Bárbaras #1

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BÁRBARAS AGOSTO DE 2018 | ANO 1

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Carta ao Leitor Quando a ideia de uma revista feita por e para mulheres nasceu, não sabíamos ao certo para quais rumos ela nos levaria. O nome, então, nos deu a direção primeira: é hora de desvendar outras Bárbaras do Cariri cearense; mulheres com histórias de luta, à frente do seu tempo, da sua vida, das suas escolhas, das suas crenças. Além de remeter à figura de Bárbara de Alencar, que liderou uma revolução na vila republicana de Crato, o título deste projeto faz referência ao significado do dicionário. “Bárbara” vem de barbárie, da Idade Média, onde o termo era usado para identificar pessoas “não-civilizadas”. Ainda hoje, mulheres têm sua dignidade violada, suas decisões desrespeitadas por uma sociedade construída a partir de ideias patriarcais. Tentam nos convencer de que não merecemos respeito e os mesmos direitos que homens, vistos como “provedores” e líderes familiares desde a Idade Antiga. A primeira edição da Revista Bárbaras traz relatos de mulheres, abordando assuntos sobre o processo de se reconhecer, percurso longo e doloroso, onde encontramos diversos obstáculos e precisamos nos tornar fortes muito cedo. É a narração da trajetória de uma vida negra e cheia de batalhas - como a de Valéria Carvalho, nossa capa -, que nos inspira a nos fortalecer. Juntas, aprendemos com ela, referência para tantas outras negras, mães e filhas, que grandes heroínas estão ao nosso lado diariamente e, por vezes, não nos damos conta disso. Além dela, voltamos nossa atenção para quem dá nome à revista. Bárbara de Alencar ficou conhecida por ser uma mulher à frente de seu tempo. Ela era, igualmente, admirada e odiada pelas pessoas que a conheciam. O escritor Gylmar Chaves pesquisa a trajetória da primeira republicana do Brasil há 20 anos, e explica o sentimento de dona Bárbara do Crato e seus filhos na construção da cidadania. As agricultoras foram destaque na Marcha do Dia Internacional das Mulheres de Crato, com cartazes que diziam “sem feminismo não há agroecologia”. Para a Bárbaras, as Margaridas do Sindicato dos Trabalhadores Rurais contam quais são suas principais pautas, o que é feminismo rural e o papel da mulher no suporte à agroecologia. Você já se perguntou se o feminismo alcança mulheres mães? Elas precisam ser ouvidas. O relato de Regilânia dos Santos - mãe, solteira, estudante aborda maternidade, amadurecimento e como a força feminista lhe ajudou a reconstruir suas asas. Desde o Joaseiro das beatas - onde mulheres revolucionaram no ensino, na construção da casa de um 2 | Bárbaras

povo e na religiosidade -, até um convento da Bélgica, em que uma freira teve a identidade abafada por um véu, histórias de submissão feminina dentro da Igreja são contadas por nossas colaboradoras, que desvendam o sofrimento escondido atrás de sorrisos, milagres e figuras sagradas. Benditas sejam elas no meio de nós! A sororidade tá logo ali, no texto sobre um piquenique diferente do habitual. Conversamos com Maria Clara Rocha, uma das idealizadoras do Piquenique Feminista, iniciativa que surgiu como afronta aos casos de machismo nas universidades caririenses. Empoderar em coletivo, através do conhecimento, também é o foco do projeto Mulecas. No Centro de Referência da Assistência Social do bairro Frei Damião, em Juazeiro do Norte, nós encontramos o que pode servir de exemplo para políticas públicas: mulheres produzem, aprendem, e ganham seu próprio sustento. Juntas! É preciso falar das medidas de combate à violência contra às mulheres já existentes. Por isso, a especialista em Serviço Social, Taís Costa, relata o que vê no dia a dia, enquanto mulher e profissional, e quais atitudes ainda estão em falta. Dentre os destaques do ano de 2018 está Marielle Franco. Vereadora, mãe, negra, vinda da periferia. Assassinada e calada brutalmente. Entretanto, desde a trágica morte, sua voz ecoa e serve de combustível para outras mulheres, com os mesmos marcadores sociais, ocuparem espaços na política. Marielle, presente! Mulheres na política, presentes! Pelo chão que percorrem rios e lagoas, mulheres negras pisam a areia branca e conquistam espaços em concursos de beleza na cidade de Iguatu. As modelos Hionara Almeida e Yanne Araújo falam sobre concursos de miss e o preconceito nos bastidores das passarelas. Se for pra sair do armário, que comecemos botando os dedos para fora e escrevendo sobre nossas inquietações. Mulheres querem não ter medo, não ser incomodadas, ao assistir jogos em estádios, viajar sozinhas e sapatear pela visibilidade. Nossas colaboradoras contam suas experiências com esses temas através de relatos leves e cotidianos. O fortalecimento coletivo vem, inclusive, através da leitura. É o que diz Áurea Brito, idealizadora do Clube do Leitor, projeto de incentivo à leitura do Centro Cultural do Banco do Nordeste. A Bárbaras encerra a primeira edição com indicações de leituras transformadoras. Boa leitura! Laura Brasil


Expediente Reportagem Alexia de Mesquita Jayne Machado Laura Brasil Professor orientador José Anderson Sandes Projeto gráfico Hanna França Menezes Diagramação Hanna França Menezes Paulo Anaximandro Tavares Revisão Laura Brasil Edição 1 Juazeiro do Norte, Agosto 2018 Revista experimental do projeto “Bárbaras” vinculado à Pró-reitoria de Cultura da Universidade Federal do Cariri.

Colaboradoras Alana Soares Aline Fiuza Andréa Sobreira Bibiana Belisário Daysianne Kessy Débora Costa Léia Araújo Lorena Kelly Sarah Gomes Taís Costa Ilustradoras Ellen Brasil Larissa Ribeiro Mariana Cagnin Rebeca Henrique Tainah Amaral Agradecimentos Ana Miranda Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec) Regivânia Rodrigues


Sumário

Margaridas vão à luta Página 6

De lagarta à borboleta Página 16

As mulecas do Frei Damião Página 30 4 | Bárbaras


A primeira republicana Página 62

A literatura como identidade Página 54 Mas você sabe o que é um impedimento?

Página 12

Maior apoio à luta feminina

Página 15

Alternativa em meio à violência cotidiana

Página 20

A freira por trás da canção

Página 24

Dedos fora do armário, hora de escrever

Página 42

A magia de viajar sozinha

Página 44

Agora já não preciso ser um gênio

Página 47

Joaseiro das beatas

Uma vida e muitas lutas Página 32

Página 48

Jovens negras e concursos de miss

Página 52

Participação da mulher na política

Página 58

Literatura transformadora

Página 68

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Em movimento

Margaridas vão à luta Cariri é nordeste, é sertão que ainda não virou mar. As margaridas, mulheres fortes, sertanejas e agricultoras, cuidam do solo para proliferar. A Marcha das Margaridas é uma manifestação criada desde os anos 2000 pela luta e sobrevivência da mulher no campo. É a maior mobilização de mulheres da América Latina. Movidas, inicialmente, pelo assassinato Margarida Alves, companheira do movimento sindical, elas perceberam a importância de se unir, não se calar e lutar por seus direitos e por reconhecimento. O espaço ao sol que faz as flores crescerem.

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TEXTO E FOTOS | Alexia de Mesquita

Articuladas, em marcha, meninas, mulheres, senhoras, todas iguais. Na batalha por reconhecimento à dor das que, desde muito novas, trabalham duro para sobreviver. Pelos Sindicatos é que elas atuam mais fortes e é através dele que vêem chances de melhoria às condições de vida. A margarida pertence à família Asteraceae, é parente dos girassóis, crisântemos, e outros, o que faz dela uma reunião de muitas flores. Assim como as flores que as denominam, essas agricultoras mostram o poder da união e coletividade entre mulheres. Aqui, o relato de três dessas trabalhadoras, três margaridas à frente de posições de extrema relevância no movimento sindical.

Fátima Alves Sítio Juá, Ponta da Serra. Uma das diretoras do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Secretária de Mulher, Gênero e Cidadania. – Desde o início de 1999, associei-me ao sindicato. Foi formulado um Conselho de Base e eu fui eleita diretora desse Conselho por ter me destacado. Também, há quatro anos, fui convidada para compor uma chapa e entrei como vice-tesoureira. Fiquei quatro anos no posto, em outra eleição. Fui cotada como Secretária de Mulher, dentro da Secretaria, hoje sou Conselheira dos Direitos da Mulher Cratense, faço parte do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste e represento as mulheres aqui do Ceará. Sou agricultura. Eu acho importante ter entrado no Sindicato como sócia, como mulher. É muito interessante quando a mulher se desenvolve e se destaca nesse meio rural e que as mulheres se sintam representadas por essas entidades. Antes, a gente vivia isolada, em casa, só cuidando do marido, dos filhos, da roça. Hoje, a importância de mulheres ocupando esses cargos é a transformação, a gente se transformou. Quantas mulheres a gente já não trouxe pro movimento?! Agora elas sabem que precisam se dar o seu próprio reconhecimento, uma visão

de feminismo mesmo, porque ela atuou, olhou e conheceu, sabe que o lugar dela não é mais só na cozinha e na roça. Ainda hoje, as mulheres não querem participar dos eventos por conta dos maridos, mas, com a formação, elas vêm e participam das ações e dos cursos. Graças a Deus estamos ficando mais empoderadas. A própria família da gente, os filhos, o esposo, às vezes ignoram nossa luta. A minha família reclama da minha idade, que não posso mais viajar ou participar das coisas, mesmo minhas filhas acham que é besteira, mas a força da gente é grande, que faz eles entenderem que nós, em casa, não podemos resolver nada. Tem que correr atrás não só dos nossos próprios direitos, mas dos direitos dos nossos filhos e netos também, assim como o de muitas mulheres espalhadas pelo mundo inteiro. Hoje, até minha nora liga pra mim, pedindo pra eu conversar com meu filho, pra ele ajudar mais dentro de casa (risos). As nossas bandeiras levantadas são de luta, manifestação, parceria. São bandeiras de mudança, que apontam as transformações que acontecem no meio rural e com as mulheres rurais. Se eu for pensar na mudança que passei, desde nova, recém-casada, até hoje, uma mulher de idade, eu diria que a bandeira de luta foi de grande importância nesse caminho. A minha transformação foi tudo uma questão de querer, quando a gente quer, a gente consegue. Eu fui atrás e achei bom, parece que tenho um negócio de vocação, de querer mudar as coisas. Marchei em Fortaleza e em Brasília, lutando por nossos direitos. Mesmo que agora esse governo tente tirar, meu orgulho é ter lutado, conseguido alguma coisa. Hoje a gente resiste. As mulheres mais resistentes são aquelas que lutam, que vão e trazem pras outras. Só batalhando, trabalhando e vivendo de roça, a gente vive numa situação de sofrimento, sem uma visão mais ampla, de conhecer o mundo, sem saber da possibilidade de melhorias para nós mesmas. Quando se entra no movimento e se conscientiza, a vida muda totalmente. Agora eu tenho autonomia, não fico debaixo de palavra de homem. Se eu quero, eu vou. O feminismo rural, ainda hoje, é mais demorado, poucas mulheres nos sítios entendem o que é isso, de reconhecer a si mesma e aos seus direitos. Eu não tenho muito conhecimento do feminismo urbano, mas percebo que é diferente nesse sentido. O Sítio Juá é quase uma vila, tem muita gente, muita casa. Nós, mulheres, reunimo-nos, trocamos experiências e conversamos. São nessas reuniões que levamos as informações do Sindicato, tiramos Agosto 2018 | 7


Mulheres reunidas na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Crato

dúvidas. É nesse espaço que elas reconhecem que são empoderadas, que têm seus direitos a conquistar. Nós somos uma família. Como eu sou do Conselho do Direito das Mulheres, nas reuniões procuro sempre levar informes sobre o que fazer diante de qualquer caso de violência, desde algo que aconteceu com sua vizinha até uma agressão que seu próprio filho cometeu. A violência se dá, muitas vezes, através da própria família. Falo para me procurarem que levarei para o Centro de Referência mais próximo. É tanto que já aconteceram vários casos nas comunidades vizinhas, em Palmeirinha dos Britos, Ponta da Serra e Santa Fé. Muitas situações foram resolvidas dessa forma. Não há uma grande diferença na forma em como as mulheres mais jovens ou mais velhas acatam essas ideias. O diferencial é que às vezes parece que as mais jovens estão ensinando a gente; mas o sindicato é composto, em sua maioria, por mulheres idosas, que são as que chegam até nós. 8 | Bárbaras

As jovens parecem não reconhecer o valor que tem o sindicato rural. Hoje, os próprios pais incentivam que os filhos estudem, para não ir para roça, porque é um trabalho muito pesado. A visão de direito das mulheres no Sindicato foi algo que cresceu com o tempo, cresceu com o olhar das mulheres que hoje estão dentro dos sindicatos. Antes, a maioria dos participantes eram homens, o machismo era grande. Através das mulheres que entraram no movimento, nosso lugar foi crescendo, atualmente se tem outra visão. Assim, o trabalho de formação e conscientização sindical acontece por meio de encontros com as mulheres nas comunidades. No mês de março, tem o Março Lilás, é o mês inteiro, são trinta dias de programações. Além dos atos nas comunidades e nos sítios, há também nas cidades. Teve um grande ato aqui, no Crato, no mês de março, fomos também para Juazeiro e Barbalha. Nas comunidades, realizamos encontros no Jenipapo, na Malhada, aí é uma formação pras nossas mulheres, da base.


O feminismo rural, ainda hoje, é mais demorado, poucas mulheres nos sítios entendem o que é isso, de reconhecer a si mesma e aos seus direitos. Eu não tenho muito conhecimento do feminismo urbano, mas percebo que é diferente nesse sentido

Em 2007, na Marcha das Margaridas, juntaram-se oitenta mil mulheres, reivindicando democracia e direitos. A partir daí, surgiram outras marchas pela igualdade e pelos direitos da mulher. Mulheres do Brasil inteiro levaram uma pauta e entregaram para o presidente. Na época de Lula e Dilma, nós, agricultores, conseguimos alguns direitos, como o Pronaf e Garantia Safra, projetos de custeios para as roças. As reformas trabalhistas prejudicaram não só a gente, como também nossos parentes no meio urbano. A mensalidade dos sindicatos diminuiu muito, a expectativa de agora em diante é só coisa ruim, mas espero que melhore. Com a greve dos caminhoneiros, os preços dos nossos produtos vendidos aumentaram, aí as pessoas compram menos. Os seminários mais recentes que fizemos nas comunidades falaram sobre as políticas públicas e partidárias paras as mulheres, que elas não querem entrar na política por medo do machismo. Acham que a mulher não tem a força e o poder Agosto 2018 | 9


que o homem tem na política, mas a gente incentiva, e através do conhecimento o quadro está mudando. Nosso Sindicato nunca teve uma mulher como presidente, mas nessas eleições já temos uma candidata. Sem feminismo não há agroecologia. As mulheres são as que mais trabalham com produtos agroecológicos, uma boa parte dos homens ainda não acreditam no plantio sem veneno, sem agrotóxicos, as mulheres são quem sempre incentivaram esse trabalho; mas agora os homens estão mudando também, porque estão vendo que a produção de orgânicos é diferente, mas é boa. O Sindicato ainda segue o estatuto antigo, então trabalha com cotas de 30% de mulheres no diretório. No caso, atualmente, temos oito diretorias. Em 2017, aconteceu a Escola Feminista na sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, haviam palestras e vídeos, falando sobre democracia, retrocesso e história do Brasil, para mulheres de todas as idades. No final, elas fizeram um desenho delas mesmas, de como elas se enxergavam dentro dessa escola e como chegaram aqui. Todas contaram suas histórias de vida, algumas choraram, foi muito emocionante. Este ano, planejamos fazer novamente, mas não aqui, e sim nas comunidades, para facilitar o deslocamento e para que mais mulheres possam participar.

Cícera Vieira Granjeiro. Secretária de Mulheres da Fetraece (Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado do Ceará). – Moro na cidade de Granjeiro e trabalho no sítio. Não sou assentada, não tenho terra, trabalho na propriedade de outros e sou dirigente sindical. Entrei no sindicato a partir da necessidade. Sou filha de trabalhadora rural, comecei a trabalhar cedo, não tem jeito, nesse meio há sempre uma grande necessidade. Eu percebi que meu espaço era no sindicato, precisava defender minha comunidade, crescer 10 | Bárbaras

com isso, abraçando a causa dos meus companheiros. Nós, dirigentes sindicais, a maioria tem sua terrinha, os que não, são posseiros, meeiros ou arrendatários. Comecei na coordenação regional, depois, fui para a Secretaria de Políticas Sociais. Hoje, como secretária de mulheres, considero um momento muito importante para nós agricultoras.Quanto mais abrirmos espaços para que nossas companheiras cresçam, elas não tomarão o espaço dos homens, pelo contrário, construirão juntos, coletivamente. Minha luta também é por uma educação de qualidade para o homem e a mulher do campo, porque ainda há uma marginalização em volta da educação para a zona rural, como se a juventude rural não pudesse estudar, tivesse que viver só da roça; um exemplo é aquele programa, “A Fazenda” (Rede Record), que se fizer alguma coisa errada o castigo é “ir pra roça”, como se ali fosse um espaço tão ruim de trabalhar que ninguém gostaria de ir. Cenas assim vão dialogando com outros preconceitos que existem com os agricultores. De certa forma, contribui com a ideia de que as pessoas da roça não precisam de educação de qualidade. Precisamos de um processo formativo que dialogue com o meio rural. Muitas mulheres agricultoras não são conscientizadas na luta, não há essa formação vinda de órgãos do governo, só nos movimentos sociais, que fazem essa construção da mulher empoderada, que tem seus direitos e que fazem sua própria defesa, mas ainda há muito a se avançar.

