tudo o que possa lhe trazer para perto da natureza fazem parte de suas atividades preferidas. Fran, realmente, abraça a terra como se ela fosse uma velha amiga. Ainda sobre sua ancestralidade, ela relata que sente falta de ter convivido com os avós. “Eu não tive esse contato nessa vida com eles... Então, o que eu conheço é o que a minha mãe conta, e foi primeiramente pelo que ela conta que eu busquei entender melhor a minha história”. Francilene não teve a chance de conhecer e conviver com avós e bisavós porque ainda era uma criança quando eles faleceram. Assim, o que os mantêm vivos em sua lembrança são as histórias que escuta. Ao falar sobre isso, ela diz que gostaria muito de ter conhecido a bisavó Maria - chamada de Mariinha - que carregava fortes práticas e crenças de seus antepassados. “Minha bisavó, a mãe das minhas avós materna e paterna, era quem trazia muito forte essa questão indígena, dos caboclos. Inclusive, ela utilizava o cachimbo e o tabaco, que na tradição indígena é uma forma de rezo. E, hoje, é algo que eu também utilizo”. Por isso, Francilene se sente feliz e conectada à bisavó, já que encontrou o caminho de volta para práticas e crenças que se perderam ao longo do tempo, não por culpa da sua família, mas pelo processo de silenciamento da cultura do povo indígena na sociedade. Apesar disso, ela celebra por ter conseguido se reconhecer como parte desse povo e cultura. Nossa conversa termina com a jovem afirmando que, mesmo não tendo a oportunidade de conhecer a fundo suas avós - que eram loiceiras -, seus avôs - que possuíam vasto conhecimento da medicina natural - e sua bisavó - que era ligada à espiritualidade que ela gostaria de ter compartilhado -, sua conexão com essas raízes é forte, profunda e inabalável; processo que ela resume com a frase: “Foi como chegar em casa”.

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ENTREVISTA

Casa Mãe

solidariedade e amor em Várzea Alegre No dicionário, a palavra “mãe” significa “mulher que deu a luz, que cria ou criou um ou mais filhos”. Para Renata Alencar, a palavra transborda e transcende qualquer significado. Ela idealizou o projeto Casa Mãe, na cidade de Várzea Alegre (CE), com o intuito de dar amor, carinho e lar para crianças e adolescente carentes. Hoje, para muitas crianças assistidas pela associação, “mãe” é sinônimo de Renata. TEXTO | Aline Fiuza FOTOS | Wandenberg Belém

Natural de Crato (CE), Renata se mudou para Várzea Alegre e ajudou a fundar a Pastoral da Criança da cidade. Renata sempre sonhou em ser mãe e teve três filhos biológicos. Além desses, adotou duas meninas que viviam em situação de vulnerabilidade social, Cibele e Sabrina. A partir disso, decidiu abrir as portas para ser mãe de muitas outras crianças e, no ano de 1992, fundou a Associação Beneficente Luiz Otacílio Correia, que ficou conhecida por Casa Mãe, e está situada no centro da cidade. A instituição beneficente sem fins lucrativos tem como objetivo acolher crianças e adolescentes cujas mães trabalham em horário integral e jovens vítimas de maus-tratos, exploração sexual ou subnutridas. “O principal objetivo da Casa Mãe era diminuir o índice de desnutrição, que era muito 14 | Bárbaras

grande na época. A gente tentava recuperar as crianças desnutridas como também ocupar a mente delas para que pudessem, saindo dessa etapa de desnutrição, ter uma sequência no trabalho que a gente faz. Então, incluímos algumas atividades”, explica Renata. O espaço oferta arte, educação e cultura para o público infanto-juvenil através de atividades, as quais são disponibilizadas das sete horas da manhã até o fim do dia. São oferecidas ainda cinco refeições diárias e realizadas aulas de canto de coral, teatro, balé, orquestra de violão, danças folclóricas e atividades pedagógicas. A instituição atende crianças da faixa etária de um ano e meio até a adolescência. “Quando iniciam na adolescência tem alguns que saem, mas tem outras que ficam e que já se tornam monitoras. Hoje a gente tem al-


A Casa Mãe tem o objetivo de acolher crianças, cujas mães trabalham em horário integral, e jovens vítimas de maus-tratos.

não tem nada que pague a gratificação de se fazer um trabalho voluntário e de saber que você foi referência, foi instrumento na vida de tantas crianças que já passaram por aqui. Isso tudo na somatória quer dizer amor e é o amor que Deus nos dá para que a gente possa doar para o próximo

gumas pessoas que já são monitoras e que ajudam também no trabalho”, conta. Mas, ao longo do percurso, a instituição enfrentou muitos obstáculos para manter as portas abertas e acolher a todos. A principal dificuldade são os recursos financeiros. O projeto não tem uma renda fixa, funcionando apenas com doações de parceiros e trabalho de voluntários. A Casa Mãe recebe um incentivo da prefeitura municipal, no valor de 1.200 reais, para ajudar nos gastos, mas não é o suficiente. Os professores ganham apenas uma ajuda de custo, paga através do dinheiro arrecadado em bazares, cursos e vendas de bolos. Além disso, Renata explica como a associação consegue uma renda extra: “Hoje, 10% das crianças que fazem parte das atividades são de classe média, que pagam uma taxa de 30 reais para fazer Julho/Agosto 2020 |

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balé, por exemplo, e, assim, a gente cobre aquelas que não pagam. Então é uma forma de incluir, do jeito que a gente não pode excluir a criança com menos condição, a gente também não pode excluir aquela que tem condição. É um trabalho conjunto e a convivência delas é uma coisa que vai alimentar elas para vida inteira e isso é muito bom”. Apesar dos empecilhos, o amor pelo próximo sempre falou mais alto no coração da fundadora, fazendo-a resistir. Ao longo de quase três décadas, a Casa Mãe já acolheu mais de cinco mil crianças e jovens, atualmente são 450. Annalu Almeida, estudante de Educação Física, participou das atividades durante 14 anos e relembra a importância da Casa Mãe na sua vida: “Entrei no projeto fazendo parte do balé, onde descobri o meu dom de bailarina e depois participei do teatro, mas não por muito tempo. O balé e o projeto foram muito importantes na minha vida, pois me tornaram quem sou hoje. Esse tempo que participei foi e será sempre de grande valor na minha vida”, relata. Os resultados do projeto são muitos e o principal deles é que várias vidas foram transformadas. Pessoas que poderiam viver de uma forma difícil e complicada, mas que graças à instituição, têm uma realidade diferente. Para Renata, isso traz esperança de um mundo melhor e é uma grande realização em sua vida. Além do acolhimento a centenas de crianças, ela deixa um legado na vida de todas, transmitindo ensinamentos como solidariedade e amor ao próximo. Também combate o preconceito que ainda cerca a infância e atua para quebrar tabus, contribuindo na formação de todos os atendidos pelo projeto como uma mãe realmente deve fazer. Na instituição, sobram amor e dedicação de todos que fazem parte da Casa Mãe. Renata afirma que a melhor recompensa do trabalho voluntário é contribuir com a vida das pessoas que têm menos oportunidades. “Poder atender tantas crianças que precisam de um pouco de carinho, de atenção, muitas vezes de um pouco de comida, de um pouco de tudo, isso pra gente é muito gratificante. Não tem dinheiro que pague e não tem nada que pague a gratificação de se fazer um trabalho voluntário e de saber que você foi referência, foi instrumento na vida de tantas crianças que já passaram por aqui. Isso tudo na somatória quer dizer amor e é o amor que Deus nos dá para que a gente possa doar para o próximo”. Para Renata, fundadora da Casa Mãe, a palavra “mãe” ultrapassa qualquer significado do dicionário. 16 | Bárbaras



Ilustração: Alice Carvalho

COLUNA


Páginas finitas

altos e baixos da vida de uma ansiosa Para abrir a coluna “Diário de uma Ansiosa”, a repórter Bárbara de Alencar revisita dores e obstáculos vencidos em 2020. Desde o início de ano difícil, passando pelo luto de perder a mãe, até a tomada de consciência sobre o equilíbrio ser fluido, Bárbara abre as páginas de sua vida, mostrando que apesar de forte e corajosa, ela teve de se mover para encontrar seus alicerces e superar os efeitos da ansiedade no seu corpo e na sua mente. TEXTO | Bárbara de Alencar

Cara leitora, Este texto contém conteúdo sensível que pode causar identificação e flashbacks, além de sintomas como a ansiedade.

Dois mil e vinte, para mim, foi um ano em que decidi reforçar o autocuidado. Nos primeiros dias, estava extremamente desgastada psicologicamente. Antes mesmo da virada, tive uma série de tremores, sem nem mesmo saber o porquê. A gente nem sempre sabe, ou melhor, quase nunca sabe. Passei as primeiras semanas do ano com crises, choros, tremedeiras, angústias, tonturas, sensação de desmaio, vômitos, dores no estômago, quase ninguém podia saber. Não consigo demonstrar fraqueza. Quando passei a não aguentar mais, liguei chorando pra mulher mais forte e cheia de vida que eu já conheci: minha mãe. Estava indo para o trabalho, em Barbalha, me veio uma angústia, pensei que iria desmaiar ali mesmo na parada do ônibus. Entrei no shopping e lá, tentando segurar o choro, liguei pra ela. Contei o que tava acontecendo e, pela primeira vez, mainha me incentivou a buscar ajuda psiquiátrica. Mais do que nunca, eu sentia que

precisava. Ela sabia que eu precisava e precisaria futuramente. Imediatamente, comecei a medicação. Foi um processo muito difícil, quem já passou pela fase de adaptação para alguma medicação sabe do que eu estou falando. Diversas reações adversas. Saí de um inferno para outro, todo o tempo e o tempo todo. Foram dez dias e contando, esperando meu corpo se adaptar à medicação. Durante esse período, intensifiquei as idas à minha psicóloga, sabia que precisava me cuidar e antes não tinha estado verdadeiramente entregue. Aos poucos, aconteceu. As palavras fluíam e a dor no peito amenizava. Pensei que estava ficando tudo bem. Porém, mais uma vez, um furacão chegou para mexer com minha vida para sempre. Minha mãe, portadora de doença crônica nos rins, teve várias complicações no seu quadro e rapidamente foi internada. Internações se tornaram comuns em nossas vidas, já passamos vários momentos angusJulho/Agosto 2020 |

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a importância que ela dava em cada momento e a forma como me ensinou a viver a vida intensamente, me fez ver que tudo era muito necessário

tiantes nos hospitais. Foram muitos dias confinadas, sem saber como seria o dia de amanhã, mas isso nunca deixou mainha se abalar. Lá estava ela, com as mesmas palhaçadas de sempre, tentando trazer um respiro pra família, que sempre estava ansiosa, preocupada e inquieta. Morando, estudando e trabalhando aqui no Cariri, tive que ir às pressas para Fortaleza, pois não era apenas uma internação comum, as complicações tinham atingido o coração e, além disso, ela tinha falência de acessos para hemodiálise (o que a mantinha viva, um tratamento que filtra o sangue simulando a ação dos rins), e o círculo de soluções estava cada vez mais apertado. Meus chefes foram muito bons comigo, conseguiram uma forma de eu ir de carro e chegar diretamente no hospital depois de passar a madrugada viajando, fui direto de encontro a ela e com seu olhar saudoso ecoou meu apelido pela sala: “Babizinha!!!”. Abracei ela bem forte, não a via desde o Natal, era como se nossas almas tivessem se encontrado. A gaiatinha ficou fazendo piada, dizendo que logo sairia do hospital pra gente dançar “uns funks”. Foi um dia muito difícil pra mim. Minha maior preocupação era saber controlar a respiração para passar serenidade para minha mãezinha, e eu consegui. Foi aí que eu pensei: “poxa, eu tô ficando bem!”. Durante todo o processo de idas e vindas e diversas conexões Cariri-Fortaleza, infelizmente, mainha foi piorando. Eu tava tendo enxaquecas frequentes, porém mais nada além disso.

Estrela Um dia, acordei às 6:15 da manhã com uma dor de cabeça muito forte. Tomei um remédio e tentei voltar a dormir. Algumas horas depois, às 10, meu padrasto me liga; foi aí que fiquei sem 20 | Bárbaras

chão mais uma vez e minha vida mudou completamente. Mainha havia falecido. Na mesma hora que acordei com dor pela manhã. Não quis comer a princípio, nem fazer nada, mas depois percebi que ela descansou e eu agora teria a certeza de que ela estaria sempre bem. Tive que ser muito forte, sempre tenho que ser muito forte. Meu irmãozinho precisava de mim. Consegui contar para ele que ela tinha “virado uma estrelinha”, sem chorar, e fiquei do lado dele a todo momento. Ele contava que eu era o seu “cão emocional”, que nem numa série que ele assiste. A ansiedade não dominava mais tanto meu corpo, mas eu ainda vivia no automático, com o coração acelerado e as palavras atropeladas. Minha mãe sempre preparou a gente, isso que é o mais interessante. Ela sempre foi muito franca com as questões de saúde dela e, muitas vezes, nos “assombrou” de forma desnecessária, mas quando eu enxergo o tanto que todas as conversas foram importantes, os últimos desejos, primeiro e único Natal em família que tinha se realizado, a importância que ela dava em cada momento e a forma como me ensinou a viver a vida intensamente, me fez ver que tudo era muito necessário.

Cor Mesmo com os altos e baixos, nossa vida sempre foi colorida e cheia de palhaçadas. Os dias foram se passando e meu medo era não ver mais cor. Tendo muitas insônias, tive meu retorno ao psiquiatra, que aumentou a dose do meu medicamento e receitou um remédio pra dormir… Eu não sabia mais o que era uma noite de sono. Incrivelmente, a frase que eu escutei dele antes de contar tudo que tava acontecendo foi: “você tá com um semblante tão mais bonito, tão mais você”. E, de verdade, eu me sentia mais eu. Eu, mesmo com tudo que tava acontecendo, sentia um direcionamento para a vida. Comecei a tratar minha depressão e aos poucos tudo foi melhorando. Os processos são doloridos. Quando eu menos espero, com poucos dias de luto, uma pandemia. Com ela, os efeitos que a quarentena tem em nossa cabeça, o que é normal. Não tem como estar bem quando tudo ao nosso redor não está. E você não é e nem foi a única. Em todas as situações difíceis nunca estamos a sós, mesmo que às vezes pareça. Buscar ajuda é sempre importante, não sei onde eu estaria se não fosse o alívio semanal que sempre foi poder contar com meus amigos, eles


me tiraram do fundo do poço. Com um tempo, minha família começou a me ver com olhos mais gentis, e isso foi muito revigorante pra mim.

‘Leãozinho’ Uma das últimas coisas que ouvi da minha mãe foi que eu era “Forte e Corajosa”, que nem um “leãozinho”. Temos um leão dentro de nós, que nos faz vencer nossas batalhas internas e diárias. Saiba que tem dias que não vai estar fácil, mas temos que buscar nossos alicerces para passar pelos dias cinzentos e esperar o calor dos dias de sol.

