Bárbaras #2

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BÁRBARAS OUTUBRO DE 2018 | ANO 1

r e d o p Meu

r a g u l meu

#2


Carta às leitoras A segunda edição da Revista Bárbaras surgiu da nossa vontade de contar histórias de mulheres em lugares cotidianos de resistência. Por isso, a capa assinada pela artista visual Andréa Sobreira - traz a estudante Vivian Martins. Em um ensaio fotográfico cheio de sensibilidade, ela fala sobre seu processo diário de se reconhecer como negra e oferecer novas perspectivas de beleza para outras mulheres. Nós, mulheres, sabemos que somos alvos históricos dos questionamentos de uma sociedade patriarcal, que tenta nos fazer acreditar que não temos a mesma capacidade que homens para desempenhar nossas atividades. Com a vontade de romper esse paradigma, nossas repórteres trazem histórias como a de Alice Freitas, que escolheu trabalhar como uber, por ser um emprego informal e flexível. Apesar de não abrir mão de sua liberdade, ela explica suas medidas de segurança diante de assédios e desentendimentos no trânsito. Num fim de tarde de domingo, sentei no famoso Bar de Gracinha, em Crato, para tomar uma cerveja e ouvir as histórias da dona de bar mais famosa - e empoderada - do Cariri. Maria das Graças de Alencar fala das regras para permanecer no meio há 31 anos e não perder as rédeas num espaço majoritariamente masculino. Cartão vermelho pro machismo! Com bandeira e cabeças erguidas, Edilaine Dantas traça sua trajetória dentro dos campos de futebol. Apesar dos anos de atuação, até hoje ela dribla o preconceito para alcançar seu grande objetivo: ser árbitra da Confederação Brasileira de Futebol. Aos 17 anos, o sonho de Célia Rodrigues era ser contadora. Ao enfrentar o conservadorismo contra o posto de locutora, realizou seu sonho e se tornou contadora… de histórias. Hoje, a radialista é símbolo da luta de mulheres e de comunicadores populares no Cariri e no Brasil. Com seus quadros, ela oferece serviços para minorias e expõe - com orgulho - sua opinião sobre assuntos considerados tabus. Como seria o seu mundo ideal? Com segurança e alegria contagiante, o de Mirian é construído a partir do senso de justiça que carrega. Como professora e coordenadora pedagógica, sua prioridade é ser exemplo para seus alunos. Como mãe, ela espera que seus filhos sigam seus exemplos e sejam felizes. Ao andar pelas ruas do Cariri, você com certeza já se deparou com o cartaz em preto e bran-

co: “Mariana. Cartas e tarot”. Mas quem conhece Mariana? A repórter Bibiana Belisário marcou um horário com a cartomante e, com cartas sobre a mesa, desconstruiu estereótipos em torno de sua imagem. Filha de Iansã, ela falou sobre a experiência de trabalhar diariamente com o auxílio de entidades espirituais. Na mídia, a imagem de Maria Bonita foi construída como a de uma feminista. Entretanto, a jornalista Adriana Negreiros explica que ela não era uma justiceira e, inclusive, reproduzia o machismo do bando de Lampião. Ao escrever “Maria Bonita - Sexo, Violência e Mulheres no cangaço”, Negreiros valoriza testemunhos de mulheres para falar sobre aquele tempo e publicar a versão da história que mais se aproxima da realidade. Com crônica e poesia, nossas colaboradoras denunciam violências físicas e simbólicas sofridas por nós. De janeiro a setembro deste ano, 315 mulheres foram assassinadas no Ceará. A repórter Alana Soares destaca Silvany, mãe e professora, vítima de feminicídio pelo ex-companheiro. Tem estreia no segundo número da Bárbaras. A coluna Linhas de Expressão traz um relato sobre vida social e familiar de Ângela Alencar, que relembra momentos difíceis de sua trajetória enquanto mãe e esposa, e emociona ao confessar seus maiores medos. Numa matéria tomada pela afetividade da fotografia, Jayne Machado fala sobre a I Mostra de Mulheres Fotógrafas do Cariri, que ocorreu durante a quarta edição do Foto Síntese, evento do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cariri. Numa época não tão distante, mulheres escritoras eram obrigadas a usar codinomes masculinos para publicar seus textos. Hoje, elas lideram vendas e ocupam lugares na literatura. Nossa segunda edição encerra com uma entrevista ao coletivo Xanas Recitam Xanas, que resgatam e valorizam obras de mulheres em saraus abertos e escrevem sobre o que representa ser mulher.

Laura Brasil Boa leitura!


Expediente Reportagem Alexia de Mesquita Aline Fiuza Bibiana Belisário Jayne Machado Laura Brasil Sarah Gomes

Colaboração Adler Freires Alana Soares Andréia Santos Anny Ester Priscilla Araújo

Projeto gráfico e diagramação Hanna França Menezes

Ilustrações Aline Lima Andréa Sobreira Ellen Brasil Thamyres de Souza Mayanna Torres

Edição 2 Juazeiro do Norte, Outubro 2018 Revista experimental do projeto “Bárbaras” vinculado à Pró-reitoria de Cultura da Universidade Federal do Cariri

Agradecimentos Adriana Negreiros Ângela Alencar Babi Alencar

Professor orientador José Anderson Sandes

Revisão Adler Freires José Anderson Sandes Laura Brasil


Sumário

Mulheres poetas Página 68

Quem conhece Mariana? Página 06

Bandeira e cabeca erguidas

Página 12

Bonita, transgressora e do sertão Página 18


E se essa rua fosse minha? Página 32

Quem conhece Mariana?

Página 06

Bandeira e cabeça erguidas

Página 12

Para todas as mulheres que sobrevivem ao provador

Página 16

Bonita, transgressora e do sertão

Página 18

O mundo de Mirian

Página 26

Em nome de todas

Página 31

E se essa rua fosse minha?

Página 32

Madrinha quer ir pra casa

Página 42

Que história é essa de mulher em rádio?

Página 48

Linhas de Expressão

Página 51

Silvany: a mulher e a estatística

Página 54

Mulher uber: resistência no trânsito

Página 58

Foto Síntese: o toque feminino na fotografia

Página 62

Mulheres poetas: dê asas às Xanas

Página 66


Quem conhece Mariana?

FĂŠ, bĂşzios e tarot


Quem caminha pelo centro de Juazeiro do Norte já deve ter se deparado com cartazes nos postes onde “Mariana Cartas, Búzios e Tarot” sempre se destaca. É curioso pensar e tentar montar na cabeça quem seria essa mulher e se, de fato, “traz seu amor em cinco dias”. Minha mente já cheia de estereótipos, ao ligar para ela, podia imaginar seu rosto, casa, jeito, como me receberia e se iria dizer algo sobre minhas futuras relações.

TEXTO E FOTOS | Bibiana Belisário


Como conhecido, no final de setembro, o centro do Juazeiro fervilha. Se já não bastava o sol do meio-dia, também estávamos rodeadas pelo fim da romaria de Nossa Senhora das Dores. Aqui e ali se via romeiros andando pela rua Santa Luzia, entrando e saindo do Mercado Central como uma despedida. Pensei se algum deles já se sentiu atraído pelos cartazes da irmã Mariana, ou se mesmo já o olharam para estes com olhar de julgamento e desdém, concluí que era minimamente complexo presumir algo sobre seres tão híbridos.

Além das trivialidades

Dei por mim na calçada, ao pé da porta. Então, a mística Mariana vive em um prédio estreito, gradeado e cinza? Não havia nenhuma identificação de que era ali mesmo onde ela me receberia. Toquei a campainha. Uma mulher completamente alheia a todas as possibilidades criadas para aquele momento apareceu, e falei que tinha horá-

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rio marcado, assim, guiou-me até o segundo andar e pediu para que eu sentasse, as cadeiras me lembravam a espera de um consultório tradicional. Era um corredor estreito e na parede que estava à frente tinham várias pegadas, automaticamente coloquei minhas pernas, a fim de alcançar uma destas, e me perguntei se isso tudo era ansiedade com a espera. Quem seriam as pessoas que procuravam o serviço da conhecida dos postes e ao mesmo tempo desconhecida de rosto desse caldeirão místico que é o Cariri? Ao ouvir uma voz familiar conversando com uma criança que insistia em querer assistir desenho, logo me dei conta que ela estava se aproximando. Mulher alta, arriscados 29 anos, com fortes traços mestiços, cabelos longos e mechados, seu semblante cansado acusava previamente que seu dia a dia está para além da vida de cartomante, mas também para a mãe de dois meninos. Machado de Assis no seu livro A Cartomante


descreve o cenário do lugar em que se passa a história como “...velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio”, bom, para contrariar o escritor bastava a porta de entrada para a sala, pois era de cima a baixo no vidro fumê. Caminhando, observei todas as estátuas, imagens, símbolos e elementos, o lugar era familiar, pra mim, pelas entidades presentes, corria de deusas do hinduísmo a Yemanjá, no meio da linha tinha Santa Sara Kali, protetora dos ciganos, Santa Luzia, retratada no catolicismo como cuidadora dos olhos e, para casar com a transversalidade da situação, lá estava o Padre Cícero Romão Batista, também compondo o lugar. Em cima da mesa principal estava o tarot de Marselha arrodeado por fio de contas e, por trás, havia a imagem de cada um dos Orixás.

Quem tem medo de cartomante?

A conversa se desdobra transitando entre olhares atentos. Natural de São Luiz do Maranhão, chegou ao Juazeiro aos 10 anos de idade, junto de seus pais. Mas ainda lá, em sua terra natal, Mariana já aprendia os mistérios da cartomancia tradicional, o baralho. Desde os sete, por tradição passada de vó a mãe, de mãe a filha fortalece a conexão com esta arte, sendo preparada e iniciada na prática. “A cartomancia é uma ciência muito antiga e complexa, que exige muiOutubro 2018 | 9


to tempo de preparação e estudo”, ela relata, com poucas palavras e sem muitos detalhes. Sempre enfatizando como se dá a orientação para os que buscam o seu trabalho, não deixa espaço para meio entendimento, afirma que é preciso sempre estabelecer confiança com quem lhe procura, sendo necessário comprometimento de ambas as partes, por questões éticas principalmente, esclarecendo a todos que as escolhas feitas na vida geram consequências, e que estas são boas pois se fazem necessárias para o crescimento pessoal de cada um. As pessoas que chegam até ela lhe compartilham das situações mais inusitadas, e seu trabalho se dá a partir do que estes precisam, seja cura espiritual, reconciliações amorosas ou dificuldades financeiras. Por ser uma prática que exige bastante dedicação, Mariana fala que sempre trabalhou nesse ramo e que todo o seu sustento é tirado dali. Exercer o papel de mulher cartomante já se é lido como “a charlatã” e nesse meio se concretiza situações absurdas de agressões, em sua maioria verbais. Na mesma medida, também existem os que entendem como algo impronunciável, pois sentem de maneira tão oculta que exalam medo, e este vem das populares pragas rogadas ou feitiços de amarração. Já os que crêem veemente nos rituais, sais, essências, perfumes, pedras e até mesmo no simples incenso, o encontro do futuro traz incertezas, pois quem busca quer ouvir o que já se tem na cabeça, que nas cartas esteja delineado o plano pensado, como uma espécie de chancela. Sobre a família, “compreendem com muito respeito, pois sabem da paixão e crença que tenho pelo que faço”. Umbandista de raiz e filha de Iansã, conta do auxílio que recebe das entidades para a realização dos trabalhos, agradecendo ao universo e a espiritualidade, por lhe instruir de modo a sempre ajudar o próximo como um verdadeiro instrumento do plano terrestre. Quando perguntada sobre alguma situação marcante em sua trajetória, Mariana diz que são muitas histórias que passam por suas mãos, mas as que mais lhe tocam são as que de alguma forma alguém que é coberto pelo ceticismo busca vivenciar uma experiência espiritual, e resolve suas inseguranças, retirando todo “aquele lixo energético que carregava consigo no começo de tudo”.

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Bandeira e cabeça erguidas

Edilaine Dantas nos campos de futebol TEXTO E FOTO | Aline Fiuza

Lugar de mulher é onde ela quiser. Porém, na arbitragem de futebol as mulheres ainda não conquistaram efetivamente seu espaço, e são rodeadas por olhares preconceituosos quando estão em campo. Aos 28 anos, Edilaine Dantas, árbitra assistente federada no Ceará, sonha em mudar esse cenário ainda machista dentro do futebol.