É preciso reafirmar a própria identidade enquanto mulher, enquanto sujeito que está no campo e que tem condições de se autodesenvolver e desenvolver sua comunidade Existem inúmeros programas na TV aberta que retratam a mulher de forma inconveniente, discriminando. Essa imagem entra na casa de milhares de brasileiros, o resultado é uma criminalização, enfraquece a mulher. Os movimentos sociais não possuem um alcance tão grande. Enquanto eles têm transmissão para a maioria dos brasileiros, nós temos um espaço em feiras. A sétima Marcha das Margaridas acontecerá em agosto de 2019 e vai reunir cem mil mulheres, trabalhadoras rurais, em Brasília. Ela acontecerá


neste momento diferente em que se encontra o país. Precisamos reafirmar nossa luta por direitos. Vamos à capital lutar por democracia, empoderamento, desenvolvimento rural, sustentabilidade, contra o machismo, dizer que não aceitamos perdas para as trabalhadoras rurais, quando mexem com nossos direitos, estão comprometendo, também, o desenvolvimento rural, nossa pauta é agrícola e agrária. A mulher sofre muita violência em consequência do machismo instalado no meio público ou privado. Não aceitamos nenhum direito a menos, apresentaremos as demandas para que elas se tornem políticas públicas que melhorem a vida da mulher do campo. É a importância da agricultura familiar impulsionada pelas mulheres, para o Brasil. Sozinha andamos bem, mas juntas conquistamos mais. No entanto, o machismo dentro do sindicato é, ainda, algo a se pensar. Tem que ser compreendido que não dá para eleger uma mulher na secretaria e colocar ela para fazer o cafézinho. Nosso papel não é limpar o chão. O empoderamento da mulher no meio rural vem a partir do reconhecimento da importância feminina nos diversos espaços, desde sua casa até a afirmação de sua identidade, cultural ou política; também, dá-se na execução de políticas públicas que chegam até ela, que fazem com que ela se desenvolva tanto economicamente quanto socialmente, ocupando os espaços de discussão e proposição dessas políticas, nos conselhos, fóruns e feiras, desenvolvendo a nós mesmas é que desenvolvemos o mundo. É preciso reafirmar a própria identidade enquanto mulher, enquanto sujeito que está no campo e que tem condições de se autodesenvolver e desenvolver sua comunidade. É importante falar que não há diferença entre feminismo rural ou urbano, talvez apenas nossa identidade cultural, nossas formas de falar e de se vestir, todas nós lutamos pela mesma causa, o fortalecimento da mulher. Foi com o intuito de fortalecimento da causa que a Marcha das Margaridas nasceu, ela teve início no governo do FHC, como uma luta contra o neoliberalismo e a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), além de posições governamentais que a gente percebia que não dialogava com o meio rural, que não faziam com que as mulheres crescessem, então pensamos em formar um grande movimento, para mostrar ao país que a mulher rural existe; surgiu da necessidade de ecoar um grito, uma voz que nos definisse. A marcha recebe o nome de Margarida Alves, porque ela foi uma companheira nossa, sindicalista, paraibana da Lagoa Grande, assassinada por

defender a grilagem de terras, defender o direito do homem e da mulher de ter um pedacinho de terra, um local para se fixar. Ela foi morta, assim como outras de minhas companheiras. É a história de mulheres como Margarida e Marielle, que morreram na luta, que nos impulsiona a ser mais forte. Nós usamos lilás porque é a cor que representa a mulher, o chapéu porque somos trabalhadoras rurais, carrega a simbologia do campo, e levamos a flor para lembrar a nossa flor que faleceu, Margarida.

Celiane David Distrito Santa Fé, Brejinho. Uma das diretoras do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e Secretária de Políticas Sociais de Terceira Idade.

– Meu trabalho é para os trabalhadores e trabalhadoras rurais, defendendo e lutando por seus direitos, que, mesmo que estejam ameaçados, não desistiremos. A cada dia que passa nos mobilizamos e nos juntamos mais, principalmente as mulheres, que hoje, no Sindicato, compõem 60% dos sócios, o que torna nossa luta mais forte. Faço parte do sindicato há dezessete anos, quando me associei, não existia nem o Conselho de Base no meu sítio, tive que ir para o Riacho Fundo. Já passei por várias secretarias, tanto a de juventude, quanto a de mulheres. Hoje, como diretora aqui, defendo minha classe e meu povo, de domingo a domingo. O dia a dia da agricultora é uma jornada triplicada, na zona rural, a gente trabalha na roça, cuida da casa e dos animais, mas é uma vivência boa e importante. Agora tenho a oportunidade de fazer meu quintal produtivo, ter minha própria renda, antes isso não existia, as mulheres não sabiam como procurar uma maior qualificação, dependíamos só dos homens, era o que ele quisesse e pronto, e isso não é só com as trabalhadoras rurais, as mulheres no geral estão encontrando seu lugar. Assim como o alcance da paridade nos sindicatos foi um grande avanço para nós, estamos nos organizando, há uma grande força da mulher aqui. Agosto 2018 | 11


Foto: ES Hoje

Mas você sabe o que é um

impedimento? TEXTO | Aline Fiuza

Não é fácil ser mulher. Ser mulher e gostar de futebol é ainda pior. Desde muito tempo o futebol foi associado exclusivamente aos homens, como um esporte feito somente para eles. Não porque mulheres não amem, joguem e queiram se tornar cada vez mais habilidosas ou por considerarem o jogo de uma partida de futebol feminino sem emoção, energia e muita garra. Não é por nada disso, mas sim por causa do machismo, que enxerga o futebol como uma modalidade puramente masculina. Os tempos são outros e nós mulheres também temos nosso espaço 12 | Bárbaras

no futebol, seja como jogadoras, árbitras, comentaristas, jornalistas ou torcedoras. O que acontece é que se uma mulher expressa gostar de futebol, já é rotulada preconceituosamente de não entendê-lo. Certa vez ao sair de casa com a camisa do meu time de coração, o São Paulo, me perguntaram se eu ao menos sabia o que era um impedimento e se poderia citar pelo menos o nome de um jogador do time. Não me surpreendi com essas perguntas, pois já estava acostumada a respondê-las, o que não consigo compreender é o espanto das pessoas ao


receber as respostas certas. Sei o que é um impedimento e as escalações titular e reserva do São Paulo desde os meus nove anos, época em que comecei a acompanhar os jogos por influência do meu irmão. Mas isso não acontece só comigo, o fato é que toda mulher que gosta de futebol precisa ser testada antes de realmente acreditarem que ela entende do esporte, conhece os jogadores, sabe as regras e esquemas táticos. É aí onde o preconceito transparece. Quantas vezes essas mesmas perguntas são feitas aos homens? A questão é que esses mesmos homens sentem-se incomodados quando uma mulher demonstra entender mais do que eles. Assim, nos desrespeitam, reiterando o machismo que já está enraizado no futebol. Mas mesmo que não soubéssemos muito sobre futebol, que fôs-

semos torcedoras de temporada, que disséssemos que nosso time do coração é a seleção brasileira durante a Copa do Mundo, não resta a ninguém nos ofender enquanto mulheres por não termos conhecimento do assunto. Por mais que os investimentos nos clubes femininos sejam mínimos, os campeonatos não sejam valorizados, os programas esportivos sejam feitos por uma maioria de homens e em poucos casos por mulheres, os próprios clubes não lancem camisas femininas, nós temos nosso lugar no futebol e não vamos desistir dele. É só observar um pouco que já se percebe o tamanho dessa luta e das conquistas alcançadas nos últimos tempos. Marta, eleita cinco vezes consecutivas melhor jogadora do mundo - fato inédito tanto para mulheres quanto para homens - Renata Agosto 2018 | 13


Fan apresentando um programa esportivo formado majoritariamente pelo sexo masculino, Iva Olivari assumindo o cargo de gerente da seleção croata, Viviane Falconi se tornando a primeira mulher a narrar uma Champions League e Isabelly Morais uma Copa do Mundo. Por esses e outros motivos, é notório que o futebol deixou de ser exclusivo aos homens, mas que ainda há muita dificuldade na aceitação das mulheres nesse meio, pois o machismo permanece evidenciado no esporte. É por conta dessa inadmissão que os casos de assédio dentro e fora do campo tornaram-se frequentes. Relatos de jornalistas sendo assediadas enquanto fazem cobertura dos jogos e de torcedoras com medo de irem sozinhas aos estádios, já não causam surpresa em ninguém. Isso é visto como natural no futebol, mas quando analisado de forma mais profunda mostra-se inaceitável. Mesmo que uma jornalista esteja inserida dentro de um âmbito formado inteiramente por homens e rodeada de colegas do sexo masculino, ela não pode ser menosprezada e assediada por estes. Mesmo que nas arquibancadas as mulheres sejam minoria, isso não é motivo para desrespeitá-las, chamando-as de apelidos machistas e fazendo comentários chulos. O problema é agravado porque os homens sentem-se no direito de soltar as mesmas piadas de séculos atrás quando presenciam uma mulher no estádio, pois segundo a tradição esse espaço deveria ser apenas deles. É por isso tudo que o machismo acarreta na ignorância do fato de que as mulheres têm a mesma capacidade dos homens para jogar e entender de futebol. O que fica claro é que a sociedade, em geral, ainda não se acostumou com a ocupação feminina dentro do futebol e não aceitou que agora as mulheres também têm vez e voz no estádio. E que a luta por um futebol respeitoso com todos está apenas começando.

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Inúmeros movimentos feministas dentro do futebol já foram criados e permanecem ativos, combatendo o machismo no esporte. Alguns clubes até já iniciaram seus próprios projetos, incentivando as mulheres a irem aos estádios e a serem recebidas com dignidade. Essas mudanças já estão fazendo a diferença e aqueles que ainda não aceitam que as mulheres podem sim gostar, entender e jogar futebol tanto quanto os homens, devem começar a mudar esse pensamento obsoleto. É claro que ainda falta muito para um respeito efetivo com as mulheres dentro do futebol. Mais ainda para a consolidação do futebol feminino, que é subestimado pela maioria dos admiradores do esporte. Falta investimento, visibilidade e credibilidade para as nossas jogadoras. E principalmente, falta respeito. Mas essa luta é diária e longa. O futebol é uma grande paixão de toda a nação brasileira independente de gênero. E mesmo que o preconceito já esteja intrínseco na sociedade, com a ideia de que bola é para meninos e boneca para meninas, nos dias de hoje nós temos a liberdade de escolher nossos brinquedos, nossas carreiras, nossos esportes e os lugares onde queremos estar. Para aqueles que dizem que mulher não entende de futebol ou não sabe o que é um impedimento, aqui vai a simples explicação: o jogador está impedido se, no momento em que a bola for lançada por seu companheiro, ele estiver à frente do último defensor adversário ou da linha da bola. E não foi preciso eu ser homem para entender isso, certo?! Chega de machismo. O futebol é de todo mundo. E lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive dentro do estádio e na frente da TV torcendo pelo seu time favorito.


OPINIÃO

Maior apoio à

luta feminina TEXTO | Taís Costa

Minha prática profissional - assistente social permite que eu conheça a fundo os reflexos dos contrastes sociais, onde a burguesia detém poder sobre a classe trabalhadora e, esta última, por sua vez, sofre diariamente com questões sociais, que posso descrever como desemprego, ausência de políticas públicas, entre tantas outras. Levando ao recorte de gênero, especificamente ao feminino, ainda carregamos em nossos ombros o árduo processo histórico, onde a mulher não era vista como sujeito de direitos. Foram precisos longos anos e organizações de movimentos sociais (o movimento feminista é um exemplo), para que pudéssemos garantir um espaço significativo nos cenários atuais. O avanço é dado em passos lentos, mas já podemos enxergar mulheres independentes, chefes de famílias, mães solteiras vivendo sem culpa, entre outros exemplos de representatividade. Na mesma proporção que esse número cresce, também nos deparamos com uma grande camada de mulheres que são vítimas de violência. Agora, alcancei o ponto chave do texto. Antes de trabalhar na política de educação, atuei por quatro anos em um equipamento da média complexidade da política de assistência social e infelizmente me deparei com algumas situações que me dói tentar narrar. Uma mulher vítima de violência doméstica traz consigo não só a dor física, mas um desgaste emocional que acumula o medo e a insegurança de minimizar essas situações, ou de procurar seus direitos denunciando o agressor. É válido frisar que essa mulher precisa de tudo, menos do julgamento machista e opressor da sociedade. E o mais preocupante é que em casos de violência doméstica, toda a família sofre junto; os filhos, na grande maioria, são utilizados em brigas e desculpas para que não haja a separação do casal, por exemplo. É real que existem mecanismos de defesa para proteção da mulher. Atualmente há a presença de equipamentos que atendem especificamente esse público, como os Centros de Referência da Mulher, que funcionam em alguns municípios. Sabemos que o aparato legal também permite mudanças significativas, não podemos esquecer da Lei Maria da Penha, que é um avanço para a criminalização do violador.

Porém, acredito que o diferencial para efetivar os direitos de uma mulher vítima de violência não é apenas o conhecimento sobre todos esses mecanismos de proteção. O primordial é que, assistentes sociais, advogados, psicólogos, entre outros profissionais de referência - além da sociedade civil - possam apoiá-la: seja escutando-a, dando-lhe uma orientação, mostrando que o patriarcado é uma consequência que ainda vivenciamos. Oferecer, também, um ombro amigo e mostrar que nem tudo está perdido, que existe uma vida além daquela de sofrimento, medo e angústias. Precisamos de união, empatia e de amor ao próximo, principalmente força para que nós mulheres possamos continuar buscando direitos, levando nossos nomes para o mercado de trabalho, para capas de livros e revistas e mostrando que somos Bárbaras, por onde passar.

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Mulher, mãe solo e jornalista

“De lagarta à borboleta” TEXTO E FOTO | Laura Brasil

“Uma borboleta que saiu do casulo”. É assim que Regilânia dos Santos, 32, se sente depois do que viveu nos últimos dez anos. Ela é mulher, mãe do Vinicius, estudante de Jornalismo e, ainda, estagia como assessora. Num relato cheio de garra, ela esclarece que nenhuma dessas atribuições a privou de viver os próprios sonhos.

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Aos 23 anos, Regy - como é chamada - se apaixonou e viu no relacionamento uma liberdade que não encontrava vivendo com os pais. Assim, decidiu sair de casa e morar com o namorado. Após um ano de casamento, engravidou. Ela conta que, nessa época, nem pensava em entrar numa universidade, a vida era dedicada totalmente à família e sua casa. Tudo eram flores. Até que, certo dia, o companheiro arrumou a mala e pediu a separação. “Eu costumo dizer que é como se eu tivesse um sol, e esse sol se pôs. Teve um eclipse que apagou tudo, acabou minha vida. Pra mim, não existia mais nada. Passei duas semanas deitada numa cama, só tomava água. Emagreci cinco quilos”, conta, afirmando que quase entrou numa depressão. Para superar a fase, Regy contou com a ajuda de parentes e amigos próximos. O ex-cunhado foi um dos que mais a auxiliaram e acreditaram que ela reverteria a situação. “Ele me dizia: ‘Se arrume. Saia de casa. Não ligue pra ele, porque ele não te merece. Vá viver sua vida!’”. Ela seguiu o conselho e começou pela parte que mais sentia falta: o trabalho. “Eu saía seis da manhã e voltava cinco da tarde, porque não tinha mais comércio aberto pra deixar meu currículo. Antes, eu não procurava emprego, porque era aquela coisa: ele trabalhava e eu cuidava do nosso filho. Ele também não aceitava muito que eu trabalhasse, e eu baixava a cabeça”, confidencia. Regy voltou para o mercado de trabalho como recepcionista numa loja de serigrafia. Logo depois, participou de uma capacitação para trabalhar no Cadastro Único do programa Bolsa Família, na Secretaria de Desenvolvimento Social e Trabalho, de Juazeiro do Norte. Era 2014, ela voltava a viver e sonhar com todo gás. No fim daquele ano, fez a prova do Enem. Foi incentivada pela irmã, que havia concluído o curso de Biblioteconomia, na UFCA, a cursar Jornalismo. Regy conseguiu passar, depois de dez anos da conclusão do ensino médio. “Foi a maior felicidade do mundo”, afirma. Quando perguntada sobre a paixão pelo Jornalismo, ela relembrou uma história de infância sobre Copa do Mundo. “Meu pai sempre pintava a gente, vestia todo mundo. Mas o que eu achava mais bonito eram os repórteres. Eu ficava encantada com os jogos e a cobertura jornalística. Eu não pensei numa carreira de verdade, só fiquei com aquilo guardado na cabeça”. Ao voltar para uma sala de aula, seus principais pilares foram os pais. Eles deram apoio e assumiram o cuidado com o filho, que na época tinha apenas quatro anos de idade. Hoje, ela caminha para o último semestre da graduação e diz ser a época mais puxada. “Tenho o estágio, atividades de bolsa na 18 | Bárbaras

Já fui taxada de não ligar pro meu filho, hoje com sete anos, porque passo o dia fora, mas aí eu penso que faço isso por mim e por ele. Eu tô dando exemplo pra ele, o de estudar e se refazer depois de uma situação difícil”

faculdade, meu filho e, ainda, o TCC. Não dá pra conciliar como eu gostaria”, diz, sem lamentações, afirmando que faz o possível.

Como toda mãe

Durante a semana, Regy tem contato limitado com Vinicius, seu filho. Por isso, cada detalhe é válido, e ela assume ser uma mãe superprotetora, no bom sentido. - De manhã - conta - eu arrumo ele. Acordo, dou banho, passo perfume, é o contato que temos. Faço questão de tudo, de botar o café e até escovar os dentes, algo que eu nem acho certo, mas é um mimo. Já na hora de deixar na escola quem vai é minha mãe. Só quando tô indo pro estágio é que passo em frente à escola dele e entro lá pra falar com as professoras. Quando chego em casa, 11 da noite, olho os livros dele, mas não posso mais ensinar suas tarefas, pago pra minha irmã ajudá-lo. Aí vou ver se ela tá ensinando direito. Olho todos os detalhes”, pontua. Regilânia cumpre, diariamente, três turnos: estágio pela manhã, atividades como bolsista na universidade à tarde, e aulas à noite. Por isso, já sofreu com julgamentos quanto a sua conduta como mãe. “Já fui taxada de não ligar pro meu filho, hoje com sete anos, porque passo o dia fora, mas aí eu penso que faço isso por mim e por ele. Eu tô dando exemplo pra ele, o de estudar e se refazer depois de uma situação difícil”.