O equilíbrio é fluido

Ilustração: Luciano Landim

É engraçado como, a cada dia, existem oportunidades novas de viver, conquistar, agir, como também de fracassar, se decepcionar, se chatear e lidar com esses processos. Para uma pessoa ansiosa, assim como a que vos fala, é pensar no lado negativo, remoer isso e se anular 20 vezes por segundo. A mente acelerada faz qualquer mínimo

comentário despretensioso vagar por sua mente durante dias e dias. Passei por tanta coisa esse ano, de cabeça erguida, e me culpo a cada mínimo deslize que sensações de insuficiência me trazem. Me culpo por ter uma crise, pela baixa autoestima, por não achar que meus amigos precisam se importar comigo ou quando eles se preocupam. A culpa me tirou noites de sono. Por muito tempo, não sabia o que era dormir. A insônia e a dificuldade de saber lidar com nossa própria presença nos fere, mas é importante saber que vai passar. É só um dia ruim, e dias ruins também passam, por mais que sejam difíceis. Certo dia, um grande amigo me contou uma história de um senhor que estava no hospital e a enfermeira levou ele para refazer exames. Segundo os médicos, os resultados anteriores só poderiam ser de alguém que estivesse morto. O senhor fez os exames com toda garra e energia que tinha em seu corpo e, ao final, a enfermeira perguntou como ele conseguia fazer aquilo, como que ele já tão debilitado e tomado de enfermidades teria tanta disposição ao mesmo tempo. O senhor, com seu olhar sereno, respondeu que a vida é com um livro com duas páginas. Na primeira, à esquerda, estão os dias ensolarados, felizes, com os amigos e a família, com as conquistas, e nós precisamos aproveitar ao máximo e extrair cada segundo de felicidade, porque isso passa. Esse momento não dura para sempre. Já na página à direita, os dias nublados, com problemas, perturbações e dificuldades, precisamos olhar e enxergar: isso também passa. O equilíbrio não se trata de estabilidade, vem através da fluidez. Mais uma vez, eu digo, se a vida tem seus altos e baixos, eu sou uma montanha russa. Levo comigo a certeza que os dias ruins vêm e vão, isso me conforta, me faz ter a esperança de novas perspectivas, me ajuda a descansar e aliviar a culpa em meu peito. Venho aqui, como um livro aberto, pedir que aguente mais um pouco. Contar minha história não é fácil, nunca será fácil. Mas a gente pode aguentar, olhe para a página da direita e lembre-se: isso também passa. Eu consegui e você também pode. Se ninguém te disse hoje - ou se já disse -, vou reforçar: você tem amigos, você é amada, é responsável, é querida, é preciosa, capaz, inteligente, linda, por dentro e por fora, é corajosa, dentre outras mil qualidades. Você sempre pode ser sua melhor versão. Julho/Agosto 2020 |

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ENTREVISTA


Amandinha: a melhor do mundo

no futsal luta por igualdade

O futsal é um esporte democrático. Basta uma bola e algumas pessoas para ser praticado independente de classe social, raça e religião. Mas por que demorou tanto tempo para ser emancipado de gênero? Hoje, as mulheres - que já foram proibidas de praticar esporte - vêm chutando e derrubando várias barreiras que sustentavam esse preconceito. E estão mostrando que elas também têm o domínio da bola e que podem ser tão boas quanto os homens. Por que não melhores? Amanda Lyssa de Oliveira Crisóstomo, mais conhecida como Amandinha, é uma prova disso. TEXTO | Aline Fiuza FOTOS | Fom Conradi

Amandinha é natural de Fortaleza (CE) e foi no bairro Conjunto Ceará, onde morou durante sua infância, que ela descobriu o seu amor pela bola e pelo futsal. Desde pequena, acompanhava o pai e o tio nas partidas locais e invadia as quadras nos intervalos para brincar de bola. Seus primeiros passos em quadra como jogadora aconteceram em um projeto social do seu bairro, uma escolinha de futsal para meninos. Também foi lá onde ela se deparou com o preconceito no esporte pela primeira vez. Na competição de estreia, ela já sentiu na pele a discriminação dentro da modalidade. Os times não queriam aceitar a presença de Amandinha no torneio e se negavam a enfrentar um clube que tinha uma menina. Mas o seu técnico, André Lima,

lutou pelo espaço da jovem na quadra e fez com que ela jogasse. Assim, a sua passagem no projeto social foi meteórica. Amandinha destacou-se nos torneios amadores, foi convidada para jogar um campeonato intercolegial e ganhou uma bolsa de estudos numa escola particular de Fortaleza. Aos 15 anos, ela já atuava na seleção de futsal feminina do Ceará e recebeu uma proposta do clube profissional Barateiro Futsal, de Brusque (SC). Disposta a ir atrás do seu sonho, a cearense deixou a casa dos pais ainda na adolescência e, na região Sul, amadureceu e formou-se como pessoa e atleta. Com apenas 19 anos, conquistou seu primeiro título no profissional, além de várias premiações individuais. Com tanto talento e destaque, Amandinha conquistou ainda mais: chegou à Seleção Brasileira. A jogadora estreou na Seleção Brasileira de Futsal Feminino em 2013, conquistando a Copa do Mundo daquele ano e repetindo o feito pelos dois anos seguintes, sendo campeã mundial também nos anos de 2014 e 2015. A Seleção Brasileira é hexacampeã mundial de forma consecutiva, sagrando-se vencedora em todas as edições de que Julho/Agosto 2020 |

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participou. Amandinha é considerada uma das principais responsáveis por essa hegemonia, por toda dedicação e luta na quadra e também fora dela. Em 2017, o Barateiro encerrou as atividades no futsal feminino adulto, o que fez com que a jogadora mudasse de clube, escolhendo o Leoas da Serra, de Lages (SC), onde está até hoje. As grandes atuações pelo Leoas da Serra despertaram o interesse de clubes de fora do país. Porém, a campeã tem um compromisso muito maior com essa modalidade. Ela acredita que ganharia até quatro vezes mais no exterior, mas estaria abandonando o esporte no Brasil. Para ela, o título mais importante que lhe falta é mudar a realidade do futsal feminino no país. Além de vencer com a camisa do Barateiro, do Leoas da Serra e da Seleção Brasileira, Amandinha marcou seu nome na história do esporte ao conquistar por seis vezes consecutivas o título de melhor jogadora de futsal do mundo de 2014 a 2019. Recordista da categoria na competição, o prêmio é chamado de Futsal Awards, concedido pelo site Futsal Planet, sendo considerada a principal premiação desse esporte. “Desde a primeira vez que eu conquistei o prêmio, sempre as próximas tiveram um gostinho e uma sensação diferente. Na primeira vez eu só queria me divertir dentro de quadra, eu só queria ser feliz e quando eu recebi a notícia, eu pensei ‘que bacana, que massa

meu trabalho sendo recompensado’, mas eu não tinha maturidade suficiente para entender a posição que Deus tava colocando na minha vida. E agora, depois de tantos anos e tantas vezes conquistando esse título, eu me pego pensando em quantos anos passaram e no quanto eu amadureci. Essa sexta vez foi totalmente diferente por tudo que a modalidade venceu no ano de 2019 e por toda a pressão que eu estava sentindo”, recorda a atleta. Mesmo depois de conquistar o mundo, Amandinha não esquece de suas raízes: “Tenho muito orgulho de representar o Nordeste, de ser cearense, de representar os ‘cabra da peste’ como eu sempre falo. E espero que à medida que os anos vão passando, as coisas vão evoluindo, que o Nordeste vá também, que ele comece a ter mais apoio e estrutura para revelar talentos e deixar esses talentos em casa e não ficar só migrando para as outras partes do Brasil ou para fora do país”. Apesar de tantas conquistas dentro de quadra, ainda são muitos os obstáculos fora dela. Por muito tempo o futsal foi considerado um esporte apenas masculino. Mesmo que as mulheres tentassem brincar com a bola, os padrões da sociedade sempre as impediam de ir em frente. Como consequência disso, até hoje esse preconceito é refletido nas quadras de futsal


quando mulheres estão jogando, visto que, machismo, assédio e discriminação fazem parte da realidade de todas que praticam a modalidade. Sobre o preconceito, Amandinha acredita que isso acontece pela forma machista que as pessoas são criadas, mas defende que o esporte é lugar para todos: “As pessoas denominaram o esporte como masculino, mas ele não é. Ele pode ser praticado por mulher também. Eles se acham no direito de diminuir teu valor, tua qualidade, tua importância e não é bem assim. Cada um gosta daquilo que quer e busca aquilo que quer”. Ela também relembra algumas situações em que foi discriminada pelo fato de ser mulher no futsal e conta como costuma lidar com isso. Um exemplo foi quando ganhou o prêmio de melhor do mundo e em uma das matérias publicadas nos sites, um homem fez um comentário que dizia: “Vergonha, lugar de mulher é na cozinha”. Mas ela diz que tenta enfrentar isso da melhor maneira possível, le-

espero que à medida que os anos vão passando, as coisas vão evoluindo, que o Nordeste vá também, que ele comece a ter mais apoio e estrutura para revelar talentos e deixar esses talentos em casa e não ficar só migrando para as outras partes do Brasil ou para fora do país


Ela acredita que ganharia até quatro vezes mais no exterior, mas estaria abandonando o esporte no Brasil

vando como um combustível para vencer ainda mais. Além disso, a diferença de salários entre homens e mulheres no esporte ainda é absurda. Enquanto a maioria dos jogadores de futebol e futsal ganham salários extraordinários, a realidade das atletas mulheres é o oposto. Apesar disso, Amandinha tem um pensamento compreensivo para essa disparidade. Segundo ela, pelo futsal e outros esportes masculinos terem começado há muito tempo, eles já têm a visibilidade, o apoio e a estrutura ideais para receberem esses valores. Diferentemente dos esportes femininos, que ainda lutam diariamente por essas melhorias. “A nossa luta começou mais tarde, então esse processo que a gente tá passando é o mesmo que eles passaram lá atrás, não tô dizendo que com as mesmas dificuldades. As mulheres têm a relação do preconceito, do machismo, por isso nós iniciamos tão tarde. Então, a nossa briga não é entrar em vias de fato e dizer que nós temos que ganhar os mesmos salários, não. Nós temos que ir devagar, lutar, pedir a visibilidade. A nossa confederação, as nossas autoridades tem que nos dar infraestrutura para podermos desenvolver melhor as atletas, ou seja, ter mais bases”, diz. Ciente dessas circunstâncias, a atleta sempre soube que encontraria inúmeras dificuldades no mundo do esporte. Incentivada pela família, decidiu manter os investimentos também nos estudos. Desde o início da carreira, sua família - principalmente o seu pai - enfatizava a importância do estudo para Amandinha, por entender que o esporte não é eterno, mas o estudo sim, possibilitando novos rumos para o futuro dela. Com muito esforço e dedicação para conciliar os estudos com a carreira de jogadora, hoje ela concluiu com orgulho a graduação em Fisioterapia. “Eu me orgulho muito de todas as dificuldades que eu passei para ter essa formação. Eu acho que o estudo transforma a vida, te faz ser uma pessoa mais inteligente, faz você entender o que é ética, o

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que é respeitar o ser humano e faz você entender que a vida tem altos e baixos”.

Futuro do esporte Sobre expectativas para o futuro da modalidade, a atleta tem um pensamento positivo: “Eu vejo o futsal daqui a dez anos muito melhor, uma estrutura muito melhor, competições e clubes mais estruturados, mais organizados, meninas muito mais avançadas tecnicamente, vão ter base, vão ter os princípios básicos da técnica do futsal, da tática do futsal e isso é muito bom. Eu vejo que a nossa luta hoje é a vitória de amanhã”, relata. Hoje, ela representa milhões de jogadoras que buscam igualdade no esporte e que sonham em conquistar mais espaço para suas vozes. Mesmo depois de tantas conquistas, a atleta ainda carrega um sonho em seu coração: “Eu sou uma menina completamente realizada dentro do meu esporte,

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mas eu ainda sonho com o melhor para a modalidade, o crescimento e a profissionalização do futsal feminino. Meu sonho hoje é ver a minha modalidade da forma que ela merece, no lugar que ela merece, do tamanho que ela merece, o que ainda não temos. Competições e confederações organizadas, recursos para os clubes se manterem e pagarem melhor as atletas. São coisas que a palavra profissionalização resume”. A luta por melhores condições no esporte feminino tem ganhado força nos últimos tempos em decorrência dos bons resultados que nomes como o de Marta, no futebol, e o de Amandinha, no futsal, trazem para as modalidades; além de todas as outras mulheres que levantam a bandeira por um esporte livre e independente de gênero. Assim, com pequenos passos, elas vêm sendo mais respeitadas e estão reconquistando o espaço no esporte que sempre pertenceu a elas.


são muito importantes na nossa carreira. Muita gente se inspira na gente, observa o que a gente faz, então você já tem que ir se acostumando com isso desde a base, desde pequena. Você tem que saber que vai ser espelho para alguém mais na frente, a gente sempre tem que fazer a diferença na vida de alguém. Desejo sucesso na sua vida, desejo que você “A todas as meninas que so- seja uma grande jogadora e que alcance tudo aquilo que nham em ser uma jogadora almeja. As coisas não caem de futsal: nunca desistam do sonho de vocês. Se vocês do céu, não vêm fáceis, mas a força da mulher faz com têm vontade de se tornar que sejamos diferentes. Hoje uma atleta, uma grande joa gente tá numa luta árdua, gadora, se inspirem nas jopara mais na frente vocês gadoras maravilhosas que colherem os frutos. Então temos hoje, percebam que nenhuma teve facilidade em a gente tá em um mundo de muitas informações, que chegar ao topo, percebam que todo mundo tem que en- tem redes sociais, que tem tudo que se pode ver para se frentar obstáculos, precontornar uma atleta completa. ceito, machismo. Não leve Então, veja essas coisas, seja isso em consideração para uma menina interessada, o mal, leve isso como uma força a mais para a sua vida, seja diferente, não faça tudo como a maioria faz, faça a disaiba que o futuro depende de você. Então, seja uma me- ferença, trace os seus objetinina exemplo, respeite seus vos e nunca se contente com o que você tem. Eu desejo pais, seus treinadores, vá à escola, estude, não abandone sucesso na vida de cada uma de vocês.” os seus estudos porque eles Julho/Agosto 2020 |

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Foto original: Science & Society Picture Library/Store Norske Leksikon. Ilustração (obra adaptada): Paulo Anaximandro Tavares

ENTREVISTA

Lovelace contribuiu com o algoritmo para computar a Sequência de Bernoulli na Máquina Analítica, a primeira descrição de um computador e um software.