A barbalhense começou a atuar como bandeirinha aos 15 anos, em campeonatos amadores na região do Cariri. A paixão pelo esporte vem desde criança, mas atuar como jogadora nunca foi uma vontade. O interesse pela arbitragem surgiu ao ver outras mulheres dando seus primeiros passos nesse meio. “Eu vi algumas mulheres atuando na área da arbitragem e isso me chamou atenção. Investiguei como fazer o curso para se tornar uma árbitra assistente e fui até o fim”, conta Edilaine. Para se tornar federada e poder atuar profissionalmente nos campeonatos cearenses, é necessário participar do curso de formação de árbitros de futebol, que tem duração de seis meses. Edilaine fez o curso e os testes de aptidão entre 2010 e 2011 em Fortaleza, à 600 km de distância de Barbalha, onde reside. Ela conta que esse foi um período complicado na sua vida, por causa da distância e dos altos gastos de locomoção para a realização do curso. Mas nada disso a impediu de concluí-lo e realizar seu objetivo de tornar-se federada. Apesar da perseverança, ela viu seu sonho ser pausado pela distância. Antes de poder atuar nos jogos profissionais da região do Cariri, a bandeirinha precisava de experiência, atuando em jogos menores como os das categorias de base. Estes jogos só são realizados em Fortaleza, assim, ela precisaria morar na capital ou se locomover, de Barbalha para lá, em todas as partidas. Por falta de apoio e investimento dos empresários do Cariri, essas opções ficaram inviáveis para a jovem. Assim, ela ainda não conseguiu atuar profissionalmente, mas continua assistenciando os jogos amadores sem pensar em desistir do seu maior sonho: tornar-se árbitra assistente da Confederação Brasileira de Futebol. Na região do Cariri, ela é a única mulher vinculada à federação cearense, então sempre trabalhou ao lado de árbitros homens. Edilaine conta que

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Quando eu ia para o sítio, eu ficava jogando bola, fazendo embaixadinha, e minha avó pegava um chicote e corria atrás de mim dizendo que aquilo era coisa de homem. Mas eu dizia que mulher também podia jogar.

é respeitada pelos seus companheiros de trabalho, mas que o mesmo não acontecia quando se tratava da torcida e dos jogadores, que tinham dúvidas e questionavam se ela iria bandeirar bem e acertar os lances, pelo fato de ser uma mulher. Além disso, a assistente conta que dá para escutar o que a torcida fala, mesmo mantendo-se concentrada no jogo, e que xingamentos e comentários como “ei gatinha”, “gostosa” e “ô lá em casa” são comuns dentro do estádio. Ela comenta que, infelizmente, isso faz parte, e que nesses momentos é necessário ignorar e manter o profissionalismo. Quando perguntada sobre sua família, Edilaine diz que sempre recebeu apoio, com exceção da sua avó materna. “Quando eu ia para o sítio, eu ficava jogando bola, fazendo embaixadinha, e minha avó pegava um chicote e corria atrás de mim dizendo que aquilo era coisa de homem. Mas eu dizia que mulher também podia jogar. Minha avó até hoje tem um pouco de preconceito”. Entretanto, isso não abala a barbalhense que acredita que mulheres podem trabalhar com o mesmo desempenho dos homens e, muitas vezes, até melhor: “A mulher é mais prestativa, presta mais atenção em cada detalhe, então eu acho que uma mulher até bandeira jogos melhor do que alguns homens”. Em relação ao fim desse preconceito, Edilaine é otimista. Ela acredita que com um número maior de mulheres na área e com a consolidação delas no profissional, com boas atuações, o respeito pode sim ser estabelecido. Muitas vezes, as próprias mulheres desistem antes mesmo de tentar, pelo paradigma de que o futebol é apenas para homens. “Às vezes eu acho que o preconceito em si parte também da mulher, pelo fato dela ter medo


de se envolver naquela profissão por ser mais masculinizada. Mas essas barreiras devem ser rompidas, porque do mesmo jeito que um homem pode efetuar um belíssimo trabalho, a mulher também pode. Tem que inserir novas mulheres nessa área para provar que a mulher pode fazer um diferencial muito grande no futebol e, junto aos homens, efetuar um belíssimo trabalho dentro do campo”, diz a assistente. Mas dá para entender o pensamento confiante de Edilaine. Nos últimos anos, a federação do Ceará tem oferecido muitas oportunidade às mulheres. O que acontece é a falta de interesse e de iniciativa de muitas delas. Em sua época, apenas quatro mulheres fizeram o curso, destas, ela é a única que ainda permanece no meio. Todas as outras desistiram. Já recentemente, o número da participação feminina no curso cresceu, e hoje a federação cearense conta com onze mulheres atuando no profissional e nas categorias de base. Isso é um grande passo em direção à igualdade de gênero dentro da arbitragem de futebol. Atualmente, a assistente está afastada da arbitragem por não conseguir conciliar os jogos com o seu emprego fixo. Mas ela não pretende desistir do seu sonho e conta que está pensando em retornar aos campos em pouco tempo: “Estou pensando em voltar à federação cearense, já conversei com o pessoal que está à frente e eles falaram que as portas estão abertas para mim. Quando eu for para lá trabalhar nas bases, poderei atuar profissionalmente aqui na minha região. É um grande desejo. Eu penso em voltar em janeiro de 2019. E a partir de agora vou correr atrás de patrocínio e de apoio, porque é necessário. Se eu chegar à CBF, que é meu maior objetivo, e sei que com minha força de vontade e determinação eu consigo, eu vou representar não só Barbalha, mas toda a região do Cariri”.


CRÔNICA

Para todas as mulheres

que sobrevivem ao provador TEXTO | Andréia Santos

Entro na loja, aceito a sacola entregue pelo vendedor simpático e sigo por entre os corredores. Escolho atentamente quais roupas devem ser provadas. Acontece de um tudo: aquela mini saia que acho linda, mas jamais terei coragem de usar, aquela blusinha tendência da estação que não coube em mim, ou ainda, aquela calça jeans de lavagem perfeita, se não tivesse ficado frouxa na cintura e bem apertada nas pernas. Após encher a sacola, hora de ir ao provador. Contagem do número de peças, entrega da ficha, pego tudo e sigo pela fileira de provadores, escolho sempre o último, ao fundo. Prefiro não ser vista. Ao entrar, me certifico de trancar bem a porta. Ai de mim se alguém me ver assim, nua e triste. Encaro o espelho e, de forma apressada, passo a retirar as vestes e começar a provar peça por peça. É um momento particularmente assustador, dali sairei um pouco melhor ou ainda mais arrasada. A verdade é que sessões em provadores me deixam devastada, eu simplesmente não consigo me ver como eu gostaria de ser. Me sinto gorda e inchada, as cicatrizes de estrias, varizes e alergias me fazem chorar. Mas engulo o choro, alguém pode estar ouvindo. Somos bombardeadas por padrões estéticos o tempo todo, o bumbum padrão, a cintura perfeita, a pele impecável, o peso ideal. E logo ao se encarar no espelho, diante de tanta luz fluorescente, a gente percebe que não parecemos em nada com aquilo que se é propagado. A aceitação é uma das lutas mais difíceis na vida de qualquer pessoa que foge à regra. Se você é mulher, então… Isso tende a se radicalizar. É preciso romper com as regras e expandir os espelhos para além dos provadores. A cultura do que se considera belo está nos esmagando pouco a pouco. Ela retira a nossa alegria, sensualidade, perspectivas futuras e até nossas vidas. E a nossa mente adoece, cansada de lutar e nunca conseguir vencer. Pois, para além da nossa auto aceitação é neces16 | Bárbaras

sário que nos aceitem como realmente somos. Mas se cabe a deixa, descobri um antídoto: liga pra aquela sua amiga de faculdade e desabafa com ela, chama aquele seu melhor amigo pra comer o lanche que tu mais gosta, ou fecha o aplicativo da Netflix e aceita o convite da sua tia pra ir tomar cerveja e comer feijoada no domingo. O cuidado paliativo para parar de se odiar é estar com quem nos ama. Quem nos enxerga para além das estrias, gordura localizada, celulites ou qualquer característica física pode - e vai - nos levar além.

Ilustração: Mayanna Torres


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Bonita, transgressora e do sertão

Maria de Déa

TEXTO | Laura Brasil FOTOS | Benjamin Abrahão

Adriana Negreiros é cearense e jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Durante sua carreira, foi repórter de política no Diário do Nordeste, passou pela Revista Veja - onde trabalhou como correspondente em Fortaleza e Salvador -, pela Revista Playboy, e foi editora na Revista Claudia. Em 2013, querendo tentar a vida de autônoma, Adriana decidiu fazer experiências no audiovisual. Junto com um amigo, desenvolveu o projeto “Fale Com Estranhos”, onde entrevistavam anônimos. Em 2015, assinou contrato com a editora Objetiva para escrever a biografia de Maria Bonita. Apesar de muitos estudiosos já o terem feito, a escritora diz que sua versão, publicada no livro “Maria Bonita: sexo, violência e mulheres no cangaço” é a que mais se aproxima do que foi o fenômeno do banditismo rural. Ao lançar seu olhar feminista na história, a biógrafa vai contra o comum, que é considerar universal a versão do cangaço contada por homens. “Jogar luzes sobre a ação das mulheres é denunciar o seu obscurecimento histórico, e fazer isso é fundamental para não repetirmos os erros do passado”, afirma.


Por que você se interessou em escrever sobre Maria Bonita? Sempre tive interesse por histórias de cangaceiros. Minha família é de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e cresci ouvindo minha avó materna, Alcinda Bezerra Lopes, contar sobre a resistência da cidade ao bando de Lampião, em 1927. Quando decidi escrever um livro, achei que seria interessante debruçar-me sobre um tema que sempre me fascinou, e com o qual eu tinha um envolvimento pessoal forte. A escolha de Maria Bonita foi porque eu quis contar a história do cangaço como uma autora que acabara de se reconhecer feminista, e estava incomodada com o silenciamento imposto às mulheres. Escolhi Maria não apenas por sua fama, como também pelo seu pioneirismo: ela foi a primeira cangaceira da história. Como você descreve Maria Bonita? Pode-se classificar Maria Gomes de Oliveira – ou Maria de Déa, como era conhecida em vida – como uma inconformada. Insatisfeita no casamento com o mulherengo Zé de Neném, com quem, ao que tudo indica, não tinha química na cama, Maria não assumiu uma posição estóica de aceitar o sofrimento como algo inevitável. Ao contrário, foi à luta. Largou o marido e resolveu acompanhar o bando de Lampião, homem que admirava a impetuosidade, o espírito de liderança e a valentia. Desse modo, podemos também dizer que era uma guerreira. Uma guerreira bem-humorada. Maria era uma moça ispilicute, espevitada, uma fuleira, como gostamos de dizer no Ceará. Divertia-se atribuindo apelidos engraçados aos cachorros do bando, muitas vezes batizados com os nomes de tenentes inimigos. Também fazia troça com as características físicas do marido, como as pernas finas e o olho cego. Do ponto de vista físico, fazia jus à fama que a acompanharia na posteridade. Maria era uma mulher bonita, dona de um par de pernas bem torneadas e olhos cheios de vivacidade. Você seguiu as pegadas de Lampião e Maria Bonita pelo sertão nordestino. O que mais lhe impressionou como jornalista e mulher? O que mais me impressionou, ao longo do processo, foi o fato de as narrativas das mulheres serem desacreditadas, especialmente nos lugares que foram cenário do cangaço. Fiquei muito chocada diante de pessoas que diziam que Dadá e Sila, por exemplo, eram mentirosas por contar sobre a violência que sofreram no bando. “Queriam aparecer”, ouvi de pesquisadores, o que me fez lembrar as situações em que mulheres vão à delegacia contar sobre a violência da qual foram vítimas e são taxadas de “dramáticas” ou “exageradas”. 20 | Bárbaras

