Seguindo o Caminho – em busca da Terra sem Males

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Irmão

Antônio Cecchin (At 9,2)

“...SEGUINDO O CAMINHO” em busca da Terra Sem Males

Livro Póstumo organizado por Matilde Cecchin



Irmão

Antônio Cecchin


© Matilde Cecchin, 2017

Organização Matilde Cecchin Edição e Design Gráfico Clô Barcellos Reproduções Marco Nedeff Editoração Libretos Revisão Press Revisão Fotos São inúmeras as origens das fotos deste trabalho. A maioria pertence ao acervo pessoal de Antônio e Matilde Cecchin. Muitas foram enviadas pelos colaboradores desta obra. Foram creditadas as fotos cuja autoria ou origem foi possível identificar.

I69 Irmão Antônio Cecchin: “Seguindo o caminho” (At. 9,2) em busca da Terra Sem Males / organização de Matilde Cecchin. – Porto Alegre: CMC, 2017. 400p. il. ; Color. ISBN: 978-85-93475-08-5 1. Biografia. 2. Depoimentos. 3. Narrativas. 5. Memórias. I. Cecchin, Matilde. II. Titulo. CDU 929 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Patrícia Saldanha CRB10/1666

Editora Centro Marista de Comunicação Rua Irmão José Otão , nº 11 CEP 90035-060 Bom Fim Porto Alegre/RS – Brasil

Sobre as fotos nas capas Principal Irmão Antônio caminhando em Caiboaté/RS. A cruz marca o local do extermínio de 1500 guaranis, dois dias após o martírio de São Sepé, pelos exércitos de Espanha e Portugal. Foto do acervo de Guilherme Abib. Topo Em 1993, após transferência das famílias dos carrinheiros da Vila Tripa para a Vila Wenceslau Fontoura, houve a procissão de inauguração do galpão de reciclagem e da Capela Nossa Senhora Aparecida, com a presença do Bispo, Dom Antônio Cheuiche. Foto do acervo de Matilde Cecchin. Base Oração do Pai Nosso, de mãos dadas, após enfrentamento com os jagunços, na luta pela posse da terra para morar, atual Vila União dos Operários, em Canoas/RS, em 1981 (de boné, ao centro, Irmão Antônio). Desenho digital sobre foto do acervo de Matilde Cecchin. Primeira aba Fotos: Herdeiros de Sepé Segunda Aba Fotos: Coletivo de Comunicação do Levante da Juventude Contracapa Fotos: Pastoral Juvenil Marista

Matilde Cecchin Rua Coronel Vicente, 444/130 CEP 90030-040 Centro Histórico Porto Alegre/RS – Brasil matildececchin@gmail.com


Irmão

Antônio Cecchin (At 9,2)

“...SEGUINDO O CAMINHO” em busca da Terra Sem Males

Livro Póstumo organizado por Matilde Cecchin

Porto Alegre, 2017


São Paulo

Em tempo

Em relação à grafia do nome Cecchin, em 2002, houve a aquisição da cidadania italiana, o que levou a família a adotar o sobrenome de origem, que é escrito com dois Cs.


Apresentação Há duzentos anos Marcelino Champagnat reunia os dois primeiros discípulos que vieram a se tornar Pequenos Irmãos de Maria, ou Irmãos Maristas. Ao longo desse tempo, gerações de Irmãos entregaram sua vida pela evangelização por meio da educação, com uma inspiração em Maria, a quem chamamos carinhosamente de Boa Mãe. Muitos se destacaram pela integração de mística e profecia. Inspirados pelo Mestre de Nazaré, deram sua vida pela causa do Reino de Deus, atuando em meios populares, junto a pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Na América Latina, especialmente, vários Irmãos foram desenvolvendo trabalhos junto a esses grupos, movidos também pelas conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo, em que a Igreja afirmou e reafirmou a opção pelos empobrecidos e pelos jovens. Dentre esses Irmãos, destaca-se Antônio Cecchin, que, movido pelo amor e compaixão, deu a sua vida. Motivado também por Marcelino e impulsionado por sua sensibilidade pastoral, ao ver a situação das crianças e jovens do seu tempo, ele buscou dar respostas adequadas, agregando pessoas que comungassem de suas intuições. O Irmão Cecchin foi pioneiro em muitas iniciativas, sempre com muita clareza do que fundamentava o seu projeto. Neste sentido, é uma alegria termos mais uma obra com algumas nuances de sua vida. Justa homenagem póstuma. Parabenizamos sua irmã, Matilde Cecchin, pela iniciativa, e aos muitos que contribuíram para que esta obra que temos em mãos fosse desenvolvida. Ir. Deivis Alexandre Fischer Vice-Provincial da Província Marista Brasil Sul-Amazônia


Sumário 9 Prefácio Antônio: irmão de muitos para sempre Frei Luiz Carlos Susin 17 Celebração de Ação de Graças pela vida e testemunho do Irmão Antônio Cecchin Pe. José Oscar Beozzo e Maria Helena Arrochellas 19

Uma vida vivida à luz da Fé Pastoral Juvenil Marista

23

A vida é sonho (Calderon de La Barca) Matilde Cecchin

29

A...Deus! Salete Carollo

33

Um homem movido a fé e a amor de Deus Jacques Távora Alfonsin

37

Um ser humano integral Tarso Genro

40

Santo e Profeta Selvino Heck

45

Tio Ico Alessandra Romana Cecchin Tubino

49

Que orgulho, tio, tenho de ti! Denis Cechin Filipini Teixeira

55

Esse é meu tio... Roque Junior Cechin Filipini

58

Um Profeta do nosso tempo Maria Carpi

61

Família de Luiz e Romana Cecchin

67

Vida religiosa consagrada

73

JEC – Juventude Estudantil Católica Antônio Cecchin

6

82

O povo pobre do Brasil Alberto Henrique Becker e Laura Petit da Silva

87

As “famigeradas” fichas Antônio Cecchin

95

Os livros polêmicos Regina Pereira

98

“S’imbora” Irmã Cristina Zanchet

100

Profeta do Reino de Deus e sua Justiça Irmã Maria Rosilene Parolin

105

Meu dindo Tonico – Uma mesma linha de vida Ivonilda Antoniazzi Grenier

108

Recordações e Ação de Graças! Irmã Paula Schneider

110

Tributo ao Irmão Antônio Cecchin Cézar Busatto

113

Um homem com alma feminina Naia Oliveira

117

Comunidades Eclesiais de Base Antônio Cecchin

124

Caminhada em busca da Terra Prometida Padre Arnildo Fritzen

133

Autoenviado para a missão entre os pobres! Entrevista com Padre Armindo Cattelan

140

Inovador, pensador, profeta Padre Pedrinho A. Guareschi

145

Queríamos mudar o mundo... Domingos Armani


153

Sempre há esperança de contribuir Zilá Regina Kolling

222

Vila Santíssima Trindade Irmã Cristina Zanchet

157

Nossa experiência com o Irmão Cecchin Senésio Kuhn e Oracélia de Oliveira Kuhn

224

Um Irmão Marista diferente Irmão Albino Trevisan

161

Com o Irmão Antônio, Missionária seguidora de Cristo Tania Regina de Souza Carretos

228

Missão Educativa ao Norte da Ilha Grande dos Marinheiros 1991- 1993 Arlete Simon

164

Ocupar, ampliar a vida e conviver na ressurreição! Ivo Fiorotti

171

CEBs - Reconstruindo a Igreja de Jesus a partir dos Pobres Na trilha dos descendentes de Sepé Tiaraju Egídio Fiorotti

178

Assim, fui envolto por um Profeta Nilson Pilatti

185

A árvore que deu bons frutos Maria Helena Meyer

190

Renovação Cristã Maria Helena Meyer

194

“Eu vi, eu ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo” (Ex 3,71) Anne Marie Crosville

197

O Irmão dos pobres do Bairro Mathias Velho em Canoas/RS Odilon Kieling Machado

201

Mulheres entusiasmadas pelas Comunidades do Povo de Deus Otilde Rubin Piccin

204

A estrela de Belém, o lunar de Sepé! Reverendo Pilato Pereira e Luciméia Gall König

207 O movimento dos papeleiros e catadores Antônio Cecchin 213

O catador de esperanças Jacques Saldanha

231 Ilha Grande dos Marinheiros de 1990-1994 Projeto de Alfabetização e Pós-alfabetização Lucia Rosane de Souza Alayo 234

Recordando encontros Enrico e Gabriella Turrini

241

Um profeta-prático do “bem viver”! Dirceu Benincá

247

O homem que ligava e religava Roque Spies

250

Obrigada, meu professor! Marli Medeiros

257

“Viver é lutar” Albert Knechtel

260

Mestre Cecchin, meu guru Helio Corbelini

265

O amigo e Profeta da Ecologia Carlos Augusto de Azambuja Alves

270

Um apóstolo da Misericórdia Pedro Canísio Schroeder

274

Caro Amigo, Irmão Antônio Roque Grazziola

281

Carta de São Sepé Tiaraju Antônio Cecchin

285

Por uma Terra Sem Males – Memória, remorso, compromisso Martín Coplas

288 Irmão dos Pobres e Luzeiro da Esperança Frei Sérgio Antônio Görgen

7


291

Eterno jovem lutador Levante Popular da Juventude

372

295

Uma vida dedicada ao próximo Stella Maris Nunes Pieve

303

Um amigo de lutas José Roberto de Oliveira

374 A voz jesuânica defensora dos “profetas da ecologia” Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães

309

O ensinamento da Gruta do Marco João Marcelo Pereira dos Santos

313

Antônio! Contigo seguimos pelo caminho missioneiro Pascale Cornuel e Heniu Dyduch

314

Irmão de caminhada, de luta e de fé Rabeca Peres da Silva

327

Militante e profeta na luta pela terra sem mal Roberto Antonio Liebgott

335

Um pouco do nosso amigo Irmão Cecchin Antônio Abib

337

Cecchin, nosso irmão maior Ivo Lesbaupin

376

Cheiro de Deus Frei Betto

378

As páscoas do Irmão Antônio e as páscoas do povo Marcelo Barros

382

“Combati o bom combate” – São Paulo em II Timóteo 4,7 Matilde Cecchin

386

Poemas da Água Maria Carpi

387

Origem da Romaria das Águas

389

Um grande parceiro das Ilhas Mariza Corrêa Trapp

9 anos da FAUERS com o Irmão Cecchin Maria Inês Pacheco e Everton Alfonsin

390

Posfácio 1 O sonho continua I José Jair Ribeiro (Zeca)

345

Fé, liberdade, inclusão e respeito às diferentes culturas Beatriz Gonçalves Pereira

392

Posfácio 2 O sonho não acabou Herdeiros de Sepé

349

“Procurava alguma coisa que faltava em mim” Maria Bárbara Pereira

394

Posfácio 3 O sonho continua II Levante da Juventude

355

A força inesquecível das primeiras sementes Maria Helena Arrochelas

395

Bibliografia e referências

359

Um entrelaçar de vidas, sonhos e lutas José Oscar Beozzo

366

Amizade e Compromisso Fr. Luiz Carlos Susin

371

Uma referência Leonardo Boff

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396 Anexo Marcelino Champagnat. Um bicentenário e o desafio de refontizar as raízes e buscar o profetismo inicial. Entrevista Especial com Antônio Cecchin – Revista IUH On Line.


Prefácio

Antônio: irmão de muitos para sempre

Frei Susin com a comunidade da Vila Maria da Conceição, Porto Alegre.

por Frei Luiz Carlos Susin

Irmão Antônio Cecchin, no alto de seus oitenta e nove anos, no amanhecer de um dia de sol, de braços com a irmã morte, subiu mais alto. E hoje contempla lá de cima, de junto de seu Criador, a cena deste mundo que ele per-

Irmão Antônio Cecchin (1927 - 2016)

correu com decisão e energia irradiante por quase um século. Ele vê tanta gente que deixou por aqui em trabalho de luto. Não é um luto desolado, ainda que tenha um lado de tristeza. É um luto de colheita e de nova semeadura, seguindo a sua lição. 9


Frei Susin nas celebrações junto à comunidade.

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Este livro faz parte da colheita e da semeadura. É como entrar com cuidado no jardim de quem partiu para colher os frutos deixados. Quem partiu é agora, nessa terra de passagem, o jardim, a árvore e o fruto. Transmuta-se em herança. Cada um e cada uma que aqui ficou anda por ele com sua cesta, se achega à árvore que lhe é mais conhecida, toma os melhores frutos, enche a cesta, e sai com o mesmo cuidado com que entrou, portando um tesouro vivo. No longo tempo de sua vida, alguns frutos certamente não chegaram a amadurecer, outros poucos foram temporãos, mas isso não importa: colhem-se sempre os melhores frutos, que aqui são muitos. Este livro é uma cesta cheia, com frutos abundantes em cada página. Daqui serão semeadura em todas as latitudes, em Porto Alegre, no Rio Grande, pelo Brasil afora e até além dele. É justo que Irmão Antônio se torne semente que vai ocasionar novos frutos e novos jardins. Essas páginas vão justificar esta metáfora para o leitor que as folhear. Ele apelidou com justiça os catadores e os recicladores como “profetas da ecologia”, mas falava do que tinha no coração e no que ele mesmo se transformou: um profeta ecológico, semente de um mundo que ainda vai florescer. Estas páginas são o testemunho desta certeza. Este livro é também um memorial, no sentido rigorosamente bíblico. Como na celebração de cada Páscoa, Israel lembra o anjo que saltou por cima das casas dos hebreus e abriu com a espada o caminho da libertação pelo mar e pelo deserto. Este livro está repleto de estandartes populares levantados – banners, cartazes, cruzes, dizeres - e no meio deles, acompanhando com aliança inquebrantável, a figura alta com olhar do Ir. Antônio, firme para frente. Ou ainda melhor, este livro é como o memorial deixado pelo mesmo Jesus em sua última Páscoa: corpo e sangue feitos pão e bebida para que, na sua ausência, continuem selando a aliança. Este livro é um dom e uma


herança para continuar reunindo, alimentando, dando graças, saindo depois da leitura com coragem renovada para novas paixões e lutas. Este livro lembra e condensa um caminho e uma vida inteira imolada com coerência e perseverança impressionantes, uma Páscoa estendida. Neste livro se perfilam testemunhas que não só cruzaram, mas percorreram bons trechos de caminhos com Ir. Antônio. Uma vida longa de quase noventa anos, todos vividos com grande densidade de relações e de iniciativas, testemunhando um século de viradas, de crises e oportunidades, de acontecimentos grandes e de cotidiano cheio de sinais de Deus, é uma vida que precisa ser contada aos poucos, como por “atos” de um teatro, só que num drama real de profunda e larga humanidade, povoado de muitos atores, desde os mirins até os que envelheceram junto no caminho. É honesto confessar que os nomes que vão se sucedendo aqui são representantes, mas não são todos os que andaram com Ir. Antônio. Mais livros precisariam ser escritos se todos pudessem ter o privilégio de dar seu testemunho. Conta-se aqui uma vida longa e sem tédio, num drama em muitos atos. Num primeiro ato, a vida de família, nas fotos em sépia e preto-e-branco e nas palavras doces que ecoam nas gerações seguintes. Depois, numa passagem para um segundo ato sem fechar o pano, passa-se à vida marista – com o nome religioso de Lourenço José, talhado para a educação da juventude. Seus interlúdios em Roma e em Paris, em trabalho e estudos tão diversos como sua obediência e seu chamado à renovação. E daí para um novo ato, um capítulo central que iria repartir a sua vida em “antes” e “depois”: a catequese libertadora, planta de sua lavra, com sua irmã Matilde, com os que ele sabia empoderar, alguns desde os tempos da Ação Católica. Mas nesse ato tão decisivo, que neste livro-memorial fica discreto, acontece o que se promete aos profetas: perseguição, prisão, tortura, desqualificação, enfim, o sabor amargo do cálice da Páscoa. Mas então amanhece o ato seguinte, nas páginas seguintes, o abundante testemunho do tempo novo que se abre em Canoas, nas ilhas do Guaíba, na mul-

Num primeiro ato, a vida de família, nas fotos em sépia e preto-e-branco e nas palavras doces que ecoam nas gerações seguintes.

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Seus interlúdios em Roma e em Paris, em trabalho e estudos tão diversos como sua obediência e seu chamado à renovação (Irmão Antônio, último à direita).

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tiplicação dos galpões de reciclagem de resíduos, fazendo levantar-se gente da miséria e do lixo – os últimos – para experiências de ressurreição. E mais abrangente, os movimentos sociais, o começo da Comissão Pastoral da Terra, das Romarias da Terra, do Movimento dos Sem Terra, do Centro Missionário, da Mística Feminina, do grupo de intelectuais Emaús, e etc. De fato, Deus escreve direito por linhas tortas, neste livro está a escrita reta e ascendente no paradoxo da tortuosidade dos tempos e da descida do Irmão Antônio para as periferias invisíveis, como se fossem porões da sociedade, mas cheias de gente com potencial para os sinais de uma sociedade nova. É assim, de cena em cena, no suceder dos atos, que se cumpre uma vocação, um sonho, um sinal sólido do Reino de Deus que fica registrado nesse memorial para continuar o que Ir. Antônio começou. Neste livro vamos testemunhar não apenas um, mas muitos começos. Como ao longo de um caminho, ao encontrar gente nova, elas se juntam ou se convertem ao caminho. Mas também produzem o milagre de converter de alguma forma o caminhante. Irmão Antônio pode ser lembrado ao lado de Dom Helder em suas conversões, com Deus espreitando nas esquinas e juntando-lhes gente nova. Na vida de Ir. Antônio que perpassa este livro de testemunhas e memórias, as conversões tiveram um fio condutor, um sopro contínuo de Espírito nas diferentes faces que foram aparecendo e se juntando: jovens, militantes sociais, pobres de periferia, gente do campo e das colônias, negros e sobretudo mulheres negras, mulheres de vila, índios... E ao redor deste rosário colorido de pessoas, Irmão Antônio foi costurando uma certa multidão de engajamentos, de agentes empoderados por suas intuições e articulações. Ao longo do livro deparamos com testemunhas de diferentes


profissões, diferentes estados de vida, diferentes saberes, sintonizando e somando-se aos que vieram se tornando sujeitos de suas vidas e dignidade – índios, negros, mulheres, trabalhadores do campo e das periferias, trabalhadores inclusive nos “elefantes brancos” do centro de Porto Alegre – os barracões e espaços abandonados transformados em plataformas de reciclagem dos “profetas da ecologia”. Neste livro, como nos livros que marcaram a celebração de seus oitenta anos, Ir. Antônio também toma a palavra. Não é somente uma palavra inteligente, ela vem carregada de força e de sonho. Pode-se ainda aprender de sua poderosa interpretação bíblica absolutamente intuitiva e brilhante quando Bíblia e vida entram em contato. O leitor atento encontrará em uma página, lá no meio do livro, o cartaz natalino da cinematográfica ocupação urbana de Canoas - que se tornou o bairro Santo Operário - em que se lê uma pérola desta hermenêutica: “Jesus ocupou uma gruta, nós ocupamos este terreno!” Simples assim, sem precisar mais palavras. Não eram apenas uma interpretação e uma convicção, eram uma revolução. As forças militares que tentaram deter a ocupação testemunharam a eficácia da interpretação. Mas outras páginas aguardam o leitor com outras surpresas hermenêuticas eficazes. De tal forma que, depois de um calmo folhear, depois de acompanhar uma vida que foi avançando em etapas tão diversas e carregando consigo tanta gente, não é mais possível ficar indiferente: o memorial tem força, ele inspira na direção do ausente que, através de tantas testemunhas, ainda interpreta, une e inspira o caminho que continua. Aqui a herança vira colheita, e a colheita vira semente posta na terra, a mesma semente que morreu para produzir ainda muito fruto. O luto, que lembra originalmente a música da flauta a embalar a dor da saudade, se transforma em música inspiradora e criativa de vida que continua.

Aqui a herança vira colheita, e a colheita vira semente posta na terra, a mesma semente que morreu para produzir ainda muito fruto.

Assim vive Antônio, irmão de muitos para sempre.

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“AO PROFETA DA ECOLOGIA, PATRIARCA DOS MOVIMENTOS POPULARES E DAS COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE DO RS”

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CONVITE DOS JOVENS AO NONAGENÁRIO IR. ANTÔNIO

AJUDANDO AS JUVENTUDES A SONHAREM MAIS, TEREM MAIS UTOPIAS, MAIS PERSPECTIVAS DE ENGAJAMENTO.

A Pastoral Juvenil Marista realiza um projeto anual de Missão. O tema de 2016 será uma experiência de fé na prática da vida. Gostaríamos que o sr. estivesse conosco, no dia 29 de julho, para falar sobre sua experiência, sobre a organização dos catadores, sobre os movimentos sociais, enfim, uma partilha de vida,

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ORAÇÃO DOM HELDER CAMARA

Bendito sejas, Pai, pela sede que despertas em nós, Pelos planos arrojados que nos inspiras, Pela chama que és Tu mesmo crepitando em nós... Que importa que a sede fique em grande parte insatisfeita? (ai dos saciados!) Que importa que os planos fiquem mais nos desejos do que na realidade? Quem sabe mais do que TU que o êxito independe de nós E só nos pedes o máximo de entrega e de boa vontade? Amém!

Irmão Antônio, todas as manhãs, acordava lá pelas 4 ou 5 horas, acendia uma vela, meditava, fazia as leituras bíblicas do dia, concluindo sempre com a oração acima. (Ao lado, a última vela, com a qual ele rezou na madrugada de 10 de novembro de 2016.)

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Celebração de Ação de Graças Pela vida e testemunho do Irmão Antôno Cecchin

Acima, Alberto Becker, Laura e Beozzo reverenciam a memória do Irmão. Alberto Becker comove a plateia com a leitura de seu depoimento (publicado na pág. 82 deste livro).

Pe. José Oscar Beozzo* e Maria Helena Arrochellas**

Na manhã do dia 9 de janeiro de 2017, na cidade de São Paulo, no salão do TUCA (Teatro da Universidade Católica/SP), a coordenação e participantes do 30º Curso de Verão do CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à

* Coordenador-geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular/ CESEEP **Diretora do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade/CAALL

Evangelização e Educação Popular), amigos e amigas do Irmão Antônio Cecchin, agradeceram a Deus pela vida e testemunho deste querido companheiro, com uma forte e linda celebração de Ação de Graças.

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Cecchin havia aceitado, com prontidão e entusiasmo, o convite para participar, de 6 a 14 de janeiro de 2017, do Curso cuja temática era: “EDUCAR PARA A PAZ EM TEMPOS DE INJUSTIÇAS E VIOLÊNCIA”.

Com a mesma garra do irmão, Matilde, parceira de todas as horas, avisou que ela e um grupo de amigos e amigas viriam para o Curso de Verão e manteriam de pé a contribuição do Irmão para a mesa que estava sob sua responsabilidade.

Com o mesmo entusiasmo, aceitou escrever um dos capítulos do livro e organizar uma das mesas-redondas sobre as “Comunidades de Base e os Catadores”, por ele batizados como Profetas da Ecologia. Ele e sua irmã Matilde prepararam o texto para o livro intitulando-o: “CAMINHADA DAS CEBs DO RIO GRANDE DO SUL E OS CATADORES.”

O livro já estava publicado e o Curso preparado, quando seu inesperado falecimento nos deixou tristes e aturdidos, sem saber como suprir o imenso vazio que se abria diante de nós. A celebração de Ação de Graças foi a melhor forma de agradecer a Deus pela vida do Cecchin e pelo rastro de luz que ele deixou para todos nós e de dar testemunho dos caminhos de esperança que ele abriu para tantos marginalizados e excluídos de nossa sociedade, seja no campo, seja nas cidades, devolvendo-lhes dignidade e orgulho pelo seu trabalho. Com amor e misericórdia, Cecchin abraçou o trabalho diário dos considerados “últimos da sociedade”, testemunhando o único futuro que pode nos salvar: o de uma sociedade solidária, que supere o consumismo e o desperdício, reciclando e reaproveitando o que é descartado das atividades industriais, das embalagens do comércio e do lixo que produzimos em nossas casas, escritórios e locais de lazer. Por isso, a prece daquela manhã, acompanhada de imagens e textos que vão aqui reproduzidos, foi a homenagem emocionada de sincera gratidão ao Cecchin, aos seus companheiros e companheiras de sonhos e lutas, os Catadores e as Catadoras, os Recicladores do lixo de nossas cidades, os Profetas da Ecologia que pedem de todos nós conversão e o CUIDADO COM A NOSSA CASA COMUM.

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Uma vida vivida à luz da Fé pela Pastoral Juvenil Marista

“A coisa não está nem na chegada, nem na partida. Está é na travessia.” Guimarães Rosa

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A Pastoral Juvenil Marista vem realizando nestes últimos anos a Missão Jovem Marista, com o objetivo de oportunizar aos adolescentes e jovens uma experiência com grupos e com pessoas que estão contribuindo para a construção da Civilização do Amor.

Ir. Antônio Cecchin chegou no seu carrinho simples, foi entrando de forma também simples na Casa Marista da Juventude (CAJU). Em suas mãos carregava Nossa Senhora das Águas e Sepé Tiaraju, colocando-os no meio da roda de conversa.

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Realiza estas experiências, pois acredita que é a missão que dá vida e sentido para cada adolescente e jovem; acredita que é a participação, o envolvimento concreto das juventudes com Associações, ONGs, comunidades eclesiais, comunidade educativa das escolas, das universidades, das unidades sociais que dará sentido a suas vidas; acredita que é exercendo a cidadania e confrontando-se com pessoas que testemunham com a própria vida sua fé e o seu seguimento de Jesus de Nazaré, que inspiram também a crescerem enquanto cidadãos e cristãos; acredita que cada qual tem uma missão a desempenhar e, em especial, acredita na ação evangelizadora dos jovens e com os jovens. Foi por causa do objetivo desta experiência de missão que tivemos a oportunidade de contar com a partilha de vida do Ir. Antônio Cecchin. Chegou no seu carrinho simples, foi entrando de forma também simples na Casa Marista da Juventude (CAJU). Em suas mãos carregava Nossa Senhora das Águas e Sepé Tiaraju, colocando-os no meio da roda de conversa. Começou falando que não sabia muito por que ali estava e o que teria para dizer às juventudes de hoje um velhinho de 80 anos. Mas, ao mesmo tempo que dizia isso, começou a falar de suas experiências, de seus sonhos, de suas utopias, dos porquês que motivaram sua vida e não teve dúvidas, apontou para a imagem de Jesus Ressuscitado e afirmou: “Foi o projeto Deste homem que me fez caminhar, sonhar, lutar, viver. É pelo seu projeto que optei por trabalhar com os catadores, com as comunidades eclesiais de base, que pautei as minhas escolhas”. A roda de conversa foi fluindo e num determinado momento, Irmão Antônio perguntou para o grupo: “Por que todos estão de avental? Qual o


sentido? Alguém pode me contar?”. Alguém do grupo disse: “Sim, eu posso!” E pegando a Carta do Superior Geral dos Irmãos Maristas, Irmão Emili Turú começou a ler um trecho: “O Mons. Tonino Bello, poeta e profeta, usou frequentemente esta imagem da Igreja do avental (la Chiesa del grembiule), porque, dizia, esse é o único ornamento litúrgico que podemos atribuir a Jesus: então Jesus ‘se levantou da mesa, tirou o manto e, tomando uma toa­ lha, amarrou-a na cintura’ (João 13, 4): eis aí a Igreja do avental. Quem quisesse desenhar a Igreja como a sente o coração de Jesus, teria que desenhá-la cingida com uma toalha. Alguém poderia objetar que é uma imagem muito serviçal, demasiado banal, uma fotografia que não se mostra aos parentes quando vêm à casa para tomar chá. Mas a Igreja do avental é a Igreja que Jesus prefere porque a fez assim. Fazer-se servos do mundo, ajoelhar-se como fez Jesus... e se pôs a lavar os pés das pessoas, do mundo. Isso é a Igreja”. Neste momento, foi entregue ao Ir. Antônio um avental. Ele pediu que fosse vestido nele. E foi lido outro trecho da carta: “Olhar o mundo a partir da perspectiva de outra pessoa significa ser capaz de pôr-se no lugar dela; deixar-se tocar por ela; compreendê-la, embora nem sempre se possa aprovar suas ações. Quando Jesus se ajoelha para lavar os pés de seus discípulos, sua perspectiva é de baixo: trata-se de servir, não, porém, como protagonistas ou como quem tem todas as respostas, mas de joelhos, quer dizer, com a

A Igreja do avental é a Igreja que Jesus prefere porque a fez assim. Fazer-se servos do mundo, ajoelhar-se como fez Jesus... e se pôs a lavar os pés das pessoas, do mundo.

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humildade de quem serve porque ama, sem buscar nada em troca. Quantos testemunhos escutei de pessoas cuja visão do mundo mudou quando aceitaram pôr-se de joelhos, perto dos que já estão ‘abaixo’ em nossa sociedade, e se deixaram educar por essas pessoas, sem preconceitos nem medos. Sim, é verdade que é perigoso fazê-lo. Sua visão do mundo e da vida jamais tornará a ser como antes”. Obrigado, Irmão Cecchin, por ter provocado muitas pessoas, muitos adolescentes e jovens a olharem a vida de baixo, a ter uma causa na vida a que e a quem se dedicar. Obrigado por ser testemunho de vida para cada um de nós.

A missão dá vida e sentido para cada adolescente e jovem; a participação, o envolvimento concreto das juventudes com Associações, ONGs, comunidades eclesiais, comunidade educativa das escolas, das universidades, das unidades sociais dará sentido a suas vidas.

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O avental presenteado a Irmão Antônio pelos jovens.


A vida é sonho (Calderon de La Barca)

por Matilde Cecchin*

Por ocasião da Campanha da Fraternidade de 2003, cujo tema era: O idoso, VIDA E DIGNIDADE, foi apresentado um painel no Centro 1 da Unisinos, com depoimentos de idosos que nos anos 1960 Em Roma, em 1961, Irmão Lourenço José (nome religioso de Antônio Cecchin) estudava violão e seu meio de transporte era a lambreta, tanto para o trabalho quanto para o lazer.

eram jovens. Em 2003, com idade avançada, Irmão Antônio Cecchin recorda sonhos e utopias.

* Professora aposentada e irmã de Antônio Cecchin.

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Eram tempos do FSM: para que outro mundo seja possível...basta que sonhemos os mesmos SONHOS...pois, “SONHO QUE SE SONHA SÓ É PURA ILUSÃO; SONHO QUE SE SONHA EM MUTIRÃO, É SINAL DE SOLUÇÃO”. Dom Helder Camara

Outras pessoas, de outras tradições culturais, trouxeram seus depoimentos sobre o Idoso, na Unisinos. Entre elas, a cultura africana, com Marli, Bárbara e Nazaré. Nessa cultura, são muito valorizadas nos rituais, principalmente, as presenças de Preto e Preta Velha. Chegar a ser idoso era muito raro, devido à crueldade da escravidão.

Che Guevara, Martin Luther King, os Beatles... muitos inspiraram os jovens em mais de 30 países, as grandes mobilizações caracterizando a década de 1960 como a das “Mil Primaveras Juvenis”. O sociólogo Edgar Morin, que acompanhou o maio de 1968 na França e em seguida veio ver nossas passeatas brasileiras, falou em “êxtase da História”. O poder jovem perseguia, feliz, a sua UTOPIA, o seu SONHO! A década de 1960, com mais possibilidades e com mais potencialidades de mudança, ficou como “UM MOMENTO ABERTO DA HISTÓRIA DOS HOMENS”. Emir Sader

CONVIDADO ESPECIAL

Um dos convidados do encontro foi Irmão Antônio Cecchin que, em resumo, assim se expressou:

João XXIII

Dom Helder Camara

Paulo Freire

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Nós, que hoje estamos na terceira idade, tive­ mos a utopia da nossa geração muito bem delineada na década de 1960. Nossa militância foi balizada por 3 personagens que nos ensinaram a manejar três ferramentas: • o MÉTODO: VER – JULGAR – AGIR, • a PEDAGOGIA DO OPRIMIDO e • a ESPIRITUALIDADE LIBERTADORA. Os três personagens: João XXIII, Dom Helder Camara e Paulo Freire. Bem no início dos anos 1960, em pleno vigor da minha idade, eu trabalhava no Vaticano, na Sagrada Congregação dos Ritos que, além da Liturgia, cuidava


da Causa dos Santos. Funcionei por dois anos e meio como secretário particular do Promotor Geral da Fé, vulgarmente chamado de Advogado do diabo. Eram os anos do pontificado de “Papa Giovanni”, o inesquecível João XXIII, um ancião que beirava os 80 anos. Um simpaticíssimo velhinho. O ancião João XXIII perscrutava os sinais dos tempos, expressão por ele recuperada da Bíblia. Assombrou a Igreja inteira convocando um Concílio Ecumênico. Eu acompanhava em Roma os preparativos do Concílio, lendo diariamente o Osservatore Romano, jornal oficial da Santa Sé. Lembro-me de ter lido uma entrevista de João XXIII a um jornalista norte-americano. Quando este lhe perguntava: “Papa Giovanni, que quer o senhor através da convocação de um Concílio?”, o bom velhinho levantou-se da cadeira, foi até a janela, abriu-a de par em par, dizendo num bom italiano: “Aria fresca nella Chiesa”. Quero ar fresco na Igreja.

João XXIII inovou, ampliando para além das fronteiras da fé cristã, dirigindo-se a todas as pessoas

Irmão Lourenço, na comunidade Marista, em Roma, em recreação.

Para os que vieram da década de 1960, parece lugar-comum dizer que O SONHO NÃO ACABOU. Comunidade de Irmãos da Casa Generalícia de Roma, em 1961.(José Lourenço, no centro, na última fila.)

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de boa vontade. Talvez em poucos momentos da história, um pontificado tenha adquirido tanto prestígio quanto o do Papa João XXIII.

João XXIII, um Papa diferente, fez questão de visitar todos os funcionários do Vaticano. Irmão Lourenço José é o mais alto, à direita.

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Mandou-se então vir da África, do Congo Belga, o Coral dos Jovens Cantores do Rei Balduíno. Cantaram na Basílica de São Pedro a Missa Luba. Até esse dia, aquelas paredes medievais só haviam feito eco a instrumentos ditos “religiosos” como órgão, violinos, flautas, etc, e corais bem comportados. Pela primeira vez exclusivamente instrumentos de percussão, como soe acontecer no mundo inteiro quando se trata de música de gente pobre. Os negros com seus tambores e ritmos esfuziantes, se não fizeram vir abaixo o teto da basílica de maneira concreta, esse teto ruiu mesmo de maneira simbólica. O efeito foi imediato. A nenhum dos Padres Conciliares passou despercebido o absurdo de todas aquelas vozes e ritmos alucinantes terem que se adequar aos milenares textos de um latim mais que ultrapassado. Foi a entrada solene, pelo Concílio, das línguas vernáculas e de todas as culturas nas liturgias.


Os negros com seus tambores e ritmos esfuziantes, se não fizeram vir abaixo o teto da basílica de maneira concreta, esse teto ruiu mesmo de maneira simbólica.

A “ária fresca” da Primavera deu início a uma nova abertura na Igreja, nos anos 1960.

A “aria fresca” da Primavera começara a varrer a Igreja Católica sob a batuta de João XXIII. Chegara do Brasil, diretamente para o Concílio, carregando todas as nossas esperanças nacionais, nosso bispo-profeta, Dom Helder Camara. Ele era o grande timoneiro de uma utopia que estávamos construindo desde o final dos anos 1950 e começo dos anos 1960. Dom Helder, a partir do Rio de Janeiro, era o coordenador do Movimento de Ação Católica. Por sugestão dele, no ano de 1955, os bispos brasileiros haviam decidido trocar a linha do Movimento. Até esse ano a Ação Católica seguia a linha italiana e, a partir de então, adotou a linha francesa com o seu método resumido nos três verbos: VER, JULGAR, AGIR. Voltando de Roma, Dom Helder, em Medellín, na Assembleia Geral do episcopado todo da América

Irmão Lourenço José, como secretário particular do Cardeal encarregado dos Santos, fazia parte do Cortejo na cerimônia de Canonização na Basílica de São Pedro.

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Para participar das canonizações dos Santos, mesmo sendo funcionário do Vaticano, era necessário um convite especial. Acima, ritual de uma canonização, sendo o Irmão Lourenço José, o primeiro à direita.

“Eu mesmo, nos dois anos em que trabalhei na Sagrada Congregação dos Ritos, usufruí da mordomia: sempre que havia uma cerimônia de beatificação ou canonização, de manhã bem cedo, encostava um carrão a fim de me levar até o interior da Santa Sé. Saltava do carro e um funcionário já estava à minha espera para vestir-me com a indumentária especial da cerimônia.” Ir. Antônio em artigo para a Revista IUH on Line.

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Latina, conseguiram realizar a opção do continente pelos pobres e a oficialização das Comunidades Eclesiais de Base que se tornaram as protagonistas da Teologia da Libertação, também chamada ESPIRITUALIDADE LIBER­ TADORA. Na diocese de Dom Helder, surgiu Paulo Freire, certamente o militante leigo mais ilustre da década de 1960. No embalo da opção pelos pobres, ele nos brindou com a PEDAGOGIA DO OPRIMIDO. Na concretização da UTOPIA DOS ANOS 1960, baseada na politização da Evangelização e da Educação, na medida em que construíamos uma Fé e uma Educação cidadãs, vimos tombarem também, ao longo da caminhada, inúmeros companheiros mártires. Estes, com seu sangue, fizeram com que o Brasil recuperasse a esperança da libertação. Nem podia ser diferente: não há PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO possível, sem antes passar pela PAIXÃO E MORTE.”


Leandro Molina

A...Deus!

Apresentação musical no ato de inauguração do Assentamento Dom Orlando Dotti, em Esmeralda.

Por Salete Carollo*

Estávamos na secretaria do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Porto Alegre quando recebemos a notícia do falecimento do Irmão Antônio Cecchin. Imediatamente, eu, a Luciana Frozi, que coordena o setor de Cultura do MST, e a Tainá Lopez, minha filha mais velha, reorganizamos nossas agendas para acompanhar o momento de despedida física e ficamos emocionadas e surpreendidas pela forma que se deu esse momento de partida do Irmão. * Dirigente estadual do MST

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Arquivo do Deputado Edegar Pretto

No local, encontramos a Saraí Brixner, do Instituto Padre Josimo, e seu companheiro Isnar Borges. Pensamos como poderíamos fazer um momento mais celebrativo, onde fosse possível recordar nossas vivências com o Irmão Antônio Cecchin. A partir disto, de forma muito espontânea, cada pessoa que estava presente pôde trazer a memória quem ele foi e tudo o que representou para os diversos povos.

Deputado Adão Pretto durante Congresso Nacional do MST.

Arte em homenagem ao MST, de Oscar Niemeyer.

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A cada instante alguém recordava uma etapa do trabalho realizado por Cecchin nas Comunidades de Base, nas ilhas e por onde mais passou, durante a sua jornada. Nós, do MST, lembramos que ele sempre esteve em todos os processos de luta e resistência, seja dos Sem Terra, indígenas ou quilombolas, mas, principalmente, dos mais pobres. Cecchin sempre trazia essa dimensão da importância do empoderamento dos pobres para que pudessem se libertar. Tudo isso veio acompanhado de canções. Muitos violeiros e gaiteiros também foram se despedir e, naturalmente, cada um lembrava as músicas que motivavam o trabalho e a luta, que fizeram brotar todas as relações e processos de organização do povo, principalmente da classe oprimida. Então ali, na despedida, várias expressões se apresentaram. Nós, do MST, também frisamos, na oportunidade, que, para haver Reforma Agrária, é fundamental que os pobres do campo pudessem se organizar. E o Irmão Antônio Cecchin sempre contribuiu muito fortemente neste sentido, na conquista dos nossos direitos. É por isto que deixamos uma bandeira do MST com ele, porque ela traz toda essa simbologia do campo e dos Sem-Terra em torno dessa motivação e formação com que o irmão sempre trabalhava conosco. Nós sempre dizíamos que a bandeira


Marcha das mulheres do campo e da cidade, em Porto Alegre, em março de 2017, contra a reforma da Previdência.

Cristiane Leite

Leandro Taques

Apresentação de artistas populares no Festival Nacional de Arte e Cultura da Reforma Agrária, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais.

do MST pertencia a ele, justamente porque ele tinha essa inserção permanentemente nas nossas lutas. Quando saímos, a Tainá, que resistia em ir, por ser um momento de tristeza, disse: “foi um momento muito místico, parecia uma festa”. Na verdade, foi a celebração da vida de alguém que sempre esteve presente e que continuará presente. Tivemos uma despedida física, mas ele permanece conosco nas trincheiras que vamos continuar seguindo. O Irmão Antônio Cecchin compartilhava de um poema que recitamos juntos em algumas edições da Romaria da Terra e que evidencia que não basta somente sonharmos: temos que lutar por nossos sonhos. Parte deste poema diz:

Nós, do MST, lembramos que ele sempre esteve em todos os processos de luta e resistência, seja dos Sem Terra, indígenas ou quilombolas, mas, principalmente, dos mais pobres.

“A classe dominante não teme armas. A classe dominante treme diante de homens e mulheres que sonham, porque sonhar é prejudicial à ordem estabelecida. Nós somos duplamente perigosos, porque sonhamos e porque organizamos os sonhos”.

Foi com ele que, ao final, nos despedimos do irmão Antônio Cecchin.

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Acima, no início da Comunidade de Base, na Ilha Grande dos Marinheiros, em 1986, Jacques Alfonsin e a esposa Belinha, as líderes Piedade e Nazaré, protagonistas dessa organização, e (de vermelho) Afonso, presidente da Associação de Moradores, com a esposa Marina. A cruz, que está atrás das pessoas, por ocasião de grande enchente, despreendeu-se da frente da Igreja, onde estava plantada, e foi levada pelas águas até a escola onde se abrigavam as famílias flageladas. Foi emocionante a reação de todos ao constatar que a cruz quis acompanhá-los em seu sofrimento.

Passada a enchente, a cruz foi trazida de volta com o povo em procissão e reverenciada pelos moradores.

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Um homem movido a fé e a amor de Deus Reunião com Irmão Antônio, Jacques Alfonsin e sua esposa Isabel Alfonsin, junto a outros companheiros na assessoria às Comunidades de Base.

por Jacques Távora Alfonsin*

No dia 16 de novembro de 2016, o religioso irmão marista Antônio Cecchin partiu para a eternidade. Contava 89 anos de uma vida toda de dedicação às/ aos pobres, vítimas do desamor e da injustiça. Dizendo irmão, talvez se diga tudo a seu respeito. De ouvi-

* Procurador do Estado, aposentado, advogado dos Sem Terra, dos Sem Habitação e assessor dos Movimentos Sociais.

do, coração, palavra e prestação de serviço muito afinados com o Amor de Deus, cumpriu a advertência do Salvador aos seus apóstolos e discípulos: “Aquilo que fizerdes ao menor dos meus irmãos, a Mim o fareis”.

Arte de Oscar Niemeyer para o MST

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“Cecchin foi um competentíssimo e exemplar advogado, um advogado de uma outra advocacia, toda inspirada em outra cidadania, um outro regime de igualdade, liberdade e fraternidade.”

1979, próximo ao Natal, inicia-se a ocupação da granja de arroz abandonada, junto à favela do Guabiju, em Canoas, fundos da Mathias Velho. Ir. Antônio, embora sendo advogado,procura o Dr. Jacques para assessorá-lo quanto à lei e ao direito das pessoas, agora, na situação de posseiros.

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Junto com a sua irmã Matilde, assessorado quase sempre por cristãs(os) leigas(os), identificou Deus Encarnado e ainda Crucificado em todas as pessoas miseráveis, pobres, perseguidas, desprezadas e humilhadas como Ele. Meteu-se junto delas, com elas rezou, discutiu, sofreu e penou os efeitos da opressão e da injustiça, sem jamais se dobrar a uma e a outra. Com as(os) índias(os), violentadas e desapossadas de suas terras, procurou restaurar nelas(es) a inconformidade, a coragem, a indignação e a rebeldia de seu ancestral Sepé Tiaraju; com as(os) sem teto e sem terra, apoiou a CPT (Comissão Pastoral da Terra) e o MST em seus acampamentos, ocupações, romarias, escolas itinerantes, campanhas pelas reformas agrária e urbana; com as(os) quilombolas e afrodescendentes, tratou de recuperar a cultura, os costumes, as celebrações e festas próprias desse povo, vítima de preconceito e racismo. Com as(os) catadoras(es) de material, valorizou de forma pioneira e surpreendente o extraordinário valor do seu trabalho em defesa da saúde pública, da higiene, do meio ambiente, auxiliando a sua organização coletiva em associações e galpões de reciclagem. Catequista, trouxe para o Brasil o resultado de estudos que fez na França, assessorou trabalhos da Igreja no Vaticano, montou cartilhas, escreveu livros, criou novas formas de manifestação pública de espiritualidade e religião, com extraordinária habilidade pedagógica de linguagem e gestos acessíveis à cultura, à compreensão, ao gosto e à vivência do povo simples. Muito aberto ao ecumenismo, à defesa da natureza, teve a felicidade de ver o seu trabalho verdadeiramente missionário refletido e apoiado no modelo pastoral do Papa Francisco. Pouca gente sabe disso, mas o Irmão Antônio era também advogado, um dos poucos dados sobre o qual ele se permitia bom humor, rindo de si próprio, pois dizia nunca ter exercido, de fato, a profissão. Justamente nisso, porém, ele pode ter se enganado.


Têm fé as(os) cristãos como ele, que o Espírito Santo é paráclito, uma expressão que caracteriza defensor, advogado, alguém que socorre gente ainda sem proteção da sua dignidade. Antônio, nos permita essa ousada comparação. Para nós, ele foi um competentíssimo e exemplar advogado, um advogado de uma outra advocacia, toda inspirada em outra cidadania, um outro regime de igualdade, liberdade e fraternidade. Uma democracia de um outro “Estado”, um outro “Reino”, um fermento de solidariedade das(os) filhos de Deus, onde amor, misericórdia, graça e perdão, por exemplo, são palavras de sentido muito diferente daquele que o ordenamento jurídico do Estado laico só cogita com muita relutância. Justiça, então, para a advocacia do Antônio, se refere à coisa muito distinta da mera e estreita aplicação da lei. Sem reconhecê-la como monopólio exclusivo do Estado, ele a construía junto com o povo pobre, defendendo-o com extraordinário denodo e zelo apostólico. Um zelo próprio da radicalidade de profetas, permita ele também essa ofensa à sua humildade e modéstia. Como milhares de advogadas(os) do passado, justo por proceder como ele em defesa desse povo, o Irmão Antônio foi preso e torturado pela repressão da ditadura militar, enfrentou incompreensões de todo tipo por parte do Poder Público e da própria hierarquia eclesiástica, indispôs-se até com parceiras(os) do seu trabalho pastoral. No dia do seu sepultamento, entretanto – um dado raro nessa espécie de despedida –, estavam pessoas chorando a sua morte, as mesmas que ele tinha criticado duramente e, em alguns casos, rompido relações de companheirismo. Foi um reconhecimento público de que sempre agiu,

Irmão Antônio gostava de citar o Dr. Jacques que lhe dava segurança: “ Vocês façam o que tem que fazer para garantir o direito dos pobres. Depois eu vou procurar no Direito uma brecha da Lei para defendê-los”. Nasceu assim O DIREITO ACHADO NA RUA, do qual o Dr. Jacques foi pioneiro. Depois passou a ser um Capítulo do Direito com o nome de DIREITO ALTERNATIVO, que agora está se estudando nas Faculdades.

As OCUPAÇÕES, no RS, se iniciam pelo direito a um pedaço da terra para morar, URBANAS, portanto. Depois aconteceram, com a criação do MST, a OCUPAÇÃO da Fazenda Brilhante, da Fazenda Macali, da Encruzilhada Natalino, etc.

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Marco Nedeff

Através da prática da justiça, o advogado com os conhecimentos que tornam sua mão poderosa, ajuda os pobres a descer da cruz.

Mapa das ocupações.

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certo ou errado, com reta intenção, motivado por estrita fidelidade ao Deus da vida. Os movimentos populares, as CEBS (Comunidades Eclesiais de Base), muitas organizações de gente interessada em se unir à permanente e indormida campanha de defesa dos direitos humanos, contra todo o mal e toda a injustiça, costumam iniciar e encerrar suas reuniões com um grito forte do nome de alguém já falecido, cuja vida tenha servido de exemplo das virtudes próprias indispensáveis à coragem, ao heroísmo, às vezes até ao sacrifício da própria vida, como aconteceu com Jesus Cristo. Procuram reencarnar, assim, a animação, o entusiasmo, o interesse, o espírito, os desejos todos das suas razões de existir, enfrentar as injustiças com energia e paixão iguais às da(o) falecida(o). Ao grito desse nome, todas(os) as(os) participantes, às vezes dando-se as mãos e rezando, costumam responder em uníssono: presente! Que este querido amigo e irmão nos permita prestar essa homenagem agora, porque talvez não exista melhor testemunho de existência, mesmo, da ressurreição. Antônio Cecchin: Presente!


Um ser humano integral Aniversário de 85 anos do Irmão Cecchin.

por Tarso Genro*

O Irmão Cecchin foi um ser humano integral, na acepção completa e viva da palavra. Sua presença, junto àquelas pessoas mais excluídas e esquecidas pela sociedade e pelo Estado – os catadores que ele designou mais tarde como “profetas da ecologia”–, foi uma lição de amor e fraternidade. Uma suprema lição política, concedida a todas as pessoas religiosas e não religiosas, que dele se acercavam, pois Cecchin militava na vida diária e na palavra cotidiana, no resgate integral daqueles humanos que eram considerados como restos improdutivos da sociedade de classes. *Ex-governador do Estado.

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Nos 85 anos do Irmão Antônio Cecchin, as crianças, filhos das recicladoras, tiveram seu espaço.

Tarso Genro realizando convênio com os Profetas da Ecologia para construir o galpão dos carrinheiros.

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Durante o regime militar, Cecchin foi um resistente, que passou pelo cárcere e pela tortura, o que, certamente, lhe ajudou a soldar a convicção que os homens e as mulheres não se dividem entre aqueles e aquelas que se declaram religiosos e os que são formalmente indiferentes às doutrinas baseadas na fé. Dividemse – pensava Cecchin – entre os que julgam que os humanos podem ser tratados como uma mercadoria qualquer e os que consideram seu corpo, sua mente, sua subjetividade – sua alma, se quiserem – tão importante e tão sagrada com um “pedaço” de Cristo. Conheci-o numa data remota na metade da década de 1970 na Vila Santo Operário, em Canoas, numa reunião “fechada”, na qual os jovens trabalhadores que militavam nos organismos de base da Igreja Católica queriam informações sobre a Revolução Cubana. Eu fora indicado – até hoje apenas presumo – pelo querido companheiro


Selvino Heck. Este frequentava, comigo, um grupo de pretendentes a intelectuais – como nós – que nos reuníamos para conversar sobre literatura e política, no Clube de Cultura, que abrigava, naquele período, correntes tradicionais e heterodoxas do pensamento democrático de esquerda, para discussões como aquela. Encontrei-o, mais tarde, em inúmeras ocasiões na minha militância política e nos cargos públicos que exerci, por delegação popular. Cecchin, sempre acompanhado da sua querida irmã e não menos incansável lutadora, Matilde, manteve as mesmas lutas, a mesma postura perante a vida, espalhando o desejo comum da dignidade e da solidariedade, ao lado dos seus “profetas” e suas famílias. Suas cabeças levantadas, para olhar a opressão de frente e enfrentá-la com brilho nos olhos e amor no coração, terão sempre os passos incansáveis de Cecchin, nas suas longas peregrinações contra a mercantilização da vida. Em vários momentos da minha vida, quando tinha que tomar decisões que, de certa forma, iriam influir na vida dos pobres e explorados, eu pensava qual seria o juízo de Cecchin sobre os meus atos. Porque, para muitos de nós, ele foi mais do que um exemplo. Foi um inspirador moral e um referencial político dos que não esquecem as suas raízes e os seus compromissos com o sofrimento alheio. Cecchin viverá sempre na memória dos que ele ajudou a compreender a vida e celebrar a felicidade, também através da luta pela felicidade alheia.

Em abraço, Antônio e Tarso, companheiro que sempre apoiou a luta pela autonomia dos carrinheiros em Porto Alegre.

Em vários momentos da minha vida, quando tinha que tomar decisões que, de certa forma, iriam influir na vida dos pobres e explorados, eu pensava qual seria o juízo de Cecchin sobre os meus atos.

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Renata Machado (CUT-RS)

Santo e Profeta Marcha do Dia Internacional da Mulher, realizada em 8 de março de 2017.

por Selvino Heck*

Dia 25 de outubro de 2016, 17h, reunião de preparação do Fórum Social Mundial (FSM) no CAMP (Centro de Assessoria Multiprofissional), que iria acontecer de 17 a 21 de janeiro de 2017 em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Feliz por voltar a participar da preparação de um Fó-

Irmão Antônio falando aos catadores em Santa Maria, no local da Feira da Solidariedade.

rum, eu que, em nome do mesmo CAMP, participei da preparação do primeiro em 2001, surpreso, vejo adentrar na sala o Irmão Antônio Cecchin, companheiro de sempre e de todas as lutas.

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* Deputado estadual constituinte do Rio Grande do Sul (1987-1990) Membro da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política


Imediatamente vou cumprimentá-lo, saber como está de saúde, perguntar sobre sua irmã Matilde e tudo mais, no reencontro de velhos amigos, eu que nos últimos anos estava quase todo tempo em Brasília, governos Lula e Dilma, Fome Zero com Fei Betto, políticas sociais, Rede de Educação Cidadã, construção da política de agroecologia e tudo mais. Diz-me que os combatentes têm que estar sempre a postos até onde e quando for possível, que está morando praticamente sozinho, eis que a Matilde está no interior, e que, aos 89 recémcompletados, vai fazer talvez uma última viagem para reunião do Grupo de Emaús no Rio, com Leonardo Boff, Frei Betto, Luiz Alberto Gomes de Souza, Pedro Ribeiro de Oliveira, Frei Luís Carlos Susin e outros teólogos e intelectuais que se reúnem há décadas a partir e em torno da Teologia da Libertação. Já não aguenta mais as viagens. A reunião termina pelas 19h, ainda há sol, estamos em horário de verão em Porto Alegre, pergunto se vai para casa. Sim, a pé. “Te acompanho, já que tua rua, a Coronel Vicente, onde moras, está a meio caminho do meu apartamento, na Tomás Flores, que é logo depois do Colégio Rosário, dos maristas, onde trabalhaste.” Feito discípulos de Emaús, seguimos cinco ou seis quadras pela Rua Voluntários da Pátria, cheia de povo a essa hora, gente indo para casa, gente ainda comprando, essa rua de lojas buscadas pela classe média baixa e trabalhadores. Ele me pergunta sobre minha volta ao Rio Grande do Sul. Digo que estou bem e feliz, que ainda não sei bem o que fazer, recém-aposentado, mas que o envolvimento na realização do Fórum Social Mundial é um bom recomeço de vida no Rio Grande, depois de mais de 13 anos em Brasília, governos Lula e Dilma. Ele me fala das suas preocupações com o mundo, a América Latina, o Brasil, a igreja, feliz com o Papa Francisco. Falamos do impeachment da Dilma, da democracia, da institu-

Irmão Antônio, Egídio e Selvino convidando o então governador Tarso Genro para participar do Encontro Fé e Política.

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MST

Antônio Cecchin lutou pelos movimentos dos Sem-Terra, incluindo a ocupação da Fazenda Anoni.

Selvino foi fundador, junto com Frei Betto, do Movimento Fé e Política. O Grito dos Excluídos, realizado todos os anos, em todas as cidades por ocasião da Semana da Paz, é o esforço deste Movimento para chegar às camadas mais necessitadas. A foto é de Porto Alegre, em 2002.

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cionalização de movimentos sociais e partidos de esquerda, especialmente o PT, da democracia, preocupações comuns. Fala com entusiasmo de Sepé Tiaraju, seu prioritário esforço na beatificação deste santo indígena que poderá ajudar a superar a visão do gaúcho guerreiro e de grande parte de suas tradições descoladas dos pobres e dos que mais sofreram e lutaram ao longo do tempo. Chegamos na Rua Coronel Vicente, em frente ao prédio onde mora, despedimo-nos com um forte abraço, eu dizendo que vamos trabalhar de novo de forma mais próxima, ele me dizendo da felicidade do reencontro de amigos e companheiros de quase uma vida. No dia 16 de novembro de 2016, estou em casa de mamãe, em Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, pronto para ir a Porto Alegre para nova reunião de preparação do FSM. Umas 10h, recebo mensagem de Egídio Fiorotti, outro companheiro de longas e antigas lutas: faleceu o Ir. Antônio Cecchin, velório a partir das 13h na casa dos maristas em Viamão (por coincidência, fiz referência a esta casa no último artigo ‘Essa Juventude!’, local do CETA, formação de jovens nos anos 1970). Quase caí de costas. Não é possível! O que aconteceu depois do dia 25 de outubro, quando ele estava tão bem, tão lúcido, arrisco dizer tão jovem, caminhando cinco ou seis quadras comigo no centro de Porto Alegre? Queda em casa, quebra da bacia, hospital, não resistiu. (Refiz a caminhada e o trajeto até a entrada do seu apartamento dia 17 de novembro, após nova reunião do FSM, desta vez acompanhado pelo companheiro Eduardo Mancuso, discípulos de Emaús, nós dois falando do Ir. Antônio, dos desafios presentes, da vida e do mundo.) Chego na capela dos maristas, Viamão, cheia de agentes de pastoral, militantes de movimentos sociais e populares, gente das CEBs e das pastorais, irmãos ma-


Renata Machado (CUT-RS)

Marcha em Porto Alegre, no Dia Nacional de Mobilização, realizada em 29 de maio de 2015.

Marcha dos Sem Terra em Porto Alegre, no dia 11 de dezembro de 2015.

Renata Machado (CUT-RS)

ristas, inclusive o provincial, religiosos(as), os ex-governadores Tarso Genro e Olívio Dutra, deputados, dirigentes sindicais, carrinheiros, papeleiros, a irmã Matilde, mais que nunca centro de todas as atenções. Foi triste e alegre. Muito triste pela partida. Muito alegre pelos cantos das CEBs na sua presença, a celebração de sua vida, ele, o santo e o profeta, como o nomeei na minha fala, e propondo ao presidente da CUT/RS, Claudir Nespolo, presente: o próximo Fórum Social Mundial deve ser dedicado a ele, Irmão Antônio Cecchin. Escrevi em ‘Ir. Antônio Cecchin, monumento vivo’, em junho de 2008: “Ir. Antônio Cecchin, marista, está completando 80 anos neste mês de junho. Sempre que nos encontramos em reuniões, assembleias, Romarias, digo para todos que ele é o nosso monumento vivo. Ele protesta. Mas digo que é um monumento que nos serve de referência, uma bússola do bom caminho”. Outro dia, o teólogo Fernando Altemeyer, em artigo no Estadão, quando da visita do (então) papa ao Brasil, citou-o como um dos membros da “escola espiritual da Teologia da Libertação, feita de larga tradição de muitos

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Irmão Antônio, entre Selvino e Ivo Fiorotti.