Mulheres ultrapassam conexões

na história da tecnologia A praticidade que a tecnologia proporciona é algo incontestável. Nomes como Bill Gates, cofundador da Microsoft, ou Allan Turing, matemático com grande influência na ciência da computação, são citados em diversos livros de história quando o assunto é tecnologia. Contudo, o que muitas pessoas ainda hoje se perguntam é: onde estão as mulheres na história da tecnologia? TEXTO | Natália Alves

Mulheres desempenham um papel fundamental nas ciências tecnológicas há mais tempo do que se pode imaginar. Para os grandes fãs do cinema hollywoodiano, Hedy Lamarr é uma grande inspiração como atriz, e já foi considerada “a mulher mais bonita do mundo” pela crítica. O que poucos sabem é que ela não se contentou apenas com a vida em Hollywood. Dona de uma inteligência impressionante, Hedy foi a inventora de uma técnica que evita a interceptação de mensagens, criação que nos dias atuais é utilizada em telefones celulares e no WiFi. Do hardware ao software, as mulheres ultrapassaram conexões na história da tecnologia, e suas trajetórias são inspiradoras para diversas pessoas que sonham com um mundo onde a equidade nas ciências seja realidade. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), no Brasil, apenas 20% dos profissionais atuantes no mercado de Tecnologia da Informação são mulheres. Diversas mulheres lutam há tempos para que essa realidade mude, como é o caso de Nina Silva, executiva em TI considerada uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo e Camila Achutti, uma das fundadoras da plataforma de educação em tecnologia Mastertech, com o objetivo de democratizar a tecnologia. No Cariri, Claudete de Sá Rodrigues (39), natural de Juazeiro do Norte (CE), é uma das que trilharam caminhos tortuosos para obter seu espaço na tecnologia.

12 homens e uma mulher “Meu primeiro trabalho relacionado à Tecnologia foi com computador, no ano 2000, trabalhava como digitadora nas escolas Tiradentes e Ceja de Juazeiro. Lá, fui me apaixonando por aquela máquina e enxergando várias possibilidades de trabalhos viáveis a ser realizados com o uso da tecnologia na educação. Sempre busquei agregar o conhecimento aos dois pilares que me nortearam - educação e tecnologia - e

transmitir da forma mais adequada e didática essa minha aprendizagem”, explica. Em 2006, a então Faculdade de Juazeiro do Norte seria pioneira em ofertar um curso de graduação voltado para a área da Tecnologia. Claudete, então, viu a oportunidade como forma de seguir seu sonho. Ela cursou Sistemas de Informação até o ano de 2010, sendo a única mulher em sua turma a concluir a graduação. “Me inspirava muito nos próprios colegas de turma, onde a maioria já trabalhava na área de software. Quando começamos a graduação, a turma era formada por 50 alunos e, no final, só 13 concluíram: 12 homens e uma mulher, no caso, eu... Essa foi minha maior motivação”, diz orgulhosa. Com a conclusão do ensino superior, foram chegando os desafios: Claudete concorreu a vagas no Centro de Ensino Tecnológico (Centec), de Juazeiro do Norte, para ensinar tecnologia e, em 2001, assumiu a sala de aula, lecionando disciplinas técnicas de informática e orientação de estágio supervisionado na Escola de Ensino Profissional Aderson Borges de Carvalho. Em 2013, assumiu a coordenação do cur-

No início da minha carreira, as pessoas ainda não conheciam o meu trabalho e, por ver uma mulher liderando, desconfiavam da minha capacidade

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Foto: Pixabay

chegar longe. Depois, fui conhecendo outras personalidades da área de Tecnologia que enfrentaram os maiores desafios para construir uma carreira de sucesso, e fui entendendo que era possível sim, com esforço e dedicação, conseguir o que desejava”.

Machismo

so de Informática da instituição, na qual trabalha até hoje. Diversas inspirações foram cruciais na formação profissional de Claudete, e muitas ainda têm forte impacto em sua vida. “Uma única professora da disciplina de banco de dados, Andrea, era também minha inspiração, então ficava imaginando que era possível

Foto: Arquivo pessoal

Lamarr já foi considerada “a mulher mais bonita do mundo”, e é também inventora da técnica que evita a interceptação de mensagens

Situações machistas também fizeram parte de sua trajetória. O olhar de julgamento dos homens que trabalhavam com ela indicavam dúvidas sobre seu profissionalismo. “No início da minha carreira, as pessoas ainda não conheciam o meu trabalho e, por ver uma mulher liderando, desconfiavam da minha capacidade, mas logo reconheciam o trabalho realizado com sucesso e dedicação. Um situação que destaco aqui, ocorreu em um congresso que participei em Recife, onde o recepcionista disse: ‘moça, você está no evento errado, aqui é um evento de tecnologia, e não de moda…’”. No entanto, comentários como esse nunca intimidaram a professora, que sempre se dedicou a mostrar seu potencial. Os estereótipos impostos na infância, os quais estigmatizam meninas como sexo frágil, interferem nas suas escolhas profissionais no futuro. Dados da ONU Mulheres Brasil apontam que 74% das meninas mostram interesse em campos da ciência, tecnologia e matemática, mas apenas 30% das pesquisadoras do mundo são mulheres. Apesar de não ser o caso de Claudete, nossa sociedade ainda é marcada pelos papéis de gênero, que incentivam homens, quando crianças, a brincarem com videogames e computadores, enquanto mulhe-

Claudete rodeada por alunos na escola onde leciona


Foto: Arquivo pessoal

res são destinadas à construção de uma família e o cuidado do lar. Uma cultura alimentada pelo machismo estrutural, onde mulheres são convencidas de que cargos - ainda - exclusivamente masculinos precisam permanecer dessa forma. Aspecto que a profissional de Sistemas de Informação vem quebrando ao longo da carreira. “A cultura dita o que a mulher precisa ser durante toda sua vida; que precisa ser dona de casa e cuidar da família. Na infância, a cor rosa é destinada para menina e azul para meninos, os brinquedos escolhidos influenciam em suas opiniões e escolhas, e tudo isso na fase de desenvolvimento crucial da criança, isso acaba interferindo na fase adulta”.

Mercado tecnológico Nos bastidores do universo tecnológico sempre houve o espírito feminino. Ada Lovelace é considerada a primeira programadora da história, e contribuiu com o algoritmo crucial para computar a Sequência de Bernoulli na Máquina Analítica, feito considerado como a primeira descrição de um computador e um software. Atualmente, o mercado tecnológico vem crescendo e oportunidades vêm surgindo, onde mulheres possuem lugares de destaque no cenário, ganhando notoriedade mundial. Sobre isso, Claudete enxerga a atuação das mulheres nos ramos da tecnologia com entusiasmo, principalmente em sua própria sala de aula, onde a maioria são mulheres. Contudo, o avanço das mulheres no mundo da Tecnologia da Informação (TI) acontece a passos lentos. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do IBGE, de [ano], apenas 20% dos profissionais que atuam no mercado da TI são mulheres, e mesmo com o grau de instrução maior em relação a homens, ganham 34% menos que eles. Em 2017, a ONU Mulheres fez um alerta global de que as mulheres não fazem parte dos cargos de destaque gerados pela revolução digital, detendo apenas 18% da ocupação em graduações das Ciências da Computação. Na caminhada do mundo tecnológico, as mulheres estão de mãos dadas, fortes, unidas e determinadas. Claudete acredita que o primeiro passo para a mulher seguir nas ciências tecnológicas está em si mesma, sentindo-se forte, valorizada e confiante para permanecer na área. “Reconhecer o seu trabalho, ter segurança e apresentar de forma firme todas as suas colocações e seu conhecimento. Busque ao máximo se aperfeiçoar na área e tenha sempre em mente que você é capaz de tudo que deseja, lute pelos seus sonhos e, no final, será gratificante desfrutar de todas as suas conquistas!”, exclama.

Quando começamos a graduação, a turma era formada por 50 alunos e, no final, só 13 concluíram: 12 homens e uma mulher, no caso, eu


REPORTAGEM

O espelho emocional

de profissionais da saúde na pandemia Izabelly Macedo escreveu importantes textos sobre a situação das mulheres caririenses na pandemia do novo Coronavírus. Em abril, a repórter publicou a matéria “O preço de ser heroína na pandemia”, disponível na sua coluna no site Miséria, que nos fez convidá-la para colaborar nesta edição. A seguir, leia a reportagem de Izabelly para a Bárbaras, sobre os dias de pico e os impactos na saúde mental de uma técnica em enfermagem. TEXTO | Izabelly Macedo

Em abril, o vírus começou a se alastrar pelo Cariri. O interior do Ceará, até então, só ouvia falar que estava se aproximando o tenebroso. Só ouvia e via. As ações coletivas, em si, já deixavam pistas de forja. Os esforços do Governo do Estado em ampliar a infraestrutura da saúde encontraram incontáveis obstáculos burocráticos e sociais. O isolamento era um delírio remediado com placebos. Os governantes municipais já demonstravam falta de preparo na queda de braço contra o negacionismo em ações frustradas de um lockdown importado. Naquela época, conversei com duas mulheres, profissionais da enfermagem, para saber como atravessavam por aquele cenário de prenúncio caótico e quais os desafios inerentes ao gênero na profissão. Entre dores de natureza materna, vulnerabilidades da profissão e a resiliência de persistir em nome de algo maior, elas demonstraram o peso de ser heroína na pandemia. Esse foi o mote do primeiro escrito que está disponível no Site Miséria, em coluna assinada por mim. Nestas páginas, volto a conversar com uma das mulheres entrevistadas naquela época. Desta vez, vivenciando o segundo capítulo da Covid-19 no Cariri: os dias de pico e os impactos na saúde mental. Até 16 de agosto de 2020, o IntegraSUS contabilizou 14.864 profissionais da saúde infectados pelo novo Coronavírus em todo Ceará. Juazeiro do Norte, epicentro da doença durante julho - e polo do hospital referência para todas as cidades da região -, teve 34 | Bárbaras


Ilustração: Larissa Souza


371 profissionais afetados. Destes, 74,39% são mulheres. Até o momento são 361 recuperados, embora as sequelas fiquem nos corpos e desnudem falhas sistemáticas já previstas. As categorias enfermagem e técnicos ou auxiliares de enfermagem concentram os maiores números de infectados na cidade, 60 e 86 pessoas, respectivamente. O dia 1º de julho

foi assustador em Juazeiro. Mais 511 pessoas recebiam diagnóstico positivo, sendo 20 profissionais da saúde - o recorde coincidiu nos dois lados. Se a equipe hospitalar vai gradativamente se tornando paciente, quem cuida de quem? Em que medida o Estado se preocupa com o corpo e a mente desses agentes? Esse texto é jogar uma pedrinha sobre o espelho d’água que é a psique. Buscaremos entender, por meio de um relato e do olhar psicológico, a complexidade em torno de ser pelo outro e compreender a própria vulnerabilidade.

Ilustração: parkjisun | The Noun Project

O novo normal de Raquel “A sensação era que a população não estava acreditando ainda na quantidade de casos. Muitos nem aí”, lamenta. Só quando os filhos de Raquel* crescerem é que terão dimensão do quanto a mãe não foi poupada. Os 28 anos dela destoam de uma parcela considerável dos millennials, geração a qual faz parte. Além dos quatro filhos para criar, a Técnica em Enfermagem atua na área desde os 23 e já cuidou de incontáveis vidas em leitos de hospital. Mas nunca como agora. O atípico da pandemia estremeceu o preparo físico e mental habitual de quem trabalha na saúde. São mais de 150 dias de convívio anormal com medos, inseguranças e pressão. Curiosamente, desde o início, ela me afirma trabalhar a serenidade, demonstra um autocontrole que confronta minha inquietante passagem por essa pandemia. Apesar dos “nem aí” e das precedentes precariedades que destroem a profissão dela no país, “aos poucos, [o caos] foi se tomando o normal do dia a dia. Hoje sou bem tranquila em relação a tudo”, fala isso constantemente como fosse um rezo. O grande medo continua sendo contaminar os pequenos que ficam em casa sob os cuidados da mãe e da avó dela. Nos intervalos entre plantões, a prioridade é estar com eles. Enquanto conversávamos, um brincava no colo dela tocando a tela do celular e me enviando textos errados. Ainda que a idade seja pouca, são meninos compreensivos, diz Raquel. É nos corredores e quartos do Hospital Regional do Cariri (HRC) que está a extensão da família de Raquel. As companhias de trabalho amenizam a sobrecarga emocional em atitudes solidárias, se alternam nos cuidados quando um paciente está mais grave, numa tentativa de fragmentar da dor coletiva. Esse mesmo engajamento era esperado que a população tivesse. No entanto, só 43% dos juazeirenses chegaram a ficar em quarentena no momento mais crítico da doença na cidade, segundo dados da plataforma Inloco. O número é bem abaixo dos 70% recomendados pela Organização


o vírus é uma delação da natureza sobre o incauto que somos nós com nós mesmos enquanto indivíduos e sociedade

Mundial da Saúde (OMS) para controle da disseminação do vírus. O novo normal de Raquel inclui doar o próprio corpo a disfunções políticas, sociais e morais, que poderiam ser evitadas, mas não foram. Em troca, uma ardil nomeação dada pela mídia: heroína. Desde a primeira entrevista, ela bate na tecla que não gosta do termo glamourizado. “Considero heróis os que lutam para ficarem bons: os pacientes [...] Nós somos apenas colaboradores que ajudam no combate, mas isso não nos torna heróis”, contesta. A leitura sem fantasias sobre o presente e o passado a faz desacreditar que avanços virão para a categoria: “Apenas falam. Porque dependem de nós para o cuidar. Se não fosse uma doença que atingiu o mundo inteiro seria apenas mais uma que íamos combater. Como fazemos sempre”, finaliza. Medalhas de honraria ou textos romantizados em redes sociais não dão conta do que essas profissionais desprendem para estarem ali. Melhorias de salários, diminuição da carga horária de 45h para 30h, contratação de pessoal, por outro lado, seriam um lembrete - até para as próprias trabalhadoras - que elas não são de ferro. Como política de redução de danos na catástrofe, o Ministério da Saúde lançou uma rede de teleconsulta para dar suporte psicológico aos agentes públicos de saúde envolvidos em atendimentos do Coronavírus. O órgão anunciou investimento de R$ 2,3 milhões para o serviço ofertado de maio a setembro. No site oficial do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) há um serviço similar. Ao acessar a página, uma caixa de diálogo azul chama atenção no canto direito da tela. Os trabalhadores que buscam apoio à saúde mental recebem atendimento gratuito. No HRC, onde Raquel trabalha, as equipes também têm a possibilidade de receber acompanhamento especializado. Ainda assim, a técnica de enfermagem revela nunca ter solicitado acompanhamento psicológico. “Sou bem centrada” e “sempre me mantive firme” soam quase como or-

dem interna. Nas frases curtas há uma tentativa de não aprofundar nas próprias vulnerabilidades. Ela logo justifica. Precisa pensar no outro: “Os pacientes além de não terem a família ali por perto, se sentem sozinhos e dependem totalmente dos nossos cuidados. Então faço de tudo para dar o que posso para que eles se animem”.