Numa das suas entrevistas, você diz que tenta analisar a história de mulheres do cangaço a partir de um olhar feminista. Por que e como isso foi feito? Contar a história do cangaço a partir da perspectiva das mulheres foi uma decisão política. Aprendi com a filósofa britânica Carole Pateman, autora do livro “O Contrato Sexual” (editora Paz e Terra), que a separação entre o público e o privado é uma questão central da teoria feminista. Se os marxistas afirmaram que o econômico é político, nós, feministas, damos um passo além e defendemos que o pessoal é político. Durante muito tempo, argumentou-se que a esfera do lar não era política. A filósofa Hannah Arendt, inclusive, foi uma defensora dessa ideia. O político, de acordo com essa concepção, é o espaço público, majoritariamente dominado pelos homens. Esse é o espaço da visibilidade, do espetáculo, do sucesso. O espaço privado, visto como essa esfera não-política, sempre foi tido como o lugar por excelência da mulher, a “rainha do lar”. E esse espaço é invisível. É o espaço da privacidade, onde o que acontece ali, por não ser assumido como político, não interessa a ninguém. Essa invisibilidade protege os homens, que podem fazer naquele espaço privado o que bem entenderem, e oprime as mulheres, que permanecem silenciadas. É o tal do “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. É um “respeito à privacidade” que privilegia o homem e expõe a mulher a perigos constantes. Durante minhas pesquisas para a produção do livro, percebi essa mesma lógica operando dentro do cangaço. Os homens, personagens do espetáculo público, sempre foram as grandes estrelas dessa história. Jogar luzes sobre a ação das mulheres é denunciar o seu obscurecimento histórico, e fazer isso é fundamental para não repetirmos os erros do passado. Quais as diferenças encontradas entre a Maria Bonita retratada mídia tradicional e a que você retratou no livro? Maria não era, como defende uma imagem construída das cangaceiras, uma justiceira, uma valentona, matadora voraz. As cangaceiras nem sequer atiravam. Portavam pequenas armas, mas não as manuseavam. Não participavam dos combates. A vida das mulheres no cangaço dizia respeito à esfera privada, dos cuidados com o lar, ainda que o lar fosse ao ar livre do sertão. A esfera pública, o combate e as negociações com a polícia, as relações políticas com coronéis e poderosos, era dominada pelos homens. Portanto, é um erro retratar Maria como uma combatente, uma espécie de Joana D’arc da caatinga. Maria Bonita não era feminista. Entre-


Foto: Marcos Vilas Boas

Se considerarmos o lugar e a época em que Maria viveu, podemos dizer que ela foi uma mulher de comportamento transgressor. Largou o marido e fugiu com outro homem, algo bastante ousado – e, ao que tudo indica, tinha um amante enquanto era casada com Zé de Neném. Ou seja, Maria era uma mulher de vontade própria, que obedecia aos seus desejos e não se importava com o falatório da vizinhança

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tanto, você diz que ela era uma mulher empoderada. Como você analisa essa espécie de linha tênue entre empoderamento de mulheres e o feminismo? Não é a mesma coisa? Se considerarmos o lugar e a época em que Maria viveu, podemos dizer que ela foi uma mulher de comportamento transgressor. Largou o marido e fugiu com outro homem, algo bastante ousado – e, ao que tudo indica, tinha um amante enquanto era casada com Zé de Neném. Ou seja, Maria era uma mulher de vontade própria, que obedecia aos seus desejos e não se importava com o falatório da vizinhança. Desse modo, podemos classificá-la ao modo do que chamamos, nos tempos atuais, de uma moça empoderada. Porém, não era uma feminista, pois não tinha consciência de gênero. No bando de cangaceiros, compactuava com um código de conduta extremamente machista, que previa punições

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para as mulheres por comportamentos aceitos para os homens. Adultério feminino podia resultar em morte. Por outro lado, os cabras de Lampião, mesmo casados, eram liberados para se envolver com quantas mulheres quisessem. Maria não se opunha a esse tipo de regra. Não havia, entre as cangaceiras, o que hoje chamamos de sororidade, o apoio entre mulheres. Apesar desse “código de conduta machista” do cangaço, algumas mulheres do bando recebiam proteção de seus parceiros? As que fugiam para se juntarem a eles? Desde que elas “andassem na linha”, ou seja, obedecessem cegamente aos homens, enfrentavam perigo menor de serem mortas. Mas isso não era nenhuma garantia. Cristina, mulher de Português, foi executada por uma simples suspeita de que tivesse um relacionamento com Gitirana. O fato de algumas terem entrado no bando por vontade própria também não lhes dava nenhuma proteção


A meu ver, as investigações históricas, sociológicas, antropológicas, filosóficas ou jornalísticas não podem negligenciar as discussões sobre gênero e família. E não é porque uma mulher não foi feminista que não mereça ser algo de uma investigação. Aliás, é até cruel exigir de Maria que, em pleno sertão nordestino dos anos 30, ela fosse uma ativista pelo direito das mulheres

especial. Adília acompanhou os cangaceiros porque estava apaixonada por Canário, mas isso não impediu que, zangado, ele tentasse estrangulá-la. De que forma as mulheres contribuíram para a construção do cangaço? Por que você acha que as narrativas delas são deixadas de lado? As mulheres foram fundamentais, por exemplo, na estética do cangaço, especialmente na elaboração de roupas e acessórios que se tornariam uma marca poderosa décadas depois. Quanto às narrativas serem deixadas de lado, trata-se do que disse anteriormente, a história costuma ser contada sob o ponto de vista dos homens porque se convencionou que o ser universal é masculino. Quais os principais personagens que você entrevistou para aclarar a história de Maria Bonita? Os personagens que viveram o cangaço estão todos mortos, com exceção da ex-cangaceira Dulce, que tinha 14 anos em 1938. Portanto, não entrevistei pessoas que conviveram com Maria Bonita, embora tenha tido acesso a diversos depoimentos que esses personagens deixaram para a posteridade. Mas posso dizer que o meu grande farol para aclarar a história do cangaço foram os estudos do historiador Frederico Pernambucano de Mello, autor dos melhores livros já publicados sobre o tema. Qual a importância do fotógrafo e repórter Benjamin Abrahão para a sua pesquisa? São de Benjamin Abrahão as únicas imagens existentes de Maria Bonita como cangaceira. Há uma única foto dela anterior ao cangaço, de péssima qualidade. Sem o trabalho de Benjamin, eu não teria nem como responder à pergunta que sempre me fazem: “Maria Bonita era bonita mesmo?”. Todos os pesquisadores do cangaço devem muito de seu trabalho à coragem extraordinária de Benjamin Abrahão que, a meu ver, é o autor de um dos maiores furos de reportagem de todos os tempos. Você foi até Sergipe, Alagoas, passou por Angicos, onde mataram Lampião e Maria Bonita. Até hoje há histórias desencontradas sobre o massacre. Qual é a versão que chega mais próxima da verdade? A que está publicada em meu livro. O seu livro teve uma cobertura maciça da imprensa brasileira. Quer dizer, o cangaço, Lampião e Maria Bonita nunca vão sair de cartaz? Acredito que o fenômeno do banditismo rural sempre despertará grande interesse de leitores e demais curiosos pela nossa história. Temos fascíOutubro 2018 | 23


nio por aqueles que estão à margem da lei e, além disso, os cangaceiros têm um aspecto que os torna únicos: eram criminosos exuberantes. Em vez de se camuflarem, como é próprio dos que estão na criminalidade, exibiam-se. Como bem descreveu o escritor Graciliano Ramos, eram “bem montados, espalhafatosos, pimpões”. Misticismo, banditismo, cangaceirismo... Essa imagem ainda é a mais forte quando se fala no Nordeste. São muitos clichês que ainda hoje estão no discurso da mídia, do cinema, do teatro. Você pensou neste estigma ao escrever o livro? Sim. Fiz um grande esforço no sentido de desconstruir alguns mitos – como o de que Maria Bonita era uma líder feminista – e não cair na cilada de transformar essa história em um grande caricatura, como é comum que se faça, notadamente entre os jornalistas da chamada grande imprensa, com assuntos relativos ao sertão. Até que ponto o jornalismo te ajudou a lançar a biografia? Qual foi o seu processo de trabalho? O livro que escrevi é uma grande reportagem. Considero-o um trabalho jornalístico. A diferença é que, em vez de publicar o texto em uma revista, como fiz quase sempre, dessa vez transformei o trabalho em livro. O processo é semelhante a uma reportagem de grande fôlego: muita pesquisa bibliográfica e de campo, acompanhada por longos períodos dedicados à escrita. O Lira Neto, seu marido, é um grande biógrafo. Autor de biografias de Padre Cícero, Getúlio Vargas, Maysa, José de Alencar, entre outros… Ele teve alguma influência na escrita e escolha do tema? Eu e o Lira temos mais ou menos o mesmo tempo de jornalismo. Mas ninguém nunca perguntou a ele sobre minhas influências em seu trabalho. Por outro lado, já tive que responder até mesmo se determinado texto, no qual constava o meu nome, tinha sido escrito por mim ou por ele. Recentemente, em uma entrevista numa rádio, o locutor resolveu mudar o rumo da conversa para o próximo trabalho do Lira. Por sorte, uma moça que também participava do programa fez a seguinte ressalva: “Você aqui falando sobre seu trabalho e vem um homem perguntar sobre seu marido”. A meu ver, isso reflete a velha lógica segundo a qual uma mulher precisa estar sempre atrelada a um homem. Faço, diante de um questionamento desses, uma livre associação de ideias com o Código Civil de 1916, que estabelecia que as mulheres só poderiam trabalhar mediante autorização do pai ou do marido. Mas, respondendo à pergunta, nós nos 24 | Bárbaras


influenciamos mutuamente, na escrita, na escolha dos temas e em muitos outros campos de nossas vidas. Como feminista, qual foi a importância de pesquisar e registrar a história de Maria Bonita, visto que, como você afirma, ela “passou longe de ser feminista”? De forma geral, a história é narrada sob o ponto de vista do homem. No caso do cangaço, isso é ainda mais evidente. A narrativa do cangaço é essencialmente masculina. Os personagens são quase todos homens – Lampião, Corisco, João Bezerra, Zé Rufino. Conta-se sobre as guerras, os combates, a amizade de Lampião com Padre Cícero, as artimanhas dos cangaceiros para despistar os soldados e assim por diante. As mulheres, quando aparecem nessa história, são quase como acessórios. Usualmente, caracterizadas pela aparência, como foi o caso de Maria Bonita. Portanto, registrar a trajetória de Maria, Dadá, Sila e Enedina é uma decisão política. Precisamos, cada vez mais, recontar a nossa história, procurando suprir as lacunas deixadas por uma teoria cujo arcabouço conceitual é patriarcal. Onde estavam as mulheres – e qual papel exerceram – em episódios centrais da nossa história? Por que os personagens são sempre masculinos? Claro que o mundo não era formado apenas por homens. A meu ver, as investigações históricas, sociológicas, antropológicas, filosóficas ou jornalísticas não podem negligenciar as discussões sobre gênero e família. E não é porque uma mulher não foi feminista que não mereça ser algo de uma investigação. Aliás, é até cruel exigir de Maria que, em pleno sertão nordestino dos anos 30, ela fosse uma ativista pelo direito das mulheres. Se fosse fazer um juízo de valor sobre a personagem, que juízo faria de Maria Bonita, levando em conta, lógico, o contexto do cangaço? Eu diria que ela foi uma mulher transgressora e, se vivesse nos dias de hoje, certamente estaria participando de coletivos feministas no sertão. Após o lançamento do livro, você recebeu alguma crítica negativa à sua pesquisa? Não que me tenha chegado aos ouvidos, ou aos olhos. Qual será sua próxima parada... outro livro? Este é o meu desejo.

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O mundo

de Mirian TEXTO E FOTOS | Priscilla Araújo

No transcorrer da história, muitas mulheres marcaram o mundo e fizeram a diferença, mostrando que são fortes apenas com sua simplicidade. Isso é muito do espírito feminino de deusas que aquelas carregam dentro de si, dentro de suas almas. E conhecer pessoas assim, que são verdadeiramente transformadoras e donas de seu destino, é um privilégio, e também um aprendizado. Maria Mirian de Araújo Silva, 32 anos, juazeirense, é um exemplo de verdadeira filha de minerva. Professora e coordenadora pedagógica, ela traz consigo a sabedoria para ensinar, e o senso de justiça para cobrança. Mãe de dois filhos e esposa, ela ainda encontra tempo na vida corrida para participar de ações sociais. Traz em seu discurso uma segurança de vencedora e uma alegria contagiante. Uma sapiência para com a vida digna de grandes filósofos. Mas ao mesmo tempo, traz no fundo de seu olhar, a felicidade de menina. Aqueles que convivem com ela são unânimes em dizer que todos esses adjetivos são poucos para descrever sua grandiosidade. Parece que, como disse uma vez o escritor Ferreira Gullar, ela está na caridade da evolução de seu ser. Quer ser menina, encontra-se mulher, quer ser mulher, encontra-se menina.