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patriarcas e matriarcas” (09.05.07). Em 7 de setembro de 1979, quando houve a primeira ocupação de terra no Rio Grande do Sul, nas fazendas Macali e Brilhante, em Ronda Alta, ele fez o comunicado aos que participavam do primeiro Encontro de CEBs do Estado, em São Gabriel. Lá estava ele, assim como nas Romarias da Terra, pensadas por ele, nas ocupações urbanas em Canoas, na luta com os carrinheiros e os Profetas da Ecologia, na Romaria das Águas, sempre empunhando a bandeira de Sepé Tiaraju, santo para ele e para todos nós, na luta por uma Terra Sem Males. Entre as tantas falas, histórias, lembranças, homenagens, duas chamaram especialmente a atenção. Um jovem do Levante de Juventude falou quanto o Cecchin, como muitos o chamavam no cotidiano, apoiava o movimento, o quanto ele se preocupava com os jovens nos seus encontros. Dizia: “Está tudo bem? Estão bem alimentados? Dormiram? Estão preparados para o debate?”. E a fala emocionada do Carbonera, mãos no caixão, mãos nas mãos do Ir. Antônio, como também era chamado: “Sou Carbonera. Sou carrinheiro, papeleiro e catador de material reciclável. Ele defendia os nossos direitos, dizia que éramos gente. Estava sempre do nosso lado. Ele e a Matilde, quando precisávamos, tiravam parte de sua aposentadoria para ajudar nossas lutas e nossa organização. Neste Natal, vou sentir muita falta. Ele sempre passava o Natal na minha casa.” Irmão Antônio Cecchin, monumento vivo, ontem, hoje, amanhã, sempre. Irmão Antônio Cecchin, santo e profeta. Vai em paz. Seguiremos tua luta, perseguiremos teus sonhos. Sepé Tiaraju um dia será oficialmente proclamado santo. Como tu.


Tio Ico

Meu último presente de aniversário ao Tio Ico, bordado por mim.

por Alessandra Romana Cecchin Tubino* Com Tio Ico, sempre havia conquistas a comemorar.

Tive a honra de ter sido sobrinha do Irmão Antônio, meu Tio Ico (diminutivo de Tonico como era chamado pela família). Tio Ico foi designado, desde o meu nascimento, pela minha mãe, para ser um pai do coração para mim, e assumiu essa responsabilidade com toda força e carinho, o que resultou em deixar marcas importantes e nostálgicas no livro da minha vida. * Nutricionista graduada pela PUCRS. Esteticista graduada pela ULBRA alececchin@hotmail.com

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Citar todas as marcas seria impossível em um texto, como também acho impossível descrever em palavras o que elas significam para mim. Contudo, irei me esforçar para relatar alguns acontecimentos que lembro como se fossem ontem.

Desenhos de Alessandra, quando era criança.

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Quando chegava a época de férias, lembro que receber a visita do meu tio na casa de praia era uma festa, pois era ele que me levava pra pular as ondas no mar, bem lá no fundo, onde não dava mais pé pra mim. Quando chegava a época de frio, meu tio acendia a lareira, e eu ficava olhando as chamas, comendo pinhão que ele descascava um a um e me dava, e ouvindo as histórias que ele me contava. Quando dormia em sua casa, aguardava ansiosa pelo nascer do sol, bem cedinho, visto pela sacada, saboreando um chimarrão e ao som de músicas clássicas para saudar o novo dia, era mágico! Quando íamos passear na casa de Canela (emprestada pelas Irmãs de Santo Agostinho), esperava meu tio montar o balanço na árvore, que ele mesmo fazia, com um pedaço de madeira e uma corda. Ele passava a corda nos galhos das árvores, bem lá no alto, e era uma felicidade quando ele me balançava e eu pedia: “Mais alto, Tio Ico!”. Certo dia, quando era criança ainda, recebi um presente mágico do meu tio. Ele me disse que, em uma de suas viagens, conheceu algumas bailarinas, bem pequenininhas, e se eu tocasse piano com bastante entusiasmo e concentração, elas poderiam aparecer para mim... Foi assim que ganhei de presente do Tio Ico, um dos momentos mais mágicos da minha infância. Depois de um certo tempo tocando piano, ansiosa, ele pedia para eu olhar, com atenção e rapidez, por debaixo da cama, lá do outro lado... Estavam elas, muitas pequenas bailarinas, vestidas de vermelho, rodopiando ao som da música que estava tocando. Mas não podia olhar muito, senão elas sumiam! E assim se passaram vários anos, até o momento em que comecei a descobrir que Papai Noel não existia... Um tempo depois, acabei descobrindo, também, que as pequenas bailarinas eram pequenas figuras de papel, presas, uma a uma, por um fio de nylon, e que, como ficava distante dos meus olhos, não conseguia enxergar. Meu tio sentava do outro lado da cama e, enquanto tocava piano concentrada, prendia em um dos lados a ponta do


fio de nylon, e segurava no dedo a outra ponta, movimentando-as ao som da música, enquanto eu tocava, sem eu perceber, e guardava-as no bolso quando elas “cansavam” de dançar e iam embora! Ainda ouço o tom da sua voz quando me dizia, no meio dos seus braços ou sentada em seu colo: “Tu sei il levanto ed io sono el tramonto”.

Provérbio italiano que significa “Tu és o amanhecer e eu sou o entardecer”. Nunca cheguei a estudar o que realmente essas frases significavam, apesar de gostar de ouvir, porém, hoje, entendo perfeitamente. Encontrei esses dias, em meio às recordações que meu tio guardava, uma cartinha que escrevi para ele quando estava na sétima série do colégio, que dizia o seguinte: “Cada dia que dorme é uma noite que acorda! Como: cada pessoa que morre é uma luz que se acende no céu, brilhante como a lua e forte como o sol!”. Quando fui visitar meu tio na UTI do hospital da PUCRS, terça-feira, dia 15 de novembro, às 20h30min, ele estava deitado, “dormindo” (sedado), mas ainda com sopro de vida. Foi nesse momento que todas es-

Alessandra, pequenina, e o Tio Ico.

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“Cada dia que dorme é uma noite que acorda! Como: cada pessoa que morre é uma luz que se acende no céu, brilhante como a lua e forte como o sol!”

sas marcas e muitas outras encheram meu coração de nostalgia. Se eu tivesse o poder, naquele momento, de fazer com que seus olhos se abrissem, nem que fosse por segundos, eu diria: “Obrigada!”. Obrigada, Tio Ico, por ter me proporcionado tanto carinho, dedicação, acolhimento, tudo que um pai consegue proporcionar para uma filha, e tornar minha vida mais rica de amor. Naqueles minutos em que fiquei em pé ao seu lado, rezei e pedi, com todo meu coração, força para ele voltar para o quarto, para voltar para casa, pois um homem forte como meu tio não se entrega por qualquer coisa, pelo contrário, a sua vida inteira foi uma luta constante, até o fim! Contudo, infelizmente, o tempo não me concedeu esse pedido... o pôr do sol chegou para meu Tio Ico, sem eu ter tido a oportunidade de fazer com que ele conhecesse minha filha, Alice, sem ela ter tido a oportunidade de conhecer pessoalmente esse grande homem e tudo que ele representa. Eu, agora, não sou mais o amanhecer, talvez, eu seja o meio do dia, mas deixo a Alice, como o novo amanhecer, e assim, continuar o ciclo da vida. No entanto, as lembranças permanecem, tudo que se faz permanece, e, com muito orgulho, posso afirmar que tive e tenho (lá no Céu) o melhor pai do mundo: “Pai é aquele que ama, Alessandra, com o marido protege e acolhe!”. Te amo eternamente! Alexandre e filha, Alice 48


Que orgulho, tio, tenho de ti! por Denis Cechin Filipini Teixeira*

“A vida é continuarmos uns aos outros.”

surpresa com a morte não prematura, mas repenti-

Pilar de Los Ríos

na do tio Antônio Cecchin. Rapidamente nos orga-

No dia 16 de novembro de 2016 fomos pegos de

nizamos, meu irmão, minha cunhada, minha mãe e eu, para irmos dar nosso último adeus. Viajamos de Caçapava a Viamão. De chegada, ficamos admirados com a quantidade de veículos estacionados e da quantidade de pessoas que ali estavam. Acompanhamos as homenagens num misto de emoção e saudade. Muitas pessoas contando momentos que haviam convivido com ele e como ele havia sido decisivo em suas vidas como um divisor de águas. * Enfermeira, coordenadora da ESF da Zona Sul, Caçapava do Sul

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O vô Luiz gostava muito de passarinhos. Herdei dele o amor por eles.

Essa cadeirinha foi da vó Romana sentar na hora de amamentar os muitos nenês que teve. Foi doada ao Museu Sacro, de Caçapava, que leva o nome de Padre Otávio Cechin.O baú verde, fabricado pelo vô Luiz, era para o filho Padre Otávio ir estudar no Seminário.

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Eram pessoas que falavam com o coração e de coração. Foi um momento muito lindo que jamais esquecerei. Muitos se despediram cantando, outros chorando. Fico muito orgulhosa deste tio que mudou muitas vidas, trouxe esperança, alento, fé e apoio a pessoas excluídas por uma sociedade hipócrita, que acha que o ter é melhor que o ser, quando, na verdade, somos todos irmãos. As pessoas que ele agregou, com Denis gostava de gatinhos. O tio certeza, foram guiadas pela Antônio a observa. palavra, e movidas pelo exemplo. Passos retos, longos, criatura longilínea, olhar no horizonte, semblante tranquilo, pacificador. Que orgulho, tio, tenho de ti! Espero que a semente plantada por tua pessoa dê muitos e muitos frutos, que teus ensinamentos não caiam por terra e que tuas palavras não sejam levadas pelo vento. Todos que conviveram contigo carregam a missão de germinar a tua semente, de ser um


pouquinho do que tu foste. Jamais poderão deixar morrer teus ideais de igualdade, de inserção e de não exclusão. A fé acima de tudo e a confiança em dias melhores. Querido tio Antônio! Das lembranças mais longínquas da infância, lembro de você chegar de Belina vindo de Porto Alegre, em companhia da tia Matilde para “descansar”. Tio quieto, educado, que parecia estar sempre a pensar. Contemplava a natureza como poucos, elogiava a todos por simples gestos. Falava pouco, mas sua palavra repercutia por muitos dias em meu pensamento. Palavras de impacto, com muitos significados. Fazia aniversário um dia depois do meu e sempre me dizia quando nos encontrávamos: Tu sei I’alba e al tramonto io ...“você é o amanhecer e eu o anoitecer”... Na verdade, sua luz amanhecia muitos caminhos e seu anoitecer era iluminado pela luz da lua e pelo brilho das estrelas... Quando eu crescer, quero ser um pouquinho igual a você... Um evento tão importante como é a PASSAGEM desta vida para a eternidade nos faz pensar e revisar nossa vida e o que dá sentido ao VIVER, principalmente no exercício da profissão. Sou Enfermeira. Me formei em 2001, no Centro Universitário Franciscano, em Santa Maria. Quando eu era pequena, eu ia pousar algumas noites na casa do vô Luiz, em Caçapava, que para mim era uma espécie de território sagrado. Meu avô tomava mate todas as manhãs e eu o acompanhava neste hábito, muito orgulhosa quando ele dizia: “Como ela toma mate, mesmo estando quente e forte”. Lembro de cada detalhe, dos passarinhos e do papagaio, das confecções dos terços que ele fazia com muita destreza, do conserto dos guarda-chuvas, da criação de coelhos.

Família: a mãe, Denis; o pai, Rafael, os dois meninos Ângelo e Luigi.

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Meu avô e padrinho, aposentado, ia, com a bicicleta, pelas vilas e nas casas, com a capelinha (abaixo), quando rezava o terço. Levava conforto espiritual, missão divina.

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Ele conseguiu ver todos os filhos formados. Meus pais, professores, estimularam seus filhos a estudar dando origem a duas filhas professoras e a dois profissionais da saúde, eu, Enfermeira, e meu irmão, Médico. Quando pensei em no que eu queria ser quando crescer, sempre quis alguma coisa na área da saúde. Não queria medicina, pois achava, a exemplo de meu irmão, que a medicina sugava muito tempo. A pessoa meio que perdia o domínio do seu tempo e a responsabilidade era muito grande. Sempre quis ser enfermeira desde que via a senhora que ia cuidar do vô, no tempo em que ele esteve acamado, uma senhora muito gentil, educada e amorosa. Formada em Enfermagem, trabalho na ESF (Estratégia Saúde da Família da Vila Sul). A comunidade da Vila Sul é muito carente, muito desprovida de condições de saneamento básico, as pessoas vivem de forma precária, a maioria depende de programas sociais para sobreviver, com muita desestrutura física, urbana e familiar. Infelizmente, a crise na saúde está generalizada e o caos do país reflete-se em todas as classes sociais, mas, de forma arrebatadora, nas menos favorecidas. Na unidade faltam medicamentos e insumos para rea­lizar os procedimentos com frequência. As pessoas, na sua grande maioria, possuem uma cultura curativa, pois querem exames, receitas e medicamentos a todo momento. O nosso trabalho, que é de acompanhamento das famílias para promover a saúde e prevenir agravos, acaba sendo interpelado a todo instante, pois temos que “apagar incêndios” a todo o momento, tratando indivíduos e não atendendo a comunidade. Não é nada fácil lidar com os mais diversos tipos de problemas, situações de risco que vão muito aquém do nosso entendimento, com as quais, muitas vezes de forma inusitada, nos deparamos.


Tenho sempre o meu avô Luiz como exemplo. Aqui, em Caçapava, levava às comunidades mais distantes a palavra de Deus, levando a capelinha de Nossa Senhora, rezando o terço. Com esse simples gesto, ele ajudou muitas famílias a se unirem em torno da fé. Há alguns meses, em um encontro de casais, uma senhora que faz parte do meu grupo disse que o vô Luiz ia todos os sábados de bicicleta, na vila que fica a alguns quilômetros do Centro da cidade, com a capelinha nas famílias e rezar o terço. Com o passar do tempo, essa capelinha ficou depositada em uma capela da comunidade, que fechou. Então, a senhora resolveu me devolver a capelinha para que ficasse em posse da família como lembrança. Às vezes me pergunto: o que nestes anos construí com essa comunidade, o que de fato fiz por ela? Talvez o que para mim seja muito pouco, para eles seja muito, já que, há pouco, Deus me mostrou a resposta ao me devolver a capelinha que fizera a alegria de tantas famílias, resgatando e fortalecendo a fé, com um simples gesto de ir ao encontro delas de coração aberto, sorriso franco e sincero. Meu avô foi um exemplo de ser humano: criou e educou 15 filhos em uma época cheia de adversidades. Quando engravidei do meu segundo filho, demos a ele o nome do vô Luiz, em italiano, Luigi. Nasceu no mesmo dia do aniversário dele. Não é “mera coincidência”, mas a comprovação de que “A VIDA É CONTINUARMOS UNS AOS OUTROS.”

Não por “mera coincidência”, essa capelinha a mim foi entregue: mesma vila, mesmas ruas que o vô percorria de bicicleta, percorro com as agentes de saúde, com tão escassos recursos para tantas necessidades, mas também com uma missão divina: levar saúde.

Ao lado, Luigi mostra a foto do bisavô Luiz.

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Esse é meu tio... por Roque Junior Cechin Filipini*

Olhando para o tio, percebia que aquele olhar terno era capaz de enxergar muito além daquilo que estava vendo, um ser iluminado com uma capacidade infinita de captar coisas que somente quem tem um dom acima da média poderia fazê-lo. Ele tinha uma capacidade fantástica de amealhar esperança e devolvê-la para aqueles onde essa não mais existia. O tio Antônio, sempre caminhando ao lado da tia Matilde, dedicou sua existência aos menos favorecidos. * Médico formado na UFSM, com especialização em ginecologia obstetrícia. Sobrinho de Antônio Cecchin. E-mail: roquefilipini@hotmail.com

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Sua habilidade de percepção de como poderia ajudar os excluídos foi o seu dom maior. Esse dom brotou da religiosidade e foi se aprimorando como se estivesse se especializando ao longo da vida. Seu jeito de agregar pessoas em torno de uma causa era fantástico. Em minha infância, lembro de conversas da família sobre a situação do tio Antônio que muito preocupava todos os seus irmãos e ainda mais o vô e a vó. Eu não tinha nem ideia do que se tratava, menos ainda de que o tio havia sido preso por sua posição ideológica. Essa lembrança me é um pouco vaga, pois eu deveria ter uns cinco anos. Nosso convívio com o tio sempre foi prazeroso. Sempre cheio de histórias para nos contar, era uma verdadeira referência positiva. O pai sempre teve muito apreço e respeito para com o tio e se referia a ele como “Irmão Antônio”, e a mãe carinhosamente “Tonico”. Já eu e minhas irmãs ora tio Tonico, ora tio Antônio. Na primeira vez que fomos à praia de Santa Terezinha foi em companhia do tio Tonico e tia Matilde. No ano seguinte para a praia do Cassino, lem-

O pai sempre teve muito apreço e respeito para com o tio e se referia a ele como “Irmão Antônio”, e a mãe carinhosamente “Tonico”.

Sempre conversava com a gente com um forte apelo à ecologia. Visitamos o Museu Oceanográfico de Rio Grande, os molhes da barra, fizemos a travessia para São José do Norte.

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Tio Tonico me mostrou alguns prédios de edifíciosgaragem e depois mostrava aqueles casebres na beira da estrada e comentava: “Estás vendo, Juninho, constroem edifícios para os carros, mas as pessoas moram sob pedaços de latas, lonas e papelão”.

Hoje atuo como médico, e, como meu tio, busco colocar o ser humano como centro de todas as atenções.

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bro bem da presença forte do tio. Sempre conversava com a gente com um forte apelo à ecologia. Visitamos o Museu Oceanográfico de Rio Grande, os molhes da barra, fizemos a travessia para São José do Norte. Em nossas férias da escola, eu e as duas irmãs mais velhas sempre passávamos um período em Porto Alegre com os tios Antônio e Matilde. Lembro bem que em uma dessas férias fomos a Canoas e passamos alguns dias no chalé onde o tio morava e fazia um trabalho unindo aquelas pessoas que moravam entre um alambrado e a rua em casebres, trabalhava na conscientização deles para que conquistassem um terreninho, local onde viria a surgir a Vila União Operária e Santo Operário. Muito me marcou, numa das primeiras idas a Porto Alegre de que tenho lembrança, tio Tonico me mostrou alguns prédios de edifícios-garagem e depois mostrava aqueles casebres na beira da estrada e comentava: “Estás vendo, Juninho? Constroem edifícios para os carros, mas as pessoas moram sob pedaços de latas, lonas e papelão”. Também lembro de ter andado de bonde com o tio, que me pegou no colo para subirmos no bonde que não chegava a parar totalmente para o embarque. O tio sempre deu um sentido religioso a tudo que fazia. Tinha posições fortes, nunca foi de falar muito, mas tudo que falava tinha uma conotação que colocava o ser humano como centro de todas as atenções. Fazia brincadeiras com situações do cotidiano. Certa vez, na hora do almoço, minhas irmãs choramingando porque queriam acampar e o pai não queria. O tio agiu como mediador e falou para elas: “Querem acampar, ó” e levantou a toalha da mesa fazendo uma barraquinha, descontraindo as incomodadas. O tio sempre encontrava brincadeiras, ironizava com algumas coisas do dia a dia. O seu convívio sempre foi muito agradável em nossa infância, adorávamos suas histórias. Admirávamos sua luta pela canonização do Sepé Tiaraju exaltando a Terra Sem Males, defendendo a interação dos índios com a natureza. Sem dúvida, era um ser muito à frente do seu tempo, que idealizava e lutava por um mundo menos desigual, onde todos tivessem a chance de um “lugar ao sol”. Uma pessoa desprendida de coisas materiais, que não queria nada


para si e, sim, ver as pessoas felizes. Esse desprendimento de coisas materiais sempre exerceu sobre mim uma forte admiração, pois é o oposto do que somos e de como agimos. Sou casado com Marinês, minha esposa é fisioterapeuta e tenho duas filhas, Ana Luiza, minha filha mais velha, que é médica, e a Renata, que está concluindo o ensino médio. Minha esposa teve um problema grave de saúde e precisou morar um tempo em Porto Alegre para se tratar. Fase difícil em nossas vidas. Ana Luiza em Santa Maria, estudando, e Renata, nossa criança, tudo muito incerto. Fomos acolhidos pelos tios no apartamento da Coronel Vicente. Tenho certeza que todo aquele carinho, ternura e atenção que recebemos dos tios ajudou na recuperação. Nas últimas vezes em que vi o tio, ele continuava firme na defesa daquilo que sempre acreditou. Seu entusiasmo e vontade de continuar o trabalho com a disposição de um jovem muito me impressionaram. Ele me afirmou que havia muito trabalho a ser feito e que nem poderia mais se dar o direito de passar alguns dias em Caçapava no “Sítio do Seu Luís”. Nas poucas vezes que vinha a Caçapava, logo tinha que voltar ao encontro de seu povo, os catadores, os quilombolas, os humildes, enfim, todos aqueles que nesse sexto sentido do tio precisavam não perder a esperança. Com a passagem do tio, os excluídos perderam um pai ‘carinhoso’ que sempre preferiu ensinar a seus filhos pescar a dar o peixe. Pescar sonhos, pescar esperanças, enfim, aquilo que for necessário para banquetear dignidade. Com certeza, o tio está no oriente eterno zelando por seus escolhidos. Esse que é meu tio, na verdade sempre foi o tio, o pai, o irmão de muitos. Se a humanidade for presenteada com mais tios como este ou talvez, melhor pensando, se cada um de nós tivermos um pouquinho de Tio Tonico, acho que poderíamos acertar o passo rumo à “Terra Sem Males“.

Esse que é meu tio, na verdade sempre foi o tio, o pai, o irmão de muitos. Se a humanidade for presenteada com mais tios como este ou talvez, melhor pensando, se cada um de nós tivermos um pouquinho de Tio Tonico acho que poderíamos acertar o passo rumo à “Terra Sem Males”.

Eu, Marinês, minha esposa, e as duas filhas, Ana Luiza e Renata.

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Um Profeta do nosso tempo por Maria Carpi*

Sabemos que o profeta vai além do seu tempo e prediz o futuro, mas afirmamos que Antônio Cecchin foi profeta do nosso tempo. Aqui plantou e colheu. E mais, ensinou a semear. Não profetizou uma pátria longínqua, um paraíso compensatório para o depois. Mas uma morada para o homem aqui e agora. Uma morada para os mais desprotegidos, sua grande paixão. Um trajeto marcado por quem tem os pés na terra. Começou, conduzido pelo apelo que lhe ardia o coração desde o caminho de Emaús, com a simples visão do repartir o pão. Sim, ele viu o Rosto de quem se deu a conhecer no repartir o pão.

* Defensora Pública aposentada e Poeta.

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Desde o magistério no Colégio Rosário, desde o nascimento da JEC e JUC, desde seu Bacharelado e Licenciatura no Curso de Ciências Jurídicas e Sociais, desde sua ida à França para aprimorar seu método de VER – JULGAR E AGIR, Antônio estava à procura da grande descoberta: a catequese Kerygmática, “centralizada”, como ele afirma, “no mistério da Morte e Ressurreição de Cristo”. “Era a renovação em marcha”, embrião do documento da CELAM, quando da reunião dos bispos em Medellín. E como – Antônio bem sabia – as grandes revoluções começam com pequenas coisas, iniciou ele com a elaboração das Fichas Catequéticas, a serviço de um processo de libertação, com apoio da CNBB. Não se pode mencionar Francisco de Assis, sem Clara. Nem Tereza d’Ávila, sem João da Cruz. Assim, falar em Antônio é também falar em Matilde, sua irmã. O masculino e o feminino irmanados à construção do Reino aqui e agora, entre nós. E o mais bárbaro obscurantismo se instalou no Brasil com a Ditadura Militar. As Fichas Catequéticas foram o pretexto para arrastá-lo por duas vezes à prisão. Foi a glória do discípulo de Cristo. Saiu mais fortalecido do que nunca em seus propósitos de comungar o pão da vida com os mais pobres. Ele e Matilde se envolveram de corpo e alma com a criação das Comunidades Eclesiais de Base, definidas como um novo jeito de ser Igreja. Depois, surgiram Os Fornos Comunitários e o Movimento dos Papeleiros e Catadores do Lixo, esse com seu primeiro centro na Ilha Grande dos Marinheiros de Porto Alegre, num galpão rústico para a reciclagem. E Antônio, Profeta dos Pobres, torna-se o Profeta da Ecologia. Quem o protege das intempéries e desmandos do Poder? A Nossa Senhora Aparecida, que sempre emerge das águas, catada pelos papeleiros do lixo sem serventia, pedaço a pedaço, enegrecida, pequenina, trazendo nas entranhas da luz Aquele que nos ensina a repartir o pão. Arte de Teresa Reckziegel de Lucena

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Pai e mĂŁe na Missa de 60 anos.

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Família de Luiz e Romana Cecchin 5 de fevereiro de 1981 Luiz e Romana completaram 60 anos de ca­ sados e, pela terceira vez, nesses 60 anos, con­ seguiram reunir seus 15 filhos, mais os netos, genro e nora, em Caçapava do Sul. O próprio Bispo da Diocese de Santa Maria, Dom Ivo Lors­ cheiter, celebrou a Missa festiva, destacando a FIDELIDADE que mantiveram.

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15 filhos, todos professores. Mas este não é o único fato curioso: se dependesse dos pais, todos seriam religiosos. Momentos mais felizes dos pais nesses 60 anos: nascimento dos filhos e a entrada deles para vida religiosa. E os momentos de maior tristeza e desilusão: quando algum dos filhos desistia da vida religiosa. Por ocasião dos 35 anos de casados, em 1956, foi registrado um período dos mais felizes: dos 15 filhos, nove religiosos.

35 anos de casamento: nove filhos religiosos.

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Por ocasião da Missa celebrando 60 anos de casamento, foi lembrada a origem dos pais, com as seguintes palavras do Irmão Antônio:

Quatro filhos optaram pela vida religiosa Marista.

MIGRANTES! Nasceram filhos de migrantes que os latifundiários e industrialistas da Itália despejaram, a fim de viabilizar o capitalismo na Itália. Passaram por Canabarro, Arroio Gran­de, Caçapava. Foram os CAMINHOS SEGUIDOS em busca da Terra Sem Males. Nunca foram proprietários. Traba­ lhadores rurais, foram SEM-TERRA e SEMCASA. A Bíblia conta que, na apresentação de Jesus, no Templo, havia um casal de velhos, Simeão e piedosos, esperando a Libertação. Não morreriam sem ver o Libertador. E Simeão reconheceu o Libertador na criança que Maria e José traziam nos braços. Assim, Luiz e Romana, em idade avançada, veem acontecer, a partir do Concílio, depois em Medellín e em Puebla, a Igreja da Libertação, a Igreja dos Pobres com a qual sempre sonharam.”

Irmão Antônio fala na Missa de celebração do 60º aniversário de casamento de seus pais.

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A INFÂNCIA

O pai com o Irmão Marista, Irmão Theobaldo, encarregado da chácara.

O pai em atividade, na frente da camionete dos Irmãos Maristas.

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Na chácara Nossa Senhora de Lourdes, de propriedade dos Irmãos Maristas, Romana e Luiz criaram seus 15 filhos. Luiz era empregado, com o cargo de capataz dessa chácara que abastecia um grande internato do Colégio Santa Maria, com leite, banha, ovos, galinhas, etc. Nessa casa (foto abaixo) a família viveu por 33 anos, até o Pai, Luiz, se aposentar, quando o pai e a mãe foram morar com o filho Padre, em Caçapava do Sul. Ali, o pai viveu mais 33 anos e a mãe mais 23 anos. Ele faleceu com 90 anos e a mãe com 80 anos.

São poucas as fotos da infância do Irmão Antônio. Na página ao lado, ele, no colo da mãe, com um ano de idade. A presença da avó materna faz lembrar o afeto do Irmão Antônio por ela. Quando ela faleceu, em 1942, no Juvenato, recebeu a notícia através de carta, com tarja preta, e lembra que chorou muito, por muitos dias. O Irmão Antônio é o quarto dos filhos homens. No ano de 2007, a casa da família foi visitada pelo Irmão Antônio. Na janela, à direita ficava o quarto dos pais, onde nasceram 13 dos 15 filhos. A mãe foi assistida, em casa, pela mesma parteira, Dona Rosa, sem precisar nem de hospital e nem de médico.


(Foto ao lado) Antônio, com um ano de idade, no colo da mãe, e a presença da avó materna. Acima, quando já era um menino (entre os maiores, o segundo, da esquerda para a direita). Matilde, está no colo da irmã mais velha.

A casa paterna, em Santa Maria, em 2007.

Nesta data da visita de Antônio à casa onde nasceu, funcionava uma creche e..., por coincidência, no quarto dos pais (janela à direita), onde nasceram 13 filhos, era o berçário.

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ENTRADA PARA A VIDA RELIGIOSA Antônio Cecchin concluiu o curso primário em Santa Maria. Iniciou a formação para a vida religiosa aos 9 anos de idade, quando entrou para o Juvenato Champagnat, em Porto Alegre, onde já estudavam dois irmãos mais velhos para serem Maristas. Falavam muito sobre o enorme Rio Guaíba e das pescarias que realizavam. Esse foi o atrativo que o fez feliz em acompanhá-los.

“Aos nove anos vim para Porto Alegre, não para ser Marista, mas para ver o Rio Guaíba.”

Obra de Esther Bianco.

“O ESPÍRITO VEM PELAS ÁGUAS” Marcelo Barros

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Vida religiosa consagrada

Champagnat (Espanha/Goyo Chambery).

A vocação à vida religiosa é

a minha terceira vocação: a) vocação à existência b) vocação à vida cristã c) vocação à vida religiosa.”

Desde a infância, o chamado.

Irmão Antônio Cecchin, em 2/11/1960 Colégio San Leone Magno/Roma

Se eu tivesse que recomeçar de

novo, eu teria feito uma opção pela vida religiosa. Sinto isso através da minha primeira comunhão e de certos momentos da minha infância... Meu ideal é ser religioso totalmente dedicado à causa dos últimos.” Irmão Antônio, em 2007.

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“ Champagnat (Beatificatione).

O terço sempre acompanhou Irmão Antônio. Acima, terço de contas feitas de galhos de cinamomo, foi doado ao Irmão por Elias, mendigo, morador debaixo do viaduto do Trensurb.

Embora mal me comparando ao profeta que se disse predestinado por Deus desde o ventre materno, comigo aconteceu algo semelhante porque, já mesmo antes de eu nascer, andava envolvido com clima marista através de meus pais Luiz e Romana. Como pequenos agricultores pobres, não lhes foi suficiente uma vida inteira de duros trabalhos para poderem adquirir um pedaço de terra sequer, para prover a sobrevivência familiar. Logo que casaram, tiveram que buscar emprego junto à Chácara Nossa Senhora de Lourdes, propriedade do colégio dos Irmãos Maristas na cidade de Santa Maria. Logo se tornaram administradores dessa mesma chácara, tendo às suas ordens 10 outros empregados. Não raro me pergunto a mim mesmo: Será que eu poderia ter sido outra coisa na vida do que religioso marista? Será que foi a aparente loteria da vida que me fez nascer e viver marista até hoje, completados 87 anos, respirando espiritualidade marista desde zero anos até os 87? Na transparência dos fatos e acontecimentos de minha trajetória terrestre, só posso ler que Deus me predestinou desde antes do meu nascer para Irmãozinho de Maria. Então: ‘Ai de mim se não evangelizar os pequenos! Ai de mim se não os educar para a militância em favor dos direitos humanos. Ai de mim se não amar e fazer com que amem também Maria e seu Filho Jesus, de um amor de tipo conjugal como Deus me ama, e não só a mim mas a todas as pessoas.’” Antônio Cecchin, em entrevista ao IHU

O Divino está sempre em ação nas Comunidades de Base.

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Em 1943, com 16 anos de idade, torna-se religioso Marista e troca o nome. Passa a chamar-se Irmão Lourenço José. Foi um momento de maior felicidade para os pais assistir à “vestição” de entrada de mais um filho na vida religiosa. Com muito esforço, com muitas dificuldades financeiras, os pais conseguiram viajar de Santa Maria até Porto Alegre. Trouxeram consigo o filho nenê, que não pagava passagem. Os demais já estavam em Porto Alegre, ou já Maristas ou se preparando para ser. O cerimonial, comovente, iniciava com a invocação ao Divino Espírito. Seguia a bênção das batinas com a oração: “Ó Deus fidelíssimo...que


tendes prometido aos vossos servos o vestido da salvação e a roupa fulgurante da eterna felicidade... abençoai estas vestimentas, símbolos da humildade do coração...e do zelo pela formação cristã da juventude....e que vossos servos desejam revestir...” Através da carta do pai sente-se o que foi esse fato da entrada para a vida marista: “Esta é a primeira vez que te escrevo depois que és Irmão, tanta é a minha alegria que ao escrever-te não posso deixar de fazer cair algumas lágrimas, ó, que alegria, que consolação, que felicidade para teus queridos pais, a cada instante lembro-me, mesmo de noite, quando me acordo, logo estou com aquele pensamento daquele bendito dia em que pudemos assistir a tomada do hábito, quando abracei-te em meu coração pela primeira vez revestido com a Santa Batina...”

Última vela, com a qual Irmão Antônio rezou na madrugada do dia 10 de novembro de 2016.

Santa Maria, 5 de abril de 1943 Em 1943, Irmão Lourenço José, com 16 anos (primeiro, de hábito à esquerda), recebe a batina com a presença da família.

Seu pai revela as emoções daquele momento, em carta (acima).

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Após cinco anos sem visitar os familiares, eram feitos os votos perpétuos, com o recebimento da cruz marista.

O ano da tomada do Hábito era de formação no Noviciado. Concluía com a renovação temporária dos votos de Pobreza, Castidade e Obediência e recebia o CORDÃO que passava a usá-lo por cima da batina. “O Senhor vos cinja do cordão da pureza e extinga em vós o fogo da concupiscência a fim de que conserveis sempre a virtude da castidade e continência.” Novamente, temos o relato dessa cerimônia através da emocionante carta do pai: “...É com lágrimas nos olhos que te escrevo, meu caro filho, não de tristeza, mas de alegria, como não posso ir eu abraçar-te como no ano passado que tive a dita de assistir a tão comovente função, como não seria maior ainda minha alegria, poder também este ano assistir naquele dia tão Santo, caro filho, não é que me falte a boa vontade, mas me falta os meios mais necessários, isto é, o dinheiro, muitíssimo teria desejado de ir e sempre tive esperança do (abono familiar), mas até hoje não veio, assim faremos este sacrifício de ficar em casa...te peço muito insistentemente que não deve faltar aquela alegria tão santa como estivessem presentes teus queridos pais...” (Santa Maria, 22 de janeiro de 1944)

A cruz Marista era carregada no peito, na frente, portanto, abrindo caminhos para chegar a outras cruzes. Ela significa o compromisso de seguir ao encontro de tantas outras cruzes, principalmente, na direção dos mais pobres e dos mais necessitados.

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Ao mesmo tempo que recebia a cruz, com um círio na mão, fazia a consagração a Deus, ligando-se ao Instituto dos Irmãos Maristas, pelos três votos de Pobreza, Castidade e Obediência, por toda a vida. “Santíssima Trindade, movido pelo desejo de trabalhar eficazmente em minha salvação e na do meu próximo... faço voluntariamente os três votos...”

“ QUEM QUISER SER MEU DISCÍPULO, RENUNCIE A SI MESMO, TOME A SUA CRUZ E SIGA-ME”

VIDA CONSAGRADA E O COMPROMISSO DE IR EM DIREÇÃO A TODAS AS DEMAIS CRUZES

(Mt 16,24)

Da mulher pobre Dos mendigos Dos índios Kaigang Dos presidiários

Dos trabalhadores Dos missioneiros Dos Sem-Terra

Dos posseiros urbanos

Para ajudar os sofredores a descerem da cruz

Arte de Esther Bianco.

Dos índios paraguaios

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“Não há Páscoa da Ressurreição possível, sem antes passar pela Paixão e Morte.” Irmão Antônio, no final da palestra sobre o idoso, na Unisinos.

Páscoa é a síntese do Cristianismo. Significa passagem. Na Bíblia, a presença de Deus na libertação do Egito e entrada na Terra Prometida foi a Páscoa. A Humanidade na passagem da miséria à posse do necessário realiza a Páscoa.

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No desenho acima, o Ressuscitado, na forma de flecha que sai do mundo da morte, para o qual entrou a partir da sua encarnação, cuja culminância foi sua Paixão e Morte, “desceu aos infernos”, ao mais fundo da iniquidade humana para fazer EXPLODIR de dentro todos os tipos de mortes e dali ressuscitar. Este cartaz é a síntese do livro S’imbora, 5º volume das Fichas Catequéticas, para o Ensino Médio.


Documentos de identificação de Antônio Cecchin e os diversos momentos deste jovem religioso que assinava Irmão Lourenço José.

JEC

Juventude Estudantil Católica por Antônio Cecchin*

Terminado o Escolasticado, fui nomeado para o Colégio Nossa Senhora do Rosário, onde comecei a lecionar, no ano de 1946. Professor titular de uma das primeiras séries ginasiais, em turno único de 8 horas diárias, ministrando as 10 disciplinas do currículo, a única folga era às quartas-feiras de tarde, quando não havia aulas. Nessa tarde, por solicitação do Pe. Edmundo Kunz, então um dos capelães do Colégio, ajudava na reunião de Benjamins e Aspirantes da Acão Católica. * Trecho de texto “Novos Rumos”, de Antônio Cecchin, de 2002.

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Em 1951, grupo de JEC no Colégio Rosário

No ano de 1950, o mesmo Pe. Edmundo Kunz, então Pároco da Igreja do Rosário, no centro da cidade, me pede que, com uma equipe de cinco jovens da Juventude Masculina Católica (J.M.C.– Ação Católica dos jovens de 14 anos em diante), siga para o Rio de Janeiro para uma reunião nacional de jovens com seus assistentes e adjuntos do Brasil. Vários Estados tiveram representação. O encontro foi no mosteiro de São Bento. Por sugestão de D. Helder Camara, Assistente Nacional, mudamos então da Ação Católica de linha italiana, cujo ideólogo era Monsenhor Luís Civardi, para a de linha francesa, cujo ideólogo era Mons. Cardiyn. Nossa JMC passou a ser JEC, ao lado da JOC, JAC, JIC e JUC. Na JEC, a grande novidade era agora a Pastoral específica do meio estudantil e particularmente o método

VER, JULGAR e AGIR inventado por Cardiyn e sua JOC.

Sob a assistência nacional de D. Helder, a Ação Católica especializada passou a dividir o Brasil em Regionais. Essa mesma divisão foi aproveitada depois pela própria CNBB, criada pelo mesmo D. Helder a pedido do Papa João XXIII. 74


O Colégio Rosário e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul ocupavam o mesmo prédio.

Leituras sobre a nova realidade brasileira em cadernos de educação popular.

Desde o nascimento da JEC no Rio Grande do Sul, passei a funcionar no Regional como o Adjunto Regional ao lado do Assistente Regional, sempre um sacerdote. Na utilização do método VER - JULGAR e AGIR a Ação Católica Especializada, particularmente a JEC e a JUC, passou a ser sempre mais exigente em relação à análise da realidade que procurava ser sempre mais profunda e sempre mais abrangente. Eis senão quando, via JEC latino-americana, cuja sede era já no Chile, já no Peru, conhecemos uma chilena de nome Marta Haernecker que fora aluna de Althusser, renomado marxista francês, professor do Collège de France. Marta nos alimentava com os seus livrinhos em que nos destrinchava o marxismo. Fazia certas distinções em Marx, tais como uma metafísica, uma ideologia e um instrumental de análise da realidade. Este último considerado pela Marta como o mais global e, por isso mesmo, o mais científico. Dentro de uma coerência total, os jecistas e jucistas que em seu agir queriam ser sempre mais eficazes, agora não 75


Panfleteando à noite com traje civil emprestado pelos jovens da JEC.

Piquenique com a JEC, em 1949.

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precisávamos mais deixar de ser cristãos adotando um instrumental científico de análise até então propriedade exclusiva de ateus materialistas, como se afirmava a respeito dos comunistas ou marxistas. Ciência é ciência e o cristianismo não pode ser obscurantista. Entramos assim no marxismo pela porta dos fundos, isto é, numa coerência total com o método VER - JULGAR - AGIR, ou melhor, pela porta do instrumento global de análise da realidade descoberto por Marx. Sempre mais eficientes, os jecistas e jucistas na análise da realidade (VER) procuravam também ser mais eficientes no JULGAR e no AGIR. O JULGAR, que acontecia no segundo momento do método, era até chamado de VER IDEAL, porque consistia em encostar a realidade na Bíblia, ou melhor, em procurar adotar o olhar de Jesus de Nazaré sobre o nosso cotidiano. Nesse momento do JULGAR, a Ação Católica especializada se beneficiou da Renovação Kerigmática ou Cristocêntrica, isto é, a Bíblia vista como HISTÓRIA DA SALVAÇÃO. A expressão “processo histórico” entrou então para ficar. Nossa realidade atual vista como um processo histórico na continuidade de um processo histórico de salvação iniciado na Bíblia e cujo ponto culminante é a Morte e Ressurreição de Cristo. O mote principal era sermos pessoas com CONSCIÊNCIA HISTÓRICA, assunto, aliás, bem desenvolvido em nossos folhetos pelo Pe. Jesuíta Henrique da Lima Vaz. Em continuidade ao JULGAR, nosso AGIR também teve um salto qualitativo. Cresceu de tal modo que se transformou em REVISÃO DE VIDA. De pequenas ações no meio estudantil, tais como o serviço de ajuda a colegas mais atrasados, passamos a organizar a classe estudantil influenciando diretamente os organismos dirigentes. Inven-


tamos a Semana do Estudante. Conquistamos direções de órgãos estudantis, tais como a UGES (União Gaúcha de Estudantes Secundários), a UEE (União Estadual de Estudantes), a UBES (União Brasileira de Estudantes Secundários) e a UNE (União Nacional de Estudantes). Funcionei como Adjunto de JEC na Equipe Regional que abrangia Rio Grande do Sul e Santa Catarina, até que, logo após o Concílio Vaticano II, a JEC foi supressa pela CNBB. Foram anos de muita alegria e de um trabalho intensíssimo, acompanhando assessores e leigos de primeira grandeza, de JEC e JUC, tais como Frei Mateus Rocha, Frei Xico, Dom Alberti, que depois foi bispo de Apucarana, Dom Koaik, atual bispo de Piracicaba, Frei Betto, o Betinho, Luís Alberto Gomes de Souza, Luís Eduardo Wanderley, Pedro Ribeiro de Oliveira, etc. etc. O método VER, JULGA R e AGIR abriu-nos a porta de uma análise da realidade sempre mais abrangente e científica que nos habilitou para, mais tarde, em Medellín, entrar em cheio na metodologia da Teologia da Libertação.

A assinatura da maturidade, no cargo de Secretário da Faculdade de Filosofia.

Em 1952, com o reitor, Irmão Otão, e Irmão Rúbio, diretor do Colégio Rosário.

Equipe central da JEC em 1956.

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Os ideais da JEC Texto extraído de Boletim de Estudos Maristas, março de 1959 (foto acima).

* Na estrutura do próprio Colégio Rosário, Marista, na tarde sem aulas, quarta-feira, Irmão Antônio, ainda com seu nome religioso, Irmão Lourenço José, inicia sua militância que o levará à Teologia da Libertação.

por Ir. Lourenço José*

Em obediência a uma ordem do Irmão Pro-

vincial, aqui estaremos todos os meses para coordenar o movimento de JEC dos nossos colégios. Esta seção pertence a todos os Irmãos que trabalham no movimento e a todos aqueles que nos quiserem auxiliar. Por isso, todos têm não só a liberdade – ouso dizer que até mesmo a obrigação– de nos enviar suas críticas, sugestões e consultas. Com isso, temos a certeza, estarão prestando um serviço incalculável à causa das almas.

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MODALIDADES DE EDUCAÇÃO

O vocábulo “educar”, segundo uns, liga-se a educare (conduzir), conforme outros, a educere (fazer sair). Os dois étimos traduzem admiravelmente os dois tipos de educação com que nos defrontamos. O primeiro, educare, se traduz por aquilo que podemos cognominar de paternalismo; sistema que consiste em conduzir, guiar, ou seja, ir à frente e trazer após si, de reboque, as personalidades em formação. Nesse sistema, o educador é a peça principal, ocupa o centro, é o móvel por excelência. Sistema que não cria convicções nem forma personalidades, encontra-se hoje inteiramente superado. É o método dos calouros em matéria de educação. Até certo ponto mais fácil, porque se caracteriza pela improvisação. O segundo tipo de educação, conceitualmente ligado a educere, consiste em despertar as virtualidades do educando, fazendo com que seja um educador de si mesmo. Trabalho bem mais delicado, exige que, ao lado da cultura e da técnica profissionais, o educador possua uma alma de artista. Com efeito, que arte pode haver no trabalho mecânico da fabricação de uma estátua de gesso com forma pronta? Arte existe no desbastar e no cinzelar uma pedra tosca para transformá-la numa imagem. Enquanto uma educação é um trabalho de fora para dentro, a outra é um trabalho de dentro pra fora. Enquanto uma se caracteriza pelo autoritarismo, a outra é suasória, forma convicções e desperta responsabilidades, que, por sua vez, vêm calcadas em experiências que o próprio educando vai fazendo. Aquele primeiro tipo, obsoleto, retrógrado, inteiramente superado; este, atual, moderno, progressista. Lá, o educador ocupa o grande plano, dentro da tela; aqui, o enfoque todo se faz em função do educando. Se tivéssemos tempo e espaço, poderíamos nos estender indefinidamente sobre esse assunto

A Congregação dos Irmãos Maristas oficializou o movimento da Juventude Estudantil Católica e incentivou os religiosos a serem atuantes na formação de leigos para a transformação social, construindo assim o Reino de Deus.

Em direção a Buenos Aires, para o encontro da JEC em 1950.

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tão fascinante, principalmente se o levássemos para o terreno prático, contrastando os funestos efeitos do paternalismo com os maravilhosos efeitos da educação pela liberdade e responsabilidade.

A JEC É TODA UMA PEDAGOGIA

Grupo de JEC do Colégio Rosário, em 1954.

Em nosso modesto entender, a JEC – compreendidos o seu método, a sua técnica, a sua formação, o seu apostolado –, é o sistema pedagógico por excelência dos tempos atuais e que desenvolve, ao máximo, as virtualidades do educando. A JEC faz do educando um educador de si mesmo, e um educador dos que com ele convivem as 24h do dia. O militante de JEC torna-se, por força do sistema, um preocupado consigo e com os outros e, por esse fato, toma sempre uma posição.

ADAPTAÇÃO

Hoje em dia, não existe alguém que duvide da absoluta necessidade da adaptação. Fala-se disso de boca cheia por todos os cantos e recantos. De uma vez por todas, deu-se um golpe de morte na rotina, esse monstro que deixa tudo a perder. A grande arrancada rumo a essa adaptação dêmo-la, sem dúvida nenhuma, ao imortal Pio XII, o Pontífice de saudosa memória, que nos colocou no dealbar de uma era inteiramente nova para a Igreja e para as almas. Uma pergunta que muitas vezes deixamos de nos fazer, ou que talvez não levamos até as suas últimas consequências é a seguinte: No setor da educação e da conquista das almas será que estamos nos adaptando? Será que não cristalizamos dentro de um sistema que talvez esteja há muito superado?

Já havíamos lido alhures aquilo que encontramos impresso na Primeira Circular do recém-eleito Irmão Superior Geral: “A adaptação é uma forma de fidelidade; o imobilismo é uma forma de infidelidade” (circular, p.218). De duas, uma: ou existem novas técnicas na educação e na conquista das almas, adaptadas à menta80


lidade da hora presente, ou então esses setores são inteiramente estáticos e sempre o foram. Aos que se inclinam pela segunda alternativa, nada mais temos a dizer. A única coisa de bom que podemos dizer por eles ainda é rezar uma prece para que Deus os retire o mais cedo possível deste mundo e os haja em seu Reino. Aos outros, aos que não querem ser infiéis à sua vocação, a Santa Madre Igreja, os superiores acenam para a Ação Católica como a solução do momento. Textualmente, aí estão alguns passos das conclusões do último capítulo geral a respeito: “A Ação Católica é a primeira organização paraescolar numa escola. Na distribuição dos encargos, escolares ou outros, que se leve em consideração a sobrecarga que impõe a direção desse movimento. Como melhor preparação à direção dos grupos de Ação Católica, os Irmãos deveriam participar, se possível, dos Cursos de Ação Católica. Devem também poder acompanhar as organizações do movimento, tendo para isso o cuidado de se munir das autorizações necessárias. Os Superiores deverão, com alegria, favorecer as iniciativas louváveis. O Irmão Diretor deverá ser o primeiro a se interessar pela Ação Católica; deverá preocupar-se para que ela funcione bem e deverá animá-la na medida de todas as suas possibilidades” (circular 8-121958 – p. 289).

Entre 1959 e 1960, Irmão Lourenço, com Bolsa de Estudos em Paris, pôde visitar outros países e conhecer novos colegas Maristas.

NOSSA RESPONSABILIDADE

Desconhecer as enormes possibilidades da JEC, nesta altura, é ignorância culpada, porque meios existem e numerosos, de se instruir a respeito do assunto e de constatá-lo na prática. Afirmo isso com a certeza absoluta de que um dia (oxalá não tarde para o bem das almas) todos haveremos de lastimar o tempo perdido com paliativos em matéria de educação, quando tínhamos ao nosso dispor o método por excelência.

” 81


“Matilde, é muita coisa que me passa pela cabeça neste momento. Não estou sereno para dizer algo mais elaborado. Só sei que estou muito; ficamos muito tristes. Tenho uma imagem muito forte do meu pai, mas que não conflita com a imagem do Antônio, o meu outro pai. O meu pai Pedro me conduziu pela mão para o meu primeiro emprego e o meu pai Antônio me fez reconhecer o valor do nosso próximo e querer o seu bem...”

Alberto Becker

E-mail de Alberto H. Becker para Matilde Cecchin quando recebeu a notícia da morte de Antônio Cecchin.

O povo pobre do Brasil

1

por Alberto Henrique Becker e Laura Petit da Silva 2 1) Texto lido pelos autores durante a abertura da 30ª Edição do Curso de Verão, promovido pelo Centro Ecumênico de Serviço à Evangelização e Educação Popular, no Teatro do Tuca, em São Paulo, no dia 9 de janeiro de 2017, quando parte da programação de abertura do evento foi dedicada ao Irmão Antônio Cecchin, falecido em 16 de novembro de 2016. 2) Alberto Henrique Becker, engenheiro mecânico, hoje com 68 anos, entre 1962 e 1966 foi militante da JEC Juventude Estudantil Católica no Rio Grande do Sul;

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lutou contra a ditadura militar e esteve preso de maio de 1970 a novembro de 1977. Laura Petit da Silva é casada com Alberto Henrique Becker e é professora aposentada; durante a sua juventude, também militou em movimentos de Igreja e movimentos contra a ditadura militar. Três dos seus quatro irmãos foram mortos na Guerrilha do Araguaia - Lucio Petit da Silva, Jaime Petit da Silva, até hoje desaparecidos, e Maria Lucia Petit da Silva, participante da guerrilha cujo corpo foi achado pelos familiares de mortos e desaparecidos políticos em 1991 e identificado somente em 1996, 5 anos depois.


Antônio Cecchin, como Dom Paulo Evaristo Arns – Arcebispo Emérito de São Paulo –, é daquela estirpe de pessoas cujo luto extrapola o círculo familiar e, como ondas de um lago, acaba alcançando você.

O meu primeiro encontro com o Antônio Cecchin ocorreu por volta dos meus 15, 16 anos, entre 1964 e 1965, no Colégio Champagnat. Eu era membro da JEC - Juventude Estudantil Católica, e o nosso caderno tinha o título de ”Justiça Social”. Era um dia de verão, ensolarado e quente de Porto Alegre. Depois deste primeiro encontro seguiram-se centenas de outros; em alguns momentos, eles foram quase que diários. Eram os tempos em que a serpente já se desfizera dos disfarces do terço e do manto azul e não temia mais mostrar a sua verdadeira pele, a sua verdadeira cor, e principalmente, a que viera. Porém, estes tempos sombrios não intimidaram Antônio de criar as Fichas Catequéticas, o instrumento para promover uma nova catequese, uma catequese libertadora. E foi neste tempo que num dia, enquanto eu montava as Fichas e ele grampeava os jogos, que disse: “Sabe, Beto, está na Bíblia: o nosso Deus sempre esteve e sempre estará ao lado do seu povo, porém todas as vezes que este povo, o povo escolhido por Ele oprimir outro povo, este povo experimentará a sua ira, e olhe que Ele não é vingativo, Ele é justo!”.

Alberto Becker, 1969

Foto em que estou com a minha mãe e meu pai, tirada pouco antes do falecimento dele, em 1974. O local é o Presídio Político do Barro Branco, em São Paulo, capital. A criança no colo da minha mãe é a filha do Ernesto, a Adriana, que então devia ter uns dois anos.

Mais à frente, já em 1969, acreditando em outros caminhos para mudar a nossa realidade, deixei Porto Alegre e fui para São Paulo e depois para o Rio de Janeiro, onde, em maio de 1970, fui preso e assim fiquei até novembro de 1977. Em Porto Alegre, Antônio foi preso duas vezes, em 1969 e 1972. Arrisco dizer que devemos ter feito descobertas certamente comuns, porque comuns foram as nossas experiências, as mesmas que muitos passaram, mas que, como Cristo, não lhes permitiram que delas saíssem vivos. 83


... E disto extraio que, ao conhecimento, à firmeza dos valores é preciso associar o anúncio da palavra e a persistência do fazer. Antônio mostra-me em que e por que ter esperanças novamente.

Alberto e Laura, em abril de 2016.

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No que me toca, digo que foi um duro teste para as minhas certezas, pois, afinal, que humanidade é esta que não hesita de forma deliberada em submeter o seu semelhante à dor e à humilhação prolongadas? Sempre comparo aos animais, que matam para se defender ou alimentar e deles não se tem qualquer relato que sobre o animal abatido, com a pele rasgada, o vencedor descanse a sua pata sobre as suas feridas somente para vê-lo sofrer, definhar, implorar por uma morte mais rápida. Foram horas em que me perguntei: onde estás, meu Deus? Em que e por que ter esperanças? Já em liberdade condicional, em novembro de 1977, depois de sete anos e meio, reencontro Antônio, Antônio e Matilde, sim porque sempre foi assim, Antônio e Matilde juntos, o mesmo compromisso, a mesma coragem, não há como separá-los; então, e hoje sei, que foram a organização dos mais pobres e as Comunidades Eclesiais de Base que curaram as sequelas da sua prisão. E disto extraio que, ao conhecimento, à firmeza dos valores, é preciso associar o anúncio da palavra e a persistência do fazer. Antônio mostra-me em que e por que ter esperanças novamente.

Em março de 2013, assisto Leonardo Boff sendo entrevistado na TV sobre o Papa Francisco. Ao final do programa, enredado entre o desconhecimento e a hesitação em acreditar no que fora destacado nas respostas – a simplicidade de Francisco contraposta ao Principesco de Bento, a minha saída foi imediatamente ligar para o Antônio e perguntar-lhe: “Antônio, como é possível dizer das diferenças entre Francisco e Bento só com base em sinais exteriores?” Sua resposta foi: “Beto, é verdade, o Papa Francisco, junto com outros bispos à época do Vaticano II, em novembro de 1965, assinou o Pacto das Catacumbas, mas me aguarde que vou enviar alguma coisa para você!” Pensei: “Será que veremos o fim deste triunfalismo que já dura mais que a Ditadura?”


Está fora da sequência temporal deste relato, mas não posso deixar de destacar o que foi quase um mantra do Antônio ao abrir ou concluir alguma consideração – “Beto, não há salvação individual, ou nos salvamos com e como pobres ou não nos salvamos, e isto vale tanto para a hora da missa como na hora de fazer a revolução”. E ele foi isto, ele foi pobre na vida e nos votos, foi morador de rua, foi catador de lixo, foi índio, foi negro, foi camponês, foi ribeirinho, foi educador, foi rebelde, foi pensador, foi um defensor da diversidade, da tolerância e da empatia, exceto com os soberbos e poderosos.

Amigo Antônio, você agora está com Dom Paulo, Dom Helder, Frei Tito, Padre João Bosco Burnier, Padre Antônio Henrique, Irmã Dorothy Stang, Sepé Tiaraju, Zumbi, Santo Dias e tantos outros que experimentaram o orgulho, como disse alguém recentemente, o orgulho de ter lutado ao lado dos derrotados. Mas permita-me dizer-lhe que eu vou sentir, nós vamos sentir muito a sua falta, principalmente porque de novo estamos em meio às trevas, que estimulam a violência contra as mulheres, os mais pobres, os moradores de rua, os sem teto e sem terra, os homossexuais, os índios, os estudantes, os trabalhadores, os intelectuais e artistas, contra os políticos representantes do povo; enfim, um quadro de completa exclusão e espoliação que se pretende justificar pelo martelar diário de mensagens que não objetivam outra coisa senão quebrar a nossa resistência e nos fazer aceitar qualquer medida, mesmo aquelas que vêm em nosso próprio prejuízo.

(Detalhe do quadro da abertura do texto) Grupo caminhando em direção a um horizonte não definido. Este quadro eu o fiz no período de cassação da Dilma. Mais que o fato político, foi a marca, para mim, da expulsão, do escorraçar do povo de um cenário que a casa grande & senzala sinalizou como “xô-xô, fora, que este pátio é nosso e se aquiete, por que aqui você não volta mais...”. Fiz as figuras como de costas, porque eu queria retratar alguém saindo, sendo mandado embora, caminhando para fora. Algumas figuras estão altivas, outras de cabeça baixa, estes detalhes foram de propósito. Não há um horizonte porque de fato não havia um horizonte naquele momento. A pergunta mais comum era – “o que vai acontecer agora?”