Plastilinas Diversos estudos com grupos focais anteriores à pandemia já analisavam a sobrecarga do fator humano numa profissão que remete ao cuidado qualificado como a enfermagem. Quadros como depressão, ansiedade e Síndrome de Burnout (esgotamento físico e mental) são alguns dos principais problemas emocionais e psiquiátricos gerados pelo trabalho. A exaustão psíquica desse grupo, portanto, tende a tomar dimensões exponenciais quando exposto à situações de emergência, como a que estamos vivendo, além de gerar traumas posteriores. O artigo “O impacto da pandemia de Covid-19 na saúde mental dos profissionais de saúde”, mais recente publicado pela Fiocruz, em abril deste ano, é o começo do que deve vir a ser uma pesquisa de maior abrangência com dados consolidados, tendo em vista que ainda não há grandes amostras no país que mensurem esses impactos. “É válido ter em mente que nem todas essas situações podem ser consideradas como doenças, a maioria deverá ser classificada como reações normais diante de uma situação anormal”, pondera Indira Siebra, psicoterapeuta analítica que estuda, dentre outros temas, psicologia em situações de emergência e desastre, morte, saúde coletiva, violência e gênero. Ela defende que é possível sair da pandemia sem danos psicológicos “se tiver o cuidado de se cuidar e perceber que alguns sentimentos e sensações estão fugindo ao seu controle”. A representação social que associa profissionais da saúde a seres super poderosos inabaláveis prejudica a própria percepção desses sujeitos enquanto Julho/Agosto 2020 |

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vulneráveis. O medo de se apresentar dessa forma é uma possível explicação para tanta resistência em buscar ajuda psicológica, sobretudo porque o passo inicial é romper com o paradigma e aceitar ser cuidado. Dizem que as pessoas de generosidade excessiva tendem a ser plastilinas, material moldável sob necessidade de terceiros. O mandamento bíblico de amar ao próximo como a si mesmo precisa ser invertido e tratado por partes quando se trata de pessoas plastilinas, para que o eu não se confunda com o outro e negligencie o autocuidado. Sobre isso, Indira Siebra traz a análise de divã: “A empatia é imprescindível ao cuidado. Se um cuidador não a possui, não poderá cuidar de forma humana, não terá sensibilidade para entender e compreender o outro. Penso que no autocuidado a mesma regra existe, precisamos ter empatia com a gente mesmo”. A psicóloga lança orientações sobre como os

avião ou um incêndio de grandes proporções são tragédias, mas há aquelas que são mascaradas apesar da forte presença em nossa rotina. É o caso da violência, diz Indira: “A violência é um desastre, um desastre maior do que a queda de um avião, só que o avião a gente vê o sofrimento imediato, o caos da violência muitas vezes é silencioso”. A pobreza, as desigualdades abissais, a urbanização crescente, já nos sobrecarregam emocionalmente. Durante a pandemia, temos o aditivo do isolamento social e do desgoverno brasileiro, que aprofundam nosso poço e testam nosso limite existencial. A atuação do psicólogo em situações de emergências e desastres, geralmente, é buscada pela Defesa Civil ou governos durante o problema, como o caso do Ministério da Saúde ao criar a teleconsulta mencionada anteriormente. Num ce-

O novo normal de Raquel inclui doar o próprio corpo a disfunções políticas, sociais e morais, que poderiam ser evitadas, mas não foram. Em troca, uma ardil nomeação dada pela mídia: heroína

colegas da saúde que estão na linha de frente podem cuidar de si dentro de uma rotina excepcional: “É preciso que eles entendam que para cuidar do outro precisam estar bem. Reservar um tempo do dia para fazer uma atividade física, relaxar, ler um livro, se observar, se amar e se possível, muito importante, procurar uma psicoterapia”. Ela explica que os profissionais da psicologia podem contribuir em diversas frentes nos atípicos desastrosos. Desde o atendimento clínico aos profissionais, passando pela coordenação de grupos de apoio, psicoeducação, em plantões psicológicos para casos de urgência e emergência.

As crises em crise Enchentes, desabamentos e as estiagens cada vez mais prolongadas são desastres naturais frequentes no Brasil. Enfrentamos ainda os desastres mistos, resultantes das ações da sociedade e que também influenciam na natureza. Queda de um 38 | Bárbaras

nário ideal, os agentes precisam atuar já na prevenção. Em outros países da América Latina, como Peru, Argentina e Venezuela, onde a área é mais difundida que no Brasil, associações nacionais criam espaços de aperfeiçoamento de técnicas e desenvolvem novas estratégias para o atendimento às pessoas atingidas pelas tragédias. Na conversa com Indira, ela manifestou expectativa para que, no pós-pandemia, haja valorização desses estudos e incorporação dos profissionais da psicologia em todos os processos de políticas públicas que visem atender situações de crise. Levando em conta que os impactos emocionais da pandemia sobre os profissionais da saúde podem perdurar ao longo da vida, as contribuições da psicologia na fase de reconstrução dessas pessoas será determinante para a permanência saudável no espaço de trabalho. Mesmo que agora pessoas como Raquel não sintam necessidade de


doados com tantas feridas para tratar ao mesmo tempo. Na linha do grande ambientalista Ailton Krenak: “Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato humanidade”. *O sobrenome foi ocultado para preservarmos a identidade da entrevistada.

Ilustração: Paulo Anaximandro Tavares

apoio psicológico, no futuro, ela pode manifestar traumas terceiros e recorrer ao auxílio. Devemos prever um déficit anômalo de profissionais no setor da saúde, em decorrência dos sofrimentos psíquicos deixados pelo vírus e adversidades externas. No geral, o vírus é uma delação da natureza sobre o incauto que somos nós com nós mesmos enquanto indivíduos e sociedade. Não fosse esse o motivo, duvido que estaríamos ator-

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REPORTAGEM


“O trabalho dignifica o homem”,

mas e a mulher? “O trabalho dignifica o homem”. Esse ditado popular retrata a ideia de que a dignidade humana é alcançada através do trabalho. Apesar de antigo, o conceito é constantemente reforçado, principalmente no sistema capitalista, implementado nos séculos XVI e XVII. Hoje, é comum ouvi-lo em propagandas, palestras motivacionais e discursos internos de empresas. A seguir, os relatos de três mulheres em diferentes contextos sociais suscitam reflexões sobre trabalho e dignidade no cenário da pandemia do novo Coronavírus. TEXTO | Laura Brasil ILUSTRAÇÕES | Larissa Souza

A Organização Mundial de Saúde estabeleceu o isolamento social como principal norma de segurança para a população diante da pandemia do novo Coronavírus. Por isso, serviços não essenciais foram obrigados a suspender seu funcionamento presencial. Com a paralisação desses espaços, foi a primeira vez que muitas pessoas se viram obrigadas a conciliar trabalho remoto e tarefas domésticas. No entanto, essa já era a realidade da maioria das mulheres que, além dos seus empregos, precisam cuidar da casa e de quem mora nela. Segundo um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2018, as mulheres dedicam 18,1 horas semanais para os cuidados com o lar; em contrapartida, os homens gastam apenas 10,5 horas. Na região Nordeste, a pesquisa indica uma disparidade maior ainda: o trabalho doméstico consome 19,5 horas das nordestinas; já os indivíduos do gênero masculino permanecem na média nacional. Afinal, o trabalho desempenhado pelas mulheres as dignificam?

O trabalho das mulheres De início, é preciso compreender o quê é trabalho. A psicóloga e pós-graduanda em Teoria Psicanalítica, Karla Lima pesquisa as relações de trabalho feminino e explica: “A gente tem a con-

cepção de que trabalho é só aquilo que tem vínculo empregatício, e isso é muito errado. Se você arruma sua casa, se estuda em casa ou faz qualquer outra atividade que lhe movimente e gere algum ônus, isso é trabalho”. A psicóloga cratense também lembra que a precarização do trabalho feminino é uma realidade desde as primeiras inserções da mulher no mercado: “As mulheres lutaram muito para conseguir o direito de trabalhar fora de casa, de gerar o próprio sustento, mas isso aconteceu de forma precarizada. Elas encontraram uma brecha quando os homens estavam indo à Guerra, e conseguiram ocupar esses espaços. Porém, já começaram recebendo bem menos que homens e os empregos que elas ocupavam eram sempre voltados para trabalhos domésticos, por exemplo, limpeza, cozinha e toda a parte de cuidados”, diz. Os números atuais indicam a herança desse período. Em 2018, as mulheres representavam 93% da categoria de trabalhadores domésticos, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Desse número, 70% são mulheres negras, estigma de mais de duzentos anos de escravidão. Karla chama a atenção para outro ponto: “Além de trabalhar dentro de casa, cuidando de toda a organização, inclusive de maridos e filhos, a mulher mantém os seus empregos. Isso acarretou num acúmulo de funções, em mais de uma jornada de Julho/Agosto 2020 |

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trabalho, o que acaba deixando as mulheres exaustas. Enquanto isso, muitos homens trabalham fora e, ao chegar em casa, podem descansar”.

Multitarefas Na sociedade patriarcal, existem diversos “contratos” sobre os papéis de gênero. Ou seja, mesmo quando não nos apontam diretamente que “lugar de mulher é em casa, na cozinha”, muitos homens se mostram indisponíveis quando o assunto é dividir tarefas com suas mães, irmãs e companheiras. Ainda hoje, perpetuam tentativas de sustentar o mito da “vantagem biológica”, o qual estabelece que as mulheres são melhores em multitarefas; como limpar a casa, trabalhar fora, fazer a lista do supermercado, lembrar de comprar roupas novas para o marido, além de memorizar datas importantes e auxiliar os filhos nas atividades escolares - para contar uma pequena parte dessa exaustiva função que é ser mulher, esposa e mãe. Para refutar essa ideia, a revista científica inglesa PLOS One divulgou uma pesquisa, em 2019, que testava a habilidade de mulheres e homens em realizar múltiplas tarefas alternando o foco cognitivo. Os resultados do estudo provam que os cérebros de homens e mulheres são prejudicados igualmente, quando colocados sob as circunstâncias de revezamento ou execução de duas tarefas ao mesmo tempo.

Qualidade de vida versus trabalho Com a pandemia do novo Coronavírus, Kelly Marques (43) viu suas vendas estagnarem. Desde que optou pela demissão do último emprego formal, a técnica em Contabilidade montou um ate-

Kelly decidiu interromper a carreira visando melhorar sua qualidade de vida. “Tive uma melhora significativa, principalmente por ter tempo para acompanhar minha filha no seu desenvolvimento pessoal e emocional. Mas para ter esse resultado, tive que me refazer profissionalmente, embora não tenha o mesmo retorno financeiro de tempos atrás”. Ela é a principal responsável pelas tarefas de sua casa e o cuidado com a filha Isabela (11). Apesar do acúmulo de funções, ela ressalta que, durante a quarentena, conseguiu ter tempo para exercícios físicos e demais atividades de autocuidado. “No meu ponto de vista, as atividades domésticas devem ser distribuídas entre os membros da família. A mulher necessita de incentivos para buscar maneiras de se inserir na sociedade através do estudo, de parcerias com outras mulheres, cooperativas e projetos sociais que a possibilitem se reinventar profissionalmente. Considerando a minha satisfação pessoal, eu já desejei voltar a trabalhar, mas ao reavaliar minha qualidade de vida, não consigo ir em frente”, afirma Kelly.

Vida pessoal versus trabalho Na biografia do seu perfil numa rede social, Leda Gimbo (38) se denomina, dentre os títulos profissionais e acadêmicos, como “mãe da Luiza”. Apesar disso, a psicoterapeuta de Juazeiro do Norte (CE) afirma que a maternidade nunca foi uma prioridade na sua vida. “Por muito tempo, priorizei os empregos em detrimento da minha pós-formação, família e relacionamentos. Estava em sala de aula por mais de 40 horas semanais, exausta e sem vida pessoal. Até que consegui sair desse emprego que me fazia sentir pouco reconhecida e descartável”. Ela deixou o emprego numa instituição de ensino superior, por

Se você arruma sua casa, se estuda em casa ou faz qualquer outra atividade que lhe movimente e gere algum ônus, isso é trabalho

liê, em casa, onde confecciona bolsas e outros produtos personalizados. Desde o início da pandemia no Brasil, ela produziu apenas algumas máscaras de proteção, encomenda que veio de uma amiga próxima. Natural de Maranguape (CE), na região metropolitana de Fortaleza, e com um vasto currículo de experiências na administração de microempresas, 42 | Bárbaras

se sentir pressionada a uma “carga enorme de trabalho”, cultuada - segundo ela - como sinônimo de “funcionalidade” na empresa. Em meio à pandemia, Leda e o esposo dividem-se entre o trabalho remoto, os cuidados com a filha de dois anos e as tarefas domésticas. “Estamos sempre trabalhando, cuidando de Luiza ou da casa. Isso me fez pensar em como, muitas vezes, o


Horas semanais dedicadas ao trabalho doméstico no Brasil (2018) Nordeste

10,5

19,5

Brasil

18,1 10,5 trabalho de outras pessoas - geralmente mulheres - é necessário para regular o ambiente doméstico. Em casa, contávamos com uma babá e uma diarista, que estão afastadas por acharmos justo que elas tenham direito ao distanciamento social enquanto continuamos pagando seus salários”.

Ofício “dona de casa” Durante nossa conversa, ela reafirma sua condição privilegiada, apesar desse fato não “salvá-la” da exaustão que gera o acúmulo de tarefas no cotidiano. Quando pergunto o que ela acha sobre a oficialização da função “dona de casa”, a psicoterapeuta reflete: “Mulheres que deixam suas casas para cuidar de outras já exercem a profissão de dona de casa, elas cuidam de outras casas e depois precisam ainda dar conta das suas. Isso é reflexo das relações de gênero e do machismo. Lutar por igualdade de direitos é imperativo. Contribuir de onde pudermos para que mulheres se emancipem é imperativo!”.

Empreendedorismo materno Atualmente, Leda é dona do seu próprio instituto de psicologia. “As obrigações de gerenciar um negócio próprio e viver apenas do trabalho enquanto psicóloga clínica não trazem a segurança que trazia ser funcionária de uma instituição. Embora me permita planejar, organizar meus horários e ter mais tempo em casa”. O sentimento e a atitude de Leda para empreender pensando em dedicar mais tempo à família não é raro entre mulheres. Camila Conti e Ana Laura Castro, em entrevista à Revista AzMina, analisam a situação de mães que, assim como a psicoterapeuta, optaram por empreender. “O empreendedorismo materno é muito mais uma necessidade do que um desejo”, afirmam as idealizadoras do Maternativa - inicia-

tiva social que tem como objetivo transformar a relação entre mães e trabalho. Essa “necessidade” ocorre porque o mercado é opressor e não oferece garantias às mães, as quais correm o risco da demissão ao fim da licença-maternidade e, quando não, são expostas a julgamentos sobre o tempo dedicado aos filhos, por exemplo, quando esses demandam uma atenção especial. “Isso porque, na sociedade, há a ideia de que só quem pode cuidar do lar e dos filhos são as mulheres”, lembra a pesquisadora Karla Lima.

Trabalho emocional A letalidade do novo Coronavírus é considerada baixa se comparada a outros vírus, como o Ebola. Entretanto, Karla destaca os danos emocionais do período: “Nunca na História vivemos um período tão aterrorizante e com essa configuração. O medo do adoecimento, da morte, da perda de pessoas queridas e as mudanças drásticas e rápidas no nosso modo habitual de viver nos causa muito impacto, em alguns mais que em outros. São muitas as saídas emocionais para isso, como o aumento de ansiedade e de angústias. É necessário que esperemos um tempo para ter uma noção maior do verdadeiro impacto, mas sem dúvida alguma não sairemos ilesos”. A psicóloga aponta, ainda, para o risco das chefes de família desenvolverem esgotamento, ansiedade, depressão, dentre outros transtornos que surgem a partir do esforço exagerado para dar conta de tantas demandas, gerando o “trabalho emocional”. Isso está presente, sobretudo, para as mulheres em situação de vulnerabilidade social.