Ato de coragem

Ao buscar emprego, ela passou por situações constrangedoras pelo fato de ser mãe solo. “Numa delas, eu tinha todos os pré-requisitos profissionais, mas não era ‘moça’. E aí questionei, pois participei da seleção, fui bem na prova escrita, na entrevista, mas não fui chamada”. Ela narra que sempre recebia respostas vazias, mas, no fundo, o problema estava em ter um filho. “Em anúncios, eu já vi muito: ‘preferível mulher com certa idade’. Já me senti muito excluída, por-


que muitos dizem querer mulheres jovens”, recorda, alegando que já chorou por se sentir ultrapassada. “Os anúncios faziam eu me sentir velha. E não lembro de ter visto nenhum anúncio falando que os homens precisavam ter tal idade”, protesta. No ambiente de estágio, seus chefes sabem do filho que precisa do cuidado dela quando fica doente. “Eles são totalmente flexíveis, se eu quiser faltar, eles deixam, é uma relação bem amigável. Quando Vinicius fica doente e tem que ir pro hospital, eu faço questão de ir”. Na universidade, Regy passou por alguns problemas com professores que não aceitavam suas justificativas. “Eu nunca fui reprovada por falta, mas já faltei muita aula. No quarto semestre, eu comecei a faltar tanto por causa dele [filho], quanto por questões financeiras, pois estava desempregada e come-

minha prioridade, coisa que eu não aconselho pra nenhuma mulher. Depois que engravidei, o meu filho passou a ser mais prioridade ainda”, lembra. Além disso, conta também da relação com os pais, que na sua adolescência, tiveram que lidar com o forte temperamento de uma “rebelde sem causa”, segundo ela. - Você passa a entender o que sua mãe falava, e reconhece que não era só pra te fazer raiva, mas para proteção. Passei a escutar mais meus pais. Foi algo transformado dentro de mim; o modo com que eu lido com meus pais. Isso tudo depois que eu tive meu filho e conheci o amor verdadeiro.

cei a passar por dificuldades”. Ela afirma que, por não ter dinheiro pra passagem de ônibus, selecionava as aulas mais importantes para ir à universidade. Quando pensa no futuro, Regy se vê como uma jornalista bem sucedida. “Eu tenho objetivo dentro da carreira do jornalismo. Quero ser uma jornalista que respeita os direitos humanos, a ética da profissão, uma pessoa que presta serviços à comunidade. Isso pra mim é ser uma jornalista de sucesso”. Ela também pensa nos pais e em tudo o que eles já fizeram por ela. “Eu sinto que tenho uma dívida enorme com eles. Um dos motivos pra eu estar na universidade e querer crescer na carreira de jornalista é ajudar também a eles”, afirma.

ensinariam condutas inadequadas. Assim, ela afirma que desenvolveu preconceito em relação a algumas pessoas da sala de aula. Entretanto, não levou muito tempo até que ela visse que, na verdade, o feminismo também seria um agente transformador na sua vida de mulher. - Com o feminismo eu quebrei muitos preconceitos dentro de mim. Vi que não preciso baixar cabeça, nem pra homem, nem pra ninguém. Isso me fortaleceu como mulher. O feminismo é a força da mulher, ele me ajudou a me reconstruir. Pra mim, é uma base teórica e filosófica de vida. Pergunto-lhe se quer casar novamente, e ela não demora pra responder: não. “Não tem quem faça”. Regilânia se considera completa com o que já construiu até aqui. Agora, a jovem espera por um futuro próximo, onde será jornalista e continuará dando bons exemplos ao filho, que também chegará numa universidade. “Hoje me considero uma mulher bem resolvida: amorosamente, profissionalmente. E a tendência é só melhorar”, pontua.

Amor verdadeiro

Quando pergunto o que mudou depois da maternidade, ela não hesita em responder. “Foi uma questão de prioridades. Quando eu tava casada, o meu marido era minha prioridade. Deixei de ser

Bem resolvida

Quando entrou na universidade, Regy foi avisada que certamente teria colegas feministas, e estas a

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Piquenique Feminista

Alternativa em meio à violência cotidiana

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TEXTO | Alexia de Mesquita

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Foto: Samuel Macedo

Desde 2015, um grupo de mulheres se reúne para discutir um tema caro e complexo para elas: o assédio sexual e moral. A percepção surgiu a partir de um grupo de estudantes da Universidade Federal do Cariri e da Universidade Regional do Cariri. Nas duas instituições, ocorreram vários casos de assédio, mobilizando as estudantes. A universidade deveria ser local para se produzir conhecimento e rechaçar qualquer tipo de preconceito. Puro engano. São locais que frequentemente provocam sofrimento às mulheres, vítimas de uma sociedade autoritária e patriarcal, contexto de muitas variáveis ideológicas, desrespeito ao outro e ao corpo feminino. O Piquenique Feminista reúne, mensalmente, mulheres do Cariri que debatem questões antigas e atuais sobre questões tão inerentes às brasileiras.


Foto: Samuel Macedo

O Piquenique nasce como uma ação criada por mulheres para que elas possam discutir temas e vivências relacionadas ao ser mulher. Ele ocorre em uma edição mensal, sempre às 15 horas, e reúne tanto acadêmicas quanto meninas do ensino médio, mas se trata de um espaço aberto e inclusivo, onde quem tiver interesse pode participar, independente de idade ou formação, se sabe o que é feminismo ou não. Os temas variam de saúde da mulher, gênero e educação, visibilidade trans no movimento feminista, até mulheres negras e resistência. As meninas se reúnem no local definido (que pode variar), e, em um círculo, em meio a bolos, biscoitos e frutas. Têm conversas regadas a trocas de experiências, confissões e partilha de suas frustrações no mundo moderno; o espaço também é considerado uma prática educativa não formal das discussões voltadas para os direitos humanos. Sororidade é união e companheirismo entre mulheres, é ter empatia com a outra. O Piquenique se mostra como um lugar dessa afetividade e sororidade, é a confiança de um espaço seguro onde você pode falar e ser compreendida. Maria Clara Rocha, 21, é uma das idealizado- Participantes do Piquenique Feminista em uma das ediras do espaço e conta: “No momento que deba- ções do evento temos sobre Lei Maria da Penha, processos psi-

Sororidade é união e companheirismo entre mulheres, é ter empatia com a outra. O Piquenique se mostra como um lugar dessa afetividade e sororidade, é a confiança de um espaço seguro onde você pode falar e ser compreendida

Fotos: Divulgação

cológicos, relacionamento abusivos e violências, estamos transmitindo informação. Quando chega uma menina e eu digo que ela pode ligar para o 190, ir na delegacia fazer uma denúncia, é passar informação e quebrar esse paradigma de que ensino e pedagogia estão apenas dentro das escolas e universidades. Isso é algo além, é pular esses muros e invadir outros espaços. Como o Piquenique é 22 | Bárbaras


frequentado por, em sua maioria, universitárias de várias áreas, o conhecimento é compartilhado, é simples e inocente, mas também tem um objetivo, que é erradicar, prevenir e coibir, de alguma maneira, todas as formas de violências que as mulheres sofrem. Essa é grande chave do piquenique, ele não tem como prevenir totalmente que uma violência aconteça e também não tem como cuidar de toda a violência estrutural de uma sociedade patriarcal, mas a palavra, o afeto, o carinho, a roda de conversa, a escuta, a fala, têm seus poderes, e é isso o que eu considero o grande diferencial do Piquenique para outros movimentos, ele estabelece uma afetividade e uma confiança com relação às ouvintes e às falantes, é como se fosse uma palavra amiga, que chega e devagarzinho vamos tendo pequenas mudanças”. Não existe uma hierarquia ali, na organização do evento, inclusive, já que não há responsáveis delimitadas e sim possui uma característica mais espontânea. Semelhante a uma reunião entre amigas.

na Universidade Regional do Cariri (URCA). As mulheres sentiram que algo precisava ser feito, não estava certo e, no mínimo, merecia ser debatido e denunciado. Assim, a primeira edição do encontro teve como tema a discussão sobre a campanha #PrimeiroAssédio, organizada pela Ong Think Olga, que luta pelo empoderamento feminino por meio da informação, por uma comunicação mais inclusiva e humanizada, com o objetivo de fazer com que as pessoas falassem sobre o fato. Algo tão dolorido, mas que é uma realidade para qualquer um que sofra com o patriarcalismo da sociedade, principalmente quando se é mulher ou integrante da comunidade LGBT. Além disso, existe uma carga de culpa que vem com a memória dessas situações, mas, ao compartilhar e perceber que outras mulheres entendem a dor da outra, tanto em questões de assédio quanto desigualdade de gênero ou salarial, percebe-se que não estão sozinhas. No entanto, o Piquenique pretende ir ainda mais além. Maria Clara esclarece: - Nós pensamos mesmo em diversificar, já problematizamos até a própria forma de funcionamento do Piquenique, que, por um tempo, foi centralizado só em algumas meninas, tanto na centralização da fala como na organização, aí, pra não ficar sempre as mesmas caras e as mesmas pessoas, pedimos que outras meninas tragam suas visões, modificações e sugestões. Apesar de precisarmos defender as universitárias, somos um grupo muito privilegiado ainda. É necessário falar em outros espaços. Por três edições levamos o evento para dentro das escolas, nas greves e ocupações. Pretendemos realizar, futuramente, em espaços rurais e outros lugares. Às vezes focamos muito nas pessoas que já conhecemos. É preciso ultrapassar essa comunicação que só chega até certo ponto, chamar outras mulheres, elas não chegam junto. Por exemplo, na “Marcha das Mulheres” em Barbalha, este ano, não deu muita gente, então ainda existe uma barreira.

Criação e necessidade

O Piquenique surgiu em 2015, a partir das polêmicas de assédio sexual e moral sofrido por estudantes no espaço da universidade, tanto na Universidade Federal do Cariri (UFCA), quanto Agosto 2018 | 23


Dominique nic, nic

A freira por trás da canção O ano é 1963. O Concílio Vaticano II aprova o decreto Inter Mirifica (Entre as Maravilhas), posicionando-se a favor da inserção da Igreja Católica na comunicação de massa. Antes tidos como meios condenáveis, a imprensa, o cinema, o rádio e a televisão passaram então a ser vistos como “admiráveis dons de Deus”, essenciais para a promoção da evangelização mundial. O Concílio, que abrangeu quatro anos e dois papados (Papa João XXIII e Papa Paulo VI), representou uma tentativa de conter a perda de fiéis e promover uma atualização da Igreja perante as mudanças do mundo contemporâneo. TEXTO | Débora Costa

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Dominique viu em sonho Que os pregadores do mundo inteiro Sob o manto da Virgem Em grande número se reuniam Dominique-nique-nique Segue simplesmente Errante, pobre e cantando Por todos os caminhos e por todos lugares Só fala do bom Deus, só fala do bom Deus Canção Dominique, de Jeanine Deckers Os avanços se deram principalmente no âmbito litúrgico: as missas passaram a ser celebradas na língua de cada país, o uso da batina pelo padre passou a ser opcional, os fiéis passaram a poder participar nas atividades da Igreja. Também foram dados alguns tímidos passos no relacionamento do catolicismo com outras religiões, com a promoção do ecumenismo, e o reconhecimento do direito à liberdade religiosa. As mudanças, no entanto, pararam por aí: por mais inovador que o Concílio seja em relação a uma religião milenar, não rompe, no entanto, com a tradição eclesiástica. Ainda em 1963, uma música interpretada por uma freira católica desbanca Elvis Presley e os Beatles, ganhando dezenas de versões que despontam nas paradas de sucesso em todo o mundo. Dominique ocupou o primeiro lugar nas vendas durante dez semanas, segundo o ranking da revista norte-americana Billboard, marca jamais repetida por outra canção de língua francesa até hoje. No ano seguinte, a música obteve quatro indicações ao Grammy, maior prêmio da indústria musical estadunidense, conseguindo o troféu na categoria de Melhor Canção Religiosa. “Dominique-nique-nique, sempre alegre esperando alguém que possa amar, o seu príncipe encantado, seu eterno namorado...” Ao contrário da versão brasileira apresentada pela cantora Giane, Dominique definitivamente não era uma canção de amor. Tratava-se, na verdade, de uma homenagem a São Domingos de Gusmão, santo católico do século XVII, fundador da Ordem dos Dominicanos. A música falava de sua peregrinação pela Europa, pregando o voto de pobreza e combatendo os ditos hereges. Certamente São Domingos não previra sua fama mundial através da canção de uma simples freira dominicana.

Saem o hábito e o cinto de castidade, mas Jeanine perm reputação religiosa. A música de protesto é sua forma de 26 | Bárbaras


Fotos: Divulgação

manece prisioneira da e buscar libertação.

A noviça rebelde Eu não sou uma estrela Se você acredita nisso, está enganado. Se o Senhor me pôs como estrela, É para estrelar o Senhor. O sucesso, o renome, Tudo aqui é vaidade. Meu verdadeiro negócio, vejam, É ser uma porta-voz. Canção Je ne suis pas une vedette (Eu não sou uma estrela), de Jeanine Deckers O ano é 1966. A atriz Debbie Reynolds estrela o longa The singing Nun (no Brasil, Dominique), centrado na história da Irmã Ann, uma simpática freira cujos hobbies são cantar e tocar violão. No filme, o talento musical da religiosa chama a atenção das autoridades católicas, que, em contato com uma gravadora, lançam a canção intitulada Dominique, que logo torna-se um sucesso. Na trama, porém, a música fora feita em homenagem a um garoto pobre e sem mãe, que recebe os cuidados da freira. Mistura de musical e cinebiografia, The Singing Nun fora baseado na história da verdadeira compositora da canção. Mas a freira cuja vida inspirara o filme, a Irmã Luc-Gabrielle (Jeanine Deckers), o rejeitou como “ficção”, já que sua história tivera um final bem diferente. Depois de “descoberta” pelos superiores eclesiásticos e conduzida à gravadora Phillips, Jeanine assinara contrato mediante algumas condições: seu nome e imagem não poderiam ser revelados e deveria adotar o pseudônimo de Soeur Sourire (Irmã Sorriso), o qual seria propriedade da empresa e do convento, juntamente com os direitos e lucros sobre as canções. Contrariada com as imposições, mas ciente do seu voto de pobreza e obediência, Jeanine aceitara o acordo. No mesmo ano de 1966, Jeanine Deckers abandona o convento. Sete anos antes, quando entrara para o mosteiro dominicano de Fichermont, na Bélgica, jamais imaginaria que um dia seria uma figura tão ilustre e, ao mesmo tempo, desconhecida. Depois de tentativas frustradas de estudar teologia a fim de partir para a África como missionária, Jeanine se convenceu da sua falta de vocação para a vida monástica, a qual passou a considerar como “anacrônica”. Também contribuíram para sua saída os vários conflitos com seus líderes, soAgosto 2018 | 27


A identidade da Irmã Sorriso (à esquerda) é revelada no programa de TV The Ed Sullivan Show, gravado no convento de Fichermont, em 1964

bretudo após saber que estes haviam-lhe ocultado o sucesso extraordinário de sua canção. Em um contexto em que a Igreja buscava atrair os jovens, a personalidade vibrante de Jeanine e suas agradáveis canções haviam oferecido os ingredientes ideais. Mas, quando suas ideias pareceram modernas demais para a tradição do catolicismo, ela teve que abdicar do hábito, do cinto de castidade e dos seus títulos da vida religiosa: Irmã Luc-Gabrielle e Irmã Sorriso. Jeanine decidiu, então seguir como leiga dominicana, tentando manter a mesma vida de devoção e o estilo de vida simples e casto. Porém, aquele acordo que um dia aceitara com a gravadora e o convento, representaria mais tarde sua própria ruína.

Mudança de hábito A pílula de ouro passou A biologia deu um novo passo Senhor, eu Te rendo graças! A ciência e o conhecimento iluminam a fé Para que a humanidade possa crescer em alegria Senhor, que o amor seja rei! Canção La Pilule d’Or (A Pílula de Ouro), de Jeanine Deckers 28 | Bárbaras

O ano é 1968. Após oito anos do lançamento oficial da pílula anticoncepcional, a Bélgica finalmente autoriza a sua comercialização. Mais do que um avanço na indústria farmacêutica mundial, a pílula representou uma revolução nos hábitos sexuais a partir da década de 1960. O sexo passou a ser tratado não somente como meio para a reprodução humana: agora as relações sexuais poderiam ser vivenciadas apenas por prazer. Não à toa, no mesmo ano, o Papa Paulo VI, em sua encíclica Humanae Vitae (A Vida Humana), tratou justamente da concepção humana, condenando o aborto e os métodos artificiais de contracepção. Pelos direitos sexuais, civis, trabalhistas, estudantis, de gênero, de raça. Contra a guerra, o capitalismo, a ditadura, a religião, o patriarcado. Há cinquenta anos a França viveu um mês de protestos que reverberariam por décadas em todo o mundo. O maio de 68 francês inspirou também a nova teologia da freira egressa Jeanine Deckers. Frustrada diante do fracasso da Igreja Católica em implementar as reformas previstas no Concílio Vaticano II, ela decidiu seguir o seu próprio caminho, Viver sua Verdade (Vivre sa verité), como dizia o título do livro de sua autoria publicado no mesmo ano. Em meio aos eventos de 1968, Jeanine é convidada a participar de um programa belga de TV. Impedida pela Igreja e pela gravadora de utilizar o nome Irmã Sorriso, com o qual tornara-se mundialmente famosa, Jeanine aproveitou então a oportunidade para anunciar um novo nome artístico, título também de sua mais recente canção: Luc-Dominique. Esta, porém, era uma música de protesto, diferente de tudo que cantara nos tempos de clausura. Após sua saída do convento, Jeanine ainda compôs várias canções tidas como polêmicas para uma religiosa, com críticas ao machismo, à misoginia, à religião e ao clero. Como era esperado, as suas novas músicas sofreram dura oposição da Igreja, sobretudo a canção que compusera em defesa da pílula anticoncepcional. Apresentada pela primeira vez na turnê em Quebec, no Canadá, a música gerou revolta na comunidade religiosa. Com a intervenção do clero local, alguns shows foram cancelados, outros tiveram auditórios esvaziados ou foram transferidos para palcos menores, como bares e cabarés. Depois do fiasco musical, de ser abandonada pelo empresário e rejeitada pela própria família, Jeanine retornou à Bélgica em busca do apoio de sua amiga e, mais tarde, esposa, Annie Pecher. O ano é 1985. No programa de TV irlandês The Late Late Show, o apresentador Gay Byrne


entrevista duas ex-freiras lésbicas, Nancy Manahan e Rosemary Curb. O casal estava promovendo seu livro Quebrando o Silêncio: Freiras Lésbicas na Sexualidade do Convento. O programa alcançou altos níveis de audiência, atraindo elogios e condenações. Manifestantes realizaram uma vigília de oração nos portões da emissora, em protesto contra o programa. O livro de Nancy e Rosemary trazia histórias de mais de 50 mulheres que buscaram na austeridade dos conventos uma forma de evitar o relacionamento homossexual condenado pela Igreja.