Mas, Antônio, por favor, permita-me antecipar um esclarecimento: quando reclamo a sua ausência, não estou dizendo que nada se pode fazer sem você, somente estou querendo destacar que, certamente, com você ficaria mais fácil resgatar a empatia e a partir dela promover ações transformadoras, as ações 85


As ovelhas olhando para você é como que perguntando “onde está o pastor?” Fiz esta pintura em dezembro de 2016. No início era só um desenho de observação, onde usei como modelo uma daquelas ovelhas que se vende no aeroporto como lembrança de POA. Quando eu a vi na loja do aeroporto foi uma viagem imediata à minha infância. Minha memória é de um carneirinho morto num córrego, onde ele caiu e de onde não conseguiu sair e aí morreu afogado. Lembro que isto na época me levou a experimentar como humano o que deve ter sido o abandono, a impotência, o cansaço de lutar pela vida, a resignação diante da morte iminente. Sim, isso tudo são formulações de agora, do que restou daquele momento. Saber da partida do Antônio refez um pouco daquele ambiente e a totalidade daqueles sentimentos, por isto assinei o quadro colocando a pergunta - “onde está o nosso pastor”, que é o que os olhos das ovelhas estão dizendo.

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que salvem a nossa humanidade, os seres vivos, a natureza, enfim, e isto sobretudo agora, quando uns cortam as cabeças de outros. Antônio, depois de uma vida de construção, de lutar por um rumo para a nossa humanidade, sinceramente fico dividido, porque não sei se você deveria ver tudo isto que acontece hoje em nosso país e ainda ter que diariamente saber de julgamentos por causa de um dinheiro que dizem deveria ser nosso, mas sem nunca julgar quem ou de onde veio o dinheiro que pôs fim à vida de muitos Antônios, iguais a você, ainda que com outras motivações, pensamento e ações, porém iguais nos objetivos e nos sonhos.

Antônio, fiquei profundamente triste quando a Matilde nos disse que você já não estava mais entre nós e agora quero repetir o que ouvi de uma pessoa amiga e muito querida: “É muito triste saber da partida de um amigo, mas é muito mais triste ainda não ter podido dizer antes o quanto gostávamos dele”. Amigo Antônio, um beijo meu e da Laura.


As “famigeradas” fichas por Antônio Cecchin*

Depois de concluir o Curso de Letras Clássicas (Bacharelado e Licenciatura) no ano de 1950, a direção da Província me pediu para fazer o Curso de Ciências Jurídicas e Sociais. Imagino que tenha sido em função de futuras responsabilidades dentro do complexo de Faculdades que a Universidade Formatura em Letras Clássicas, em 1950

Católica ia criando, especialmente na Faculdade de Direito. Terminada a Faculdade em 1958, por conta e risco candidatei-me

a uma bolsa de estudos que a Lei Brossard proporcionava a quem tirasse as notas mais altas durante todo o currículo escolar dos 6 anos de Faculdade. Meu sonho era aprofundar meus conhecimentos religiosos, particularmente em relação ao Ensino Religioso, em cujo desempenho me sentia muito insatisfeito. * Trecho de texto “Novos Rumos”, de Antônio Cecchin, de 2002.

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Além do Curso do Pe. Lebret, em Paris, eu tive que completar o currículo com algumas cadeiras na Sorbonne. Consegui, assim mesmo, inscrever-me como ouvinte no Instituto Superior de Pastoral Catequética, que funcionava junto ao Institut Catholique.

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Organizei o projeto de Curso no exterior a partir da cadeira de Economia Política. Como na Faculdade de Direito temos a cadeira de Economia Política, armei o meu curso calcado em Economia e Humanismo, pois andara, já como secretário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, em contato com o Padre dominicano Jacques Lebret – renomado sociólogo que estivera em Porto Alegre a fim de montar a pesquisa em torno das Bacias Paraná-Uruguai por projeto do governador de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez, com vistas a um planejamento regional de


desenvolvimento. Consegui que a comissão de bolsas aprovasse o meu projeto para o IRFED de Paris, Curso de Lebret. Além do Curso do Pe. Lebret, em Paris, eu tive que completar o currículo com algumas cadeiras na Sorbonne. Consegui, assim mesmo, inscrever-me como ouvinte no Instituto Superior de Pastoral Catequética, que funcionava junto ao Institut Catholique. Fiz então a grande descoberta da catequese kerygmática, centralizada no mistério da Morte e Ressurreição de Cristo.

De volta da França, o sonho era passar a dedicarme com tempo integral às tarefas da renovação catequética. O sonho começou a realizar-se quando passei a ser o organizador da CNBB Regional, juntamente com o Padre Orestes Stragliotto. Encarregado da Equipe de Catequese do Regional, promovi dezenas de Cursos para Catequistas por todo o Rio Grande do Sul e Santa Catarina e mesmo no Paraná. Cheguei a dar um Curso para todos os bispos do Rio Grande do Sul em Frederico Westphalen. Criei em todas as dioceses do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina uma equipe de coordenação catequética. Era a renovação em marcha. Fazendo parte da Equipe de Coordenação nacional, fiquei destacado para, em nome do Brasil, apresentar um trabalho sobre os princípios a serem observados na elaboração de material catequético para a América Latina, na 3ª Semana Internacional de Cate-

Fiz então a grande descoberta da catequese kerygmática, centralizada no mistério da Morte e Ressurreição de Cristo.

Encarregado da Equipe de Catequese do Regional, promovi dezenas de Cursos para Catequistas por todo o Rio Grande do Sul e Santa Catarina e mesmo no Paraná.

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Como definimos a catequese

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“Um processo em que uma Comunidade se reúne, reflete sobre o seu próprio processo histórico. Na transparência dessa análise descobre a presença do Cristo Ressuscitado que dá sentido a tudo, vivo e presente na Comunidade (evangelização).

2

Tendo feito esta descoberta, a comunidade é impelida pelo Espírito a falar com o Ressuscitado presente aqui e agora (Liturgia).

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Sente também que a descoberta que acaba de fazer vem numa sucessão histórica de descobertas que foram feitas pelos antepassados e que começou com Abraão (Tradição, primeiro oral e depois escrita na Bíblia e continuada no magistério da Igreja).

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Essas descobertas empurram o cristão a se engajar na vida concreta em favor de seus irmãos, particularmente os pobres, com vistas à transformação da realidade, de menos humana para mais humana” (Compromisso).

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quese que se celebrou em Medellín (Colômbia), uma semana antes do histórico encontro dos bispos, no próprio local em que eles se encontrariam na semana seguinte. O documento de Catequese da Conferência dos Bispos em Medellín (CELAM) é, quase na íntegra, o documento final daquela memorável terceira semana internacional de Catequese. Foram as bases da famosa Catequese Libertadora ou Evangelização Libertadora, que culminou com a Teologia da Libertação, sintetizada pela vez primeira por Gustavo Gutierrez. Naquele encontro, definimos a catequese como “um processo em que uma Comunidade se reúne, reflete sobre o seu próprio processo histórico. Na transparência dessa análise descobre a presença do Cristo Ressuscitado que dá sentido a tudo, vivo e presente na Comunidade (evangelização). Tendo feito esta descoberta, a comunidade é impelida pelo Espírito a falar com o Ressuscitado presente aqui e agora (Liturgia). Sente também que a descoberta que acaba de fazer vem numa sucessão histórica de descobertas que foram feitas pelos antepassados e que começou com Abraão (Tradição, primeiro oral e depois escrita na Bíblia e continuada no magistério da Igreja). Essas descobertas empurram o cristão a se engajar na vida concreta em favor de seus irmãos, particularmente os pobres, com vistas à transformação da realidade, de menos humana para mais humana (Compromisso)”. Naquela inesquecível 3ª Semana Internacional de Catequese de Medellín, houve um verdadeiro choque de culturas, se assim podemos nos expressar diante do fato de que os europeus se “bateram” com os latino-americanos, particularmente os catequistas bra-


Nos anos 1960, há grande renovação da Igreja Católica através do Concílio Vaticano II. Os cursos eram contínuos em todo o Estado.

Minha irmã Matilde e eu trabalhamos então em duas direções: de material a) elaboração catequético para escolas e colégios através da coleção intitulada “Educação Nova”; de b) formação catequistas através de cursos de uma semana, ou mais rápidos, de um fim de semana.

sileiros. Os latino-americanos queriam a catequese a serviço de um processo global de libertação. Os europeus nos propunham apenas uma temática tradicional, quase totalmente preo­cupados com a doutrina, através de temas tais como Catequese e Bíblia, Catequese e Liturgia, Ca­te­quese e doutrina, etc. Voltando de Medellín, nos dedicamos com todo o afinco à Catequese Libertadora. Minha irmã Matilde e eu trabalhamos então em duas direções: a) elaboração de material catequético para escolas e colégios através da coleção intitulada “Educação Nova”; b) formação de catequistas através de cursos de uma semana, ou mais rápidos, de um fim de semana. Achávamos que, com a catequese, não poderia acontecer a mesma coi91


As “famigeradas” Fichas Catequéticas, primeiro mimeografadas, depois publicadas pela Sono-Viso (organismo produtor de material catequético ligado à CNBB).

Nas paredes, os Beatles. As fichas catequéticas levavam a sério o mundo dos jovens.

sa que aconteceu com os movimentos de Ação Católica que, em nosso modesto entender, tinham avançado muito depressa e, com isso, haviam tido incompreensões de parte da hierarquia, o que acabou terminando com os próprios movimentos. As “famigeradas” Fichas Catequéticas, primeiro mimeografadas, depois publicadas pela Sono-Viso (organismo produtor de material catequético ligado à CNBB). Essas Fichas Catequéticas adotadas por inúmeros colégios religiosos foram consideradas subversivas pela Inspetoria Seccional de Ensino do Estado do Rio Grande do Sul. Quando das comemorações anuais da Revolução de 1964, os ministros militares se sucederam na TV durante uma semana, na vez do ministro da Educação, Jarbas Passarinho, ficamos es92


tupefatos que falou o tempo todo de seu programa sobre as nossas fichas catequéticas despretensiosas, exibindo para as câmeras o livro Rumo à Terra Prometida e dizendo, depois de ler várias passagens: “E dizer que colégios que recebem subvenções do governo estão usando tais fichas...” Em continuidade às críticas do ministro, fomos brindados com artigos causticantes nos principais jornais do Rio de Janeiro, por parte do teatrólogo Nélson Rodrigues e do escritor católico Gustavo Corção. Em São Paulo, através do Estadão, o Pe. Jesuíta Domingos Terra, posteriormente bispo auxiliar de Recife, também não nos deu trégua. Vários dos tais artigos foram transcritos nos jornais das principais capitais do país. As Fichas nos valeram duas prisões, ao lado de Frei Betto e outros religiosos, bem como de leigos engajados na luta de transformação do Brasil em favor dos pobres. Essas mesmas fichas tiveram uma edição na Espanha através das Ediciones Marova.

Na sede do Centro de Pedagogia Religiosa, onde eram elaboradas as fichas, destaque para Dom Helder, que seria considerado comunista pela ditadura.

Acima, membros da equipe de Catequese Regional Sul III, 1968.

As fichas tiveram edição na Espanha através das Ediciones Marova.

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As Fichas nos valeram duas prisþes, ao lado de Frei Betto e outros religiosos, bem como de leigos engajados na luta de transformação do Brasil em favor dos pobres.

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Os livros polêmicos por Regina Pereira*

Foi no começo da década de 1970, não sei precisar o ano. Meu marido era diretor na editora José Olympio, fundada por seu pai, e uma das editoras de maior prestígio no país, por ter publicado a maioria dos grandes escritores brasileiros. Eu era mãe de quatro filhos, uma dona de casa destinada a reproduzir a trajetória de minha mãe: criar filhos, ser uma esposa companheira e dedicar-me a obras de caridade. Tínhamos ambos uma formação católica tradicional. * Formada em Filosofia e Editora da Sextante/RJ.

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Foi este o primeiro momento de um processo que me levou a uma transformação radical. Para minha surpresa, o conteúdo oferecia uma visão que me abriu os olhos para algo desconhecido, com que senti uma afinidade imediata.

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Na paróquia que eu frequentava aos domingos, no fim da missa o padre pedia catequistas que preparassem as crianças para a primeira comunhão. Eu ouvia e pensava: “Não tenho tempo”, apesar de ser apenas uma hora por semana. Qual foi o impulso interior que me levou um dia a oferecer-me para a catequese? Falei do meu despreparo, e o padre tranquilizou-me dizendo que tinham um material de orientação. Foi este o primeiro momento de um processo que me levou a uma transformação radical. Para minha surpresa, o conteúdo oferecia uma visão que me abriu os olhos para algo desconhecido, com que senti uma afinidade imediata. O passo seguinte, em busca de aperfeiçoamento, foi inscrever-me no Lumen Christi, um curso em que as matérias eram ministradas à luz da Teologia da Libertação, por professores fascinantes, entre eles o Pe. Hugo Paiva. Eu compartilhava com meu marido o entusiasmo que aquelas descobertas provocavam em mim, e apresentei-o aos professores. Surgiu nele, então, a ideia de publicar, pela José Olympio, uma série de catequese. As várias alternativas que nos foram apresentadas não nos satisfizeram. Sabendo de nossa intenção, o Pe. Paiva falou-nos de seu amigo,


Antônio Cecchin que, com sua irmã Matilde, tinha elaborado fichas catequéticas. Aproveitamos uma ida a Porto Alegre para conhecer os dois, e foi amor à primeira vista. Vindos de realidades tão diferentes, falávamos a mesma língua de valores, ideais e afeto. Com muito respeito pelas nossas crenças, foram nos mostrando um Deus que se revelava nos acontecimentos, um Reino de Deus que se realizava dentro da história, um reino que, por ser de paz, justiça e fraternidade, exigia uma dimensão política para se estabelecer. Não tivemos qualquer dúvida: era esse o material que intuitivamente estávamos procurando. A publicação das fichas em uma editora tradicional foi um gesto de audácia, do qual não nos demos imediatamente conta. Em plena opressão da ditadura, publicávamos um material que anunciava um Cristo Libertador com todas as suas dimensões. Lembro-me do ministro Jarbas Passarinho, na televisão, brandindo as fichas como se fossem instrumentos diabólicos. Lembro-me também da experiência dolorosa da prisão do Antônio. Minhas lembranças do prosseguimento dessa história apagam-se aí. O que ficou registrado foi o prazer e entusiasmo com que nos entregamos à produção dos livros, de como nos enriquecemos no convívio com Matilde e Antônio, e da relação fraterna e transformadora que se estabeleceu. Deus fala, de fato, na história dos homens através dos acontecimentos e das pessoas que coloca em nosso caminho. Havia em mim e em meu marido uma semente que talvez não tivesse germinado se não tivéssemos vivido a riqueza dessa experiência.

A publicação das fichas em uma editora tradicional foi um gesto de audácia, do qual não nos demos imediatamente conta. Em plena opressão da ditadura, publicávamos um material que anunciava um Cristo Libertador com todas as suas dimensões.

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“S’imbora” por Irmã Cristina Zanchet* “A verdade vos libertará”, disse Jesus. Foi o que aconteceu, pois a catequese desses livros era toda fundamentada na vida e pregação de Jesus, com citações de textos dos quatro Evangelhos.

“S’IMBORA” é o nome dos livros de catequese programados e escritos pelo Irmão Antônio Cecchin, catequista formado, orientador de Catequese Cristã pela PUC de Porto Alegre. A catequese desses livros era toda fundamentada na vida e pregação de Jesus, com citações de textos dos quatro Evangelhos. * Educadora Popular

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Na Escola São Carlos, de Santa Vitória do Palmar, fazia parte do currículo o Ensino Religioso, com a Didática, para as professorandas aplicarem no seu estágio de formação e, depois, como professoras do Ensino Fundamental. Para essa formação, encontrei na Biblioteca da Escola alguns exemplos dos livros de catequese do Depois de censuradas e proibidas pela ditadura Irmão Antônio. Observei que esses livros não tinham militar, no dia 23 de sua “capa original”, onde estava impressa a figura de julho de 1970 uma carta um mestre andando, apoiado em seu bordão com a do Bispo de Campina Grande, Dom Manuel, expressão “S’IMBORA”. foi enviada para o Bispo Em conversa com os de Porto Alegre, Dom professores, a questão dos liEdmundo, em busca das Fichas Catequéticas: vros “sem capa” ficou esclarecida. A explicação foi que Desejo entrar em contato com o autor dos livros estava na o Irmão Antônio Cechin (não sei se prisão como “subversivo”, é assim que se escreve). Não sei se é exatamente por causa da puirmão ou Padre. Preciso receber a blicação desses livros. coleção dos fascículos para aulas de O DOPS, do governo orientação cristã, aqueles que os militar, deu ordem aos posenhores do Ministério da Educação liciais de fazer “a queima” dos livros escritos por ele. andaram censurando e proibindo Mas os professores organipor aí. Gostaria de receber a coleção zaram uma estratégia para completa”. ludibriar a polícia. Tiraram a capa dos livros e, dentro de cada uma, introduziram um caderno comum. Assim, “muito animados”, jogavam “o livro modificado” no fogo para acabar com a “subversão”. Após a passagem da polícia, continuaram usando os conteúdos dos mesmos livros. “A verdade vos libertará”, disse Jesus. Foi o que aconteceu, pois a catequese desses livros era toda fundamentada na vida e pregação de Jesus.

Uma leitura fácil, compreensiva que tocava o coração dos estudantes para uma luta de liberdade e vida para todos, bem como alegria e paz que só Deus pode dar aos seus.

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Profeta do Reino de Deus e sua Justiça

Crianças e adolescentes, da Obra Social Educandário São José do Belém/ SP, por ocasião das Bodas de Ouro da Irmã Rosilene, de VR.

por Irmã Maria Rosilene Parolin*

Em 1964, cheguei em Porto Alegre/RS para trabalhar como Educadora em nossa Congregação. Assumi também aulas de Ensino Religioso, por quase uma década. Nesse tempo conheci o Irmão Antônio Cecchin, Coordenador do setor de Catequese da CNBB, e Adjunto Regional da Juventude Estudantil Católica (JEC) do RS. Há pouco tempo, ele havia retornado da França onde fez especialização em Catequese. *ICM (Comunidade Casa Coração de Maria) Rio Claro/SP Professora de 1º e 2º graus (aposentada) Trabalho Pastoral: estudos bíblicos e formação de lideranças

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Auxiliado por sua irmã Matilde, também formada em Catequese na França, ele criou uma Coleção de Fichas Catequéticas. Essas Fichas proporcionaram especial assessoria ao trabalho Pastoral dos Evangelizadores, desencadeando um processo de verdadeira e promissora Renovação da Catequese. Conforme o Irmão Cecchin, a Coleção das Fichas era a concretização do sonho maior que ele e sua irmã Matilde acalentavam, para alcançar a meta de uma Catequese Nova e Libertadora. Nós, que as adotamos em nosso trabalho, podemos atestar que elas foram um excelente instrumental evangelizador, que veio suprir uma imensa carência existente na formação catequética, e em material pedagógico adequado a esse trabalho Pastoral.

A Coleção das Fichas Catequéticas que o Irmão Cecchin lançara destinava-se aos catequizandos de três faixas etárias: Pré-adolescentes, Adolescentes e Jovens. Compunha cada Ficha: •Tema e objetivo •Pontos de Apoio •Obstáculos •Palestra com Plano de desenvolvimento de cada aula e observações doutrinais e psicopedagógicas.

Cadernos de alunos (abaixo) com os conteúdos feitos a partir das Fichas Catequéticas (ao lado).

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Conteúdo das Fichas, na linguagem dos jovens.

Muito oportunamente, as fichas, destinadas aos pré-adolescentes, traziam como apoio aos temas a serem desenvolvidos biografias ou fatos referentes à vida de personagens em destaque (eram “Figuras Exemplares”, como as chamaria o professor e escritor Leonardo Boff), como, por exemplo: Anne Frank, Antoine de SaintExupery e outros literatos, cantores, cientistas das mais diversas áreas do saber...

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De fato, antes do Concílio Vaticano II, os Catequistas, em geral, não dispunham de um bom material didático que ajudasse a experimentar a presença do Deus de Jesus que faria “arder o coração”. Contavam praticamente só com o Catecismo de “perguntas e respostas”, que não tinha condições de manifestar o rosto inefável e amoroso de Deus revelado em Jesus de Nazaré. Conforme conclamara o Concílio Vaticano II, era urgente fazer uma volta às fontes cristalinas do Evangelho, para anunciar o Reino de Deus e sua Justiça ao mundo do século XX. O Irmão Cecchin, como nosso Coordenador Diocesano, também era sempre muito presente junto a nós, Catequistas e Professores de Educação Religiosa. Periodicamente, ele nos reunia para que pudéssemos estudar, refletir, aprofundar textos, entender e assimilar a Palavra de Deus, esclarecer eventuais dúvidas suscitadas pelas Fichas Catequéticas. Eu tive o privilégio de aprender, e de trabalhar com esse material precioso, as inesquecíveis Fichas Catequéticas... Ficaram guardados em meu coração momentos de confortadoras lembranças e a alegria pelo anúncio do Evangelho, e saudades! Citaria, por exemplo, uma experiência vivida naquela época: desenvolvendo as relações interpessoais que há na Trindade Santa, no Deus Amor que


nos convida a participar de sua vida, entramos no tema da Oração. Vimos que nela podemos viver os Momentos mais fortes dessa participação. Iniciamos essa aula procurando ajudar as jovens “a perceberem a presença de Deus no seu quotidiano e a entrar em diálogo com Ele”. Para alcançar tal objetivo, a Ficha Catequética sugeria introduzir o tema através de uma canção-oração, que fazia sucesso na época: “Ó mio Signore”, de Edoardo Vianello. A reação das educandas, em geral, era de abertura do coração. Foi assim naquele dia também. A letra era adequada para ensinar a rezar ao Deus de Amor de forma filial: o cantor Vianello, qual filho, agradecia e louvava a Deus por sua bondade e por tantos dons. Com respeito, ele pedia a Deus a graça de viver o amor e de se tornar semelhante ao Deus que é Amor... Enfim, posso afirmar que as Fichas nos ajudavam a realizar o objetivo de nosso trabalho:

Por uma questão de fidelidade ao conteúdo e ao método da Catequese Libertadora – leitura dos Sinais dos Tempos –, tínhamos que ajudar a juventude a ler a presença de Deus e de seu projeto para a humanidade, na transparência dos fatos do cotidiano. Para tanto, nos servíamos das canções do gosto juvenil do momento e ao mesmo tempo ricas em seus textos e músicas, das notícias de jornal, das poesias da atualidade, etc.”

Era importante os jovens reconhecerem seu cotidiano nos conteúdos, para entrar em contato com Ele.

(in Entrevista especial com Antônio Cecchin - Revista Ihu On-Line, de 04 de janeiro de 2013) 103


Curso de Renovação Catequética, em Estrela/RS.

Irmã Rosilene, com crianças e adolescentes, em 2009.

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Mas o Irmão Cecchin, como todos os Profetas, teve que pagar um altíssimo preço pelo “atrevimento” de ter sonhado e criado as Fichas Catequéticas, por se deixar seduzir pelo Deus de Jesus, pelo Reino de Deus e sua Justiça. Era tempo da Ditadura Militar. O Irmão Antônio foi preso e torturado. O uso das

Fichas foi proibido. Nunca mais o Irmão Cecchin teve descanso em sua luta para seguir o Mestre Jesus de Nazaré, para sonhar os sonhos do Filho de Deus de vida plena para todos, a começar pelos últimos a quem ele dedicou o melhor de suas forças... Da nossa parte, gratidão para sempre a Deus e aos irmãos Cecchin por tudo que eles nos orientaram, com sua incansável dedicação e amor ao Reino de Deus e sua Justiça, pelo entusiasmo com que transmitiam seus conhecimentos, e por nos lembrarem da importância de sermos sinais de Deus, reveladores de Deus no nosso trabalho e no mundo. Essa metodologia de evangelização, que passamos a usar com as Fichas Catequéticas, se tornou uma constante em meus trabalhos pastorais, e na busca de nos tornarmos promotoras de um mundo de paz e fraternidade, conforme o ensinamento do Evangelho.


Meu dindo Tonico

Uma mesma linha de vida Viagem ao Chile para participar do curso de Paulo Freire para Religiosos, em 1968.

por Ivonilda Antoniazzi Grenier*

Conheci o Tonico na década de 1960 em um curso de Renovação Catequética. Foi aí que me identifiquei com Antônio Cecchin, pois eu vinha de uma formação jocista sob a orientação do Padre Agostinho Preto. A Matilde também passou a fazer parte da minha vida, foi uma verdadeira irmã para min Os netos de Ivonilda.

e depois para minha família.

*Assistente social.

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Paulo Freire várias vezes se referia a Antônio Cecchin como precursor de um novo tempo na educação popular.

Em 1969, em Santiago do Chile, na Casa da Juventude, Joscelyn, Ivonilda, Paulo Freire e esposa.

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Nesta época, eu era religiosa da Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado, voltadas para catequese e promoção humana. Em 1967, num encontro de educadores na Betania em Porto Alegre, o Tonico me apresentou a dois padres canadenses que participavam do encontro interessados na metodologia da catequese de libertação e da cultura brasileira. Como eu ia para o Chile fazer um curso de renovação da educação, o Tonico me disse: “Ivonilda, vou te apresentar o Joscelyn (Lino) Grenier que trabalha no Chile com a juventude operária e universitária”. Mal sabíamos nós que anos depois Joscelyn e eu iríamos formar uma família e Tonico seria nosso padrinho de casamento… A Matilde teve a delicadeza de fazer um churrasco em seu apartamento para comemorar nossa união, por isso a partir daí, passei a chamá-los DINDO e DINDA. Coloco estes acontecimentos para dizer da sensibilidade humana de Tonico e Matilde. Durante o período que estive no Chile, em 1968 conheci Paulo Freire, que se encontrava exilado no país. Ele recebeu alguns educadores participantes do grupo que iria para Medellín para a Semana Internacional de Catequese. Aí pude sentir o quanto Tonico era considerado no mundo educacional. Sempre lembrávamos que Tonico e Matilde nesta época também estiveram no Chile, Santiago, e ficaram hospedados na Casa da Juventude, construída por Joscelyn para receber jovens operários e universitários. Paulo Freire várias vezes se referia a Antônio Cecchin como precursor de um novo tempo na educação popular.


Madalena, a filha da Ivonilda, esteve em Cuba, acompanhando os dois filhos adolescentes, em excursão da Escola. Impressão: “Cuba é um país diferente!”

Toda vez que Joscelyn e eu íamos à casa de Paulo, ele e sua esposa voltavam a falar sobre o Irmão Antônio com grande admiração. Neste mesmo período, no Chile, pude sentir o quanto Tonico era conhecido e admirado por seu trabalho e metodologia catequética pautada pela Teologia da Libertação; Padre Pierre Babin, um grande educador francês, me procurou para ver se eu tinha algum material do trabalho do Ir. Antônio Cecchin.Emprestei a ele algumas apostilas e ele as fotocopiou. Eu fiquei muito orgulhosa do meu amigo Antônio. Tonico e Matilde tinham um carisma todo especial para lidar com os jovens, pude sentir bem isso no contato que tiveram com meus filhos quando nos visitaram em São Paulo, na década de 1980. Até hoje eles relembram do tio Tonico e tia Matilde e suas “estórias”. Eram convincentes… Até hoje, mais de 30 anos passados, esses personagens estão vivos em suas memórias.

Viva a Primavera! Foto atual da Ivonilda, no Canadá, onde passa seis meses por ano, com a família da filha Madalena e com a família do filho Jorge.

Tonico colocava a alma no que fazia e isso contagiava a todos.

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Cursos de Renovação Catequética em 1968.

Recordações e Ação de Graças! por Irmã Paula Schneider*

Irmão Antônio Cecchim se destacou por sua personalidade: “audacioso, com posições firmes e muita coragem”. Tomou muitas iniciativas, quer em cunho meramente pastoral, quer no campo da promoção humana. As inúmeras obras por ele realizadas e implementadas atestam a largueza de seu horizonte e sua capacidade empreendedora. Sua competência e sua liderança ultrapassaram o espaço do Rio Grande do Sul, atingiram áreas além-fronteiras. * Coordenadora da CRB Regional/RS

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Foi o fundador da CPT/RS ( Comissão da Pastoral da Terra), atuou na Ação Católica-JEC ( Juventude Católica), movimento no qual trabalhamos juntos, nos fins de semana. Foi o grande responsável pelas lutas populares no Rio Grande do Sul. Usando o método de Paulo Freire, lutou pela Educação Libertadora e pela Catequese Libertadora. Lembro-me das Fichas Catequéticas que o levaram à prisão, na época da ditadura militar. Pessoalmente, recordo de uma oportunidade em que ele proferiu uma palestra a pessoas envolvidas nos movimentos sociais, e lhe foi perguntado sobre suas impressões como prisioneiro, impugnado pelo DOPS, na época da ditadura: Irmão Antônio se emocionou, chorou... duras vivências! Sua vida orante, de espiritualidade encarnada o sustentou nos períodos turbulentos, difíceis pelos quais passou, porém, Irmão Antônio sempre demonstrou suas convicções na luta pelos pobres. Lutou por eles, com eles e viveu por eles! Outro depoimento pessoal: conheci, há anos passados, o salão dos/as catadores e recicladores/as de lixo na Vila Wenceslau Fontoura- zona norte de Porto Alegre, incentivado por Irmão Antônio. Belo trabalho de promoção humana e de partilha! Também, ele criou o Movimento dos Catadores, organizou os salões de reciclagem do lixo, a coleta dos materiais recicláveis, lutou junto aos carrinheiros, os papeleiros, os profetas da ecologia, que ainda hoje são o sustento de muitas famílias.

Matilde e Irmão Cecchin dando cursos de Renovação Catequética que aconteciam em muitas cidades com base nos documentos do Vaticano.

Que Irmão Antônio interceda por nós, por nosso povo marginalizado que tanto o amou e foi por ele amado! 109


Tributo ao Irmão Antônio Cecchin Caixa d’água em construção na comunidade da Ilha do Pavão.

por Cézar Busatto*

Revirando meus documentos de memória, eis que me deparei com uma troca de correspondência com o Irmão Cecchin cuja última manifestação reproduzo. Tratava-se à época, 1990, de viabilizar o abastecimento de água potável para 27 famílias que moravam na Ilha do Pavão, próximas ao novo posto em construção destinado à fiscalização do ICMS e vinculado à Secretaria Estadual da Fazenda. À época, eu exercia o cargo de Secretário Especial do Governo do Estado. O Irmão Cecchin, como era sua característica, advogava em favor “dos últimos dentre os últimos” daquela pequena comunidade. Hoje, passados 27 anos, não sei se o problema foi resolvido. Espero que sim, porque a obra ou serviço mais difícil de realizar no poder público – sempre tenho repetido isso –, é aquela que beneficia os pobres e ainda mais os mais pobres dos pobres. * Economista. Militante da Juventude Estudantil Católica: anos 1960 – início anos 1970 Subchefe de Gabinete do Ministro da Agricultura: 1985-1986; Secretário Especial de Governo do RS: 1989-1991; Deputado Estadual: 19942006; Secretário da Fazenda do RS: 1994-1998; Secretário de Governança Local de Porto Alegre: 2005-2016. 

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Quando se trata de obras e serviços para as classes médias e os mais ricos, entretanto, tudo flui mais facilmente e as soluções acontecem. Esse é um dos aprendizados que recolhi de minhas quatro décadas de trabalho na área pública, nas mais diferentes posições e nas diferentes esferas, federal, estadual ou municipal. Tudo igual! Achei emblemático esse pleito do Irmão Cecchin porque sempre ele se identificou com a causa dos mais excluídos dos excluídos, aqueles que Marx chamava de lumpemproletariado. O Irmão Cecchin sempre que podia manifestava sua indignação com essa caracterização marxista de conteúdo pejorativo para essas pessoas. Marx não via futuro em apostar nessas pessoas que estão em geral abaixo da linha de pobreza, não tem relação orgânica com o processo produtivo, não tem vínculo organizativo sindical, exercendo uma atividade informal e autônoma para viabilizar sua sobrevivência. Ao contrário, o Irmão Cecchin dedicou sua vida pela causa dessas pessoas, de modo a resgatar sua autoestima e dignidade como cidadãos de pleno direito da polis. Mais tarde em nosso relacionamento, encontrei o Irmão Cecchin defendendo os catadores de resíduos sólidos – também uma população dos mais pobres entre os pobres – e novamente estabelecemos uma parceria para defender esses trabalhadores ecológicos da cidade. Eu coordenava o projeto Todos Somos Porto Alegre – TSPOA, uma parceria da Prefeitura, Fórum de Catadores, Ministério Público do Trabalho, cooperativa Mãos Verdes, Braskem e outras empresas privadas parceiras. O Irmão Cecchin advogando por galpões de reciclagem que questionavam o projeto, faziam ressalvas ao trabalho do DMLU e reivindicavam melhor tratamento para suas demandas de melhoria econômica e social. Construímos juntos várias soluções pontuais que aperfeiçoaram o projeto TSPOA. O jeito de atuar do Irmão Cecchin era muito firme e incisivo. Ele sabia que o poder público só funciona para os pobres sob muita pressão. Olhem só o alerta que ele, com honestidade e transparência, faz na

Na Ilha do Pavão, a comunidade se mobiliza para a construção da caixa d’água, e, assim, ter água potável.

Ofício encaminhado pelo Irmão Antônio a Cézar Buzatto.

O Irmão Cecchin dedicou sua vida pela causa das pessoas que estão, em geral, abaixo da linha de pobreza, de modo a resgatar sua autoestima e dignidade como cidadãos de pleno direito da polis.

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Na Ilha do Pavão, na década de 1990.

O jeito de atuar do Irmão Cecchin era muito firme e incisivo. Ele sabia que o poder público só funciona para os pobres sob muita pressão.

Cézar participando da coleta voluntária de resíduos sólidos na beira do Guaíba com cuidadores da cidade.

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correspondência que reproduzi – e que já na época destaquei: “Nossa certeza é de que, no dia da inauguração do Posto, se não fôr também dia da inauguração da água potável para as 27 famílias, o governo passará por um terrível vexame”. Como disse, não tenho memória do que efetivamente ocorreu, mas espero que esse vexame não tenha acontecido. Não posso jamais esquecer que logo no início do Governo Fogaça na Prefeitura, lá pelos idos de 2005 ou 2006, o Irmão Cecchin nos convidou – a mim e ao Prefeito – e fomos passar uma hora na noite de Natal celebrando com catadores que revitalizaram uma área e moravam embaixo de um viaduto numa das grandes avenidas da cidade. Foi um momento emocionante e cheio de significado cristão. Assim era o Irmão Cecchin. Na sua trajetória de vida, sou testemunho vivo de sua luta contra o regime militar nos anos 1970, quando fez de seu apartamento na Rua Coronel Vicente um verdadeiro bunker de resistência e educação democrática. Quantas reuniões lá foram feitas com grupos de estudo sobre capitalismo e socialismo, quantas cartilhas educativas sobre direitos e responsabilidades cidadãs lá foram preparadas, escritas, editadas e reproduzidas, quantas pessoas lá se refugiaram temporariamente das perseguições da polícia política. Até o momento em que aquele lugar foi invadido pela polícia e estigmatizado como subversivo. E todos nós que lá frequentávamos tivemos que nos retrair para não cair ainda mais facilmente nas garras da repressão. Foi um duro revés para a causa da resistência democrática. Nossas opções político-partidárias e provavelmente muitas de nossas ideias não eram as mesmas. Mas, acima de tudo, fomos capazes de preservar nossa amizade, o respeito uns aos outros, a parceria em favor dos mais vulneráveis nesse sistema de desigualdade e exclusão, com a presença sempre amiga da Matilde, irmã de Antônio e irmã de todos nós.


Um homem com alma feminina

por Naia Oliveira*

Em meados de 1969, eu vinha de ônibus da cidade de Guaíba, todos os sábados para Porto Alegre, com mais duas amigas. Íamos para as reuniões no apartamento Eu aos 18 anos (acima), na minha casa, em Guaíba. Minhas flores de cerâmica (foto maior), na Praça Nações Unidas, em instalação pela Paz.

13, da Rua Cel.Vicente, 444, onde residia o Ir. Antônio e algumas das suas irmãs (entre elas, Matilde). Participávamos de um grupo de estudo que tratava da realidade social, econômica e política brasileira, entre vários temas. Cheguei a esse grupo por meio de uma das minhas amigas que fazia o curso pré-vestibular na Faculdade de Arquitetura. * Socióloga. E-mail: naia.oliveira@via-rs.net

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Tenho muito vivo na memória um dos encontros: ao tomar conhecimento da extrema pobreza que era imposta à grande maioria dos brasileiros, dei um soco na almofada que trazia no colo. Todos participantes me olharam e se fez um silêncio que me deixou constrangida.

Apostilas do grupo de estudos.

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À época, esses cursos preparatórios aconteciam nas próprias faculdades, ministrados pelos estudantes. Um de seus “professores” era Jorge Falkembach, que a convidou, e ela incluiu-me nesta atividade. Desde muito cedo, a questão social me sensibiliza. Coloco-me ao lado dos excluídos, não sei se por origem (meu pai era operário na década de 1950, quando a mobilidade social era possível nessa condição), ou se por sensibilidade. E, a partir de sempre, sou amante fervorosa da democracia. Usávamos cadernos mimeografados que reuniam textos de estudiosos, e suas ideias eram lidas e debatidas. Essa atividade transcorria sempre acompanhada pelo olhar atento do Ir. Antônio, que esclarecia e dirimia as dúvidas com sabedoria, atuava como um mestre (na verdade, como um mestre budista, pois se permitia ser generoso e também irado). Tenho uma profunda e eterna gratidão ao Ir. por reafirmar para mim que igualdade e justiça é evangelho de Cristo. Irmão Antônio abria sua casa e seu coração para nós, jovens sedentos por compreender o que acontecia no Brasil pós-golpe de 1964. Naquele ambiente acolhedor da sala, onde a luz entrava por uma grande janela, com um dos marcos segurando uma linda samambaia, sentávamos em almofadas no chão. Podíamos dizer tudo que pensávamos em um momento no qual fora dali era necessário cuidar até o que falávamos com os vizinhos. Tenho muito vivo na memória um dos encontros: ao tomar conhecimento da extrema pobreza que era imposta à grande maioria dos brasileiros, dei um soco na almofada que trazia no colo. Todos participantes me olharam e se fez um silêncio que me deixou constrangida. Guardo também com carinho a impressão que fiquei da visita que minhas amigas de Guaíba e eu fizemos ao casal Jorge e Elza, companheiros do grupo de estudo que estiveram com Ir. Antônio até o fim da sua jornada. Os dois viviam uma relação extremamente carinhosa e muito respeitosa, no sentido da igualdade entre o homem e a mulher. Não esqueci que ele a chamava por Bruxa. A casa onde moravam no Bairro da Glória era muito colorida, lembrando a


da Frida Khalo no México. Para mim, uma jovem que vivia do outro lado do lago, fora da capital, isso tudo era muito novo e estimulante. Um sábado de novembro me é inesquecível. Chegávamos a Porto Alegre entusiasmadas para mais um encontro quando, ao descer do ônibus, vimos a Matilde na parada. Ela veio até nós e sem dar maior explicação nos disse: voltem para casa e não apareçam mais! Ficamos aturdidas, obedecemos e embarcamos de volta. Não lembro o que comentamos, mas à noite vendo o jornal na TV, com meu pai e minha mãe, que não tinham conhecimento da minha participação nos grupos de estudo, assisto estarrecida à notícia da prisão do Frei Betto. Ao ver a notícia, o reconheci como meu colega do grupo, o jornalista de São Paulo. Acho que, por influência também dessa vivência, busquei a formação de socióloga e sempre desenvolvi uma militância. Em um primeiro momento foi no movimento estudantil. Já formada e trabalhando como pesquisadora, participei do movimento feminista, urbano e ecológico. Tornei a encontrar companheiros do grupo em diferentes momentos posteriores. Cézar Busatto foi meu colega na FEE no final dos anos 1970. Frei Betto em 1995, numa oficina que ele desenvolveu sobre

Trabalho com Mulheres do Assentamento Filhos de Sepé.

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Irmão Antônio no 20º Encontro da Rede Mística Feminina do Meio Popular.

Ele participava de todos os encontros da Rede Mística Feminina. Mostrava uma compreensão íntima da questão da mulher e unia esta temática à crise ambiental, pois seu intelecto poderoso reconhecia serem originárias da mesma estrutura de poder.

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Cristianismo na Unipaz. Jorge e Elza na Unijuí, no final dos anos 1990, quando fui selecionar projetos para Feira Acadêmica pelo CNPq. Só reencontrei o Ir. Antônio quase 40 anos depois. Como a Rede Mística Feminina do Meio Popular faria o seu encontro de 20 anos no Assentamento Filhos de Sepé do MST em Viamão, Matilde me telefonou convidando para que eu colaborasse na organização. Foi Enid Backes, sabedora do trabalho que eu desenvolvia com as mulheres assentadas, que me indicou. Logo nas primeiras reuniões para planejamento do encontro, percebo que os dois irmãos não me reconhecem. Mais tarde lembro à Matilde da situação ocorrida em novembro de 1969. Ela me respondeu: “Levaste a sério minha determinação, apareceste somente agora, faz quase 40 anos!”. Para compensar essa ausência, estive junto nesses últimos nove anos de vida do Irmão. Ele continuava um mestre budista (generoso com as pessoas e irado com a situação das políticas públicas que deixavam a desejar – entre outras coisas – no processo de formação de cidadania da população excluída, principalmente os catadores). A convivência desse último período despertou mais um elemento da profunda admiração que dedico ao Ir. Antônio. Ele participava de todos os encontros da Rede Mística Feminina. Mostrava uma compreensão íntima da questão da mulher e unia esta temática à crise ambiental, pois seu intelecto poderoso reconhecia serem originárias da mesma estrutura de poder. Indo além do racional e com muitas saudades, posso dizer que o Tonico – assim o chamavam Matilde e seus demais irmãos – tinha uma alma feminina.


Comunidades Eclesiais de Base Primeira Comunidade Eclesial de Base, na Vila Cerne, em Canoas.

por Antônio Cecchin*

Paulo Freire, educador pernambucano, inventou o método de alfabetização de adultos cujos princípios vêm desenvolvidos no livro Pedagogia do Oprimido. É a famosa conscientização. Dom Helder, logo que a Igreja do Brasil entrou em cheio na conscientização, começou a insistir que só alfabetização seria muito pouco. Começou a falar em Educação de Base, isto é, juntamente com o primeiro aprendizado de leitura, eram necessárias noções de saúde, higiene, cidadania, etc., especialmente em se tratando de pobres e marginalizados.

* Trecho de texto “Novos Rumos”, de Antônio Cecchin, de 2002.

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Documento manuscrito de Antônio Cecchin, sobre o NOVO JEITO DE SER IGREJA.

Plantando a cruz na área ocupada, símbolo da resistência.

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Era o começo das Comunidades Eclesiais de Base que, posteriormente, seriam definidas como NOVO JEITO DE SER IGREJA. As tais CEBs, ao mesmo tempo que se tornaram a base da nova Igreja da América Latina, passaram também a ser a base da nova sociedade tão sonhada pelos pobres. As CEBs tiveram seu atestado de nascimento e batismo nos documentos dos bispos em Medellín e a confirmação ou crisma em Puebla, vinte anos depois, em 1979. Dentro de uma Igreja latino-americana que acabara de fazer opção pelos pobres, tendo eu sido considerado subversivo pelo trabalho na catequese escolar, chegando mesmo a ser preso, senti que não tinha mais chão para trabalhar com a classe dominante. Por isso optamos por um trabalho na periferia. Foi por isso que nos distanciamos da capital para fugir um pouco mais aos olhares controladores do regime militar e nos inserimos no meio do povo em Ca­noas, na Região Metropolitana. Lá desenvolvemos todo um trabalho de criação de Comunidades Eclesiais de Base, tendo ajudado o povo que se apinhava em cima de ruas por ocasião da construção do Polo Petroquímico de Triunfo, na ocupação de terras para morar: foram as ocupações da Vila Santo Operário, da Vila União dos Operários, da Vila Natal e posteriormente da Vila Guajuviras. Participamos de todos os Encontros Intereclesiais de Comunidades Eclesiais de Base de caráter nacional, a começar com o de Vitória, no ano de 1975, até o


Início das ocupações, em Canoas

Vila Santo Operário, construção do Centro Comunitário, Capela Nossa Senhora da Luz. O início, em 1981. Na Vila União dos Operários, as maloquinhas garantiram a resistência pela posse, pela sua fragilidade.

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Procissão de Nossa Senhora Aparecida, na Ilha Grande.

Fazemos parte, desde o início das CEBs no Brasil, do grupo dos Assessores históricos das referidas Comunidades.

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último, o 10º, celebrado no mês de julho de 2000 em Ilhéus, na Bahia. Fazemos parte, desde o início das CEBs no Brasil, do grupo dos Assessores históricos das referidas Comunidades. No ano de 1978, quando os bispos do Rio Grande do Sul decidiram mandar vir o coração do Padre Roque González, jesuíta mártir rio-grandense pelas Missões Jesuíticas entre os guaranis no século 17, publicamos um libreto intitulado São Sepé Tiaraju, Rogai por Nós. Era intenção da publicação diminuir um pouco o impacto que o coração ainda conservado do mártir jesuíta das Missões dos Sete Povos costumava causar na população católica. Quando se falava nos três mártires rio-grandenses, os índios passavam sempre a ser os vilões da história. O CIMI acabava de ser fundado como entidade aglutinadora da Igreja da Libertação no meio indígena. Era a época em que as denúncias do CIMI dos massacres de índios por parte da sociedade envolvente ocupavam as manchetes dos jornais. D. Pedro Casaldáliga, o bispo profeta de São Félix do Araguaia, escreveu-me uma carta de felicitações pela brochurinha. Em resposta, pedi-lhe que, como bom poeta, escrevesse uma MISSA em honra de São Sepé Tiaraju, o índio mártir da guerra guaranítica em defesa das terras dos índios. D. Pedro, em nova carta, sugeriu que proclamássemos o ano de 1978 como ANO DOS MÁRTIRES ÍN-


O Vaticano quer saber o que são Comunidades Eclesiais de Base. Ao representante do Papa, Dom Gantin, africano, e a 3 bispos presentes (da esq. para a dir.): Dom Edmundo, Dom Cláudio e Dom Antônio, as mulheres pobres relatam sua vivência de fé.

DÍGENAS de toda a América Latina e que, em vez de Missa em honra de Tiaraju, já que Puebla estava às portas, fizéssemos a MISSA DA TERRA SEM MALES, que seria uma Missa de todos os índios da América Latina. O próprio D. Pedro, na introdução ao livro Missa da Terra Sem Males lançado por “Tempo e Presença”, diz, com todas as letras: “Pensou-se, primeiro, numa Missa ‘missioneira’ em torno das Missões dos Sete Povos Guarani. Assim me pedia o irmão marista Antônio Cecchin, gaúcho ‘arrependido’, revisador da História ‘mal contada’, cronista apaixonado da caminhada do Povo, catequista da Libertação, também perseguido ‘no Templo e no Pretório’”. Alguns dos cantos da Missa da Terra Sem Males, cuja autoria musical é de Martín Coplas, argentino

Participamos de todos os Encontros Intereclesiais de Comunidades Eclesiais de Base de caráter nacional.

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de ascendência aymara-quechua, foram cantados nas Ruínas de São Miguel das Missões, no encerramento do Ano dos Mártires de 1978. Porém, a Missa completa, com coro e orquestra, foi celebrada pela primeira vez no ano de 1979, na Catedral de São Paulo, presidida pelo cardeal-arcebispo, D. Paulo Evaristo Arns, tendo como concelebrantes 35 bispos. Na ocasião, D. Helder ficou tão entusiasmado que encomendou a D. Pedro a Missa afro-brasileira “dos Quilombos” e que foi musicada por Milton Nascimento. No ano de 1979 realizamos, na cidade de São Gabriel, no Colégio Marista local, o 1º Encontro Intereclesial das CEBs do Rio Grande do Sul, de 7 a 10 de setembro.

Irmão Antônio levava a ideia das Comunidades Eclesiais de Base por todo o Estado, também através da imprensa.

Reunião na Comunidade de Base da Ilha do Pavão.

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Irmão Antônio foi padrinho de Crisma do menino Marcos, na Capela Nossa Senhora da Luz, Vila Santo Operário.

Em Passo Fundo.


No dia de abertura, o Pe. Arnildo Fritzen nos informou que as CEBs acabavam de fazer a primeira ocupação de terra na Fazenda Macáli, em Ronda Alta. Era o grito pela Reforma Agrária. Seguiramse a ocupação da Fazenda Brilhante, da Anoni e o 1º grande acampamento, a Encruzilhada Natalino. Foi o desencadear, pelas CEBs, daquilo que seria, alguns anos depois, o Movimento dos Sem Terra (MST), que se erigiu em Movimento autônomo, não mais umbilicalmente unido às CEBs. Durante todo o tempo que fui assessor da CPT no Rio Grande do Sul, também fui assessor do MST. Apesar de o Coronel Curió ter baixado da Serra Pelada para o Rio Grande, com todo um contingente militar, e ter transformado a Encruzilhada Natalino num verdadeiro campo de concentração, os Sem Terra resistiram. Permaneceram unidos pelo estímulo constante que lhes garantimos através da mobilização permanente de pessoas importantes como padres, advogados, juízes e até desembargadores, juntamente com os quais conseguíamos sempre furar o bloqueio ao acampamento. Lá, junto deles, celebrávamos a Eucaristia. Vieram SEM TERRA de vários Estados do Brasil visitar a Encruzilhada em sua luta contra a repressão militar. Isso possibilitou que, como um rastilho, o Movimento se espalhasse pelo Brasil inteiro como temos hoje, organizado em todos os Estados da Federação.

Missa da Terra Sem Males, em Santo Ângelo, com Martín Coplas, na virada do milênio.

Em Santo Ângelo, no 10º CEBS/RS, em 2002.

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Caminhada em busca da Terra Prometida

Chegada no Centro de Porto Alegre da Romaria Conquistadora da Terra.

por Padre Arnildo Fritzen*

Vinte e nove de outubro de 1985, uma data histórica para os pequenos agricultores. Nessa data, 1.700 famílias organizadas pelo MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) ocupam no Norte do estado do Rio Grande do Sul um território de 9.000 ha de terra, a Fazenda Anoni, por longos anos em disputa judicial. É um marco para a história deste movimento rural. * Sacerdote, fundador do Movimento dos Sem Terra, da CPT e CEBs

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Arte de Oscar Niemeyer para o MST.


Celebrações durante a Romaria Conquistadora da Terra.

Celebração dos 25 anos de sacerdócio do Padre Arnildo.

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Irmão Antônio à frente da Romaria Conquistadora da Terra, no trecho Canoas/Porto Alegre.

A Terra é de todos, disse Deus a Adão... Toma e cultiva, tira dela o seu pão. Virá o dia em que todos ao levantar a vista, veremos nesta terra reinar a liberdade... Nossa alegria é saber que um dia todo este povo se libertará...

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A partir da ocupação, foram muitas negociações e muita pressão sobre o governo para assentar estes pequenos agricultores nesta fazenda e desapropriar outra áreas para que todos tenham sua terra. As negociações imperaram e aumentaram gerando muito sofrimento, muita dor. Esta realidade forçou o diálogo, reuniões e assembleias em busca de soluções. Em pequenos grupos se discutiu quais passos deveriam ser dados em conjunto. Na plenária, na grande assembleia, veio o relato dos grupos com sugestões de diversas ações. Uma das sugestões dos grupos foi fazer uma caminhada com um bom grupo de acampados até Porto Alegre para trazer a opinião pública ao nosso lado e, juntos, forçarmos o governo para assentar a todos. Esta proposta foi votada e aprovada em assembleia. A coordenação geral com os Agentes de Pastoral da CTP, parceiros, ficaram encarregados para dar encaminhamento a esta decisão. Estudou-se a data possível, a organização e a mística que alimentaria a caminhada. Estabeleceu-se o dia do Agricultor (25 de julho) para a chegada em frente ao Palácio Piratini, em Porto Alegre. A mística inspiradora vem da reflexão bíblica coordenada pelo Ir. Toninho Cecchin. O Êxodo do Povo de Deus que marcha em busca da Terra Prometida – e saiu em marcha da escravidão do Egito. A preparação da caminhada seguiu o ritual realizado pelo Povo de Deus antes de sair da escravidão do


Egito (Ex.12,43-22). À meia tarde, reunidos os peregrinos da caminhada (250 eleitos pelos grupos de base), eles fazem a oração em torno de uma grande mesa, o pão e o alimento são abençoados e partilhados. O símbolo da Luta pela Terra, a cruz com panos brancos, em um dos braços, e do outro, o preto, o sinal, aquele que anuncia o povo em busca da terra e vida com dignidade e, ao mesmo tempo, chama o povo de cada cidade para a reunião e união para buscar terra e vida para todos.

As bandeiras dos Mártires e a faixa: Romaria Conquistadora da Terra Prometida, que vai à frente das marchas. Canto: Romaria da Terra, faz o povo reunir. A Terra é de todos, disse Deus a Adão... Toma e cultiva, tira dela o seu pão. Virá o dia em que todos ao levantar a vista, veremos nesta terra reinar a liberdade... Nossa alegria é saber que um dia todo este povo se libertará... A classe roceira e classe operária ansiosa esperam a reforma agrária. Animação que fez a mística se fortalecer e sustentar a resistência no caminho. O jantar e primeiro pouso foram em Pontão, no salão paroquial. É importante ter presente a atuação da CTP (Comissão Pastoral da Terra do Rio Grande do Sul), que organizou o roteiro, foi fazendo os contatos de município por município até chegar em Porto Alegre.

A CTP (Comissão Pastoral da Terra do Rio Grande do Sul), na Romaria Conquistadora, fazia os contatos de município por município até chegar em Porto Alegre.

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A celebração da manhã com as experiências vividas e confirmadas pelo texto bíblico iam cimentando a convicção de que estamos no caminho e o Senhor é o guia e libertador. Com isto, nada conseguiu desmanchar, dividir ou acabar com a Romaria.

Seguindo de uma cidade para outra, muitas pessoas, entre doen­t es, professores e pessoas das pastorais, acompanhavam a Romaria.

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O roteiro escolhido foi a região da imigração italiana, o caminho da Serra, onde acampam muitas pessoas. E o objetivo de mostrar quem somos e o que queremos fica mais visível. O que nos impressionou profundamente foi a afirmação do povo por onde passamos, dizendo: “São gente que vem de nós”, desmentindo o que a Rede Globo e o governo nos noticiá­rios falavam a nosso respeito. Cada manhã, a leitura Orante da Palavra. Quais os fatos da vida de ontem, nos quais vimos e sentimos a presença de Deus?... era a pergunta proposta a cada manhã para a meditação e oração. Aqui as reflexões, todas belíssimas, pois as pessoas com os olhos da fé enxergavam tudo o que aconteceu no dia a dia e partilhavam na oração. Recordo bem que num final de tarde, ao redor do povo da marcha, um bando de pássaros girava de um lado para o outro. Na manhã seguinte na oração, várias pessoas lembraram e sentiram a presença de Deus protegendo seu povo e indo à sua frente: “Como coluna de fogo e como coluna de nuvem”(Ex.13,20-22). A celebração da manhã com as experiências vividas e confirmadas pelo texto bíblico iam cimentando a convicção de que estamos no caminho e o Senhor é o guia e libertador. Com isto, nada conseguiu desmanchar, dividir ou acabar com a Romaria. Dificuldades, muitas, mas nada para impedir a marcha. Em cada cidade se parava meio-dia, em um ou dois dias se realizavam atos públicos com o povo, mostrando quem somos e o que queremos, celebra-


ções da Palavra e Eucaristia nas praças ou Igrejas, bem como confraternizações com a partilha de alimentos. Também se visitavam escolas, indo de sala em sala e debatia-se com os alunos e professores do 2º grau ou com os que estavam na faculdade. Seguindo de uma cidade para outra, muitas pessoas, entre doen­tes, professores e pessoas das pastorais, acompanhavam a Romaria.

Foram 28 dias de peregrinação pelo Estado e, ao chegar em Porto Alegre, nenhuma solução.

Depois de 28 dias na estrada, sol e chuva, nada nos impedia... Chegamos dia 25 de julho numa caravana de mais de 30 mil pessoas na Capital do estado – Porto Alegre–, muita gente dos bairros, cidades do interior. Chegando diante do Palácio Piratini, os sinos da Catedral tocavam em tom solene, chamavam o povo para acolher os peregrinos, oferecer-lhes água e pão, e celebrar a caminhada libertadora do povo de Deus.

Na chegada em Porto Alegre, nenhuma solução para o assentamento, para esta gente, da parte do governo, um acerto longínquo, situando algumas áreas possíveis de desapropriação. Foram 28 dias de peregrinação pelo Estado e, ao chegar em POA, nenhuma solução. A reação foi imediata. O grupo de (250) acampados, que fez toda caminhada, decidiu deitar de 129


Chegada da Romaria na Praça da Matriz, no encontro de Irmão Antônio com o bispo Dom José Mário, quando todos os sinos da Catedral ribombaram por algum tempo.

“O cheiro de povo” se espalhou por todo o Parlamento – ficou perto de ser a “Casa do Povo”. Como se proclama em alto e bom som que o Parlamento é a casa do Povo.

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bruços na praça, até que o governo anunciasse Terra para todos. Após duas horas deitados no chão, ao entardecer, o presidente da Assembleia Legislativa convidou e acolheu o grupo para dentro da Assembleia, tornado agora o Acampamento dos Sem- Terra, até o governo encontrar uma solução para assentar a todos os acampados da Anoni. Três meses de nova moradia: Parlamentares e Sem-Terra (romeiros) na mesma casa. A primeira grande surpresa que a Romaria fez brotar. Os novos moradores do Parlamento questionam a tudo e a todos, desde hierarquia estabelecida na sociedade à convivência, o relacionamento das pessoas. “O cheiro de povo” se espalhou por todo o Parlamento – ficou perto de ser a “Casa do Povo”. Como se proclama em alto e bom som que o Parlamento é a casa do Povo. No dia a dia não foi fácil a convivência, e crescia a “inconveniência da presença dos romeiros na casa”. Alheios à pressão interna e externa, os romeiros cada dia faziam a caminhada pelas principais ruas da cidade – conscientizando a população da necessidade da Reforma Agrária. E da mudança desta sociedade de dominação de uns sobre os outros. Queremos ficar na terra e não tirar o lugar de trabalho dos moradores da cidade era a mensagem transmitida pelos romeiros por onde a Romaria passava. O tempo foi passando e a pressão da sociedade foi aumentando sobre o governo, até que apostamos em áreas de terra para serem desapropriadas: em Cruz Alta e Tupanciretã. Enquanto isso a mídia (Globo e RBS) e os parlamentares defensores do governo criaram um clima de terror até que os Sem-Terra acampados na Anoni e na Assembleia decidiram sair da Assembleia, voltar para a Anoni e de lá sair na Marcha até a primeira área indicada para Reforma Agrária em Cruz Alta. Os desdobramentos desta decisão provocaram um grande confronto e repressão entre


os romeiros. Muito sofrimento até que, lentamente, as áreas foram liberadas e o Povo foi assentado em mais de vinte áreas diferentes pelo Estado.