Trabalho, raça e classe No Brasil, 11 milhões de famílias são chefiadas por mães solo, de acordo com o levantamento do IBGE de 2015. Dentre essas mulheres, 61% são negras. É o caso da empregada doméstica de 29 anos, Leidiane Pereira que, desde abril, mora com os dois filhos Henrique (15) e Pedro (8). Quando o decreto de isolamento social chegou a Juazeiro do Norte e os casos de Covid-19 começaram a subir, ela tomou uma delicada decisão: mudar-se com os filhos da casa onde morava com a mãe, irmãos e demais familiares, por causa do medo de uma possível contaminação. “Moravam de oito a dez pessoas na casa. Não existia, e não existe - até hoje -, o controle de sair de casa usando máscara. Ninguém se cuidava, mas todo mundo saía para trabalhar. Foi aí que eu tomei essa decisão que me fez chorar por uma sema-


na escondida”, conta, alegando estar mais sensível desde o início da pandemia. Leidiane também é estudante de Ciências Sociais na Universidade Regional do Cariri (Urca) e afirma que a alteração emocional afetou suas tarefas acadêmicas. “Eu não consigo mais escrever. A minha orientadora me manda o material, eu sei do tema, mas não consigo. Eu também não consigo mais assistir a um jornal, nem ver coisas relacionadas à negritude. Antes eu não tinha isso”. Na medida em que os episódios foram se tornando frequentes, sua terapeuta lhe aconselhou: “Leidi, às vezes, você tem que escolher entre a militância e sua saúde”. “E eu deixei claro que quero minha saúde. Quero ver uma reportagem sobre racismo e não passar três dias ‘de cama’. O caso mais recente que me chocou, me fez entrar em desespero, foi o caso da Mirtes [Souza]”, diz, referindo-se à morte do menino Miguel (5), deixado sozinho - pela patroa de sua mãe - num elevador

primeiro lugar no número de casos. Cadê o juramento [de Hipócrates]? Se o meu filho adoecer hoje, eu tenho que correr atrás de outro posto de saúde, mas quando eu chegar lá, por exemplo, no posto do Centro, ele não vai ser atendido, porque não moramos naquele bairro. Isso já aconteceu, logo no início da pandemia, quando meu filho adoeceu de uma crise respiratória e eu já achava que ele tava infectado”, denuncia ela, que reside no bairro João Cabral, em Juazeiro. Diante das vulnerabilidades intensificadas pela pandemia, Leidiane retoma - diversas vezes - durante nossa conversa, ao discurso que já tem ensaiado para o filho mais velho: “Eu sempre peço para ele não se culpar, caso eu morra de Covid, de acidente ou qualquer outra coisa. E nem levar o irmão mais novo ‘nas costas’”. Segundo ela, os dois já têm funções dentro de casa. “Desde que o Henrique completou dez anos, eu não lavo mais as roupas dele. Eu os eduquei para manterem o

Mulheres que deixam suas casas para cuidar de outras já exercem a profissão de dona de casa, elas cuidam de outras casas e depois precisam ainda dar conta das suas. Isso é reflexo das relações de gênero e do machismo

no 9º andar de um prédio em Recife (PE). “Eu me vi na Mirtes. Quando vi o contexto, eu disse: ‘pronto, sou eu!’. Passei dias sem acreditar que aquilo tinha acontecido. Eu chorava, era uma dor tão grande que eu me isolei de alguns grupos [das redes sociais]”, relembra. Sobre sua relação com as redes sociais, Leidiane fala que não há só tristezas e cita o “Cantando Marias”, projeto musical do qual faz parte, apresentando transmissões ao vivo pelo Instagram. Ela também fala da troca de sentimentos e dores, virtualmente, com familiares. “Muitos parentes próximos adoeceram e morreram por causa da Covid-19. Por mais que queiram negar, o vírus mata quem está na margem. Se a gente pegar os dados, vamos ver quem mais morre”. A estudante se refere aos números divulgados pelo Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, ainda em abril, o qual dividia os casos por raça e cor, e constatava que negros e pardos eram o único grupo com porcentagem de óbitos (34,3%) superior a de internações (23,9%). “Em pleno período pandêmico, o posto de saúde não tem médico. A médica foi embora, disse que não ia pegar Covid, porque o bairro estava em 44 | Bárbaras

corpo e a casa limpa. Tanto é que quando chego do trabalho, tem um pano com água sanitária me esperando na porta”, sorri orgulhosa ao lembrar. Quando lhe pergunto das condições de trabalho como empregada doméstica na pandemia, Leidiane é direta: “Eles [os patrões] são negligentes, não se cuidam. Chegam do supermercado e não tomam banho nem trocam de roupa ou de sapato. Dizem que usam máscara lá fora, mas eu não sei. Já me chamaram de ‘fresca’, porque desinfeto os produtos que chegam do mercado. Já ouvi: ‘Leidi, isso é besteira! O presidente disse que é só uma ‘gripezinha’. Eu coloco as coisas no armário sem limpar mesmo’. E eu sei que eles não se importam, porque têm dinheiro e podem passar 15 dias internados num bom hospital, mas é a minha vida que está em jogo!”, exclama a diarista. Além de arriscar a saúde, Leidiane também alega que o período de isolamento trouxe questionamentos sobre o preço do seu serviço. “As pessoas acham caro pagar 80 reais por um dia de faxina, sendo que eu estou botando em risco a minha vida, a dos meus filhos, além da vida de outras pessoas que convivem comigo. Ganho 70 ou 80 nas faxinas, e ainda pago 10 reais de transporte, se-


manalmente. Tenho um conhecido para ir me deixar e buscar no trabalho. Procuro ter essa rede com pessoas próximas que estão desempregadas”. Apesar do seu relato, a universitária ressalta que situações de assédio no trabalho não são novidade: “Como estudante e pesquisadora dessa área, o meu corpo está como laboratório. Eu entendo que é racismo, quando as pessoas dizem: ‘você é uma negra diferente das outras negras’. Ou quando vejo que com as empregadas domésticas brancas, as reclamações e flexibilidade de emprego são diferentes. Aconteceu um episódio com uma pessoa que havia me contratado, ela não sabia falar normalmente e gritava, mesmo eu estando ao seu lado. Eu disse: ‘olhe, eu trabalho para você, limpo sua casa e seus pés, mas não grite comigo, porque eu não gosto, se coloque no meu lugar!’. Eu aprendi a ‘cortar’, porque isso é assédio moral!”.

Casa é trabalho Por fim, a reportagem propõe a reflexão sobre como o mercado de trabalho se desenha para mulheres de diferentes classes e raças, dentro ou fora do cenário pandêmico. Até onde enxergamos com naturalidade o negligenciamento de vidas e desejos pessoais, saúde mental e física em detrimento de empregos formais e informais? Sobre o trabalho feminino na pandemia, Karla Lima conclui: - Maior tempo em casa significa que o trabalho passa a ser a casa e a casa passa a ser trabalho, as coisas ficam muito mais coladas e difíceis de separar. É importante começar a repensar as divisões de trabalho. Se um número ‘x’ de pessoas vivem em uma casa, as responsabilidades devem ser repartidas igualmente. É necessário um olhar atento para as necessidades dessas mulheres que precisam se desdobrar em várias para fazer o trabalho de outros. Lacan [psicanalista francês] diz que ‘a mulher não existe’, porque não há algo que consiga definir o que é uma mulher. Somos várias e temos particularidades que nos fazem incapazes de criar uma só definição. Se para o homem trabalhar traz a dignidade, para a mulher, a dignidade se faz só pela própria existência, por trabalhar dentro e fora de casa - assumindo tantas funções e sem os privilégios dos quais os homens têm acesso.


PERFIL

O voo de

Zenilda Senta. Respira. Escuta. Escreve. Repeti essas ações algumas vezes durante a escrita deste texto. Têm histórias que não são fáceis de contar, elas doem de ser escutadas, lidas, mas são necessárias, suas vozes precisam de espaço para existirem e alcançarem outras esferas, dentre essas, a do acolhimento, a de não se sentir sozinha e a da luta para se reerguer e ir de contra o patriarcado. TEXTO | Jayne Machado


Foto: Vitor AntĂ´nio


“Eu não conto minha história pra qualquer pessoa, porque muita gente acha que é mentira, sabe?”, afirma Zenilda Bispo (60), num dos primeiros áudios da entrevista. Você vai ler uma parte da história de Zenilda, uma mulher que percorreu caminhos árduos e resolveu compartilhar, através de nossa revista, seus momentos e sentimentos, com o intuito de mostrar que nós, mulheres, somos mais fortes do que imaginamos. Zenilda nasceu em 27 de junho de 1960 e, já na infância, com uma mãe inflexível, foi criada debaixo de muita ordem e submissão. Na sua cabeça é clara a imagem de um chicote de couro legítimo, que ficava pendurado na cozinha, esperando ela ou algum dos irmãos cometerem um erro. Porém, para ela, sempre havia uma luz que era muito óbvia para pôr fim naquilo: os estudos. “Eu sempre gostei muito de estudar. Minha meta era estudar e sair daquilo… Então, sempre fiz de tudo pra conseguir algo melhor”. Ainda menina, teve contato com importunações sexuais. O abusador era um de seus tios, eles moravam na mesma casa, então, a intimidação chegava a ser diária: “Você fica constrangida. A criança cresce constrangida e não tem o que fazer, não tem saída, não tem pra onde fugir e vai engolindo aquilo”. Essa foi uma dos primeiros obstáculos no seu caminho, uma pedra no sapato que incomodava, mas era deixada lá, por medo, vergonha, falta de suporte.

Primeiro emprego Apesar da rigidez excessiva da mãe, Zenilda cresceu com um desejo de agradá-la, de ser a filha perfeita, tanto que começou a trabalhar ainda adolescente. Aos 16 anos, conseguiu emprego através da indicação da patroa da mãe. Era no centro da capital do Rio de Janeiro. Uma menina de Morro Agudo - bairro em Nova Iguaçu (RJ) - foi desbravar o mundo que era o Rio de Janeiro. Zenilda passava o dia trabalhando. Após o trabalho, ia o mais rápido que podia pegar o transporte e voltar para Nova Iguaçu, assim conseguia ir para a escola, que ainda era o seu melhor e principal momento do dia. Trabalhar dois turnos e estudar no terceiro, essa foi a desgastante rotina da jovem por dois anos, mas ela cumpria sem pestanejar.

Alfinete Todos os dias, ao fim das aulas, seu avô a esperava no ponto de ônibus para acompanhá-la até em casa. Ela andava todo o trajeto com um “alfi-

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Eu espero que meus relatos incentivem mulheres a criarem uma força dentro de si e ver que todas nós podemos superar tudo, tudo, porque somos fortes, entendeu? Toda mulher pode chegar aonde ela quiser

netinho” dentro da bolsa, para se defender, caso alguém fosse lhe fazer algum mal. Certo dia, em meio a essa correria, as aulas terminaram mais cedo, poderia ser uma brecha merecedora de um suspiro, finalmente um descanso. Porém, foi diferente, o dia teve um final cruel e foi eleito, por ela, como um dos piores de sua vida. Era o último dia de aula e o último horário foi destinado à comemoração de fim do semestre. Zenilda preferiu ir para casa descansar, mas seu avô não sabia, não foi buscá-la no ponto de ônibus. A jovem foi para casa sozinha e, no meio do caminho, foi abordada por um estranho armado. Ao contar do trauma, ela relembra suas palavras: “Vem comigo, aqui tem seis balas para você e para quem se meter”. Zenilda conta que não existia nada além do choque, do medo, de suas pernas bambas e seu braço sendo puxado. A jovem demorou um certo tempo para perceber que aquele percorria o caminho até o lugar onde seria estuprada. Naquele momento, não existia alfinete que pudesse salvá-la, não existia herói. “Nesse momento, quando você escuta uma coisa dessa e sente a arma, você perde a força, as pernas bambeiam, eu fiquei enfraquecida... Tinha que baixar a cabeça, fingir que tava tudo bem. Ele me levou para um labirinto de pneus, onde mandou eu tirar a roupa e eu fiquei paralisada, foi quando ele me deu um tapa na cara. Até hoje, eu lembro nitidamente, eu levantei, ele continuou me


Vida adulta e profissional Um tempo se passou, e Zenilda achava que para agradar a mãe tinha que casar de véu e grinalda, e assim o fez. Foi quando veio seu primeiro casamento que, apesar de não sentir prazer, nem um amor incondicional, era o que ela achava que podia extrair da vida matrimonial. Já casada, decidiu ingressar numa faculdade de Direito por conta de seu trabalho na época, que era em um escritório de advocacia. Mesmo a relação com sua mãe estando fragilizada, foi através dela que conseguiu o emprego de datilógrafa numa repartição pública do Rio de Janeiro. Logo quando se formou, passou em um concurso interno nesse mesmo órgão. Além disso, concluiu duas pós-graduações e foi construindo seu patrimônio, sua vida financeira, e tudo o que ela almejava profissionalmente quando mais nova, veio.

Relacionamentos Após seis anos e meio do primeiro casamento, engravidou de seu primeiro filho. “A gravidez sozinha, o Natal sozinha, porque o pai do meu filho surtou. Queria farra, bebia demais, quem ainda me socorria era a vizinha que morava perto. Até minha mãe parou de falar comigo. Quando meu filho nasceu, esse meu marido pediu mais uma chance. Por conta do filho pequeno, dei, mas durou pouco tempo, dois ou três anos. Depois o casamento acabou, porque eu não conseguia esquecer as coisas que tinham acontecido”. Ao conhecer outro homem completamente oposto ao ex - sem vícios, centrado -, eles se relacionaram, mas cada um em sua casa. Até que Zenilda engravidou de seu segundo filho e eles

decidiram morar juntos. Ela conta que conheceu uma nova face dele - cheia de “dogmas, metódico demais”. Ao passar do tempo, ele começou a rejeitar seu filho mais velho, o que deu início a mais uma relação conflituosa, gerando a segunda separação. Em meio a esse caos, a vida profissional continuava em ascensão. Ela conquistou um certo espaço no seu trabalho, passou a chefiar o setor, conseguiu gratificações e, assim, foi conseguindo manter seus filhos, fazendo o possível pela educação e bem estar deles. Nessa época, Zenilda conheceu o terceiro homem que passou por sua vida, porém foi mais uma relação difícil: “Esse homem se aproveitou, viu das minhas carências, né? Das minhas necessidades e eu fui caindo na conversa”. Até que começaram os conflitos dentro de casa, causando mais um rompimento. “Foi nesse ponto que eu desisti de homem”, afirma, e de uma forma inesperada, ela decidiu dar uma chance para se envolver com mulheres. Antes desse estalo, relações homoafetivas nunca haviam passado por sua cabeça, “na verdade, quando jovem, nem sabia que isso era possível”. Infelizmente, foi mais um relacionamento fracassado: “Essa mulher acabou com minha vida, destruiu todo meu patrimônio, foi dessa forma que ela entrou na minha vida [...] eu achava que ia ser tudo diferente,

Zenilda nasceu em 1960, em Nova Iguaçu (RJ) e, já na infância, lidou com o autoritarismo da mãe e importunações sexuais.