O sorriso de Monalisa Há certo sorriso que deve ser desmistificado Retrato um pouco rápido, retrato inacabado Se esse outro rosto assombrar algumas pessoas Deixe-as então reverenciar a imagem do sorriso de antes Ela está morta, a Irmã Sorriso Ela está morta, chegou a hora Eu vi sua alma voando Através das nuvens, no sol poente

de Jeanine como Irmã Sorriso, embora todo o lucro tivesse ido para o convento e a gravadora. O pseudônimo Irmã Sorriso, que fora escolhido para Jeanine, o qual carregou por toda a vida e que até hoje a torna reconhecida, na verdade era considerado por ela mesma como “ridículo”. Ela descreveu sua juventude como “sombria”, com pais conservadores e autoritários. Durante seu tempo de freira, era difícil para ela ter que estar todo o tempo de bom humor. Suas canções tristes eram sempre censuradas pela madre superiora. Mesmo depois de deixar o convento, a depressão era uma realidade constante. Mas Annie conhecia a dor por trás daquele sorriso. Em suas últimas palavras, ela intercede pelo seu grande amor: Por favor, que Jeanine não morra para o mundo. Ela teve um momento difícil na terra. Ela merece viver nas mentes das pessoas.

Canção Luc Dominique, de Jeanine Deckers Depois de quase duas décadas vivendo com sua companheira Annie Pecher, Jeanine Deckers já não mais escondia sua homossexualidade. Ainda fiel aos votos religiosos, ela havia relutado por muito tempo em se envolver sexualmente com a amiga. Além disso, Jeanine tinha consciência que esta decisão enterraria de vez sua pretensão de uma carreira na música religiosa. De fato, suas canções nunca mais venderam como Dominique, nem mesmo a versão remixada da canção, lançada com um bizarro clipe em 1981. Annie e Jeanine ainda chegaram a fundar um centro de tratamento para crianças autistas, também sem êxito. Por fim, em 1985, Jeanine Deckers e Annie Pecher suicidam-se por overdose de álcool e remédios. Seus corpos foram descobertos três dias depois, com cartas de suicídio onde declaravam o desejo de um funeral na igreja e de serem enterradas lado a lado. Annie, em sua nota, explicava os principais motivos do ato desesperado: “Chegamos ao fim, espiritualmente e financeiramente, e agora vamos para Deus”. De fato, as dívidas acumulavam-se, pois o fisco belga estava cobrando os impostos não pagos correspondentes ao período Jeanine (sentada) ao lado da esposa Annie

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As Mulecas do

Frei Damião

Dona Laura exibe boneca que produziu com apoio do grupo

Na rotina de ser mulher, mãe ou avó, todos os dias são cheios. Tem sempre a casa para arrumar, o leite para ferver, as crianças para cuidar. Em meio a isso, o alívio das tardes juazeirenses no bairro Frei Damião. TEXTO E FOTOS | Alexia de Mesquita

O Cras (Centro de Referência de Assistência Social) do bairro Frei Damião é um dos nove espalhados pela cidade de Juazeiro do Norte e proporciona programações no turno da tarde para mulheres de todas as idades. Se segunda é dia de dançar zumba, na terça há aulas de arte, e nas sextas, aeróbica. O Cras tem parceria com a Enactus - organização não governamental sem fins lucrati30 | Bárbaras

vos da Universidade Federal do Cariri. O grupo de quarenta mulheres que atualmente frequenta o Projeto Mulecas é animado. Elas conversam, criam, imaginam e se divertem. Tudo com arte e muito artesanato. No último dia das aulas de bordado - algumas esqueceram a agulha em casa, mas os grupos decidiram se revezar com as agulhas das mulheres que tinham levado.Todas as mesas foram arrumadas em uma reta e as mulhe-


res sentaram-se próximas uma das outras. Linhas coloridas, agulhas e panos em branco ou desenhados encheram as mesas. Um ou dois carrinhos de bebê foram posicionados ao lado das cadeiras. O espaço é fresco por conta das diversas janelas espalhadas pela sala do Centro de Referência. Dona Laura, uma das participantes mais antigas do projeto, mostra, com orgulho, a boneca que aprendeu a fazer em uma das oficinas, o que encoraja as demais a também mostrarem seus trabalhos - uma bolsa feita de fuxico e até xícaras artesanais. Mesmo com a presença das capacitadoras ali, todas fazem questão de ajudar umas as outras e dar dicas sobre artesanato.

Um lucro a mais

Elas produzem e vendem artesanatos de diversos tipos, arrecadando um lucro a mais para a família. Edileuza conseguiu levar seu conhecimento mais à frente. Comercializa os produtos artesanais, como jarros e cinzeiros de palito de picolé. Vive do seu artesanato. As mulheres, com renda muito baixa, são incluídas na Cozinha Comunitária. A partir disso, elas e a sua família recebem refeições no Centro de Referência do seu bairro durante toda a semana, além de cestas básicas; para as gestantes, há o kit natalidade e orientações específicas. Também são dadas palestras motivacionais e de saúde.

Mulheres como referente familiar

A assistente social Regina Morais, diz que as meninas do Frei Damião são a base da família, pois são elas que educam os filhos e cuidam da casa, desdobram-se em muitas para dar qualidade de vida a seus familiares. Crianças brincando alegremente no espaço da frente do Centro de Referência, com jogos de tabuleiro e pinturas. Esses são os filhos e filhas das mulecas, que não têm com quem deixá-los. Ali é um espaço seguro e adaptado para eles, onde sempre há alguém para supervisioná-los e brincar junto. Na sala em que as mães ficam, elas amamentam seus bebês e brincam com eles. Mais do que dar suporte e buscar formas de lazer e entretenimento, o projeto tem o objetivo de aproximar essas mulheres, de acompanhar de perto suas batalhas e seu crescimento diário. Muitas chegaram ao CRAS com depressão e problemas de baixa autoestima, sem ter a quem recorrer ou com quem conversar. Lá, elas fazem grandes amigas, compartilham suas histórias e sentem seu talento valorizado. Mulecas reunidas numa aula de bordado Agosto 2018 | 31


Valéria

UMA VIDA E MUITAS LUTAS TEXTO | Laura Brasil FOTOS | Jayne Machado

Na primeira vez que entrevistei Valéria, pedi para que ela falasse sobre sua luta, e a resposta que recebi foi: “eu sou a luta”. Logo, percebi que era impossível separar a luta das mulheres negras do Cariri da vida de Valéria; esses assuntos correm lado a lado. Valéria Gercina das Neves Carvalho, 60 anos, é natural de Crato, mas deixa claro que sua ancestralidade veio de Saco dos Cansansão, quilombo que fica entre os estados de Pernambuco e Piauí. “Esse é meu tronco. Essa é minha raiz, minha gente”. A atitude se repetiu diversas vezes durante nossas duas tardes de conversa na sede do Grupo de Valorização Negra do Cariri, o Grunec.

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Ilustração: Ellen Brasil


Valéria mostra de onde veio e para que veio. E mais, ela não anda só, faz questão de dizer quem são seus ancestrais que inspiram luta. “Sou de uma família de dez irmãos e irmãs. Foi uma vida pra gente ser, pra gente existir”, conta. Ela lembra da convivência com seus bisavós, avós, pais e tios. Dentre eles, cita uma por uma quem são suas expoentes na luta de mulheres negras. “A minha bisavó, a gente chamava de ‘Mãezinha’, ela vinha da comunidade e trazia pra nós um biscoito de polvilho chamado Grati, era o biscoito mais gostoso que eu já comi na vida. Minha avó Zefinha era descendente de indígenas. Minha tia-avó Onorina, era a ‘tia Nora’. Minha mãe, dona Gil, ‘mãe Gil’. E eu. São mulheres, todas elas, muito fortes, muito guerreiras. As três primeiras, analfabetas”. Já seu avô “Nego Fernando”, movido pelo desejo de dar dignidade e uma vida diferente à família, decidiu ir embora de Saco dos Cansansão. “Ele dizia que a dignidade só viria através do conhecimento acadêmico, da escola. E lá onde estavam não tinha escola. Meu vô queria estudar e queria que os filhos estudassem”. Ele conseguiu trazer a esposa e os quatro filhos - dentre esses, Gil, mãe de Valéria - para a cidade de Crato, onde estudou na Escola Técnica do Comércio, junto dos filhos. Na mesma série, na mesma sala, pai e filhos de origem quilombola estudavam e, dali em diante, mudavam o destino de seus descendentes. O incentivo aos estudos foi uma herança repassada de geração para geração na família de Valéria. “Quando eu e Verônica completamos 17 anos e terminamos o segundo grau, minha mãe não deixava a gente desistir. Me lembro como se fosse hoje, ela disse: “eu vou fazer vestibular também”. E a gente dizia que ela não sabia de nada, “tu sabe o que é logaritmo?”, a gente perguntava e depois lia, enquanto mamãe costurava. Ela dizia: “agora eu sei”, mas, na verdade, aquilo era uma estratégia pra gente estudar”. O resultado da estratégia de mãe Gil foi a aprovação no vestibular para Enfermagem na Faculdade de Filosofia do Crato, sendo uma das primeiras negras a integrarem aquela instituição. Enquanto isso, Valéria não havia conseguido colher o mesmo fruto e, em Crato, não via outras oportunidades que não fossem “o tanque ou a cozinha das casas de doutores”, mas sabia que a trajetória de seus pais não lhe deixava aceitar aquela realidade. “O meu pai tinha um orgulho tão grande dos filhos, porque sabiam ler e escrever. Era da gente chorar de ver o orgulho que ele tinha”, ela lembra. Por isso, os filhos tomaram outros rumos, sendo Valéria a primeira a pegar um ônibus da Itapemirim com destino a São Paulo, carregando uma latinha de galinha com farofa.

Quando eu e Verônica completamos 17 anos e terminamos o segundo grau, minha mãe não deixava a gente desistir. Me lembro como se fosse hoje, ela disse: “eu vou fazer vestibular também”. E a gente dizia que ela não sabia de nada, “tu sabe o que é logaritmo?”, a gente perguntava e depois lia, enquanto mamãe costurava

Racismo

Ao chegar em São Paulo, estudou para prestar vestibular novamente e seu primeiro curso de graduação foi Administração de Empresas, na Universidade Ibirapuera. Ela recorda que, de 108 alunos da turma, 100 eram homens, 8 mulheres e apenas ela e uma colega eram negras. “Foi babado, adorava! Tudo pra mim era alegria”, exclama. Apesar disso, não concluiu o curso, alegando não ser sua área. O primeiro emprego na capital paulistana foi no Hospital Anchieta, onde só trabalhou por dois meses. “Briguei, arrumei encrenca que só vocês vendo. Descobri um monte de falcatrua no hospital e vi que aquilo também não era pra mim”. O rumo de Valéria seria outro, logo começou a trabalhar como professora, e foram 35 anos no magistério público do estado de São Paulo. Além da primeira graduação e emprego, a cidade grande também lhe trouxe o primeiro caso de racismo institucional. “Foi de uma diretora de escola, ela disse que eu tinha que ser muito boazinha, ‘cheia de dedos’, porque eu ia ser a primeira professora de uma turma de crianças descendentes de japoneses. Eram aqueles alunos branquinhos, lindos, de cabelos lisos. Para aquela diretora, ter uma professora nordestina e negra, era o fim do mundo”, ela conta sem se abater, pois lembra que foi também o seu primeiro embate frente a uma atitude preconceituosa. “Nessa época, eu fazia Coral da USP e levava um gravador na bolsa para cantar e aprender as músicas, e aí eu mostrei pra ela, dizendo: ‘Fale de novo, eu já gravei, mas quero que você repita para eu tomar providências’”. Valéria conta que, nesse Agosto 2018 | 33


Eu fui mais professora de filhos de nordestinos. E isso nos fazia iguais, né? Eles estavam lá buscando dignidade, e eu também. Isso gerava empatia, respeito mesmo, porque muitas daquelas mulheres, a partir de conversas que a gente tinha, voltaram a estudar

momento, a diretora quis voltar atrás afirmando que não era nada do que ela pensara. “Mas era isso mesmo: racismo no trabalho, racismo institucional!”, enfatiza a professora aposentada. Apesar do episódio, ela não baixou a cabeça e fala que aprendeu a lidar, estabelecendo boas relações com alunos e pais. “Eu fui mais professora de filhos de nordestinos. E isso nos fazia iguais, né? Eles estavam lá buscando dignidade, e eu também. Isso gerava empatia, respeito mesmo, porque muitas daquelas mulheres, a partir de conversas que a gente tinha, voltaram a estudar”, orgulha-se. Sua vida profissional não foi fácil. Entretanto, teve a felicidade de passar num concurso para professora efetiva do estado, já formada em Pedagogia, curso onde se encontrou e conseguiu concluir. Quando precisou escolher em qual escola ficaria, Valéria assume que escolheu pelo nome. “Era na Escola Caetano de Campos, no bairro Jardim Sabiá. Eita, esse nome é bonito”. Mas ao contrário do que pensara, o lugar era periferia, “todo tipo de vulnerabilidade que você imaginar, tinha lá”, ela conta e assume que, apesar de tudo, foi muito feliz. Mesmo com outras questões que pareciam servir para dificultar seu trabalho, como por exemplo, ser professora da turma de 34 | Bárbaras

alunos mais “problemáticos” da escola. “Eu não aceitava de forma alguma ouvir a diretora dizer que tal aluno não tem perfil para continuar na escola, porque os pais eram drogados. Eu dizia: é ele que tem que ficar aqui!”, e assim, a professora foi acusada pelos colegas de trabalhos de fazer “comício” no ambiente escolar, mas isso não a desmotivou. Valéria contrariava pequenas regras, como a de entrar somente pela “porta da professora”. “Tinha a porta dos professores e a porta dos alunos. Era proibido o professor entrar pela porta dos alunos, mas eu sempre entrei por essa, porque era lá que eu ia criar uma relação com os pais dos alunos e com eles mesmos”. Foi na carreira de educadora que pautou e ensinou questões étnicas, além de aprender com seus alunos sobre a religiosidade africana, assunto que afirma fazer parte da sua ancestralidade. “Foi muito lindo, porque os pais de santo dos terreiros desses meus alunos me deram o maior apoio, nós fizemos um trabalho brilhante na escola. Também tive muita ajuda dos pais e dos alunos, inclusive ainda lembro nomes: Natacha e Pedro”, relembra as crianças que mais a marcaram. Apesar da experiência e afirmar que é inicia-


da na umbanda, Valéria se considera ecumênica. “Vou pro terreiro, vou pro templo, vou pra igreja, vou pra todo lugar. É em nome de Deus? Do sagrado? Eu to é dentro. Eu me conecto com Deus… não gosto nem de chamar assim. Me conecto com o Sagrado”, revela.

Sobre amor e filhos

Até hoje, Valéria guarda trabalhos e fotografias da época em que foi professora

Entre responder todas as minhas perguntas, Valéria também se preocupa em preparar café e dar conselhos sobre afeto. Ela tem idade para ser minha avó, mas nós poderíamos facilmente ser melhores amigas numa tarde conversando sobre qualquer coisa. Tomada por essa sensação de intimidade, resolvi perguntar: você nunca casou? “Nunca casei”, é direta na resposta. “Vivi intensamente. Eu não casei e não me arrependo de nunca ter casado. Namorei muito. Gastei o amor. Partilhei o amor que eu tinha com muitas pessoas”, suas palavras e voz mansa ecoam nos meus ouvidos. Naquele momento, o amor era algo fácil. Até arrisquei me perguntar o porquê das pessoas complicarem tanto, mas logo afasto os pensamentos para prestar atenção na fala calma de Valéria. “Nunca tive uma relação homossexual, sou hetero, mas muitas mulheres já se apaixonaram por mim. E eu to falando isso pra vocês, porque sobre essa coisa do amor, muita gente que vem me entrevistar não pergunta, é a primeira vez”, declara. Amou e foi amada, como ela mesma fala. Em tempos de se falar sobre “responsabilidade afetiva”, Valéria me dá uma aula. “Eu sou responsável só pelo meu amor, não sou responsável pelo amor do outro. Se houve reciprocidade, foi bom enquanto durou”. Atualmente, ela escolheu estar solteira, sozinha não, pois tem sua filha, que adotou ainda em São Paulo. “Eu quis ter essa filha. Eu fiz uma opção. Eu não pude ter, não pude gerar e foi tardio”, lembra. Num momento emocionante de nossa conversa, uma das mulheres icônicas da luta negra e feminista no Cariri, revela questões que teve com a maternidade, assim como qualquer mulher. Após problemas de saúde, ela precisou ser histerectomizada muito jovem. “Eu sempre quis ter filho, mas a dor foi tão grande, de saber que nunca ia engravidar, que eu apaguei”, diz, afirmando que não chorou na época. Vinte anos depois, aos 40 anos de idade, Valéria chorou a dor que ela denomina de “a dor de não poder parir”. Era sexta-feira de carnaval, e apesar de o sambódromo do Anhembi estar a poucos quilômetros do seu apartamento, ela não estava em clima de folia. Sozinha, chorou sexta, sábado e o domingo de carnaval. Somente na segunda-feira, após o choro de Agosto 2018 | 35


Prêmio Mulher de Fibra (Sesc)

três dias, falou para si mesma na frente do espelho: “Tu não pode parir, mas ainda pode ser mãe”. Tomou um banho, pegou uma pasta elástica de cor vermelha e colocou todos os seus documentos dentro. Estava recuperada, ou melhor, determinada. Valéria não chora mais que três dias. “Eu toda linda e perfumada, fui assistir o carnaval pela televisão e, na quarta-feira, eu disse: vou pra Vara de Infância, que ia abrir meio-dia”. Às 13 horas da quarta-feira de cinzas de 2002, ela passava pelos detectores de metal da entrada do fórum, perguntando a um guarda onde podia fazer seu cadastro de adoção. “Foi tudo muito lindo e muito rápido”, assegura. Hoje, sua filha tem 14 anos e se chama Stefany Vitória, mas ela queria que chamasse Maria Antônia. “Quando a recebi, ela não aceitou o novo nome. Ela tinha 1 ano e 6 meses e eu cuidei dela desde novinha, sem saber que seria minha, porque eu fazia trabalho voluntário num orfanato chamado Acalanto”. Passada a história dos seus amores e da maternidade, ela reitera que é tudo bem resolvido. “Pra mim, é. Mas eu acho que essa história do afe36 | Bárbaras

to e do amor não é bem resolvida para as mulheres negras. É como se a gente não nascesse pra amar. Acham que as mulheres negras não nasceram pra amar”.