A Romaria conquistadora da Terra ensinou grandes lições:

• Onde há opressões, o Senhor ouve o grito dos Oprimidos, vai ao encontro, vê a situação, decide libertar os Oprimidos, chama líderes que guiem o povo para a Terra onde corre Leite e Mel ( Ex 3,7-12). • Senhor Antônio e amigos da CTP ouviram o chamado, foram fiéis, organizaram os romeiros em busca da Terra e fizeram a marcha pela região da Agricultura Familiar forte, chegando na Capital no dia do Agricultor – 25 de julho de 1986 – 28 dias na estrada. • A opinião pública foi formada favorável à causa pelos próprios oprimidos em Marcha e Ação nas escolas, praças, entidades, Igrejas da cidade. • A Romaria criou uma solidariedade e apoio por onde ela passou. Gestos de apoio, partilha de comida e roupa, assim como recusa financeira se multiplicaram em toda caminhada, o que era celebrado à luz da Palavra de Deus e da Eucaristia nas praças e Igrejas de cada cidade. “Assinalados pela fé e bem certos da vitória fincaremos nosso pé, construir nossa histó-

Arte de Esther Bianco.

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A Romaria foi o divisor das Águas. Todos tiveram que se posicionar a favor ou contra. A favor da partilha da terra, como sendo presente de Deus para todos os seus filhos, ou contra e, portanto, defensores da concentração da riqueza e dos bens nas mãos de poucos e morte para maioria.

ria.” Nosso refrão da mística da luz do Senhor que nos conduz. • No caminho, novas criaturas. Nos tornamos novas criaturas. A partilha transforma a vida e a sociedade. O poder do Ressuscitado, a transformação e a libertação estão no coração dos oprimidos e, quando organizados, conquistam o apoio necessário e são parteiros do mundo novo, da sociedade fraterna. • A Romaria foi o divisor das Águas. Todos tiveram que se posicionar a favor ou contra. A favor da partilha da terra, como sendo presente de Deus para todos os seus filhos, ou contra e, portanto, defensores da concentração da riqueza e dos bens nas mãos de poucos e morte para maioria. • Fé e Vida andam unidas. A fé é viva e faz a transformação do mundo acontecer, quando os peregrinos caminhavam, buscando o seu direito à dignidade de vida para todos. “Romaria da Terra, faz o Povo reunir numa luta sem guerra, nós lutaremos por ti”, Senhor Antônio Cecchin – Profeta romeiro da Terra Prometida.

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Autoenviado para a missão entre os pobres!

Celebrações na Capela Nossa Senhora da Luz, em 1981.

Entrevista com Padre Armindo Cattelan* * Elaboração de Egídio Fiorotti, a partir de entrevista realizada com o Padre Armindo Cattelan, Canoas, em abril de 2017.

O Padre Armindo Cattelan nasceu em Garibaldi, cidade da Serra Gaúcha, e, aos nove anos, em 1939, foi, com seus pais, morar em Canoas. Seu pai trabalhava como funcionário, administrando toda a parte econômica dos Irmãos Lassalistas. Anteriormente, ele trabalhava na roça, cuidava de um hotel e fazia carretos com mulas. Quando saiu dos Lassalistas, ganhou, como recompensa pelo trabalho feito, uma vaca, que vendeu para comprar um lote em Canoas com uma pequena casa de madeira. Foi trabalhar como operário na fábrica de móveis localizada na Domingos Martins, para classificar madeiras. Conhecia a madeira pelo cheiro. 133


Padre Armindo recorda a ocupação na Vila Santo Operário, as celebrações e as mudanças na linha de trajetória da Igreja.

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Hoje, Padre Armindo trabalha e mora no Lar Dr. Décio Rosa, dos Vicentinos, localizado à Av. Boqueirão, cidade de Ca­ noas, exercendo o papel de capelão na entidade. Lembra das grandes mudanças que aconteceram na Igreja, desde sua infância até ser ordenado sacerdote, para entender melhor a opção de vida e luta que passou a assumir como padre. Diz que dá para dividir a história em períodos marcados por orientações e formas de organização. Primeiro, pelas Irmandades e Confrarias, como as de São Miguel e Almas, Nossa Senhora do Rosário, Santa Casa de Misericórdia, Navegantes e tantas outras. Depois, sob a orientação dos Jesuítas, surgiram as Congregações Marianas: divididas em Congregação dos Homens, Congregação das Mulheres, Congregação dos Jovens Masculinos e Congregação dos Jovens Femininos. A seguir, com o Papa Pio XI, surge a Ação Católica Geral, com os chamados Setores: Setor dos Homens, das Mulheres, dos Moços e das Moças. Por fim, veio a grande reviravolta, com a experiência iniciada pelo Padre Josef Léon Cardjin, que organizou a Ação Católica Especializada, a partir do método “Ver, Julgar e Agir”, à Luz da Bíblia. Seu encantamento por essa visão e método de pastoral se deu a partir de uma palestra dada pelo próprio Cardjin no seminário de Gravataí, a convite do Padre Agostinho Pretto, que na época já era Assistente Eclesiástico da JOC – Juventude Operária Católica. O que o tocou profundamente foi o que ouviu: Cardjin era quase padre e, um dia, ao voltar para casa, e ver seu pai à beira da morte, jurou que trabalharia toda a sua vida para libertar os trabalhadores da escravidão que era trabalhar nas minas de carvão. Isso fez Padre Armindo pensar na dureza da vida de seu pai como operário e que também ele desejava dedicar sua vida à libertação dos operários. Contou com o apoio não só do Padre Agostinho, mas também de Dom Edmundo Luís Kunz, que trabalhava na organização da Ação Católica, de modo especial, junto aos agricultores, com a Frente Agrária Gaúcha.


Com o apoio de Dom Helder Camara, foi organizada uma casa, na Cristóvão Colombo, em Porto Alegre, onde moravam todos os Padres que eram Assistentes Eclesiásticos da Ação Católica dos diferentes meios, a Juventude Agrária Católica – JAC, a Juventude Estudantil Católica – JEC, a Juventude Independente Católica – JIC, a Juventude Operária Católica – JOC e a Juventude Universitária Católica – JUC. O objetivo era envolver e cativar os leigos para que assumissem seu compromisso de batizado no meio onde estavam. Era “A Maneira do Leigo Ser Igreja”, salienta Padre Armindo. Pelo fato de ser batizado, o cristão assume ser fermento na sociedade. Padre Armindo ordenou-se sacerdote em julho de 1959. Ficou menos de um ano como padre auxiliar na Paróquia São Pedro, depois foi convidado a trabalhar como Coordenador Arquidiocesano e Regional da JUC, morando com os outros padres, na Rua Cristóvão Colombo. Eram padres liberados como assistentes eclesiásticos, sem compromissos com as estruturas das paróquias. Faziam muita formação, animação e organização de grupos de jovens. Nessa mesma época, Padre Armindo já conhecia o Irmão Antônio Cecchin, que era Coordenador Diocesano e Regional da JEC, além de já ser famoso com seus métodos da Catequese Renovada, junto com Matilde, sua irmã. Com o tempo, o próprio processo de organização foi se afirmando, de modo especial na JUC e na JOC. Foram tomando consciência de sua missão, força em termos de posicionamentos tanto dentro da Igreja como na sociedade em geral. Com isso, começou, de fato, o protagonismo dos leigos na Igreja. Surgiu nessa época a grande discussão: O leigo precisava de um mandato da hierarquia para exercer sua missão na sociedade – uma vez que ele era visto como a mão longa, estendida do episcopado dentro do mundo civil –, por já fazer parte desse meio? Os padres, afinal, é que eram os Enviados, a partir de um mandato que recebiam do Bispo, para agir na sociedade civil.

“A Maneira do Leigo Ser Igreja”: pelo fato de ser batizado, o cristão assume ser fermento na sociedade.

Irmão Antônio fazendo a transição entre as ocupações de Canoas e a comunidade de catadores das Ilhas do Guaíba, com a Equipe da Pastoral das CEBs.

Enquanto alguns defendiam que sim, precisavam do mandato, os mais conscientes passavam a defender a ideia de que o leigo não precisa de um mandato. 135


Foram nos fechando as portas e nos cortando as asas, salienta Padre Armindo. Tinha até uma expressão que dizia: “Os leigos são como as unhas, quando crescem muito devem ser cortadas!”.

Padre Armindo nas celebrações da Capela Nossa Senhora da Luz, em 1981.

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O Batismo lhe garante por si só a missão. E, dessa forma, os leigos passaram a ter uma grande autonomia de ação e organização, apoiados por Dom Helder Camara, Secretário Nacional da CNBB. Isso, por outro lado, fez com que outros Bispos reagissem, como Dom Eugênio Salles e Dom Vicente Scherer. Em 1965, menos de um ano depois do início da Ditadura Militar, o espaço dos Coordenadores da Ação Católica Especializada, junto à Cristóvão Colombo, foi fechado, por decisão de Dom Vicente Scherer, que instalou no local a sede da CNBB, sob seu comando. Em 1966, nomeou Dom Ivo Lorscheiter como Coordenador Regional da CNBB do Rio Grande do Sul. O fechamento da Igreja, em relação às causas sociais e políticas, contou com a ação de Dom Eugênio Salles e Dom Vicente Scherer que se opunham fortemente às ações de Dom Helder Camara. Foram nos fechando as portas e nos cortando as asas, salienta Padre Armindo. Tinha até uma expressão que dizia: “Os leigos são como as unhas, quando crescem muito devem ser cortadas!”. Com o fechamento do espaço, cada um tomou seu rumo. Ele foi acolhido pelo Cônego Hélio Azevedo, da Paróquia Nossa Senhora da Conceição, perto do Hospital Beneficência Portuguesa. Padre Hélio era tido como o escudo dos que eram perseguidos pela ditadura. Ajudava a esconder e levar para fora do país muitos tidos como subversivos. Padre Armindo, mais de uma vez, de fuscão, ajudou no transporte até a


fronteira para o Uruguai e Argentina. Ainda em 1966, assumiu como pároco na Paróquia Menino Deus, um local completamente abandonado e destruído, fruto da experiência da desistência de três párocos anteriores que deixaram a vida sacerdotal. Lembra que na sua posse havia 16 pessoas, sendo a grande maioria familiares seus, vindos de Canoas. Lá, conheceu um Juiz de Direito, Dr. Alaor Terra, e sua esposa, Sulema, que eram dos poucos que frequentavam a missa dominical e os convidaram para ajudar na Paróquia. Ficou por lá nove anos, até que, em 1974, a convite do Cônego José Leon Hartmann, a quem lhe deu o incentivo para que entrasse no seminário, bem como o sustento financeiro para os estudos como seminarista, aceitou ser Pároco da Paróquia São Luiz, em Canoas. Enquanto Pároco, abriu as portas da Igreja para muitas reuniões em favor da organização dos operários, de modo especial dos metalúrgicos e na formação da CUT. Aos vinte e nove dias do mês de fevereiro de 1976, a Comunidade do Sagrado Coração de Jesus foi decretada Paróquia, com a presença do Bispo Auxiliar Dom Urbano Algaiger, desmembrando-se da Paróquia São Luiz. Lhe parece que lá pelos anos de 1977 e 1978 Antônio e Matilde iniciaram seus trabalhos na Comunidade da Vila Cerne. E no Natal de 1979, fizeram a ocupação da Santo Operário. A convite do Irmão Antônio, Padre Armindo muitas vezes tem rezado missas na área de ocupação, na Comunidade Nossa Senhora da Luz. Em 1980, também por iniciativa do Irmão Antônio, participou de

Padre Armindo, na ocupação, com as crianças, em procissão até o local da Missa do segundo aniversário da Creche Vó Maria, na Páscoa de 1983.

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Acima, celebração na Capela Nossa Senhora da Luz e mapa da ocupação da Vila Santo Operário.

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um curso de Bíblia orientado pelo Frei Carlos Mestres, em São Paulo. Tratava-se de um encontro para Agentes das CEBs. Lembra que, no encontro, conheceu pessoalmente Paulo Freire, Leonardo Boff, dentre outros. Esse curso o desafiou a sair do Centro para morar mais na periferia e abraçar as CEBs. Conseguiu o apoio do Cardeal Vicente Scherer para ser Pároco da Harmonia, que, mesmo tendo deixado de ser Arcebispo, recomendou a Dom Cláudio Colling novo Arcebispo. Assumiu como Pároco da Sagrado Coração de Jesus no dia 2 de fevereiro de 1982, com a presença de Dom Edmundo Kunz, substituindo o Padre Gama, um monarquista português, que se negava a passar pela Rua da República. Salienta que num domingo convidou Dom Cláudio Colling para que rezasse não apenas na Matriz, mas em todas as comunidades e assim, a pé, andaram de alto a baixo da Santo Operário, passando pela Comunidade Nossa Senhora da Luz, Comunidade Jesus Operário e Nossa Senhora de Fátima. Em cada comunidade o Bispo, comovido com a situação, deixava pessoalmente uma doação em dinheiro. Como não tinha casa paroquial, o Irmão Antônio lhe cedeu sua casa para morar, localizada na Rua José Veríssimo, local onde depois foi transformado em Centro das Comunidades Santo Dias. Ficou por lá mais de um ano até que fosse construída a casa paroquial na Sagrado Coração de Jesus. Vários Bispos e visitantes de todos os cantos passaram por lá: Dom Adriano Hipólito, Dom José Gomes da CPT. Depois, o próprio irmão e Matilde passaram a morar por lá. Com isso, Padre Armindo começou a trabalhar mais próximo ao Irmão Antônio, especialmente rezando missas nas comunidades que eram organizadas na área de ocupação e, com isso, acabava ajudando muito, fortalecendo a luta e organização nas ocupações. Normalmente, no final das missas, eram organizadas procissões, já com os alicates prontos para cortar cercas e avançar nas áreas ocupadas por grileiros que queriam para si grandes pedaços da vila, como o caso do Sr. Adão, pai de uma participante inicial das co-


munidades e que saiu delas por discordar da ação de ocupar as terras de seu pai, que era grileiro. Lembra que a esposa do Operário Santo Dias, que foi morto numa greve em São Paulo, esteve presente naquele local, onde foi colocada uma placa com o nome dele. Viveu todo aquele processo de construção das CEBs, organizado pelo Irmão Antônio e consolidado através dos demais Agentes das CEBs que faziam reuniões mensais. Reuniam-se as irmãs, os freis e padres de duas paróquias: Pio X e Sagrado Coração de Jesus, além da Matilde e do Antônio. Essa unidade ajudou com que, em 1985, a Arquidiocese concordasse em repassar aos Freis os cuidados da Paróquia da Harmonia. Padre Armindo passou o ano de 1986 trabalhando como assessor na Pastoral Operária Nacional, visitando muitos estados. Até que em 1987, ao participar da 1ª Romaria do Trabalhador, que aconteceu no Guajuviras, Dom Edmundo Kunz lhe fez o convite para assumir a Paróquia que seria criada lá, onde trabalhou por sete anos. Algo de extraordinário na vida do Irmão Antônio – ele contou-lhe um dia, bem mais tarde – foi que o Superior Geral dos Maristas, mandou chamá-lo e quis ouvir dele qual era seu projeto, e como se sentia. Concluindo a conversa, o Geral teria lhe dito: “Como você não é enviado pela Ordem, se considere Autoenviado! Porque você assumiu por iniciativa própria todo esse protagonismo”*. E disse que isso é o que a congregação pensava hoje a seu respeito. Por fim, salientou que muito ainda será reconhecido do trabalho do Irmão Antônio: Um grande profeta dos pobres e da Ecologia. Um agente que sempre esteve à frente dos tempos!

Placa de inauguração do Centro das Comunidades Santo Dias da Silva.

Faixa em homenagem a Santo Dias, com mapa da ocupação que leva seu nome.

* Foi em 1973. Irmão Antônio realizava intercâmbio com os Centros Catequéticos da Europa, com Bolsa da Adveniat. O Superior Geral, Irmão Basilio Rueda, mandou chamá-lo, em Bruxelas. (Ver mais em texto do Irmão Albino Trevisan, pág. 225.)

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Inovador, pensador, profeta

Missa campal em 1980, na Vila Santo Operário. Ao fundo, a Capelinha Nossa Senhora da Luz, pequena demais para tanto povo.

por Padre Pedrinho A. Guareschi*

Meus primeiros contatos com o Irmão Antônio datam do final da década de 1960, especificamente dos dias tenebrosos de sua prisão, junto com mais um grupo de religiosos – Frei Betto, Padres Edgar Jost, Manuel Valiente, Marcelo Carvalheira (posteriormente bispo na Paraíba) e alguns outros líderes engajados. Redigimos uma carta de protesto com a assinatura de mais de 200 sacerdotes da Arquidiocese de Porto Alegre. Tal carta me custou, posteriormente, uma prisão e outras detenções para “esclarecimentos” pelo DOPS do Rio Grande do Sul. * Redentorista. Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFRGS. E-mail: pedrinho.guareschi@ufrgs.br

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Depois disso, participei com ele de muitos encontros em Caxias do Sul, no Centro de Orientação Missionária (COM), onde se pensaram e se forjaram inúmeros estudos e escritos dentro de uma teologia libertadora enraizada no Evangelho para defesa dos pobres, dos perseguidos e dos marginalizados. Seu “manual” de catequese, “S’imbora”, foi inspirador de muitíssimos de meus trabalhos e escritos. Esse contato permaneceu até seus últimos dias. Um dos últimos encontros foi num dos dias do tríduo da festa do Senhor Jesus do Bom Fim, na Capela da Osvaldo Aranha, onde ele se transformou com impressionante fervor e entusiasmo ao falar de seus preferidos, os catadores de lixo, os novos “médicos da humanidade” e “profetas da ecologia”. Mas é sobre um outro ponto que quero testemunhar, no qual tive a alegria de aprender e partilhar sua criatividade, intuição e profetismo. Foi bem no início da década de 1980, quando ele e sua irmã Matilde se inseriram na grande ocupação de milhares de famílias nos enormes espaços próximos ao centro de Canoas e de onde surgiu a Vila Santo Operário. Queria realçar e sublinhar o pensamento e a prática libertadora desse profeta. Logo de início, eles começaram a ver as dezenas, centenas, de famílias que acorriam diariamente àquele lugar, em busca da terra prometida. Para que aquilo não se tornasse um amontoado desordenado de casebres, sem direção nem rumo, eles, com mais alguns colaboradores voluntários, passavam o fim de semana traçando ruas, delimitando lotes, preservando espaços públicos e comunitários, pensando numa futura cidade que fosse humana, habitável, que pudesse proporcionar possibilidades de vida digna e confortável. Agora o gesto que, para mim, foi o mais extraordinário e libertador: Como fazer com que esses enormes aglomerados não se transformassem em imensos espaços anônimos, num deserto huma-

Em construção, a Capelinha Nossa Senhora da Luz, onde Pedrinho Guareschi rezou missas.

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Início das ocupações e a primeira procissão na Vila Santo Operário.

no? Foi então que ele começou a pensar e criar “comunidades”, que pudessem trazer nome e identidade àquelas aglomerações. Todos os que trabalham com grupos humanos sabem que uma comunidade (aldeia, vila, cidade, etc.) nasce e só começa realmente a se constituir como comunidade no momento em que consegue adquirir uma “identidade”, um nome, uma referência. Naquele momento, era fundamental constituir grupos que conseguissem sobreviver na avalanche de pessoas e famílias que iam chegando, quais aves de arribação, à procura de um local para se inserir e sobreviver. Era urgente formar núcleos, grupos menores onde seriam possíveis o conhecimento e relações mais pessoais, comunitárias. Exatamente isso: comunitárias. Uma das melhores definições de “comunidade” é: “um tipo de vida em sociedade onde todos se chamam pelo nome”. Quem já trabalhou em periferias e em ocupações sabe que o grande risco e perigo ocorre quando essas aglomerações informes vão se constituindo como espaços sem nome. E então começam a surgir os aventureiros, protegidos pelo anonimato e pela impunidade, que passam a explorar e dominar os demais. Foi assim que a partir dessa percepção criativa e dessa solidariedade com esses milhares de pessoas começaram a nascer as CEBS Comunidades Eclesiais (não eclesiásticas!) de Base. E esse local se transformou numa rede de comunida142


O povo começa a se organizar em comunidade, a partir do mapa das ocupações.

des, de tal modo que alguns anos depois essa vila já foi escolhida para sediar o encontro dessas Comunidades Eclesiais de Base de todo o Rio Grande do Sul. Gostaria de concluir com um ponto importante que vem realçar essa prática social libertadora. Se o Irmão Cecchin tinha consciência disso, não sei, mas certamente foi sua intuição criadora e solidária que o levou a isso. Quem se dedica ao estudo dos fenômenos sociais, ao que realmente constitui o “social”, tem de recorrer a um dos fundadores da sociologia, Émile Durkheim. Em seu livro As formas elementares da vida religiosa, ele, em determinada altura, se pergunta: O que realmente constitui o “social”, o comunitário? O que gera, o que faz nascer o “social”?

E sua resposta – uma constatação a partir dos inúmeros estudos em comunidades primitivas – é que o “social” nasce de uma “efervescência religiosa”, quando as pessoas vão à procura de algo que os una, algo que os identifique, que lhes dê nome. E então criam, ou inventam um totem, um sinal, que pode assumir diferentes formas, que passa a ser o “elemento unificador” que dá forma, sentido e identidade ao grupo. O religioso é, então, para Durkheim, o proto-social, isto é, o social original, primeiro, e o social exemplar, que serve de padrão para todas as outras dimensões sociais que vão se formando. Ora, onde foi que o Irmão Cecchin e sua irmã Matilde foram buscar esse “elemento unificador” que pudesse dar corpo, forma, IDENTIDADE, a esses pequenos gru143


O povo identifica-se com as lutas do passado e assume seus símbolos culturais.

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pos – comunidades – dentro daquela imensidão de famílias que pipocavam diariamente? Exatamente na constituição dessas comunidades “religiosas”, mas que tinham dentro de si a força e a possibilidade de atuação nas inúmeras outras áreas, como na saúde, na educação, na ação política, etc. E essas comunidades foram surgindo e sendo “batizadas” com diferentes “nomes” que os próprios moradores sugeriam, retomando em geral os “patronos” das comunidades de origem, dos locais de onde tinham saído. E foram construindo seu espaço “sagrado”, a capelinha com seu padroeiro, seu totem, santo ou santa: Nossa Senhora da Luz, em homenagem à chegada da luz na beirada da ocupação, já oficializando o espaço ocupado. Depois, N. Sra. da Saúde, do Perpétuo Socorro, de Fátima, Aparecida, Jesus Operário, Divino Mestre, N. Sra. dos Romeiros, e assim por diante. Foi a partir daí que minha participação nessa empreitada libertadora foi se concretizando e ampliando. Sou enormemente agradecido pelo que pude aprender nessas práticas e pelo que pude colaborar com um projeto que faz parte de um novo êxodo de milhares de famílias que foram em busca de mais vida, de libertação.


Queríamos mudar o mundo...

Curso de orientação para jovens, realizado pelo Irmão Antônio Bortolini (à frente).

por Domingos Armani*

Houve um tempo em que mudar o mundo era urgente e o horizonte parecia estar ao alcance da nossa mão. Todos nos sentíamos sujeitos partícipes de um gigantesco tsunami, prestes a irromper para varrer, com suas ondas benfazejas e abençoadas, toda a pobreza, violência e injustiça reinantes na face da Terra. Sinto imensa saudade daquele futuro... * Sociólogo e Mestre em Ciência Política (UFRGS) e consultor em desenvolvimento institucional de organizações da sociedade civil (www.domingosarmani.wordpress.com).

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Os Maristas no Sul estavam investindo na formação de lideranças jovens, e pensando em criar por aqui algum mecanismo de formação.

O tsunami se foi, o horizonte se distanciou, mas ele deixou muitos fluxos de energia transformadora entre nós.

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Embora o mundo tenha se mostrado mais refratário a mudanças do que nós imaginávamos então, todo aquele esforço não foi em vão, muito pelo contrário. O tsunami se foi, o horizonte se distanciou, mas ele deixou muitos fluxos de energia transformadora entre nós. Naquele contexto intenso de processos e vontades de mudança dos anos 1970, os irmãos Maristas geraram muitos fluxos inovadores. Duas experiências marcantes foram, na Região Sul, o desenvolvimento de trabalho organizado com a juventude e o trabalho com as CEBs. Ambos tiveram um papel-chave na minha trajetória política e pessoal. Foi assim... Meu irmão Beto (Emílio Roberto: 19502012) passou cerca de onze anos em três seminários católicos gaúchos, até voltar para casa, depois de um tempo no seminário de Viamão. Era 1972, acho. Ele com 22 anos e eu com 15. Ele envolvido em movimentos cristãos de jovens e eu..., bem, eu só tinha 15 anos e adorava jogar futebol. Passamos a dividir o quarto, o beliche e muitas conversas e isto mudou a minha vida! Com a proximidade do Beto vieram sugestões de leitura, conversas, testemunhos e, especialmente, a abertura para outra visão de mundo, informada pela filosofia, pela teologia, pela sociologia e pela psicologia. Li com avidez gente então desconhecida para mim, como Teilhard de Chardin, Karl Marx, Eric Fromm, Soljenítsin, etc. Eu não sabia à época, mas ele estava envolvidíssimo com a movimentação da juventude cristã na Arquidiocese de Porto Alegre. Neste contexto, os Maristas no Sul estavam investindo na formação de lideranças jovens, e pensando em criar por aqui algum mecanismo de formação. Neste processo, eles


acabaram enviando gente para formação em Bogotá/Colômbia e Mendes/ RJ, onde havia um Curso de Lideranças Cristãs - CLC , sob a orientação dos próprios Maristas. Pois o Beto foi um dos enviados a Mendes, em julho de 1971. Vejam: tudo isso acontecendo em 1971, 1972, pouco tempo após a edição do AI - 5 (dezembro/1968), da prisão e tortura dos frades Dominicanos em São Paulo (Frei Betto dentre eles) e ainda durante o perío­ do mais brutal do regime militar, quando as forças de esquerda estavam sendo perseguidas e dizimadas no país. Nesse contexto, muitos religiosos enfrentaram enormes riscos no seu compromisso ético e cristão por uma sociedade justa e democrática. Muitos deles Maristas. O próprio Ir. Cecchin foi preso, pela primeira vez, em novembro de 1969, no mesmo dia de Frei Betto, e depois, novamente, em abril de 1972. Logo após o retorno do grupo que foi a Mendes no CLC, houve uma reunião nos dias 7 e 8 de agosto de 1971, na qual foi decidida a criação, sob a orientação e proteção dos Maristas, do curso dirigido para jovens denominado CETA – Centro de Treinamento para a Ação. O nome dizia bem a que vinha: preparar jovens, sob orientação cristã, para ações sociais transformadoras. O Beto fez parte do grupo inaugural, denominado 1CETA1 em janeiro de 1972. O curso compreendia 30 dias de formação, divididos em etapas

A comunidade Marista preparava jovens, sob orientação cristã, para ações sociais transformadoras.

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Irmão Antônio Bortolini, da equipe de Catequese, ministrando curso de Renovação Catequética junto com Matilde Cecchin.

As diversas correntes políticas semiclandestinas procuravam atrair o maior número de jovens para suas agremiações, via debates políticos, leituras, convites, etc.

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anuais de 10 dias cada. A referência marista e liderança maior do CETA era o Ir. Antônio Bortolini, carinhosamente chamado por todos de Bortola. Paralelamente, eu finalizava o então 2° Grau no Colégio Champagnat (1975, Porto Alegre), do qual o Ir. Firmino Biazus foi diretor por alguns anos. Ele também, vejam só a “coincidência”, envolvido no CETA. Em 1976, ingressei no curso de Geologia da UFRGS. A vida universitária, naquele contexto político, abriu o mundo para mim. Presidi o Centro Acadêmico, CAEG, por um período e a movimentação estudantil era nada menos do que febril. As diversas correntes políticas semiclandestinas procuravam atrair o maior número de jovens para suas agremiações, via debates políticos, leituras, convites, etc. Lá estava eu no Centro Acadêmico, meio perdido, sob a influência do PCdoB. Daí, no segundo ano de curso (1977), fui convidado por colegas a fazer um curso político chamado... CETA! Bingo! O Bortola era nosso líder inspirador e coordenador, que muito marcou com sua espiritualidade, sensibilidade, compromisso, coerência e firmeza. O convite foi como um sopro do Espírito Santo, como diria o Bortola. Era a oportunidade que eu precisava para mergulhar no estudo do Brasil sem as viseiras ideológicas dos agrupamentos de esquerda da época. O Bortola expressava uma profunda fé cristã que foi muito importante para nos fazer “dar passos na caminhada”. Ele era inspirador, mas também capaz de alguma dureza quando julgava necessário (lembro de uma de suas provocações: “O casamento é o túmulo dos revolucionários!”). Saudoso Ir. Bortolini... Ele foi decisivo na criação e condução do CETA, que formou centenas de jovens entre 1971 e 1983. Em 1978, o Bortolini foi morar no bairro de Canudos, em Novo Hamburgo, onde há hoje uma UPA com seu nome. Este movimento era parte da intensa onda brasileira e católica daquela época, de forma-


ção das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs nas periferias urbanas em todo o país. Não tive mais contato com ele depois do término do CETA. Ele faleceu muito cedo, em 1996, aos 68 anos de idade. O Centro Social Marista localizado no Loteamento Santa Teresinha, antiga Vila dos Papeleiros/P. Alegre, também leva o nome do Ir. Antônio Bortolini. Bem, eu fiz o 11CETA1 em 1978, o CETA2 em 1979 e o CETA3 em 1980. E aí os meus caminhos se cruzaram com os do meu irmão Beto. Descobrimo-nos participando do mesmo movimento juvenil – o CETA. Mas fazer o CETA não era apenas fazer um curso de formação, afinal, o treinamento era para a ação! Assim, nós éramos desafiados a nos engajarmos com processos de ação social e política, seja no movimento estudantil, seja nas CEBs, nos movimentos populares e mesmo em ações missionárias (imersão por um período longo em comunidades pobres de regiões marginalizadas, como o sertão da Bahia, por exemplo). Neste momento, de um jeito curioso, cruzei a ponte entre o Ir. Bortolini (CETA) e o Ir. Antônio Cecchin (CEBs). Num dado momento de 1978 ou início de 1979, fomos num pequeno grupo de Cetistas visitar o Bortola em sua nova morada em Novo Ham-

Curso do 11CETA1, em 1978, mais do que formação: um treinamento para a ação.

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Nas ocupações, o povo se organiza e se reúne, comemorando a cada conquista.

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burgo. Na conversa, ele mencionou o fato de que o Ir. Cecchin morava na periferia de Canoas, fazendo um trabalho de CEBs, e que estava em busca de ajuda no trabalho lá. Cecchin estava saindo de sua casa na Vila Cerne, uma área popular já regularizada, no Bairro Harmonia, para uma casa na Vila Santo Operário, uma ocupação recente no mesmo bairro. Pronto: travessia feita! Rapidamente, formamos um grupo de cinco interessados, discutimos muito e aceitamos o desafio. Depois de seis meses morando juntos em Porto Alegre como um período de preparação, um grupo de quatro Cetistas mudou-se para a casa que recém o Ir. Cecchin deixara e iniciamos uma rica jornada de mergulho na realidade social brasileira. Ela durou dois anos, de novembro de 1979 a dezembro de 1981. O Ir. Cecchin trabalhava lado a lado com sua irmã Matilde, numa atividade incansável de conscientização, organização e mobilização comunitária, alimentada pela Teologia da Libertação e pela pedagogia de Paulo Freire. Meu Deus, como aprendemos com eles dois! O Cecchin tinha ótima formação e um grande conhecimento bíblico. Afinal, ele era uma referência em Catequese, não só no Brasil. Era alto, falava com convicção, era vibrante, tinha fundamentação e mantinha um sorriso que, por vezes, se transformava numa boa risada. Lembro da simplicidade e da frugalidade com que ele vivia na ocupação, de sua busca por uma alimentação saudável e sua crescente aproximação com a questão do meio ambiente, também teologicamente. Tudo era muito coerente na sua vida de dedicação plena aos pobres e injustiçados. Em Canoas, nos envolvemos intensamente com a associação de moradores, com o movimento sindical, com o processo de construção do Partido dos Trabalhadores e tantas coisas mais. Mas o


principal era mesmo o trabalho de CEBs com o Cecchin e a Matilde. Este trabalho era muito interessante, ao desafiar-nos a provocar nas pessoas uma reflexão crítica sobre suas condições de vida, sobre os porquês dela e a necessidade e possibilidade de superação, utilizando-se como referência mobilizadora os valores cristãos e como método a Educação Popular. Era o que então se denominava de “práxis” (a conexão coerente entre teoria e prática). A Teologia da Libertação desempenhava aqui um papel fundamental, já que oferecia a articulação entre uma análise crítica da realidade social e uma leitura contextualizada da Bíblia. No fundo, o grande valor do método que utilizávamos era levar as pes­ soas a pensarem de forma crítica e sistêmica, a partir de valores e princípios emancipatórios, estimulando-as a tomar uma atitude mais proativa, tudo isso articulado por uma espiritualidade libertadora. E funcionava? Alguém poderia perguntar... Muito! Acho que se pode dizer, sem medo de errar, que a maior parte das melhores experiências de organização popular dos anos 1970 e 1980 no Brasil provinha deste tipo de abordagem. E que delas surgiram iniciativas muito importantes para a defesa de direitos, a democracia e para um desenvolvimento justo e sustentável ainda em curso. Claro, hoje faríamos muitas coisas de forma diferente, usando novos conceitos e abordagens, evitaríamos alguns equívocos, mas a inspiração básica segue a mesma: favorecer o processo de autoconhecimento e autodesenvolvimento das pessoas, uma leitura

O povo na Vila Santo Operário ressaltando a união nas lutas. No campo e na cidade, os ideais eram os mesmos: um desenvolvimento sustentável e justo.

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Jovens debatiam ideias e ações de solidariedade e conscientização.

crítica de mundo, o envolvimento delas com suas circunstâncias e com o futuro da humanidade a partir de uma perspectiva ética e política emancipatória. Depois de dois anos, eu voltei a Porto Alegre, me envolvi com a fundação de uma nova organização, também destinada ao trabalho de educação popular, o CAMP. Lá, trabalhei nos anos seguintes – 1983 a 1991, aproveitando muito dos aprendizados de educação popular obtidos na imersão em Canoas. O Ir. Cecchin voltou-se para o trabalho com a população das Ilhas e poucas vezes o encontrei a partir daí. Aquele período em Canoas, embora curto, foi intenso em vivências e aprendizados valiosos ainda hoje. Uma das coisas que lá aprendi com o Cecchin foi a de que, ainda que as condições de vida possam ser bastante precárias, as pessoas podem mudar a sua vida. Há que se dedicar, apostar nelas, na sua capacidade de resiliência, de transcendência, oferecer apoio e orientação para favorecer processos de mudança pessoal e coletiva. Nesta caminhada continuo.

Salve, Ir. Cecchin! Romaria da Terra, em 1984, na Vila Santo Operário.

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Sempre há esperança de contribuir

Creche Vó Maria, homenagem para a primeira moradora da favela Guabiju

por Zilá Regina Kolling*

Ao iniciar este relato, especialmente por ser feito em razão da morte de Antônio Cecchin, meu coração passou a verter... Verte o choro da lembrança de * Licenciatura em Pedagogia/ UFRGS e Aperfeiçoamento/ UFPel, em EJA NA DIVERSIDADE. Professora concursada pelo Estado no município de Taquara/RS. Leciona no 4º ano e na alfabetização de adultos.

momentos tão intensos vividos em um período de final de adolescência. A esperança de contribuir para uma mudança de paradigmas, a convicção de que outro mundo era possível, tudo isso pulsando na veia, suando na pele. As emoções e os sentimentos fervilhando! 153


No curso de evangelização dezenas de jovens entravam em contato com a realidade em que o povo brasileiro vivia mergulhado: pobreza, violência, necessidades de todo o tipo, como saúde, educação, moradia.

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Assim como o Bortolini, que fez a passagem bem antes, Antônio Cecchin acreditava que os Evangelhos eram inspiradores de uma prática de libertação não somente nos céus, mas aqui na Terra, onde nossa alma habita temporariamente. Bortolini criou um curso de evangelização denominado Centro de Treinamento para a Ação, o querido “CETA”. (Como SETA que sai do arco e alcança objetivos distantes.) Nesse curso, constituído de três etapas de dez dias cada uma, dezenas de jovens entravam em contato com a realidade em que o povo brasileiro vivia mergulhado: pobreza, violência, necessidades de todo o tipo, como saúde, educação, moradia. A proposta era de vivência junto aos trabalhadores urbanos e rurais, aos índios, negros e mulheres. O questionamento sempre premente: Como chegar aos céus sem que se estabeleça uma nova ordem na Terra? Alicerçados na Teologia da Libertação, saíamos de cada fase do CETA com mais certeza da necessidade da ação. Das etapas em que participei surgiram grandes amizades, amores e tendências políticas. Vários grupos se formaram e foram morar em locais urbanos de vulnerabilidade, como bairros e vilas. Nos espalhamos por Canoas, Gravataí, Cachoeirinha, Viamão, Porto Alegre e até pelo Brasil inteiro. Havia grupos no interior do RS que alcançavam agricultores. Vera, Stela, Domingos e eu fomos morar de forma comunitária na Vila Cerne em Canoas, aliando-nos ao grande movimento das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Liliaci que também já morava em Porto Alegre, com a gente, encontrou seu amor e ficou. Alugamos a casa que anteriormente tinha sido ocupada pelo próprio Antônio. Lá entramos em contato com ele e sua irmã Matilde. A casa pertencia ao Seu Hervino e Dona Ercília.


Eram duas casas no mesmo pátio cheio de plantas, árvores, flores e pássaros. Além de duas filhas e um genro, Dona Ercília tinha o “LORO”, que cantava e dançava. Antônio contava a história de que algumas vezes o bichinho anunciava o carteiro em alto e bom som. Ele saía para rua e não havia ninguém, somente as risadas do LORO debochando dele. Antônio não descansava, sempre articulando e buscando contatos que levassem as pessoas a se unirem por seus direitos. Nosso grupo participou de um embate contra a Prefeitura de Canoas. O bairro ficava frequentemente sem água, a iluminação era precária e não havia rede de esgoto. As lideranças foram conversando, reunindo e, por fim, tivemos o movimento de enfrentamento com o prefeito, que acabou acatando várias reivindicações, pois o número de moradores participando foi bastante grande. Trabalhamos com grupos de jovens, clube de mães, associação de moradores, e aí conheci um casal que morava no mesmo bairro, trabalhando pela FASE

No alto, caminhada do povo na ocupação na Vila Santo Operário. Ao lado, as crianças da comunidade preparam o Natal.

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As crianças da comunidade da Vila Santo Operário, em mutirão, preparam a celebração natalina.

(entidade política de inserção popular). Companheiros que, mesmo distantes, continuam vizinhando minhas memórias (Lúcia e Adair). As discussões teóricas eram infindáveis. Qual o significado de nosso papel lá naquele meio? Qual o conceito de intelectual orgânico? Antônio e Matilde relembravam os evangelhos como luz esclarecedora. Matilde, querida, puxava as procissões na vila, em datas como Páscoa ou Romaria da Terra. Sempre disposta a deixar seu irmão confortável. Lutava pelos direitos das mulheres, mas dedicava-se completamente aos cuidados com o Antônio. Penso que este livro também deve ser dedicado a ti, Matilde! Tua força e coragem sempre foram impressionantes! Nesses tempos, ainda, assentaram-se as bases para a fundação do Partido dos Trabalhadores. Estávamos presentes. E pudemos ver Dom Pedro Casaldáliga rezar uma missa na Capelinha, pedindo a união entre os trabalhadores do campo e da cidade. Muitos companheiros das Comunidades Eclesiais de Base continuam firmes na luta, assim como lideranças populares daquele bairro, pois ainda nos encontramos nos movimentos sociais. Infelizmente, a história está repetindo um ciclo profundamente triste. Parece que sem muita luta a Nova Terra não se materializará. Talvez tenhamos que revisitar aquele tipo de ação junto à juventude. Penso que o mundo continua precisando de muitos Bortolinis, Antônios e Matildes que costumam dedicar suas vidas a melhorar a vida de outros rumo aos “Novos céus e uma nova Terra”!

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Nossa experiência com o Irmão Cecchin Curso de plantas medicinais, em 2003, mães do Bolsa Escoal, na colheita de calêndula, em Dourados/MS. * Oracélia: Formada em Ciências Físicas e Biológicas e Pedagogia em MG. Foi professora, e entrou na OPAN (Operação Anchieta), organização que trabalhava com índios e trabalhadores rurais. Trabalhou na organização dos Sem Terra e do Movimento de Trabalhadores Rurais. Trabalhou também com as Mães da Bolsa Escola, dando curso de alimentação alternativa e uso de plantas medicinais. Atualmente, está aposentada e mora na Chácara da Picada Café no RS. Senésio: Entrou no seminário dos Jesuítas-São Leopoldo. Graduou-se em Filosofia e em Sociologia. Entrou na OPAN e fez estágio com o Irmão Antônio Cecchin, com os Trabalhadores Rurais. No Mato Grosso do Sul trabalhou nas CEBs, CPT e MST. Esteve na organização da grande ocupação da Gleba Santa Idalina pelo MST, em 1984, com mais de mil famílias ocupantes. Iniciou carreira no Magistério lecionando História, Filosofia da Educação e Sociologia da Educação. Atualmente, cultiva alimentos em uma Chácara em Picada Café-RS, em sua terra natal, onde contempla a natureza e reflete sobre o sentido da vida.

por Senésio Kuhn e Oracélia de Oliveira Kuhn*

Em janeiro de 1979, chegamos em Canoas, mais especificamente na Vila Cerne, para um estágio com o Irmão Antônio Cecchin. Pertencíamos à OPAN e fomos para uma experiência de trabalho com movimentos populares. Cecchin possuía uma casa na Vila Cerne e fazia um trabalho de conscientização com os moradores da Vila. Ele nos abrigou em sua casa até que encontrássemos trabalho e uma casa para alugar. 157


Grupo de estagiários da Vila Cerne, em Canoas /RS, 1979.

Primeiro assentamento de Sem Terra/MS, 1984.

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Conseguimos um trabalho de boia-fria em grandes hortas de produção de verduras, onde fazíamos a limpeza dos canteiros. À noite, com a orientação de Cecchin preparávamos o material de alfabetização de adultos, baseado no método de Paulo Freire. Além de traduzir o material que estava em espanhol, pois Paulo Freire ainda estava no exílio, Cecchin nos ajudava a escolher palavras geradoras com as quais trabalharía­mos. Durante o dia, nós fazíamos nosso trabalho nas hortas e Cecchin fazia suas visitas às famílias da comunidade e assim foi formando um grupo de alfabetizandos que, à noite, vinha até a sua casa, duas vezes por semana, para participar das aulas. Foram noites muito ricas e inesquecíveis onde, com a orientação de Cecchin refletíamos, junto, com os alfabetizandos sobre as causas das dificuldades daquelas pessoas sem terra, sem casa e sem mesmo a oportunidade de aprender a ler e escrever. Só depois de adultos, estavam tendo a oportunidade de aprender a ler e escrever, graças a um homem que durante a vida sonhou e lutou por um mundo mais justo e fraterno. Ficamos na Vila Cerne durante seis meses, tempo que marcou a nossa vida e que jamais esqueceremos do quanto nos ajudou no nosso trabalho junto à CPT no Mato Grosso do Sul. Cecchin continuou seu trabalho com os trabalhadores da Vila Cerne, e nós levamos em nossa bagagem, além do conhecimento, também o testemunho de um homem que nunca desacreditou da luta. Por isso é que, quando enfrentávamos dificuldades no nosso trabalho de organização dos trabalhadores e trabalhadoras rurais, e nos sentíamos desani-


Antônio Cecchin foi um homem que durante a vida sonhou e lutou por um mundo mais justo e fraterno.

Reunião de lideranças do Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais no Mato Grosso do Sul.

Em Dourados/MS, produção de artesanato com as mulheres acampadas.

Trabalhadoras rurais reivindicando direitos previdenciários, em Brasília.

Primeira missa no assentamento Padroeira do Brasil, em Nioaque/MS, em 1984.

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mados, lembrávamos do testemunho de vida de Antônio Cecchin. Então a gente recobrava coragem para seguir em frente. Antônio Cecchin, um homem que tinha mais de santo que de homem. Continuará na memória de todas as pessoas que tiveram o privilégio de conhecê-lo e conviver com ele. Onde você estiver, Cecchin, receba a nossa eterna gratidão por tudo que você nos transmitiu. Seus amigos e discípulos.

Oracélia e Senésio participaram da luta pela ocupação da Vila Santo Operário.

Bilhete de Irmão Cecchin para as oficinas de alfabetização e um dos mapas das ocupações.

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Com o Irmão Antônio

Missionária seguidora de Cristo

Colocação da pedra fundamental da Capela da Comunidade Sagrada Família, em 1983.

por Tania Regina de Souza Carretos*

Conheci os irmãos Cecchin lá pelos anos 1980, quando eu, meu marido e nossos 6 filhos viemos morar na Vila Mathias Velho, Canoas. Já no ano seguinte, 1981, fomos nos integrando e participando das primeiras comunidades da Mathias, a de Nossa Senhora Aparecida, meu marido e eu, de início, nos tornamos Ministros da Eucaristia. E isso nos foi comprometendo Preparo do sopão para os desempregados na Vila União dos Operários, ocupação em Canoas, em 1983.

a entrar na luta da comunidade: reivindicar um chão para morar. * Líder comunitária. Ministra da Eucaristia Vila Mathias Velho-Canoas

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O Irmão Antônio doou para a comunidade uma imagem exposta, até hoje, em nossa capela e que conservamos carinhosamente: Maria com o menino Jesus no colo, sentada no burrinho, e José conduzindo-os (fuga para o Egito).

É verdade que nossa família já possuía seu lote, sua casa. Mas era preciso juntar-se e batalhar com os que nada disso tinham. E nos colocamos logo ao lado daquela porção de nossos irmãos que reivindicavam direito à moradia. E a partir daí é que nos aproximamos mais do Antônio e da Matilde, que também estavam lutando ao lado do povo, na conquista por esse direito de ter um chão, uma terra. Dessas duas pes­soas maravilhosas aprendi que não devemos nunca nos acomodar pelo fato de já termos terra, casa, que devemos ajudar os outros a também ter moradia, trabalho, comida na mesa. Foram muitas as nossas lutas juntos. Teria muito a dizer sobre isso, não teria fim... mas, muitas lembranças do Antônio, recordo que ele se colocava tão profundamente ao nosso lado, das mulheres, das mães que, mais de uma vez, disse: “Nós, as mães, não devemos temer os poderosos, pois Deus está do nosso lado.”

Portinari assim desenhou a Sagrada Família em fuga para o Egito.

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Aprendi muito com ele. “A terra é de todos!” Cantada com tanto ardor, pela comunidade, expressava que não devemos desistir nunca de nossa luta. Motivadas por Antônio e Matilde, as mulheres, nos Clubes de Mães, lutavam por conseguir água, luz, escola para os filhos, trabalho e rua traçada na “invasão”. Eles nos ensinaram que a mulher também pode sair de casa para trabalhar e conquistar seu espaço. O Irmão Antônio doou para a comunidade uma imagem exposta, até hoje, em nossa capela e que conservamos carinhosamente: Maria com o menino Jesus no colo, sentada no burrinho e José conduzindo-os (fuga para o Egito). No dia 16 de novembro de 2016, fiquei sabendo da morte do Antônio. A tristeza foi tanta que adoeci, tive de ser hospitalizada, com problema muito grave na coluna, que me deixou sem andar por dois meses.


Só agora (fins de janeiro) pude conversar com a Matilde sobre a morte do nosso guia. Expresseilhe meu coração apertado pela dor da perda e por não ter podido me despedir dele. O que me consola é que uma pessoa como ele sempre foi deve estar no céu olhando e torcendo por nós. Os Clubes de Mães hoje: Pastoral da Mulher, Pastoral da Criança, Pastoral Operária e as diversas lutas do povo da Mathias, das Ilhas, dos Galpões, agora estamos órfãos, pois nosso querido amigo e animador nos deixou. Ficou seu legado que a luta deve continuar e sermos sempre missionários do próprio Deus, com o lema: “Juntos sempre seremos mais fortes!”

Tânia, o marido Saul e as duas filhas, além de Irmão Antônio e Frei Argemiro, “enxameando” para formar outras comunidades em áreas de conflito.

Mães, em mutirão, fazendo acolchoados de trapos para libertar seus filhos do frio. A realidade, Vila União dos Operários, Clube de Mães Divino Mestre, e a arte (acima), pela mão de Esther Bianco, artista plástica.

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Ocupar, ampliar a vida e conviver na ressurreição!

por Ivo Fiorotti * Oração dominical em frente à Igreja Divino Mestre, União dos Operários (1982).

Costumo dar passeios de bicicleta noturnos, que aparentam serem diurnos, nas iluminadas ruas da Vila Santo Operário. Pedalo pela Negrinho Santo, cumprimento moradores em frente de suas residências e passo pela Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. São 2,5 km de oeste a leste da vila, rememorando o nome das ruas em que cruzo: biscateiros, professores, clube de mães, costureiras, pintores, montadores, metalúrgicos, pedreiros, ferreiros e carpinteiros. Retorno pela rua central, a Índio Sepé, requebrando essas vias que marcam as profissões de seus habitantes, passando pelas Capelas Nossa Senhora da Saúde (Ferreiros) e Nossa Senhora da Luz (Pescador São Pedro). * 57 anos, ex-frade capuchinho (1980-91), esposo de Ivonete, pai de Rahamina e Ivan, avô de Benjamin, teólogo, pós-graduado em Ciência Política, mestre em Memória Social e Bens Culturais, vereador em Canoas.

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Estas ruas Negrinho Santo (Negrinho do Pastoreio) e São Pedro Pescador estruturam a vila com pouco mais de 3,5 mil lotes, acrescidas pelas ruas Zumbi, Manoel Fiel, São João Batista e Santo Antônio dos Pobres. Percorro mais de 6 km de ruas asfaltadas e iluminadas, chegando à comunidade de Jesus Operário. Um filme sempre em construção de lembranças povoa minha memória, tentando sempre localizar barracos, em lugar das lindas casas, e taipas sinuosas, no lugar do leito de ruas asfaltadas, com bocas de lobo que fazem sumir as águas, imaginando as águas fétidas dos tempos da ocupação. Irrompem flashes das peleias entre lideranças e moradores tentando alinhar ruas, quando da chegada da água encanada e da luz elétrica residencial. De todos os acontecimentos, rememoro o evento fundante que ocorreu no Natal de 1979. A presença inseparável de Antônio e sua mana Matilde, acompanhados de um grande punhado de desempregados(as) e subempregados(as), protagonizando a ocupação. Melhor dito: da atualização do nascimento de Jesus na manjedoura, com a ocupação desta granja de arroz; da escolha do nome da vila em homenagem ao testemunho do mártir cristão das Comunidades Eclesiais de Base e metalúrgico do ABC paulista, Santo Dias da Silva; da nominação das ruas com as profissões de seus moradores, santos populares e heróis combativos; da construção das moradias, demarcação dos lotes, das lutas pela água encanada, da energia elétrica residencial, da iluminação pública, enfim, do asfalto das ruas e da regularização fundiária. O início de tudo, a fé comum que gerou comunidades e um punhado de regras gestadas, discutidas, acordadas e cumpridas: os mandamentos do morador! O nascimento de nossa amizade ocorreu nos primeiros anos da década de 1980, junto à ocupação da vila “União dos Operários” e das lutas na ocupação da vila “Santo Operário”. Desta amizade fui iniciado na “práxis da libertação” junto às CEBs – Comunidades Eclesiais de Base – e aos movimentos sociais. Hoje, como vereador em que fui partícipe do processo de re-

Ao alto, a Capela Divino Mestre e o mapa das ocupações.

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Boletim da Associação dos Moradores da Vila Santo Operário, setembro de 1980.

gularização destas vilas, recordo de um desafio que Ele repetiu muitas vezes, em relação a estas duas ocupações, sendo a União dos Operários estruturada após a vitória da posse da terra em 18 de novembro de 1983: “Ivo, a União dos Operários tem que ser nossa obra-prima, pois o estágio de aprendizado foi com a Santo Operário”.

O início de tudo, a fé comum que gerou comunidades e um punhado de regras gestadas, discutidas, acordadas e cumpridas: os mandamentos do morador!

A prática reflexiva de Antônio despertou muitos religiosos a atuarem como agentes de pastoral nas periferias urbanas. Ele nos iniciou na metodologia de animar os pobres a gestarem as CEBs. Estas comunidades includentes dos pobres se organizando em variados serviços, resolvendo a carência de suas necessidades básicas: o vestuário no mutirão das mães; o pão nos fornos comunitários; alimentação saudável nas hortas caseiras e comunitárias; o alimento nutricional e educação familiar na pastoral da criança; o despertar catequético no clubinhos das crianças, dentre outros. Mas, também, a acompanhar a militância dos pobres reivindicando seus direitos nas associações de moradores, nos sindicatos e no Partido dos Trabalhadores; sem contar nas organizações da Associação dos Carroceiros e Catadores, a Associação Colonos-Operários e a Associação da Horta Comunitária União dos Operários. Lembro que nas rodas de intelectuais, sempre havia os que se maravilhavam com a capacidade política destas lideranças populares em suas organizações. Antônio, com certa ironia, declarava: “Marx deve estar dando voltas em sua sepultura, por não ter acreditado na força dos lumpens”! Pesquisando as narrativas de um grupo focal com antigos moradores da Vila União dos Operários, emer-

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giram muitos detalhes rememorando o sino chamando para a resistência, os mandamentos do morador, a Romaria da Terra, a organização dos lotes, as Frentes de Trabalho. De repente, Juvila Lopes sentenciou: “E o canto do Irmão Antônio!”. Com lágrimas nos olhos, irrompeu o canto: “A terra é de todos, disse Deus a Adão: toma e cultiva, tira dela seu pão”. Sabendo da variedade confessional dos ocupantes do antigo Jóquei Clube de Canoas, o “Prado”, Antônio apresentou-se inicialmente como professor, junto com o advogado Jacques Alfonsín. No mesmo dia 25 de maio de 1980, em que, pela manhã, ocorreu a grande assembleia que batizou a Vila Santo Operário e reordenou uma Associação que havia sido fundada cerca de dois anos antes com ocupantes da favela do Guabiju, à tarde, cerca de trinta ocupantes foram convencidos a fundarem a Associação dos Moradores da Vila União dos Operários. Disse Juvila na pesquisa: “Não sabíamos bem o que era, mas se o advogado e o professor diziam que ajudava a ficar na terra, longe do aluguel, então aceitamos. Depois fomos aprendendo, lendo na Bíblia que o Antônio nos deu, que a força estava na força da nossa união. Aí deu pra entender o nome da vila, União dos Operários”. Tanto nos quatro anos de resistência até a vitória judicial da posse como nos quatro anos seguintes em que ocorreu a estruturação da vila, com seus mais de 800 lotes e cinco espaços comunitários, qualificamos nossa ação, eu e os demais agentes da pastoral, com a ação e a reflexão deste educador de militantes populares. Recordo que o auge foi em 1985-86, na construção do 6º Intereclesial das CEBs. Tanto na etapa local, regional e nacional, as façanhas das ocupações de Canoas ficaram não só conhecidas, como foram objeto de aprendizado metodológico e base de construção dos conceitos eclesiais e de organização popular. Lembro-me de Bracidina Rodrigues, analfabeta das letras, mas mestre na organização dos serviços das mães e da luta pela moradia, sendo ouvida em grande silêncio em plenárias com mais de 600 pessoas, como em Santa Maria (1985)

Caminhão da coleta, 1989.

De repente, Juvila Lopes sentenciou: “E o canto do Irmão Antônio!”. Com lágrimas nos olhos, irrompeu o canto: “A terra é de todos, disse Deus a Adão: toma e cultiva, tira dela seu pão”.

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Galpão de Reciclagem da Sertório.

Ele foi um permanente formulador de ações inovadoras. Extrato do 1º Caderno de Organização da horta.

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e em Trindade/GO (1986). E o Irmão Antônio, a partir dessa e tantas outras falas, realizava as sínteses da organização eclesial e das ferramentas de força social dos pobres, nos movimentos sociais! Ele foi um permanente formulador de ações inovadoras. Na grande crise do desemprego em 1983-84, o movimento social conquistou as Frentes Emergenciais de Trabalho, gerenciando a contrapartida do rancho básico de 21 kg de alimentos com trabalhos comunitários. Os homens demarcavam as testadas dos terrenos. Na alagadiça Vila Santo Operário, qualificavam-se as taipas. Na Vila União dos Operários, faziam-se os “valinhos”. As mulheres, nos mutirões, fabricavam acolchoados. Como muitos vinham da roça, aproveitou-se uma área comunitária de 1 hectare e inovou com uma experiência socialista de roça comunitária. Produziram-se hortaliças e legumes, mas a novidade era sua concepção de trabalho e distribuição de seus frutos. Em 1987, passou a uma forma mista de canteiros in-


dividuais e instrumentos comunitários. Hoje, a Hocouno – Associação da Horta Comunitária União dos Operários congrega 32 associados e outros serviços de cultura, assistência social e aprendizagem. Foi ele que, logo após licenciar-me em Teologia na PUC/RS, me desafiou a trilhar na assessoria pastoral da caminhada de CEBs e Movimentos Comunitários. Fundamos a Casa de Inserção Santo Dias, na Rua União, na Vila Natal, em Canoas. Lá, convivi por dois anos (1987-88) com meu mano, Frei Egídio Fiorotti (acompanhava a Pastoral Operária – PO) e Frei Wilson Dallagnol (acompanhava a Pastoral da Terra – CPT). Convivíamos alguns dias específicos no mês, orando e refletindo nossa práxis. Éramos ativistas na base, assessorávamos encontros em nível estadual e nacional, além de mantermos presença na reunião mensal no ECORES, uma instância de assessoria da Regional SUL3 da Conferência Nacional dos Bispos de Brasil, no RS. Foi uma rica experiência de refletir sobre a práxis e partilhar reflexões com expoentes da TdL – Teologia da Libertação. Irmão Antônio não só dinamizava a base popular com os pobres, bem como incentivava quadros nos meios acadêmicos, religiosos e outros, animando a caminhada dos pobres! Abriu-me as portas junto com outros religiosos e leigos para participar de espaços nacionais, como na ampliada das CEBs que articulavam os Intereclesiais, no CESEP com seus cursos de verão em São Paulo, no CEBI com suas jornadas de formação aprofundando a leitura popular da Bíblia e em tantas outras instituições de apoio às lutas populares. Com seu aval, estive frequentando por quatro meses um seleto grupo de

Como muitos vinham da roça, aproveitou-se uma área comunitária de 1 hectare e inovou com uma experiência socialista de roça comunitária.