Ainda jovem, Zenilda trabalhava o dia todo e, à noite, ainda conseguia ir para a escola, sua prioridade. Fotos: Arquivo pessoal

batendo, e eu tirei a blusa, enquanto ele me batia […] até quando eu tirei tudo”. Na hora em que “sentiu a morte”, ela clamou às “almas santas benditas”, as quais ouvia sua mãe rezar. Chamou por Jesus e pediu para aquilo tudo acabar. Até que acabou, o homem mandou ela se vestir e ir embora correndo. Ela tinha 18 anos. Naquele dia, sua virgindade lhe foi arrancada. Quando chegou em casa, ela desmaiou, estava muito machucada e o seu nariz quebrado, sua avó queimou suas roupas e, por decisão de sua mãe, se mudou para a casa de uma tia, em Nilópolis. Na nova casa, Zenilda dormia em um sofá-cama na sala, com seu primo, cada um em um canto. Tudo parecia estar ficando bem, até ela ser acordada com o marido de sua tia, molestando-a e tapando sua boca. Depois, ela não conseguiu mais adormecer, sua reação foi chorar.

Já casada, decidiu cursar Direito por conta de seu trabalho em um escritório de advocacia.

Zenilda é mãe de dois filhos, frutos de seus dois primeiros casamentos.


tudo maravilhoso e só quebrei a cara [...] Ela usou e abusou de tudo que pôde. Quando saiu da minha vida, eu tive que vender tudo, me descapitalizar de tudo, só para pagar dívida”. Antes de se separar dessa mulher, Zenilda tentou suicídio. Foi uma fase dura, ela foi encontrada pelo seu filho mais novo.

Alçando voo Ela passou quase dois anos sem querer sair de casa, desenvolveu a síndrome do pânico, ficou por demais fragilizada. Ao começar a se tratar psicologicamente, conheceu sua atual esposa que, segundo ela, foi quem mudou sua vida. Ao lado dela foi onde descobriu que podia ser amada, se sentiu acolhida, viu que amor não se tratava de dinheiro, descobriu o companheirismo e a paz que uma relação saudável pode proporcionar. Hoje, Zenilda é candomblecista, filha de Oxum. Ela conta que o Candomblé a ensinou a ter empatia, a pensar no próximo, algo que nunca havia aprendido antes: “A gente aprende muito frequentando um lugar assim. Aprende com os mais velhos a ter uma visão melhor da vida e das pessoas, a ser mais humilde, porque de onde eu vim ninguém tinha me ensinado a como tratar o outro”. Quando pergunto sobre porto seguro, Zenilda fala que visualiza seus filhos, sua companheira e seus bichos… Ela diz que hoje vê alegria na vida, consegue ver felicidade do acordar até o dormir, está feliz em respirar, em ter a vida que tem. No fim de nossa entrevista, ela deixa um recado: “Eu espero que meus relatos incentivem mulheres a criarem uma força dentro de si e ver que todas nós podemos superar tudo, tudo, porque somos fortes, entendeu? Toda mulher pode chegar aonde ela quiser”. No começo da entrevista, ouvi que, quando criança, Zenilda queria ser aeromoça. Mal sabe ela que já alçou voo há muito tempo, porque a vida é isso, várias tentativas, às vezes há turbulências, mas com paciência podemos visualizar o céu azul. Ela está voando de uma forma linda agora e que nós voemos com ela!

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Quando pergunto sobre porto seguro, Zenilda fala que visualiza seus filhos, sua companheira e seus bichos… Ela diz que hoje vê alegria na vida, consegue ver felicidade do acordar até o dormir


Foto: Vitor AntĂ´nio


COLUNA

Quem está te obrigando? Para abrir a coluna Quebrando o Armário, assinada exclusivamente por repórteres lésbicas, bissexuais, transsexuais e travestis, Bento Caetano (26) fala do seu processo de se reconhecer como homem trans e das experiências vividas em busca de respostas sobre gênero e sexualidade. Bento relata como um relacionamento abusivo o adoeceu e questiona a reprodução de discursos transfóbicos nas redes sociais. Corpos, preconceitos e anseios interagem num relato honesto de alguém que sente o peso das relações baseadas naquilo que alguém tem entre as pernas. TEXTO | Bento Caetano ILUSTRAÇÕES | Andréa Sobreira

Não lembro exatamente que idade eu tinha quando percebi que não era uma garota, mas foi cedo. Cresci em uma família tradicionalmente religiosa e fui ensinado desde pequenininho a fazer orações antes de dormir. Lembro perfeitamente de sussurrar baixinho todas as noites: “Deus, por favor, proteja papai e mamãe”; sabe, aquele terror que temos de perder os nossos protetores. Em outras noites, essa mesma oração era seguida de um pedido inocente que só poderia vir do coração puro de uma criança: “Deus, por favor, amanhã quando acordar, que eu tenha me tornado um menino.” Acordava e corria para o espelho, para conferir se Deus tinha me atendido. Nessa idade, queria ser como o Senninha, personagem infantil baseado no Ayrton Senna. Corria pela casa desprezando as bonecas para brincar com o estilingue do meu irmão – não porque existe “brinquedo de menino” e “brinquedo de menina”, e sim porque uma criança não sabe disso, e eu queria o estilingue. Meus pais foram gentis com essa criança. Eu era um menino que ainda não entendia que apenas era diferente dos outros meninos. Em casa, me 52 | Bárbaras

sentia seguro, mas as outras pessoas podiam ser cruéis quando eu não queria me portar como uma menina “deveria ser”, de acordo com as certezas burras que elas têm do que é normal e o que não é. Aos onze anos - mais ou menos -, a minha mãe, antes católica, tornou-se evangélica. Naquele começo fervoroso de uma nova crença, ela acreditava completamente em um inferno punitivo. Com uma curiosidade genuína e boba, eu queria entender o que era o inferno. Consegui na igreja que a minha mãe fazia parte – e que mais tarde a entristeceu por ser preconceituosa –, um livro que jurava ser a revelação do castigo eterno. Não me choquei com as celas minúsculas de sofrimentos infinitos que a autora descreveu. Ela dizia que os vermes comiam os pecadores dos pés à cabeça, e esses gritavam em agonia. Aquilo não fazia o menor sentido para mim. Tive sorte por ter pais que me ensinaram a acreditar em um deus gentil e amoroso como eles eram comigo. Repito, tive sorte. Geralmente não é assim para pessoas como eu. Levei muito a sério o perdão que me foi ensinado, o amor que compreende e liberta, e muitas vezes



ao longo da vida sofri por isso. Mas essa é uma parte da história que devo concluir mais tarde. Ainda entre as páginas do livro, lia os absurdos de uma escritora fanática e, na minha inocência, algo me puxou naquele livro: havia a história de uma mulher que era uma “bruxa” e podia assumir forma física diferente da sua. Ao morrer, foi condenada ao inferno, porque em vida havia trocado a sua alma pela capacidade de se transformar em um homem. Aquilo não saía da minha cabeça e me perturbava de um jeito que eu não conseguiria explicar a mim mesmo. Certa noite, essa criança não conversou com Deus; com uma angústia que não entendia, pesando no peito, quis vender a minha alma. Faria qualquer acordo, porque não podia estar errado quanto ao sentimento de não ser uma garota... Ou eu era anormal? Obviamente esse momento me custou culpa mais tarde. Uma criança cristã não deve cogitar um acordo com o Diabo, certo? Na adolescência, as minhas orações se tornaram uma pergunta que me massacrava: por que

eu não nasci um homem? Por que Deus me fez assim? Muitos anos se passaram até o dia que eu entendi que não encontraria a resposta na religião; até o dia em que finalmente entendi que não havia nascido no corpo errado. Não foi no começo da adolescência e nem sequer no começo da vida adulta, o dia em que finalmente aceitei quem sou.

Corpo, identidade e sexualidade Antes dos anos me trazerem conforto e esclarecimento, essa pergunta ainda me maltratou muito. Por portar feminilidade e gostar de moças e rapazes, achei que a grande charada da minha vida se resumia em eu ser uma garota bissexual. Como garota, nunca fui “bofinho” - estereótipo caracterizado por performances masculinizadas, de acordo com os conceitos binários da sociedade -, o que tornou chocante para alguns, anos mais tarde, eu me assumir como um homem trans. Às vezes, quando a gente finalmente encontra a resposta para uma pergunta que nos perturba por


tempo demais, eu garanto: a gente vê que procurou em todos os lugares errados. Namorei meninos, namorei meninas e, no começo da vida adulta, entendi o que dizem sobre o amor ser aquilo que nos muda; aquilo que para bem ou para mal, mexe muito conosco. Não tive a sorte de ser mudado para o bem nesse amor específico. Ainda me entendendo como garota bissexual, amei outra garota que se entendia heterossexual. Deve ser um clichê, no fim das contas: o segredo entre amigas que na verdade não é segredo para ninguém. O problema em amar aquela menina era muito maior do que eu sabia. Por quase cinco anos, vivi algo extremamente abusivo. Fui muito machucado. Quando finalmente consegui sair daquilo – e lutei muito por isso –, mal me reconhecia. Durante aqueles anos, enquanto abaixava a minha cabeça e deixava alguém enfiar os pés no meu peito me diminuindo e me calando, mutilando a minha autoestima, eu pensava todos os dias: nada disso aconteceria se eu fosse um homem, não é? É claro que relações abusivas parasitam suas maiores fraquezas; são pessoas que sabem tocar exatamente no que mais nos machuca, mas eu ainda não entendia isso, e me sentia muito insuficiente. Sempre tive uma relação delicada com o ato sexual, uma dificuldade particular de me deixar ser tocado, porque quase sempre me sentia mal depois. Mesmo quando me achava atraente ao me olhar no espelho, era difícil me sentir assim. Mas, antes de sentir o impacto dessa relação, eu era alguém que naturalmente gostava de ter os famosos contatinhos; flertar, beijar na boca e me apaixonar (poxa, sou libriano!)... Isso mudou. Quando amamos alguém, queremos ter uma boa lembrança da primeira vez que beijamos essa pessoa, não é? A lembrança mais pungente que tenho desse momento é que, enquanto nos beijávamos encostados na parede de um banheiro, ela afastou a boca da minha e disse: “queria tanto que você fosse um cara, que você tivesse um pau”. Eu não reagi. No dia seguinte, com ar indiferente de quem faz qualquer piadinha cruel, ela me lembrou que “gostava de rola” e que o quê aconteceu entre nós tinha sido apenas um momento. Eu entendi. Acontece, não é? O que eu poderia fazer? Mas esse “momento” se repetiu. Perdi a conta de quantas vezes ficávamos juntos e depois ela se tornava indiferente; ou de quantas vezes fui humilhado e manipulado. O discurso que resumia as pessoas em uma genital também se repetiu por anos – não só para

somente quando busquei em mim mesmo o amor que queria receber dos outros, foi que encontrei meu descanso

mim, mas a qualquer um que ousasse questionar se ela e eu tínhamos algo. Dizia para todo mundo que não gostava do que eu tinha entre as pernas, e nunca entendi a crueldade específica de ter que mencionar a genital, mas eu achava que cada pessoa tem suas razões e que o motivo de me incomodar tanto era, também, só problema meu. Quando ela precisava de alguém, era sempre a mim que procurava; era comigo que estava quando ninguém mais estava lá. Sempre que ela queria, eu estava lá. E a verdade é que ficava porque eu queria que ela me amasse. Parte de mim acreditava quando ela dizia que eu era a exceção. A gente se agarra nas migalhas torcendo que um dia elas se formem um pãozinho, sabe? Gostamos de acreditar que pode mover e mudar as coisas. E as pessoas também. Quando elas choram arrependidas e pedem desculpas vezes demais, a gente se acostuma também, sem perceber que não há mudança alguma. Eu aguentei tudo e só entendi o quanto me machucou e mudou muito tempo depois. Naquela época, acreditava que ela apenas não aceitava a própria bissexualidade. Por questões que também deviam ser só dela. E talvez fosse isso mesmo, em parte. Eu, mais do que ninguém, posso afirmar que é difícil, quase sempre, aceitar quem somos de verdade. Também levei anos para entender as particularidades do corpo, sexo, sexualidade, identidade… Levei mais alguns anos para entender que a confusão, a tristeza ou a ignorância de alguém não justificam que ela te destrua. Independente das questões que ela tinha consigo, nada justificaria tudo o que aconteceu. Talvez eu fosse permissivo Julho/Agosto 2020 |

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demais... Ainda não descobri como não me culpar, na verdade. Veja, é claro que o fato de eu me sentir facilmente trocado por homens cisgêneros que eram medíocres era terrível. Estar sempre ali sendo o suporte emocional, dedicando o meu sentimento e o meu tempo e, de repente, ter que ouvir sobre aqueles caras que sempre a decepcionavam – e pior, a objetificavam – como se fossem grandes conquistas, era tragicômico. Somado ao fato de nunca ter sido assumido e ter que guardar segredo para protegê-la, vendo-a indignada se alguém insinuava existir algo entre nós, sim, doía. Mas não se tratava só disso. É difícil dizer que ela foi a minha namorada, porque não é a verdade. Era como se eu só existisse para ela quando ninguém mais estava olhan-

entre as pernas. Nós somos levados a acreditar de muitas formas que somos inferiores a pessoas cis. As questões dentro desse momento da minha vida são das mais variadas. Eu perdoei e aceitei demais. Acreditava que o amor deveria ser muito maior do que posse – na verdade, ainda acredito e sempre irei –, mas não era assim que ela agia comigo. De modo breve posso dizer que precisei de muita ajuda para me convencer que eu não era apenas um objeto, um fetiche; alguém impossível de amar por ser sempre insuficiente, o que inevitavelmente fazia com que eu fosse sempre usado, enganado ou tomado como garantia; sempre em desvantagem, sempre culpado, errado e louco. Tudo o que aconteceu durante aqueles anos me agredia nas coisas mais delicadas, e me isolou das pessoas e das coisas de que eu mais gostava. Fiquei apagado como se alguém tivesse quebrado a lâmpada dentro de mim. Nada me movia muito. Um relacionamento abusivo é devastador como dizem ser.