Valorização negra

Aos 48 anos e tendo completado o tempo de trabalho, decidiu que não queria cuidar da filha na cidade grande e voltou para o Crato. “Durante esses anos em São Paulo eu vim mais de 100 vezes no Crato. Todo dia olhava pro céu procurando ‘minha estrela’ e dizendo ‘um dia eu volto’. São Paulo, pra mim, foi uma universidade, um doutorado”, lembra. Na época, o Grupo de Valorização Negra do Cariri (Grunec) já existia e Valéria dava suas contribuições mesmo no período em que esteve longe. O Conselho da Mulher também já realizava suas atividades e, quando retornou, ela assistia às reuniões por uma janela que havia no prédio da sede. “Eu não era conselheira e aquilo me indignava de uma maneira… Porque eu via que as mulheres vítimas de violência que aquelas conselheiras tavam falando eram todas negras, mas elas não eram


vistas nessa especificidade. Era apenas ‘a mulher vítima de violência’”, ressalta. Pergunto se havia alguma mulher negra no Conselho. “Tinha algumas… Elas são, mas não sabem que são. A pessoa tem que se perceber. E eu vendo aquilo, pensei: vou entrar nesse negócio. Tanto eu quanto minha irmã decidimos entrar. ‘Bote meu nome aí! Eu quero entrar nesse Conselho’”. Para ela e a irmã, foi uma escolha cheia de aprendizados, onde elas mais ouviam e, vez ou outra, propunham questões. Valéria precisava cuidar de sua mãe e filha pequena, assim, Verônica - sua irma gemea - foi a que mais se engajou no Conselho, chegando a ser presidente por duas vezes. “Enegrecer o Conselho é pautar questões negras ou, no mínimo, reconhecer que muitas daquelas mulheres vítimas de violência eram negras. E não é porque minha irmã foi duas vezes presidente que a pauta tá ‘ok’, não”, salienta.

Eu acho que essa história do afeto e do amor não é bem resolvida para as mulheres negras. É como se a gente não nascesse pra amar. Acham que as mulheres negras não nasceram pra amar

Estrelas

Num momento de pausa, Valéria lembra de uma de suas tantas histórias e diz que quer contar sobre o trauma que teve. “Primeiro, eu sou louca por aniversário. Eu faço aniversário dia 3 de janeiro. Uma vida inteira, até os 15 anos, eu não tive festa de aniversário. Eu sei, por causa de fotos, que eu tive uma festa de 3 anos. Então, quando você vai crescendo e não tem festa de aniversário, mas vai chegando Natal e sempre tem aquelas festas maravilhosas, juntava a família toda, pais, tios, Valéria e sua família na década de 70 do século passado primos. Era festa de Natal, ano novo e aniversário, aí nós saímos prejudicadas, né? Porque quando chegava dia 3, já foi, né? Já teve. Aí a gente ficava muito ‘fula’ da vida”. Apesar disso, Valéria conta que cresceu ouvindo dos pais e tios que ela e a irmã gêmea teriam a maior festa de 15 anos que o Crato já viu. “Só que um dia antes dos nossos 15 anos, minha mãe foi internada, muito doente, quase morrendo. Quando foi no dia três, baixa um caminhão lá em casa, com o que restou da farmácia do meu pai, que faliu. E meu pai sumiu, quem vai deixar as coisas são meus tios e avós. Nós já estávamos muito tristes, porque minha mãe tava no hospital, e ainda recebemos a notícia da falência. E meu pai sumido. Quando tava já quase anoitecendo, o Agosto 2018 | 37


Ilustração: Andréa Sobreira

homem da Coelce chega e corta nossa luz. E aí, papai não aparece e mamãe no hospital…”. Mesmo com adversidades, as irmãs permaneceram tentando manter tudo sob controle. Pediram para que o irmão, Luciano, fosse numa bodega comprar um pacote de velas. Fizeram o jantar dos irmãos e os colocaram na cama. Por volta das 10 horas da noite, o pai de Valéria retorna. “Meu pai chega com um pacotinho de pão e uma vela, e chama a gente pra ir lá pra cima. Minha casa era de andar e ficava na Vila Alta. E lá em cima, ele acende a vela, tira daquele pacotinho esses mini bolinhos, cheio de confetezinho, e aí ele: vamos cantar parabéns?”, o pai agia como se nada tivesse acontecido. Valéria, Verônica e o pai cantaram parabéns. Ele quis cortar o bolo, mas as duas preferiram deixar para o dia seguinte, quando pudessem partilhar com o restante dos irmãos. “Até porque também, a gente tava com muito ódio, não era raiva”, explica. “Deitem na areia”, o pai lhes pediu. “Aí meu pai ficou conversando sobre as estrelas, o mundo. Sobre como o mundo é bonito, né? E aí ele pede pra nós escolhermos nossa estrela. A gente ficou muito tempo, eu não sei dizer quanto tempo a gente ficou deitadas nessa areia, olhando pro céu estrelado, lindo demais. E foi aí que a gente percebeu, com 15 anos, que as estrelas tinham cores diferentes, tu acredita?”, seus olhos brilham. O pai contava histórias lindas sobre o universo e a vida. “Enfermeiro prático” era sua profissão. A filha orgulhosa explica que ele era um curioso da medicina e da humanização. Era cuidador de gente. E naquela noite, no fim de um péssimo dia, ele sabia como cuidar das filhas. Após pedir muito, as irmãs atenderam o pedido do pai e encontraram suas respectivas estrelas. “Ele falou muita coisa linda. Levantou e disse: ‘olhe, papai ta passando por uma série de dificuldades, mas eu vou prometer uma coisa pra vocês, eu vou lutar, a vida toda, aqui e quando eu for também, pra que ninguém apague a estrela da vida de vocês, esse brilho é de vocês, ninguém nunca vai apagar. Onde eu tiver, quando tiver dificuldades, ela vai brilhar mais ou menos’”, Valéria lembra com clareza das palavras do pai. E até hoje a senhora tem essa estrela? Pergunto. “Claro. Eu procuro. Eu fiquei todos esses anos em São Paulo, e a minha força era quando eu via a estrela. Quando eu tava muito triste, sentindo muita saudade daqui eu ia buscar a estrela, buscar força na estrela. Meu pai foi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Tirando as mulheres, meu pai é o cara, ainda hoje. Eu penso que nin38 | Bárbaras


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guém teve uma festa de aniversário, um presente, mais bonito que o meu, não conheço ninguém que teve isso. Não é só a estrela, é aquela conversa. Isso não ta nos livros. Isso é felicidade, não é todo mundo que tem isso”.

A luta das mulheres negras

Não foi preciso perguntar para saber que as referências de Valéria não estão nos livros. Como ela mesma elenca, suas maiores referências são as mulheres que estão ao seu lado. “A minha história com as mulheres negras é uma história vivida, onde a gente vai na prática. Então, além das mulheres da minha família, existem as mulheres anônimas de Crato. Como Rita do pote, Maria Roxa, Tia Amélia e tantas outras mulheres. Elas forjaram também a minha luta. A minha busca pela igualdade. Então, não vou ta falando aqui de Tia Simoa, desses grandes nomes, né? É no movimento de mulheres, principalmente no movimento negro, que a gente constata onde estão nós mulheres, qual é o nosso lugar. Nosso lugar continua sendo na periferia das periferias, no fogão, com a lata d’água na cabeça, com trouxa de roupa”. Sua força para lutar por igualdade de direitos é cativante. Através do Grunec e com sua voz mansa, Valéria alcança mulheres de comunidades rurais, periféricas e marginalizadas; mulheres bárbaras que ainda não sabem o poder que têm, por serem engolidas, a todo momento, pelo machismo, racismo e tantos outros ismos. Ela lembra que em 2015 o Grunec convidou outros momentos e organizaram a primeira marcha das mulheres negras no Cariri, com aproximadamente duas mil pessoas na rua. 2015 foi um ano pra marchar, como Valéria classifica. Aproximadamente 100 mulheres do Ceará também estiveram em Brasília, para marchar. O primeiro “Fora Cunha”, inclusive, partiu das mulheres negras. Ela afirma que foi uma representatividade importante, por conseguirem levar mulheres empregadas domésticas, de terreiro e quilombolas. “E aí, quando fala empregada doméstica, tem uma que pra mim é muito especial, o nome dela é Maria José, mas ela gosta de ser chamada de Sandra. Sandra, empregada doméstica, é um ciclo, a família todinha, mais de cinco irmãs são, a mãe era. E quando a gente volta de Brasília, Sandra disse ‘eu vou ali’, e Sandra foi pro Ceja, se matriculou e, hoje, Sandra sabe ler”.

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Dedos fora do armário

HORA DE ESCREVER TEXTO | Sarah Gomes

Hoje em dia todo mundo tem aquela amiga lésbica da faculdade. Se você não tem, então você provavelmente é a amiga lésbica da faculdade. Eu sou. Mas nem sempre eu pude falar que era. Essa é uma das únicas coisas que todas nós (lésbicas, entende?) temos em comum. Nós nunca pudemos falar muito. Nem sobre a gente, nem sobre a vida, nem sobre como o sol reflete nos cílios fartos de quem escaparia de barco da Rússia e velejaria até o Canadá só para dançar com a gente. Vai que alguém percebe, né?! Somos desviantes desviando, des(entendidas). Nós nunca pudemos falar muito, mas isso não significa que estivemos caladas. Há 40 anos, em maio de 1978, as mulheres lésbicas entraram em cena, pediram a palavra e desceram o verbo na 12ª edição do jornal Lampião da Esquina, o periódico foi pioneiro na abordagem da homossexualidade explícita por um viés político. Pela primeira vez na história do Brasil, mulheres lésbicas se reuniram para falar e escrever sobre a experiência homossexual feminina. Era a imprensa alternativa metendo o cotovelo para abrir caminhos e rasgar papéis. A partir do Lampião da Esquina as mulheres lésbicas tiraram os dedos do armário e sapatearam contra a dança nas folhas dos periódicos lésbicos. Do ChanacomChana1 ao Xerereca2, passeando de forma Lesbertária3 pelo Ponto G4, as mulheres lésbicas encontraram na imprensa alternativa uma entrada para quebrar os muros da lesbofobia e produzir novas subjetividades através da construção de uma cultura lésbica e de uma cultura de resistência. Quem você pensa que ressignificou termos como “fancha5” e “sapatona”? Tanto é que para além do Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, em 29 de agosto, data criada por militantes lésbicas brasileiras durante o 1º Seminário Nacional de Lésbicas – SENALE, em 1996, o movimento lésbico conta com outra data importante no mesmo mês. Foi na noite 19 de agosto de 1983, uma sexta-feira, que o Brasil viveu o seu Stonewall6 Lésbico. Eram os últimos suspiros de uma ditadura que 42 | Bárbaras


organizou a Operação Sapatão no Ferro’s Bar (uma espécie de Cangaço7 paulistano), detendo todas as suas frequentadoras, no feriado de 15 de novembro de 1980, sob o argumento de “você é sapatão”. Em resposta às ameaças e quase expulsões que mulheres lésbicas sofreram no estabelecimento ao tentar vender o boletim ChanacomChana, o Grupo de Ação Lésbico-Feminista (GALF) organizou uma invasão ao bar com o apoio de entidades, feministas, homossexuais, representantes da Comissão de Direitos Humanos, imprensa, deputados e vereadores. O dia ficou conhecido por sediar a primeira manifestação contra o preconceito protagonizada por lésbicas no País. Talvez também tenha ficado como a primeira vez em que lésbicas foram notícia em jornais e revistas de forma positiva, por reivindicarem o direito de divulgarem o seu boletim para outras lésbicas e de ir e vir num mundo que também é delas. Digo, nosso. Sem orgulho não há visibilidade. E, olha, a visibilidade é Bárbara!

Lesbicionário 1 - Jornal ChanacomChana (1981) e Boletim ChanacomChana (1982 – 1987) publicados pelo Grupo de Ação Lésbica-Feminista (GALF) em São Paulo – SP. 2 - Boletim Xerereca (1987) publicado por Rita Colaço e Ana Rita Lugon no Rio de Janeiro – RJ. 3 - Boletim Lesbertária (1993) publicado por Miriam Botassi e Anne Punch em São Paulo – SP. 4 - Boletim Ponto G (1998 – 2002) publicado pelo Grupo Lésbico da Bahia em Salvador – BA. 5 - Sinônimo para Lésbica. 6 - Stonewall foram manifestações da comunidade LGBT contra repressões da polícia, no ano de 1969, em Nova York. 7 - Cangaço Rock Bar é um estabelecimento popular nas noites de Juazeiro do Norte.

Agosto 2018 | 43 Ilustração: Larissa Ribeiro


CRร NICA

A magia

de viajar sozinha

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Segundo pesquisas de 2017 do Ministério do Turismo, as mulheres demonstram ter menos intenção de viajar (27,3%) que os homens (35,3%). Entretanto, no quesito “tipo de acompanhante”, os índices masculinos são mais baixos, apenas 6,9% dos entrevistados pretendem viajar sozinhos, enquanto que as mulheres representam 14,6%. Apesar disso, ainda existem muitos tabus que rondam a capacidade de uma mulher viajar sozinha. Aliás, como viajar a sós, se até numa pequena caminhada pela rua estamos corremos perigo? Daysianne Kessy, 23, é estudante de engenharia de materiais e conta um pouco da experiência em viajar sozinha na condição de mulher. Sua paixão por viagens começou em 2013, quando foi selecionada no programa Ciências Sem Fronteiras, e saiu da cidade natal, Acopiara/CE, para o estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Foi sua primeira viagem sozinha e, desde então, ela não para.

TEXTO | Daysianne Kessy

Geralmente, quando digo que estou indo viajar sozinha, ouço frases do tipo: “mas você é mulher, é perigoso!”. “Ficar sozinha deve ser muito chato, eu não aguentaria um dia”. “Você não tem medo de alguém mexer contigo não?”. “E se você se perder, quem é que vai te ajudar?”. Transformam a ideia de uma mulher viajar sozinha em algo super perigoso, a rotulam como um ser frágil e apenas ressaltam pontos negativos de algo que pode ser uma experiência incrível. No entanto, eu venho na contramão para mostrar a magia de viajar sozinha e o quanto isso é libertador. Primeiramente, viver é arriscar! Desde que nossos pais nos conceberam estamos sujeitos a doenças, violência, desastres naturais; mas caso eles não tivessem vencido o medo de tantas dificuldades, eu não estaria escrevendo essa crônica, nem você lendo. Não tenha medo de conhecer o mundo, se arrisque! Quando se fala dos motivos de ter receio de viajar sozinha, logo nos vêm os casos de estupro e assassinato de mulheres. Segundo o Instituto de Segurança Pública de São Paulo, quase 70% dos casos de violência contra a mulher são cometidos por pessoas próximas à vítima. Então, na maioria das vezes, o perigo para a mulher está na cidade que ela vive ou dentro de casa. Numa viagem que fiz para Assunção, no Paraguai, não conhecia ninguém, nem sabia o idioma local. No início, me deu um friozinho na barriga, pois haviam me falado que nesse país os índice de tráfico sexual de mulheres são altos. Mesmo diante disso, decidi ir e a experiência foi incrível! Logo

quando embarquei no ônibus, saindo de Ciudad del Este para Assunção, as famílias paraguaias que estavam ali notaram que eu não era nativa e ofereceram comidas típicas, indicaram pontos turísticos, pagaram meu ticket do ônibus, carregaram minha bagagem com muita gentileza, distribuíram muitos sorrisos e fizeram eu me sentir bem vinda no país. Viajar sozinha é um convite a ter o máximo de liberdade possível: você não terá estresse em acordar num horário marcado, é livre para comer o que quiser e frequentar os lugares que tem interesse, sem se preocupar em agradar alguém. É libertador. Você descobre seus próprios caminhos. Essa liberdade de controlar o meu tempo, descobrir lugares e sabores casa muito bem com a questão financeira. Quando viajei com alguns amigos para Salvador/BA, muitas vezes me sentia desconfortável para explicar que não dava para ir em determinado local, devido o pouco dinheiro que tinha, ou tentar convencer o grupo sobre não comer algo porque eu não gostava da comida. Além da liberdade, você se autoconhece, eleva a autoestima e se empodera. Estudar, trabalhar, pagar contas, arrumar a casa e outras atividades que fazemos todos os dias, fazem com que não tenhamos um tempinho para nós mesmos e acabamos sem conhecer de fato quem somos. Viajar sozinha é uma excelente oportunidade para desconectar-se das exigências da rotina e conectar-se mais consigo mesma. Quando estive em Jericoacoara/CE, no fim da tarde sempre subia uma duna Agosto 2018 | 45


Fotos: Arquivo pessoal

Estudar, trabalhar, pagar contas, arrumar a casa e outras atividades que fazemos todos os dias, fazem com que não tenhamos um tempinho para nós mesmos e acabamos sem conhecer de fato quem somos. Viajar sozinha é uma excelente oportunidade para desconectar-se das exigências da rotina e conectar-se mais consigo mesma para ver o pôr do sol. Era uma imagem linda, que me fazia sentir necessidade de meditar e agradecer à vida pelas coisas boas que existem. Ao fazer uma trilha sozinha, você respeita mais suas limitações. Ao caminhar por ruas desconhecidas, se torna mais sensível para analisar detalhes, como o sorriso de trabalhadores locais. Além disso, aprende a controlar mais seu dinheiro, para ser suficiente durante um tempo, aguça o senso de localização, consegue se comunicar melhor com as pessoas ao pedir informações e, por fim, valoriza sua própria companhia. Afinal, na maior parte do tempo você está ali desacompanhada. Você se empodera ao ultrapassar obstáculos e dizer: consegui, eu sou mais forte do que imaginava e estou pronta para a próxima! A primeira viagem sozinha foi para morar nos Estados Unidos: sem conhecimento da língua inglesa, cultura ou alguém que morasse lá. Eu só conseguia responder “what is your name?” e qualquer pergunta com um sorriso, pois não compreendia nada. Comi, involuntariamente, várias comidas apimentadas, me apaixonei no Brooklyn, chorei com histórias de guerras dos colegas de sala do Iraque, fui presa por engano na fronteira do México, fui a Las Vegas e me casei com um desconhecido, me perdi algumas vezes e, nisso, sempre me encontrava: mais forte, mais sensível e mais apaixonada pela vida. Se você também sente vontade de colocar uma mochila nas costas e viajar desacompanhada: não tenha medo, vá em frente! Você não estará sozinha, pelo contrário, encontrará inúmeras pessoas que, como você, estão nessa mesma caminhada. Antes de viajar, pesquise bastante em blogs, sites, como o TripAdvisor, páginas no Facebook, como a “Mochileiros”, e tente entrar em contato com outras pessoas que já viajaram para compartilhar contigo um pouquinho da maravilha que é viajar sozinha. 46 | Bárbaras