Inauguração do asfalto na Rua Santo Antônio (Santo Operário, 2010) e regularização fundiária na União dos Operários (2011).

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Inscrição de Sepé Tiaraju no Livro dos Heróis da Pátria, no Panteão da Democracia e da Liberdade – Brasília, setembro de 2012.

Quantas e quantas vezes ouvi dele a mensagem proferida pelo líder popular guarani e corregedor da redução de São Miguel: “Esta terra tem dono! Ela nos foi dada por Deus e São Miguel! Só eles têm o direito de nos deserdar”.

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militantes latino-americanos, trocando experiências de nosso engajamento nas mais variadas formas de luta pela libertação da Pátria Grande, a América Latina! Ele foi também um bom pai e mãe de muitos, humano em tudo, nesta longa caminhada dos que andavam na trilha da irrupção da força dos pobres! Às vezes, perdia a linha conosco e ocorriam separações. A luta pela abundância de vida aos pobres acabava nos juntando! Muito mais: aprendemos com ele que as iniciativas comunitárias deveriam se tornar políticas públicas. O quanto de sua caminhada e de outros que como ele que foram profetas do Reino de Deus contribuiu com a formulação das inovadoras políticas de inclusão implantadas nos governos municipais, estaduais e do próprio governo liderado pelo Lula! Em Canoas, comemorou com o poder público e os moradores das vilas de ocupação a chegada do asfalto e a entrega da titularidade dos terrenos, em atos dos programas municipais de participação como o OP- Orçamento Participativo e o Prefeitura na Rua. E assim seguem tantas e tantas rememorações de múltiplas facetas da caminhada dos pobres por vida em abundância, rumo à sociedade de irmãos felizes e libertos. A última foi na celebração da missa de sétimo dia do companheiro e sempre verea­dor Oli Borges, na Comunidade Jesus Operário. Ele chegou ao início da celebração. Frei Wilson Dallagnol, que estava presidindo, lhe oportunizou a palavra para uma breve reflexão. Ele discorreu sobre a certeza da ressurreição na morte, na libertação definitiva para o encontro com o divino. Recordo de suas deixas, quando referiu de que não havia chegado sua hora e que o Oli, com 30 anos a menos que ele, havia realizado este feito de esperança numinosa da vida. Mal sabia ele que, em menos de um mês, também concretizaria esta divina experiência. Antônio Cecchin, presente e ressurrecto em cada um de nós que teve o privilégio de conhecê-Lo, bem como nas boas lembranças revividas em nossas memórias!


CEBs - Reconstruindo a Igreja de Jesus a partir dos Pobres

Na trilha dos descendentes de Sepé Tiaraju por Egídio Fiorotti*

Era início de 1984, quando, finalmente, conseguimos superar todas as barreiras internas na Instituição dos Frades Menores Capuchinhos do Rio Grande do Sul e fomos designados a morar entre os pobres da periferia. Sob o ponto de vista dos estudos teológicos, era uma oportunidade para a realização de Estágio Pastoral. * Licenciatura em Teologia pela PUCRS, Licenciatura em Filosofia pela FAFINC, com habilitação em História e Psicologia, e Pós-Graduação em Gestão Pública pela UNICAMP.

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Os encontros da Pastoral Operária refletiam sobre os desafios do mundo do trabalho, iluminados a partir da Palavra de Deus.

Clubes de Mães, na Vila Santo Operário.

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Meu encontro pessoal com o Irmão Antônio se deu em uma das reuniões preparatórias da 7ª Romaria da Terra, que ocorreu no dia 6 de março de 1984, na Vila Santo Operário. Passados alguns dias da realização da Romaria da Terra, fui desafiado a acompanhar as reuniões que eram realizadas, todas as sextas-feiras, na casa do operário eletricista Vilsolirio de Souza, da Comunidade Nossa Senhora Aparecida. Tratavase de encontros da Pastoral Operária, que refletiam sobre os desafios do mundo do trabalho, iluminados a partir da Palavra de Deus. Semelhante metodologia de ação pastoral percebia existir nos vários Clubes de Mães que eram organizados pelo Antônio e pela Matilde. Locais onde Mães se reuniam para tecer colchas e acolchoados com restos de roupas, ao mesmo tempo em que refletiam a realidade à Luz da Palavra de Deus, rezavam e decidiam o que fazer para lutar por melhorias na vila. Após alguns meses, percebi que esse novo jeito de evangelizar e organizar o povo em comunidade, a partir das necessidades concretas, unindo fé e Vida, oração, Leitura Bíblica e Ação, era um Jeito de Evangelizar diferente das orientações que nos eram dadas a partir da Instituição Paroquial. Na Paróquia São Pio X, nosso esforço pastoral deveria estar voltado para a organização de grupos de famílias, dentro dos 27 núcleos, na ótica do NIP – Nova Imagem de Paróquia. Nesse contexto tive que fazer uma opção metodológica pastoral. Ao mesmo tempo em que estava vinculado à Ação Pastoral da Paróquia, sob a supervisão do Pároco, como estudante de Teologia, deveria participar e fortalecer uma nova dinâmica de construção de comunidades, denominadas na época de CEBs, um Novo Jeito de Ser


Igreja. Uma Igreja a Serviço da Vida, como nos proclama Jesus em Jo 10,10: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância”.

Na Vila Santo Operário, o povo unido contra a grilagem de terras na própria ocupação.

A Missão em Canoas foi sendo tecida por ações que perpassavam desde a luta pela moradia, na resistência dos que ocuparam a Vila União dos Operários e Santo Operário, colaborando com a organização dos lotes e ruas, sob a pressão de jagunços e da Polícia. A luta por melhorias salariais, como nas greves dos trabalhadores, também ocasião em que fiz a experiência de estar na prisão por quase um dia. Sempre junto com o povo, onde ele estivesse sofrendo mais, como vinha aprendendo com o Irmão Antônio: descobrindo a cada dia o jeito de como se organizar em favor da vida. Assim participei na organização da Pastoral da Criança, dos grupos de pão nos fornos comunitários, dos Clubinhos das Crianças, dos grupos de sabão, de doces e salgados, da Pastoral de Agentes Negros; da comercialização Direta Campo Cidade, com produtos que eram adquiridos dos colonos de Ronda Alta, formando aquilo que foi simbolizado na Roda das CEBs: no centro, o eixo (a Bíblia – Palavra de Deus), os Raios sendo os diferentes serviços dentro da Comunidade,

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Leva os cristãos para o engajamento sociopolítico, ou seja, para os movimentos de Luta do Povo.

O povo construindo as casas nas ocupações em Canoas.

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e o Aro que une a todos, como sendo a realidade do povo com suas diversas necessidades que fazem a roda andar. A Roda das CEBs não fica parada. É uma Igreja em Movimento. Ela leva os cristãos para o engajamento sociopolítico, ou seja, para os movimentos de Luta do Povo. As associações de moradores, Sindicatos, Movimentos de luta dos mais diversos, dos Partidos Políticos, tendo sempre como Horizonte o Reino de Deus, que deve ser construído ainda no hoje da História, mas que é maior do que ela. Nesse campo, destaco a aprendizagem que tive com o Irmão Antônio junto aos Catadores de Materiais Recicláveis, de modo especial após voltar de uma missão exercida em Santa Maria e assumir a assessoria junto ao Galpão da Fé, na Zona Norte de Porto Alegre, com a companheira e sempre querida Hilma Klein Cardoso, uma leiga que fez a opção de trabalhar com e como os catadores. Nesse sentido, queria destacar a importância das reuniões que fazíamos junto à Faculdade de Educação da UFRGS, espaço aberto pelo Professor Nilton Fischer, que reunia uma dúzia de voluntários para dar suporte técnico e político ao trabalho dos catadores, sob a inspiração do Irmão Antônio. Desde cedo, aprendi com o Irmão Antônio a importância de participar das instâncias oficiais da Igreja, como a CNBB, espaço de colaboração e comunhão com os Bispos. Por muito tempo tenho participado da ECORES, um espaço de articulação e comunhão das Pastorais do Regional Sul 3 da CNBB. Experiência essa que considero fundamental, para que, em 1989, o Irmão Antônio me convidasse para um desafio muito maior: a Missão de organizar no Rio Grande do Sul, em Santa Maria, o 8º Intereclesial de CEBs, em um contexto já de tensões no


interior da Igreja Oficial, provocado pelos desafios desse Novo Jeito de Toda Igreja Ser e da Teologia da Libertação, consolidando um verdadeiro “golpe eclesial” com a decisão, em 1991, sob o comando de Roma, pelo fim da Teologia da Libertação, das CEBs e da formação do clero e religiosos inseridos nos meios populares. De um lado, a diplomacia do Bispo Dom Ivo Lorscheiter e, de outro lado, a articulação do Irmão Antônio com os Teólogos da Libertação proporcionou condições de garantir um Intereclesial que não se dobrou frente aos desmandos em curso no interior da Igreja. Espaço decisivo para a organização e resistência dos Bispos e Teólogos comprometidos com a Teologia da Libertação, que na semana seguinte ao Intereclesial participaram da Conferência Latino-americana dos Bispos em Santo Domingo. Nesse local foi decretada oficialmente a morte do Método Ver, Julgar e Agir, como método oficial da Igreja. Diga-se de passagem, nesse encontro os Assessores da Teologia da Libertação foram impedidos de participar da Conferência em Santo Domingo. Não conseguiram o visto de entrada no país. Assessoraram a conferência a partir da Universidade do México, com a colaboração de uma irmã que morava em Santo Domingo, a qual fazia a ponte dos assessores com os Bispos, através de fax. Hoje, mais de 25 anos após esse desmonte, sentimos que, com o Papa Francisco, a Igreja está retornando seu rumo no caminho dos pobres, assim como Jesus de Nazaré viveu. Nunca é tarde para recuperar o estrago feito. Mas é preciso profundas conversões Pastorais e Eclesiais... Foi preciso ter passado pela experiência de organizar o Intereclesial, em 1992, em Santa Maria, com o tema “O Povo de Deus Renascendo das Culturas Oprimidas”, para descobrir aquilo que sempre moveu o Irmão Antônio rumo aos mais pobres e, com eles, reconstruir a Igreja a partir das CEBs. Como desafio do Intereclesial, passei dois anos pesquisando nos bastidores da

A articulação do Irmão Antônio com os Teólogos da Libertação proporcionou condições de garantir um Intereclesial que não se dobrou frente aos desmandos em curso no interior da Igreja.

Mulheres das ocupações urbanas partilham da experiência com mulheres de ocupações rurais.

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“Carrancas Indígenas”, presentes nos pilares da Catedral Metropolitana de Porto Alegre.

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Igreja e do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul dados e resquícios que me possibilitassem entender o que aconteceu com o povo das Missões após a morte de Sepé Tiaraju, em 1756. Sempre ouvia do Irmão Antônio que as CEBs eram o jeito de resgatar parte da experiência da Igreja destruída pelos Impérios de Portugal e Espanha, com a anuência do Vaticano, nas missões jesuíticas. Substituída pelo Projeto de Igreja Romano, comprometido com o Império Português, sustentado e legitimado por historiadores comprometidos com a visão dos vencedores, ou seja, com a visão Lusitano-portuguesa que tem impedido a transmissão do verdadeiro conhecimento da história dos vencidos. Basta lembrar um famoso dito que era propagado até o século passado no interior da Igreja de que: “Sobre a barbárie Indígena, Reconstruiremos uma Nova Civilização!” É claro que Branca, Portuguesa e Europeia. Imagem essa impregnada nas “Carrancas Indígenas”, presentes nos pilares da Catedral Metropolitana de Porto Alegre. Entusiasmado e triste ao mesmo tempo fiquei, quando tive acesso ao primeiro livro onde foram registradas as crianças nascidas e batizadas entre 1756 e 1783, filhas dos índios Guaranis que foram caçados, pelas milícias portuguesas, nos campos missioneiros e “aprisionados” na Aldeia dos Anjos de Gravataí e posteriormente, alugados pelo Império para os “fazendeiros” portugueses que receberam as terras como recompensa pela luta na guerra contra os espanhóis, para servirem de força de trabalho, como peões das estâncias. Ao serem batizados, recebiam um nome e sobrenome português, porém o Espírito Santo se fez presente e conduziu a mão dos padres para que registrassem o verdadeiro nome de seus pais na língua Guarani, mantendo viva a possibilidade do resgate histórico da origem étnica guaranítica de milhares de pessoas que, sem identidade étnica certa, continuam vivendo no vácuo de sua própria consciência histórica. Sem conhecimento de suas origens culturais e


religiosas. Índios desencarnados de sua origem e que passaram a assumir como identidade aquilo que lhes é informado pela história lusitana*. Após sua partida para a Vida Eterna, Irmão Antônio, estive na cidade de Rio Grande, participando da Ampliada Estadual das CEBs. Na ocasião, tive a oportunidade de me encontrar, pessoalmente, no interior da Catedral, em uma sala ao lado esquerdo da entrada, com os restos mortais do Militar Rafael Pinto Bandeira, considerado como “A Maior Espada Continentina do Século XVIII”, que em 1754, aos 14 anos de idade, dois anos antes do assassinato de Sepé Tiaraju e da destruição dos povos missioneiros, foi incorporado ao Corpo de Dragões de Rio Pardo. O mesmo que conduziu os índios para a Aldeia dos Anjos localizada quase aos fundos de suas terras, recebidas como recompensa do Império, para povoar essa parte do território, sendo os mesmos transferidos, aos poucos, já com uma identidade portuguesa, como peões das fazendas do entorno. Quem sabe, meu irmão e Mestre Antônio, o “Profeta dos Pobres e da Ecologia”, “Advogado das Causas dos Santos” consagrados pelo Povo de Deus, tendo vivido a Páscoa da Ressurreição, possas, ao lado de Sepé Tiaraju, de Zumbi dos Palmares e de tantos e tantas Mártires Latino-americanos, nos motivar e fortalecer na árdua tarefa de sermos também nós instrumentos e agentes de resgate das verdadeiras práticas evangelizadoras que permitam ao Espírito Santo conduzir sua Igreja no resgate da vida e da cultura de tantos povos mantidos na obscuridade histórica. E quem sabe se, ao alcançarmos a graça de termos Sepé Tiaraju como Mártir e Santo, possam seus descendentes também ter a graça de serem reconhecidos como pertencentes a um povo que tem cultura, história e futuro. A igreja pode ajudar muito nesse resgate histórico. E para quem desejar buscar sua verdadeira identidade étnica, basta construir sua árvore genealógica até os tempos de Sepé Tiaraju.

Urna dos restos mortais de Rafael Pinto Bandeira.

* Como exemplo, até por tratar-se de uma criança parente de Sepé Tiaraju, incluo abaixo um dos registros localizado no início da folha 15 do livro de assento dos Batizados, onde estão registrados todos os nascidos de 1765 a 1783. São 1793 crianças nascidas nesse período: “fl.15(rosto)MARIA, batizada in extremis a 02/05/1767, filha legítima de Pedro Tiarayu e de Marcela Tembahi, do povo de São Miguel Novo. ass.: Frei Rafael da Purificação”.

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Assim, fui envolto por um Profeta Após a enchente na Ilha Grande, a procissão, unindo as comunidades.

por Nilson Pilatti*

Eram tempos de agruras mais intensas para os pobres. Primeira metade das décadas de 1980 e 1990. Os movimentos sociais no Brasil estavam passando por fenômenos de efervescência política e processos organizativos ímpares. Os ditos “bolsões de miséria” estavam no limite da suportabilidade. Este cenário de uma das concentrações populacionais do Sul do Brasil mais extensas estava exatamente no município de Canoas. O “fundão de Canoas”, no jargão dos militantes estudantis e sociais da época. * Estudou Filosofia, Teologia, Administração e se especializou em Marketing pela UFRGS. Atuou em desenvolvimento cooperativista na produção de alimentos e atualmente é colaborador para o desenvolvimento comercial das cooperativas de assentamentos da Reforma Agrária.

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A participação de trabalhadores do campo e da cidade foi a grande conquista: havia abrangência de temas como meio ambiente, povos indígenas e soberania alimentar.

Arte de Oscar Niemeyer para o MST.

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Colonos de Ronda Alta visitando a Vila União dos Operários, em 1981.

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No âmago desta ebulição popular estavam as CEBs – Comunidades Eclesiais de Base. E foi através do trabalho nas bases populares das CEBs que me inseri em atividades e aprendizados na organização de movimentos estudantis, nos sindicatos e oposições sindicais combativas, nas organizações camponesas, partidos políticos e, em especial, nas pastorais voltadas às populações de empobrecidos. Foi neste contexto que no ano de 1983, como militante social, conheci o Irmão Antônio Cecchin. Estando numa reunião semanal no bairro, surpreendentemente, adentrou na sala aquela figura com aguda voz inconfundível, marcante, misto de tom jocoso, irônico mas sutilmente de admoestação: “Que turma forte, jovem e disposta estou vendo aqui! Que maravilha! Os pobres precisam de todos nós lá nas ocupações. Quando podemos nos reunir lá com as lideranças?” A população da periferia não tinha mais como pagar aluguel. Não possuía mais renda mensal fixa. Estava em situação de subemprego, carestia e um sofrimento psíquico indisfarçável. E foi naquela tarde chuvosa de final de inverno no Bairro Mathias Velho, de Canoas, que pude ser envolto e cativado pela profecia: “Saiam do conforto desta casa de vocês. Os pobres que precisam de vocês estão lá nas ocupações...” Esta foi a mensagem do Irmão Cecchin. Foi um “chamado”. Recordando os estudos bíblicos, no Livro de Gênesis: “Sai de tua Terra e vai...” No ano de 1984, aconteceria a primeira Romaria da Terra em área urbana. O evento que acontece sempre no dia de carnaval, coordenado pelas pastorais rurais, centralizando a execução a CPT – Comissão Pastoral da Terra, a cada ano ocorre em um local simbólico de luta pela terra. Durante o ano de 1983, a luz do Irmão Cecchin inovou: “Nossa luta é na roça e na cidade, para construir uma nova sociedade”. No bordão deste verso, exaustivamente cantado nas CEBs e demais grupos de organização de base,


foi planejado que a Romaria no ano de 1984 aconteceria num local simbólico de ocupação urbana. E seria na Vila Santo Operário, epicentro de outras ocupações em andamento no seu entorno. Em especial, a Vila do Prado, grande extensão urbana do chamado “antigo Prado”, que estava sendo ocupado na sua maior intensidade no segundo semestre de 1983. Surge então a Vila União dos Operários. Daquele local surgem as lembranças do Natal e final deste ano de 1983, especialmente nos sábados à tarde e aos domingos. O bater de martelos, as carroças carregando tábuas e pedras, enfim, todo o Prado estava virado num canteiro de obras, com autoedificações de madeira simples, em grupos, formando mutirões durante as construções. As equipes de apoio de militância social e estudantil faziam o que podiam para preservar minimamente vias de acessos, prevendo uma futura organização de bairro residencial, coisa que nem sempre é possível neste tipo de ações. Destaco esta ocupação pelo envolvimento que o Irmão Cecchin, com seu sempre escudeiro jurista Jacques Alfonsin, e no trabalho de organização social de grupos de mulheres e crianças de Dona Belinha (in memorian), esposa de Dr. Jacques, e da professora Matilde Cecchin, irmã de Antônio, que coordenavam as ações de inúmeros apoiadores. Foi neste ambiente que foi montada uma equipe de coordenação da Romaria da Terra, da qual tive o privilégio de fazer parte como colaborador. Há de se destacar a intensidade de atuação do movimento operário neste período. Havia multidões de desempregados, e os governos intervinham com algumas ações paliativas, em especial, as chamadas “Frentes de Trabalho”. Havia também, do lado popular, a reorganização dos grupos políticos. E foi nesse emaranhado de grupos políticos em estruturação que se deu um evento que reuniu uma massa popular nunca vista antes em vilas populares de Canoas.

Romaria da Terra em 1984 nas ocupações urbanas de Canoas. O povo acompanhando a caminhada pelas duas ocupações: Vila Santo Operário e Vila União dos Operários.

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Na praça central da Santo Operário, sede da associação de moradores e centro comunitário, foram instaladas estruturas de palco, uma grande cruz em madeira de eucalipto, símbolo permanente da Romaria da Terra.

Romaria da Terra nas ocupações de Canoas. A cruz era o símbolo maior que unia todas as lutas.

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Na estruturação da logística de apoio à Romaria, participou um grande grupo de trabalhadores da Frente de Trabalho. Foi negociação de Irmão Cecchin. Na praça central da Santo Operário, sede da associação de moradores e centro comunitário, foram instaladas estruturas de palco, uma grande cruz em madeira de eucalipto, símbolo permanente da Romaria da Terra, e ao redor da praça foram construídas grandes quantidades de alamedas com suporte de eucaliptos e de bambu, com cobertura de folhas de taquara. Foi um trabalho que contou com apoio de engenharia de movimentos sindicais e estudantis. Tudo planejado: onde buscar os enormes eucaliptos para a cruz; técnicas de erguer troncos enormes; segurança na construção; planejamento de alamedas para barracas, etc. E o Irmão Cecchin arrumava até guincho especial para erguer o enorme tronco central da cruz de eucalipto. Tinha também que cuidar da mística, das cerimônias, do ato político e religioso, das estruturas de suporte, como energia, sanitários, som, segurança, etc. Tudo o que envolveria a concentração de uma multidão. Participava na preparação do evento uma ampla gama de organizações de base. E nem sempre as relações com nosso grupo, que coordenava as atividades, foram amistosas. Era ali que entrava novamente a práxis de Irmão Antônio. Ele não excluía ninguém. “Temos que conversar com estes estudantes”, dizia. “Temos que integrar. Se seus métodos são errados, só a sua vivência com os pobres os fará mudar. Deixem


que me critiquem. O importante é estar com quem está com fome.” A Romaria foi um ato gratificante para os movimentos sociais e para a população local. Cumpriu o objetivo que era de que se transformasse a luta pela terra, não só dos movimentos do campo, mas também da cidade. A caminhada planejada durante a romaria andou por diversas áreas de ocupações, e os caminhantes observavam e vivenciavam a construção das casinhas de madeira. A cruz, este símbolo de ocupação, foi um marco para o evento da romaria, para que desse aos temas ligados à terra motes mais universais, como o meio ambiente, os povos indígenas, a soberania alimentar e a agroecologia, por exemplo. E foi o iluminado Cecchin que, lá no início dos anos 1980, começou a fazer ações e desenvolver práticas para que as populações criassem seus próprios símbolos de luta. Foi preciso também conviver com armadilhas próprias da organização popular. Como, por exemplo, lembro de uma das ações do evento da romaria, que, para incentivar o vínculo e a solidariedade entre o campo e a cidade, estimulou os participantes que vinham do interior a trazerem alimentos para os moradores das vilas. De forma organizada, os alimentos foram acondicionados em salão apropriado, e a intenção era de que os grupos de mães se encarregassem, durante os dias seguintes, a fazer a distribuição. Mas não saiu como o planejado. Este depósito, bem como os materiais de estrutura foram alvos de retiradas “desorganizadas”, eu diria, não acontecendo a ação da distribuição planejada. No dia seguinte, novamente, lá vem o Cecchin a enfrentar um grande grupo de lideranças, que veio na sede da associação fazer cobranças absurdas, como a de que haveria muito mais alimentos guardados em outros locais. E o irmão não teve medo. Ficou de pé, com sua voz marcante, e disse: “O responsável por tudo sou eu. É o que tem ali e pronto. Não existem outros alimentos, nem dinheiro, como foi espalhado. Se querem me crucificar, lá está

Irmão Antônio e a comunidade da Vila União dos Operários, em 1984, preparando a Romaria da Terra.

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Passeio de reconhecimento nas ilhas. à direita, Irmão Antônio. Alegria na luta!

a cruz e o façam”. Evidentemente que as lideranças, algumas bem atuantes, ficaram cabisbaixas e outras iniciaram uma retirada discreta do local. Um grupo, especialmente de mulheres que lideravam grupos de base, se solidarizou com a coordenação e iniciou-se um trabalho digno de ser chamado “vamos juntar o que sobrou e vamos em frente que a fome bate na gente”– palavras de uma senhora que tinha liderança local. Foi a partir do evento da Romaria que diversos trabalhos de base e organização social da população ganharam mais impulso. As atividades de grupos de mulheres, com as presenças na motivação da Belinha (in memorian), Matilde e inúmeras outras colaboradoras, se multiplicaram para além das vilas de Canoas. Tiveram destaque os grupos de padarias comunitárias, os grupos de costura, de alimentação, de creches comunitárias e múltiplas formas alternativas da população enfrentar as dificuldades, população essa entregue à sua própria sorte na subsistência material. Na continuidade dos trabalhos da pós-romaria, um dos territórios escolhidos para trabalhar foram as comunidades da Ilha Grande dos Marinheiros. O objetivo foi acompanhar o incipiente trabalho de organização dos “carroceiros” e catadores. Na foto acima, aparece o rosto do Irmão Cecchin num passeio por todas as ilhas do Delta do estuário, uma maravilha ambiental que semicircunda a Capital Gaúcha. Seu olhar está sobre as ilhas. Foi neste contexto que surgiram os Profetas da Ecologia, símbolo da luta em favor dos catadores. E é para este rosto de olhar profundamente alegre, firme e fixo de um profeta que nunca abriu mão de seus princípios e de sua práxis: estar com os pobres, defender os pobres e, principalmente, aprender com os pobres, que hoje digo:

Irmão Antônio Cecchin Vive!

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A árvore que deu bons frutos

por Maria Helena Meyer*

Conhecer o Irmão Antônio Cecchin foi um privilégio e uma graça. Convidada a participar de um grupo da Renovação Cristã, tive a oportunidade de ir a uma reunião onde a Matilde contou sobre seu trabalho nas comunidades que passavam por grandes privações. Era o começo da década de 1980, e o desemprego estava deixando muitas famílias à beira da fome. Sua fala não me deixou dúvidas: eu tinha encontrado um caminho para chegar às CEBs, onde a Igreja progressista estava evangelizando de uma forma não assistencialista. * Jornalista popular.

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Maria Helena coordena a entrevista coletiva de Leonardo Boff, no Galpão de Reciclagem da Ilha Grande, feito de taquara.

A jornalista popular, no barco Cisne Branco, quando Irmão Antônio recebeu o título de Cidadão de Porto Alegre, da Câmara dos Vereadores.

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Até então, minhas experiências de trabalho comunitário tinham sido na paróquia onde eu morava, onde o Padre Antonio Morescchi já tentava introduzir avanços nas práticas assistencialistas. Mas eu tinha lido sobre as Comunidades de Base, sobre a Teologia da Libertação, e guardava um desejo de conhecer, de perto, o que era aquilo - naquela tarde organizada pela Renovação Cristã, surgiu a oportunidade. No final, falei com a Matilde, e me “convidei” para um voluntariado nos Clubes de Mães da Vila Mathias Velho, em Canoas. Esse trabalho, pelo que possa ter contribuído, e que durou alguns anos, foi a tarefa mais importante da minha vida, como jornalista e como pessoa. Nunca esquecerei a primeira imagem que tive do Irmão Antônio. Quando o avistei, muito alto e magro, vestido com simplicidade, trazia um boné sobre o rosto expressivo, que me lembrou uma imagem talhada em madeira. Quando me cumprimentou com afabilidade, percebi aquela entonação de voz que transparecia timidez e firmeza ao mesmo tempo. Muitas e muitas vezes depois, eu o escutei falar, ora sereno, ora com emoção ou indignação. Essa voz inconfundível, e as palavras que surpreendiam entusiasmavam ou faziam refletir, ficaram gravadas em minha mente e meu coração. Era um líder, um irmão, um amigo. A partir daquele dia, comecei a conhecer a história do Irmão Antônio Cecchin. Toda a organização das comunidades tinha origem nele e em Matilde, sua irmã e fiel companheira de lutas. Grande parte da Mathias Velho, no final dos anos 1970, era ocupada por um antigo hipódromo, que servia apenas para que alguns cavalos pastassem. Ao redor dali, muitas famílias, originárias em maioria do êxodo rural, viviam em barracos, à beira da miséria. Antônio teve a ideia de reuni-las para ocupar aquela área, onde poderiam construir suas casinhas com mais segurança e dignidade. Essa foi a primeira luta que conheci. Com a ajuda de outros voluntários e


amigos, e tendo como advogado Jacques Távora Alfonsin, foi possível conseguir na Justiça do Estado do Rio Grande do Sul a primeira sentença que dava ganho de causa às ocupações de terra por utilidade social. Uma grande vitória que criou jurisprudência e incentivou muitas outras lutas em todo o país. Cecchin seguiu, como ninguém que eu tenha conhecido, o preceito cristão de amar e ajudar os pobres. “Os mais pobres entre os pobres.” Era para eles que dirigia suas ideias e as colocava em prática, com a coragem e a tenacidade digna de um santo. Um espírito visionário que pensou na necessidade de organizar os catadores de materiais, e se foi para a Ilha Grande dos Marinheiros para uma nova luta. Seria o primeiro Galpão de Reciclagem, que, apoiado pela gestão de Olívio Dutra, foi pioneiro na Coleta Seletiva em Porto Alegre. Sua mente prodigiosa não parava de planejar. Parecia pensar mesmo enquanto dormia. Tinha uma energia tão contagiante, uma fé tão profunda, que nenhuma derrota o desanimava. Era movido por amor aos pobres e pela esperança. Teve decepções com pessoas em quem confiava, mas nunca se deixou abater. Algumas vezes presenciei sua indignação, que defendia e enfrentava, com argumentação emocionada, fosse um superior eclesiástico, um político ou mesmo um líder comunitário de seu próprio grupo. Era radical, porém bondoso.

“Mães Unidas, Voz da Libertação” era uma publicação rústica, singela. O jornalzinho circulava em todos os Clubes de Mães das CEBs da Grande Porto Alegre. As líderes dos Serviços (que eram vários) escreviam sobre os problemas e as conquistas de seus clubes – folhas de caderno, redigidas a mão, com as dificuldades de quem pouco ou mal frequentara o primeiro grau. Eu precisava reescrever, mas tinha o cuidado de mudar apenas o que poderia confundir a leitura. Era preciso que mantivesse sua origem e personalidade.

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Imagens do filme Lixo é Vida, realizado por Mario Alberto Nascimento, com produção de Maria Helena e textos de Tabajara Ruas, apresentado na Eco 92, no Rio de Janeiro. Ver em Eco 92, no You Tube da Rede Marista:

https://youtu.be/uKN7T8QEo3o

Certa vez, indignou-se comigo, quando nos informou que iria deixar as comunidades em Canoas, para o trabalho de organização do Galpão de Reciclagem na Ilha Grande. Muitos já tinham trabalhado com aquele povo ribeirinho. Sabia-se que era um dos lugares mais difíceis de evangelizar e organizar: famílias desestruturadas pela infinita pobreza. Ousei argumentar sobre isso, e ele me deu uma resposta que Jesus ou São João Batista teriam dado: “Um cristão vai em busca dos mais pobres dos pobres”. No entanto, foi compreensivo quando, certa vez, eu lhe confessei que estava descrente de Deus. Me olhou com ternura e disse: “Não te preocupa, isso vai passar”.

Lixo é Vida

O Irmão Antônio e Matilde estavam organizando o povo nas Ilhas, em função da reciclagem do lixo. Foi então que apareceu a oportunidade de fazer um filme sobre essa nova luta, que pudesse ser mostrado na Eco 92, no Rio de Janeiro. Tive a incumbência – e o privilégio – de ser a produtora. Assim, junto com Mario Alberto Nascimento, com texto de Tabajara Ruas, construímos Lixo é Vida, um documentário que mostra o contraste entre o trabalho do catador individual e aqueles organizados em cooperativas. Fazer um filme é uma tarefa trabalhosa e, com verba restritiva, torna-se ainda mais: uma experiência fantástica, que exige paciência, tenacidade e força de vontade. Além de produtora e entrevistadora, fui a motorista da Kombi, cedida pelos freis que trabalhavam nas comunidades de Canoas. Depois, no Fórum Global da Eco 92, o trabalho de divulgação foi a parte mais difícil: eram centenas de exposições, palestras, mostras de vídeos, peças de teatro, enfim, uma babilônia de eventos, distribuídos em dezenas de tendas 188


espalhadas pela imensidão do aterro do Flamengo. Um filme, ou um livro, é como um filho. Queremos que seja visto, comentado, apreciado. Nunca soube se Lixo é Vida atingiu esses objetivos. Um ou dois anos depois, um grupo de jovens dinamarqueses veio a Porto Alegre para conhecer de perto o galpão das papeleiras da Vila Santíssima Trindade. E eu estava lá quando presenciei o encontro com as papeleiras. Uma das jovens se emocionou às lágrimas quando abraçou a Rose, nossa atriz principal: tinham visto o filme, e através dele conheceram a história. Em jornalismo, se aprende que todos os fatos devem ser contados dentro de um contexto. Para que isso fosse possível, e justo, esta matéria sobre o profeta Antônio Cecchin e sobre os frutos que vi sua árvore produzir teria que ser muito mais extensa. Minha dificuldade em escrever para este livro póstumo vem do fato de que eu precisaria contar e contar e contar; das coisas que vi, dos prodígios que ele realizou, e do crescimento espiritual e pessoal que tive, através das oportunidades que me foram dadas por intermédio dele e também de sua irmã Matilde. Penso em quantas e quantas pessoas ele ajudou, centenas, milhares, direta ou indiretamente, e de quantas poderiam falar alguma coisa sobre ele. Este livro seria uma enciclopédia. Participar deste mutirão é o último presente que recebo deste homem admirável. Apesar de seus quase 90 anos, foi estranho e irreal saber que tinha falecido.

Um homem assim não poderia morrer. Impossível não se comover naquela despedida. Não o ressuscitaríamos, mas ele seria sempre uma presença presente. O privilégio de conhecê-lo, e de ter convivido com ele, nos deixou melhores, nos fez crescer e, para cada um, de alguma forma, mudou nossas vidas.

Penso em quantas e quantas pessoas ele ajudou, centenas, milhares, direta ou indiretamente, e de quantas poderiam falar alguma coisa sobre ele. Este livro seria uma enciclopédia. Participar deste mutirão é o último presente que recebo deste homem admirável.

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“Vinde, benditas do Meu Pai. Porque tive fome e me deste de comer. Estava nua e me vestiste.” (Mateus 25)

Renovação Cristã

Trabalho em alto relevo encontrado no lixo por um catador. Matilde quis tê-lo para sua coleção de ceias. Assim, ofereceu em troca a imagem de uma santa. Ele escolheu Santa Catarina.

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Pintura da artista plástica Magali, oferecida ao Irmão Antônio na comemoração de seus 85 anos.

por Maria Helena Meyer*

*Jornalista popular.


Professora Faustina possibilitou a reabertura de creche para as crianças das recicladoras, na Ilha Grande dos Marinheiros, com o apoio da Renovação Cristã.

A Renovação Cristã teve origem na antiga Ação Católica. Na década de 1960 chamava-se JIC, ou Juventude Independente Católica. Teve que mudar sua sigla quando a Revolução de 1964 começou a perseguir os movimentos mais progressistas da Igreja Católica. Realizando trabalho voluntário nas Comunidades Eclesiais de Base, primeiro nas periferias, e depois nas periferias das periferias, sempre senti o MRC (Movimento da Renovação Cristã) no seguimento de Jesus, levando o Evangelho aos pobres, e deixando-se evangelizar por eles. Foi na crise do desemprego, no início da década de 1980, com a criação do Pão Comunitário, que conhecemos a solicitude do MRC em socorrer os mais pobres, pela Fé, vendo neles o próprio Jesus: “Tive fome e me deste de comer”. Assim, foi o Movimento que fez a primeira doação de farinha, que não era um gesto alienado, mas “uma verdadeira Partilha, acompanhando as reu­ niões e reflexões bíblicas”. E conta que depois vieram as ações com os catadores, “os excluídos sociais, os mais pobres entre os pobres”. Envolvendo-se cada vez mais com esses gestos concretos, o MRC organizou a recepção aos Sem-Terra da Fazenda Anoni, providenciando lanches para uma multidão de homens, mulheres e crianças, que depois ocupou durante semanas a Assembleia Legislativa do Estado. Com a palavra, Irmão Antônio, que descreve, emocionado, aquilo que foi o gesto mais belo e contundente do MRC: 191


“ Tonica, em 1993, participou da confraternização de Natal no galpão das recicladoras.

A gente toca com os dedos as ações bem concretas que desenvolvem – fruto de sua opção pelos pobres – nos meios mais excluídos. Na Ilha Grande dos Marinheiros, tanto no Galpão das Mulheres Papeleiras, quanto na Creche da Mãe Papeleira, se não fosse a Renovação Cristã, não sei se teríamos conseguido realizar algo. E aqui, bem no centro de Porto Alegre, o almoço dos mendigos é simplesmente uma pura joia da engenharia pastoral das valentes mulheres, que dão conta, com alegria, do atendimento de uns duzentos excluídos. Cada vez que vou lá ver aquela maravilha de refeição comunitária, em que estão presentes os últimos da cidade, servidos com todo o amor que se possa imaginar, pelas pessoas da Renovação, volto para casa embalado e entusiasmado como se tivesse feito um verdadeiro retiro. Que cresça para o bem e a felicidade dos prediletos de Deus”. As mulheres da Renovação Cristã realizaram, por 13 anos, a ceia oferecida aos moradores de rua, no Centro de Porto Alegre. Na verdade, realizando uma profecia encontrada na dedicatória da artista plástica Magali em sua pintura, que foi presenteada a Irmão Cecchin, por ocasião de seus 85 anos:

Côti (com o cartaz) acompanhou a passeata das catadoras, pela Ilha Grande, para resgatar o prédio da creche.

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“Profeta Cecchin. Com teu trabalho, profetizas a extinção da fome na mesa dos pobres.”


O SOPÃO por Vera Brandt

Sou professora do Grupo Unificado. Vi, durante anos, ações que me comoveram e me comovem ainda hoje. Observei o trabalho voluntário, caridoso, amoroso e fraterno de um grupo de senhoras que realizavam nas terças-feiras, no porão da Igreja São José, O SOPÃO. Eram atendidos 250 moradores de rua. Me emocionou. Da emoção partimos para a ação, mobilizando meus alunos nessa missão: ajudar! Como? Formamos a ONG Sempre Amigo, com mais de uma centena de alunos-voluntários com um objetivo único: acolher dores, desejos, sonhos dos moradores de rua. Num primeiro momento, ajudamos a servir na hora do almoço. Comidinha cheirosa feita pela incansável Aninha Comas. Arroz, feijão, guisadinho, massa e muitos sorrisos. Tínhamos orgulho da comida que era servida. Ampliamos nosso atendimento com cortes de cabelo para todos, maquiagem para as mulheres, escrita de cartas para a família e todas as formas possíveis de gestos e de atos que tornem a vida uma experiência generosa de solidariedade. O SOPÃO foi um trabalho de vida real do Grupo de Renovação Cristã e do Sempre Amigo. Um dia apareceu uma pessoa inesquecível. Alto, magro e cheio de energia! Ideias novas! Um revolucionário! Era o Irmão Antônio Cecchin. Muito devemos a essas fontes de inspirações. As “meninas”: Tonica, Zaíra, Luci, Clotilde, Zuleica, Faustina, e ao Cecchin. Essas pessoas abnegadas e inquietas que precisam sair da vida comum para buscar respostas, aprendendo o verdadeiro sentido da virtude. Nos porões da Igreja São José nasceram muitas ideias e vitalidade para continuar neste caminho! Os voluntários agradecem!

Ali, no Sopão aos moradores de rua, nas dependências da Igreja São José, foi recebida a visita de Frei Betto.

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“Eu vi, eu ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo” (Ex 3,71)

por Anne Marie Crosville *

É o grande testemunho que o Irmão Antônio deixou para mim e para tantos outras e outros irmãos que tiveram a alegria de cruzar o seu caminho.

Sou Anne Marie Crosville, missionária leiga de nacionalidade francesa. É uma bela história de amor com Luiz Itamar, brasileiro, que me trouxe para este imenso país, e juntos fundamos um espaço de lazer para crianças e adolescentes na Vila Anair em Cachoeirinha. O Luiz Itamar faleceu, mas seu espírito de amor e de justiça continua nos inspirando. * De nacionalidade francesa é Pedagoga e Missionária leiga a serviço de uma vida justa e digna para todos e todas. Há 39 anos está na América Latina dos quais dois anos em El Salvador, durante a guerra civil. Há 29 anos, no Brasil, no Centro Infanto Juvenil Luiz Itamar.

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Convivi com o Antônio em vários momentos da minha caminhada: primeiro como romeiro e romeira em defesa da mãe Terra e dos que Dela tiram o sustento com dedicação e cuidado, mas são impedidos violentamente pelos grandes fazendeiros.

“A Terra é Sagrada... Não se pode vender a mãe Terra”, dizia um irmão Índio em um encontro de CEBS. O Antônio foi um dos fundadores da CEBS. Em uma reunião de Fé e Política, fizemos memória dos Mártires da América Latina: contei para o grupo sobre a minha experiência de luta neste pequeno país Túmulo de Dom El Salvador. Convivi com o Oscar Romero nosso Profeta e Mártir “São Romero”... assassinado covardemente pela oligarquia. “Se me matam, ressuscitarei no meu povo”, dizia Ele (Dom Oscar Romero). Senti vibrar o coração profético do Irmão Antônio ao partilhar os momentos tão fortes que vivi ao lado de Romero e o seu povo! Uma luta sofrida a caminho da Terra Prometida. Nos tornamos cada vez mais próximos um do outro na solidariedade fraterna em prol da vida. O Antônio esteve presente na inauguração do Centro Infanto-Juvenil Luiz Itamar, pequena ONG inserida no meio dos pequenos e humildes em uma

Antônio, no dia da inauguração do Centro Luiz Itamar, com atividades para as crianças. Abaixo, foto do Centro.

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Irmão Antônio, na inauguração do Centro. A comunidade vibrou.

Eu e Luiz Itamar, felizes com tudo isso.

vila de Cachoeirinha. Acolhemos crianças e adolescentes resgatando a sua dignidade e tornando-os protagonistas de seu próprio destino. Antônio nos acompanhou fortalecendo nossa esperança... Ele acreditou tanto na força da organização dos pobres! Nesta ONG foi criado um Projeto Circense: “Rede do Circo”. Através de acrobacias, malabarismos e coreografias em tecidos, os jovens artistas escreveram a sua própria história, chamada de “Uma Família para Antoniel”. A partir deste projeto, foi possível resgatar valores, a autoestima, a solidariedade e o respeito mútuo. O Antônio e sua irmã Matilde convidaram os artistas para se apresentar na Romaria das Águas, na Ilha dos Marinheiros. Foi um espetáculo maravilhoso, beleza artística e uma grande mensagem de esperança para cada um e cada uma dos participantes! Muito obrigada, querido irmão Antônio, nosso “TCHÊ” do Rio Grande do Sul, por tanto aprendizado, tantos caminhos trilhados para libertar o teu povo das mãos do opressor! Tu estás vivo no meio de nós!

Hasta siempre, irmão Comandante!

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O Irmão dos pobres DO BAIRRO MATHIAS VELHO EM CANOAS/RS

por Odilon Kieling Machado*1

A vida do Irmão An­tônio Cecchin, junto aos pobres do Bairro Mathias Velho, está marcada pela coragem e pela luta deste líder cristão, comprometido com as causas do povo pobre e simples, que ele tanto amava e deu a sua própria vida pela causa dos humildes. No Bairro Mathias Velho, em Canoas, ele participou e deu apoio total às ocupações e à construção do movimento comunitário na Vila Santo Operário, antiga lavoura de arroz, e na Vila União dos Operários, antigo prado da Arte de Esther Bianco

cidade de Canoas.

* Doutorando em História - UFSM. Mestre em História - UFSM. Graduado em História - UNIFRA. Professor do Centro Universitário Franciscano - UNIFRA. Professor do Instituto Estadual de Educação Olavo Bilac. 1. Referência: depoimento citado neste texto pelo Irmão Antônio Cecchin: Cecchin, Antônio. Irmão Antônio Cecchin: depoimento [abr. 2011]. Entrevistador: Odilon Kieling Machado. Porto Alegre, 2011. Arquivo de gravador de voz digital.

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Leonardo Boff, Odilon e Irmão Antônio.

A participação junto às atividades culturais e religiosas na comunidade.

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Morando na Vila Cerne dentro da grande Mathias Velho, Irmão Antônio foi sempre a força necessária junto aos migrantes que fizeram as ocupações. Dedicado à catequese, à formação religiosa, social e política, ajudou a formar as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e a Associação de Moradores. Irmão Antônio lutou sempre para que as mudanças no bairro pudessem acontecer a partir da Igreja e na luta diária do povão para conseguir água, luz, transporte e moradia decente para todos. O povão se identificava com o Irmão Antônio e o Irmão Antônio se identificava com o povão. Conforme relata Antônio Cecchin: “No Natal de 1979, ocorreu a ocupação na Vila Santo Operário, tinha havido o primeiro encontro de CEBs no Rio Grande do Sul em São Gabriel. Nós tínhamos já uma caminhada. As famílias eram de todo o interior do Estado, como Camaquã e Rio Pardo, e também de Santa Catarina. O povo se espalhou nas ruas, nas pontas de estrada e a região se encheu de gente”. Irmão Antônio servia de interlocutor, em forma de serviço, para encaminhar a solução dos problemas da comunidade. A confiança no trabalho deste irmão religioso e a união das pessoas foram um elemento importante para a organização popular. O papel das mulheres é destacado por Irmão Cecchin, através dos “clubes de mães” que geraram as CEBs em Canoas, com suas reuniões, além da força desta iniciativa que teve como consequência a organização da Pastoral da Mulher Pobre. Ficávamos juntos para ajudar na organização, mas as mulheres é que eram as protagonistas deste processo. Estes elementos de luta são afirmados por Antônio Cecchin: “Trabalho comunitário, o Evangelho nos clubes de mães, início da ocupação, início da igreja, já que vinha para as periferias, as mulheres nas reuniões ao redor com cantos: canto das avós mais conhecidos, cantos bíblicos e cantos de luta, preparação para a ocupação propriamente dita, famílias extremamente pobres. Durante a semana,


sozinho, percorria as casas, porta aberta, com chimarrão, fazer reuniões de vizinhança para reuniões aos sábados, reuniões da comunidade, prestava-se serviço para encaminhar os problemas, jogos com as crianças, catequese das crianças e clube de mães e depois chamado pastoral da mulher pobre”. Na organização das mulheres, no início, faziam colchões de trapos para o inverno e ao mesmo tempo criavam laços fraternos de solidariedade. Conforme relata Antônio Cecchin: “Estabelece-se, após leitura de um trecho da Bíblia, o que diz para nós, cada um lia um pedaço mais fácil, não solto, salmos ou fatos históricos. Após, cada um falava o que tocava nossos corações e que mais impressionou, e a partir daí vamos encostar nas nossas vidas e as questões de hoje. Tudo isso era a preparação para a ocupação de famílias que viam do interior e não tinham como construir suas casas. Depois, fazer os colchões de trapos, organizaram grupos de novenas e grupos de famílias”. Este processo de conscientização política se enraizava no Bairro Mathias Velho no município de Canoas. Tendo em vista o projeto desta nova Igreja, o Bairro Mathias Velho adquire importância para a sociedade gaúcha e brasileira, pois ali as CEBs e o movimento social comunitário se articularam de forma efetiva e realizaram conquistas. A liderança formativa do Irmão Antônio Cecchin, a leitura bíblica unindo fé e vida, e a força das Comunidades Eclesiais de Base (CEbs) são elementos que deram a base para a organização comunitária em busca de seus direitos a uma vida digna. Esta experiência concreta em Canoas mostrou que a organização popular tem força, na medida em que encontra meios para atingir seus objetivos concretos, organizativos e também espirituais, isto é, a força daqueles que mais sofrem. Neste sentido, os pobres são sujeitos transformadores da História, um povo pobre e oprimido em busca de sua libertação.

As ocupações em nome dos ideais de igualdade, pregadas por Jesus.

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A valorização das necessidades das comunidades e suas lutas fizeram o movimento comunitário seguir em frente no Bairro Mathias Velho, em Canoas.

Irmão Antônio é um exemplo a ser seguido como pessoa humilde, simples e popular. Dedicou a maior parte de sua vida ao lado daqueles que não têm voz e nem vez, os preferidos de Deus, os pobres que lutam por dignidade contra todas as formas de opressão.

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Irmão Antônio é um exemplo a ser seguido como pessoa humilde, simples e popular. Dedicou a maior parte de sua vida ao lado daqueles que não têm voz e nem vez, os preferidos de Deus, os pobres que lutam por dignidade contra todas as formas de opressão. Conheci o Irmão Antônio em encontros estaduais das CEBs no Rio Grande do Sul, nos quais atuei como militante religioso nas CEBs, especialmente pela Diocese de Santa Maria-RS, sendo representante das CEBs na equipe estadual, além de encontros em Santa Maria de reflexão de lideranças e encontros locais e regionais. Participei de um encontro Nacional das CEBs em Minas Gerais, além de um encontro da Área Sul das CEBs em Registro, estado de São Paulo (SULÃO). Tanto no encontro de Minas Gerais quanto no de São Paulo, tive a alegria de estar presente junto com Irmão Antônio. No encontro de São Paulo das CEBs tivemos como formador o teólogo Leonardo Boff. Estes eventos me proporcionaram uma consciência sobre as mudanças ocorridas na Igreja Católica das décadas de 1960 e 1970 do século XX, através da Teologia da Libertação e sua dimensão religiosa, social e política, ligada aos movimentos sociais contemporâneos. Participei também da ECEP, Escola Cristã de Educação Política em Santa Maria, curso de Teologia Popular. Possuo licenciatura em História pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA) e mestrado em História na área de concentração História, Poder e Cultura da linha de pesquisa Migrações e Trabalho da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), com bolsa CAPES e atualmente faço Doutorado em História pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), na área de concentração História, Poder e Cultura da linha de pesquisa Política, Fronteira e Sociedade, cujo título da tese é “O processo de organização do movimento comunitário do Bairro Mathias Velho em Canoas/RS (1975-1988)”. Nessa minha trajetória acadêmica, tenho pesquisado como historiador as CEBs, a Teologia da Libertação e os movimentos comunitários.


Mulheres entusiasmadas

pelas Comunidades do Povo de Deus Catequese das crianças nas Comunidades

por Otilde Rubin Piccin*

Na década de 1980, a Equipe Regional das Missionárias de Jesus Crucificado recebeu uma solicitação de Irmão Antônio e Matilde Cecchin para ingressar no trabalho da Pastoral na comunidade Jesus Operário, da Mathias Velho, em uma ocupação de famílias vindas de várias regiões do Estado em busca de trabalho, de modo especial no Polo Petroquímico de Triunfo e na Grande Porto Alegre. Foi acolhido o pedido e as Irmãs Leônica Steffanello e OtilIrmã Leônica faz a animação dos Clubes de Mães.

de Rubin Piccin aceitaram o desafio e foram morar na comunidade que estava se formando com o incansável trabalho de Irmão Antônio e Matilde.

* Pertence à Congregação das Missionárias de Jesus Crucificado-MJC. Pedagoga e Orientadora Educacional; Teologia Pastoral-ITEPA. Atualmente, trabalha na Pastoral de Família e acompanha as Irmãs idosas.

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Nas Ocupações, o povo celebra suas conquistas

Irmã Leônica participando da caminhada no encontro das CEBs.

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Chegando lá nos integramos nos trabalhos que já existiam na grande Mathias Velho, não esquecendo a particularidade de Jesus Operário. Muitas necessidades havia na então ocupação que surgia da noite para o dia. Não havia água, nem luz, as ruas eram trilhos no meio do capim. Já existia, no Bairro Mathias Velho, a comunidade Coração de Jesus, a Central das comunidades, onde aconteciam as diversas pastorais ligadas às CEBs, sendo esta a alavanca de luta para melhores condições de vida. Eu e a Irmã Leônica, com muito entusiasmo, abraçamos a luta com as mulheres, desde fazer valetas em frente das casas para escoamento das águas, como na busca de recursos na Prefeitura de Canoas, reivindicando água potável, luz e abertura de valos nos trilhos para possível circulação dos moradores. Foram feitas muitas reu­niões com reflexão da Palavra de Deus que iluminava a caminhada na busca de melhoria conjunta. Com a luta das comunidades eclesiais e das


mulheres chegaram outras melhorias como abertura de valos, a luz elétrica e Posto de Saúde. Na comunidade das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado chegaram mais duas Irmãs: Terezinha Gallarretta e Catarina de Davi, que se integraram na grande missão junto ao povo da comunidade Jesus Operário. Muito barro foi amassado com visitas domiciliares convidando para as reuniões das mulheres e sindicatos, bem como a celebração na pequena capela que estava sendo construída pela própria comunidade. Integrada a toda pastoral da Mathias Velho, criaram fornos comunitários para ajudar na alimentação das famílias participantes do grupo de mulheres e da Pastoral da Criança. Para nós, Irmãs que trabalhávamos em uma igreja sacramentalista, fazer parte dessa igreja da base foi uma escola de formação, integrando fé e vida. Muitas Irmãs passaram nesta comunidade com objetivo de sua formação e irmã Leônica foi o esteio forte, permanecendo muitos anos, ampliando as pastorais e, de modo especial, a Pastoral da Criança. Mais tarde, pela necessidade de Irmãs para assumir novas frentes em Canoas, a comunidade de Irmãs foi transferida para Guajuviras, onde permaneceram por vários anos com o mesmo ritmo de trabalho.

Comunidade das Irmãs Missionárias na Vila Santo Operário. Acima, pequena casa, de madeira, onde as Irmãs moravam, atrás da Igreja.

Muito barro foi amassado com visitas domiciliares convidando para as reuniões das mulheres e sindicatos, bem como a celebração na pequena capela que estava sendo construída.

As procissões eram enfeitadas com os símbolos da fé na luta.

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A estrela de Belém, o lunar de Sepé! Irmão Antônio com o então prefeito de Canoas, Jairo Jorge, no encontro da Mística Feminina, em 2010.

* Pereira é membro da Terceira Ordem da Sociedade de São Francisco (TSSF) e presbítero na Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB); Professor de Teologia e no magistério público estadual (RS); Bacharel em Teologia pela ESTEF de Porto Alegre; Licenciado em Filosofia pelo UNILASALLE de Canoas/RS; Pós-graduado em Espiritualidade e Ecologia pelo ITF de Petrópolis/RJ; Mestre em Teologia Sistemática pela PUCRS, com pesquisas nas áreas de Ecoteologia e Ecumenismo. Autor do livro O Irmão dos Pobres: Antônio Cechin, uma biografia. Porto Alegre: ESTEF, 2009. (www.pilatopereira.eco.br) ** König atua como Educadora Especial na Escola Estadual de Ensino Médio para Surdos Lilia Mazeron; Educadora Social com crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidades; Coordenadora Pedagógica dos Grupos de Estudos em Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS); Terapeuta Floral e defensora das plantas medicinais e da saúde natural, através da Pastoral da Saúde, e militante da causa indígena e comunidade surda.

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por Reverendo Pilato Pereira* e Luciméia Gall König**

“Alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, e perguntaram: ‘Onde está o recém-nascido rei dos judeus? Nós vimos a sua estrela no Oriente, e viemos para prestar-lhe homenagem’. E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia adiante deles, até que parou sobre o lugar onde estava o menino. Ao verem de novo a estrela, os magos ficaram radiantes de alegria. Quando entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe.” (Mateus 2. 2, 9-11)


O Evangelho segundo São Mateus, no capítulo 2, versículos 1 a 12, relata sobre a estrela de Belém, que foi vista pelos magos no Oriente e que os conduziu ao lugar onde estava o recém-nascido, o Menino Deus, em Belém, na Judeia. E aqui no Sul temos “O Lunar de Sepé”, contada na forma de verso em Contos Gauchescos, por Simões Lopes Neto. No caso da estrela de Belém, ela conduziu os magos no caminho que os levou ao Menino Jesus, considerando os devidos cuidados diante das más intenções do rei Herodes. E o lunar de Sepé foi um sinal no semblante do índio Guarani Sepé Tiaraju, que conduzia seu povo na luta contra as “armas de Castela / que vinham do mar de além” e em defesa e preservação da terra missioneira. O lunar de Sepé para os Guarani representava um sinal da presença de Deus. Mas, para seus inimigos, como foi com Herodes, no tempo do nascimento de Jesus, aqui também era o sinal a perseguir para combater o projeto de Deus. Após a morte de Sepé, o lunar continua resplandecendo, só que agora no céu, como um sinal de luz a guiar o povo Guarani e a quem acredita e luta pela terra sem males. Então, Sepé foi erguido Pela mão de Deus-Senhor, Que lhe marcara na testa O sinal do seu penhor! O corpo, ficou na terra... A alma, subiu em flor!... E, subindo para as nuvens, Mandou aos povos bênção! Que mandava o Deus-Senhor Por meio do seu clarão... E o lunar na sua testa Tomou no céu posição...

Nos tempos atuais, onde se manifesta a estrela de Belém e onde brilha o lunar de Sepé? Acreditamos que são a mesma fonte de luz que não podemos tocar com as mãos nem fixar sobre ela nosso olhar. Uma fonte de luz que está em muitos lugares e brilha no exemplo de vida de muitas pessoas. A estrela de Belém e o lunar de Sepé são vidas humanas que nos mostram o projeto de Deus. Pessoas que são como “o sal da terra” e “a luz do mundo” (cf. Mateus 5. 13-14). É, pois, assim que hoje podemos definir a vida do Irmão Antônio Cecchin.

Irmão Antônio Cecchin é abençoado pelo povo numa Romaria da Terra.

Irmão Antônio numa Romaria da Terra, no meio do povo.

Sua vida é uma caminhada de fé, amor e respeito aos índios, catadores, camponeses, sem-terra, desempregados, moradores das ruas e todos os pobres e a natureza irmã.