A resposta

Na adolescência, as minhas orações se tornaram uma pergunta que me massacrava: por que eu não nasci um homem? Por que Deus me fez assim?

do. Naturalmente, me sentir sempre como se fosse algo que ela tinha vergonha, me fazia pensar: se eu fosse um desses homens, ela seria diferente comigo. E quando mais tarde precisei enfrentar a pergunta que me massacrava desde a infância, não sabia mais se ela sempre existiu ou se estava ali porque fiquei tempo demais desejando ser um desses caras que ela escolhia sem muitos critérios (apenas porque entre as pernas, eles tinham o que ela dizia gostar). Passar tanto tempo com alguém que não me respeitava na condição de ser humano e me fazia sentir minúsculo de tantas formas, deixou uma bagunça enorme aqui dentro. Quando penso em todas as vezes que desejei não estar vivo, é um sentimento parecido com o que mora em imaginar que para algumas pessoas um ser humano não é o suficiente para ser amado e desejado pelo que tem 56 | Bárbaras

Ainda hoje, me pego tentando vencer os monstros daquilo que me foi feito e dito repetidamente. Muitos desses monstros atentavam diretamente ao meu corpo e à relação que eu tinha com o sexo – em especial, com a minha genital. Não é sempre a grande questão? Gostar de pau, gostar de buceta... Parece que é sempre disso que se trata, não é? Bem, vamos por partes. Quando digo que não me reconhecia no fim dessa relação abusiva, assumo que nunca mais tive facilidade para me abrir com alguém. Assumo, principalmente, que transar com uma pessoa era uma tarefa que me parecia impossível. Enquanto eu tava tentando recolher meus cacos, em uma autodefesa que comecei a usar quase como quem carrega uma armadura por pura necessidade de sobreviver, eu me envolvi amorosamente com uma menina. Era uma garota lésbica. Quando se apaixonou por mim, creio eu, teve de encontrar partes muito tristes da minha autoestima devastada – não foi fácil para ela e os tropeços daquele começo foram muitos. Não sentia que podia confiar em alguém novamente, mas ela me assumia, carregava a garota que eu performava para todos os lados com a mão na cintura – e eu sabia que ela fazia isso mesmo quando eu estava longe de estar na minha melhor fase. Tudo que eu pensava era em fugir para me proteger. Ela me adorava por completo, fosse como fosse. Era assustador e novo para mim. Alguém que me achava atraente, sentia tesão em cada parte do meu corpo e tinha interesse no que eu tinha para


dizer ou no que acreditava; também não me criticava por tudo, e eu... Sei lá, pensei, em algum momento: bom, finalmente, finalmente!, posso descansar. Não conhecia mais a intimidade de um carinho, costumava agradecer quando ela fazia qualquer coisa boa que fosse. E ela me dizia: por que você me agradece se eu estou só fazendo o mínimo? Você não deve aceitar menos que isso nunca. Hoje, sem autopiedade, apenas relatando a verdade, vejo o quanto precisei caminhar de volta para mim, reconstruindo com paciência, amor e muita ajuda, minhas partes. Esse relacionamento, embora tenha terminado por motivos diferentes, foi importante para eu entender uma série de coisas. Nós tínhamos nossas dificuldades, como qualquer casal, mas ela foi gentil comigo em uma época que precisei de gentileza.

Achava que aquela grande questão sobre o sexo e, bem, meu corpo, minha buceta, o meu sentimento de inadequação, iam sumir com o tempo. Mas não foi bem assim. Foi bem aí que entendi que a resposta também não estava ali. E que jamais estaria em outra pessoa. Adianto, contudo, que foi durante esse relacionamento que finalmente tive coragem para conversar com alguém sobre a minha transsexualidade. A sexualidade, diferentemente da outra experiência, nunca foi argumento para desrespeito aqui. Ela buscou me ajudar e assim como me amou antes, também me amou como um garoto. Percebe a diferença? Embora a resposta não estivesse em outra pessoa, o amor aqui mexeu comigo para o bem. E eu nunca mais aceitei o oposto. A discrepância entre alguém que me diminuía por qualquer coisa e alguém que me aceitou, abraçou e Julho/Agosto 2020 |

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cuidou, fez com que eu percebesse que o problema nunca esteve em mim. Alguns anos antes, em 2014, quando ainda estava preso no relacionamento abusivo, conheci um menino trans. Graças a ele comecei a pesquisar sobre gênero. Numa madrugada, com a mesma angústia particular que tantas vezes mencionei nesse texto, eu lia o relato de uma mãe que tinha uma filha trans e caí no choro. Era um texto muito sensível e triste, a busca por respostas parecia muito com a minha inquietude. Chorei compulsivamente por horas, porque parecia finalmente ter encontrado algo que me aproximava da resposta que buscava. Sabia que aquela era a minha situação. Aquela garotinha era uma criança como fui quando fazia as minhas orações. Mesmo depois dessa noite de choro compulsivo, não sabia como lidar com isso. O que eu poderia fazer, afinal? Sufoquei-me. Somos levados a acreditar que devemos nos esconder para sermos aceitos e amados, entende? Abordar o assunto com outras pessoas parecia impossível para mim. Abordar comigo mesmo era imensamente doloroso – foi o que eu entendi com aquela madrugada e aquele choro. Esse choro e esse momento específico em 2014 vinham sempre em minha mente cada vez que eu passava sufoco questionando se um dia

Se, para você, é impossível enxergar alguém além do que ela tem entre as pernas, lamento

me sentiria suficiente ou se me sentiria derrotado para sempre...

Descanso Quando digo que entendi que a resposta não estava em outra pessoa, falo de um processo extremamente doído, pois foi apenas no ano de 2019 que parei de lutar contra mim mesmo. Durante esses anos, fui consumido por depressão e ansiedade. Em algum momento, antes de ter coragem de enfrentar a questão, não me suportava mais. Não conseguia encontrar uma maneira de viver sem sentir a dor de sempre me imaginar sendo rejeitado. Achava que eu nunca seria suficientemente homem. Isso foi construído dentro de mim pela sociedade em que vivemos, e pelo que vivi pessoalmente: pensar em mim como alguém com uma buceta me fazia acreditar que ninguém nunca me enxergaria como sou. Quando me senti compreendido no segundo relacionamento, foi grandioso e importantíssimo, mas somente quando busquei em mim mesmo o amor que queria receber dos outros, foi que encontrei meu descanso. Esse não é um texto que busca resumir as coisas em sabedoria barata; aqueles discursos pré-fabricados que nos dizem que amar a nós mesmos é o suficiente para viver bem, como se fosse fácil. Esse é um texto que busca explicar às pessoas o superficial sobre o quanto é - para nós -, muitas vezes, difícil e doloroso entender e abraçar a quem somos.

“Não sou transfóbica(o), mas…” Hoje, vivendo o começo da minha transição, sabendo completamente o quanto fui abençoado em aspectos que muitos de nós não somos, acompanho o mundo de cabeça para baixo. Torço para que, eventualmente, as pessoas se infor58 | Bárbaras



Estamos exaustos de odiar quem somos por causa de opiniões que não pedimos

mem mais. E se eduquem para não falar bobagem - seria o mínimo. Como exemplo, cito o motivo de eu ter decidido escrever esse texto. Acontece frequentemente: uma discussão é levantada no Twitter sobre nós. Todos os rodeios que fiz até aqui, embora tenham servido um bocado para limpar feridas antigas, são para chegar nessa discussão. No Twitter, sempre surge alguém, não se sabe de onde, para dizer que não se relacionaria com uma pessoa trans: “não por ser transfóbico”, mas “porque não gosta de pinto”, “não gosta de boceta” e “ninguém é obrigado”. Alguém que não é transfóbico, mas sente a necessidade de jogar sal na ferida de pessoas que passaram por processos tão dolorosos quanto o meu, em particularidades diferentes. Você, algum dia, parou para pensar como é a relação de uma pessoa trans com o próprio corpo, dentro de uma sociedade que impõe constantemente que ela se sinta uma aberração? É preciso ser cruel para comparar sexo com uma mulher trans ao estupro corretivo – algo comum nessas discussões. Não sei comunicar quão doloroso é ler algo assim. Bom, tenho familiaridade com esse discurso, como você já sabe, pelo que contei nestas páginas. Pode parecer algo diferente, mas no fim é a mesma coisa. Para começar, Eu, Bento, homem trans, gostaria de perguntar a você, que está usando sua rede social, defendendo que ninguém é obrigado a transar com uma mulher que tem pênis ou com um homem que tem boceta: quem está te obrigando? Enquanto lutamos pelas nossas vidas, carregando o peso do massacre diário que é viver no país que mais mata transsexuais no mundo, vos digo: 60 | Bárbaras

não estamos, definitivamente, buscando sexo que não seja consensual. Para começar, é muito complicado olhar para nós e perceber pessoas que são feitas para algo além de uma transa? Veja, nós temos os mesmos anseios que você. Queremos trabalhar. Queremos criar. Amar. Viver! Por que olhar para nós e imediatamente presumir que é necessário dizer que não transaria conosco? Não. Não somos estupradores. Não somos objetos, nem fetiche. Nós queremos, naturalmente, nos relacionar com pessoas que não nos desprezam. Se, para você, é impossível enxergar alguém além do que ela tem entre as pernas, lamento. A resposta que eu encontrei ao descobrir que não sou insuficiente - depois de ter acreditado por tanto tempo que era a minha buceta que me fazia menos homem -, é a mesma que desejaria que toda pessoa trans pudesse encontrar dentro de si: o problema não está em nós.

Opiniões que matam Não é da minha conta o que te faz pensar que declarar algo assim é uma informação essencial, indispensável, construtiva. Se você não estiver disposto a ouvir uma realidade que não é a sua e se educar minimamente para não ser um imbecil, provavelmente nunca vai entender o quanto esse discurso ao léu é transfóbico. Apesar de acreditar no diálogo, eu já desisti de tentar com pessoas de coração e mente pequena. É impossível ensinar a gentileza a quem naturalmente despreza a empatia. O meu desejo, e acredito que o de muitos de nós, é somente que você - quando possível - não fale nada. Fica na tua. Veja, é claro que você não é obrigado. Ninguém está dizendo isso. Na verdade, na maioria dos casos, quando esse discurso começa, quem é que está dizendo alguma coisa? Quando entrevistei uma mulher trans para a terceira edição da Bárbaras, ela me contou que tentou mutilar o próprio corpo várias vezes. O que te faz pensar que você sabe como cada pessoa trans lida com a própria genital? O que confere a ti, alguém que jamais entenderia o que é estar num corpo como o nosso, a certeza de que você adivinharia - só de olhar -, como é a relação dessa pessoa com o ato sexual e como ela


interage com o próprio órgão e o do outro? Você não sabe. É claro que se o sexo para você só funciona se existir um buraco e algo para meter ali, o problema vai muito além de nós. Você provavelmente fode mal. Mas nós estamos exaustos de ouvir bobagens como essa, sabe? Pequenezas e construções sociais que resumem corpos a ideias tão limitadas. Estamos exaustos de odiar quem somos por causa de opiniões que não pedimos. Quem dera

essas opiniões fossem apenas opiniões. Que elas não machucassem. Que elas não nos matassem. Corpos são plurais. Falo por todos os que são como eu: cada um carrega a sua história e as suas infinitas particularidades. Quando você olha para um de nós e imediatamente diz que não se relacionaria porque não temos algo entre as pernas, isso fala mais sobre limitações suas do que sobre as nossas. Deixe para nos dizer sim ou não se nós te perguntarmos, assim como você desejaria que fizessem contigo.


ENTREVISTA


Mulher lutadora

a busca pelo reconhecimento no esporte Na nossa sociedade, a mulher que vive pelo esporte ainda é muito questionada sobre seus conhecimentos e habilidades, tendo que estar o tempo todo mostrando que é capaz de ocupar aquele espaço. Mas mulheres podem, sim, ser jogadoras, lutadoras, nadadoras ou qualquer outra coisa que quiserem, e têm o direito de serem respeitadas nesse espaço. TEXTO | Aline Fiuza e Bárbara de Alencar FOTOS | Arquivo pessoal

Maria Ribeiro tem uma forte relação com as artes marciais. Por isso, ela criou o projeto social “Tatame Cidadão”, que engloba o taekwondo, a capoeira e o karatê.

Historicamente, nunca foi fácil nos posicionar e falar do que gostamos, pois há muitos elementos no mundo designados apenas para “o homem”. Sempre tivemos que nos esforçar duas, três ou até dez vezes mais para provar nossa capacidade, embora não fosse necessário comprovar nada para garantir direitos iguais e respeito. Em Atenas, na Grécia, as mulheres eram proibidas de participar ativamente (como competidoras) e passivamente (como espectadoras) dos Jogos Olímpicos da Antiguidade, isso porque as competições selecionavam os vitoriosos de acordo com os ideais de agilidade, força, velocidade, competitividade, entre outras qualidades físicas que acreditavam ser pertencentes apenas ao gênero masculino. No Brasil, não foi diferente; na própria legislação brasileira, no período da Ditadura Militar, esportes como o jiu-jitsu foram proibidos para mulheres. O Artigo 54 da Constituição Federal Brasileira de 1937 dizia: “Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas

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do país” (Decreto-Lei Nº 3.199, de 14 de abril de 1941). Em 1965, o Conselho Nacional de Desportos decidiu que: “Não é permitida a prática de lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo-aquático, pólo, rugby, hanterofilismo e baseball”. Entretanto, com o passar dos anos essa ideia de exclusão de gênero para determinados esportes foi se extinguindo devido à luta das mulheres,

que aos poucos foram se inserindo no meio, mesmo com os “olhares tortos” dos homens e muitas vezes até de outras mulheres. Mesmo conquistando esse espaço aos poucos, as dificuldades ainda são muitas. Além do árduo trabalho para conseguir patrocinadores, as diferenças salariais são exorbitantes, por exemplo: a média salarial das jogadoras que compõem os elencos dos principais times do Campeonato Brasileiro de Futebol gira em torno de R$ 1.880,00. “O esporte ainda não tem o reconhecimento que precisa, principalmente quando não é o futebol”, diz Maria, sobre a dificuldade do taekwondo ser reconhecido na sociedade.

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Já o salário do jogador Neymar Junior é cerca de 75 vezes maior do que a soma do salário de 100 atletas femininas juntas.

Maria e o taekwondo A luta por igualdade dentro do mundo dos esportes não foi diferente para Maria Ribeiro (27), professora de taekwondo, que defende que nós, mulheres, devemos ocupar uma posição de liderança para termos mais espaço nesse meio. “Tenho certeza que nós temos uma mente pensante e muito articuladora. Então, o lugar de mulher é onde ela quiser estar”. Maria é natural de Várzea Alegre (CE), onde desenvolveu um projeto que tem transformado muitas vidas. Ela é uma das fundadoras do projeto “Tatame Cidadão”, que está vinculado à Secretaria de Assistência Social do município e oferece aulas de artes marciais, como taekwondo, karatê e capoeira, para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Desde criança, ela mantém uma relação forte com o esporte, principalmente com as artes marciais. Seu maior sonho era se tornar uma atleta profissional, mas sua família não entendia o esporte como uma profissão. Ela relembra que teve que enfrentar o preconceito dos seus pais: “Vivo em uma cidade no interior do Ceará e a minha família sempre foi do sítio. Para eles não era normal uma menina querer jogar bola ou praticar lutas. Então, eu sempre tive que bater de frente com as barreiras do preconceito”.