POEMA

Agora já não preciso

ser um gênio Já não sinto mais o cheiro da tinta, suas texturas ou singularidades. Acordar cedo e aproveitar as horas vagas do céu noturno, já não faz parte da minha rotina. Agora estou morta. Já o estava sendo há algum tempo. Minha voz e pensamento nunca ganharam projeção, ficaram restritas às paredes do quarto. Acho que uma das causas da minha morte foi por asfixia. Agora já não preciso ser um gênio. O peso gerado dentro das expectativas de ter reconhecimento. De se tornar referência em livros. De ser vista. De ser escutada. Já não me atormenta mais. E agora fica mais claro do que nunca, que um dos fatos que me deixaram velada É o sexo que carrego comigo. Meu discurso e técnica, nunca foram os pontos altos de discussão. Meu sexo sim. Antes de ser artista, era mulher, mas que pretensão a minha, se nem de ser humano ganhei titularidade. Sexo, cor e classe, devem seguir na descrição da obra. Pensei nisso quando escutei uma frase assertiva “Arte não tem gênero, Artista sim”. Percorrer um campo minado, torna-se rotina. E agora já não preciso pensar onde pisar. Meus pincéis seguirão submersos, nos potes colocados no sábado à noite. Agora já não preciso ser um gênio. Os cadernos acumulados começaram a empoeirar. E o cheiro da terebintina a ficar mais suave. As dores que se faziam presentes em dedos, mãos, pescoço e costas já não o fazem. O peso constante que os olhos carregavam, se foi. Olhar através da janela ou para o relógio não é preciso. As trivialidades diárias não fazem mais sentido. Agora já não preciso ser um gênio. Não estou mais aqui, mas você está. Andréa Sobreira


Ilustrações: Tainah Amaral


A divina trindade

Joaseiro das beatas Da tríade que consagra o pai, o filho e o espírito santo, eis que se consolida a educadora, a gestora e a santa. Joaseiro - grafia utilizada para a designação do povoado do século XIX - das beatas, mulheres que em meio ao coronelismo latente do solo marcado pela sedição de 1914, resistiram e firmaram nesta cidade a esperança. Andar pelas calçadas da travessa Izabel da Luz, da rua Beata Mocinha ou da Beata Maria de Araújo na atual Juazeiro do Norte poderia ser como andar sobre marcos zeros deste lugar. As cenas abrigadas em cada ventre foram abafadas pelos véus negrumes que cobriam não só suas cabeças, mas tudo que lhe nascera, suas raízes e a forma que cada uma cresceu para a terra. Vistas pela Santa Sé como embusteiras e conhecidas simplesmente como beatas, estas mulheres revolucionaram no ensino, na construção da casa de um povo e na religião cristã. TEXTO | Bibiana Belisário

BEATA MARIA DE ARAÚJO

Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo, “Maria Preta”. Filha de Antônio da Silva Araújo e Ana Josefa do Sacramento, nasceu na antiga Tabuleiro Grande – fazenda originária da atual Juazeiro –, e cresceu em meio às oficinas de trabalho e salas de oração, onde se construía vida debaixo do silêncio da oficialidade. Artesã, costurava bonecas de pano e ensinava o ofício para outras crianças do povoado, lugar que também estava na labuta como doceira, lavadeira e chegou até a contar tijolos em uma olaria. Aos 22 anos, Maria de Araújo passou a exercer os hábitos de freira após um retiro espiritual, realizado pelo Padre Cícero e Padre Vicente Sóter. Ali, a mulher entregou-se à andança missionária, incorporando a figura feminina que existe descobrindo o sertão e a potência que o divino tem de penetrar no solo seco e infértil, se manifestando em milagre. A manhã adentrava marcando o primeiro de março de 1889, sexta-feira da Quaresma. Já se podia ver os primeiros raios de sol

invadindo as brechas da Capela de Nossa Senhora das Dores, e ali se concretizava o cenário para o acontecimento dos tempos. Com suas mãos postas carregando um rosário de cor gélida, estava Maria, junto a mais oito beatas que aguardavam a comunhão. Era a primeira da fila que o Padre Cícero conduzia, de olhos fechados, jamais imaginaria que estava prestes a traduzir em sangue sua comunhão com Deus. A hóstia na boca da agora santa mudou de forma e cor. Era vermelho vivo. O fio de sangue descia em seus lábios grossos e, como ela tentasse contê-lo, este lhe banhou o dorso da mão esquerda, marcando a sua ligação com o coração, e escorreu ao longo do braço, até cair no chão da capela, onde lavava os pecados e as dores dos homens. O acontecimento já corria em meio à população como descarga elétrica e não demorou muito para que as cidades vizinhas viessem a se contagiar pela comoção geral. A mulher, ali, tornou-se o pilar que une a Joaseiro com a fé. Nas semanas que se seguiram, chegavam Agosto 2018 | 49


milhares de peregrinos atraídos pelo sucedido, e em 7 de julho de 1898, Joaseiro era terra para um mar de fiéis, pois era o Cristo que se manifestava no agreste, a palavra milagre corria solta e o solo, já era sagrado. Começaram-se as romarias, obra de uma Maria. Dois anos se passaram. A cidade fervia e a Magdalena era julgada por ser mulher, pobre, negra e anafalbeta, acusada de louca por afirmar que conversava com toda a corte celeste e fazia viagens espirituais ao céu, ao inferno e ao purgatório. Encarcerada, torturada e proibida de se expor publicamente, estava condenada a viver na subalternidade, pois na branca capela de Nossa Senhora das Dores, entre os lábios da beata Maria de Araújo, a hóstia consagrada pelo Padre Cícero jamais poderia se materializar no sangue divino de Jesus.

BEATA ISABEL DA LUZ

“Minha mestra”, era assim que todas as alunas chamavam a professora Isabel Montezuma da Luz, mulher a quem o Padre Cícero confiou a tarefa de educar a juventude feminina da terra. Nascida em Missão Velha, origem que remonta o início da colonização eminentemente Capuchinha na região do Cariri, a moça que hoje aparece sem rosto, veio alumiar o alicerce deste interior com o dom de socializar o conhecimento. Ainda jovem, consagrou-se beata. Em contos se 50 | Bárbaras

diz ter sido ligada ao grupo do Padre Félix de Missão Velha, já outros declaram que ela pertenceu a “Ordem das Beatas”, formada pelo Padre Cícero. Porém, se sabe que após uma celebração, na qual Isabel da Luz estava presente, moças convidadas foram surpreendidas ao receber o manto e ter seus cabelos cortados, significando que dali em diante estariam a serviço de Deus. Era 1896, no povoado de Joaseiro, estava a nascer duas escolas particulares, uma masculina e outra feminina, esta que foi guiada pela beata Isabel da Luz, a quem coube a alfabetização de grande parte das meninas que não só lhe tinham como professora, mas também como referência de mulher e sagrado. Sendo assim, por processos educativos que passavam por situações vividas pelas educandas, até situações de tensão que pairavam na localidade, as alunas tornaram-se cidadãs prontas para seguir seu próprio rastro e crescer pro mundo. A beata mestra foi precursora do Movimento Renovador da Educação da Juventude, que através do seu método espontâneo, atingiu o cotidiano com seus ensinamentos, trabalhando a socialização e a construção do espaço escolar junto das mãos, mentes e corações que ocupavam sua classe. Uma de suas alunas, Amália Xavier, que dirigiu por mais de duas décadas a Escola Normal Rural de Juazeiro do Norte (1934), partilha em seu livro “O Padre Cícero Que Eu Conheci” sua experiência com a professora, e conta que “até a sombra de um cajueiro pode ser a melhor sala de aula se ali pontifica a mestra, que é capaz de dirigir os educandos no sentido de sua formação integral”. A formação se dava de maneira tradicional à época. A moça concluía seu curso quando sabia ler corretamente, escrevia um translado – pequeno trecho para ser copiado –, realizava as quatro espécies de cálculo, praticava instrumentos e bordava em ponto cruz. Amália relata ainda, que ao terminar os trabalhos passados pela mestra, tinham que assinar e, em seguida, escrevia-se a data e a localidade, que primeiramente era Joaseiro, povoado do Crato. Os acontecimentos que agitavam toda a população eram no sentido de gerar emancipação política a futura Vila de Joaseiro, da cidade provinciana Crato. Naquele dia se podia notar uma movimentação distinta, as pessoas estavam inquietas, abriam e fechavam suas janelas como se esperassem uma resposta cansada. Isabel, depois de muitas idas e voltas até a calçada, chegou até as suas meninas com olhar radiante anunciando que, ao fim de suas lições, escreveriam o nome de uma cidade emancipada, e que se preparassem, pois seria uma semana de festejos. Suas


alunas se dividiam entre cooperar com seus trabalhos manuais para a decoração da vila e em tomar parte da comemoração como artistas, sendo elas personagens dos dramas religiosos.

BEATA MOCINHA

Filha da freguesia do Riacho do Sangue – atual Solonópole –, norte do Ceará, Joana Tertulina de Jesus chegou ao Joaseiro aos 12 anos, sob a tutela de Dona Naninha, mulher que já exercia o ofício como professora em sua terra natal e aqui, com a autorização do Padre Cícero, instalou a primeira escola para ensinar meninas. Aos seus 17 anos, foi convidada pelo padrinho, que presidia os rituais, junto ao seu auxiliar, o Padre Vicente Sóter, a participar de um retiro de oito dias, onde em seu término seria conferido o manto e o hábito de beatas àquelas jovens. E assim foi feito, em 1885 ela tornou-se missionária, onde na mesma celebração estava presente a Maria de Araújo. Logo, o Padre Cícero mudou de residência e passou a morar na Rua São José – casa que hoje é considerada “A Casa Museu do Padre Cícero” –, entregando a gestão do lar à beata e elegendo-a não só a dirigente do lugar, mas também a pessoa de sua legítima confiança, posto que sofreu as piores afrontas. Joana de Jesus recebia visitas constantes de pessoas atrás de remédios, vestimentas, conselhos e até mesmo bençãos para seguir viagem, além de todas as famílias que o padre acolhia por meses até conseguirem um trabalho. Todos os dias estava a postos de pé, com sua mente viva, engenhosa e penetrante, capaz de em poucas palavras claras e precisas, resolver as questões mais difíceis e as situações mais ambíguas, fosse rodeada por negócios ou observando todos aqueles que se sentia responsável, ora embravecida, carregando a severidade de todos os tempos, outras embalada por um ritmo mútuo de energia e ternura, mas sempre fugindo da algazarra para não desesperar de impaciência, afinal estava sempre a perdoar a insensatez dos que não lhe cedia o direito mínimo a um repouso sem ouvir chamarem pelo nome. Na fundação do Apostolado da Oração – sendo hoje o terceiro mais antigo do Brasil –, a beata Mocinha foi encaminhada a exercer o cargo de Tesoureira da associação, recebia a contribuição dos membros e as espórtulas das missas, além disto, foi depositária das contribuições dos romeiros que chegavam dispostos a fixarem residência na região. Em 1925, a beata juntamente do Dr. Audálio Costa inauguraram um novo serviço na cidade e os candeeiros a querosene começaram a entrar

em desuso, pois estavam ganhando uma sociedade, privada, mas trabalhada a fim de gerar energia elétrica para residências e estabelecimentos comerciais, funcionando de maneira restrita ao período noturno. Logo mais em 1929, a beata firma junto a Prefeitura Municipal o serviço de iluminação pública, a quem se mantém como proprietária até 1938. Em meio às representações estabelecidas no povoado, a beata chegou ao terceiro lugar na escala de poder, depois do Pe. Cícero e do Dr. Floro Bartolomeu, o grande general dos sertões. Não sei se o céu está precisando de mais divindades, mas o sertão, com certeza, está precisando reconhecer suas mães, as mulheres que mesmo silenciadas, marcam a memória dos que se sentem pertencentes as suas caminhadas engolidas pela opressão de décadas. A antiga Tabuleiro Grande não sabia, mas o que hoje rege a Juazeiro do Norte é o fruto da determinação destas que carregaram e deram movimento e vida a atual metrópole do Cariri.


Pisando a areia branca

jovens negras e concursos de miss TEXTO E FOTOS | Laura Brasil

Em 1986, Deise Nunes, mulher negra, era eleita Miss Brasil. Apenas 30 anos depois, no Miss Brasil 2016, a segunda mulher também negra ganhava o concurso. Raissa Santana, paranaense de 21 anos, mudaria os rumos e - alguns - padrões dentro dos concursos de beleza da atualidade. A prova disso veio no ano seguinte, quando Monalysa Alcântara, negra e nordestina, foi também eleita para o posto de Miss Brasil 2017. Não tão distante daqui, em Iguatu, cidade localizada no centro-sul do estado do Ceará, o concurso de Miss Iguatu ocorre anualmente e atrai meninas de várias idades e classes sociais. Assim como em outros concursos de “beleza”, os padrões existem: mulher branca, alta, magérrima e que domine o salto alto. Entretanto, em 2017, um desses quesitos não resistiu à beleza da jovem negra Hionara Almeida. Hionara chama atenção pelos seus 1,70 de altura, olhos claros e cabelos cacheados. Porém, não são as principais marcas dela. A modelo, que iniciou a carreira nas passarelas representando sua escola de ensino fundamental, exala espontaneidade por onde passa. Ao concorrer o Miss Ceará 2018, em abril, a iguatuense sambou, literalmente, durante o desfile. ‘“Senti que o meu ‘eu’ poderia e tinha capacidade de brilhar”’, afirma. Não conquistou a coroa no concurso estadual, porém, segue com a vida agitada de modelo. Como presença vip em eventos da região, garota propaganda de lojas, além de manter cuidados com a alimentação, com acompanhamento nutricional e exercícios físicos diários. Hionara constrói a sua carreira. Mas nem sempre foi assim. Para chegar onde chegou, ela teve que passar por um longo processo de reconhecimento sobre sua identidade negra. “A maior dificuldade que senti foi adaptar meus cabelos às características que a sociedade considerava admirável. Nenhum produto fazia com que meu cabelo ficasse ‘bonito’, então fiz progressiva nos fios, mas ainda assim, ficava ‘alto’ e optei por pranchar todos os dias. A partir de certo ponto decidi deixar que os meus cachos retornassem e, literalmente, a minha 52 | Bárbaras

Hionara no desfile do Miss Ceará 2018


naturalidade fluísse”, ela lembra. Ainda hoje, aos 18 anos, e trabalhando em ambientes onde é conhecida por sua beleza, Hionara assume inseguranças. “Me sentir bem comigo mesma é uma das principais dificuldades, por causa de tudo que já sofri. Certas situações acarretaram pra minha vida insatisfações, no geral, minha autoestima tornou-se baixa”.

Foto: Arquivo pessoal.

‘Me acho demais’

Entre os preparativos para o aniversário do sobrinho, com um espelho na sua frente e inúmeros itens de maquiagem no colo, a também iguatuense Yanne Araújo me recebeu em sua casa para uma rápida conversa. Ela coleciona faixas e premiações de concursos de beleza, como o Rainha Estudantil e Miss Iguatu. A jovem de 18 anos tem fala firme e personalidade forte. O início na carreira de modelo se deu em 2014, quando participou do Rainha Estudantil, evento promovido pela prefeitura municipal de Iguatu para escolher a beleza estudantil dentre todas as escolas da cidade. “Eu nunca tinha desfilado, eu fui ‘na doida’, só pela alegria de ser, e fiquei em 3º lugar”, relembra com orgulho. Na família, composta pela mãe, pai, uma irmã mais velha e o sobrinho, Yanne é a única negra e, por isso, afirma já ter ouvido diversas vezes que é adotada. “Já ouvi tanta coisa. Com 18 anos de vida eu sou muito vivida, de preconceito, de dor, de ser excluída, já passei muito por isso. E eu sempre passei por isso muito bem. Eu gosto de ser morena, minha cor é diferente, meu cabelo é um luxo, e eu ‘me acho’ demais”, brinca. Em 2018, ela ocupou o segundo lugar no ranking do Miss Iguatu, onde a vencedora também era negra. “Outra negra ganhou o Miss Iguatu e eu ouvi várias piadas: ‘depois que uma negra ganhou o Miss Brasil, só reina quem é negra’. Ouvi muito mesmo. O povo diz que depois da Raissa Santana, podia vir desfilar a mulher mais bonita, e ainda assim ganharia uma negra”. Apesar das injustiças no concurso e os comentários maldosos, Yanne diz que ser miss é um objetivo e não vai desistir de ganhar a tão sonhada coroa. A estudante do 3º ano do ensino médio planeja, para 2019, cursar engenharia de produção e concorrer novamente ao Miss Iguatu, “querendo mais ainda”, destaca. “Depois das misses negras, depois de um presidente negro comandar um grande país, as coisas mudaram um pouco. Antigamente eu chorava muito. Mas nada que a gente não conseguisse superar. Ainda tem vezes que eu me sinto diferente, mas consigo lidar bem com isso”.

Deise Nunes

Monalysa Alcântara

Raissa Santana

A jovem Yanne afirma que ser miss é seu grande sonho

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Clube do Leitor

A literatura como identidade

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Uma vez ao mês, as quintas-feiras da Biblioteca do Centro Cultural do Banco do Nordeste (CCBNB) se tornam diferenciadas. O espaço é ocupado por amantes da leitura que se juntam para discutir autores e obras importantes. O Clube do Leitor tem a proposta de ser um espaço mais democrático e menos acadêmico, procurando abordar autores locais e temas como a escrita negra, a representação das mulheres nas obras e sua importância na produção literária. TEXTO | Alexia de Mesquita FOTOS | Jayne Machado

Este ano, o Clube traz as autoras Socorro Lira, escritora paraibana que vem para o lançamento de seu novo livro, “A Pena Secreta da Asa”; Joaquina Carlos, com contação de histórias; Cláudia Rejanne, que debate sobre a representatividade feminina no cordel e Thaylita Feitosa, discutindo Cora Coralina. Com a coordenadoria de Áurea Brito, wo intuito do espaço é colocar as pessoas em contato com as obras literárias e provocar uma discussão sobre elas, além de incentivar a leitura, inclusive de autores que não possuem tanta visibilidade. É um lugar de ação, onde as palavras saem do papel e abrangem um público de todas as idades, traz à tona, também, o debate sobre a leitura e a sua ligação com à oralidade. Áurea é formada em História e Agroecologia, sabe da importância da mulher nos espaços, principalmente na produção literária e passa isso através dos encontros e alguns dos temas escolhidos. Ela conta todo o percurso do Clube do Leitor.