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Luciméia com sua mãe, Shirlei Gall König, agente da Pastoral da Saúde.

Reverendo Pilato Pereira na Paróquia da Ascensão, da Igreja Episcopal Anglicana.

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No lugar que Cristo lhe preparou, agora brilha como uma estrela que conduz o mundo pelos caminhos da justiça e da paz, do amor e do bem viver, na luta pela terra sem males. Sua vida é mais que uma trajetória de começo, meio e fim. É uma vida que permanece viva e impulsiona nosso viver. A história que se iniciou no nascimento de uma criança, em 17 de junho de 1927, não termina com a morte de um homem aos 89 anos, no dia 16 de novembro de 2016. Irmão Antônio Cecchin é uma vida que revigora nossos sonhos, fortalece nossas esperanças e resgata nossa humanidade. Portanto, continua vivo, presente. Sua vida é uma caminhada de fé, amor e respeito aos índios, catadores, camponeses, sem-terra, desempregados, moradores das ruas e todos os pobres e a natureza irmã. Antônio Cecchin será sempre lembrado e revivido como um discípulo de Cristo que viveu o Evangelho como palavra de Deus na língua humana de todas as culturas, como presença e história de Deus na história dos povos. Cecchin é Lírio da Paz!! Paz com voz!!! Paz sem Medo!! Paz da essência, da luta com beleza e com perfume! Cecchin é rock water, o floral que é feito da água da pedra, da firmeza, da pureza da raiz!! É força que nos eleva! E, como disse Bertolt Brecht sobre as pessoas que lutam: “Há aqueles que lutam um dia e são bons, há outros que lutam muitos dias e são muito bons, há os que lutam anos e são melhores. Mas, há os que lutam a vida inteira e estes... são os imprescindíveis”.

Cecchin é este SER que é imprescindível, não somente pela sua luta, mas porque sua vida impulsiona outras pessoas a seguirem lutando, esperançando. CECCHIN VIVE!! Vive em nós... E pela analogia, que aqui procuramos fazer, da vida de Antônio Cecchin com a estrela de Belém e o lunar de Sepé, queremos dizer que este ser humano imprescindível, nosso irmão de fé, nosso companheiro de lutas, é, sem dúvida, um facho de luz, com as 7 cores do Arco-íris, como um sinal entre céus e terra, que continua a conduzir nossos passos; um farol que segue a nos mostrar o caminho...


“Sim, ele viu o ROSTO de quem se deu a conhecer no repartir do pão.”

Arte de Esther Bianco

(Maria Carpi)

O movimento dos papeleiros e catadores por Antônio Cecchin*

Quando da organização das Comunidades de Base nas ocupações de Canoas, no ano de 1982, aconteceu uma onda de desemprego generalizado. Os membros Gilnei J. O. da Silva

das Comunidades, em situação de quase desespero, apelaram para a iniciativa dos FORNOS COMUNITÁRIOS. Buscávamos sensibilizar os fiéis católicos das Viu nos catadores a presença do Divino.

igrejas centrais de diferentes paróquias a fim de que se cotizassem e passassem a fornecer alguns sacos de farinha por mês. As mulheres pobres das CEBs, organizadas em pequenos grupos de cinco ou seis pessoas, juntas fabricavam, uma vez por semana, o pão

* Trecho de texto “Novos Rumos”, de Antônio Cecchin, de 2002.

necessário para a própria família. Ao meio-dia, na capela, sede da CEB, era servido um sopão. 207


Ritual de passagem das Comunidades de Base de Canoas à organização dos Catadores.

“Meu zelo e meu amor por vossa casa me devoram como fogo abrasador.” (Salmo 68,69)

Primeiro galpão de reciclagem na Ilha Grande, substituindo as taquaras das paredes (1988) por madeira (1990).

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Assim conseguimos minorar o flagelo do desemprego que, posteriormente, com o povo organizado, partiu para uma Política Pública, obrigando a Prefeitura a criar frentes de trabalho. Acontecia, então, que as mães que tinham o seu forno comunitário, com algum pão sobrante, visitavam a casinha mais pobre do quarteirão e, lá deixando o pão, convidavam essas pessoas, as mais pobres, a se juntarem ao grupo do Pão. Porém, essas mulheres, às vezes viúvas, extremamente pobres, apesar da insistência das vizinhas, não se animavam a comparecer junto ao forno comunitário. Constatava-se que as pessoas mais pobres entre as pobres pertenciam à Assembleia de Deus e, talvez por isso, tivessem dificuldade em se juntar às que eram de CEBs. Foi então que decidimos radicalizar, depois de constatar que, em Canoas, as Comunidades já estavam organizadas e em condições de caminhar com as próprias pernas. Além disso, agentes religiosos como os Freis Capuchinhos tinham acorrido para lá, bem como diversas Congregações de Religiosas, todos atraídos pelo trabalho de Comunidades que crescia a olhos vistos. A radicalização se deu em relação aos pobres. Minha irmã Matilde e


Irmão Antônio preocupava-se em desenvolver um protótipo de carrinho que aliviasse o peso das cargas dos catadores.

eu decidimos deixar Canoas e, por sugestão de uma Irmã Cônega de Santo Agostinho, seguimos para as Ilhas do Guaíba, onde se amontoava uma população de catadores e papeleiros em terras extremamente baixas e sujeitas a enchentes todos os anos e que formam um Parque Estadual de preservação ecológica. Essa população era o exemplo típico dos mais excluí­dos entre os excluídos. Através de um pequeno auxílio da Cáritas local, reforçado depois com mais recursos do estrangeiro, construímos na Ilha Grande dos Marinheiros um Galpão rústico para a reciclagem do lixo, a fim de começar a organização desses “lixeiros”, que exerciam sua atividade individual de criadores de dois ou três porcos e que os alimentavam com o lixo que traziam 209


Congresso da Associação de Educação Católica relatando a experiência da Educação Libertadora.

Junto aos galpões de reciclagem, Irmão Antônio não descuidou da Espiritualidade criando um espaço místico.

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do centro da cidade. Além dos restos de comida com que alimentavam os porcos, separavam alguns materiais como papéis, ferros, alumínios, etc., que vendiam para depósitos. Esse primeiro Galpão da Ilha foi o laboratório em que trabalhamos com uma dedicação extrema, mas que, apesar de tudo, contamos também com alguns fracassos por se tratar de pessoas brutalizadas pelas circunstâncias completamente adversas que tinham de enfrentar a fim de sobreviver. Matilde chegou mesmo a fazer uma Promessa: se vencêssemos no trabalho com os “lumpen”, conforme a linguagem de Marx (o combustível da sociedade consumista, segundo a expressão original desse autor), levantaria uma estátua a Nossa Senhora Aparecida na beira do rio. Graças a Deus e a Maria, vencemos, através da organização em Associação de Catadores, a batalha com os catadores e a estátua foi levantada. Esse primeiro Galpão desdobrou-se em uma dezena de Galpões de Reciclagem em Porto Alegre e mais uns 20 espalhados por todo o Estado do Rio Grande do Sul. Hoje, o Movimento dos Papeleiros está organizado em uma Federação de mais de 30 Associações. A estátua de Nossa Senhora Aparecida da beira do rio deu origem à DEVOÇÃO NOSSA SENHORA APARECIDA DAS ÁGUAS. Foi-lhe construído um pequeno santuário no lugar em que estava a imagem da Promessa e, atualmente, essa Devoção está dando origem à ROMARIA DAS ÁGUAS, que realiza, por 7 anos já, uma PROCISSÃO FLUVIAL no dia 12 de outubro, festa da Padroeira do Brasil. A Prefeitura Municipal, juntamente com o


Governo Estadual através do programa PRÓ-GUAÍBA, apoia a ROMARIA. Neste ano nos estendemos pelas nove bacias que deságuam no Lago Guaíba. A Festa da APARECIDA DAS ÁGUAS está sendo precedida por uma novena de Semanas. Em cada semana vamos à nascente de cada uma das 9 bacias e, via EMATER, a água é coletada e, na cidade mais próxima à mesma nascente, é realizada uma MISSA em que a água é abençoada num culto conscientizador da população local a respeito da necessidade de preservação dos mananciais, do refazimento das matas ciliares, e da absoluta necessidade de dar um tratamento ecologicamente correto ao lixo, em vez de simplesmente jogá-lo para dentro dos rios. Estamos, portanto, criando outra ferramenta de massa de caráter urbano, que é a ROMARIA DAS ÁGUAS, uma espécie de réplica da ROMARIA DA TERRA, esta mais de caráter rural. Naturalmente, todo esse trabalho com os excluídos, dentro de uma fidelidade total à metodologia das CEBs, é envolto em toda uma espiritualidade. À medida que o trabalho avança, são criados símbolos que nos ajudam na evangelização. Os papeleiros ou catadores são, para nós, os verdadeiros PROFETAS DA ECOLOGIA porque, a

Construindo galpões para organizar os catadores.

O primeiro Galpão desdobrou-se em uma dezena de Galpões de Reciclagem em Porto Alegre e mais uns 20 espalhados por todo o Estado do Rio Grande do Sul.

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exemplo dos Profetas da Bíblia, particularmente do profeta Jonas, na cidade de Porto Alegre por onde passam com seus pesados carrinhos, recolhendo lixo aqui e ali pelas lojas e residências, através de seus atos, dão ao mesmo tempo uma BOA e uma MÁ notícia.

A MÁ NOTÍCIA

Gilnei J. O. da Silva

A continuar produzindo lixo em tão grande quantidade, acrescida da produção de alimentos à base de agrotóxicos, e com a destruição da camada de ozônio, a cidade consumista de hoje está condenada a perecer. Será destruída.

A BOA NOTÍCIA

Nossa Senhora Aparecida surge das águas, a fim de dizer que negro tem valor e que devemos respeitar a cultura e a religião afro-brasileira.

O papeleiro, na era da ecologia, se mostra em harmonia com o meio ambiente, porque, com o lixo que devolve à indústria, preserva a natureza.

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O papeleiro, na era da ecologia, se mostra em harmonia com o meio ambiente, porque, com o lixo que devolve à indústria, preserva as matas, que não necessitam de ser cortadas para a fabricação da celulose; com o alumínio recolhido, preserva o minério bauxita que permanece nas minas em benefício das gerações futuras e assim por diante.

NOSSA SENHORA APARECIDA

Erigimos Nossa Senhora Aparecida em padroeira especial dos papeleiros porque fazemos uma releitura de sua história. Em 1717, em plena época da escravidão, através de uma estátua sua, quebrada e jogada fora dentro de um rio, ela, a Mãe de Jesus, não admite que seja essa sua imagem lixo dentro do rio. Ela é catada em rede de humildes pescadores e, posteriormente, reciclada, retornando a ser estátua cultuada em cima de um altar. Além disso, seus filhos negros, naquele mesmo ano de 1717, eram tratados como lixo humano e ela surge das águas com a negra cor deles, a fim de dizer que negro tem valor e que devemos respeitar a cultura e a religião afro-brasileira. Hoje, a mesma mãe de Jesus também aparece quebrada em estátuas suas, dentro dos saquinhos de lixo recolhidos na cidade e parece dizer que, neste final de milênio em que o sistema neoliberal produz milhões de excluídos, verdadeiro lixo humano, ela aparece no meio do lixo para ajudar a esses mesmos lixeiros a recuperar a própria dignidade e a cidadania a que tem direito.


O catador de esperanças

Galpão Santíssima Trindade, que Jacques Saldanha ajudou a construir.

por Jacques Saldanha*

Foram vinte e tantos anos para meus olhos voltarem a mirá-lo. 1986. Apesar de o tempo ter avançado, o olhar ainda era aquele que ia além. Era o mesmo. Para aquele olhar, o infinito parecia que era logo ali...

* Pai, ecologista e ativista dos direitos da Vida, advogado e agrônomo.

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Na década de 1960, no Colégio Champagnat

Alguém diz: “Lá vai o professor Cecchin...”. Era tanto o professor de latim (ou francês? ... não importa) como o diretor de todo o colégio. De todos os alunos! Puxa, mas tão moço!

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A memória dos meus olhos estava agora no pátio do ainda antigo Colégio Champagnat. O ano é 1964. Neste tempo o colégio estava então em um Bairro Partenon, mais civilizado. Integrado à ma­lha urbana de uma cidade que se modernizava. O grande terreno dos maristas já não mais estava, diretamente, às margens do arroio Dilúvio. Já aparecia o que seria depois a Avenida Ipiranga que margearia o arroio. E nos fundos do colégio ainda não existia toda a majestosa estrutura construtiva da grande universidade que viria se instalar por ali, a partir dos anos 1960. Mas meus olhos guardam uma memória que ia mais longe ainda. Lá pelos anos de 1950 e poucos. E agora há certa confusão em sua compreensão objetiva. Aquele cachaço que meu avô ganhou dos maristas não tinha sido para pegar lá no chiqueirão que eles tinham nas margens do arroio, com o seu Cecchin? Isso já não se sabe e não importa. A lembrança dos olhos do estudante do quarto ano primário era de uma figura esguia, como que saído de uma pintura de Modigliani. Passava pelo pátio e ia em direção à sala da direção. Caminhava lento e ainda usava a hoje ultrapassada batina negra, que cobria todo o corpo até os pés. Alguém diz: “Lá vai o professor Cecchin...”. Era tanto o professor de latim (ou francês? ... não importa) como o diretor de todo o colégio. De todos os alunos! Puxa, mas tão moço! E o olhar era aquele longínquo. Talvez tivesse a esperança que aqueles jovens, seus alunos, fossem possivelmente os homens de amanhã que acordariam e levantariam o nosso país de seu ‘berço esplêndido’ para se tornar um mundo mais ... Justo? Amoroso? Igualitário? Saudável? Ecológico?


Marco Nedeff

Pois foram estas as questões que me vieram quando, nestes vinte e tanto anos depois, reencontro o meu professor e diretor, nos meandros das estruturas da Prefeitura, para se falar sobre lixo e seu povo catador. E a partir deste caos urbano que eram, e são, os lixos e seus catadores, que reconheci o meu mestre. Da justiça, do amor, da igualdade, da saúde e da ecologia. Esta maestria se concretizava literalmente na prática e na objetividade. Com ele, a realidade daquilo que a sociedade até hoje, princípios do século XXI, ainda trata e despreza como lixo, passa para uma oitava acima na espiral da urbanidade moderna. Para ele, além de ser um instrumento de resgate social, o ‘lixo’ também é o grande portal de entrada, desta fração social menosprezada e desvalida, fruto de um apartheid melancólico, para uma vida mais digna e de pertença à sociedade. É o povo do ‘lixo’, vivendo na parte mais caótica, degradada e aviltante da cidade, que reorganiza, como diz Matilde Cecchin, todas as matérias-primas que poderão, e efetivamente deveriam, retornar ao ciclo, virtuoso, do consumo. Mas não. A surpreendente, negligente e descuidada fração ‘culta’, ‘acadêmica’, ‘religiosa’ e ‘educada’ da sociedade, branca e ocidental – em quaisquer dos continentes do Globo – continua a considerar, de maneira aterradora, este tipo de gentes e de coisas como lixos abjetos, imundos e repugnantes. Por isso ambos estes ‘equívocos’ do mundo moderno devem ser descartados, excluídos e, de preferência, enterrados o mais longe possível de seus olhos e narizes. No entanto, o Irmão Antônio e sua irmã de sangue, Matilde, iam exatamente na contramão desta visão de mundo civilizatória do mundo eurocêntrico, ao tratarem do ‘bioma’ lixo, onde se mesclam gentes, coisas e bichos. Sempre tiveram a esperança plasmada na prática. As palavras eram só a expressão do que havia sido feito e não do que fariam. Para eles, não existia promessa, existia a prática. Materializavam a expressão viva da palavra que anda, como dizem alguns povos tradicionais ainda não contaminados com os lixos civilizatórios ocidentais.

Para ele, além de ser um instrumento de resgate social, o ‘lixo’ também é o grande portal de entrada desta fração social menosprezada e desvalida, fruto de um apartheid melancólico, para uma vida mais digna e de pertença à sociedade.

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Arte de Esther Bianco

E foi neste tempo do reencontro com o professor marista que meus ouvidos escutaram fatos do outro lado da história que não vivi.

E foi neste tempo do reencontro com o professor marista que meus ouvidos escutaram fatos do outro lado da história que não vivi. Pelo que escutei, ele sempre esteve envolvido com os movimentos sociais da Igreja Católica. E isso foi a tal ponto que, na época dos anos de chumbo da intervenção militar, o Irmão Antônio, não tendo ficado inerte, acaba sendo até preso nos porões da ditadura. Demonstrando que sempre colocava em primeiro os últimos, lá pela segunda metade da década de 1970, consolida no Rio Grande do Sul, juntamente com outros homens destes pagos, como o Padre João Schio, a Comissão Pastoral da Terra/CPT. Foi o primeiro brado na­cional de uma ala ‘progressista’ (ou humanista?) da Igreja Católica, que se interpõe à visão centenária de exploração da terra e dos homens, praticada pelos latifundiários, como se ainda estivessem nas Capitanias Hereditárias do século XVI. 216


Marco Nedeff

Agora os pequenos agricultores, a agricultura familiar e a luta pela terra ganhavam espaço dentro do seio da Igreja Católica, que tinha como mandamentos básicos, na palavra de Cristo, o amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. E esta passa a ser a luta do Irmão que, poucos anos depois, se agrega às propostas da agricultura ecológica como uma oitava acima na relação com a terra, com os homens e com o Planeta. Mas quando reencontro o Irmão nas lidas do lixo, seu foco são os catadores. Também eles têm esperança de que sua opção de se imiscuírem naquilo que era descartado por ser desprezado pela sociedade estava sua saída para não irem nem para a mendicância nem para a criminalidade. E o Irmão, reconhecendo este vislumbre humanitário deste povo, associa-se a eles. Nas estruturas obtusas da Prefeitura, onde eu trabalhava, não reconhecia, e até hoje acontece o mesmo, os catadores em todas as suas expressões, como aliados no mundo do lixo. Não conseguiam vê-los como os poupadores tanto nos custos da manutenção da reciclagem como na diminuição de custos de coleta e descarte. Seu veredicto foi, ao contrário, decretar tanto o povo catador como o Irmão sCecchin ‘ladrões de lixo’. Já vinha em tratativas com ONGs europeias, ligadas às igrejas cristãs, para obtenção de recursos a fim de trazer algumas soluções para o coletivo dos catadores. E assim conseguiu comprar um caminhão usado e construir um galpão para o trabalho conjunto dos catadores/recicladores. Eram moradores da Ilha Grande dos Marinheiros, em área invadida do Parque Esta­dual do Delta do Rio Jacuí/Plandel. Este caminhão servia para que ‘coletassem’ o lixo disposto nas calçadas, antes do departamento de limpeza da cidade. Levavam este material, como já faziam há décadas, para este galpão, substituíam agora os carrinhos tracionados por eles e as carroças com seus cavalos. Este prédio, simples mas mais amplo e organizado do que seus barracos de moradia, servia para selecionarem, coletivamente, o reciclável dos restos orgânicos. Tradicionalmente, estes eram dados aos porcos e os outros vendidos para a reciclagem.

A luta do Irmão, poucos anos depois, se agrega às propostas da agricultura ecológica como uma oitava acima na relação com a terra, com os homens e com o Planeta.

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Preparação do 20º Encontro da Rede Mista Feminista do Meio Popular sobre Ecofeminismo.

Estava se formando o embrião de associações de mulheres que passaram, depois, a sustentar a coleta seletiva na cidade.

Arte de Esther Bianco.

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A partir deste avanço em termos de volume de plásticos, latas, vidros e outros, a maioria prensados, a negociação para as indústrias ou mesmo intermediá­rios passa a ser bem diferente. Os preços agora são outros, quando comparados àqueles que praticavam na venda individual. E assim foi por algum tempo. Mas, com a invasão de 500 famílias, no ano de 1986, no lixão da cidade, junto a vilas de pobreza na periferia, tudo muda nas relações da sociedade e da prefeitura com a questão do lixo. E foi aqui que começo a participar de um grupo formado por cidadãos, militantes, professores e assessores populares, que, reconhecendo a grandeza do trabalho dos catadores, queriam ser partícipes mais ativos no projeto liderado pelos irmãos Matilde e Antônio Cecchin. Nos reuníamos sistematicamente no prédio da Faculdade de Educação da UFRGS. Ali, trazia-se a realidade e a dificuldade de lidar com questões que envolviam a incompreensão das estruturas públicas e mesmo da sociedade, além dos desafios e da criatividade necessária para se colocar a serviço dos catadores. Com o passar dos tempos, constatou-se ser impraticável, naquele momento, lidar com a liderança masculina, nesta fração social, por ser realmente um problema. Estava muito pouco qualificada subjetivamente para trabalho coletivo. Percebemos que era bem diferente com as mulheres. Face a isso, tivemos que literalmente excluir um homem que geria o galpão da Ilha Grande por ter não só se apossado dos bens, galpão, prensas e toda a estrutura coletiva, como inclusive vendido a prensa. Vimos que as mulheres tinham mais habilidades para o trabalho conjunto. Será que esta habilidade de lidar melhor com o grupo não era por serem elas as mães de todos os filhos, diferentemente dos homens que nem sempre o eram?


Com esta constatação, assessoramos os grupos para que a administração e a gerência do trabalho coletivo no galpão passassem a ser feitos pelas mulheres. E, sem dúvida, outra forma de relações, humanas e funcionais, estabeleceu-se entre todas elas. Esta experiência foi tão definitiva que, desde este tempo, os galpões que se estabeleceram com o apoio e assessoria das ONGs, diferentemente dos das estruturas apoiadas pelas administrações municipais, foram as mulheres que se destacaram nestas atividades. Desta realidade da dramática vida ‘vivida’ nas ilhas, dois fatos ficam notórios mundialmente. Um foi o curta-metragem premiado em Berlin em 1990, Ilha das Flores, e o outro a citação feita pela economista franco-americana Susan George de uma mãe catadora da Ilha Grande que, na falta de opções, dava sopa de papelão a seus filhos. Nesta mesma época, surge a proposta de se discutir mais amplamente este tema. E, em 1989, com a coordenação de ecologistas e técnicos da Fundação Metropolitana/Metroplan (extinta em novembro de 2016), faz-se o seminário ‘Lixo como Instrumento de Resgate Social’, no Instituto Goethe de Porto Alegre. A proposta é ousada por ser inadmissível, para muitos técnicos chamados sanitaristas, considerar-se o lixo como um instrumento, ainda mais de resgate social. Com este evento, um novo paradigma se instaura na sociedade gaúcha. Agora, são os funcionários de instituições públicas, como a própria Metroplan, que propõem fazerem eles mesmos a seleção em suas casas. Até este mo-

Vimos que as mulheres tinham mais habilidades para o trabalho conjunto. Será que esta habilidade de lidar melhor com o grupo não era por serem elas as mães de todos os filhos, diferentemente dos homens que nem sempre o eram?

Jacques Saldanha no Galpão de Reciclagem Santíssima Trindade.

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Marco Nedeff

Houve um avanço em termos de volume de plásticos, latas, vidros e outros, a maioria prensados, a negociação para as indústrias ou mesmo intermediários passa a ser bem diferente. Os preços agora são outros, quando comparados àqueles que praticavam na venda individual.

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mento não existiam as chamadas ‘coletas seletivas’ administradas pelas municipalidades. Da separação doméstica, entre materiais recicláveis e orgânicos, surge uma ideia revolucionária: levar-se os sacos com os ‘resíduos’ recicláveis para seus locais de trabalho para recolhimento posterior. Importante: esta coleta não seria feita pela área de limpeza da cidade. Desta ousada proposta, o Irmão e um militante unem-se e compram um casebre numa das vilas da zona norte de Porto Alegre, distante da região das Ilhas. Passa-se, então, a ter dois grupos de mulheres organizadas em Porto Alegre, fazendo a reciclagem do lixo. Este grupo de mulheres, parentes entre si e originárias do êxodo rural, forma um coletivo que começa a receber este material separado por estes funcionários. E a coleta como era? Pois um grupo de freis franciscanos que morava na periferia e dispunha de um caminhãozinho emprestava o mesmo com um deles ao volante, e lá iam algumas delas com ele para esta coleta. Eram recebidas pelos funcionários nos órgãos públicos e ali pegavam os sacos e iam para este espaço na Vila Santíssima Trindade. Além deste processo de seleção cidadão, outro também se instaurou. Algumas igrejas católicas tinham, com seus paroquianos, um movimento chamado ‘Casais com Cristo’, onde determinados temas eram o foco de encontros sistemáticos. Um desses temas foi a questão do lixo e dos catadores. Algumas palestras foram feitas por assessores e ecologistas, o que fez despertar o interesse de se fazer o mesmo que se construiu nos órgãos públicos. As famílias separavam os recicláveis e levavam num sábado por mês para a Igreja, e lá o caminhãozinho com as mulheres passava e recolhia. Muitas trocas e muitas doações foram feitas. Este encontro entre o gerador compulsório de lixo e o catador obrigatório cria um processo de cidadania e de respeito mútuo indescritíveis. Estava se formando o embrião de associações de mulheres que passaram, depois, a sustentar a coleta seletiva na cidade. Este processo de coleta se manteve por pouco tempo. O setor de limpeza pública, casualmente de-


Gilnei J. O. da Silva

Stela Pastore

pois do seminário, decide implantar a chamada ‘coleta seletiva’ para alguns bairros da cidade. Mesmo tendo parado, sabemos que com esta ação a visão do Irmão passa a uma oitava acima, mudando, daí para frente, a maneira como se tratará o ‘lixo’, em muitas cidades do estado do RS. E esta mudança na percepção de muitos moradores de Porto Alegre torna a esperança do Irmão de que os lixos da sociedade – gentes e coisas – possam ser vistos e tidos como fontes de expressão de nosso amor pelo próximo, como por Deus, como uma realidade concreta e exequível. Esta alteração na perspectiva da realidade, ainda que não seja compreendida por todas e todos, cristãos ou não, faz com que seu projeto de vida e sua visão de mundo – de que a prática da teologia se sinta e se vivencie como libertadora – sejam um legado inquestionável.

Marcha dos catadores em 2017 e a vitória dos carrinheiros na Câmara de Vereadores, com a prorrogação da Lei das Carroças até 2020.

Gratidão, Irmão, pela herança da fraternidade, libertadora.

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Vila Santíssima Trindade

Na Vila Santíssima Trindade, Irmã Cristina em frente à Capela, origem de todas as iniciativas comunitárias.

por Irmã Cristina Zanchet*

Tive oportunidade de prestar serviços, como educadora popular, na Vila SS. Trindade, próxima ao Aeroporto de Porto Alegre, a convite do Irmão Antônio Cecchin, que já conhecia esse local. Eram famílias do interior, sem terra, que migraram a Porto Alegre em busca de vida melhor. Vindas aos poucos, se radicavam ao longo da Av. Dique e sentiamse seguras porque próximas do trabalho para os mais jovens, e aos demais, principalmente as mulheres, restava-lhes o lixão da cidade.

Encontro com papeleiros em maio de 1992, no novo galpão com a presença do Irmão Antônio.

A jornada, no lixão, era de manhã, e retornavam no meio da tarde, com “algum dinheirinho nas mãos”. Era a sua sobrevivência. * Educadora Popular

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Eram pessoas de pouca instrução escolar, mas de vontade firme de “vencer na vida”, como diziam. Após algum tempo, a Arquidiocese doou um dinheiro para que construíssem uma sala para servir de capela e para reuniões da comunidade. Nessa capela, funcionou também o Clube de Mães “Margarida Alves”, que reunia mulheres para costurar, fazer acolchoados e muito mais, para ver e debater os problemas e as necessidades da vila. Mais tarde, a Paróquia “Cristo Redentor” ofereceu-se como igreja-irmã, prestando ajuda no que precisasse. Surge então o Posto de Saúde pela compra de uma casa que estava à venda. Em pouco tempo, foi construído o Galpão de Reciclagem com ajuda da Cáritas da Alemanha, inclusive por serem um grupo de origem alemã. Em seguida, a creche “Galpãozinho” para abrigar as crianças das catadoras e de outras famílias. Muito importante foi a criação da Escola Migrantes, em colaboração com a Prefeitura. Assim, a vila atende às necessidades que cabe ao povo por justiça. Cresce a consciência de cidadania. De catadores desorganizados transformam-se em ecologistas práticos e conhecem a importância da reciclagem. O galpão torna-se fonte de vida e de educação. As catadoras aprendem a trabalhar em grupo, buscando sempre o entendimento, a amizade e a união.

Início da organização do grupo do galpão. Assim era a Vila Dique.

Prefeito Tarso Genro visita as recicladoras.

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Crianças, no lixo, pediam creche.

O sonho se realiza com a creche Galpãozinho.

Cresce a consciência de cidadania. De catadores desorganizados transformam-se em ecologistas práticos e conhecem a importância da reciclagem. O galpão torna-se fonte de vida e de educação.

Natal de 1992 com os filhos das catadoras.

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Famílias simpatizantes oferecem, trazendo até o galpão, lixo ”limpo” e alimentos não perecíveis para merenda das catadoras. Foi ótima também na formação das crianças e jovens estudantes que se tornam fortes colaboradores na organização do lixo seletivo nas escolas para ser entregue no galpão. Lixo é responsabilidade de todos.


Um Irmão Marista diferente por Irmão Albino Trevisan*

Quem foi o Irmão Antônio Cecchin para mim? O Ir. Antônio foi um Irmão Marista diferente dos moldes maristas tradicionais. Ele era de uma personalidade muito marcante. Ele, para dizer o que pensava, não usava meias-palavras. * Irmão Albino Trevisan (Irmão José Copertino) – Foi Superior Provincial (Província de Porto Alegre) no período de 02/01/1987 a 02/01/1994.

Nisso, ele era percebido por muitos como uma personalidade acre, e havia Irmãos que o repudiavam, mas, quando falavam dele, sempre o consideravam um Irmão Marista, embora ele estivesse vivendo fora de comunidade marista canônica. 225


Irmão Charles McKean Howard foi Superior Geral no período de out/1985 a set/1993.

Aliás, por isso mesmo, questionavam o caso. Em sua ação apostólica, sempre agiu de maneira profética, suas palavras eram um fogo abrasador. E não ficava somente no nível das palavras. Suas ações eram coerentes com o que falava. Recordo que, quando eu era provincial, numa das visitas que o Ir. Superior-Geral Charles Howard nos fez, eu lhe expus a questão, buscando saber como eu deveria tratar o caso do Ir. Antônio. O Ir. Charles perguntou-me se o Ir. Antônio era alguém que tivesse alguma conduta ou comportamento escandaloso e o que ele fazia. Eu respondi que nada havia de repreensível em sua conduta moral e que, pelo contrário, ele era muito apostólico, defendendo sempre a causa dos pobres e vivendo com eles o quanto podia. Tida tal informação, o Ir. Charles disse-me que, como provincial, podia ficar tranquilo e que continuasse a dar todo o meu apoio ao Irmão Antônio. No dia seguinte, o Irmão Charles quis a todo o custo que eu fosse com ele visitar o Ir. Antônio. Depois de um diálogo que eles tiveram a sós, o Ir. Charles, entregando-lhe quatro mil dólares, disse: “Este é um valor que alguém me deu para que eu o fizesse chegar ao coração dos pobres. Então, passo-os a ti, porque eu sei

Foi uma bênção a visita que o Irmão Charles fez na Ilha Grande, com seu gesto concreto de con­ seguir um jeep para as professoras chegarem até as crianças mais distantes. Bênção que deu frutos: em 1999, os Irmãos Maristas assumiram a creche Tia Jussara, em 1999, o Centro Social Nossa Senhora Aparecida das Águas e optaram morar na Ilha Grande fundando, assim, uma comunidade Marista.” Matilde Cecchin

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Essa condução possibilitou desenvolver o projeto educacional com as crianças excluídas da escola devido à distância, e foi um sinal de uma aliança mantida entre a comunidade Marista e os mais pobres da periferia.


que eles chegarão ao destino certo”. Esse valor, o Ir. Antônio utilizou para adquirir um jipe a fim de andar pelos terrenos alagadiços das ilhas, para dar assistência aos pobres. A partir de tal episódio, eu, como provincial, ao Irmão que me indagasse a respeito do Ir. Antônio, respondia: “Vá com o Ir. Antônio catar o lixo com os papeleiros e depois aproveite essa porta aberta para também se inserir nesse tipo de ação”. E assim, todas as bocas foram se fechando e, de fato, houve Irmãos que também se envolveram nesse tipo de trabalho ao lado dos papeleiros. Tudo isso eu testemunhei e, como amigo do Irmão Antônio, sempre que podia o convidava para rezar conosco e tomar alguma refeição na casa provincial. E ele sempre aceitou o meu convite. Viamão, 28 de dezembro de 2016.

Irmão Charles doou estas duas cruzes a Matilde e Irmão Cecchin chamando a atenção para a presença de Maria junto a Jesus.

O Superior Geral conheceu a realidade das Ilhas com tantas necessidades. O Superior Geral também conheceu a Vila Tripa, ao longo da Av. Sertório, onde um menino fez uma demonstração a ele de como conseguiram, em mutirão, ter água direto do cano que passava na rua em frente: água clandestina.

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Missão Educativa ao Norte da ILHA GRANDE DOS MARINHEIROS – 1991-1993 por Arlete Simon*

Irmão Antônio Cecchin acreditava no ser humano. Talvez fosse essa a sua característica maior. Era um idealista-realista. Em 1991, Ir. Antônio e Matilde já haviam fundado um galpão de reciclagem na Ilha Grande dos Marinheiros. Nesse tempo, o filme Ilha das Flores mostrava as pessoas “vivendo do lixo”. Na verdade, as pessoas se utilizavam do lixo para alimentar os porcos, um dos recursos de sobrevivência para os nativos ilhéus. Também tinham obtido recursos para a fundação de uma banda musical, sempre acreditando que a EDUCAÇÃO era fundamental para a promoção do ser humano. * Professora aposentada. Informações coletadas com Jussara Basso e complementadas por Matilde Cecchin.

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Ir. Antônio tinha um olhar de bondade sobre todas as pessoas, e um olhar de predileção para os mais pobres e excluídos da sociedade. Na época em que foi subprefeito das Ilhas, durante um período em que Porto Alegre era governado pelo PT, teve a ideia de reabrir uma escola no norte da Ilha Grande dos Marinheiros. Com essa finalidade, Matilde e Ir. Antônio Cecchin procuraram e encontraram professoras estaduais que eram religiosas, ou, através destas, professoras estaduais que aceitassem assumir tal missão. Para o norte da Ilha Grande dos Marinheiros foram destinadas a professora Jussara Maria Basso e Arlete Maria Simon, esta então pertencente à congregação das Filhas do Sagrado Coração de Jesus. Tal escola ficava a aproximadamente 10 km da Escola Estadual Alvarenga Peixoto, esta ao lado da Ponte que atravessa as ilhas. Este projeto, que abrangia alfabetização e pós-alfabetização, fora aprovado pelo Conselho Estadual de Educação e durou dois anos – de 1991 a inícios de 1993 (em virtude da transferência de Arlete para outra cidade, Jussara foi deslocada para a Escola Estadual Açorianos, enquanto permaneceu como voluntária até 1999 em atividades na Sadi – Sociedade dos Amigos das Ilhas). Levava-se em conta que tais alunos, em número entre 15 e 20 de várias idades, não desciam até a Escola Alvarenga Peixoto, tendo em vista a instabilidade do Estuário Guaíba com suas cheias por grandes chuvas nos afluentes, ou pela simples ação do vento sul que o represava e fazia a água subir – como até hoje acontece - impossibilitando a vinda ou o retorno de suas residências.

Ir. Antônio tinha um olhar de bondade sobre todas as pessoas, e um olhar de predileção para os mais pobres e excluídos da sociedade. A comunidade, com seu líder religioso, Frei Valmor, participa do projeto educativo, em 1992.

Professora Arlete, em 1992, na extremidade Norte da Ilha Grande dos Marinheiros, atendendo a crianças que não tinham acesso à escola.

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Jipe Lada, doação direta do Superior Geral dos Irmãos Maristas para transporte das professoras.

Professoras, no barco, em direção à escola situada no extremo Norte da Ilha Grande.

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Por ocasião da visita do Superior Geral aos Maristas do Brasil, um australiano então vindo da Itália, este quis ver o trabalho dos Irmãos junto aos pobres. Ir. Antônio levou-o, então, ao galpão de reciclagem, na Ilha Grande dos Marinheiros e em outros locais onde ele atuava. Na despedida, o Superior Geral lhe perguntou qual a maior necessidade para a continuidade do trabalho, e Ir. Antônio respondeu que era um jipe, para que as professoras pudessem deslocarse até o norte da ilha por terra. Deste modo, o Lada russo tornou-se personagem importante desta história, vindo tal doação diretamente do Superior Geral. Desde então, este foi o meio de transporte normal das professoras, porém, em tempos de cheia prolongada, não era possível acessar a escola por terra, tendo então o Ir. Antônio conseguido com a Prefeitura um barco que fazia esse transporte levando e buscando as professoras. Ambas essas atividades de deslocamento tinham a sua proporção de aventura e de poesia. É relevante informar que houve muita doação gratuita e voluntária da Professora Jussara Basso durante este período: ela morava distante das ilhas, e se deslocava com seu próprio veículo, trazendo a merenda escolar que preparava na própria casa – sopão e água potável (em virtude de não haver infraestrutura na escola do norte da Ilha), chegando até a Creche Navegantes, onde residia a prof. Arlete Simon e ficava o Lada russo, de onde partiam para seu destino.


ILHA GRANDE DOS MARINHEIROS DE 1990-1994

Projeto de Alfabetização e Pós-alfabetização Uma experiência que impulsionou a minha vida profissional, desafiando radicalmente a minha prática pedagógica, até então dentro dos limites de uma educação bancária e muita teoria.

por Lucia Rosane de Souza Alayo*

Foi nos meados do mês de março de 1990, quando fui convidada pelo Irmão Antônio Cecchin a assumir os desafios de uma Educação Libertadora, junto às comunidades do Norte da Ilha Grande dos Marinheiros e Ilha do Pavão, pois havia a constatação que muitas crianças em idade escolar estavam sem estudar, a maioria delas filhos dos papeleiros que começavam a se organizar em coo­perativa.

* Graduada em Pedagogia na FAPA Pós-Graduada em Ciências Políticas na ULBRA.

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Festa de Nossa Senhora Aparecida em apresentação do grupo da escolinha da professora Tereza, em 1996.

As respostas para os nossos desafios nem sempre encontrávamos no espaço da sala de aula, mas na interação com as demais organizações daquela comunidade e assessorias.

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Os papeleiros sofriam sérias discriminações dentro da comunidade maior de moradores, verificando-se ali a necessidade de desenvolvermos um Projeto de Alfabetização e Pós-alfabetização com estas crianças. Este era o propósito. O primeiro núcleo foi implantado na Vilinha da Ilha Grande dos Marinheiros, Prédio da Igreja Nossa Senhora Aparecida, local de referência para as reu­ niões da comunidade, Clube de Mães, Associação de Moradores, Orçamento Participativo e nos finais de semana, atividades pastorais e celebrações. Foi neste núcleo, juntamente com a Professora Maria das Graças Silveira, que fomos construindo a nossa prática pedagógica, a partir dos desafios diá­ rios na busca de uma metodologia adequada, que possibilitasse a aprendizagem daquelas crianças. Avançamos à medida que fomos tomando consciência não só da realidade que as envolvia, mas também de suas possibilidades de superação. As respostas para os nossos desafios nem sempre encontrávamos no espaço da sala de aula, mas na interação com as demais organizações daquela comunidade e assessorias, aprendendo a criar as resistências necessárias para emancipação de indivíduos e grupos, contrapondo-se ao assistencialismo que ali imperava. É importante que se diga que este Projeto contou com quatro núcleos que foram sendo implantados, assim que as condições permitiam, pois a necessidade já era conhecida. Primeiramente, o da Vilinha, em 1990, no mesmo ano o da Ilha do Pavão onde não havia escola e as crianças corriam risco de vida para chegar até a escola de barco ou atravessando por cima da ponte, com tráfego intenso. Posteriormente, foram implantados mais dois núcleos para atender às necessidades de acesso à educação, também das comunida-


des que residiam bem ao norte da Ilha Grande dos Marinheiros, onde escolas haviam sido fechadas, porém os prédios ainda lá se encontravam. Os professores, para chegar até aos dois últimos núcleos, inicialmente faziam o trajeto com um barco da prefeitura e posteriormente com um Jeep vermelho (Lada russo), doação vinda diretamente do Superior Geral dos Maristas, após visita ao Brasil, quando teve a oportunidade de conhecer a Ilha Grande dos Marinheiros e os trabalhos que ali eram realizados. Para atender pedagogicamente a estes núcleos, contou-se com professoras da rede estadual, dispostas a um trabalho que requeria muita dedicação e mística. Isto só foi possível através de uma articulação com a Secretaria de Educação do Estado, para que nós, professores, pudéssemos ter a garantia legal da nossa vida funcional e os alunos de sua escolaridade. Não conseguiria finalizar este sem antes prestar minha homenagem ao Irmão Antônio Cecchin, que foi o grande mentor e articulador deste Projeto.

Os professores, para chegar até às escolas, inicialmente faziam o trajeto com um barco da prefeitura e posteriormente com um Jeep vermelho (Lada russo), doação vinda diretamente do Superior Geral dos Maristas.

Parabéns pela sensibilidade à realidade dos mais pobres e pela audácia em fazer acontecer, onde não havia mais crédito pela sociedade.

No seu compromisso com os mais pobres, destacou-se por ser um grande indicador na construção de políticas públicas. Graças aos indicadores fiéis à realidade e ações promovidas, todas as crianças dos locais onde o Projeto de Alfabetização e Pós-alfabetização ocorreu, desde 1994 chegam até a escola de ensino regular com o transporte escolar.

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Recordando encontros

Em Cuba, no Encontro CubaSolar, 1998.

por Enrico e Gabriella Turrini*

Agradecemos a Deus, de coração, por nos ter oportunizado conhecer Antônio Cecchin, uma pessoa que viveu, junto com sua irmã Matilde, o evangelho concretamente. Nosso primeiro contato foi pelos anos 1980, e logo nos impressionou constatarmos como se ajudavam mutuamente, * Enrico Turrini: italiano, laureado em Engenharia Eletrotécnica. Em 2003, aposentou-se. Atualmente, atua em Cuba, no campo das fontes solares de energia, tendo como público-alvo escolares e estabelecimentos cubanos de ensino. Gabriella Turrini: italiana, professora do Ensino Fundamental, aposentouse em 2003. Atualmente, aliada a seu marido Enrico, organiza encontros com jovens estudantes, em escolas cubanas.

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longe de qualquer egoísmo no serviço às pessoas mais pobres e sofredoras, dedicando-lhes verdadeiro amor, mostrando-lhes a importância de lutarem juntas, apesar das condições muito difíceis de moradia, vulnerabilidade social, dando sua contribuição, aos poucos, na construção do Reino de Deus, seguindo o exemplo de Jesus.


“A NATUREZA É A PRIMEIRA REVELAÇÃO DE DEUS AMOR” Ir. Antônio, citado por Turrini

Experiências e convivências partilhadas com o casal Turrini, em Cuba, nos Encontros CubaSolar, tornaram o Irmão Antônio cada vez mais apaixonado pela natureza, pela ecologia, pela reciclagem a ponto de criar a expressão “Profetas da Ecologia” para os que a praticam.

Os esquemas abaixo, excelente material didático de alfabetização ecológica, foram criados por Enrico Turrini.

A NATUREZA TODA É CÍCLICA Apenas os humanos, contaminados pelo vírus da dominação de uns sobre os outros e sobre a natureza, são acíclicos, quebram o ciclo.

Ciclo da água Regulada pelo sol, a água evapora, condensa o vapor formando nuvens. Cai a chuva formando rios e mares. Todos os seres vivos desfrutam da água sem destruí-la, com exceção dos humanos.

Realidade acíclica

Atraídas pelo consumismo, as pessoas produzem montanhas de lixo. Formam-se lixões incontroláveis para as gerações futuras.

Realidade cíclica

Ciclo da vida

Reciclar é seguir o caminho do sol, base de toda a vida na terra. Através da reciclagem nos coletivos de trabalho, os materiais voltam ao ciclo.

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Desenhos de Vânia Pierosan

Pela fotossíntese todos os seres vivos respiram e se nutrem da energia do sol, transformando-a em vida. Ao expirar, é liberado o gás carbônico que é absorvido pelas folhas, raízes, plantas.


Irmão Antônio, Enrico Turrini, Matilde e Gabriella, em Cuba, 1998.

Em Cuba, educação ecológica das crianças e jovens no Programa Cubasolar.

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Não podemos esquecer o ano de 1992 quando, junto com Antônio, participamos do Encontro com uma pequena comunidade de Santa Maria, Itália. Proporcionou-nos muita alegria por ele ter podido mostrar a importância da Reciclagem, que permite seguir os ensinamentos da Natureza, sem desperdício, respeitando o Ambiente, caminhando, assim, para a Vida. Antônio deixava trans­­ parecer seu entusiasmo e desejo de colaborar para a construção do Reino de Deus, relatando ter conseguido, junto com Matilde, formar grupos de pessoas pobres, para trabalharem nos galpões de Reciclagem, obtendo excelentes resultados. Também foi comovente o encontro com um grupo de mulheres interessadas na promoção de fontes de energia limpas, ou seja, de energia solar. Nesses encontros, exultamos de alegria vendo que Antônio não ficava só nas palavras, mas se entregava totalmente à prática no acompanhamento às comunidades pobres que acompanhava no Brasil. Foi uma dádiva ter podido convidar o Antônio para participar do encontro “Cubasolar Associazione”, para utilização de fontes de energia solar. E assim pôde sentir concretamente o valor da Revolução


Arte de Esther Bianco Livro, editado em Cuba em 2005, país eleito a segunda pátria do casal, pois permitiu-lhes compreender quanto são irmãs “as ideias da Revolução, o Evangelho e o Sol.”

Carta de Irmão Antônio e Matilde ao casal Turrini, no Natal.

Cubana, bem como seus amigos brasileiros, teólogos da libertação: Frei Betto e Leonardo Boff. Antônio foi verdadeiramente uma pessoa que partilhou sua vida com as pessoas mais necessitadas com um amor indizível, uma pessoa que nós sentimos sempre próxima a nós. Somos realmente agradecidos a ele por ter-nos aberto os olhos e suscitar o desejo de dedicar-se para, pouco a pouco, trilhar o caminho certo em direção ao Reino de Deus. Atualmente, em nossas atividades em Cuba, onde, felizmente, se respiram a partilha e o altruísmo, longe da mentalidade corrupta do capitalismo, baseada no egoísmo, sentimos sempre presente o Antônio com sua maravilhosa ajuda.

Foi uma dádiva ter podido convidar o Antônio para participar do encontro “Cubasolar Associazione”, para utilização de fontes de energia solar.

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Luiz Eduardo Robinson Achutti

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Gabriella e Enrico conheceram as mulheres recicladoras da Ilha Grande. Enrico é Físico e está ajudando Cuba a desenvolver a ENERGIA SOLAR. Vendo como as mãos delas eram ágeis na separação, escreveu:

As mulheres recicladoras, através de suas mãos hábeis, MOVIDAS A ENERGIA SOLAR, vão à ‘montanha’ de lixo, se­ param os materiais e de­ vol­ vem a matéria-prima para as fábricas... refazem assim o ciclo da natureza...” Enrico Turrini

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Com a ajuda da Gabriella e do Enrico, foi possível desenvolver o Projeto Profetas da Ecologia, criado pelo Irmão Antônio Cecchin com o objetivo de reunir os carroceiros e carrinheiros no resgate da sua cidadania.

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A caminhada aconteceu em 1994. Poucos dias depois, foi assinado um convênio para construção de um galpão de reciclagem com a finalidade de unir e organizar os carrinheiros.


4 5

E, em 1995, foi fundado o Galpão Profetas da Ecologia, a sede do mutirão dos carrinheiros.

No entanto...

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Foram pressionados de todas as formas para desistir dessa atividade, ameaçados e acionados com multas... Eles resistiram, pois essa atividade é a sua sobrevivência... É a vida deles. Usaram de todos os jeitos para continuar no seu ganha-pão, a última forma de trabalho que lhes restou. Lutaram, foram às ruas fazer ouvir seu clamor.

Gilnei J. O. da Silva

Gilnei J. O. da Silva

Com a vinda dos jogos da Copa do Mundo de Futebol, era necessário “limpar” a cidade desses indesejáveis lixeiros que atrapalham o trânsito e enfeiam a cidade (80% do material reciclável do Centro é recolhido por eles). E a Câmara de Vereadores aprovou uma lei, a chamada “lei das carroças”, para a retirada de carroças e carrinhos de coletar lixo, até 2016.

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Gilnei J. O. da Silva

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QUE ALEGRIA FOI ESSA VITÓRIA PARA ELES E PARA TODAS AQUELAS PESSOAS QUE SÃO AMIGAS DOS POBRES!!!!

Gilnei J. O. da Silva

... até que os vereadores aprovaram uma nova lei, que lhes possibilita continuar nessa atividade, sem serem molestados, até 2020.

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QUANTO QUE O IRMÃO ANTÔNIO ESBRAVEJOU CONTRA A FAMIGERADA LEI DAS CARROÇAS...

Stela Pastore

QUE ALEGRIA FOI ESSA VITÓRIA TAMBÉM PARA ELE!

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Irmão Antônio tinha por Carbonera, líder dos carrinheiros, um carinho especial. Na passeata, acima, com seu carrinho e,na foto abaixo, na Câmara de Vereadores, em maio de 2017, defendendo os direitos dos carrinheiros.


Um profeta-prático do “bem viver”!

Pelos caminhos da América, há tanta dor, tanto pranto, nuvens, mistérios e encantos, que envolvem nosso caminhar... Praça da Resistência, Pé do Monte Pascoal, no município de Itamaraju/BA.

por Dirceu Benincá*

A canção de Zé Vicente ecoa como denúncia de todas as formas de violência e morte produzidas no campo e na cidade. Do meio dessa realidade, emergem vozes que condenam as “fábricas” de morte dos pobres, anunciam a possibilidade da construção do “bem viver” e lutam pela sua concretização. A esses chamo de profetas-práticos, pois falam do futuro desejado e o fazem acontecer. Entre eles, está Irmão Antônio Cecchin, com quem muito aprendi a lutar pelo “bem viver” dos que foram jogados no lixo da História.

* Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), campus Paulo Freire, em Teixeira de Freitas/BA.

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O sentido do termo bem viver (buen vivir) proposto pelos povos quechuas da América do Sul é bem diferente. Ele define o sonho de uma sociedade inteira baseada na convivência fraterna, no respeito à diversidade e na harmonia com a natureza.

O Parque Nacional e Histórico do Monte Pascoal é uma das mais importantes unidades de conservação integral do Sul da Bahia

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Os gregos viam o “bem viver” como uma arte. Aristóteles chega a falar da eudaimonia como busca da felicidade completa. Porém, a felicidade grega era excludente, possível somente aos senhores, a quem os escravos deviam obedecer. Já o sentido do termo bem viver (buen vivir) proposto pelos povos quechuas da América do Sul é bem diferente. Ele define o so­ nho de uma sociedade inteira baseada na convivên­ cia fraterna, no respeito à diversidade e na harmonia com a natureza. Na cosmovisão indígena, o bem viver requer necessariamente que todas as pessoas e povos (não apenas alguns) possam viver bem. Não se trata de mera utopia, mas ponto de partida, energia que move e o próprio jeito de percorrer o caminho. Ir Antônio Cecchin é dessas vozes surgidas no contexto da Ação Católica. Desde cedo, entendeu que “ser cidadão” e “ser cristão” não dá o direito de ficar silenciado e de braços cruzados. Antes ao contrário, exige entrar em movimento quando as forças repri­ mem; falar mesmo quando a ditadura manda calar; se­ mear “flores” mesmo no meio dos “espinhos”. Com as Fichas Catequéticas (uma catequese libertadora basea­


da no método Paulo Freire) fez-se ouvir, destoando do cate­ cismo ensinado pela ditadura miliar. No lixão da Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre, foi um verdadeiro profeta­ -prático do bem viver. Daí não só resultou o famoso filme Ilha das Flores dirigido por Jor­ ge Furtado, mas tam­ bém surgiram coo­ pe­ rativas e associações de catadores(as) com a participação direta do Ir. Antônio e sua irmã Matil­ de Cecchin. Muitas outras foram criadas pelo estado e país afora tendo nessas a sua inspiração. Com D. Helder Camara, a Igreja no Brasil come­ çou a tomar novo rumo. Ainda no início da década de 1950, ele deu o forte grito da opção pelos pobres. Com o Concílio Vaticano II (1962-1965), abriu-se mais o clarão do compromisso libertador da Igreja. E, aos poucos, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) fo­ ram se enraizando pelas periferias sociais. Ir. Antônio entrou em cheio no caminho das CEBs e elas foram se tornando sua espiritualidade profunda, como costu­ mava dizer. Com ele, tive a especial alegria de parti­ cipar da preparação e na realização de muitos encon­ tros de CEBs. Em setembro de 1992, na cidade missioneira de Santa Maria/RS, realizou-se o 8º encontro intereclesial das CEBs, com o tema “Povo de Deus renascendo das culturas oprimidas”. O evento reuniu mais de duas mil pessoas. Em atitude profética, lideranças dos ne­ gros e dos povos indígenas “rasgaram a cortina” das instituições que, historicamente, se afirmaram como portadora de uma verdade absoluta. Em um grito de reivindicação, demonstraram o desejo de serem ou­ vidos e respeitados, e não simplesmente tolerados ou admirados, tanto na sociedade em geral quanto nos espaços culturais e religiosos. Aquela voz produziu seus efeitos e continua a ressoar até nossos dias.

O 12º encontro nacional de CEBs, em Porto Velho, de 21 a 25 de julho de 2009, teve como tema “Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia”.

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No 13º encontro de CEBs/RS, uma vez mais usou a palavra para insistir na necessidade de não esquecermos a memória de Sepé Tiaraju, o destemido lutador pela terra indígena, pelo território e pelo bem viver de seu povo. De Sepé sempre destacava seu grito contra os invasores: “Alto lá! Essa terra tem dono”!

No 13º encontro de CEBs, em Santa Maria, refletimos sobre o tema “Justiça e profecia a serviço da vida”.

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Com sua compreensão histórico-crítica e a clarivi­ dência de um profeta, Ir. Cecchin motivou os partici­ pantes do encontro à necessária articulação entre a fé, a vida e o compromisso com o meio ambiente. Lembrome de seu apelo a todos os participantes do encontro no sentido de recolhermos os resíduos de forma res­ ponsável e destinar os recicláveis aos(às) catadores(as). Afinal de contas, estávamos em tempos áureos do des­ pertar da consciência ecológica. Havia poucos meses (em junho de 1992) acontecera no Rio de Janeiro a Con­ ferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a Eco-92, que tratou dos problemas ambientais em nível mundial. Em sua intensa trajetória, Ir. Cecchin também se destacou como defensor das causas indígenas. Não cansava de fazer memória do mártir Sepé Tiaraju que, juntamente com 1500 companheiros indígenas, foram abatidos bestialmente pelo exército espanhol e português nos arredores do arroio Caiboaté. O epi­ sódio brutal ocorreu em 7 de fevereiro de 1756, preci­ samente onde iniciaram as romarias da Terra do Rio Grande do Sul, das quais Cecchin sempre participou ativamente. Voz rouca e pontiaguda contra as injustiças; in­ conformado com os históricos e repetidos massacres de indígenas, negros, sem terra, catadores e pobres em geral, nosso profeta do bem viver costumeiramen­ te se pronunciava nos encontros, romarias, reuniões, onde quer que fosse. Coincidência ou não, a última Romaria da Terra que a vida lhe permitiu estar pre­ sente (em 9 de fevereiro de 2016) ocorreu exatamente onde foi realizada a primeira delas (em 1978), no mu­ nicípio de São Gabriel. Entre os últimos momen­ tos de convivência com o Ir. Antônio, destaco os que tive­ mos em Santa Maria, durante o 13º Encontro Estadual de CEBs, nos dias 26 a 29 de ju­ lho de 2012 . Nesse encontro, uma vez mais usou a palavra para insistir na necessidade de não esquecermos a memó­ ria de Sepé Tiaraju, o deste­ mido lutador pela terra indí­


gena, pelo território e pelo bem viver de seu povo. De Sepé sempre destacava seu grito contra os invasores: “Alto lá! Essa terra tem dono”! A propósito, Ir. Cecchin almejava tanto vê-lo conduzido ao reco­ nhecimento dos altares como um santo/ profeta. Seus pronunciamentos eram sempre feitos com o coração, a partir da larga ex­ periência de lutas e do inescondível so­ nho de outro mundo possível e necessá­ rio. Dizer a sua palavra nessas ocasiões era-lhe como que um dever de consciência. Sua voz profética e propositiva continua ecoando em nossos ouvidos e de todos quantos aprenderam a admirá-lo. No terreno das Comunidades Eclesiais e Ecológi­ cas de Base, fui influenciado a trabalhar com os cata­ dores de materiais recicláveis. Bebendo nessa fonte e nas experiências de organização de cooperativas de catadores em Porto Alegre, sob a coordenação de Ir. Antônio e sua irmã Matilde, assumi o firme compro­ misso com essa causa. Assim, em 2001, em Erechim/ RS, criamos a Associação de Recicladores Cidadãos Amigos da Natureza (ARCAN), experiência em exi­ toso funcionamento até hoje. Iniciativa essa que de­ sencadeou mudanças profundas no tratamento dos resíduos na cidade de Erechim. Referido compro­ misso levou-me a iniciar também um trabalho com catadores em Santo Amaro/SP no ano de 2008 e me engajar agora na mesma luta na cidade baiana de Tei­ xeira de Freitas. É difícil falar pouco de quem fez muito e nos dei­ xa ricos testemunhos. Faço-o no contexto da V Jor­ nada de Agroecologia da Bahia, promovida pela Teia dos Povos e por um conjunto de instituições, organi­ zações e movimentos. A Jornada aconteceu na Boca da Barra, em Porto Seguro, nos dias 19 a 23 de abril de 2017. Porto Seguro é terra da invasão e da coloni­ zação. Porém, a história oficial insiste na ideia do feliz “descobrimento”. Terra do índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos, que há exatos 20 anos (em 19 de abril de 1997) foi barbaramente queimado vivo em uma Praça em Brasília, para onde tinha ido debater com auto­ ridades a situação das terras do seu povo, a área de Caramuru/Paraguassu. O crime foi praticado por jo­

A última Romaria da Terra que participamos juntos foi no dia 17 de fevereiro de 2015, em David Canabarro/RS.