Fotos: Arquivo pessoal

Como surgiu a Mirian professora? Surgiu, a verdadeira? (Risos) Aos quinze anos trabalhei a primeira vez numa escola com a educação infantil. E eu via nos meus familiares, minhas irmãs, que eram professoras, a inspiração. “Fazia” caderno com elas, mexia com giz de cera e percebi que tinha habilidade, tinha jeito para isso. Então, já percebi o que queria. Então esse foi sempre seu emprego? Não. Passei alguns meses em uma fábrica de alumínio, e alguns outros em um supermercado, mas não deu certo. Eu queria mais. Quando, realmente, você começou a trabalhar como educadora? Aos 18 anos, voltei a dar aula na escola em que trabalho hoje, mas acabei saindo. Somente aos 22 anos, retornei à escola. Como eu tinha feito um bom trabalho, a minha patroa foi até a casa de meus pais para pedir que eu retornasse, e foi então que, realmente, fiquei sendo professora. Nesse mesmo período, engravidei e casei. Até então, não tinha formação acadêmica alguma e percebi que era necessário que eu me formasse para continuar trabalhando e ser uma boa profissional. E foi daí que surgiu o interesse de fazer faculdade? Sim. Senti a necessidade por conta do meu trabalho e da minha vontade. Eu sempre quis fazer uma faculdade. Lembro que tentei algumas vezes o vestibular, passei na primeira fase de um concurso, mas nesse tempo eu era jovem e não liguei muito por não ter tido um resultado positivo. Porém, quando casei, percebi a importância de ter estudo. E não perdi mais tempo: fui à luta. Nesse período, quem te apoiou mais a continuar com a faculdade? Você teve alguma dificuldade em conciliar suas três vidas: acadêmica, profissional e familiar? Meu esposo é muito compreensivo. Você sabe que, quando a gente trabalha em uma escola, nós nos doamos muito. Então, meu marido sempre foi compreensivo e sempre me ajudou. A minha maior dificuldade era a de deixar meu filho e vir trabalhar, ou ir para a faculdade. Mas, sempre tive quem me ajudasse. Minha mãe fazia a comida para mim e para meu esposo. E quando eu iniciei o curso, meu filho estava com quatro anos. Depois de dois anos de graduação, engravidei novamente. Mas não desisti. Continuei no curso, tive minha filha e fiquei de licença. Durante esse período, minhas colegas iam lá para casa para a gente fazer os trabalhos. Eu já tinha comigo esse espírito de liderança. Como assim? Pronto. Eu dizia para elas como apresentar os trabalhos na faculdade, montava todo o roteiro e 28 | Bárbaras


mandava. E quando eu estava na escola era do mesmo jeito. Hoje, na minha família, sempre que vai haver alguma festa ou algo parecido, sou eu quem organizo as festas, as viagens. Você fala em liderança. E o que é ser líder, então? Líder é aquele que lidera sem gritos, sem açoites... Você pede e ver a coisa acontecer. Diferente do chefe que manda e, na maioria das vezes, o trabalho não sai como era para ser feito. E o líder só pede, e pode fechar os olhos, porque ele já criou a confiança e sabe que ali tudo vai ser feito, porque ele tem a equipe preparada. Ele faz parte da equipe e não se sente superior. E hoje, sendo líder em seu trabalho, quem ou o que te inspira a ser melhor? Meus filhos, primeiramente, e a minha vontade de fazer algo, fazer a diferença em algum lugar do mundo, ser um espelho, no meu caso, para as crianças. E como é a sua relação com as crianças e os professores? Acredito que é amigável. Procuro ganhar a confiança dos meus alunos e dos adolescentes tam-

A gente tem que sempre dizer “vou fazer a diferença, vou viver, vou ser feliz”. Quero que meus filhos vivam semelhante a minha vida, sigam meus bons exemplos e sejam felizes

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bém, sem perder o respeito. Na hora de ser amiga, sou amiga. Mas na hora de dizer: “não passe aqui que não pode agora”; “não faz isso com teu colega que você vai ser punido”, eles sabem que falo sério e me respeitam. Eles me dão tchau, bom dia, me dão abraços... Mas quando falo sério, é pra valer. Você fala em respeito na educação. Você acha que a educação de hoje é diferente da de antigamente? É diferente. Primeiramente, no passado, havia mais o apoio familiar, embora muitos pais não mandassem os filhos para a escola porque os colocavam para trabalhar, mas tinha aquela base, aquela mãe para cuidar. Diferente de hoje em dia, que as mães têm que deixar os filhos com outras pessoas para ir trabalhar. E quando chega, a mãe tem pouco tempo com elas e acabam não ensinando. Então esse lado de educar, ficou um pouco distorcido em nosso século. E ficou distorcido também o papel do educador, então? O papel do educador é preservar, conservar, lapidar aquela educação que veio de casa. Embora, essa não seja nossa realidade nem na escola, nem na rua. Por que nós temos que educar primeiro e depois começar a ensinar propriamente os conteúdos que são necessários ensinar. Mudando um pouco de assunto, percebi que você participa muito da comunidade, com relação à ajuda. Por que você acha que 30 | Bárbaras

o ajudar o outro, no seu ponto de vista é importante e porque faz isso? Sempre eu me ponho no lugar da pessoa e me questiono “se fosse comigo?”, eu não queria que fosse. Eu me sinto útil, me sinto bem e isso me faz feliz. Sinto uma felicidade tão grande quando vejo que alguém está precisando de algo e eu posso ajudar... Realmente eu me realizo. Quando eu sou útil, eu me realizo. Dessas ações que você já fez, qual ou quais foi/foram a(s) que mais te marcou/marcaram? Gisele. Uma amiga minha que estava com câncer e há um mês nos deixou. E devido eu ter acompanhado a doença desde o início, morar vizinho e ela trabalhar comigo aqui na escola. Isso fez eu me aproximar dela e não cuidar como obrigação, mas cuidá-la com o sentimento do amor. Eu passei a amá-la de uma maneira, e nesse meio de amar, vi que tinha que fazer algo por ela, porque o tempo de vida dela era restrito, e mesmo que não fosse, eu teria feito. Mas eu queria fazer e queria que ela partisse sabendo o quanto ela era importante para mim. Para ela dizer, “tive uma irmã e não uma amiga”, que sempre foram essas as palavras dela. Você falou de amor, de diferenças no mundo e seus filhos. Qual é o mundo que você espera que eles vivam? Um mundo parecido com o meu, porque quem faz o mundo é você. Nós fazemos o ambiente em que vivemos. Se você cresce, ou se tem um sentimento de tristeza, o ambiente é pesado, porque o mundo se restringe a sua casa, a seu trabalho, a suas viagens, aos momentos, e você tem que aproveitá-los de maneira alegre e com amor. A gente tem que sempre dizer “vou fazer a diferença, vou viver, vou ser feliz”. Quero que meus filhos vivam semelhante a minha vida, sigam meus bons exemplos e sejam felizes. Que tenham sempre alegria, porque tenho certeza que é Deus que me toca e que me faz assim.


POEMA

Em nome de

todas

De tantos assuntos eu escolhi falar De um assunto polêmico que nossa sociedade costuma afetar Assunto esse que muita gente costuma opinar Mas que poucos correm atrás para a realidade mudar Hoje eu vim falar em nome de todas mulheres que foram assassinadas Que em vida, foram abusadas Que durante um bom tempo foram desrespeitadas E como se não bastasse, suas vidas ainda foram tiradas Matam as mulheres e ainda querem as culpar Como se roupa curta fosse motivo para se estuprar Tem gente que não entende, não quer enxergar Que mulher não é objeto para se usar e descartar Eu falo aqui em nome de todas as mulheres que acordaram cedo para trabalhar E no meio do caminho, um homem começou a anunciar BORA TIRA A ROUPA, E AI DE VOCÊ SE GRITAR Ela sem opção, viu o seu corpo ser abusado e o pior, viu sua vida acabar Ei, preste atenção Não confunda amor com prisão Quem ama não espanca, não te trata com agressão Quem ama não faz parar de bater o teu coração Confundem liberdade com estar sendo vulgar Mulher é dona de si, no seu corpo não só pode como deve mandar Não aceite que alguém queira te rebaixar A dona do corpo é você, e é você que nele deve mandar Toda essa ignorância um dia vai acabar Não baixe a cabeça, não precisa calar Eu já falei aqui uma vez, e volto a falar O mundo só vai ser diferente, quando a gente aprender a amar

Ilustração: Thamyres de Souza

Anny Ester, 17 anos, sonha que todas as pessoas conheçam suas poesias

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E se essa rua

fosse minha?


TEXTO | Adler Sousa FOTOS | Sarah Gomes PRODUÇÃO | Alexia de Mesquista

Encontramos Vivian Martins e sua irmã, Vitória, numa terça-feira à tarde. O ponto do encontro foi na praça Cristo Rei, na cidade do Crato, onde a estudante de Serviço Social morou a sua vida toda. Como em qualquer dia de semana, a praça estava lotada pelo vai-e-vem de pessoas entre os bancos desgastados. Mesmo com a movimentação ao meu redor, não pude deixar de notar que Vivian tinha a mania de arrumar seu cabelo constantemente. Crespo, negro e volumoso, seu cabelo parece lhe ser um traço querido. A medida que conversamos, entretanto, pude notar que nem sempre foi assim.

“Quando eu era pequena eu não me sentia bonita”, conta a jovem, quando perguntamos se a representatividade negra é importante para ela, e como isso foi trabalhado durante sua infância. “Acredito que essa questão de representatividade é muito importante, principalmente quando se trata da mulher negra porque, principalmente durante a infância, é muito complicado. Nós não encontramos pessoas que sejam referências, e isso foi um processo muito complicado para mim. Eu acho que eu comecei a me sentir bonita depois de um tempo, quando eu fui entender outras questões. É um debate que está crescendo muito agora, entretanto, muita coisa precisa mudar”.

Infância

Ao relembrar a infância, Vivian conta as dificuldades e inseguranças enfrentadas, e a importância da família para a aceitação das suas raízes. “Eu tive muita influência na família. Minha prima, minha irmã - depois que ela começou a aceitar o cabelo cacheado. Eu nunca passei por um processo de transição capilar, de alisar o cabelo e depois deixar ele voltar, mas eu passei por um processo de transição para me aceitar enquanto cabelo crespo. Quando você é pequena é muito complicado, eu não conseguia me enxergar como uma pessoa bonita, porque eu via todas as minhas amigas de cabelo liso e de pele clara; eu não via meninos se atraindo por mim. Depois de um tempo foi que eu entendi que isso tocava outras questões, de quem eu sou, da minha ancestralidade, e

que é um processo muito complicado porque são traumas que, mesmo desconstruídos, ainda deixam marcas. Então, a gente carrega inseguranças, medos e incertezas por muito tempo”, relata. Quando perguntada se percebia a falta de representatividade no centro da cidade em que vive, Vivian observa que o problema ultrapassa essa área da região. “Tanto aqui no Crato como na região do Cariri como um todo, a gente passa pelas ruas e vemos que a maioria das pessoas que estão transitando são negras, mas quando nós olhamos para os anúncios de várias empresas, de clínicas odontológicas, são sempre pessoas brancas representadas”. Enquanto fala, Vivian aponta para a traseira de um ônibus que passa na rua, percebemos se tratar da propaganda de uma empresa de planos de saúde da região, com uma família feliz e saudável. E branca. “Tá vendo? a gente acaba não se enxergando nesses espaços. É complicado a gente ir em lojas de roupa também, em clínicas, em vários lugares. Têm momentos em que isso se expande, que a beleza negra é mais exposta, mas tem muito a ver com uma questão carnavalesca, com uma questão exótica. Lojas de cosméticos, de perfumaria, tratam muito dessa questão de anúncios com pessoas negras no verão, porque são cores mais expostas, como amarelo, verde; umas cores mais fortes que se destacam na pele negra. Então, ainda tem muito uma questão de como eles podem conseguir ganhar dinheiro com isso, mas não para representar verdadeiramente”, observa. Outubro 2018 | 33


Representatividade online

Sobre os debates acerca de representatividade surgidos graças ao mundo virtual, Vivian reflete a importância deles para o mundo fora das telas. “Eu acho que a internet abre muito mais possibilidades, porque a mídia ainda é muito manipulada ao ponto de passar só o que eles querem. A internet é uma possibilidade de nós mostrarmos quem somos. O que eu vejo também, principalmente com o Instagram, é a possibilidade de nós percebermos que não estamos sozinhos. A gente acaba encontrando outros espaços e outras pessoas que, por mais que estejam distantes, ainda assim passam pelas mesmas coisas que nós passamos e partilham das mesmas sensações. Além disso, elas passam dicas sobre vários assuntos relacionados ao mundo da beleza e da aceitação, da nossa pele e do nosso cabelo, tais como dicas de moda, de coisas que gente não via antes. Então, antigamente, só se aprendia a cuidar de cabelos crespos ‘alisando’ eles. Agora, existem vários vídeos ensinando a fazer fitagem, além de outros processos que a gente não ouvia falar até pouco tempo atrás”. Vitória, a irmã, acompanha ela na entrevista. Conta que utilizou das técnicas e dicas sobre cabelos aprendidas na internet para criar uma conta no Instagram, o @oxi_arretada, que oferece serviços de penteados afros, tranças box braids, tranças nagô, rasteiras laterais e boxiadora. Vivian ajuda a irmã a realizar os penteados das clientes. Olhando para Vitória durante a entrevista, ela espera que a outra nos conte sobre o trabalho realizado, ao que a irmã responde: “Eu fui atrás do procedimento e vi que era algo que não estava ao meu alcance financeiramente. Então, eu busquei outras alternativas na internet, e eu tenho - ainda bem! - facilidade em trabalhos manuais. Aprendi a técnica e resolvi fazer em mim e lançar para a galera. E, realmente, surgiu uma boa pedida. Além disso, durante esse processo que nós vamos trançar as clientes, a gente tem a oportunidade de conversar muito sobre várias coisas, e explica sobre como essa essa imagem é marginalizada. Têm pessoas que olham logo julgando, como se fosse algo realmente estranho. Mas é muito gratificante para a gente quando terminamos e as meninas se olham e dizem ‘Meu Deus! To muito linda, obrigada!’, e adquirem esse gosto pelos penteados afros e por se identificarem com algo que é delas”.