Inovação

– O Clube surgiu como um incentivo à leitura, muitas pessoas frequentavam a biblioteca daqui, e também haviam pedidos de pessoas para que tivesse algo mais voltado para a literatura. A gente trabalha com isso, possuímos uma biblioteca. Pensamos em como criar uma atividade mais precisa de incentivo a leitura, de uso do espaço, porque faz sentido a biblioteca ser esse lugar democrático, a pessoa também pode estudar, mas é legal que ela tenha ações. A biblioteca não é um lugar onde se guarda livros, é um lugar da leitura, ali tem que ser discutida a leitura de uma maneira geral, nas suas várias faces. Tanto é que na biblioteca acontece as contações de histórias infantis, que também é um programa de incentivo à leitura para crianças. É uma contação de histórias, mas, a partir dali, isso vai despertando na criança, principalmente a que ainda não está alfabetizada, essa vontade de estar

em contato com as histórias, de conhecê-las. Então tem essa intenção do Banco [do Nordeste] de fazer esse incentivo para os diversos públicos. Inclusive, este ano, no Clube do Leitor, sugeri que fizéssemos uma contação de histórias para adultos, que trabalhasse a memória das pessoas do Caldeirão, para que também surja a indagação sobre que tipo de leitura estamos fazendo. Está só ligada a letras? Ou tem a ver também com a visão de mundo, com a oralidade? Porque essas também são construções de narrativas, muitas vezes não há a escrita, mas a história está lá. O cordel, por exemplo, quando ele era recitado nas fazendas, não deixava de ser uma contação de histórias e também não deixava de estar escrito, mas às vezes não tinha como todos lerem. O senhor da fazenda ou alguém trazia os cordéis e tinham saraus nas fogueiras, recitando cordéis, além das rodas de cantoria.

Organização

– Nós fazemos um levantamento entre as pessoas e também recebemos propostas. A ideia do Clube é apresentar a obra de um determinado autor, por exemplo, podemos trazer alguém que vá conversar sobre Cora Coralina (como na edição de maio), ou trazemos o próprio autor, como fizemos com Socorro Lira, porque ela está mais perto [geograficamente], já que há também uma questão orçamentária. Também, depende do tema, em fevereiro tivemos o tema da poesia, o professor Raul Azevedo veio discutir sobre a poesia de uma maneira geral, o tema era “Poesia: como faz e para que serve?”, justamente discutindo esse local da poesia, sua estrutura e o que ela é, sua diferença para com outros textos. Foi bem bacana. O intuito é colocar as pessoas em contato com as obras literárias, a temática surge da própria organização ou dos participantes do clube, às vezes chegam professores aqui e falam “tenho uma proposta”. Eles apresentam a proposta e entregam o Agosto 2018 | 55


projeto. Nós, então, avaliamos a relevância e se o tema já não foi tratado antes.

Representatividade

– Não só como mulher, mas como intelectual que eu sou, é extremamente importante que a gente dê visibilidade à literatura feminina, à escrita da mulher, porque no primeiro momento, quando ela surge, é muito na obscuridade. Mulheres escrevem literatura há muito tempo, mas na maioria das vezes era com um pseudônimo masculino ou com o nome do marido; ela escrevia e o marido que publicava, isso quando havia um marido mais “cabeça aberta” pra realidade da época. Há toda uma realidade por trás de tudo isso, a mulher fazendo literatura, principalmente no século XIX, tinha uma série de não-estruturas que tornavam mais difícil de construir essa narrativa. Geralmente, os homens é que eram escritores e exerciam isso como profissão. As mulheres, não. Elas eram donas de casa ou estavam inseridas dentro de uma estrutura familiar, não tinham seu es-

paço, o de poder fazer. Virginia Woolf fala disso em um livro, que poderiam haver mais mulheres escrevendo se houvesse uma estrutura pra isso, mas ela não é nem um pouco incentivada a escrever. As mulheres estão na invisibilidade. O que faço aqui é, na verdade, trazer à luz o que está enterrado. A mulher está presente na literatura desde que surge a escrita, mas ela fica escondida; é também trazer à luz uma sociedade mais igualitária, mais humana, mais justa, uma sociedade que homens e mulheres possam ter seu papel sem subjugar o outro, que é o caso da sociedade patriarcal. A mulher está sempre em segundo plano, ou o caminho é sempre um pouquinho mais difícil. Ainda hoje há essa limitação de uma forma 56 | Bárbaras

velada, há uma quantidade pequena de mulheres escritoras, talvez o número nem seja pequeno, é só a visibilidade que continuam negligenciando a mulher. Talvez tenhamos até mais mulheres escrevendo do que homens, mas o que se é publicado, que as editoras aceitam, é muito mais uma escrita dos homens. Se você pegar um catálogo de editora, é só fazer uma comparação de quantas mulheres e quantos homens têm. Será realmente que não há mulheres escrevendo ou é a escrita da mulher que não passa pelas editoras, por algum motivo? Dentre esses motivos, a gente debate sobre várias questões, não só a da mulher, mas também a questão racial. É bem mais difícil para uma mulher negra. O negro e o índio também não possuem seu espaço, aí vão dizer “mas a estrutura dos índios é a oral”, não é por aí. A programação do Clube este ano tem muita mulher, depois que eu fui perceber... Não sei se pelo fato de eu ser mulher e por isso surgir mais propostas de mulheres, não sei explicar…

Identidade

– Quando se há um espaço para trocar ideias sobre literatura, ela nos traz uma visão de mundo. Se eu leio Cora Coralina, ela não é do Nordeste, então ela traz uma visão de mundo dela; se eu tô discutindo Ana Miranda, que é cearense, mas foi criada em Brasília, ela tem uma visão de mundo também, traz toda essa bagagem cultural. Quando você lê, amplia os horizontes. Quando se tem um espaço para conversar sobre isso, essa ampliação é multiplicada, porque eu leio e troco contigo, então são duas experiências. Se estiver aqui nesta sala dez pessoas lendo o mesmo livro, serão dez experiências diferentes, em cima de uma experiência [a do autor] que já é diferente da de


Tainah Amaral, Áurea Brito e Jeani Duval trocam ideias sobre livros na biblioteca do CCBNB

todo mundo. A visão desse autor é perpassada por todos esses dez, é uma multiplicação, isso gera uma infinidade de possibilidades. Então, ter um espaço onde se possa trazer essas visões, conversar e falar sobre seus gostos literários é muito importante; de repente, é uma pessoa que nem gosta de ler, mas vem e se empolga. Quando trazemos autores que não são tão famosos, mas que têm sua importância literária, às vezes é um autor muito bom mas não é conhecido, o que normalmente acontece; quando o que a pessoa escreve não agrada às elites, quando eu trago esses autores, principalmente os regionais, eu quero fortalecer a identidade, fazer com que as pessoas olhem a si mesmas. Quando trago uma Ana Miranda, embora ela fale de outras questões, tem uma história, tem um traço da cultura cearense dela ali. Por exemplo, no trabalho de Raquel de Queiroz há traços de toda essa cultura, de toda a história dela, então quem é cearense consegue se ver ali de alguma forma, para além dessa discussão, dessa ampliação, existe também a questão da identidade.

algumas pessoas não vem mais pela questão da inibição, mas a função do Clube é tirar isso, ser mais democrático, não importa se eu sou intelectual, se sou um doutor e estou ali conversando sobre tal coisa. Eu posso ser analfabeto e gostar. Normalmente, a pessoa da terceira idade e que não sabe ler, gosta que os filhos ou os netos leiam para elas. Essas pessoas também são leitoras. É importante que elas venham aqui participar. O objetivo do Clube é que a pessoa saia daqui instigada a ler; conhecer um autor e pensar “que pessoa massa”, mostrar a qualidade. Também há o prazer da obra. Se falar só de estética e semântica, isso não faz com que o sujeito desperte para a leitura. Se eu chego e trago todo esse prazer que tive ao ler algum autor e externaliso, muitos vão se interessar. Você escuta aquele autor e tem vontade de lê-lo.

Inclusão

– A gente sempre deixa a programação aqui no entorno para todos ficarem sabendo. Penso que Agosto 2018 | 57


Participação da mulher na política

lutas, conquistas e desafios

A

TEXTO | Lorena Kelly e Léia Araújo

A palavra política vem do grego “polis”, cidade. Para os gregos antigos, político era aquele que cuidava da cidade. De acordo com o dicionário, política é a arte e ciência do bem governar, de cuidar dos negócios públicos, ao contrário de politicagem, que é o que vemos muito no nosso cotidiano, refletindo tão somente a vilania, a mesquinhez e os interesses individuais.

O significado de política que estamos buscando expor aqui é o que está contido na essência da palavra, ou seja, a organização e o exercício do poder, tendo por base a prática do bem comum. Fazer política, portanto, implica em tomar partido – quer dizer, fazer escolhas, optar – e assumir posturas diante dos contextos nos quais estamos inseridas(os). Assim sendo, todas(os) nós, mulheres e

Candidatas por cargo

Presidenta 05*

Vice Governadora 04

Deputada Federal 78

Deputada Estadual 194

*Duas concorrendo à presidência e três a vice

Candidatas por partidos no Ceará PCO MDB

PRP

PC do B

PSH

PTC

SOLIDARIEDADE PTB PRTB

De 10 a 19 canditatas

PSTU

De 1a9 canditatas

PMN PSDB DC PDT

PSC

PT

NOVO

PPS

PPL

PSOL

PRB PSB PSD PSL

PP AVANTE PODE DEM

Acima de20 canditatas

PATRI

PV

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REDE PR

PROS


homens, somos seres políticos por natureza. Como ciência da organização social e da coisa pública, a política é um campo de disputa de poder e de interesses. Ela perpassa e influencia a vida de todas as pessoas e em todos os aspectos: social, econômico, familiar etc. Quando se trata de nosso ser e estar no mundo, houve um tempo, mais remoto, em que as sociedades eram matricêntricas, conhecidas também como sociedades de coleta, onde não havia desigualdades entre homens e mulheres, pois as relações eram solidárias. Todavia, as sociedades que sucederam as de coleta foram as de caça aos grandes animais e luta por conquista de território. Nestas, a força física se fazia mais relevante, dessa forma, a figura masculina passou, processualmente, a ser símbolo de fortaleza e poder, sendo associada à ideia de que tudo pode e em tudo manda. Já a figura feminina herdou a ideia de que é mais capacitada para lidar com sentimentos no âmbito

do privado, passando, também de forma processual, a ser sinônimo de fragilidade e subserviência. Foi nesse contexto que se iniciou um processo de dominação masculina e de supremacia de um gênero sobre outro. Foi nesse período que as sociedades passaram de matricêntricas a patriarcais. (Reflexões feitas a partir da leitura da introdução histórica, de Rose Marie Muraro, contida no livro O martelo das bruxas - Malleus maleficarum -, escrito em 1.484 por inquisidores e utilizado durante 4 séculos como manual oficial da Inquisição para caça às bruxas). É no patriarcado que ocorre a divisão social do trabalho, onde o espaço público é entendido como pertencente somente ao homem, ficando o espaço privado (ou doméstico) destinado à mulher. Em bases patriarcais surge o machismo, um sistema inescrupuloso de relações sociais e um mal advindo do pensamento de que o homem é superior à mulher.

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Desde então, o tempo e a história têm nos reservado duras realidades e lugares amargos: de subalternidade, submissão, perseguição, marginalidade, humilhação, incapacidade, violência e negação de direitos. Mas, como seres políticos que somos, nos aglomeramos e, com muita resistência, estamos traçando nosso caminho e disputando nossos espaços. Estamos na luta há muito tempo: desde o começo do patriarcado nosso gênero foi colocado em segundo plano, não éramos donas de nossos atos e pensamentos; na Idade Média, fomos caçadas e queimadas vivas em fogueiras; entre os séculos 17 e 18 fomos escravizadas, separadas de nossos(as) amantes e filhos(as), dadas e negociadas como objetos de satisfação do desejo sexual de homens; até o século 19 nos foi negado o direito à educação, à participação política e muito mais. Nossa história é longa, de muitas lutas e desafios.

Somente em 1932, depois de muita luta dos movimentos feministas, foi que alcançamos o direito de votar Até o início do século 20, com a predominância da ideia patriarcal de que os espaços públicos, inclusive os de poder político, só cabiam aos homens, o voto, em quase todos os países, era um direito exclusivo deles. No Brasil, os espaços de poder na política foram ocupados, historicamente, por homens brancos, héteros, conservadores e de classe média alta. Somente em 1932, depois de muita luta dos movimentos feministas, foi que alcançamos o direito de votar (um dia desses!). Porém, quando estávamos começando a adentrar o meio político, a conquista do direito ao voto foi interrompida nos anos seguintes pela ditadura militar, ocorrida entre 1964 e 1985. Depois, com as diretas já e o movimento de redemocratização do país, avançamos um pouquinho mais, porque passamos a participar da cena política. Apesar disso, nossa presença ainda é tímida, pois esses espaços nos foram negados pela percepção que se tinha (e ainda hoje persiste) nas cabeças conservadoras de algumas pessoas, de que lugar de mulher não é na política, mas sim em casa, cuidando do marido, dos(das) filhos(as) e afazeres domésticos. Por conta dessa desigualdade de gênero, em

1997 é promulgada a Lei nº 9.504, que estabelece a inscrição de no mínimo 30% de mulheres nas chapas para candidatura às eleições. Vale ressaltar que, esse número fica apenas estabelecido, mas não é obrigatória a presença de mulheres nas disputas. Somente em 2009, por imperativo da Lei nº 12.034, os partidos políticos são obrigados a inscreverem o número mínimo de 30% de mulheres para cargos eletivos.

Rompendo os filtros

Junto ao direito de votar e sermos votadas, herdamos o desafio de sermos vistas e respeitadas no meio político, por causa dos filtros eleitorais existentes, como o gênero, a classe, a raça/etnia, a sexualidade, a geração, a experiência em cargos eletivos, a ideologia política, dentre outros. Quando se é mulher, no caso da cultura brasileira, para vencer uma eleição, independente do cargo, é preciso passar por esses filtros. Como exemplo recente disso, temos Dilma Rousseff (PT), que em 2010, elegeu-se a primeira mulher presidenta do Brasil. Foi um marco histórico, passando pelo filtro da experiência em cargos eletivos, mas contando com o apoio decisivo de seu companheiro de partido, o ex-presidente mais popular do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva. Outro caso foi o de Manuela d’Ávila, que durante os meses que antecedem as eleições presidenciais de 2018 posicionou-se no cenário político como pré-candidata à Presidência da República pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e esteve com baixa popularidade nas pesquisas de intenção de votos, pelo fato de ser mulher, jovem e defender pautas que envolvem os direitos das minorias. Óbvio que nem todas as mulheres passam pelos filtros para serem eleitas. Aquelas que estão nas sombras dos homens, ao invés de romperem os filtros, se infiltram como “laranjas” na política, virando porta-vozes da mesmice e do conservadorismo de sempre. Infelizmente, temos várias “laranjas” no cenário brasileiro, as quais não terão seus nomes citados aqui porque temos um sentimento de sororidade e esperança de que, um dia, se darão conta do papel que desempenham e sairão das sombras, passando a construir seu próprio caminho, alinhado à luta das mulheres. Por outro lado, as que constroem suas carreiras políticas, não como sombras de homens, mas protagonistas de suas próprias ações, são mulheres autênticas, empoderadas e comprometidas com causas sociais, que fundamentam seus pensamentos e constituem a base de suas práticas e atuação na vida pública. Para ilustrar essa realidade, além


Ilustração: Mariana Cagnin

de Dilma Rousseff e Manuela d’Ávila, poderíamos listar várias outras políticas dessa natureza, entretanto, citaremos apenas mais uma dessas mulheres.

Voz que ecoa

Marielle Franco possuía vários marcadores sociais: era mulher, negra, “cria da favela da Maré” – como ela mesma dizia – mãe, homossexual e pobre. Foi eleita vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2016, sua trajetória de vida e militância política traduz-se na defesa constante dos direitos das mulheres, dos(as) negros(as), da comunidade LGBT e dos direitos humanos. Evidentemente, ela teve de passar por todos os filtros eleitorais para conseguir se eleger a quinta candidata mais votada do município, com mais de 46 mil votos.

Voz incessante contra o machismo, a homofobia, o racismo, a misoginia, na luta contra o abuso de autoridade por parte de policiais e crítica ferrenha do modo como a intervenção federal vinha sendo realizada no Rio, a vereadora foi executada a tiros, junto de seu motorista, Anderson Gomes, no dia 14 de março de 2018. Era também uma mulher de ciência – socióloga e mestre em administração pública. Para nós, um exemplo a ser seguido. Sua morte foi uma brutal tentativa de calar o grito de esperança democrática e dos anseios populares que sua voz representava. Todavia, o fato surtiu efeito contrário, ao invés de abafarem sua voz, revelou-se ao Brasil e ao mundo toda uma história de luta e empenho político em busca do direito à vida e de justiça social, inspirando, inclusive, várias outras mulheres com os mesmos marcadores sociais a se engajarem politicamente para darem, de certa forma, continuidade ao seu legado de lutas por uma sociedade mais justa, menos violenta e com mais oportunidades para todas as pessoas. Para nós, o ideal seria já termos rompido com esses estereótipos e estigmas, mas compreendemos que os desafios são cotidianos e que a história que estamos traçando se faz simultaneamente à organização da luta por direitos e cidadania. Pensamos, ainda, que dessa forma, elegendo agora uma vice ou mesmo uma presidenta, uma deputada federal, outra estadual, uma senadora e assim por diante, estamos, pouco a pouco, ocupando e fazendo valer espaços que nos são tão caros, onde as decisões e os rumos tomados influenciam a vida de todas as pessoas. Avaliamos, também, que a despeito da pouca expressividade alcançada, geralmente, em eleições partidárias, nós mulheres temos feito muita política e atuado, ao longo do tempo, nos mais variados movimentos e espaços de organização e luta por uma sociedade mais justa, solidária e igualitária. É com foco nessa realidade que devemos empreender nossos anseios, sonhos, energias, lutas e engajamento na política, começando pela escolha das nossas candidatas e candidatos.

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Ilustração: Rebeca Henrique


Bárbara do Crato

A PRIMEIRA REPUBLICANA São muitas lendas, muitas histórias ou estórias. Quem foi mesmo Bárbara de Alencar, heroína do Crato que dá nome a nossa revista, uma mulher à frente do seu tempo? Sem dúvidas foi uma das maiores figuras feministas do Brasil. Ela, junto aos filhos, familiares e amigos, construiu clandestinamente a base do ideário republicano. Uma mulher e muitas lutas. Nasceu em Pernambuco, mas viveu na cidade do Crato. Casada com o fazendeiro José Gonçalves dos Santos, foi mãe de Tristão Pereira Gonçalves de Alencar e os padres José Carlos dos Santos e José Martiniano de Alencar (pai do escritor José de Alencar). Do Crato, envolveu-se na conspiração republicana deflagrada no Nordeste em março de 1817. Mas dona Bárbara do Crato e seus amigos foram traídos pelo capitão-mor José Pereira Filgueiras, seu compadre. Ele a prendeu na cadeia da Vila de Fortaleza. Da cadeia, ouvia-se os gritos desesperados de dona Bárbara. Até hoje em Fortaleza o cubículo é visitado pela população. Tem a triste inscrição: “aqui gemeu Bárbara Pereira de Alencar sob a tirania do Governador Sampaio”.