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A aula aconteceu no mato. O método foi escalar o Monte Pascoal. Os mestres foram os Pataxó. A grande lição: viver em harmonia com a “mãenatureza”!

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vens da classe mé­ dia que alegaram estar brincando e que julgavam fos­ se um mendigo. Barbárie sem es­ crúpulos! A Jornada abordou o tema “Terra e Território: Natureza, Educa­ ção e Bem Viver”. Foi um espaço para fortalecer o projeto da “Terra Sem Males”, uto­ pia real vivida e sonhada pelos po­ vos Guarani. Na­ quele chão Pata­ xó, onde outrora os colonizadores invadiram, sa­ quearam, mataram e se fixaram, reafirmou-se a ne­ cessidade de não dar trégua ao colonialismo, à colo­ nialidade, ao imperialismo e às atrocidades que são impostas aos pobres nos dias atuais. Em alto e bom som, foi decretado o fim da invasão. E em sábia afir­ mação, foi dito, escrito e divulgado na carta final da Jornada que “se a colonização se consolida em nos­ sas cabeças, a descolonização real começa pelos pés, pisando nos territórios, demarcando-os com nossos passos e cultivando-os com a prática de nosso bem viver”. Os exemplos dos profetas não têm fronteiras. Sua voz ressoa mesmo depois que seu corpo vira pó. Seus ideais continuam animando as gerações presentes e vindouras. Seus sonhos não podem ser destruídos porque se inscrevem na alma dos que desejam a justi­ ça e o bem comum. Suas lutas não são em vão porque por elas e com elas pode se instaurar o “bem viver”! Suas ações e seu testemunho são sementes da melhor espécie. Ir. Antônio Cecchin assim foi e é, pois os pro­ fetas não morrem, apenas mudam o jeito de estarem presentes!!!


O homem que ligava e religava Fórum dos recicladores do Vale do Sinos

por Roque Spies*

Conheci o Irmão na década de 1980 pelo seu engajamento e militância pelas causas indígenas, nas ocupações de terra para moradia por migrantes do êxodo rural em Canoas e na gestação das primeiras organizações de catadores. Foi em 1990, quando eu integrava a equipe da Cáritas Diocesana de Novo Hamburgo e tendo trabalhado cerca de cinco anos na regularização de uma área ocupada no Bairro Santo Afonso em Novo Hamburgo, através da organização de uma cooperativa que o Ir. Antônio nos encaminhou para um novo desafio. * Reciclador de Dois Irmãos. E-mail: roque.reciclos@gmail.com

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Ir. Antônio sempre lutou para agregar os catadores em espaços onde pudessem realizar seu trabalho e, por vezes, conquistados pela ocupação de “elefantes brancos”.

Irmão Antônio na Cooperativa de Reciclagem Cooprevive.

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O ecologista José Lutzenberger, através de sua empresa, havia assumido a tarefa de dar tratamento adequado ao lixo de Novo Hamburgo. Como alternativa ao fechamento do lixão à beira do Rio dos Sinos, foi organizada a Central de Triagem e Compostagem no Bairro Roselândia. Para fazer a triagem, foram buscadas famílias de catadores de rua que haviam sido assentadas no Bairro Kephas. A equipe do ecologista precisava de um agente que pudesse ajudar na organização de uma cooperativa dos catadores. Foi então que contatou o Ir. Antônio, que orientou para procurar auxílio na Cáritas de Novo Hamburgo. Foi assim que entrei para o mundo da reciclagem e passei a ter contatos frequentes com Antônio e a mana Matilde na Ilha Grande dos Marinheiros, e também com uma equipe do Instituto de Educação da UFRGS, coordenada pelo professor Nilton Fischer, que debatia metodologias de educação de adultos a partir de suas práticas. Desde o primeiro momento me causou admiração pelo vigor da sua militância e pelas múltiplas dimensões que animavam sua articulação. Sempre foi muito próximo das pessoas e se sensibilizava com suas necessidades. Conhecia muita gente como os antigos e novos militantes da Igreja Católica e de outros credos, ex-alunos maristas, políticos, lideranças sindicais, de movimentos sociais, ecologistas e outros. Frequentemente, reunia a to­dos em atos ecumênicos, como na Romaria das Águas. Foi na área da reciclagem, através da organização de associações de catadores, que pude vivenciar com ele os esforços que fez para que o trabalho deles fosse reconhecido pelo grande benefício ecológico, social, político e econômico a todo o planeta. Lutou muito por políticas públicas nesta área. Vibrou muito com a aprovação da Política Nacional de Resí-


duos, através da Lei 12.305/2010, mas causou-lhe muito dissabor a proibição da circulação de carroças e carrinhos em Porto Alegre, porque dificultou o trabalho dos catadores e porque as alternativas apresentadas foram mais no sentido de tirar os catadores da rua e não de apoiá-los na sua atividade com resíduos. Ir. Antônio sempre lutou para agregar os catadores em espaços onde pudessem realizar seu trabalho e, por vezes, conquistados pela ocupação de “elefantes brancos”. Na organização interna estimulava o exercício do trabalho em “mutirão”, inspirado nas Reduções dos Sete Povos das Missões do povo guarani. Buscava forças no Evangelho e nas inúmeras passagens bíblicas os exemplos de Jesus de Nazaré pregando o amor aos ‘últimos’. Sua energia de caminheiro provinha daí e da forte devoção a Maria, a Aparecida das Águas. Mesmo com 89 anos, fazia planos e corria atrás de soluções para as causas que defendia. Para mim, foi exemplo de persistência na luta e de uma opção clara a favor dos mais pobres. Foi incansável para ligar entre si as pessoas e os diversos m o v i m e n t o s do campo e da cidade. E mostrou a todos que só se vai a Deus formando comunidade – “onde dois ou três estiverem reunidos, eu estarei no meio deles”.

Encontro de recicladores em Novo Hamburgo.

Foi incansável para ligar entre si as pessoas e os diversos movimentos do campo e da cidade. E mostrou a todos que só se vai a Deus formando comunidade – “onde dois ou três estiverem reunidos, eu estarei no meio deles”.

Arte de Esther Bianco.

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Fotos: Débora Beina

Obrigada, meu professor! por Marli Medeiros*

Meu nome é Marli Medeiros e, até uma viagem que fiz na década de 1990, de Porto Alegre à Argentina, mais precisamente em Mar del Prata, juntamente com as grandes pensadoras da questão das mulheres do Brasil, eu era só uma liderança comunitária que, recentemente, se capacitara em noções básicas de direito, se tornando uma Promotora Legal Popular (PLP). * Liderança comunitária e PLP (Promotora Legal Popular). Fundadora, presidente e gestora do Centro de Educação Ambiental - CEA . Coordenadora do Fórum dos Catadores e Recicladores de Porto Alegre.

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Fotos: Débora Beina

Atualmente, sou a presidente do Centro de Educação Ambiental CEA, que é administrador do Centro de Triagem da Vila Pinto – CTVP, do Centro Cultural James Kulisz – CEJAK e da Escola de Educação Infantil Vovó Belinha. Ainda em 2017, o CEA administrará uma Cooperativa de Trabalho que estamos criando.

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Fotos: Débora Beina

Marli, no Projovem, em oficina do Meio Ambiente, no cinema do CEA (Centro de Educação Ambiental).

Projovem Adolescente é um Programa do qual Marli é gestora. São jovens com até 20 anos preparados e encaminhados para o mercado formal de trabalho. Detectada a impossibilidade do trânsito de muitos jovens entre as comunidades devido à violência, conseguimos empréstimos de espaços comunitários para atendimento dos jovens de outras comunidades.

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Mal sabia eu que nesta viagem Matilde Cecchin me apresentaria o filme Ilha das Flores que nortearia dali em diante todo o meu futuro. Contei à Matilde minha incessante procura por uma alternativa de renda às mulheres da minha comunidade, principalmente as que estavam envolvidas com o tráfico e as vítimas de violência doméstica. Nada sabia sobre lixo, resíduo, mas Matilde, generosamente, me ofereceu o laboratório que ela juntamente com seu irmão Antônio Cecchin criaram para desenvolver um trabalho de organização e capacitação de catadores: o centro de triagem da Ilha dos Marinheiros. Não tive dúvidas, iniciei lá minha capacitação na área da reciclagem de resíduos sólidos e, ao conhecer e conversar com o Irmão Cecchin, me encantei com seu conhecimento, sua humildade, seu espírito humanitário e sua dedicação para com os mais pobres. Era emocionante a gratidão com que as pessoas dedicavam a ele e à sua irmã. Levaram para a Ilha dos Marinheiros a experiência que já tinham adquirido nos lugares onde passaram como em Canoas e, em Porto Alegre, na Vila Lupicínio e Planetário. A curiosidade me levou a perguntar ao Irmão Cecchin o que o fez criar o espaço na Ilha. Ele prontamente contou que, seguindo uma carroça com “lavagem para porcos” retirada dos restaurantes do centro da cidade e levado até a Ilha, percebeu que neste resíduo tinham muitos restos de comida que as pessoas aproveitavam para se alimentar. Ele então, com a sua experiência e altruísmo, não teve dúvidas em dizer que podia ensinar a todos como viver do lixo sem necessariamente comê-lo! Achei aquilo bárbaro e, daquele momento em diante, quis que a reciclagem fosse a grande alternativa de renda e de libertação moral para as mulheres da minha comunidade!


Fotos: Débora Beina

Nossa parceria foi muito bonita e por diversas vezes trocamos experiências. Eu que surgia de um ensinamento na área com o Irmão Cecchin e trabalhando só com mulheres na Vila Pinto, Região Leste, e ele na Região das Ilhas, Navegantes e em muitos outros bairros onde surgia a necessidade de capacitar e incentivar pessoas a criar e administrar centros de triagem. Em tudo os dois irmãos, com vasta experiência nas Comunidades Eclesiais de Base, colocavam a fé em Deus como balizador nas soluções dos problemas que iam surgindo. Assim, além da cultura do trabalho, aprendemos a cultivar também a cultura da fé, do amor a Deus e do amor ao próximo. Era emocionante seguir os passos humanitários do Irmão, com ele intensifiquei minha militância nos movimentos sociais participando com intensidade da

O Centro de Educação Ambiental – CEA era só um Galpão de Reciclagem como os demais da cidade. Seu grande diferencial foi a ideia ter nascido num Encontro de Mulheres, ser fundado por mulheres e direcionado para mulheres vítimas de violência e mão de obra do tráfico da comunidade da Vila Pinto. O Centro Cultural (fotos na página ao lado) foi demanda das trabalhadoras do CTVP.

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Fotos: Débora Beina

Em 1997, o CEA ganhou seu primeiro prêmio que serviu para construir um novo prédio: o Centro de Triagem da Vila Pinto – CTVP. Neste mesmo ano, as trabalhadoras já iniciaram a demanda pela criação de um Centro Cultural e de uma Escola de Educação Infantil. Uma família, em uma parceria público-privada, aceitou construir o Centro Cultural e a Escola de Educação Infantil. “Todas nós, em homenagem à tamanha generosidade, demos o nome de seus dois entes queridos recémfalecidos: do irmão James Kulisz e da matriarca da família, conhecida como Vovó Belinha”, diz Marli.

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Festa da Nossa Senhora dos Navegantes, das Romarias da Terra e das Águas, criada por ele, das Pastorais e até participar no interior do Estado do Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST). As caminhadas eram cansativas, mas ninguém ousava sequer se queixar vendo a vitalidade e a abnegação de um senhor como o Irmão Cecchin. Ele estava sempre disposto, alegre, cantador, incentivador, que era impossível não reconhecer muitas vezes ser ele um homem fora do comum. Tínhamos um carinho muito especial um pelo outro, eu sentia muitas vezes que ele me transferia muitas responsabilidades no seguimento dos seus passos. Com o tempo e com os compromissos assumidos, me distanciei um pouco, mas ainda hoje sua presença, seus ensinamentos, seu espírito de luta e resistência são a força que me fazem acreditar que se ele pôde, eu também posso! Termino este relato com lágrimas de gratidão e reconhecimento por tudo que aprendi com ele. Obrigada, Irmão Cecchin! Obrigada, meu professor! Muito obrigada, Profeta da Ecologia! Um dia estaremos juntos novamente.


“Superando o preconceito geral que considera lixeiros como párias da civilização urbana, os que se habituaram a ‘ler com os olhos do coração’ passam a vê-los como os Profetas da Ecologia e, como tais, merecedores de veneração e respeito.”

BABY, O PROTÓTIPO A parceria mais importante estabelecida entre Marli Mederios e Irmão Antônio Cecchin foi o projeto do Baby: protótipo criado por uma indústria caxiense a fim de solucionar a coleta de materiais recicláveis no Centro de Porto Alegre. A seguir, algumas palavras selecionadas do discurso de Irmão Antônio Cecchin no recebimento do carrinho: Na semana comemorativa dos 229 anos de Porto Alegre, houve um momento de grande ternura, quando um grupo de pessoas escolheu os papeleiros como alvo de seu presente de aniversário à cidade. Referimo-nos ao carrinho a motor, apelidado de “baby”. Nesse gesto, ficou evidenciada a qualidade da cidadania dessas pessoas, que se deixaram cativar pelos sobre-humanos esforços que encurtam os anos de vida, desses que arrastam pesadamente, por ruas e vielas da cidade, cargas de até 200 a 300 quilos, convenientes apenas para animais de tração. Superando o preconceito geral que considera lixeiros como párias da civilização urbana, os que se habituaram a “ler com os olhos do coração” passam a vê-los como os Profetas da Ecologia e, como tais, merecedores de veneração e respeito.(...) Foi assim que aconteceu, por exemplo, com o Profeta maior, Jesus de Nazaré. Se não se matam mais os profetas de hoje porque a pena de morte foi abolida, o sofrimento faz parte de seu dia a dia. Basta ver o que não raro acontece aos nossos Profetas da Ecologia, particularmente junto aos

Marli e o carrinho Baby, entregue pela comunidade para a melhoria de trabalho dos catadores e catadoras em Porto Alegre.

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“Vida longa para os Profetas da Ecologia da cidade de Porto Alegre!”

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semáforos. Buzinaços por trás e palavras de baixo calão ao cruzar por eles. Todos os anos na Semana Santa recordamos o que aconteceu ao Profeta dos profetas. Dentro daquele clima de conspiração, que pairava no ar da capital Jerusalém, um grupo de amigos prepara uma surpresa para o Mestre. A fim de minorar o sofrimento do andarilho que escolhera estradas e ruas poeirentas da cidade como seu lugar próprio de pregação, presentearam-no com um burrinho. Por sobre o animal, a fim de suavizar os solavancos da andadura, estenderam as próprias vestes como a dizer: “Muitos anos de vida para Jesus!” Ao grito de morte da sextafeira-santa, contrapunham assim seus votos de vida longa para o Profeta. Não é diferente o gesto dos admiradores dos papeleiros quando os colocam a cavaleiro dos próprios carrinhos, presenteando-os com um protótipo a motor como a dizer-lhes: “Vida longa para os Profetas da Ecologia da cidade de Porto Alegre!” Num primeiro momento o “baby” veio para substituir humanos virados alimária e, num segundo momento, para além do gesto dos contemporâneos do Profeta da Galiléia, substituindo o próprio burrinho ou cavalo dos carroceiros. Esse gesto de ternura envolvendo o “baby”, temos certeza de que não passará em brancas nuvens, depois da proclamação de Jesus: “Aquilo que fizestes aos últimos dos meus irmãos, foi a mim mesmo que o fizestes!... Eu fazia as vezes de animal de tração e vós me presenteastes com um carrinho a motor!” Os inventores do “baby”, em Porto Alegre, com toda a certeza, já têm cadeira cativa no Reino de Jesus!


“Viver é lutar” por Albert Knechtel*

É sempre surpreendente quando se parte para uma aventura sem ter a mínima ideia de que se trata. “Teologia da Libertação”, me disse a responsável da Tv ARTE, um canal franco-alemão, muito competente no setor de Documentários. Perguntou-me se queria fazer um filme sobre “catadores de lixo, lá no Sul do Brasil”. Conhecia alguma coisa sobre os irmãos Boff (Leonardo e Clodovis). Eles, teólogos, e eu, ateu. Seria o meu segundo documentário, Lixo é Vida, que teria de dirigir para a Tv ARTE, do Mercado Comum Europeu, com sede em Strassbourg. * Documentarista com mais de 50 documentários rodados no mundo inteiro, mas com uma especialidade: o Brasil, país pelo qual tem um carinho muito especial. Aqui, filmou mais de 30 Documentários e reportagens. Fez um filme de 90 minutos sobre o Dalai Lama, encontrou-o, trabalhou com ele. Conforme conta, o Irmão Antônio o impressionou mais.

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Ao lado, Matilde e Antônio Cecchin entrando no galpão de reciclagem Profetas da Ecologia. Todas as imagens são fotogramas do documentário realizado por Albert Knechtel. Documentários em França 97, no You Tube da Rede Marista:

Parte 1: https://youtu.be/5boMSgQMUg8 Parte 2: https://youtu.be/NlawbfpGU6U Parte 3: https://youtu.be/6IHFPGusmQY

Que coincidência, pois já havia dirigido um primeiro trabalho que também se referia aos excluídos da sociedade: “Os meninos de rua de São Paulo”. Sem saber o que me esperava, aventurei-me e, por via aérea, parti de Frankfurt a Porto Alegre. Daí o meu primeiro encontro com Antônio e sua irmã Matilde. Foi a descoberta de um novo universo. O calor humano, a inteligência, a abertura e a singeleza foram as minhas primeiras impressões muito marcantes. Permaneci em Porto Alegre durante um mês, filmando acompanhado de Antônio, Matilde com os ”catadores”, estes, o foco principal das gravações de Lixo é Vida. O Ito e equipe também deram sua contribuição. Antes de iniciar as filmagens, tive oportunidade de apreciar o magnífico documentário Ilha das Flores, do cineas­ta gaúcho Jorge Furtado. Avassalador foi constatar nele a vida real de seres humanos vivendo do lixo. E, solidário a essa situação degradante, lá estava o Antônio, ajudando-os com a mão (ações) e palavras de esperança. Animava os abalados, sempre próximo dos que mas precisavam. Para mim, a “Teologia da Libertação” tinha um nome. Era ele, Antônio Cecchin. Nunca esquecerei como se empenhava em defender os direitos dessas pessoas, completamente esquecidas do sistema político e social brasileiro. Numa manifestação de protesto, no centro de Porto Alegre, com o megafone na mão, clamava, em altos brados corajosamente, sem temer ser preso pela Po258


lícia Militar, fortemente armada, como se vê nos jogos de vídeo. Apesar de já estar com certa idade, vibrava com as palavras da Bíblia, não por ser crente cego, ao contrário, fez dela um viver. E eu, ateísta, fui entendendo como são parentes próximos o Cristianismo autêntico e o Comunismo. São a verdadeira utopia que o ser humano dificilmente alcança. Antônio não desanimava. A vida, para ele, era uma luta diária, um serviço aos mais pobres e necessitados, para alcançar a justiça ou, pelo menos, quase alcançá-la. Tenho uma admiração profunda pela sua pessoa. Ensinou-me muito sobre a humanidade e a vida, pois “viver é lutar”. Descansa em paz, Antônio, você merece!

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Mestre Cecchin, meu guru Com um colega, Irmão Lourenço José (depois Irmão Antônio Cecchin) em Roma, enquanto funcionário no Vaticano, no cargo de Secretário Particular do Cardeal Procurador Geral da Fé (Advogado do Diabo).

por Helio Corbelini*

Em 1960, chegou ao conhecimento da nossa turma do 1º ano científico do Colé­ gio Rosário que teríamos como professor um irmão da ordem que chegara de Roma, onde fora auxiliar do “Advogado do Dia­ bo”. Ficamos todos os alunos tomados de curiosidade. Na nossa expectativa, não po­ deríamos supor que se tratava de alguém extremamente humilde. Sua simplicidade nos tocou conquistando nossa simpatia e, posteriormente, nossa amizade. * Economista, Vereador de Porto Alegre, Secretário Municipal no Governo de Olívio Dutra. Secretário Municipal da Habitação no Governo Tarso.

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Foi nessas circunstâncias que conheci o irmão marista Antônio Cecchin, que se tornaria meu mentor, reforçando em mim a adesão à filosofia humanista que era desenvolvida na Juventude Estudantil Católica (JEC), por meio da assistência do então Padre Pacheco. Tínhamos então uma equipe formada por mim, por Helio Gama, Benício Schmit, Aluísio Paraguassú, Verzoni e Gilberto Bossle. Cecchin, profundamente influenciado pela Igreja Progressista, nos trouxe ideias novas. Por meio dele, conhecemos o conteúdo da encíclica Rerum Novarum, principalmente, e começamos a discussão sobre Justiça Social, utilizando sempre o método “ver, julgar e agir”, o qual nos introduziu ao processo dialético de análise da realidade. Com Antônio, aprendemos o agir político, que colocamos em prática nos anos seguintes. Nossa militância se estendeu às escolas estaduais do Rio Grande do Sul, onde pregávamos a justiça social no Brasil, propondo reformas de base, a conscientização crescente do ser humano e, finalmente, chegamos à necessidade de uma revolução, que se tornou nossa palavra de ordem. Resultante de nossa ação durante dois anos, viemos a conquistar diversos grêmios estudantis, iniciando, naturalmente, pelo Grêmio Estudantil do Colégio Rosário e, depois, se disseminando para grêmios estudantis de escolas do Estado, conquistando influência que nos levou a vencer eleições na UMESPA e na UGES. Em 1963, já na Pontifícia Universidade Católica (PUC), continuamos nossa atuação na equipe regional da JEC, em transição para a JUC, a Juventude Universitária Católica. Em 1964, deu-se o golpe militar e minha expulsão da PUC pelo então Reitor Irmão Otão. Poucas vozes se levantaram em minha defesa, dentre elas se destacaram o Padre Pacheco e o Irmão Antônio Cecchin.

Nossa militância se estendeu às escolas estaduais do Rio Grande do Sul, onde pregávamos a justiça social no Brasil, propondo reformas de base, a conscientização crescente do ser humano e, finalmente, chegamos à necessidade de uma revolução, que se tornou nossa palavra de ordem.

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REENCONTRO

“Contudo, não demorei em me convencer sobre a importância das cooperativas de catadores de lixo. A partir desse convencimento, passei a prestar todo o apoio possível àquela causa.”

Gesto audacioso de ocupar o espaço debaixo do viaduto, atrás da Igreja Navegantes, para construir o galpão Profetas da Ecologia.

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Muito tempo passado, no ano de 1990, durante a primeira gestão do Partido dos Trabalhadores à frente da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, estando eu no exercício do cargo de Secretário de Governo Municipal, recebi a visita do Irmão Cecchin, que nesta época tinha se constituído em defensor de uma política para os excluídos que viviam do trabalho com a reciclagem dos resíduos sólidos da Sociedade. Apesar de me conhecer muito bem, Antônio Cecchin ainda desconfiava daquele partido político que chegara ao poder. Eu, de minha parte, mais por desconhecimento da matéria, não sabia avaliar o potencial transformador daquele trabalho. Contudo, não demorei em me convencer sobre a importância das cooperativas de catadores de lixo. A partir desse convencimento, passei a prestar todo o apoio possível àquela causa. Por ocasião da segunda administração do Partido dos Trabalhadores, quando exerci a função de Diretor do Departamento Municipal de Habitação Urbana, para cada um dos conjuntos habitacionais que construímos, implantei um galpão de reciclagem, estimulando a organização dos catadores de lixo em cooperativas de trabalhadores de reciclagem de resíduos sólidos. Nessa época, praticamos o audacioso ato de ocupar e exercer a posse, em nome do DEMHAB, da área urbana localizada sob o Viaduto da Igreja Nossa Senhora de Navegantes, área de domínio federal, e, em ato contínuo, repassá-la à organização não governamental “Profetas da Ecologia”, projeto concretizado a partir da liderança e militância política do Irmão Antônio Cecchin na organização e promoção da cidadania dos catadores de lixo e dos carrinheiros do Centro de Porto Alegre. Esse ato de ocupação tornou possível a construção


A sessão ocorreu em um barco, o icônico “Cisne Branco”, onde o título foi entregue a Antônio Cecchin, enquanto o barco singrava as águas do Guaíba

da sede da entidade naquele local. Tal ação contou com o aval do então Prefeito Tarso Genro, que se sensibilizou com a importância do trabalho de Antônio Cecchin, apesar de destacar que nossa ação não era, exatamente, um ato legal. Depois desse acontecimento, não perdemos mais contato, pois acompanhávamos de perto suas atividades nas ilhas do Guaíba, tanto junto com os catadores como na promoção do sincretismo religioso. O último ato relevante foi quando exerci o mandato de vereador do Município de Porto Alegre (1997-2000). Para homenagear e dar visibilidade ao profundo e importante trabalho que Antônio Cecchin realizava nas ilhas, propus e a Câmara de Vereadores lhe concedeu título de Cidadão de Porto Alegre. Para o irmão e companheiro Antônio Cecchin a solenidade tinha que ser diferente. Pela primeira vez na história, a entrega do título de Cidadão de Porto Alegre ocorreu em sessão solene da Câmara de Verea­ dores realizada fora de suas paredes. A sessão ocorreu em um barco, o icônico “Cisne Branco”, onde o título foi entregue a Antônio Cecchin, enquanto o barco singrava as águas do Guaíba. Durante todo o trajeto, o Guaíba também rendia sua homenagem, num ardoroso e envolvente abraço, como que a anunciar a todos, por meio de seu ruído, o respeito àquele novo cidadão de Porto Alegre, o respeito à história e à luta que aquele gentil, humilde e valoroso homem devotou à sociedade porto-alegrense.

Beatriz Gonçalves Pereira, da Ilha da Pintada, com seu grupo, homenageou o Irmão Antônio Cecchin com danças.

Durante todo o trajeto, o Guaíba também rendia sua homenagem, e respeito à história e à luta que aquele gentil, humilde e valoroso homem devotou à sociedade portoalegrense.

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Introdução do longo discurso de Irmão Antônio, na ocasião do recebimento de título honorífico de Cidadão de Porto Alegre, pela Câmara de Vereadores.

Pela primeira vez na história, a entrega do título de Cidadão de Porto Alegre ocorreu em sessão solene da Câmara de Verea­d ores realizada fora de suas paredes.

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O Padre Antônio Vieira, grande lite­ rato dos tempos de Brasil-colônia, no ano de 1658, em car­ ta ao Padre Francisco de Avelar, no Mara­ nhão, escreve: ‘Não há maior comédia que a minha vida; e quando quero ou chorar ou rir ou ad­ mirar-me ou dar graças a Deus, ou zombar do mun­ do, não tenho mais que olhar para mim.’ Do alto dos meus 71 anos, olhando para minha vida, embora nada tenha de comparável à extraor­ dinária de Vieira, desfruto da mesma sensação que ele face às peripécias por que passei. O presente evento seria mais para ‘admirarme?’ Ou ‘dar graças a Deus’? ‘Para chorar?’ ‘Ou para rir?’ Ou será que cada um desses sentimentos pode­ riam vir todos ao mesmo tempo, dependendo do hu­ mor ou do ângulo de enfoque?... Receber o título honorífico de cidadão de Porto Alegre em sessão extraordinária da Câmara de Ve­ readores, dentro do barco Cisne Branco pela pri­ meira vez em sua história, navegando em águas do Guaíba, rumo ao Santuário de Nossa Senhora Apa­ recida das Águas, situado no coração de uma vila de catadores e papeleiros, mais do que uma simples cerimônia, trata-se de um rito bem nos moldes que lhe tece Saint Exupéry em seu livro-poema ‘Peque­ no Príncipe’. Atrever-me-ia mesmo dizer que para além de um Rito é uma Liturgia. Será que seria ou­ sadia demais chamá-lo de Procissão Fluvial em que vou acolitado por vós, irmãos e irmãs, que, ao lon­ go de sete décadas, entrecruzastes as trajetórias de vossas vidas com a trajetória da minha? E por mais que quiséssemos descruzar nossas trajetórias, se­ ria de todo impossível.”


O amigo e Profeta da Ecologia por Carlos Augusto de Azambuja Alves*

Quando recebi o convite da Matilde para escrever um pouco sobre os anos de convivência com o Ir. Antônio Cecchin, é que me dei conta da dimensão que envolve essa história, uma vez que são mais de 27 anos de convívio. Sem dúvida que me sinto muito orgulhoso de ter podido ter esse privilégio Carlos e Tonico (nas fotos acima), nos eventos junto à comunidade.

de acompanhar algumas ações desenvolvidas pelo Irmão Antônio. * Sociólogo. Mestre em Teologia. As fotos são de atividades da Ação Global, em preparação à 18ª Romaria das Águas, realizada em 2011, patrocinada pela FAUERS, na Escola Alvarenga Peixoto, na Ilha Grande.

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Mães em mutirão, organizadas em entidades, promovem atividades, serviços e cuidados para crianças, jovens e adultos.

O Ir. era uma pessoa diferenciada, uma vez que tinha na prática a sua rotina, não ficando apenas na teoria e no discurso.

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Conheci o Irmão Antônio e a Matilde no final dos anos 1980, na Ilha Grande dos Marinheiros. Cheguei à Ilha como funcionário do DMLU, com a proposta de ajudar na implantação e organização da Coleta Seletiva, em Porto Alegre, no Galpão de Reciclagem da Ilha. No início, houve uma divergência de métodos, no sentido da implantação do projeto, tendo em vista que havia o método ligado às CEBs, mais voltado à construção de base, e um mais institucional ligado ao setor público, DMLU. Justamente a tarefa principal nesse convívio inicial era a de adequar os métodos, fazer uma mediação dos dois formatos. Ainda me lembro como se fosse hoje. Cheguei nas primeiras idas ao Galpão (em 1990), quando o Ir. solicitou uma ajuda para buscar uns postes na CEEE, no depósito da Av. Ipiranga, que serviriam para fazer o píer, para chegada dos barcos da Romaria das Águas, no Santuário na Ilha Grande dos Marinheiros. Conseguimos um caminhão com o DMAE, para a busca no depósito, e ali vi, logo de início, a força, a determinação, a disciplina e a fé que o Ir. tinha no que estava fazendo. Ficamos até de madrugada carregando os postes de madeira, já que o caminhão só colocava um de cada vez. Como só estavam o Irmão, o motorista e eu, o Irmão ajudou no carregamento do caminhão, o que causou uma grande admiração por parte das pessoas que estavam saindo dos seus turnos de trabalho na CEEE. Cito esse exemplo de tantos que convivi com o Irmão Cecchin, porque me marcou muito desde a primeira vez. Nesse episódio, já comecei a perceber que o Ir. era uma pessoa diferenciada, uma vez que tinha na prática a sua rotina, não ficando apenas na teoria e no discurso.


Participei com o Ir. e a Matilde, ainda nessa época, na organização dos Galpões da Vila Santíssima Trindade e do Rubem Berta, porém sempre tive um foco mais voltado às Ilhas, que é o local em que atuo até hoje. Neste pequeno texto, cito apenas alguns tópicos desse convívio. O leitor que quiser ter uma leitura mais aprofundada pode encontrar na minha dissertação de Mestrado de Teologia na PUCRS de 2012, Deus na Periferia do Mundo, um Estudo do Núcleo de Pastoral da Ilha Grande dos Marinheiros, um aprofundamento até então desse longo convívio com o Ir. Cecchin e a Matilde. A maioria dos relatos encontrados no estudo acadêmico serve para exemplificar essa longa jornada de parcerias que, em essência de propostas e atuação, estão bem atuais. Um dos aspectos que chamava a atenção no convívio com o Irmão era o seu poder de articulação, junto à base, principalmente nas CEBs, no seu trabalho incansável, de aglutinar forças, recursos em prol daqueles que estava a organizar. O exemplo claro disso é o trabalho nas Ilhas, no Galpão junto aos catadores, no Clube de Mães, na Creche, Centro Social, Capelas, entre tantas participações do Irmão. Na questão da Ecologia e dos Catadores, anos e anos dedicados aos verdadeiros “Profetas da Ecologia”, como o Irmão sempre se referia a esses trabalhadores, porém esse termo, muito usado e, sem dúvida, criado por ele, estava, na realidade, a demonstrar principalmente a sua ação dentro da Ecologia Humana. Em síntese, o Profeta da Ecologia, dentro da minha percepção, era o próprio Irmão Antônio, um verdadeiro Profeta dos nossos tempos, visualizando e profetizando a importância da vida, seja em que nível

Representação da Senhora das Águas e Mãe Oxum, e menina no papel de Nossa Senhora Aparecida.

Um dos aspectos que chamava a atenção no convívio com o Irmão era o seu poder de articulação, junto à base, principalmente nas CEBs, no seu trabalho incansável, de aglutinar forças, recursos em prol daqueles que estava a organizar.

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A imagem pequena percorre as comunidades das Vilas: capelas e terreiras, em parceria com as obras sociais dos irmãos maristas.

O Ir. Antônio colocou em prática e foi um exemplo vivo do verdadeiro Cristão, buscando no povo mais vulnerável, mais sofrido, ... o sentido de sua vida, no resgate através da espiritualidade, dos valores religiosos e do trabalho.

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for, na proteção das espécies e da humanidade. O Ir. Antônio colocou em prática e foi um exemplo vivo do verdadeiro Cristão, buscando no povo mais vulnerável, mais sofrido, mais excluído, os catadores, os sem terra, sem teto, sem esperança..., o sentido de sua vida, no resgate através da espiritualidade, dos valores religiosos e do trabalho. Creio que dentro da minha concepção de santidade, sem dúvida, foi o Ir. Antônio o que mais se aproximou desse formato de santidade existente, no trabalho incansável em prol dos outros, no sacrifício cotidiano pelo ideal cristão, pela luta diária em favor dos excluídos. Foi, sem dúvida, um Marista de M maiúsculo que representou e honrou muito bem os preceitos de Marcelino Champagnat, no trabalho voltado aos pobres. Honrou e levou a mensagem de esperança, fé, paz e de humildade de Maria a inúmeros locais, e onde todo esse trabalho se corporificou na Romaria das Águas, romaria ecumênica, que teve uma forte estruturação nas comunidades das Ilhas em Porto Alegre e em Canoas. Porém, falar do Ir. Antônio sem falar da Matilde é falar somente cinquenta por cento da história, uma vez que foi a sua irmã Matilde que lhe amparou e lhe deu força durante essa sua brilhante jornada, desde a acolhida nos tempos de perseguição política até os dias atuais, em que lhe acompanhou até os seus últimos instantes de vida. A figura forte da mulher, a


Elson Sempé Pedroso/CMPA

Gilnei J. O. da Silva

A marcha em Porto Alegre, em março de 2017, e a vitória dos carrinheiros com a prorrogação da Lei das Carroças até 2020.

Stela Pastore

Maria, presente nas lutas da vida, nas lutas que o Ir. Antônio tão bravamente travou, nas lutas contra um mundo de opressão, de exclusão, discriminação, falta de fé, a luta contra o dragão tão bem simbolizado na imagem de Nossa Senhora das Águas, uma luta diária, que o Ir. Antônio enfrentou. O dragão continua, forte, no momento que estamos vivendo. O importante é que, graças ao Ir. Antônio e à Matilde, como exemplos de vida – e a Matilde continuando essa história – , nos demonstraram que é possível vencer o dragão através da fé. 269


Quadro “O Bom Pastor”, do século III, encontrado nas catacumbas de Santa Priscila, representa os que se dedicam a doar sua vida para que “todos tenham vida”.

Um apóstolo da Misericórdia por Pedro Canísio Schroeder *

A minha convivência e atuação com o Irmão Antonio Cecchin teve uma história relativamente pequena. Conheci ele no final do ano de 2014, quando recém-chegado em Porto Alegre, como pároco da Paróquia da Santíssima Trindade, na Vila Farrapos. Na época, com a idade de seus 87 anos de vida, me procurou na paróquia para partilhar sobre os seus sonhos, planos e projetos de sua atuação na região norte de Porto Alegre. * Pároco Paróquia Sma. Trindade. Vila Farrapos, POA, RS

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Para mim, era um autêntico profeta da ecologia, no sentido amplo da palavra. Dominava com muita propriedade a arte de converter todo tipo de lixo em material renovável para o reaproveitamento na cadeia de produção. Neste sentido, era também profeta da vida dos pobres. Sonhava com uma grande organização das unidades de reciclagem da Grande Porto Alegre em uma rede, com estruturas de serviços em condições de garantir a dignidade através da sustentabilidade das famílias envolvidas nesta atividade. Era pessoa que testemunhava uma fé profunda nas pessoas simples e pobres, que considerava como principal tesouro de sua vida. Para este povo, era como um verdadeiro pastor, que sempre exalava espírito de alegria, ânimo e encorajamento. Testemunhava um espírito de vida desapegado das suas coisas, pois partilhava com as necessidades das unidades de reciclagem os seus ganhos pelos trabalhos que realizava nas instituições e até grande parte de sua aposentadoria. Não tinha hora nem tempo que o mobilizasse diante de qualquer situação que lhe urgisse alguma demanda em favor do engrandecimento de sua missão com as outras pessoas.

Era um autêntico profeta da ecologia, no sentido amplo da palavra. Dominava com muita propriedade a arte de converter todo tipo de lixo em material renovável para o reaproveitamento na cadeia de produção.

Irmão Antônio sonhava com uma grande organização das unidades de reciclagem da Grande Porto Alegre em uma rede, com estruturas de serviços em condições de garantir a dignidade através da sustentabilidade das famílias envolvidas nesta atividade.

uma COMUNIDADE

um TRABALHO

uma FAMÍLIA

um POVO

uma LIBERTAÇÃO

uma SALVAÇÃO

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Encontro na Paróquia Santíssima Trindade sobre a Cooperativa de Trabalho Paulo Freire. Além do Padre Pedro e das Catadoras do Grupo O Pão Nosso de Cada Dia, estiveram presentes o Presidente da CUT/RS-CNM, Claudir Nespolo, e Leonel Carvalho, representando a Associação Caminho das Águas.

Posso falar a partir de um grupo de reciclagem no Beco “X”, da Vila Farrapos, onde um grupo de mulheres da vila, com o apoio do Irmão Antônio Cecchin, na Quinta-Feira Santa de 2016, tomou posse de uma área desocupada nas dependências deste Beco. No Sábado Santo desta mesma Semana Santa, à tarde celebramos a Páscoa naquele empreendimento, na Tenda da nova conquista deste grupo das mulheres. Para mim, que sou jesuíta, como para diversos outros jesuítas, a admiração pelo carisma, compromisso e dedicação por parte do Ir. Antônio com os pobres é digno de reconhecimento, pois, em diversas instituições jesuíticas, ele era tido como referência de um modelo de trabalho abnegado e sério em favor das populações que vivem do trabalho de reciclagem. Esta população vive em condições de grandes dificuldades para sustentarem suas famílias, onde é comum que o rendimento por semana não atinge os R$100,00. Desde que estou aqui em Porto Alegre, a partir de 2015, tenho sempre acompanhado o Irmão nas mobilizações junto aos órgãos públicos, em reuniões entre cooperativas e associações de recicladoras(es), visando a melhorias nas condições e rendimentos com este trabalho. Diga-se de passagem que este trabalho, para articulação e mobilização nas unidades de reciclagem, representação junto aos órgãos públicos e empresas, é uma tarefa extremamente difícil e complicada, pois implica lidar com uma realidade muito 272


dura e de elevado risco social. Aprendi muito com o Ir. Antônio e era admirável a sua firmeza, regada com grande dose de doçura, mas temperada com expressões de cobrança dura para disposição de responsabilidade e seriedade por parte dos gestores de instituições. Sempre nas reuniões, onde eu o acompanhava, me incumbia para animar um pequeno momento de mística, com a leitura de algum texto da Bíblia, reflexão sobre a realidade a partir desta leitura. Nas décadas de 1980 a 2016, mantinha-se um reconhecimento mútuo e admiração entre jesuítas e Ir. Antônio Cecchin. Sempre foi fácil e de comprometimento mútuo entre Ir. Antônio na sua relação com jesuítas dirigentes da Unisinos (Universidade dos Jesuítas em São Leopoldo), diretor do Instituto Humanitas (IHU) da Unisinos no sentido de apoiar ao Irmão em suas iniciativas sociais em favor dos destinatários prediletos da Missão de Jesus: “Eu sou o bom pastor, que dá a sua vida pelas ovelhas, ...” (Jo, 10,11ss).

Dois companheiros jesuítas, Irmão Napoleão e Pe. Valério, conviveram e interagiram intensivamente durante um mês em 2012, no Galpão Comunitário de Reciclagem na Ilha dos Marinheiros, Porto Alegre. Desde 2016, os candidatos ao noviciado jesuíta que acompanho em preparação ao noviciado para o ano seguinte vêm colaborando com uma tarde da semana, reciclando e interagindo com o grupo das mulheres recicladoras do Beco X. Em continuidade com a sua vivência com o grupo das recicladoras no Beco “X” da Vila Farrapos no passado, hoje noviço em sua formação jesuítica em Feira de Santana, Bahia, faz a reciclagem de todo o lixo da casa onde vive, e o entrega para um centro de reciclagem naquela cidade. Para os animadores de grupos da associação de catadores de materiais, associação de papeleiros e cooperativas de reciclagem, como também para mim, sentimos a falta do Ir. Antônio, mas a presença do seu espírito nos inspira muita firmeza e coragem, de que estamos no caminho certo e que haveremos de vencer, como ele já venceu.

Irmão Antônio, por mais de um ano, acompanhou um grupo de recicladoras no Beco X, desejosas de ter o seu sustento na reciclagem. Efetivaram a pessoa jurídica com o nome: Associação Socioambiental Irmão Antônio Cecchin.

Aprendi muito com o Ir. Antônio e era admirável a sua firmeza, regada com grande dose de doçura, mas temperada com expressões de cobrança dura para disposição de responsabilidade e seriedade por parte dos gestores de instituições.

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Arte de Esther Bianco sobre a realidade.

Caro Amigo, Irmão Antônio por Roque Grazziola*

Desde que você partiu para outra dimensão, volta e meia me pego às lembranças de tempos em que estivemos juntos. Lembro que o conheci encharcado de Teologia da Libertação e de barro nas ocupações da Santo Operário em Canoas, junto a milhares de famílias que se fizeram conquistadoras de uma terra não tão prometida, na qual plantaram o direito coletivo até então negado. Mais recentemente nos encontramos junto às(aos) Catadoras(es), com quem aprendemos o jeito de tirar vida desde onde parece o nada. Vem-me à lembrança, também, aquele 13 de março de 2013 quando, juntos, acompanhamos o Habemus Papam, anunciando Francisco, o primeiro papa latino-americano da história, voz e testemunha daqueles que ainda estão à margem da vida. * Membro da Cooperativa de Trabalho Socioambiental Paulo Freire, graduado em Filosofia pela FAFIMC, com especialização em Educação Popular e Movimentos Sociais pelo Instituto Brava Gente e Instituto de Educação Superior de Ivoti. Mestrado em Educação pela FACED/UFRGS.

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Hoje, sem a sua presença física, continuamos a militância ao lado das(dos) Catadoras(es), na companhia da sua irmã Matilde, nossa retaguarda feminina, rigorosamente cuidadosa com a palavra pronunciada, como expressão de um mundo sendo feito. Em referência às(aos) Catadoras(es), aliás, como Educador Progressista, você dedicou longos anos da existência preferencialmente ao lado destas(es), a quem você definia, carinhosamente, como “Profetas da Ecologia” e “Médicos Sanitaristas do Planeta”. Profetas, você repetia, “são aqueles que denunciam os projetos que colocam a Vida em risco e anunciam alternativas em defesa de todos os seres e meios que formam o ambiente de se viver” e “Médicos Sanitaristas por cuidarem do Planeta já doente e previnem para que a doença não avance”. Recordo das nossas boas conversas, das quais concluíamos que frente ao projeto econômico de dimensões planetárias, fundado no consumo e visando tão somente ao lucro, a alternativa é a multiplicação das iniciativas populares comunitárias, do jeito mutirão, o que os Catadores tão bem sabem fazer. E falando em Catadores, cá estamos nós, tentando compreender a pergunta sobre a qual tantas conversas travamos, esse fenômeno humano chamado “lixo”1, de como Porto Alegre lidou com o mesmo e por que parte dos porto alegrenses insiste em tolher dos Catadores o direito ao trabalho.

Roque, na coordenação pedagógica de Projetos Ambientais, e Irmão Antônio na Defensoria Pública com os catadores.

Revisitando a História

Aprendemos que na década de 1930 do século passado, parte do “lixo” foi incinerada, parte utilizada como aterramento de áreas alagadiças sobre as quais foram construídos parques e avenidas, enquanto parte ainda foi depositada nas celas do sistema Beccari, uma espécie de compostagem do lixo orgânico. Já nas décadas de 1940 a 1960, passou a destinar o “lixo” à criação de porcos, quando os próprios suinocultores realizavam o recolhimento para os locais onde se situavam as criações. Com a emergência do movimen-

1. Lixo é um fenômeno puramente humano, uma vez que na natureza não existe, pois tudo no ambiente agrega elementos de renovação e reconstrução do mesmo. http://mundoeducacao.bol.uol. com.br/geografia/o-lixo.htm.

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Ir. Antônio, em reunião com os catadores, e Roque, prestando assessoria pedagógica nos locais de reciclagem.

2. Projeto de Lei nº 618, de 2007, que regulamenta o exercício das profissões de Catador de Materiais Recicláveis e de Reciclador de Papel. Cf. https://www25.senado.leg.br/ en/web/atividade/materias.

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to ecologista, nas décadas de 1960 e 1970, a política de gestão dos resíduos passa a ser justificada pelos critérios de saúde pública e de proteção à natureza, mesmo que, nos anos de 1970 a 1990, a maior parte do resíduo continuasse depositada em “lixões” a céu aberto e aterros, longe dos olhares críticos da classe média ecologista. Entre os mais conhecidos “lixões”, estão os da Ilha do Pavão, Aterro Benópolis, Aterro Olaria Brasília, Aterro Sertório e Aterro da Zona Norte. Esse fenômeno vem imbricado ao advento da industrialização no Brasil que, a partir da década de 1940, “dita” o “destino” de milhões de trabalhadores, atraídos do campo, como mão de obra operária, fenômeno que determina a formação das grandes cidades brasileiras. É curioso observar a releitura das práticas de destinação do “lixo”, com o passar do tempo, fundada em diferentes referenciais. Exemplo de releitura é o curta-metragem Ilha das Flores, de repercussão internacional, misturando ficção e realidade. Ficção e rea­lidade são inseparáveis nesta leitura, já que o mesmo não explicita a relação da Cidade com o seu lixo e com a Comunidade referida, Ilha das Flores ou Ilha Grande dos Marinheiros. Também não relaciona a formação daquelas Comunidades ao fenômeno urbanização em massa e ao não acesso à moradia e ao trabalho, fatores que constituem aquela Comunidade “inventora da reciclagem” como modo de vida urbano. Então, torna-se imprescindível conhecer a leitura da Comunidade sobre o mesmo trabalho, na versão dos moradores personagens do filme após 22 anos. E os Catadores? Mesmo encurralados nas periferias – então denominados de lixeiros, papeleiros, recicladores –, agigantam a sua resistência e reinventam a própria existência. Inventam a economia do “lixo” e a profissão de Catador2. Anônimos, longe dos olhos dos centros urbanos, inventam a militância da preservação ambiental, inventam técnicas e tecnologias facilitadoras do trabalho, inventam as Associações, como a da Ilha Grande dos Marinheiros, a primeira


no RS. Aliás, é desde esse lugar que Você e a Matilde fizeram da opção pelos pobres em opção com os empobrecidos. Você sempre referia que a partir da vitória eleitoral da Frente Popular, com Olívio Dutra à frente, a gestão pública de Porto Alegre reconhece a economia da reciclagem como uma atividade econômica vital para os meios comunitários populares. Então, o Município investe na qualificação e ampliação da infraestrutura de trabalho já existente, construída pela mobilização comunitária, com o apoio de Igrejas e Movimentos Sociais Populares. A coleta seletiva pública abastece os coletivos instalados nos galpões, reconhecendo-os como espaços de trabalho, renda e protagonismo da preservação ambiental, revertendo o “destino” de grande volume de resíduo até então desperdiçado nos aterros sanitários. É bem verdade que o sistema de coleta seletiva potencializa o trabalho de parte das(os) Catadoras(es). Em maior número estão aqueles que, por seus próprios instrumentos de trabalho, carroças puxadas por cavalos, carrinhos puxados por Homens e Mulheres, sacos carregados por Trabalhadores em Situação de Rua, “deram um jeito” na exclusão do sistema que os deixou de fora dos espaços formais de trabalho. Amigo, lembro-me de nossas conversas quando você problematizava as organizações que acolhem parte das(os) Catadoras(es), e perguntava: “E os que ficam de fora?” Posso testemunhar, de fato, estes foram a sua opção, aos quais procurava em primeiro lugar, desde onde você iniciou, depois da Ilha Grande, o Profetas da Ecologia, Anjos da Ecologia, Reciclando pela Vida, entre outros. Você lia os arranjos excludentes e, com as(os) Catadoras(es), inventava coletivos includentes ocupando “elefantes brancos” para lugares de trabalho. Bem recordo da sua indignação quanto à visão dualista contida na gestão de resíduos recicláveis de Porto Alegre, nesses tempos mais recentes, visão que concebe o modelo galpões como certo, legal, oficial e aquela reciclagem praticada pela iniciativa espontânea dos Catadores fora dos galpões oficiais como “informal”, “irregular”, “clandestina”, atribuindo a esses a categoria de “ladrões de lixo”. Tal visão chega

A Associação de Catadores e Catadoras da Ilha Grande dos Marinheiros foi a primeira no RS. É desde esse lugar que você e a Matilde fizeram a opção pelos pobres e os empobrecidos.

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Galpão Profetas da Ecologia, construído através da mobilização e organização dos papeleiros, catadores e catadoras em Porto Alegre.

3. A lei 10.531/08, aprovada em 2008 pela Câmara Municipal, de autoria do então vereador Sebastião Melo (PMDB), dispõe sobre a criação do Fundo Municipal para a reinserção na atividade produtiva de catadores, carrinheiros e carroceiros no município de Porto Alegre, por meio de cursos de múltiplas atividades e habilidades para a reinserção destes segmentos em nova atividade produtiva e laboral, entre outros, meta não cumprida após oito anos de promulgação.

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ao status de lei em 20083, decretando a extinção do modelo auto-organizativo de reciclar, atribuindo ao Catador e seus meios de trabalho – carroça, cavalo, carrinho, saco nas costas – a imobilidade do trânsito, a feiura da Cidade civilizada, a desumanização do trabalho, razões pelas quais se justifica a extinção. E como você dizia: “Vejam, o cavalo, sempre amigo e extensão da força de trabalho do Catador, meio de transporte até mesmo para levar os filhos à Escola, agora vira, exclusivamente, animal de brinquedo de um gauchismo conservador e higienista”. Permita lhe dizer o que testemunhei recentemente em minhas caminhadas na companhia de Educadoras(es) junto a mais de uma dezena de Comunidades de Catadoras(es) nas regiões Navegantes, Farrapos, Humaitá, Centro e População de Rua. Nessas andanças nos encontramos com 1220 pessoas fazendo catação, sendo que 729 se autodeclaram Catadoras de profissão por opção, responsáveis pelo sustento de outras 1742 pessoas. Dentre estas, 62 nos contaram que o cavalo é seu meio de transporte para o trabalho e para levar os filhos à Escola; outras 271 puxam o carrinho como instrumento de trabalho, 147 utilizam sacos e outros meios para carregar o material e 217 realizam a triagem em seus galpões. Amigo, testemunho que a sua presença continua viva em meio às Catadoras(es), mesmo após a sua partida física. A sua inquietude e opção para com os que estão “de fora” dos sistemas organizados estão vivas em Mulheres e Homens que, em pequenas Marchas, reinventam a resistência e teimam ser reconhecidos como Gentes. Você acompanhou as pequenas marchas comunitárias, em 2016, com fechamento de ruas em protesto pelas apreensões de carroças, cavalos, carrinhos, de material e equipamentos e o fechamento dos pequenos galpões de trabalho. Você também acompanhou, em 24 de agosto de 2016, a Audiência


Stela Pastore

Pública, que não comportou tanta Catadora(or), que virou Assembleia na Praça. Aliás, nesse dia nos encontramos presencialmente pela última vez, proseamos admirados tanta gente, tamanha a marcha. Vêm-me à lembrança as palavras de Paulo Freire em sua última entrevista em 17 de abril de 1997, ao se referir às marchas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra em curso pelo Brasil: “Eu morreria feliz se eu visse o Brasil, cheio, em seu tempo histórico, de Marchas; marcha dos que não têm escola, marcha dos reprovados, marcha dos que querem amar e não podem, marcha dos que se recusam a uma obediência servil, marcha dos que se rebelam, marcha dos que querem ser e estão proibidos de ser”4. Outras marchas vieram depois. Você teria vibrado participar em 09 de março de 2017, às vésperas da Lei proibitiva entrar em vigor, quando centenas de Catadoras(es), Educadoras(es) Progressistas rumaram por onde o poder se engendra, todas e todos “pronunciando a sua palavra”, “anunciando a sua leitura de mundo”, esperançosos de que a defesa da vida prevalecerá sobre a Lei. Mais marchas se sucederam, até que em 11 de maio, plenário lotado de Catadoras(es), e a Câmara recuou, se não em definitivo, até 2020, tempo que ainda será intenso de organização e de novas marchas, com certeza. Marcharemos em sua memória e em defesa da Vida.

Em 11 de maio de 2017, plenário lotado de catadoras e catadores, e a Câmara recuou, se não em definitivo, até 2020, tempo que ainda será intenso de organização e de novas marchas, com certeza.

4. As Marchas - Paulo Freire - Trecho de sua última entrevista, disponível em https://www.youtube.com/ watch?v=MZQtP-7Ezbw, duração 3,07 min.

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Plegaria a São Sepé Chamame Missioneiro Letra: Marli Leirias Música: Martín Coplas

Sepé Tiaraju São Sepé, rogai por nós São Sepé Guarani Missioneiro Riograndense herói brasileiro São Sepé Tiaraju rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai por nós

Projeto do Arquiteto Álvaro Abib, de São Gabriel, da Capela-Memorial a São Sepé Tiaraju, a ser construída na área de acesso da Pedra do Segredo (foto abaixo), em Caçapava do Sul. Ali, segundo Alcy Cheuiche, os guaranis teriam enterrado São Sepé, após o martírio.

Revista Rumo

São Sepé Guarani Missioneiro, rogai por nós Reviva na memória o nosso compromisso Por uma Terra sem Males São Sepé Tiaraju rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, santo guerreiro Rogai por nós nesta caminhada Somos solidários com teu martírio Pelo sangue derramado nesta terra São Sepé Tiaraju rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai por nós São Sepé, rogai... por... nós

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O artista sãogabrielense Jorge Ferroni é o autor desta estátua de arame de São Sepé, encomendada pelo Irmão Antônio para a Capela-Memorial em honra a São Sepé Tiaraju. Ela está exposta no Museu de Cultura de Caçapava do Sul, aos cuidados da Secretaria de Turismo, enquanto aguarda a construção do projeto acima.


Carta de São Sepé Tiaraju Esta carta foi escrita pelo Irmão Antônio, aos 73 anos, como se fosse São Sepé Tiaraju falando aos agricultores SEM TERRA, para encorajálos na grande marcha ao CORAÇÃO DO LATIFÚNDIO (Fazenda Southal, São Gabriel). Foi por ele lida e distribuída na etapa final da conquista desta Fazenda, a maior desapropriação em toda a história do RS.

por Antônio Cecchin*

Bravos lutadores pela Reforma Agrá­

ria que caminhais sobre São Gabriel, a fim de garantir a desapropriação das terras que vos são destinadas, permitam que eu vos saúde! Vós me lembrais a Caminhada de 250 anos atrás, que eu mesmo fiz, à frente de 1500 ir­ mãos guaranis, a fim de garantir as terras que ocupávamos desde sempre. Vós partistes do coração do Rio Grande rumo ao centro do latifúndio. Nós, índios, partíamos em direção ao sul. Num dia de domingo, depois da Missa de des­ pedida na catedral de São Miguel. Deixamos a cidade carregando nossos estandartes e os andores com as imagens de nossos santos pro­ tetores. 281


Para comemorar 150 anos da colonização alemã, foi escolhida a obra literária Sepé Tiaraju, de Alcy Cheuiche e Leonid Streliaev, para uma edição luxuosa, ilustrada e bilíngue.

Vejo que também carregais os símbolos da luta em favor da Reforma Agrária. Os gritos de ‘Pátria Livre!’ e ‘Reforma Agrária já!’ mantêm acesa vossa esperança e vosso entusiasmo, assim como nosso grito ‘Esta terra tem dono porque a recebemos de Deus e do seu Arcanjo São Miguel!’ enchia nossa alma de fé e coragem. Nós íamos combater os exércitos de Espanha e Portugal, as duas maiores potências militares de então, que se haviam juntado na altura de São Gabriel, em sua marcha rumo aos Sete Povos a fim de esbulhar nossas terras. Sem armas de fogo, com lanças apenas, nos decidimos pela guerrilha. Empurrávamos algum gado para a frente dos inimigos e quando estes vinham para caçar as reses, nós, escondidos no mato, caíamos sobre eles e os púnhamos fora de combate. Foi numa dessas escaramuças, em corrida desabalada por causa da perseguição, que a montaria falseou a pata dianteira num buraco de tatu. Fui projetado para a frente e beijei o solo querido, sem imaginar que seria a última vez, como se fosse dentro de um ritual de despedida. Fui alanceado no chão, por um soldado espanhol e logo em seguida fulminado pelo tiro fatal do comandante português.

Fui assassinado ao mesmo tempo por Espanha e Portugal. Era 7 de fevereiro de 1756.

Alcy Cheuiche teve sua obra editada também em quadrinhos e em outros formatos de edição.