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Ilustração: Andréa Sobreira



‘Ó, você é bonita. Gosto do seu cabelo’

É sobre essa sensação de reconhecimento no outro que Vivian fala no fim da entrevista. “Quando estou indo para a faculdade, muitas meninas que estudam pela tarde estão indo para casa, então a gente acaba se cruzando. Toda vida que eu vejo uma menininha de cabelo cacheado ou de cabelo crespo eu tento sempre falar, sabe? Tento pelo menos dar um sorriso, e aí gente se olha e se reconhece. É lindo! Quando eu era pequena sentia isso também, de ver pessoas mais velhas que utilizavam aquele tipo de cabelo, que se aceitavam, e isso era muito importante para mim. Então eu tento também passar para essas meninas que são menores esse sentimento de ‘Ó, você é bonita. Gosto do seu cabelo. Você é linda do jeito que você é’. Acho que as mães também estão aprendendo mais desse processo, a partir de algumas coisas que a gente vai vendo na televisão, nas redes sociais. Mas é uma coisa que tem que se construir bem mais, principalmente no outro. A gente passa por esse processo que é doloroso, que é solitário; acho que as outras pessoas também também tem que reconhecer isso na gente. Ver nossa beleza”. Muito após o microfone ser desligado e o centro do Crato ser palco do nosso ensaio, não paro de refletir sobre o assunto. A cantiga de ninar “Se essa rua fosse minha”, vem então à minha mente. Entretanto, dessa vez, não teve pedrinhas de brilhantes na canção que tocava nos meus pensamentos. Não, essa versão tinha cabelo crespo, pele negra e voz ativa por todos os lado da rua. O amor também passa nessa rua. Mas, agora, o sentimento que transita por esse caminho é muito mais profundo, nem sempre fácil de se encontrar e muito mais difícil de se manter. É o amor que você sente por si mesma e por tudo que você representa.

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Madrinha

quer ir pra casa TEXTO E FOTOS | Laura Brasil

Não foi preciso me apresentar mais de uma vez. Quando disse meu nome, Maria das Graças de Alencar abriu um sorriso: “Ah, Laurinha… Eu gosto desse nome. Tenho um filho chamado Lauro, é o meu orgulho”. Lauro e as outras três irmãs, Ana Geórgia, Amanda e Roberta (in memorian), foram criados com o suor do trabalho da mãe no bar. O Bar da Gracinha funciona há 31 anos no bairro Pimenta, em Crato, e sempre foi comandado perante as regras de uma mulher forte e empoderada. “Aqui a dona sou eu, é do jeito que eu quero. É assim ou não funciona”, Gracinha diz, sem medo de perder os clientes, que a chamam carinhosamente de “madrinha”. Apesar da popularidade, Gracinha afirma que “nunca enricou”, já que o lucro do bar era totalmente investido nos estudos dos filhos. Aos 67 anos, aposentada, e com um enorme legado para os filhos e netos, ela se diz cansada e pensa em encerrar as atividades logo, logo…


Como surgiu a ideia de montar um bar? Será que eu me lembro? (risos) Faz 31 anos... Sempre foi nesse ponto. Quando meu negócio começou eu vendia frutas. Quem mais lembra é Ana Geórgia, minha filha. Mas eu vendia frutas e verduras nesse ponto. Aí quando começava o “Desfile das Virgens” (durante o carnaval), o pessoal falava: “Gracinha, bota aqui umas cervejinhas”. O desfile começava e terminava aqui [em frente ao bar]. Aí comecei a botar bebidas, e depois disso não deixei mais. Suspendi minha venda de frutas. E deu tudo certo? Tive uma grande audiência como dona de bar. Naquela época, eu era mais jovem, trabalhava muito. Os filhos todos pequenos e estudando. Eu trabalhava dia e noite pra manter eles. Era um negócio complicado. Fazia muita comida, tira-gos-

to, marmita e merenda. E muita bebida! Ah... e só gostava de vender bebida pra classe mais alta. Sempre gostei de trabalhar com esse pessoal, todos me respeitavam. São poucos que não me chamam de “madrinha”. Minha freguesia toda só me chama assim. Onde eu chego sou bem respeitada. Um freguês me vê e me abraça, me beija. A senhora montou o bar antes de casar? Não. Já era casada. Eu e meu marido trabalhando. Meu marido, caminhoneiro, e eu dona desse bar. Foi sua ideia montar o bar... E o seu marido, achou o que disso? Nada! Sempre quem mandou fui eu. Sempre mandei na casa, nos filhos. Eu sempre tive opinião própria. Tudo que eu fazia, ele dizia: “o que você fizer, eu endosso” (risos).


Sempre quem mandou fui eu. Sempre mandei na casa, nos filhos. Eu sempre tive opinião própria

A senhora continua ativa no comércio mesmo depois de 31 anos? Hoje, não. Diminuí meu ritmo de trabalho. Comercialmente, eu não construí bar grande. Porque meus filhos estudavam em colégio particular e eu não queria dever. Minha preocupação era meus filhos. E compensou. Eu tenho um filho formado em Enfermagem e Medicina, duas formaturas, um rapaz excelente. Hoje, é meu porto seguro. Aí a gente agradece. A senhora teve algum freguês muito conhecido? Todos. [Sineval] Roque, deputado estadual, sempre foi meu freguês. Aquela turma da alta, sabe? Aqueles jovens estribados. Sempre trabalhei com gente de classe alta. Houve alguma situação chata de que se lembra? Essas confusões, essas coisas de bêbados tem muitas. Às vezes chegavam e brigavam, era obrigada a me meter. Tem muita coisa assim. Mas sempre foi um bar muito pacato, aqui é bairro nobre, né? E todo mundo adorava. Todo mundo que chega aqui me abraça e me beija. Outro dia, eu tava tomando banho, e aí passei perfume na minha cabeça, nos meus braços... Aí minha neta disse: “Oxe, vovó, pra onde você vai toda perfumada?”. Eu disse: “Mulher, tu não vê não o tanto de homem que me beija?”. Aí ela disse que ia dizer ao avô (risos). O bar abre todos os dias, até hoje? Todos os dias. Pelejo pra não abrir na segunda, mas aí chega o caminhão da Skol, da Coca-Cola. Aí você abre e passa o dia todo. É de segunda à segunda. Hoje eu não fico até tarde, só fico até meia-noite. Mas essa hora ainda é tarde, né? Pois é, mas meia-noite eu boto o povo pra fora. Só na sexta e sábado. Às vezes na quinta. Antigamente, eu ficava até três ou duas da manhã. E os clientes aceitam bem esse horário? Antes, quando eu chegava em casa depois de fechar, assim que tomava banho pra dormir, batiam na minha porta. Eram os fregueses, pra pegar a chave e vir pra cá. Eles eram bons e direitos, aí eu dava a chave do bar, eles vinham e ficavam bebendo até eu chegar, no outro dia. Uma turma boa, eram empresários... Só turma boa! Vicente do Sabão Juá, Beto da Coca-Cola. Quem sempre batia na minha porta era o Duda, um freguês de ouro. Quando era de manhãzinha, que eu chegava, eles terminavam de prestar contas comigo e passavam ainda o dia todinho. Já me deram muito trabalho... (risos) Aí hoje eu não atendo ninguém de “virota”. Há 31 anos em funcionamento, o Bar da Gracinha ainda abre todos os dias


E como a senhora lida com quem chega aqui assim? Antigamente não me incomodavam, eu precisava muito. Na hora que chegavam, eu atendia bem, botava mesa, tira-gosto... Hoje, devido não ter mais idade, e não tá precisando, quando vai chegando eu digo: “meu povo, são 67 anos, pelo amor de Deus, me respeitem”. A maioria já sabe e diz: “não vamos lá pra velha não, que lá ela vai botar a gente pra correr” (risos). Eu digo: “quantos anos sua mãe tem? E onde ela tá?” (risos). Eu faço isso, mas eles levam na brincadeira. Às vezes, eu que fico com raiva. Boto pra fora, levo as cadeiras pra dentro, chamo os garçons, e no outro dia, cedo, são as primeiras caras que chegam de novo. Não ficam com raiva, nem com rancor de nada (risos).

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Eu ainda to aqui porque... não sei! (...) porque gosto. Mas às vezes fico louca para ir pra casa...


A senhora sempre impôs regras? Sempre. Aqui a dona sou eu, é do jeito que eu quero. É assim ou não funciona. Todo mundo me respeita. Quando faltavam com respeito, eu pegava e botava pra fora. Teve muitas coisas desagradáveis, porque sempre tem, né? Mas sempre tive domínio, de que quem manda sou eu. Os funcionários sempre foram homens? Sempre. Nunca teve mulheres. Tinha, quando eu fazia comida. Sempre apareceram homens pra contratar, e esse negócio de bar não dá certo com mulher... Mas deu certo com a senhora... (risos) Foi, deu certo. Hoje, eu não me interesso mais, já to cansada. E como era quando tinha algum evento na escola dos filhos? Nunca participei. Nunca fui um aniversário.

Nunca fui um casamento. Isso aqui é uma cadeia, filha. O movimento era grande demais, três pessoas não dava de conta. Minhas filhas, quando fazem aniversários dos netos, sempre fazem na segunda-feira, só pra eu ir. Hoje, eu já vou. Antigamente, ninguém contava comigo pra canto nenhum. Fortaleza? Vixe, vai fazer uns 20 e tantos anos que não vou à Fortaleza. Então a senhora nunca teve diversão fora do bar? Nunca. De jeito nenhum. E os filhos ajudavam aqui? O Lauro, quando ele tá aqui e entra um “bebinho” pra tomar cerveja, ele diz: “mãe, fica aí que eu despacho’’. Ele trabalhava a Exposição [ExpoCrato] todinha comigo. Estudava em Manaus e, nas férias, ficava o tempo todo atrás do balcão. Foi o que mais ajudou. Todos me ajudavam, na verdade. A Roberta, que faleceu, era a que eu confiava mais. Eu podia sair e ela cuidava de tudo. Mas eu saía só para compras. A senhora tinha barraquinha na ExpoCrato? Não. O movimento daqui é três vezes maior que no Parque de Exposição. O espaço aqui não cabe de gente. Eu vendo 40 caixas de cerveja [durante a Expocrato] num minuto. Tem turma que vem todo ano. Em alguma ocasião foi obrigada a fechar o bar ? Só quando minha filha morreu, há dez anos, passei uma semana. A única época que fechei. Nunca tinha fechado na vida. Quando meu filho se formou, também. Passei dez dias em Manaus, em festa, você nem se lembra... No meio das amigas, familiares mulheres, alguém já estranhou por você ter um bar? Não! Sempre foi comum. Onde você chegar no Crato, as pessoas sabem quem sou eu e onde fica meu bar. Pensa em fechar o comércio? Muito... to pensando seriamente, e logo. Tô muito cansada. Minha casa é própria, tenho meu carro, tenho meu filho médico que tudo que eu precisar ele me dá. Eu tô velha, tô no tempo. Agora eu não tô mais uma mulher ativa como antes, não... O comércio tá mais fraco. E também já formei meus filhos todos, já casei, sou aposentada, meu velho aposentado. Eu ainda to aqui porque... não sei! Porque gosta... (risos) Isso mesmo, Laurinha, porque gosto. Mas às vezes fico louca pra ir pra casa...