TEXTO | José Anderson Sandes

Um dos estudiosos de Bárbara de Alencar, o escritor Gylmar Chaves, pesquisa a vida de Bárbara do Crato há quase 20 anos. Segundo ele, Bárbara do Crato era silenciosamente admirada e explicitamente odiada por homens e mulheres. “Pelas mulheres porque não dispunham de coração de fazer ruir padrões e hábitos. Pelos homens, porque poderia servir de exemplo às mulheres”. Para o escritor, autor de 20 livros de literatura, a história de vida de Bárbara é intensa - “uma sertaneja vibrante e inflexível, preenchida pelos traços universais do feminino bravio e inflexível, por sua paixão pela política e a sua gesta heroica”. Para construir a narrativa, Gylmar Chaves percorreu um difícil caminho de pesquisa. Por meio do Edital Mecenas do Ceará, ele aprovou o projeto “Bárbara de Alencar – Histórias para acordar cada acontecimento”, que reúne palestras pelo Nordeste e a publicação do livro biográfico. Gilmar é escritor e poeta. Já publicou 20 livros. Este ano percorreu mais de quinze mil quilômetros, a partir de Fortaleza, indo a lugares de difícil acesso do Estado do Ceará, além das cidades de Olinda-PE, Exu-PE, Sousa-PB, Niterói-RJ e São

Paulo-SP, realizando mais de trezentas palestras sobre Bárbara de Alencar. Leia a seguir trechos da entrevista à Revista Bárbaras.

Nascimento e leitura

– Bárbara de Alencar nasceu em 11 de fevereiro de 1760, na Fazenda Caiçara, próxima a cidade pernambucana de Exu, ainda um nascente núcleo social. Quando casou, aos vinte e dois anos, com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, e foi residir no Crato, a vila mais próspera da região, ela costumava ler clássicos da literatura universal em sua calçada nas noites de lua cheia para um público geralmente constituído de homens, pelas mulheres serem proibidas de ler, escrever e participar de reuniões sociais e políticas, além de outras “não-permissões”. Desse contexto, percebemos que fomos impedidos de ter acesso às inúmeras contribuições que as mulheres deram ao nosso país, muito embora algumas delas tenham conseguido romper com esse rolo opressor imposto à memória e à historiografia. Bárbara de Alencar era silenciosamente admirada, e explicitamenAgosto 2018 | 63


Gylmar Chaves, escritor e pesquisador da vida de Bárbara de Alencar há vinte anos

te odiada por homens e mulheres... Pelas mulheres porque não dispunham da coragem de fazer ruir padrões e hábitos. Pelos homens, porque poderia servir de exemplo às suas mulheres.

Escravos e cidadania

– Dentro de meu tempo de pesquisa, senti que ela imprimiu na convivência com seus escravos traços de cidadania, numa época em que a dominação e os maus tratos eram considerados normais, muito embora na historiografia da qual faz parte, nenhum texto mencione ser ela defensora da abolição do sistema escravocrata. Bárbara de Alencar costumava ser madrinha de seus escravos, como consta em algumas fontes que investiguei. Os escravos Barnabé e Cazumba participavam de conversas e privavam de assuntos de sua confiança. Ela foi talvez a mais consciente personalidade do que viria a ser o conceito de cidadania. Muitas dessas mulheres estão emergindo porque suas histórias de vida, e comprometimento humano, serão sempre necessárias para os tempos atuais.

Iluminismo

– As famílias pertencentes ao patriarcado nordestino costumavam enviar seus filhos para estudarem no Seminário Nossa Senhora da Graça de Olinda, em Pernambuco. A maioria dos professo64 | Bárbaras

Bárbara de Alencar era silenciosamente admirada, e explicitamente odiada por homens e mulheres... Pelas mulheres porque não dispunham da coragem de fazer ruir padrões e hábitos. Pelos homens, porque poderia servir de exemplo às suas mulheres


res eram padres oriundos das universidades europeias, como Coimbra, em Portugal, e Montpellier, na França. Alguns deles testemunharam a ascensão do movimento iluminista, e presenciaram o rei francês Luís XVI ser destronado e decapitado, sua cabeça ser separada do corpo e erguida do cadafalso sob o grito de “Viva a Nação! Viva a República!”. A maioria desses religiosos, ao regressar, vinha com a missão de construir as bases do ideário republicano em nosso país, mesmo se descobertos, e acusados de terem cometido crime de lesa-majestade, e por assim, serem conduzidos à forca. Foi por meio de seus dois filhos, Carlos José e José Martiniano, este último o pai do romancista José de Alencar, enviados em épocas diferentes para se dedicar aos estudos teológicos no Seminário Nossa Senhora da Graça de Olinda, que Bárbara de Alencar manteve os primeiros contatos com os princípios republicanos. Bárbara de Alencar, neta de Índia Kariri pelo lado materno, e português

pelo lado paterno, como alguns memorialistas sugerem, abraçou a missão de também tornar a Colônia um país republicano, e agrupou toda a sua família dentro desse ideal.

Vila Republicana

– No Sítio Pau Seco, de sua propriedade onde hoje está situado o município de Juazeiro do Norte, era recanto costumeiro de reuniões, além de visitar fazendeiros e velhos amigos de sua família, em lugares dos mais distantes, quando anunciava “a Boa Nova”. Entre os visitantes ilustres que recebera em seu sítio, consta um dos mais importantes ideólogos do sistema de governo republicano a ser implantado na Colônia, o frade Carmelita paraibano Manuel da Arruda Câmara, religioso que estudou Filosofia Natural em Coimbra, e posteriormente medicina na Universidade de Montpellier, tornando-se sócio proeminente da Academia Real

Cubículo em que Bárbara de Alencar foi presa é até hoje visitado pela população

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de Ciências de Lisboa. Bárbara de Alencar tomou com afinco seu ideal e, em 03 de maio de 1817, juntamente com seus filhos e amigos proclamaram na missa dominical do Crato a primeira vila republicana da capitania do Ceará, depois de Recife e Olinda, quando em 06 de março desse mesmo ano eclodiu em Pernambuco a Revolução de 1817. Ficar sob o jugo da família real portuguesa já há muito se extrapolava. Os impostos cada vez mais altos, o controle social e político intenso, as melhorias quase sempre dedicadas ao Rio de Janeiro, onde ela havia construído seus palácios. A proclamação do Crato numa vila republicana somente perdurou oito dias. Três dos filhos de Bárbara de Alencar foram presos: Carlos José dos Santos, José Martiniano e Tristão Gonçalves. Ela somente foi presa pouco mais de um mês depois, em 13 de maio, na companhia do padre Miguel Carlos da Silva Saldanha, que há suposições de os dois terem mantido um relacionamento amoroso. O que se deu nos dias seguintes foi a tentativa de se organizar o novo governo liderado por José Martiniano, que em acordo com outros republicanos, apenas destituíram os ocupantes dos poucos cargos da monarquia existentes na vila, como o de vereador do Senado da Câmara, para serem reformulados segundo os princípios republicanos.

Primeira presa política

– Bárbara de Alencar permaneceu presa por mais de três anos no Quartel da 1.ª Linha em Fortaleza, e no Forte de São Tiago das Cinco Pontas em Recife. Em Salvador, possivelmente numa presiganga, como se denominava as embarcações em desuso e utilizadas também como local de encarceramento. Depois que ela e seus filhos, o cunhado, o irmão e tantos outros republicanos cearenses e pernambucanos receberam o Perdão Real, estratégia usada por dom João VI para agradar aos líderes da Revolução do Porto, que reivindicavam seu retorno a Portugal, pois os mesmos defendiam alguns dos princípios republicanos, ela e sua família regressaram ao Crato. Bárbara de Alencar é sim considerada em tempo cronológico a primeira presa política do Brasil e a primeira republicana das Américas. Quando nos deixou, aos 72 anos, em 28 de agosto de 1832, diz a lenda que uma estrela brilhou no céu...

Contra os privilégios

– Ao retornar da prisão em Salvador, Bárbara de Alencar e seus filhos, dos quais é impossível dissociá-la, se envolveram na luta pela independência, que mesmo não sinalizando nenhuma ruptura com o processo de nossa história colonial, pois os 66 | Bárbaras

privilégios aristocráticos se mantinham inalterados, perceberam a oportunidade de continuar afugentando a Família Real e denunciar as inconsequências da monarquia. Alguns de seus impostos tributários eram intoleráveis, como a taxa de iluminação pública paga em todo território brasileiro, que deixava as ruas do Rio de Janeiro iluminadas, enquanto as de outras capitanias ficavam totalmente às escuras. Bárbara de Alencar, ou dona Bárbara do Crato, como assim se tornou conhecida, é um marco de ruptura com o processo colonizatório. Posso dizer que ela me conduziu a desvendar sua ancestralidade em terras brasileiras e portuguesas, conviver com sua família, ouvir sua fala, cavalgar às margens dos rios e sentir a dor que ela, três de seus filhos, um irmão, um dos cunhados, e muitos outros que aderiram à construção do ideário republicano, sofreram em cárceres imperiais do Ceará, de Pernambuco e da Bahia. Minhas palestras, Bárbara de Alencar e a construção do sentimento de cidadania, tem me levado a muitos recantos, desde Escolas Públicas urbanas e rurais a Assentamentos. Este ano já foram aprovadas mais 52 palestras, por meio do X Edital Mecenas do Ceará, e será publicado o livro Bárbara de Alencar – Histórias para acordar cada acontecimento.


A singular família Dona Bárbara não era só poderosa na região, ela atraía, tinha uma força estranha. Bastava uma pergunta que ela se punha a responder e estavam todos ao redor, ouvindo. Dona Bárbara tinha o dom de arrebatar as atenções, quando a sua voz se alteava as outras silenciavam. Era dada a entusiasmo e ímpetos, presa a idéias e muito determinada no dia a dia do trabalho. Como os outros ricos do Cariri ela vivia em casa de telha, o eirado cheio de cavalos, e carros, homens d’armas, fazia derrama de patacões, banquete de comida carregadas, tudo com vinhaça, em noites iluminadas a farol, na mesa de pernas grossas deitava carnes e gorduras, doces, queijos e mil cousas da terra e tudo se comia atribuladamente, servido pelas índias de toalha ao ombro, pelas escravas de pés descalços, era malcriação negro andar de chinelas. Recebia poderosos da capital e da província, até de Recife e da Bahia. Mas tudo sem luxo, tudo rude, as aristocracias guerreiras sempre desdenhavam da riqueza. Dona Bárbara perdeu as fazendas com as duas guerras republicanas, perdeu o irmão, dois filhos e muitos parentes. Mas não perdeu o brio, guardando em si uma melancolia que lhe toldava os olhares. Ao mesmo tempo afável e seca, franca e imprecisa. Dona Barbára era capaz, experimentada, rude e corajosa. Ela possuía muito harmonia nos traços, tinha a boca ampla e os lábios firmes, seu todo era forte, quase masculino, alta, a passada larga e decidida, ao mesmo tempo que movia com muita desenvoltura os braços longos. Se impunha como chefe onde chegasse e falasse. Trecho do livro Semíramis, de Ana Miranda

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Elas indicam

Literatura transformadora TEXTO | Alana Soares

O brasileiro lê, em média, quatro livros por ano. Destes, pelo menos um seria leitura indicada pela escola e aproximadamente três lidos por vontade própria. Se o leitor terminou ou deixou o livro pela metade, a taxa quebra ao meio. A Bíblia ainda é o livro mais lido, e estarrecedores 30% das pessoas nunca compraram um livro. Pelo menos 25% lêem por gosto, 19% para se atualizarem e 10% para crescimento pessoal, entre outros fatores. Os dados são da pesquisa Retratos do Brasil, de 2016, que apontou leves melhorias em relação às taxas de 2012. Desta pesquisa pôde-se concluir ainda que 59% dos brasileiros que lêem são mulheres, a maioria. Os motivos não são claros, mas as apostas seguem para a explosão de vendas em romances à la Fifty Shades of Grey (50 Tons de Cinza). Dados, taxas e gráficos a parte, sabemos bem que um livro pode transformar o humor do leitor, seu dia, sua forma de pensar e até mesmo ajuda a encarar alguns momentos da vida. O bom livro, quando verdadeiramente bom, pode, inclusive, transformar o leitor de maneira genuína sem que para isto seja necessário ser um aficionado em literatura. Pedimos, então, para que leitoras nos enviassem depoimentos destacando quais livros marcaram sua trajetória na esperança de inspirar novas leitoras a terem novas leituras. Desfrute: 68 | Bárbaras


CLÁSSICO DA ESTRADA

On the Road. Jack Kerouac Editora L&PM, 1957, 384 p, R$ 25,90 “Em On the Road, o escritor Jack Kerouac traz um pouco de sua biografia e experiências, nos deixando curiosos para saber o que foi verdade e o que foi criatividade. A obra inaugura a geração beat da literatura nos EUA com suas características especiais. Um ponto que me atrai são as descrições interessantíssimas das paisagens nas viagens do personagem Sal Paradise na rota EUA-México. As histórias são intensas e regadas a uma mistura de loucura e liberdade. Enquanto lia, podia sentir a música, escolhida inconscientemente, e cada parágrafo se adequava... tal qual trilha sonora. O livro traz a temática do testar limites, do ir em busca do que ainda não se conhece, de quebrar tabus e de fugir da zona de conforto. O autor deixa claro que a estrada é um lugar de beleza, cor e poesia, mas também de tristeza e solidão. Chegadas, partidas, encontros, fugas. Quem viaja como aventureiro pode ou não encontrar a felicidade. Eu tinha 17 anos quando o li. Existiria melhor timing? A leitura me fez superar algumas barreiras em relação a “programar para ser feliz, organizar para dar certo”. Entendi que não necessariamente fugir do plano significa perder-se, desordenar-se. Estar preparado e viver o que a vida te oferece é ser livre! Por meio dessa leitura obtive um conceito próprio de liberdade e de uma certa maneira isso me transformou” - Hermínia Rachel Saraiva, jornalista.

PARA CHORAR E LEVANTAR Olhos D’Água. Conceição Evaristo Editora Pallas, 2014, 116 p, R$ 18,80

“Nunca tinha ouvido falar de Conceição Evaristo até começar a escrever o meu primeiro roteiro cuja protagonista é mulher. Espontaneamente, por meio de amigos e de pesquisas, o nome de Conceição me surgiu. Leitura indispensável para enxergar as teias que ligam a força feminina e que nos fazem ir além. Olhos D’Água é um livro que tece, em vários contos que fazem jus ao título da obra, o misticismo e a força presente no cotidiano de mulheres. O nó na garganta é presente, mas o choro se transforma em força e vontade de continuar essa luta” - Janaína Lacerda, cineasta.

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SENSIBILIDADE E APRENDIZADO Pollyanna. Eleanor H. Porter Editora Autêntica, 2016, 180 p, R$ 16,90

“Conheci esse livro através de um ex-companheiro. Ele me falava sobre o Jogo do Contente e sobre como desejava que eu o acompanhasse no desafio de jogar. Fiquei de ler, mas, naquele tempo, não consegui. Alguns anos se passaram, aquele ex-companheiro foi embora e me deixou uma caixa de coisas que não queria ou não poderia levar. O livro estava lá. Constantemente eu pensava no Jogo do Contente - que alicerça a obra e consiste, basicamente, no seguinte: ver o lado bom de todas as coisas, inclusive as mais difíceis; ou, talvez, principalmente, das mais difíceis. Com o tempo a gente aprende o jogo de Pollyanna. Às vezes, na pele. E foi o que me aconteceu. Aprendi sobre as partidas e aquela primeira ida tomou outra forma quando percebi, enfim, que eu tinha sido levada há muito tempo. E ainda que partir de si seja uma dor sem cabimento, há partidas que não mais podem ser revertidas, curadas. Foi quando, enfim, consegui ler Pollyanna. Enquanto lia, esquecia das dores. Quando não as podia esquecer, as acolhia como companheiras. Passamos, então, as dores e eu, a sermos parceiras de vida, de luta, de trabalho – este que passou a ser inteiramente com livros, e eu passei a dedicar boa parte do meu tempo ali a falar sobre Pollyanna e seu jogo para as pessoas. E essas conversas foram virando desabafos, abraços e encontros precisos com completos estranhos ao longo dos meus dias e rotinas do trabalho. Aprendi, de vez, sobre o Jogo do Contente e sobre ler Pollyanna. É uma leitura que não escolhe idade, mas tempo. Acredito que ao menos uma vez na vida todos precisemos ler essa obra para entender sobre a fragilidade de sermos gente, mas, sobretudo, sobre a força que ladeia isso. E como o tempo, a gente aprende que amor é o que fica, não o que sobra. E, invariavelmente, nós é que ficamos. Por nós. E é aí que, ao redor, o amor, em todas as suas dimensões, se instala e se movimenta e nos lembra de sermos cada vez maiores. Afinal, dias piores virão. E, por sorte, dias melhores, também”. – Karol Vieira, bibliotecária.

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HISTÓRIAS REAIS

Irmã Dulce, o Anjo Bom da Bahia. Gaetano Passarelli Editora Record, 2003, 272 p, R$ 24,90 “Sempre escutei falar dessa ativista paciente e mansa que dedicara sua vida aos necessitados por meio de ações sociais que envolviam o recolhimento crianças e doentes da rua e sua posterior tratativa. Tudo que sabia era sobre sua dedicação incansável aos pobres, isso me chamava a atenção. Em 2010, com a leitura da obra de Passarelli minha admiração não apenas aumentou, como o conhecimento mais detalhado de sua vida me abriu os olhos quanto ao meu propósito de vida. Maria Rita, o nome de batismo da Irmã Dulce, vinda de família com posses e abdicou disto para dedicar sua vida à caridade; seu amor não era condicionado ao céu, era encarnado na terra, aos necessitados, ao próximo e que pelas suas palavras se resumia em “amar e servir”. Hoje se fala muito em disrupção, palavra é relativamente nova para mim, mas que seu conceito já era praticado por Dulce na década de 1930, quando arrombava casas abandonadas para abrigar doentes que a procuravam na esperança de ajuda para tratar suas enfermidades. Esta história verídica me sensibilizou profundamente. Olhei para além de mim e busquei transpor o ver e passar a enxergar as pessoas, o seu íntimo, as suas necessidades. A obra fez-me tratar meu eu, diminuindo em mim a presença de substantivos nocivos à alma, inerentes ao ser que não vive a proposta de Cristo constantemente”. – Josefa Costa Bezerra, advogada.

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Prรณ-reitoria de Cultura 72 | Bรกrbaras


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