“O esporte salvou e transformou a minha vida” Apesar disso, ela nunca pensou em desistir. Aos 16 anos, deixou o sítio Canindezinho e foi procurar melhores condições de vida em São Paulo. Na busca pela realização dos seus sonhos, esperava encontrar mais oportunidades no estado paulista. Lá, conheceu primeiramente o boxe e o jiu-jitsu, só depois descobriu o taekwondo e “foi amor à primeira aula”. “Fui convidada para fazer uma aula experimental e me apaixonei pela arte. Desde 2010, eu treino taekwondo. Comecei a treinar, me apaixonei e não parei mais”, diz. Segundo ela, o que a atraiu no taekwondo foram os seus fundamentos, por ser uma modalidade que tem regras mais rígidas e que, além dos golpes, ensina e ajuda na formação enquanto pessoa. Foi através do esporte que ela teve sua vida transformada por completo. “Eu digo que o esporte salvou e transformou a minha vida, porque eu não sei o que seria de mim sem o esporte. Quando eu me assumi homossexual, sofri vários preconceitos, inclusive, passei por

uma tentativa de estupro e foi o esporte que me levantou. Foi ele que me fez seguir em frente mesmo quando havia uma crise de depressão, que eu pensei que era algo que não existia por nunca ter escutado falar, e o esporte me tirou daquilo”.

De volta ao interior Entretanto, em São Paulo, além das oportunidades no esporte, encontrou muitas dificuldades, chegando a dormir na rua e passar fome. Mas uma coisa a impedia de retornar para o Ceará: ainda não tinha conquistado a certificação para dar aulas de taekwondo. Então, ela explicou a situação para seu mestre, que ofereceu uma chance para ela fazer o exame como um presente de despedida. A atleta fez o exame de faixa, foi aprovada, recebeu os certificados e retornou para o Ceará com o intuito de dar aula em sua cidade. Porém, encontrou mais obstáculos nos seus sonhos. Quando voltou para Várzea Alegre, em 2016, buscou emprego nas academias na tentativa de implantar aulas de taekwondo mas, mesmo com seus certificados da modalidade e oito anos de

Quando eu me assumi homossexual, sofri vários preconceitos, inclusive, passei por uma tentativa de estupro e foi o esporte que me levantou. Foi ele que me fez seguir em frente mesmo quando havia uma crise de depressão

prática no esporte, recebeu “não” de todas elas por não possuir uma graduação em Educação Física. Ela acredita que, na verdade, eram apenas desculpas cobertas de machismo por ser uma mulher. Porém, foram os “nãos” que Maria recebeu da vida que a fizeram ficar mais forte e decidida a persistir.

Tatame Cidadão Em 2017, a Secretaria de Assistência Social da cidade decidiu selecionar oficinas para o Serviço Julho/Agosto 2020 |

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de Convivência e de Fortalecimento de Vínculos pelos Centros de Referência da Assistência Social (Cras). Ali, ela enxergou uma nova chance para conseguir trabalhar com o taekwondo, visto que, a secretaria já oferecia atividades da capoeira. Uma das oficinas foi conquistada por Maria Ribeiro, para as aulas de taekwondo, e a outra por Brendon Silva, com aulas de karatê. E assim, surgiu o projeto Tatame Cidadão, que engloba a capoeira, o taekwondo e o karatê. A atleta recorda os medos e as aflições que sentiu no início das atividades: “Quando iniciamos o projeto, foi um pouco complicado, porque as modalidades da capoeira e do karatê já eram bem conhecidas na cidade, já tinham trazido títulos para a cidade e o taekwondo era novo, com uma mulher dando aula. Eu tinha muito medo da modalidade ser rejeitada pela população”. Entretanto, o futuro do projeto reservava muitas surpresas para a vida da lutadora. As atividades de taekwondo no projeto acontecem nas zonas rural e urbana do município, principalmente em áreas de risco e de vulnerabilidade. Hoje, cerca de 250 crianças e adolescentes estão inscritos, e mais de nove turmas foram formadas ao longo de dois anos. Os treinos tem duração de duas horas, sendo uma aula para os iniciantes e outra para os mais avançados na mo-

não era normal uma menina querer jogar bola ou praticar lutas. Então, eu sempre tive que bater de frente com as barreiras do preconceito

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dalidade, que são os que participam de campeonatos fora da cidade.

Socializar e transformar Para participar do projeto são poucos critérios, basta apenas ter interesse e preencher um cadastro simples com informações básicas. A professora indica que os alunos usem vestimentas confortáveis, não sendo necessário utilizar tênis e, além disso, meninas e meninos de todas as idades são bem-vindos, tornando o esporte acessível para todos que desejam praticá-lo. O aluno começa na turma dos iniciantes e ao longo de sua evolução, faz os testes para entrar na turma mais avançada para participar dos campeonatos, assim, segundo Maria, “ele já começa a ser protagonista da própria história, começa a sair do social e começa a escrever a sua própria história dentro do esporte”. Um dos principais objetivos do Tatame Cidadão é tirar crianças e jovens da ociosidade. Inclusive, médicos e psicólogos encaminham crianças com hiperatividade, ansiedade, depressão e timidez para as aulas do projeto, visto que, o esporte é capaz de socializar e transformar. Hoje, o taekwondo conta com uma grande lista de vitórias e oferece esperança para os atletas acreditarem que seus sonhos são possíveis.

Reconhecimento e conquistas Apesar de ser promovido pela secretaria municipal, a iniciativa ainda sofre com dificuldades financeiras. Por conta do alto número de alunos, a verba não é suficiente para arcar com todos os gastos necessários, como uniformes, equipamentos de treinamento e viagens. Segundo a professora, “O esporte ainda não tem o reconhecimento que precisa, principalmente quando não é o futebol, porque hoje o futebol masculino é o que tem um incentivo financeiro maior. A maior dificuldade é reconhecimento e apoio financeiro”. Porém, mesmo diante disso, as conquistas alcançadas pelo taekwondo de Várzea Alegre foram muitas e vão além do social. No ano de 2019, os atletas conquistaram medalhas em campeonatos de nível estadual e nacional. No Campeonato Cearense, a equipe conquistou 18 medalhas e sete vagas para a seleção estadual. No Super Campeonato Brasileiro, competição de nível máximo do cenário nacional, cinco atletas participaram, sendo duas mulheres: Quetely Gonçalves e Luiza Rayane. Apesar de nenhum ter conquistado medalha, todos enfrentaram de igual para igual atletas da Seleção Brasileira. Já na Copa do Brasil, houve a participação de cinco atletas e a única medalhista


foi uma mulher, Heloísa Almeida. Além disso, a equipe ocupa a quinta posição no ranking do Ceará, além de contar com cinco atletas no ranking nacional e uma delas ficou entre os Melhores do Ano do estado.

Mulheres extraordinárias Os resultados do taekwondo do Tatame Cidadão mostram como as mulheres têm se destacado no meio do esporte e como merecem mais espaço e respeito nessa área. Maria Ribeiro avalia como gratificante ver algumas barreiras do preconceito sendo deixadas para trás: “A maioria das vezes que a gente saiu para representar a Seleção Cearense, foram representa-

preconceito que já viveu por ser mulher em um esporte majoritariamente formado pelo gênero masculino: “No Campeonato Cearense tinham onze homens, entre professores e técnicos, e só tinha eu de mulher. Eles começaram a falar de maneira machista e eu tive que me impor, mostrar que a gente tem o nosso espaço e não foi somente com palavras. Na maioria das lutas que eu fiz contra alguns dos professores, a gente venceu. É tanto que a gente trouxe um número de medalhas muito grande para a nossa cidade, mostrando a eficiência das mulheres também”. De fato, Maria Ribeiro é símbolo de resistência na luta contra o machismo no esporte. Hoje, ela

Heloísa Almeida, única medalhista na Copa do Brasil de Taekwondo 2019.

das por mulheres e todas as vezes que a gente recebeu os destaques, a maioria era pelas mulheres. Hoje, eu posso dizer que a modalidade é muito procurada pelas meninas e esse é o intuito, mostrar que as mulheres podem praticar artes marciais, além de ter uma habilidade para autodefesa, elas também podem ser lutadoras e ser o que quiserem”, afirmou. Entretanto, ainda falta muito para as mulheres serem tratadas igual aos homens no mundo esportivo. Ela relembra algumas situações de

inspira meninas que sonham em, assim como ela, se tornarem lutadoras e professoras de taekwondo. Ela conta que tira motivação de uma frase da escritora Ryane Leão que diz: “nem todo mundo vai compreender isso tudo que você é. O que não significa que você deva se esconder ou se calar. O mundo tem medo de mulheres extraordinárias.” Mulheres ocupando espaço anteriormente designados apenas para homens sempre assustam; e como reflexo da masculinidade frágil que persiste em existir na sociedade, surgem os comentários

Julho/Agosto 2020 |

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machistas mediante ao medo de “perder para uma mulher”. Mulher incomoda. E mesmo estando em seu estado de plenitude, sem se esforçar minimamente, toda mulher se torna heroína por ter que lidar com as adversidades, com os preconceitos, por ter que provar seu valor diariamente e ainda ser questionada sobre suas verdades. O processo para conquista do espaço é doloroso, mas hoje só temos voz pelas que lutaram antes de nós, quebrando os estigmas implantados pela sociedade, e lutaremos pelas nossas futuras gerações. “Eu tenho orgulho da mulher que eu me tornei, de vencer as barreiras do preconceito e hoje ser considerada a voz de muitas pessoas. Aquele grito de socorro, aquela voz que tu um dia calou, eu poder gritar, eu poder falar, eu poder te representar. Então uma das coisas que mais me orgulha é usar a minha voz para defender bandeiras que muitas pessoas têm medo de levantar”, Maria afirma.

Sonhos Ao ser questionada sobre seus sonhos, a professora de taekwondo reforça o desejo de defender e falar por as mulheres que ainda sofrem caladas, além de querer fortalecer as bandeiras que acredita. “Um dos meus maiores sonhos é levar minha voz para o mundo e estar no meio das maiores lideranças femininas defendendo nossas bandeiras”. Além disso, ela quer ver o taekwondo, esporte que tanto ama, se expandir. “Quero ver os meus alunos se tornarem professores, ter alunos participando da Seleção Brasileira. Ver meus alunos sendo protagonistas da sua própria história de sucesso e ver muitos deles entrando para faculdade, criando sua própria oportunidade também”, conclui. Hoje, Maria Ribeiro é inspiração e referência para as mulheres do taekwondo de Várzea Alegre. Ela e todas as outras que enfrentam machismo, assédio e preconceito diariamente no esporte comprovam que são tão capazes de praticá-lo quanto os homens. Portanto, merecem respeito e devem ser valorizadas. Mulher pode ser aquilo que quiser e deve ocupar o lugar que desejar, seja no esporte ou em qualquer outro espaço.

Quetely Gonçalves, uma das representantes do Tatame Cidadão no Super Campeonato Brasileiro, competição de nível máximo no cenário nacional.


Maria e Luiza Rayane estendem a bandeira da cidade de Vรกrzea Alegre (CE), no Super Campeonato Brasileiro de Taekwondo.


Colar

o quê? A repórter Lara Alencar fala da importância da comunicação visual na sua trajetória enquanto estudante de Jornalismo, além de apontar a pouca representatividade lésbica no meio artístico e como as mídias alternativas dão espaço para essas vozes e suas artes. TEXTO & ILUSTRAÇÕES | Lara Alencar

A arte é expressão política, seja ela um ponto em uma folha branca ou um quadro em um museu famoso. A arte é política porque sai de nós, dos nossos corpos. De dentro para fora e, às vezes, de fora para dentro. A vida na arte não diz de onde vem e nem para onde vai. Em terras paraibanas, encontrei uma edição do “Jornal de Borda”, produzido de forma independente. Abri a primeira página e me deparei com o título “POR QUE NÃO HOUVE GRANDES ARTISTAS LÉSBICAS?” e pensei sobre as mulheres. Elas têm seus espaços renegados por causa do gênero. Lésbicas têm seus espaços rejeitados também por sua sexualidade. Eu poderia ficar aqui e me deter a todas as subjetividades das mulheres e como elas são marginalizadas socialmente pela sua raça, classe, gênero e sexualidade. Mas eu falarei sobre mulheres artistas. Eu sempre gostei de escrever, a escrita é uma arte. Com o tempo, comecei a colar. Talvez a leitora pense “colar o quê?” e, dentro do mundo que é a nossa mente, lembrei de um episódio em que - numa aula da faculdade - estava criando uma página de jornal com recortes de outros jornais antigos. No meio disso, uma amiga sapa* postou uma foto da produção dela no Instagram, comentei que a cola quase não dava para colar todas aquelas imagens. Ela respondeu o comentário perguntando que culpa ela tinha se “só sabia colar velcro*”. O velcro que nós - mulheres bissexuais e lésbicas fazemos -, serve para colar os nossos amores. Mas o artivismo* das mulheres LBTT’s vai além dele. Muito prazer, sou colagista e zineira. Faço colagens analógicas e facilito oficinas sobre colagem* 70 | Bárbaras

dentro da perspectiva de comunicação visual e alternativa. Além disso, faço produções de fanzines*. Agradeço às mulheres colagistas por me proporcionarem a singela oportunidade de me reconhecer dentro da arte e da comunicação. Não é fácil produzir dentro de uma proposta alternativa de mídia. Não é fácil pensar formas de levantar as nossas pautas. Mas, não é impossível. A colagem pulsa, ela é arte marginal acessível para todas, todas e todos. A acessibilidade é tudo o que imagino quando me vejo sendo jornalista, eu quero que as pessoas tenham acesso à informação. Eu quero que mulheres tenham acesso. Quando falo delas, o meu coração dói e chora. Às vezes, dói por ver tanta mulher inteligente no mundo sem ter oportunidades, às vezes, chora de alegria com as pequenas coisas que são feitas por nós. A arte não tem padrão, não tem regras, não tem limites. Essa é uma das minhas falas durante as oficinas de colagem que facilito. A colagem é infinita. Pensei em trazer algumas das mulheres que me representam dentro da arte, mas se eu fosse citar todas acho que o texto não teria fim. Agradeço às mulheres que constroem o coletivo Vulva la revolución*, o qual faço parte e sou co-fundadora junto à minha amiga Lua. Pensar o corpo e a sexuliade das mulheres dentro da arte e da mídia alternativa é um sonho meu há tempos e consigo concretizar com as minhas companheiras que são artistas. Dedico esse texto-relato a todas as que acham que não podem ou que não sabem fazer arte. Vocês sabem, meninas. O amor resiste, a arte também.


Glossário 1. Sapa: Abre viação do term o “sapatão”, 2. Colar velc sinônimo de ro: Expressão lésbica. popular que mulheres. indica o ato se xual entre 3. Artivismo : Ato de fazer ativismo atravé 4. Colagem: s da arte. Arte visual pro duzida a parti dos como mat r de vários m éria-prima; ele ateriais utilizas podem ser papéis, fotos, recortes de jo tecidos ou de rnais, revistas mais materiai mente, as cola , s sólidos e ar gens são usa tísticos. Gera das como form contra proble la de criticar o mas sociais. u protestar 5. Fanzines: Produções in d e pendentes e, tas a partir de geralmente, m papel colado an ou grampead textos, image o. Em suas pág uais, feins e colagens inas, trazem de diversas te 6. Coletivo V máticas, core ulva la revo s e tamanhos. lución: Criad ano de 2019. o em João Pess Tem como fin oa (PB), no al idade abordar torno de tem as sobre gêne a mídia altern ativa em ro, raça, classe @coletivovulv e sexualidade alarevolucion . Instagram: .


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