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Ilustração: Aline Lima

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Que história é essa de

mulher em rádio? TEXTO | Sarah Gomes

Célia Rodrigues solta o verbo e fala sobre dar voz e vez ao discurso aberto de gênero no Rádio. Essa história começa entre as décadas de 60 e 70. Nessa época, ela era aluna da Escola Técnica de Comércio de Juazeiro do Norte, e estudava contabilidade. “O meu sonho era ser contadora, olha só!”, me diz, entre sorrisos, uma das personalidades mais marcantes do imaginário coletivo caririense. Radialista, feminista, comunicadora popular e terapeuta holística, o sonho de Célia se realizou, mas não da forma como ela imaginava. No fim das contas, ela se tornou uma contadora... de histórias.

Descoberta pela Rádio Iracema aos 17 anos, a radialista enfrentou o conservadorismo da família, da mídia e da sociedade para se tornar locutora. Na época, o corpo de funcionários da Rádio contava com apenas duas outras mulheres: Dalva Mendonça, secretária, e Toinha Alves, controlista. O que era brincadeira então virou coisa séria. Acompanhada da tia, Célia viajou à Fortaleza para fazer o curso de Radialista promovido pelo Sindicato de Radialistas do Ceará. “Eu voltei me sentindo! Me achando ‘A’ radialista!”, brinca ao relembrar a experiência. Depois de quatro anos na Iracema, Célia casou e mudou-se para São Paulo. Lá, o machismo do ex-marido tentou silenciá-la dentro de casa, sem sucesso. “Ele queria me podar e eu não permitia”, relata. Durante o tempo que morou em terras paulistas, a radialista, que já era mãe, trabalhou na Rádio Cultura de Santos às escondidas, cursou metade do curso de Comunicação, abraçou os movimentos de mulheres e sentiu o sabor de agregar a essência da Comunicação ao discurso de gênero. Quando Célia voltou para o Cariri, nos anos 90, não veio sozinha. Na bagagem, a radialista trouxe um jeito novo de fazer rádio. Nascia, assim, o programa “Mulher Ideal”. Transmitido pela Rádio Progresso, de 1995 a 2006, o objetivo do programa era empoderar as ouvintes, discutir direitos das mulheres, e ensiná-las a dizer “não!” às violências que sofriam. Como descrito por Cé-

lia, o trabalho realizado foi belíssimo e, dele, ela só guarda o melhor. Com o sorriso no rosto de quem sabe que fez a diferença, a radialisa me conta sobre os movimentos de rua, eventos lotados e os relatos de vida de mulheres que encontraram o canto da liberdade na voz da radialista. Mas nem mesmo nesse universo de margaridas, tudo são flores. Depois de onze anos sendo transmitido em horário nobre, o programa foi reduzido a apenas uma hora no ar. Para Célia, foi aí que a perseguição começou. O diretor, que recebia as críticas masculinas à locutora, encerrou o programa e tentou convencê-la a produzir um que tocasse forró. Ela não apenas recusou, como se demitiu. Hoje, 12 anos depois, ainda é possível sentir na sua voz a emoção por lembrar do dia em que se despediu ao vivo de suas ouvintes.

Novos desafios

Desde que chegou à Rádio Vale FM, em 2006, a convite do diretor Jota Rodrigues, Célia encontrou espaço para incorporar a linguagem de gênero em todos os seus horários. Atualmente, a radialista está no ar com os quadros “Sexo Verbal” e “Papo Cabeça”, além de mediar o programa “Ouvir Direito”. Neles, Célia oferece consultoria em aconselhamento, orientação sexual comportamental, e prestação de serviço jurídico às minorias. Com o peito estufado de uma mãe orgulhosa, Célia me fala como se sente contemplada com o Outubro 2018 | 49


trabalho que faz. Para ela, o rádio agora é magia. Quando pergunto sobre o Sexo Verbal, a radialista me confidencia que tudo começou em 2008, enquanto tomava chá com a amiga Ira Maria. “A gente viu que tava passando uma cena de sexo na televisão, aí a gente olhou assim e eu falei: Ira, a gente devia fazer um programa sobre sexualidade!”. E voilá! O miniprojeto do programa, ainda sem título, recebeu várias sugestões, como “Sexo Oral” e “De Noite na Cama”, até chegar ao seu nome final. Por razões pessoais, Ira Maria se afastou do projeto. E a carga de conteúdo e trabalho que a abrangência do tema implicava, transformaram o programa em um quadro de perguntas e respostas dentro do “A Noite é Nossa”, apresentado pelo diretor da Rádio, Jota Rodrigues. Por ser transmitido de segunda a sexta-feira, em horário nobre, e discutir orientação sexual comportamental através de uma linguagem aberta, Célia acreditava que receberia muitas críticas, censura e reações. Entretanto, o quadro logo se tornou um sucesso. Da família, só sua irmã mais velha, hoje com 70 anos, é escandalizada com o quadro e não consegue ouvi-lo. “Tu num tem vergonha não?!”, ela pergunta sempre que entram no assunto. Mas Célia me conta que, na verdade, sente prazer em expor o seu ponto de vista sobre sexualidade, e defende que ele nada tem de feio e imoral e, por isso, não deve ser

escondido. Para ela, quem tem interesse em escondê-lo é o sistema repressivo e machista. É impossível conter o divertimento no olhar de Célia quando ela conta sobre os rapazes que vão até a rádio conhecê-la, e se surpreendem quando não encontram uma mulher jovem, alta e sexy. Diferente do que muita gente pensa, a radialista não é sexóloga. Mas a vontade de dar vez e voz ao universo feminino e feminista na Rádio, levaram a profissional a se especializar em Comunicação de Gênero através da Rede de Mulheres em Comunicação. Dentre os laboratórios que ela já participou, se destaca o “Relações de Gênero e Sexualidade”. Pela repetitividade das perguntas e falta de autoconhecimento do próprio corpo, Célia reserva três minutos do quadro para introduzir um tema que atraia e estimule as ouvintes a se conhecerem. Para ela, “o que move o Sexo Verbal é uma coisa que vem de dentro”. Por fim, Célia se despede de mim dizendo que é “Ele Não!”, e enquanto eu observo aquela radialista que diz ser “meio revolucionária” virar à esquerda para continuar a caminhada, penso que, além de meio revolucionária, Célia Rodrigues é inteiramente Bárbara.

A Rede de Mulheres em Comunicação surgiu em 1994 como a Rede de Mulheres na Rádio, uma articulação de comunicadoras de todo o país. A Rede, que hoje atua em diferentes meios de comunicação, tem por objetivo potencializar o papel educativo dos meios em prol da igualdade de gênero e da democratização da comunicação. Posicionando-se prioritariamente em defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos, a Rede debate, produz e difunde informações e conhecimento nos campos da educação, da cultura, das artes, do social, das ciências, da política e do meio ambiente, através do reconhecimento do valor e do papel da mulher na sociedade brasileira.

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RELATO

Linhas de Expressão Ângela Alencar, 39 anos, trava uma batalha contra problemas renais crônicos, ela perdeu a função dos rins em 2010 e, desde então, faz hemodiálise três vezes na semana. Num delicado relato, ela fala sobre a difícil tarefa de enfrentar a doença e resistir todos os dias por causa, principalmente, dos dois filhos, Bárbara (18) e João Pedro (9).

TEXTO | Ângela Alencar

Minha batalha começou após o nascimento do João Pedro. Minha mãe foi buscá-lo em Fortaleza, e eu fiquei lá, hospitalizada, sozinha. Quando o médico falou que eu teria que fazer hemodiálise, eu achei, a princípio, que não ia aguentar, que eu ia morrer logo, logo. Passei seis meses no hospital… Meu cabelo caiu bastante. Acho que foi o que mais me deixou triste, os cortes nos meus braços e o meu cabelo, que caía sem parar, e ainda hoje cai. Perdi muito cabelo, e sempre fui muito vaidosa. Eu nunca tive muito apoio. Eu vejo que a minha família tem suas obrigações, minhas irmãs têm suas famílias, seus filhos. Então, enfrentei a doença, de 2010 a 2012, sem ninguém. Até então, ninguém tinha ido ao médico saber o que eu tinha. Eu ficava sozinha em Fortaleza, na casa de um, na casa de outro. Tinha dias que eu não comia, porque estava na casa dos outros e a vergonha não deixava... Depois, fui morar numa casa de apoio. A partir daí, eu coloquei na minha cabeça que o dinheiro que eu recebia da minha aposentadoria seria para pagar meu plano de saúde, senão tudo seria pior. Então, eu não tirava um real para comer. Era pro plano de saúde e para passagens, da casa onde eu estava para a clínica onde fazia hemodiálise. Lá, eu conheci uma enfermeira, a Excelsa, que é minha madrinha de casamento. Comecei a desabafar com ela, falei que a família estava distante, no interior, e eu não queria preocupá-los sobre despesas, por eu já ter deixado meus filhos com eles. Mas eu também não tinha o que comer

Ilustração: Ellen Brasil

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Foto: Verônica Aguiar

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em casa. E aí, a Excelsa falou com o médico da clínica, para que eu pudesse almoçar lá, nas segundas, quartas e sextas. Depois, conseguiu que eu fosse participar de um projeto no HGF (Hospital Geral de Fortaleza) que se chama Rim-Art, para produção de artesanatos. Porém, quando chegavam os finais de semana, eu me sentia muito sozinha, era sábado e domingo isolada, eu nem tinha televisão, nada, era horrível. Até que uma amiga, a Carol, resolveu me ajudar e disse para eu me virar fazendo alguma coisa. Ela me emprestou um cartão de crédito e eu comprei roupas para vender, e aí fui conseguindo me manter, me alimentar melhor. Outra pessoa que me ajudou muito foi a Rita. Eu fazia companhia ao marido dela, que também fazia hemodiálise e, por ela trabalhar bastante, ele passava as tardes sozinho. Ela me pagava para ficar com ele, e além disso, eu almoçava e jantava na casa deles. Foi o que me tirou do sufoco muitas vezes. E aí foi quando eu conheci o Alex, já fazia hemodiálise há um ano, e não acreditava mais em homem nenhum. Estava muito decepcionada, e quando ele me


Eu me tornei antissocial. Não saía mais, no começo da doença. Hoje, não. Tenho muita ajuda da Bárbara, que pede que eu saia. Eu digo que estou feia, e ela diz “não, mainha, você é linda”. Eles me ajudam nessa parte, se não fosse minha filha e meu marido, eu não sei o que seria de mim.

estendeu a mão eu não acreditava… Achava que ele queria brincar comigo. E não, ele foi mostrando que estava interessado de verdade. Passamos 3 meses conversando, ele me apresentou a mãe dele, a família… Durante esses três meses foi difícil, eu tinha medo de contar que fazia hemodiálise e ele sair da minha vida, porque eu já tinha sido abandonada por causa da doença, é o que acontece… Mas não, o Alex veio pra ficar e cuidar de mim, e juntos formarmos uma família, um lar. Eu sempre digo que ele me tirou do “lixo” e me deu dignidade, me deu amor… Ele me salvou. Porque eu vivia só, e a partir desse encontro, desde 2011, nós estamos juntos, casamos no civil. Às vezes, fico um pouco constrangida, porque é difícil um homem assumir seus filhos, quando se tem uma doença assim, desse tamanho, e nunca reclamar, fazendo tudo por mim, para que eu esteja bem todo o tempo. Eu me tornei antissocial. Não saía mais, no começo da doença. Hoje, não. Tenho muita ajuda da Bárbara, que pede que eu saia. Eu digo que estou feia, e ela diz “não, mainha, você é linda”. Eles me ajudam nessa parte, se não fosse minha filha e meu marido, eu não sei o que seria de mim. Talvez eu nem estivesse mais aqui... Hoje, quando você me pergunta: “que período foi mais crítico?”, foi o transplante, em 2012. Eu voltava do Rio Grande do Norte, havia ido visitar minha irmã e minha filha, que foi morar com ela. Na volta, fui chamada pro transplante. Chegando no hospital, me disseram: “olha, Â ngela, o teu rim não tá aqui, ele tá no Hospital das Clínicas, você quer ir?”. Eu acabei indo pra lá, e foi a pior decisão da minha vida. Foram os piores dois meses da minha vida! Eu transplantei e, com oito dias, sofri uma trombose na veia ilíaca da perna. Ela não ir-

rigava sangue pro rim, e eu perdi o enxerto. Logo em seguida, tive que fazer outra cirurgia para retirada dele, e mais três cirurgias por conta de uma hemorragia interna, os médicos tiravam até dois litros de sangue de dentro de mim. O dreno saiu do lugar, tiveram que abrir novamente… Foram cinco cirurgias, dois meses e 15 dias de internação. Os médicos já diziam pra minha família que eu não ia sair dali, que a situação estava crítica, tive endocardite, eu estava muito fraca, e o Alex nunca saiu de perto de mim. Foi nesse período que a família realmente descobriu o que eu tinha, que eu não estava brincando, era um problema sério, e aí começaram a ser mais presentes na minha vida. Dentro de mim, eu tinha a certeza que ia operar, mas em nenhum momento passou pela minha cabeça que eu não iria resistir. Eu sempre achava que ia voltar, porque eu tinha Bárbara e João Pedro, e precisava voltar pra eles. Eu precisava criar meus filhos… Todos os dias são muito críticos na minha vida, porque eu saio de casa para a hemodiálise e não sei se volto. Recentemente, eu fui surpreendida, mais uma vez, porque não tenho mais meus acessos (veias). Eu tenho que fazer outro transplante, mas tenho trauma disso, e não posso tentar agora, porque o risco de rejeição é alto. São apenas 2% de chances de dar certo... Isso me deixa apreensiva, não por mim, porque eu acho que se Deus me levar, eu vou ter meu descanso, mas me preocupo demais com meus filhos, eu tenho medo de deixá-los. Hoje, agora, minha cabeça não está legal, você saber que não tem mais acessos e só sobrevive por conta deles, e o único que você tem está na sua jugular, e nem banho posso tomar direito, não pode molhar, não pode entrar debaixo de um chuveiro. Fora o risco de perdê-lo, minhas veias já estão todas “secas”… Saber que não posso fazer um transplante por causa da rejeição, e saber que as pessoas não se importam tanto com o que eu sinto… Mas ainda acho que não posso reclamar muito, porque eu não tinha nada. Não tinha casa, não tinha o que comer, tomava água da torneira, e Deus me deu meu marido, meu lar, meus filhos de volta pra perto de mim. Hoje, tenho oportunidade de estar com eles… E apesar de muitas vezes ser chata e briguenta, e cobrar muito deles, eu estou aqui, viva, tentando viver um dia de cada vez, com fé e esperança de dias melhores...

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Silvany

a mulher e a estatística TEXTO | Alana Soares FOTOS | Agência Miséria

Aos 26 anos, Silvany virou estatística. De janeiro a setembro, 315 mulheres foram assassinadas no Ceará. Silvany está entre elas. Jovem, alegre e trabalhadora, Silvany Inácio de Sousa é lembrada com carinho pelos colegas de trabalho, mas ainda com dor por seus familiares que estão aprendendo a lidar com brutal perda. Dedicação e bom humor são características recorrentes para descrever a cuidadora infantil que sonhava em se torna enfermeira. “Tia Silvany” estava começando a se cuidar mais, a sair mais e a viver mais quando os disparos da arma de Elson Siebra de Deus, 47, interromperam sua vida na noite de 19 de agosto de 2018. O corpo dela caiu no banco da Praça da Sé, em meio as centenas de pessoas que acompanham a festa religiosa para Nossa Senhora da Penha, padroeira do Crato, entre elas o filho de 4 anos, a quem Silvany havia levado para passear.



Havia quatro meses que Silvany estava morando com a irmã Isabelle de Sousa, 22 anos, após decidir por fim ao relacionamento de 6 anos com Elson por seus comportamentos abusivos. As duas trabalhavam e, com ajuda da mãe, pagavam as contas e o aluguel. Silvany queria distância de Elson, que insistia em ligar hora após hora, sob as mais diversas justificativas, para saber onde estava e com quem estava. O filho dos dois morava com a mãe e havia um acordo de pensão alimentícia. “Isso era tudo o que ela queria dele: que pagasse a pensão do filho”, disse Isabelle. Não era segredo entre os familiares de Silvany que o homem a maltratava, frequentemente a batia e impunha limites para onde ela poderia ir ou o que poderia fazer. Ninguém da família dela aprovava o relacionamento, revelou a irmã. “Quando eles começaram a namorar quase enlouqueci, porque sabia que não ia prestar”. Os relatos são de hematomas escondidos e manchas de queimadura na pele dela, que acreditava na mudança do namorado. Até que um dia não acreditou mais. Elson não trabalhava, era sustentado pela família, bebia muito e, supostamente, também era usuário de entorpecentes químicos, compostos que aceleravam seu ritual de transformação e violência. Na noite em que pôs fim a vida de Silvany, mulher que dizia amar, Elson portava três armas de fogo, sendo duas espingardas e um revólver munidos. À Polícia, disse que não aceitava o fim do relacionamento. Silvany virou uma estrela. Foi o que irmã e sua mãe combinaram de dizer ao filho de Silvany. “Quando você olhar para o céu e ver que tem uma estrela que sempre te acompanha, aquela é sua mamãe”, contou Isabelle, que está à espera do primeiro filho. Os dois são apegadas e o garoto demonstra a falta da mãe, querendo saber como ela se transformou em uma estrela. Ela segura as pontas do jeito que pode, já que também sente o vazio que a falta da irmã faz. “Minha mãe não é mais a mesma. Ela é triste. Não sorri mais”, diz Isabelle. “Mesmo que o sorriso seja o que Silvany mais apreciava nas pessoas”. Silvany virou um símbolo. Na noite do dia 20, a Praça da Sé estava lotada de mulheres e homens, jovens e velhos, com terços, velas, cartazes e pedidos em ato simbólico pela memória de Silvany, brutalmente assassinada na noite anterior. No choro e na garganta daquelas pessoas um apelo se transfigurou no ar: basta de violência contra a mulher! As cinco mil pessoas que ali estavam calaram

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a missa do padre e clamaram à Nossa Senhora que interceda pela vida das mulheres. “Me ajude companheira, eu não posso andar só. Eu sozinha ando bem, mas com você ando melhor”, recitaram as meninas e as mulheres. Outras foram assassinadas naquele mesmo fim de semana, os jornais noticiariam no dia seguinte. Tantas outras foram assassinadas no passado e seus nomes são lembrados para a violência tenha fim. “Nem todas estão aqui”, dizia o cartaz. “Faltam as mortas”.

Silvany virou um símbolo. Na noite do dia 20, a Praça da Sé estava lotada de mulheres e homens, jovens e velhos, com terços, velas, cartazes e pedidos em ato simbólico pela memória de Silvany, brutalmente assassinada na noite anterior

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Uber mulher

Resistência no trânsito

TEXTO E FOTOS | Alexia de Mesquita

Alice Maria Freitas Cortez da Silva, 31 anos, é estudante de Ciências Sociais na Universidade Regional do Cariri (URCA), e trabalha como uber quase que diariamente. Negra e praticante do Candomblé, é uma mulher de fortes convicções, que se encaixa na categoria de mulheres que foram criadas apenas por outras mulheres. Não que exista alguma forma de transformar em porcentagem toda a força e resistência que esse título carrega. Alice é, principalmente, alguém que não abre mão de sua liberdade e luta todo dia por seu espaço no mundo. Em uma tarde quente, mas de conversa leve na Praça Padre Cícero, ela consegue mostrar toda a coragem e o ímpeto de seguir em uma profissão dominada por homens.


Nascida em São Bernardo do Campo/SP, mora no Cariri há 20 anos, e viu essa terra como lugar de oportunidades, as quais sua família considerava escassas em São Paulo. Trabalha como uber há um ano. Em junho, saiu de seu emprego formal como assistente financeira por questões burocráticas na empresa, e um amigo a apresentou à Uber. Ela, que não tinha carro próprio na época, decidiu alugar um para fazer o teste. Como a empreitada deu retorno economicamente, resolveu fazer deste seu emprego integral e atualmente trabalha só com isso. O que lhe chama a atenção e causa comodidade é a questão da flexibilidade de horários. Como, atualmente, os empregos informais estão crescendo, ela vê isso como uma oportunidade mais libertadora de trabalhar em seu próprio tempo. Diz que é mais um empreendimento, não algo para ser levado para o resto da vida, mas que, neste momento, está surtindo um efeito positivo e é exatamente o que precisava. Fazendo seu próprio horário e tendo mais flexibilidade, além de conseguir pagar as contas, Alice diz que até respira melhor, e complementa, “Meu dia a dia é do jeito que eu quero, posso sair pra me divertir, malhar ou dormir na hora que eu quiser. Posso relaxar e ser minha própria chefe. Compensa demais”.

Desafios

Em um ano, diz que conheceu apenas outras duas mulheres trabalhando no mesmo ramo. Mas, passageiras, já foram várias, muitas vezes sozinhas e Alice faz questão de comentar sobre o alívio que vê nos rostos de suas clientes quando elas percebem que serão levadas durante todo o trajeto por uma motorista. “A gente se sente mais segura com uma outra mulher, principalmente se for de madrugada. Percebo que as passageiras até se sentem mais livres para sentar no banco da frente, elas dizem que se sentem mais calmas e confiantes quando vêem que é uma mulher que vai levá-las ao destino”, relata. Alice trabalha na madrugada. Ao ser questionada sobre o medo e os perigos de dirigir sozinha à noite, diz que se sente mais confortável ao trabalhar nesse horário e que, independente da hora, ela corre riscos. Isso é algo que, infelizmente, já faz parte de sua vida e de tantas outras mulheres, forçadas a conviver com o perigo diário de ser o que se é. Mas Alice resiste. Sua família também se preocupa. Ela não tem filhos, porém, diz que tem duas mães, que na verdade são sua mãe e sua tia, que a criaram e até hoje moram juntas. Elas costumam ligar para Alice se ela não der notícias, perguntam sobre o movimento da noite e se ela está bem. É a forma que elas dizem 60 | Bárbaras

“cuidado” e demonstram que se importam. A motorista relata que foi através dessa conexão familiar que descobriu o poder da mulher dentro de si. A relação entre as três é de muita proximidade.

Assédio

Quando perguntada sobre o assédio no trabalho, ela chega a rir nervosamente, diz que sempre tem, já que os homens não costumam levar a sério sua posição e profissionalidade na Uber. Alice recebe, constantemente, cantadas e comentários de mau gosto. Conta que passageiros já pediram o número de seu celular, além de terem feito competições para saber quem consegue passar mais cantadas na motorista; e até mesmo foram feitos pedidos para manter relações sexuais com ela. Por isso, ela procura vestir roupas que “não chamem tanto a atenção”, geralmente vestidos longos para evitar aborrecimentos. O seu modo de falar também precisa ser em um tom mais seco e rude, de modo que percebam que ela quer estabelecer limites. Alice, então, expõe para nós a sua certeza de que, se não fosse mulher, esses tipos de precauções jamais seriam necessárias. Se não fosse por seu gênero, certamente seria tratada diferente e com mais respeito em sua profissão.


Ela procura vestir roupas que “não chamem tanto a atenção”, geralmente vestidos longos para evitar aborrecimentos. O seu modo de falar também precisa ser em um tom mais seco e rude, de modo que percebam que ela quer estabelecer limites

No entanto, a insegurança em relação ao assédio e à violência nunca foi tão grave a ponto de fazê-la desistir do trabalho na Uber, mesmo após um episódio em que um outro motorista quis “medir forças” na pista e arrastou seu carro no dela. Alice conta que hoje prefere evitar os bairros de risco, principalmente em determinados horários. Como mulher, o cuidado precisa sempre ser redobrado. Enquanto fazíamos a entrevista, alguns homens que estavam em um dos bares ao lado da praça queriam chamar a atenção de Alice. Agindo como se a conhecessem, vinham atormentá-la, por várias vezes tentaram uma aproximação. Chamavam-na e se ofereciam para cuidar de seu carro. Ela estava incomodada, mas sabia que não adiantaria transparecer isso. Eles não iriam parar. “É uma sensação de insegurança e constrangimento. Os homens acham que têm mais direitos do que a gente”, diz.

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Foto SĂ­ntese O toque feminino na fotografia


TEXTO E FOTOS | Jayne Machado

A fotografia em seu estado cru tem a missão de congelar momentos, de fazer a imagem representar algo que desperte no nosso interior. A fotografia é movimento, sentimento, representação, é algo grandioso e cheio de interpretação. Durante muito tempo, foi mais comum as mulheres estarem na frente das câmeras, posando, e de preferência com corpos esculturais, exalando a beleza padrão. O tempo passou, e o mundo em sua constante evolução alterou os lugares de algumas coisas. Hoje, temos mulheres nos lugares onde elas querem, e a fotografia é um deles. Temos milhares de fotógrafas renomadas que ganharam nome pelo seu olhar sensível e seus talentos para registros. No Cariri cearense não é diferente. No mês de Agosto, dos dias 29 a 31, ocorreu o IV “Foto Síntese”, evento promovido pela Universidade Federal do Cariri, em parceria com o Centro Cultural Banco do Nordeste. Com o tema “Corpo & Imagem”, sua programação ofereceu palestras, oficinas e debates. Nessa edição, a comissão organizadora deu um toque especial, fazendo com que o evento, em sua grande parte, fosse guiado por mulheres, dando visibilidade ao talento feminino, e mais uma vez provando como as mulheres são mais que competentes em tudo que fazem. Ao conversar com Elane Abreu e Emanoella Belém, integrantes da organização do evento, ambas deixaram claro o prazer de ver como ocorreu tudo bem, e como foi gratificante ver mulheres tão empoderadas dando um show em cada momento da programação. Para a fotógrafa Emanoella, um dos pontos altos do evento foi a exposição “Mulheres Fotógrafas do Cariri”, compondo a primeira mostra de fotografia exclusiva de mulheres em uma galeria na região. Ao todo, foram 20 mulheres que expuseram suas fotografias. A professora Elane ressalta que a ideia do “Foto Síntese” é de sempre haver um evento temático onde seja possível ampliar o debate sobre fotografia, tendo ela como um dispositivo que aciona diversas

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Público visita exposição da Primeira Mostra de Mulheres Fotógrafas do Cariri, no CCBNB de Juazeiro do Norte

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interpretações no sentido político, social, artístico, expressivo, documental, como algo que desperte diversas linguagens e interpretações no mundo contemporâneo. Não é à toa que, nessa edição, o enfoque feminino tenha sido tão presente. Ao ver as fotos, os títulos de cada uma, era nítido o olhar sensível de cada mulher que expôs um retrato. Via-se cumplicidade entre fotógrafa e modelo, cautela, atenção, delicadeza, luta, força, em cada um dos registros. É gratificante ver a representatividade de uma forma tão leve, bonita e forte. Não contive a alegria, como amante da fotografia, e aspirante à fotógrafa. Ver minhas colegas ali, com seus trabalhos expostos me gerou um sentimento tão único e que após senti-lo se fez necessário, espero que essa exposição voe para outros lugares, se espalhe e que as pessoas que a visitem sintam coisas tão boas quanto eu senti. Por fim, citando a música “Fotografia” do cantor Leoni: “O que vai ficar na fotografia, são os laços invisíveis que havia, as cores, figuras, motivos...”, que a fotografia continue se ampliando, mas, acima de tudo, registrando o que é para ser registrado, e nos mostrando o que não foi visto a olho nu.

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Mulheres poetas

DĂŞ asas Ă s Xanas


TEXTO E FOTOS | Laura Brasil

De modo geral, mulheres enfrentam diversos obstáculos para ocupar espaços na sociedade. Na literatura não é diferente; desde ter que usar nomes masculinos em suas obras para conseguir publicá-las, ao peso de ter sua escrita criticada com base em preconceitos ao seu gênero. Historicamente, mulheres escritoras resistem. Buscando valorizar e divulgar esses trabalhos - não necessariamente conhecidos -, um grupo de caririenses se juntou e, assim, surgiu o coletivo de poetas Xanas Recitam Xanas, composto por Jeani Duval, Tatiane Evangelista, Sandra Alvino, Karla Alves, Bartira Dias, Ânella Fyama e Tainah Amaral.


Na primeira vez que ouvi falar do Coletivo Xanas Recitam Xanas, a informação veio de um homem, “elas vão se apresentar na RFFSA [Estação Ferroviária do Crato]”, disse. Ele aparentava ter seus 40 e poucos anos, entretanto, algo o incomodava ao ter que pronunciar a palavra “xana”. No vocabulário popular, “xana” é o mesmo que vulva, parte externa do órgão genital feminino. Talvez, seu incômodo viesse de todo um contexto que envolve tabus acerca da sexualidade de mulheres. Essa inquietação e aquele momento perduraram tanto em minha mente que, para amenizar, preferi pensar que ele estaria preocupado por saber que formar um coletivo - feminino e sobre literatura exigia coragem.

Leveza

Numa noite de sexta-feira, fui ver a apresentação do Xanas Recitam Xanas no Centro Cultural Banco do Nordeste (CCBNB), em Juazeiro do Norte, no projeto “Arte Sem Fronteiras”, mediado pelo cantor Geraldo Júnior (Junú). Assisti-las é uma experiência profunda… Eu sempre tive a impressão de que sentimentos são mais bonitos, mais intensos, quando escritos em versos. Isso é poesia, pra mim. O Coletivo transmite isso. Entre uma poesia e uma música - do também participante do evento, o cantor Abidoral Jamacaru -, Junú fazia perguntas as quais eram respondidas de forma simples e verdadeira. Ao falar de relacionamentos abusivos, Ânella Fyama não contém as lágrimas. Os relatos vêm e, com eles, poesias fortes e tocantes. As Xanas causam arrepio por sua escrita tão crua, mas também por falas críticas e incisivas sobre temas que rondam nós, mulheres. “Naturalizamos a violência, principalmente aquela que não é palpável. Aquela que achamos estar na cabeça da mulher... Isso tem uma reação na vida dela, nas suas relações com outras mulheres, de maneiras diferentes, mas muito fortes. Essa lógica também faz nos vermos como inimigas, isso é muito doloroso. É doloroso olhar uma pra outra e não confiar, acho que estarmos aqui é sobretudo dizermos pra nós mesmas: “a gente é muito foda”, porque não deixamos que isso acontecesse, nosso feminino falou mais forte. Óbvio que temos que buscar que isso [violência] não ocorra, mas não cabe só a nós, a gente também se cobra, eu me cobrei por muito tempo… Encontrar as meninas, estar com elas, é extremamente importante, principalmente pra falar ‘a gente ta juntas, então não se mete não’. O veneno do machismo é grande, mas as mulheres têm algo que nos conectam, e isso não foi nem vai ser quebrado”, Tati destaca, sobre o companheirismo feminino ser um dos agentes de enfrentamento ao machismo.

Além delas mesmas se darem força e inspiração na luta diária contra o machismo, presente não só na literatura, Jeani lembra: “Tem uma mulher que, pra mim, é fundamental. A mãe de Tainah [integrante do Xanas], Elenita Amaral. Ela é fundamental pra mim, pra minha escrita. Na verdade, essas mulheres que estão perto de mim são todas fundamentais”, afirma.

Início e processos de escrita

As Xanas são mulheres que se apresentam em coletivo para recitar poemas. O grupo surgiu há quase um ano, quando Jeani pensou “é hoje!”, e decidiu convidar mulheres as quais já havia lido em oportunidades aleatórias, como publicações de redes sociais. “Eu já fazia parte de coletivos de poetas mistos, com homens e mulheres, e há um tempo tava na ‘pegada’ de pesquisar mulheres escritoras, e pensar sobre essa questão. De como o machismo afeta, inclusive, o processo de escrita”, conta. No primeiro sarau organizado por Jeani, nenhuma das convidadas apareceu. Elas contam isso em meio a risadas. “Rolou isso, ninguém apareceu, mas levei outros livros de mulheres. Um de Bartira, que depois veio chegar junto com a gente também”, explica a idealizadora, além de afirmar que desde o início, a regra é clara: qualquer mulher pode - e deve - recitar nos saraus. “É por isso que eu sempre digo que o Coletivo surgiu além dessa perspectiva da escrita”, complementa. Com poesias e mulheres afim de recitar sobre inquietações, angústias, amor, machismo, os saraus do coletivo são sempre abertos. Tatiane frisa a principal ideia dos eventos organizados pelo grupo: “Ser um espaço que outras mulheres se sintam à vontade pra poder falar, e outras pessoas também. Você, não necessariamente, precisa escrever pra participar”, ressalta. Tati escreve, principalmente, sobre seu processo de se reconhecer como mulher negra. Ela tem uma escrita profunda e fala pelos cotovelos. Mas nem sempre foi assim. Vinda de São Paulo, ela lembra que antes de chegar ao Cariri, não tinha o hábito de escrever, de mostrar seu lado artístico. “E aí, quando você chega aqui e vê que tá numa mesa de bar conversando com artistas da região… Só o Cariri proporciona isso. Você pensa: é gente como a gente”, recorda seu despertar. Apesar disso, ela admite não ser boa com prazos estipulados de escrita. “Tenho mais dificuldade, se você me der um tema e um prazo. Eu não sou boa nisso, é mais de dia e espontaneidade”. Elas, então, comentam que o processo de escrita de cada uma é único. “Estamos falando de cinco mulheres, com escritas e processos de mundo


Estamos falando de cinco mulheres, com escritas e processos de mundo diferentes. [...] Cada uma tem uma trajetรณria individual antes do Xanas

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Ânella Fyama, Jeani Duval, Tati Evangelista e Junú durante apresentação no CCBNB, em Juazeiro do Norte

diferentes. Tem duas mulheres negras com um outro processo, sabe? Sandra escreve cordel, a única de nós. Cada uma tem uma trajetória individual antes do Xanas”, explica Jeani.

Cordel

Sandra Alves é historiadora, formada pela Universidade Regional do Cariri (Urca), onde começou a produzir cordéis. Entretanto, o interesse veio ainda na infância. “Um cunhado da minha mãe chamado ‘tio Zé Novo’ era uma figura muito importante, foi uma das minhas primeiras referências pro cordel. Também tem um irmão mais velho da minha mãe, o tio José, que canta e recita folhetos e histórias. Desde criança, eu tenho contato com música, e isso também foi muito fundamental pra embasar minha relação com as palavras. No ensino médio, com as redações, eu comecei a fazer algumas poesias, e a partir daí eu percebi que eu podia escrever, mesmo que fossem bobagens no caderno”, conta. Sobre suas referências para a escrita, ela também cita as caririenses Fanka Santos e Cláudia Rejane, além de Josenir Lacerda, primeira mulher a ocupar uma cadeira da Academia Brasileira de Literatura de Cordel. Quando cursava História na Urca, Sandra usou a temática do cordel em pesquisas acadêmi70 | Bárbaras

cas, seguindo a linha do humor nordestino, muito presente nessa literatura. “A escrever mesmo, eu comecei em 2011. Quando a Fanka me instigou a produzir um folheto sobre espécies de plantas. Eu lancei pelo Sesc Cordel com o nome ‘Bioma Caatinga’. Depois, apresentei o ‘Funaré’, pelo CCBNB. Todos esgotados”, afirma, com orgulho. Além disso, em 2015, ela escreveu “O dia em Padre Cícero recebeu os mandamentos ecológicos da Mãe das Dores” junto de Fanka. O folheto promovia a campanha para reflorestar “o Nordeste, o Brasil e o mundo”, como ela explica, e foi idealizado pelo grupo Aldeia da Luz. Em relação à principal diferença entre cordel e poesias, ela explica que este é um gênero literário que “exige uma estrutura, um público, uma praça, porque tem uma extensão”. E, por exigir essa performance mais elaborada, o cordel é vocacional. Com as Xanas, Sandra recita seus cordéis e, por mais cômicos que sejam, na maioria das vezes, eles também falam de garra, da força que a historiadora e cordelista carrega. “Pra mim, as Xanas são as asas que partem do coração. Somos firmes como nossos espíritos. Somos liberdade pra ser, pra afetar, e se deixar afetar, pelas camadas invisíveis da pele, é pousar e partir com suavidade”, diz, como quem recita um mote apaixonado.


POEMA

Ave Mar Mãe da escuridão do Céu Que estais entre nós na Terra Como divindade sejas reconhecida Seja Eu o Vosso reino Ensina-me a reconhecer minhas virtudes Que Eu aprenda com o Céu Que eu me transforme no Mar Que eu ensine Amor na Terra A água sábia e benta de vaginas e tetas nos dai hoje Me ajude a aprender com os meus próprios erros, E a não pagar pelos de mais ninguém Não me deixei cair em fálicas mãos de p* duro Mas renovai meu brilho agora e depois do Além Ave Mar ia Cheia de graça pela graça Maria santíssima Como puta sempre apontada Enquanto passava Sobrevoando como quem nada Nadando no vento como quem voava Calçada de Lua Vestida de Sol Subiu aos céus Depois de apedrejada... Morte e vida feminina Para sempre repetida Para sempre lembrada... Amemos nos (Karlinha Sutil Alves)

Outubro 2018 | 71


Prรณ-reitoria de Cultura


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