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Ao cair da noite, meus irmãos vieram resgatar meu corpo. Por entre cânticos e orações me sepultaram na beira do rio, começando aí mesmo a me invocar como santo protetor junto de Deus e afirmando a certeza de que eu haveria de voltar sempre de novo, quando houvesse luta dos pobres em favor da Terra e da Reforma Agrária. Três dias depois do meu martírio, a 10 de fevereiro, os 1500 companheiros guaranis foram massacrados, no alto da coxilha do Caiboaté, enquanto cantavam ladainhas a Nossa Senhora Conquistadora, em redor das estátuas dos santos padroeiros das Missões. Uma escaramuça também já vencestes, na pon-


te do rio Vacacaí, quando os grandes fazendeiros se interpuseram a fim de impedir a caminhada rumo à Terra-Sem-Males que quereis construir no coração do latifúndio. Outras virão, com certeza. Se o meu cavalo tropeçou numa toca de tatu (caprichos da natureza), vos espera também, conforme noticiado pelos jornais, um fosso feito por mão inimiga, na estrada Reiúna, que leva à fazenda tão sonhada. No Rio Grande dos 7 Povos das Missões, a Terra era de todos. Cultivar a Mãe-Terra, nós, os guaranis, dizíamos que era Tupãbaê, trabalho para Deus, eminentemente comunitário. Com a minha morte e a dos meus irmãos, penetrou no Rio Grande o pecado do latifúndio. Vós homens, mulheres e crianças que caminhais em direção a São Gabriel, fostes escolhidos para fazer o acerto de contas do Rio Grande consigo mesmo. Em São Gabriel, no Caiboaté, com a batalha final da guerra guaranítica, entrou o latifúndio. Agora, com a vossa chegada à terra em que derramei todo o meu sangue, juntamente com o sangue dos 1500 irmãos, a grande propriedade levará um golpe de morte. No dia do meu martírio, como um rastilho, se espalhou por todos os rincões deste Estado que eu haveria de retornar. Na vossa pessoa estou voltando. Caminho lado a lado convosco.

Uma das primeiras obras sobre a história de Sepé é de Manoelito de Ornellas.

São Sepé vive, e como!

Não tenham medo!... A uto­ pia guarani da Terra-SemMales será concretizada por meio de todos os pobres que lutam por Terra para plantar, no campo, e por terra para morar, na cidade. Boa Caminhada!... Até São Gabriel!... Até o local em que meu sangue embebeu a terra!... Até a coxilha do Caiboaté!... O irmão, o amigo e o protetor SÃO SEPÉ TIARAJU.

Escultura de Pedro Saenz.

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“Cada dia que dorme é uma noite que acorda! Como: cada pessoa que morre é uma luz que se acende no céu, brilhante como a lua e forte como o sol!”.

Oração a São Sepé Dom Pedro Casaldáliga Bispo de São Félix do Araguaia

Patriarca São Sepé, Clareia o novo Dia, que a noite secular gestou no sangue. Convoca em Assembléia permanente o Povo dos teus Povos! Contesta o general de Gomes Freire com a mesma palavra enaltecida! Convoca os teus guerreiros, Sepé Tiaraju, Miguel nativo, e enfrenta com as flechas, enfeitadas de aurora, os cansados canhões dos invasores! (Se a terra vira aldeia, se a aldeia vira vila: vire a vila cabana dos escravos unidos em revolta!)

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Em fevereiro de 1756, Sepé Tiaraju e 1500 Guarani foram mortos pelos exércitos da Espanha e de Portugal, defendendo o seu território. Hoje, 250 anos depois, a luta continua.

Obra de Esther Bianco.


POR UMA TERRA SEM MALES

Em 2002, celebração na Catedral de São Miguel.

Martín Coplas e o coral missioneiro de 500 vozes na Catedral de Santo Ângelo, em março de 2002.

Memória, remorso, compromisso por Martín Coplas*

Em abril de 1978 (anos dos mártires da causa indígena), realizou-se uma Assembleia Índia com a presença de vários caciques e bispos ligados ao CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e à ANAI (Associação Nacional de Apoio ao Índio) na nave principal da Catedral da Missão de São Miguel, hoje município de São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul. Foi neste local que nasceu a ideia da Missa da Terra Sem Males, nas ruínas, testemunho de resistência e de grandeza dos povos originários de toda América. Ferida aberta. * Músico e Compositor latino-americano, autor da música da obra Missa da Terra Sem Males.

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Em Santo Ângelo, 16 de março de 2002, celebração da Missa, com o então governador, Olívio Dutra.

A Terra Sem Males é a utopia que nos abre as portas e nos anuncia a viabilidade de OUTRA FORMA DE VIVER.

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A Terra Sem Males (Yvy Mara ey) é a transcendente utopia Guarani que nos in­ dica o caminho para uma sociedade soli­ dária. A Missa da Terra Sem Males fez sua estreia nacional na Catedral da Sé, em São Paulo, no dia 19 de abril de 1979. Celebra­ da por Dom Paulo Evaristo Arns, com a presença de vários caciques de diferentes regiões do país, 35 bispos, entre eles, Dom Helder Camara, Dom Tomás Balduíno e Dom Pedro Casaldáliga. Todos os setores da sociedade estavam presentes. A Missa da Terra Sem Males reacende a memó­ ria, cobra o compromisso, conclama a necessidade da preservação dos recursos naturais, o contato e a fixação do homem na terra, o orgulho e a identidade na formação de um só povo em um território, funda­ mentos de uma Nação. A Terra Sem Males é a utopia que nos abre as por­ tas e nos anuncia a viabilidade de outras formas de viver. O Irmão Antônio Cecchin, querido amigo e com­ panheiro de caminhada, sugeriu uma “Missa Missio­ neira”, mas Dom Pedro Casaldáliga e o poeta Pedro Tierra (Hamilton Pereira da Silva) deram a este poe­ ma litúrgico uma amplidão continental – América Ameríndia ou se salva continentalmente ou conti­ nentalmente se afunda. A Missa da Terra Sem Males exalta os mártires da causa indígena como São Sepé Tiaraju, Corregedor da Missão de São Miguel, Guarani, Missioneiro, Riograndense, Herói Brasileiro.


Através dos tempos, na caminhada dos oprimi­ dos deste continente, na mística do povo guarani que chega até nossos dias com a memória histórica, esta utopia-compromisso se eleva como bandeira solidá­ ria de libertação. Como músico deste tempo, acres­ cento com minha concepção estética as cores desta bandeira, pois minha função de compositor foi direcionada no resgate da identidade dos povos originários de “Nuestra America”. Quando digo “Nues­ tra America”, refiro-me à América dos oprimidos e não à América de fronteiras geográficas. Quanto à Terra Sem Males, ela está em nós, em todos nós que sonhamos com o futuro, um futuro para construirmos jun­ tos, nós, os oprimidos de todas as raças, etnias, cores e crenças – um mundo me­ lhor. Sendo assim, a Terra Sem Males não terá fronteiras, ela é universal.

Em outubro 2010, celebração da Missa da Terra Sem Males, na Unisinos.

Sim, Antônio Cecchin, querido irmão, nós, “os pobres desta terra”, prosseguiremos vossa caminhada!

São Miguel das Missões, dia 20 de dezembro de 2003.

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Irmão dos Pobres e Luzeiro da Esperança

por Frei Sérgio Antônio Görgen•

Imagino Irmão Antônio Cecchin chegando no céu, deslumbrado e depois do grande abraço recebido de Deus e do beijo carinhoso da Mãe Maria, olhar em roda e perguntar: – Onde está o Sepé? E o jovem índio moreno, com a cabeleira esvoaçante, o lunar na testa, olhos brilhantes e um sorriso no rosto, vindo do meio dos eleitos, abrindo caminhos com seus braços sagrados e dizendo em voz alta: – Estou aqui, Irmão Antônio. Chega que o mate tá pronto e tua eterna morada foi desenhada, construída e enfeitada pelos teus irmãos guaranis. E os dois se abraçam num demorado e saudoso encontro. *Frade franciscano e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)

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Jesus, Maria e Sepé, para ele sempre São Sepé, foram os polos orientadores da vida e militância do Irmão Antônio Cecchin nas múltiplas fases de sua vida. Em Jesus, via e contemplava o Mestre e Senhor a ser amado e seguido. Em Maria, via e contemplava a força feminina de Deus, a mulher forte e sensível que amou, gerou e criou o Filho de Deus. Em São Sepé, via e contemplava a Utopia do cristianismo se fazendo concreta numa sociedade justa, numa terra repartida, no ser humano libertado, na alegria da convivência, no trabalho oblativo e realizador, fé cravada na terra para chegar até Deus, na sociedade de irmãos e iguais, fonte inspiradora das lutas do presente. E assim, inspirado no Nazareno Ressuscitado, na Maria Mulher e na sociedade fraterna de São Sepé, viveu o Antônio Catequista, o Antônio das Romarias da Terra e das Águas, o Antônio fundador de fato da Teologia da Libertação, o Antônio Defensor dos Índios, o Antônio das Comunidades Eclesiais de Base, o Antônio da Pastoral da Terra, o Antônio Advogado dos Pobres, o Antônio da Economia Humanista, o Antônio das Ocupações Urbanas, o Antônio dos Sem Terra, o Antônio Profeta da Ecologia, o Antônio Irmão dos Catadores, o Antônio Defensor dos Negros, o Antônio Educador, o Antônio Irmão dos Pobres. E agora, no seio do Pai, junto com São Sepé, o Antônio Luzeiro da Esperança ilumina os tortuosos caminhos que os oprimidos desta amada terra Brasil precisam trilhar para continuar a marcha da conquista da plena libertação e da sociedade justa e fraterna com que tanto sonhamos.

Arte de Oscar Niemeyer para o MST.

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uando deputado estadual (2003-2007), Frei Sérgio (PT-RS) criou um projeto que foi aprovado por unanimidade pela Assembleia Legislativa, na oportunidade dos 250 anos da morte de Sepé Tiaraju, ocorrida em 7 de fevereiro de 1756, quando institui Sepé Tiaraju como herói rio-grandense. E em 21 de setembro de 2009, por autoria do Deputado Marco Maia (PT-RS) foi publicada a Lei Federal 12.032/09, que determina que ‘Em comemoração aos 250 (duzentos e cinquenta) anos da morte de Sepé Tiaraju, será inscrito no Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia, o nome de José Tiaraju, o Sepé Tiaraju, herói guarani missioneiro rio-grandense’.

Monumento aos 250 anos do Martírio de São Sepé Tiaraju. No local, há uma placa comemorativa. Acima, Frei Sérgio, de azul, na noite de festejos a São Sepé.

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Fotos: Coletivo de Comunicação do Levante da Juventude

Eterno jovem lutador pelo Levante Popular da Juventude

Se é na juventude que despertamos para a luta e fortalecemos nossa convicção de qual lado devemos seguir - o lado do povo -, podemos afirmar que o Irmão Cecchin foi e sempre será eternamente jovem. Alicerce para a construção do Levante Popular da Juventude, Irmão Cecchin esteve presente em momentos marcantes da nossa história e sempre nos fazendo lembrar por quem lutamos.

Arte de Oscar Niemeyer para o MST.

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E se ainda hoje a história de Sepé é relembrada como resistência diante do opressor, foi graças ao compromisso e à luta do Irmão, que fez reviver a história do índio guarani missioneiro desde a primeira Romaria da Terra em 1978, no dia 7 de fevereiro, em São Gabriel, dia e local da morte de Sepé Tiaraju.

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Não foram poucos os encontros, as reuniões, as comemorações em que cantamos a música que a todas e todos emocionava: “Terra Sepé Guarani”. Estufando o peito, declamávamos: da Tranqueira do Rio Pardo à estância do Yapeju, ouviu-se teu livre brado José Sepé Tiarajú, teu canto um grito de guerra que ainda clama por paz...

E se ainda hoje a história de Sepé é relembrada como resistência diante do opressor, foi graças ao compromisso e à luta do Irmão, que fez reviver a história do índio guarani missioneiro desde a primeira Romaria da Terra em 1978, no dia 7 de fevereiro, em São Gabriel, dia e local da morte de Sepé Tiaraju. A história do jovem índio guerreiro passa a fazer parte da história do Levante em 2006, ano que marca os 250 anos de sua morte, no qual houve inúmeras atividades arduamente organizadas pelo Irmão Cecchin. Entre os dias 4 e 7 de fevereiro em São Gabriel, quilombolas, comunidades indígenas e agricultores ligados à Via Campesina debateram a resistência de Sepé e a relação com as lutas sociais travadas, em especial aquela ligada à luta Guaranítica: a luta pela


terra. Nesses mesmos dias, também ocorreu o Acampamento da Juventude, com 700 jovens do campo e da cidade debatendo o papel da juventude na luta e a necessidade de uma organização que estivesse entranhada na periferia, atenta às necessidades da jovem e do jovem pobre e que carregasse a simbologia do índio guerreiro. É nesse momento de rememoração e efervescência que se cruzam a luta de Sepé Tiaraju, a vida de dedicação aos que mais precisam do Irmão Cecchin e a futura organização de juventude. O marco do nascimento do Levante Popular da Juventude carrega, desde então, a indignação e a revolta de ambos os lutadores que não se acomodaram frente às injustiças e que servem de exemplo para cada vez mais jovens. Ao longo da consolidação do Levante, seguindo o exemplo do trabalho do Irmão, nos encontramos inúmeras vezes nas bicicletadas pelo Caminho de

O Acampamento da Juventude conta com jovens do campo e da cidade, debatendo o papel da juventude na luta e a necessidade de uma organização que estivesse entranhada na periferia, atenta às necessidades da jovem e do jovem pobre e que carregasse a simbologia do índio guerreiro.

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...onde houver povo sem chão, sem liberdade onde houver, com eles sempre estarão... mil e quinhentos Sepés!

Agora, ao Irmão Antônio Cecchin: ...onde houver povo sem chão, sem liberdade onde houver, com eles sempre estarão... milhares de jovens dando continuidade à tua luta.

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Sepé, nas visitas, nas conversas, mas há um desses momentos cotidianos que não podemos deixar de compartilhar. O Irmão indignava-se ao ver a estátua de madeira de Sepé Tiaraju na qual o índio guerreiro galopava sobre um cavalo e nos dizia: “O Sepé não tinha cavalo. Cavalo quem tinha era o colonizador. Sepé tinha um burrinho!”. No ano de nacionalização do Levante, em 2012, Irmão Cecchin novamente se fez presente, justamente lembrando e passando adiante a história de Sepé Tiaraju. No I Acampamento Nacional do Levante, rea­ lizado em Santa Cruz do Sul/RS entre os dias 2 e 5 de fevereiro, mais exatamente no dia 3 de fevereiro, 1200 jovens de quinze estados brasileiros dirigiram-se à Tranqueira do Rio Pardo, e ali Irmão Cecchin nos contou como São Sepé, o modo como o Irmão se referia ao índio guarani, “se evadiu num golpe de inaudita coragem” da fortaleza onde esteve preso. Nesse momento, selamos o compromisso de levarmos adiante a ousadia e a rebeldia de Sepé Tiaraju, afirmando que ...onde houver povo sem chão, sem liberdade onde houver, com eles sempre estarão... mil e quinhentos Sepés! Agora, ao Irmão Antônio Cecchin, um eterno e incansável jovem lutador, selemos o compromisso de levar adiante a tua força e o teu eterno compromisso com o povo. ...Onde houver povo sem chão, sem liberdade onde houver, com eles sempre estarão... milhares de jovens dando continuidade à tua luta.

Nossa rebeldia é o povo no poder!


Uma vida dedicada ao próximo por Stella Maris Nunes Pieve*

Conheci Irmão Antônio numa tarde de outono em Guaíba (2010), onde aconteceu o 26º Encontro Arquidiocesano de CEB’s, Comunidades Ecológicas e Missionárias - “Mãe Terra, precisamos de ti”. Eu dava início à minha pesquisa de doutorado em Antropologia Social com a proposta de seguir a Romaria das Águas, o ritual das “Ilhas” e do Lago Guaíba. A vivacidade daquele senhor alto, magro, de boina e tênis que eu ouvira falar, eu tive a oportunidade de conhecer ali. Fomos apresentados pelo meu orientador, o professor Carlos Alberto Steil (UFRGS) e, desde então, passei a participar de muitos dos eventos que Irmão Antônio promovia ou era convidado. Antropóloga (PPGAS/UFRGS), pós-doutoranda em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT/UFRRJ), professora e pesquisadora. E-mail: stella pieve@gmail.com

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Ali, para além da Romaria das Águas, conheci todo o seu trabalho pois, em sua fala, Irmão Antônio conectou toda a história de Sepé Tiaraju e do Povo Guarani à sua trajetória de lutas sociais junto aos oprimidos e excluídos.

Stela e Irmão Antônio.

Ir. Antônio com Senilda, em frente à cooperativa de mulheres Resgatando a Dignidade, na Ilha Grande dos Marinheiros.

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Marcante para mim foi sua palestra na mesa-redonda “Sepé Tiaraju: mito gaúcho?”, que ele dividiu com Nivaldo Pereira na Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos). Ali, para além da Romaria das Águas, conheci todo o seu trabalho pois, em sua fala, Irmão Antônio conectou toda a história de Sepé Tiaraju e do Povo Guarani à sua trajetória de lutas sociais junto aos oprimidos e excluídos. Passando pela vida de estudante, Irmão e professor marista, pela Ditadura Militar, as ocupações em Canoas, o trabalho com reciclagem, a vivência e experiência na Ilha Grande dos Marinheiros, a Pastoral da Ecologia, a Romaria das Águas e o Caminho de Sepé Tiaraju, a bicicletada. Essa era uma das características mais marcantes de Irmão Antônio, os fios da história teciam a sua própria realidade, pois, como ele mesmo dizia, é preciso olhar para o cotidiano e ver os “sinais dos tempos”. Em setembro de 2010, sentei pela primeira vez para entrevistar Irmão Antônio. Em sua casa, conheci Matilde e todo seu amor e cuidado com o irmão. Foram quase três horas de conversa, conhecendo as subversões e insubmissões de Irmão Antônio em busca daquilo que acreditava, das pessoas que amava e seguindo o Evangelho. Me marcou conversar com aquele senhor, na época com 83 anos, que dedicou toda sua vida a amar, cuidar e conviver com os mais vulneráveis e oprimidos seguindo os preceitos do Evangelho, especialmente a Teologia da Libertação. E como gostava de reafirmar, foi evangelizado pelos pobres. O caminho traçado por Irmão Antônio seguiu o maior dos ensinamentos de Jesus Cristo, o amor. Mas não um amor passivo, no qual amamos de longe. Irmão Antônio praticou o amor e me explicou que seguia a prática de Jesus, pois este era, sim, um Revolucionário, morreu na cruz aos 33 anos sacrificando-se por outros; caso contrário,


morreria velho na cama. Amar o próximo foi uma prática constante na vida de Irmão Antônio. O amor de Irmão Antônio pelos oprimidos e vulneráveis ultrapassou religiosidades e etnias. Seu amor não era cristão, não professava uma religião, professava um amor pelo ser humano. Tanto que pude acompanhar diversas oca­ siões de respeito e convivência entre ele e religiosos de matriz africana e indígenas. Ao vincular o cosmos aos territórios, Irmão Antônio não estava preocupado em marcar um território cristão, mas abrir o cosmos, propondo um território de diferentes devoções que se conectam, se respeitam e se compõem a partir de causas comuns. Na Romaria das Águas, Nossa Senhora das Águas, a divindade consagrada, é também Oxum, a orixá das águas doces, e reúne em torno da sua imagem todas as vivências e experiências daqueles que nelas depositam seus afetos. Nossa Senhora das Águas é mãe, é mulher, é negra, é senhora das águas doces, cuida das crianças, cuida das águas, está num barco, veste azul e amarelo, tem a lua a seus pés e pisa num dragão, ou seja, pisa nas dificuldades daqueles que a seguem por terra e por água. A forma de Irmão Antônio expressar responsabilidade, amor e ação junto ao povo negro é de longa data. O Irmão Marista foi um dos cidadãos gaúchos

Ao vincular o cosmos aos territórios, Irmão Antônio não estava preocupado em marcar um território cristão, mas abrir o cosmos, propondo um território de diferentes devoções que se conectam, se respeitam e se compõem a partir de causas comuns.

Celebração da Romaria das Águas.

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Foi com ele que tive a oportunidade de participar de um momento ecumênico, ou melhor, um momento mais que ecumênico, no qual um padre e um pai de santo abençoaram juntos o dia da consciência negra na Catedral de Porto Alegre, entre “pais nossos” e “pontos a Exu”. Com certeza, ali se abriram caminhos.

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a interceder pela volta da procissão fluvial de Iemanjá no dia 2 de fevereiro – proibida na cidade de Porto Alegre desde 1989. Para ele, se Iemanjá “é a própria água” e a Nossa Senhora homenageada é a de Navegantes, “qual o sentido de uma caminhada de Navegantes?”. A procissão fluvial do dia 2 de fevereiro é uma das nossas oportunidades de pedir perdão por todas atrocidades que cometemos ao povo negro, afirmava Irmão Antônio. Foi com ele que tive a oportunidade de participar de um momento ecumênico, ou melhor, um momento mais que ecumênico, no qual um padre e um pai de santo abençoaram juntos o dia da consciência negra na Catedral de Porto Alegre, entre “pais nossos” e “pontos a Exu”. Com certeza, ali se abriram caminhos. A Celebração dos Mártires Negros do RS, como ele nomeou o momento anteriormente descrito, tem suas raízes na Missa da Terra Sem Males e na Missa dos Quilombos, ambas compostas por Dom Pedro Casaldáliga, a primeira em parceria com Pedro Tierra; a segunda, sugerida por Dom Helder Camara e musicada por Milton Nascimento. Ainda, a Missa da Terra Sem Males é uma fonte de inspiração para Irmão Antônio,


bem como o Povo Guarani e Sepé Tiaraju. Para ele, a experiência do Povo Guarani é a mística que orienta a luta para os movimentos sociais e populares desde os anos 1970. Tanto é que a primeira Romaria da Terra aconteceu no dia 7 de fevereiro de 1978, em São Gabriel, RS, em homenagem ao dia e local de aniversário da morte de Sepé. Baseada em seu contexto, essa romaria teve foco no “Ano dos Mártires” e na situação de exclusão dos indígenas do Brasil, especialmente aos do norte do Rio Grande do Sul. Desde então, sua luta por justiça social, fundamentada principalmente no direito à terra, está conectada a Sepé Tiaraju. Assim, num contexto de luta social e ambiental, em 2007 aconteceu I Bicicletada nos “Caminhos de Sepé”, reunindo jovens da periferia urbana em torno da celebração da mística de Sepé para percorrerem de bicicleta o percurso que ele fez antes de sua morte na Sanga da Bica e se embeberem neste espírito de luta, como me contou Irmão Antônio. O ritual por ele criado e organizado pela Pastoral da Ecologia com apoio e participação de grupos religiosos, associações de bairro, sindicatos e movimentos sociais, vai de Rio Pardo a São Gabriel entre os dias 1º e 7 de fevereiro, em memória da última rota percorrida por Sepé Tiaraju, o indígena das Missões Jesuíticas que lutou junto aos seus companheiros na Guerra Guaranítica (1750-1756) contra os exércitos espanhol e português pelo território dos Sete Povos das Missões. Como dito

Em 2007, aconteceu a primeira Bicicletada nos “Caminhos de Sepé”, reunindo jovens da periferia urbana em torno da celebração da mística de Sepé para percorrerem de bicicleta o percurso que ele fez antes de sua morte na Sanga da Bica e se embeberem neste espírito de luta, como me contou Irmão Antônio.

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Ele procura recuperar um “gauchismo guarani”, iluminado pela figura popular de Sepé, “um gauchismo dos excluídos: de índios, negros, catadores, sem teto, sem saúde, sem terra, sem casa, sem educação”.

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anteriormente, Sepé faleceu no dia 7 de fevereiro na Sanga da Bica, três dias antes da última batalha entre guaranis e os impérios europeus. No dia 10 de fevereiro de 1756, no Caiboaté, foram mortos 1500 guaranis. Essas duas localidades mencionadas atualmente fazem parte do município de São Gabriel, na região central do estado do Rio Grande do Sul. Quem pedala são jovens das periferias urbanas de Porto Alegre e Canoas e jovens Caigangue de São Leopoldo que passam por espaços importantes na rota de Sepé, tais como as Tranqueiras – prisão de onde Sepé fugiu e atual município de Rio Pardo –, a Gruta da Pulquéria, na qual ele se escondeu com sua companheira no atual município de São Sepé, o Caiboaté e a Sanga da Bica. A pedalada também se preocupa em promover encontros entre a juventude urbana e o mundo rural – agricultores familiares e quilombolas –, encontros inter-religiosos entre católicos e umbandistas e a divulgação da bicicleta como um meio de transporte saudável, não poluente e importante tanto no interior quanto no centro da cidade. Para finalizar o ritual, o grupo de ciclistas se encontra com indígenas Guarani que nesta data se reúnem para discutir políticas públicas estaduais e federais a eles direcio-


nadas e fazer um ritual de homenagem aos seus antepassados mortos em combate. Além disto, a mística em torno de Sepé Tiaraju questiona a história oficial do Rio Grande do Sul e o “gauchismo” pregado pela Revolução Farroupilha. De acordo com Irmão Antônio, a guerra dos Farrapos foi uma guerra entre fazendeiros, na qual as vítimas principais foram os negros, e o povo não participou com nada desse levante da classe dominante. Assim, ele procura recuperar um “gauchismo guarani”, iluminado pela figura popular de Sepé, “um gauchismo dos excluídos: de índios, negros, catadores, sem teto, sem saúde, sem terra, sem casa, sem educação”. É neste sentido que Sepé se torna um empoderador da luta popular e, mais que isto, um santo popular, “não canonizado pela Igreja, mas canonizado pelo povo”. A bicicletada em homenagem a Sepé Tiaraju inspirou jovens de Canoas, junto com Maria Senilda de Oliveira, a criarem o grupo Herdeiros de Sepé. Um grupo que atua com teatro e ações sociais, promovendo projetos com crianças, adolescentes e jovens do Bairro Harmonia na região da Mathias Velho, no

Como Irmão Marista, professor e militante, o legado de Irmão Antônio, certamente, perpassa sua arte de nos provocar a questionar imposições, a desafiar ordens arbitrárias e solidarizar-se com o próximo.

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Folheto da Bicicletada nas Missões.

município de Canoas. Entre suas ações, estão a montagem e apresentação da peça de teatro “Sepé Tiaraju: herói rio-grandense” e as pedaladas ecológicas de Canoas. Além de acompanhar os rituais inspirados por Irmão Antônio, participei do Projeto Caminho das Águas, patrocinado pela Petrobras. Ali, passei mais de um ano sistematizando informações do projeto e preparando reuniões junto aos catadores das cidades de Porto Alegre, Canoas, Eldorado do Sul e Viamão, além de organizar o livro Oitavo Povo das Missões: além da reciclagem (no feminino) e o vídeo Memória, Afeto e Reciclagem contando parte da história da reciclagem no Rio Grande do Sul, junto ao Grupo EcoMulheres e a mulheres importantes na minha vida: Matilde Cecchin e Maria Senilda de Oliveira. Mulheres de luta, sempre prontas a auxiliar e dar continuidade aos trabalhos de Irmão Antônio. A convivência com Irmão Antônio foi um verdadeiro aprendizado. Sobre amor e respeito pelos seres humanos, mas também pela natureza e, principalmente, por outras religiões e religiosidades que convivem no Rio Grande do Sul e no Brasil. Como Irmão Marista, professor e militante, o legado de Irmão Antônio, certamente, perpassa sua arte de nos provocar a questionar imposições, a desafiar ordens arbitrárias e solidarizar-se com o próximo. Um grande mestre, que fez sua parte entre nós e que “seguiu para a morada celestial”, onde está entre outros profetas e “Sepé Tiaraju líder, santo e guia para a Terra Sem Males”, como diz o poema composto em homenagem ao Irmão pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Para saber mais, no You Tube da Rede Marista, Bicicletada: https://youtu.be/gxRQLO79QrE Romaria das Águas: https://youtu.be/w_VcE2DDovM

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Na Coxilha de Caiboaté, em 7 de fevereiro de 2015 – local da morte dos 1.500 dos principais dos guaranis em 1756.

Um amigo de lutas

por José Roberto de Oliveira*

Por volta de 2000, em uma tarde quente de verão, o vi chegando em São Miguel das Missões, junto ao Patrimônio Cultural da Humanidade, um senhor alto e magro que me chamou bastante atenção, caminhava olhando para as centenas de índios que estavam no evento como se estivesse observando seus filhos. Depois de apresentado a ele diria que minha vida mudou, compreendi aquele olhar paternal e inseri para dentro de minha vida o jeito de ser com relação aos excluídos. * Pesquisador sobre a história missioneira, engenheiro e mestre em desenvolvimento. Coordenador do projeto dos 30 Povos das Missões (Brasil, Argentina e Paraguai).

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De tantas idas e vindas depois desta data, cabeme escrever sobre alguns momentos e que, revendo minha caixa de mensagens, vejo que poderia ser um livro, pois entre visitas de um ao outro e e-mails foram mais de 300 contatos. Das convivências, estas são as que mais nos ligaram.

Em 2005, Sepé Tiaraju foi reconhecido como um Herói Guarani, Missioneiro e Rio-grandense pela Lei 12.366/2005. Lá, estivemos juntos. Tinha sido uma importante luta de valorização da figura de Sepé que havia sido rejeitada há 50 anos antes pelo Rio Grande do Sul e agora era o grande momento. Em 26 de março de 2008, fiz um pedido a ele: “Irmão Cecchin, bom amigo... Ainda estou com aquele assunto da apresentação do livro. Penso que o apresentador deva ser realmente Vossa Senhoria, visto que é de quem eu mais gosto. Se o amigo quiser fazer este favor, responda e eu lhe mando os escritos do Pedido de Perdão ao Triunfo da Humanidade”. Em resposta, afirmou que estava esperando uma cópia do livro sobre o Pedido de perdão.... Abraços mil e...

VIVA SÃO SEPÉ E O POVO SANTO DAS MISSÕES! Mais tarde, em 31 de julho, Cecchin me escreve: Entre temor e tremor, envio-lhe o que pude fazer. É a primeira vez na vida que sou convidado a apresentar uma obra. Muito mais do que uma simples obra, trata-se de obra-prima que me encantou sobremaneira e que me proponha reler e trêsler. Tão logo tome conhecimento do escrito vai se dar conta das minhas limitações. 1) Logo sentirá que eu sou um homem de José Roberto e Antônio Cecchin. ação. Talvez até bem mais, sou um ativista, o que significa ser exagerado em relação à ação. Sempre me sobrou muito pouco tempo para a reflexão por causa dos meus contatos diários com os lascados do planeta com a carga que carregam de problemas que os circundam a todo instante. Não tive oportunidade, em minha vida acidentada, de arrumar a minha cabeça. Por isso as coisas - sinto - não resultam bem encadeadas. 2) Não disponho de biblioteca para, na hora H, consultar e me certificar. E assim poderia elencar outras razões. Mas para não deixá-lo por demais aflito, esperando em vão, se achar que a 304


apresentação não corresponde absolutamente ao primor de sua obra que achei – repito – maravilhosa, rica em detalhes, fruto de acurada pesquisa que até a mim muito me enriqueceu com as novidades apresentadas, não duvide em escolher um outro apresentador que eu continuarei mais amigo e admirador seu do que até hoje o fui. Abraços e dê o destino que quiser, inclusive jogando tudo fora do meu escrito. Obviamente que o texto era excelente. Chamavase ‘Um Pedido de Perdão ao povo-raiz do Rio Grande’ e conta suas aventuras desde 1977, momento em que escreveu uma ‘brochurinha’ sob o título São Sepé Tiaraju rogai por nós!. Diz que o escrito foi parar nas mãos de Dom Pedro Casaldáliga, bispo da diocese de São Félix do Araguaia, que é de origem espanhola, mas de alma indígena. Segue dizendo que o que me motivara a redigir o livrinho sobre São Sepé era o fato de que, no mesmo ano de 1978, celebrar-se-iam também os 350 anos dos três Mártires Rio-grandenses Roque Gonzáles, Afonso Rodrigues e João Castilho. Analisa que do reflexo de suas preocupações nasce a Missa da Terra Sem Males.

Em 1978, foram celebrados também os 350 anos dos três Mártires Riograndenses Roque Gonzáles, Afonso Rodrigues e João Castilho.

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“Nós temos no povo guarani das Missões Jesuíticas e em sua figura emblemática que foi São Sepé Tiaraju – o facho de luz –, os personagens e os eventos históricos de absoluta relevância para o ato fundante de nosso Estado como povo e pátria.”

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Depois, descreve que “os índios encontramse literalmente desenTERRAdos”, contando a triste experiên­cia de quem anda pelo Centro e periferias de Porto Alegre, bem como estradas do Rio Grande. Depois, analisa Lugon, a paixão pela utopia guarani, escrevendo que o apóstolo da utopia se recusa a passar recibo da falência do mito da igualdade e da liberdade. Em Manoelito de Ornellas e o símbolo do povo rio-grandense analisa que o Rio Grande do Sul não necessita recorrer a uma figura imaginária ou a um mito. Nós temos no povo guarani das Missões Jesuíticas e em sua figura emblemática que foi São Sepé Tiaraju – o facho de luz - os personagens e os eventos históricos de absoluta relevância para o ato fundante de nosso Estado como povo e pátria. Missões Jesuíticas e São Sepé Tiaraju deveriam ser o referencial obrigatório do nosso mais autêntico tradicionalismo, tanto para a Igreja Cristã como para toda a sociedade civil. Em São Sepé Tiaraju, descreve um conjunto de frases e que muitas outras vezes ouvi dele: – No dia 7 de fevereiro de 1756, quando o comandante indígena Sepé tombou vítima de uma emboscada, seus irmãos guarani, muito bem evangelizados pelos padres, lembraram-se imediatamente das palavras de Jesus: ‘Não há maior prova de amor do que dar a vida por aqueles a quem se ama’. Em consequência, quem, a exemplo de Cristo, houvesse dado a vida pelos irmãos, canonizado estava diretamente pelo Filho de Deus. Ao encerrar, Cecchin conclui:


– Daí que não é somente a sociedade civil que está nas obrigadas de pedido de perdão ao ‘Triunfo da Humanidade’, mas também a própria Igreja Católica. O que já temos é uma canonização popular de São Sepé Tiaraju realizada pelos índios e, em 2006, por ocasião dos 250 anos, por parte de todos os movimentos populares. Nossa esperança é que a Igreja, um dia, nos conceda que nosso herói ‘guarani, missioneiro, rio-grandense’ com direito hoje a monumento em praça pública, também seja proclamado santo oficialmente, com direito ao altar. No dia do lançamento do livro, 7 de maio de 2009, lá estava ele, no Santander Cultural em Porto Alegre, alegre como sempre. Depois, tivemos a oportunidade de produzir uma série de documentos que levou a Sepé Tiaraju se tonar Herói da Pátria brasileira pela Lei 12.032/2009, sancionada pela Presidência da República, depois de passar pela Câmara Federal e pelo Senado. Estas coisas de escrever resumos nos deixam sempre com muito pouco espaço. Entre 2009 e o presente, 2017, um mundo de coisas ocorreu. Foram muitas palestras nos dias 7 de fevereiro, especialmente, e nos últimos tempos, a Romaria da Terra em São Gabriel e a visita que fez à nossa casa em Santo Ângelo e que levou a duas conversas muito parecidas. Dizia eu a Cecchin que ele estava ficando velho e que suas ideias de 50 anos com relação à canonização de Sepé Tiaraju precisavam de ser encaminhadas oficialmente.

Entrega do processo de canonização à Igreja. Antônio Cecchin e o Padre jesuíta Antonio Betancour (do Paraguai, na mesa) entregando ao bispo o documento.

Esculturas de animais feitas pelos índios guaranis.

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Antônio Cecchin, Irmão Luiz Carlos Susin e José Antônio – um trio trabalhando pelo reconhecimento de Sepé Tiaraju junto à Igreja Católica.

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Desde o início de 2015, minha filha Bibiana reside em Porto Alegre, o que facilitou nossos encontros mais frequentes, e chegamos à conclusão que tínhamos que obter parcerias para a questão da canonização de Sepé Tiaraju. Passou a fazer parte do trio o Irmão Luiz Carlos Susin, elemento fundamental para as práticas que se deram a partir de então. Com apoio de figuras fundamentais como o Bispo Pedro Casaldáliga, Bispos e Jesuítas do Paraguai, Conselho Indigenista Missionário, escritores do Mercosul, Conselho Regional de Presbíteros, Olívio Dutra, Alcy Cheuiche, Deputados, Prefeitos, Vereadores, Padre Alex Kloppenburg e muitas centenas de apoiadores, em 10 de novembro de 2015 foi entregue à Igreja através do Bispo de Santo Ângelo a postulação Santo, ainda que tarde!, que é o processo de reconhecimento de Santidade através do título de Servo de Deus a Sepé Tiaraju. Tudo parecia muito bem, porém, passados meses, o Bispo de Santo Ângelo devolveu a postulação informando que não havia quem pudesse se responsabilizar pelo andamento do processo. Imediatamente, passei as informações a Cecchin e Susin e foram iniciadas as providências para uma alternativa à negativa. Em fevereiro de 2016, nos 260 anos da morte de Sepé Tiaraju, ocorreu a Romaria da Terra em São Gabriel e lá havia conversado muito com o Bispo Dom Gílio Felício, da Diocese de Bagé, que se colocou à disposição para ações referentes ao pedido. Com o processo que foi entregue a mim, combinei com o Cecchin que levaria ele a Porto Alegre e foi a última vez que o vi. Ele entregou a Susin, que combinou uma reunião com o Bispo Dom Gílio e que aceitou levar o processo a Roma, o que ocorreu agora em 2017, exatamente nos dias em que comemorávamos os 261 anos da morte de Sepé e a morte dos 1.500 Guaranis em Caiboaté. Sobre o falecimento de Cecchin não falarei, pois está plenamente vivo entre nós, lutando pela causa dos seus lascados, como ele bem disse. Desde sempre, já pensava nele como uma boa alma.


O ensinamento da Gruta do Marco

A animação no início da Bicicletada Pelos Caminhos de Sepé Tiaraju.

por João Marcelo Pereira dos Santos*

No verão escaldante de 2011, fui surpreendido por um convite incomum: participar da 10ª Pedalada Pelos Caminhos de Sepé Tiaraju. Dei pouca atenção ao desafio dos 320 quilômetros do percurso entre Rio Pardo e São Gabriel, me entusiasmei pela possibilidade de reabilitar minha relação com a bicicleta, pedalar fazia parte do meu passado de jovem aventureiro. No dia e local da partida lá estava o Irmão Cecchin, eufórico como um adolescente em véspera de uma grande excursão. * Doutor em História Social do Trabalho Educador Popular e Assessor da CUT/RS

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​I r. Antônio Cecchin entrega a imagem de São Sepé Tiaraju ao Prefeito Neiron Viegas nas margens do Rio Jacuí, na pedalada de 2014.

http://rotasetrips.blogspot.com.br

Gruta do Marco, entre São Sepé e Vila Nova, a caverna de Pulquéria, amada de Sepé Tiaraju.

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Em sua volta reconheci catadores, jovens da periferia, crianças acompanhadas de mães, idosas, estudantes e uma família de Kaigang. Tudo muito simples e destituído de conforto. O clima transpirava o prelúdio de uma aventura. Nos primeiros quilômetros, logo percebi que estava envolvido em uma espécie de peregrinação por lugares esquecidos, conhecendo comunidades espremidas pelo deserto verde da soja contaminada por agrotóxico e pessoas descartadas pelo sistema. Em uma tarde ensolarada, depois de 4 dias de pedalada, no trajeto que separa as cidades de São Sepé e Vila Nova, o Irmão Cecchin insistiu para que conhecêssemos a Gruta do Marco. Estávamos exauridos. Aquele esforço adicional não parecia uma boa ideia, precisávamos de toda energia para chegar ao destino. Com passos decididos, o Irmão Cecchin trilhou mato adentro. Sua disposição nos encorajava. Depois de uma breve caminhada, avistamos uma rachadura em um imenso lajeado. Com cautela nos pés, o Irmão Cecchin avançou como se estivesse entrando em um santuário. De repente, estávamos em um majestoso salão formado por rochas gigantescas revestidas por cipós e portentosas figueiras. O Irmão Cecchin pediu que sentássemos e, com a voz embargada, narrou o massacre dos guaranis em Caiboaté, a saga de Sepé Tiaraju, o papel dos povos indígenas na formação do Rio Grande do Sul, tudo isso recheado de trechos do Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Nos explicou que durante a Guerra Guaranítica era comum abrigar as mulheres e crianças nas grutas da região. Estávamos na Gruta do Marco, local onde Sepé Tiaraju a caminho do martírio compartilhou suas angústias com Pulquéria, sua amada. Em meio a uma guerra


sangrenta emerge o registro de uma história de amor. Conta-se que até hoje se ouve na Gruta do Marco os prantos de Pulquéria à espera de Sepé Tiaraju. Naquele momento entendi que o amor do Irmão Cecchin aos pobres e humilhados soava como um pedido de perdão pelo genocídio cometido contra os povos guaranis. A santificação de Sepé Tiaraju protagonizada pelo Irmão Cecchin, algo passível de questionamento devido à cumplicidade da igreja oficial com certas atrocidades, representa um ato de expiação e a afirmação de valores da nossa religiosidade popular. Dois dias depois, chegamos em Caiboaté com o que restou das nossas bicicletas. Cansados, mas transbordando de contentamento pelo desafio vencido. Agraciados com um pôr do sol esplendoroso, ao lado de centenas de guaranis, engrossamos o cortejo dos deserdados. Na cruz dos Sete Povos presenciamos um ritual presidido pela Pajé Laurinda, remanescente guarani e moradora na reserva de Itapoã. A voz da Pajé Laurinda ecoou como um lamento, um choro contido, uma dor profunda sentida pelos seus antepassados. Naquele momento, o local onde milhares de guaranis foram assassinados pelos exércitos de Espanha e Portugal parecia um imenso cemitério com uma única cruz. Dividindo espaço com os guaranis e recolhido pelo remorso em frente à cruz de Caiboaté, o ensinamento da Gruta do Marco fez sentido: a utopia da terra sem males e o sonho de liberdade de Sepé Tiaraju, profetizado constantemente pelo Irmão Cecchin e que nos unia naquela aventura, se concretizava há muito tempo na trajetória de um homem que viveu o maior dos ensinamentos: não há maior prova de amor do que doar a vida aos pobres e derrotados da história.

Ao longo da bicicletada, são visitados os quilombolas, remanescentes de escravos, que tiveram direito às terras onde trabalharam seus ancestrais.

Na chegada, em Caiboaté, a celebração pelo desafio vencido.

Para saber mais, no You Tube da Rede Marista, Bicicletada:

https://youtu.be/gxRQLO79QrE

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NAS MISSÕES DOS SETE POVOS

Nas Missões dos Sete Povos Nasceu um dia Sepé Trazendo uma cruz na testa

Os Sete Povos são uma parte do Mundo Missioneiro que era constiuído de 33 povos, ocupando parte da Argentina e principalmente do Paraguai. Conhecê-los significa, hoje, que a busca da Terra Sem Males continua. Durante mais de 160 anos foram um dos mais justos projetos sociais da Humanidade. Sepé Tiaraju foi o grande condutor nativo contra as forças externas inimigas da “Terra Sem Males”. Os padres jesuítas comparavam os guaranis aos primeiros cristãos e suas comunidades como a realização ideal do Cristianismo. São eles: 1. São Miguel Arcanjo, fundada em 1632, desde 1983 é Patrimônio da Humanidade; 2. São Francisco de Borja, 1682; 3. São Nicolau, 1626; 4. São Luiz Gonzaga,1687; 5. São Lourenço Mártir, 1690; 6. São João Batista, 1697; 7. Santo Ângelo Custódio, 1706.

Cicatriz sinal de fé Quando o sol batia nele Essa cruz resplandecia Por isso lhe deram o nome Tiaraju a luz do dia São Sepé subiu pro céu Sua cruz ficou no azul. Cai a noite: Ela rebrilha Ele é o Cruzeiro do Sul. Barbosa Lessa

Detalhes da arte missioneira e coral indígena.

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Darcy Bianco

A paixão pelo Mundo Missioneiro, com os seus Sete Povos espalhados pelo Rio Grande do Sul, despertou no Irmão Antônio o desejo em dar-lhe o máximo de visibilidade na forma de construir igrejas: monumentos com sete lados que apontassem para o alto, para a Cruz Missioneira.


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Antônio!

3 de janeiro de 1999, aeroporto de Porto Alegre, Antônio e Matilde estão lá para nos receber, Heniu e eu. Alegria do reencontro para mim, de conhecê-los para Heniu.

Contigo seguimos pelo caminho missioneiro por Pascale e Heniu*

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Encontrei o Antônio e a Matilde em Saímos do inverno strasburguense, nossas roupas de verão estão nas malas.

São Luís do Maranhão, em 1997, ano do grande Encontro das Comunidades Eclesiais de Base. Lá, seria realizado um documentário. Na época, eu trabalhava no canal de televisão ARTE. Consegui acompanhar uma série de programas sobre Teologia da Libertação. Nessa circunstância, propus ao cineasta Albert Knechtel rea­lizar esse documentário.

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Eis Heniu, um pouco antes da partida. Eu o apresento antes que desapareça, quase inteiramente, visto que será ele o responsável de fazer a maioria das fotos.

Nessa realidade, Antônio ocupa o lugar central com os Recicladores de Porto Alegre. Ele e Albert tiveram a ideia desse título magnífico: Lixo é Vida – Les ordures, c’est la vie” . * Pascale Cornuel: historiadora; Heniu Dyduch: gerente de uma empresa de parapente.

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Antônio e Matilde nos hospedaram em seu apartamento. Estamos em pleno mês de janeiro, é verão. Descobrimos as duas delícias dos gaúchos: chimarrão e caipirinha.

Marco Nedeff

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A caipirinha preparada pelo Antônio, antes da refeição; o chimarrão foi companheiro de nossas conversas, troca de ideias, ao longo de nossa estada.

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Depois visitamos a Catedral de Porto Alegre. Antônio nos mostra os Guarani em estátuas. A base em pedra bruta sustenta cabeças de índios, com frisos de sua arte, geométrica.

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Importante momento foi aquele encontro em São Luís. E a alegria de uma amizade nascente. Nós queríamos nos rever. Ainda mais que temos um projeto comum. Ao longo de nossas conversas, Antônio e Matilde sempre lembravam as missões jesuíticas do Paraguai. Ora, da minha parte, eu quis conhecê-las. Estava fazendo uma pesquisa sobre uma religiosa, Anne-Marie Javouhey, que fundou uma “missão” na Guiana Francesa, no século XIX, e ela queria fazer como eles. E se nós visitássemos juntos essas célebres Missões? E a questão das Missões? Elas acabaram mal. Um tratado em 1750, entre portugueses e espanhóis, altera as fronteiras entre suas colônias. Os portugueses (escravagistas) querem extinguir as Missões de seus territórios. Consequência para elas: desaparecer ou passar além da fronteira. Os Guarani não aceitam. É a guerra. Antônio e Matilde nos apresentam ao escritor Alcy Cheuiche. Ele nos relata muitos fatos sobre esta tragédia. Depois, visitamos a Catedral de Porto Alegre. Antônio nos mostra os Guarani em estátuas. A base em pedra bruta sustenta cabeças de índios, com frisos de sua arte, geométrica. Na parte superior, pedra polida, colunas, trabalho delicado. Compreende-se logo a mensagem... Na parte inferior, barbárie; na superior, cristianismo e civilização. Mais tarde, Antônio nos mostra, numa capela de São Leopoldo, não longe de Porto Alegre, uma estátua de São Miguel com aterrorizante dragão, cuja cabeça é a de um bandeirante. O autor, possivelmente, um índio missioneiro, lança um outro olhar sobre a própria realidade onde o civilizado não é quem se acredita ser... Adquirimos muitos conhecimentos históricos, mas não partiremos logo para prosseguir na nossa viagem. Há outra coisa que Antônio e Matilde querem nos fazer conhecer, para interpretar... A Ilha dos Marinheiros, o encontro com Nazaré. Essa bela dama carinhosa é filha de uma índia e de um imigrante português. Da casa da Nazaré, saí­ mos com um pequeno bracelete com sete fios que ela amarrou em nosso punho, no final do Ritual. Esses fios caem naturalmente. Caso não aconteça, é preciso devolvê-los para Nazaré que os levará para um mato


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Essa bela dama carinhosa é filha de uma índia e de um imigrante português. É também mãe de santo. O rito afro-brasileiro Candomblé espalhou-se pelo Brasil meridional. Aqui ele se chama Batuque.

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no Ano Novo. Ela os colocará em uma bela árvore, bem verde e saudável. O sagrado une o corpo à vida. Mas logo descobrimos que o que se exprime simbolicamente não acontece na realidade logo ali adiante, que surge como um caminhão carregado de sacos de lixo. E lá vai o lixo para ser reciclado. Ali, nós sentimos os efeitos do espírito, e a relação entre o que se passa aqui e o que descobriremos lá longe, nas Missões. Há a triagem, a classificação. A perspectiva do brilho do ouro a ser extraído. Desse caminhão, homens e mulheres não extraem, mas reaproveitam. Fazendo a triagem, eles não dissociam nada, mas criam a vida. Recriando a vida, fazem vir à tona a sua dignidade obscurecida nas profundezas de sua miséria. E isso eles conseguem, encorajados por Antônio. Antônio os encoraja na certeza de que eles são tão dignos quanto os mais afortunados cidadãos do planeta. Sua confiança se enraíza em sua fé. Antônio não pretende agir pelos mais pobres, mas reivindica ações com eles. É o espírito que se encontra nas Comunidades Eclesiais de Base.

O jardim da Nazaré está semeado de casinhas do tamanho que possa abrigar os Orixás. No meio delas, está São Jorge com seu dragão em destaque.

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E lá vai o caminhão carregando o lixo para ser reciclado.

E eis o trabalho (pelo menos uma parte).

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Com Matilde, algumas das admiráveis trabalhadoras.

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Centro das Comunidades, na entrada da Vila Santo Operário (ocupação), com a pintura de cenas da conquista de um pedaço de terra para morar.

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Agora, a caminho das Missões. 6 de janeiro, 5 horas. Partimos no Fiat de Antônio e Matilde. Heniu está na direção. Parada em Ijuí, onde Elza nos recebe calorosamente. Seu marido não está. Só poderemos conhecê-lo em outra viagem. Visita ao museu. Impregnamo-nos de tudo. Chegamos em São Miguel das Missões. Uma falha técnica, fotos perdidas. José Roberto de Oliveira cedeu-nos as dele. Agradecida a ele! Durante um século, os homens, as mulheres e as crianças de São Miguel foram vítimas dos escravocratas de São Paulo. Até que um dia seus descendentes puderam, enfim, se instalar. E puderam construir esta catedral como não existia na Europa, tão grande. Mas a guerra explodiu em 1750. Anotações de nosso diá­


rio de viagem: “Vestígios de uma catedral que não teve tempo de viver”. São Miguel é um símbolo. Um povo que caminha rumo ao horizonte que, às vezes, retrocede, mas que um dia avançará tanto que poderá celebrar um hino em forma de uma esplêndida catedral. Um momento efêmero em que o sonho de um “bom lugar”* será partilhado com todos os seus construtores. São Miguel, porta aberta sobre a utopia das Missões. 8 de janeiro, partida para São Ignacio Miní, na província argentina de Missiones. Lembrança de uma estrada que sobe, sobe. O Rio Uruguai, e a música do filme A Missão, forte, em alto volume, no carro. No refeitório do colégio San Ignacio Miní, o guia nos conta sobre todas as orações que cada missionário jesuíta deveria rezar cada dia. Em si, nada de original: terços, laudes até vésperas e completas. Mas acrescenta que Santo Inácio não exigia rigor nessa exigência. Se o jesuíta quisesse, poderia recitá-las todas de uma só vez. Entendemos que, para esta religião, Deus não é formal, e Santo Inácio é pragmático. Nossa Senhora do Loreto. Enormes raízes das árvores que amparavam as ruínas. Paradoxalmente, ostentavam sua pujança. Pelo caminho, parada para o almoço. No centro das conversas, estava Roque Gonzales, pioneiro das Missões, fundador das inúmeras reduções das quais, em 1615, a de Nossa Senhora da Encarnação de Itapúa, “Encarnación”. Ele foi assassinado. Eis o que nos fez meditar: como ficaríamos nós diante de uma religião conquistadora, quando bons missionários são a única forma de resistência à escravidão horrível e, no entanto, originada no mesmo mundo que os jesuítas? Antonio admirava Roque, mas compreendia o outro, os Guarani, suas crenças e sua cultura.

São Miguel é um símbolo. Um povo que caminha rumo ao horizonte que, às vezes, retrocede, mas que um dia avançará tanto que poderá celebrar um hino em forma de uma esplêndida catedral.

* “Bom lugar”= eu-topia. Em inglês, a palavra é pronunciada como u-topia. Thomas More jogou com esta homofonia.

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Comparando com a pujança dos vizinhos Brasil e Argentina, Paraguai é um pequeno país. Mas é seu nome que vem associado às célebres missões jesuíticas. Extenso e apaixonante intercâmbio sobre uma história complexa.

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Chegamos ao Paraguai. Fomos acolhidos por um amigo de Antônio e Matilde, Santiago Caballero (as fotos do Paraguai que perdemos foram quase todas dele). Antônio e Santiago se conheceram no tempo em que Santiago era estudante no Rio Grande do Sul. Na época de nossa viagem, fazia apenas 10 anos que havia terminado a ditadura de Stroessner, com 35 anos de duração. Santiago sofreu sozinho. Ele disse que deve a Antônio uma visão menos pessimista da vida. Santiago nos apresenta Gloria Estrago Bieber. Gloria tem como cargo o controle do processo eleitoral democrático. Vasto programa e pesada responsabilidade. O partido de Stroessner, o Colorado, ainda está no poder. Gloria foi torturada no tempo da ditadura. Junto com Santiago, nos relata como seu país foi assassinado, logo quando progredia: primeiro país na América Latina a adotar a escola gratuita e obrigatória. No nosso jornal de viagem, leio à margem: “A história do Paraguai nos choca, cai sobre nossas cabeças”. Não a conhecíamos, efetivamente. Comparando com a pujança dos vizinhos Brasil e Argentina, Paraguai é um pequeno país. Mas é seu nome que vem associado às célebres missões jesuíticas. Discussões longas e fascinantes sobre uma história complexa e comovente. Na primeira metade do século XIX, o futuro do Paraguai não parecia nada auspicioso. Mas sua situa­ ção era precária. Para preservar a vida modesta de seus habitantes, fechou-se completamente. E quando, apesar de tudo, decidiu abrir-se, se deu mal. Os vizinhos, é verdade, não tinham outro interesse a não ser a dos escravocratas de São Paulo. Prosseguimos em nosso roteiro de viagem com um maravilhoso encontro: Bartolomeu Meliá, “paraguaio nascido em Mallorque”. É um padre jesuíta, antropólogo e linguista. Em 2011, recebeu o prêmio Bartolomeu de Las Casas por sua defesa, depois de tantos anos, do povo Ache-Guayaqui e da língua Guarani. Visita ao museu da Universidade Católica de “Encarnación”. Descoberta da lenda do guerreiro Urunde, herdeiro e defensor dos ideais de justiça, de sabedoria e de liberdade que conduzem à Terra Sem Males. Esse grande mito Guarani nos convoca à reflexão sobre o profetismo e o messianismo entre


os missionários jesuítas e esses índios, que buscavam seu próprio caminho quando foram derrotados pelos invasores vindos da Europa. Por um atalho, chegamos ao lugarejo de Jesus de Parangue. Os sinais da missão estão bem conservados. A entrada da Igreja é um estilo mesclado com moçárabe*. Curioso. Não longe daí encontra-se uma outra bela missão, a Santíssima Trindade do Paraná, casas e arcadas bem conservadas. Antônio nos lembra que as arcadas assemelham-se às de um convento. Em Santo Inacio Guazu, Santa Rosa de Lima, Santa Maria da Fé e Santiago, há muitos descendentes dos fundadores dessas missões, pois não vivenciaram a guerra. Os povos evangelizados por missões jesuíticas são de origens variadas, estando sob o jugo português ou espanhol. No entanto, todas sofreram a ação fatal das ditaduras do século XX. Em Santa Maria, desenvolveu-se, nos anos 1960, uma liga agrária cristã. O povoado construiu-se sobre uma estrutura de cooperativa agrícola e um posto de saúde. O empreendimento era muito eficaz. Mas o ditador Stroessner destruiu tudo, como também todas as outras cooperativas existentes, em 1975-1976. Rotuladas de comunismo. Resultado: torturas e massacre de população: crianças, homens, mulheres. Pela época de nossa viagem, não havia mais nada, a não ser sobreviventes com pobre produção agrícola. Por longo tempo amordaçada pelo medo, a memória desses crimes ressurge agora. No tempo das Missões, diz-nos Antônio, os Guarani plantavam e veneravam uma imagem de Santo Isidoro, padroeiro dos agricultores, a algumas dezenas de metros de sua oca, iam ao campo para trabalhar. Trabalhavam cantando. Santo Isidoro os estimulava. Uma lembrança marcante em nosso diário de viagem: as habitações dos Guarani enfileiradas têm paredes que não chegam ao telhado. Antônio enfatiza que a vida privada não era o mais importante. José Roberto insiste no fato de que as famílias eram numerosas, constando de várias gerações, com

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Os povos evangelizados

pelos jesuítas dessas missões tiveram destinos variados, conforme se encontrassem sob o jugo de portugueses ou dos espanhóis.

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Santa Rosa e Santiago (fotos de José Roberto)

* Estilo cristão-hispânico, da parte muçulmana da Península Ibérica, chamado al-Andalus.

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Antônio cita o grande escritor brasileiro Monteiro Lobato: “ Os artistas são a cigarra da humanidade”.

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Pela estrada, descobrimos o que moradores fabricam para vender como lembrança. Presenteamos essas duas belas criaturas que nos acompanham, e nossa homenagem ao nosso caro Antônio, aproveitando o belo sol, as fotografei do terraço.

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avós, netos e descendentes, diferentemente da família nuclear, de apenas pais e filhos que vivemos hoje. É verdadeiramente muito importante situar a ação dos jesuítas no contexto daquela época. Eles não transmitiam só a religião aos Guarani. Eram, frequentemente, grandes figuras de uma cultura ocidental que, por seus intermediários, os Guarani se apropriavam mais fortemente. Em Santa Maria, há um importante museu que testemunha, mais uma vez, o esplendor do legado artístico das Missões. Uma estátua de São Francisco Xavier, São Roque em seu nicho, Santo Estanislau Kostka, um jovem polonês que morreu aos 18 anos, quando era noviço junto aos jesuítas. Aqui ele está representado com as feições Guarani. Um berço com uma anta. Uma virgem com os anjos. O patrimônio artístico deixado pelos Guarani é fascinante. Sua rapidez de assimilação é impressionante. E sua apropriação vai além. No museu de Santa Maria, os rostos de todas as figuras de origem europeia são todos Guarani. Então, quando se vê o que conseguiram construir e criar num contexto em que os períodos de paz se prolongavam, a gente se pergunta o que esses povos poderiam fazer se o tempo lhes fosse dado? E o sonho de esperança se tinge de tristeza ao ver a sua pobreza atual... Antônio cita o grande escritor brasileiro Monteiro Lobato: “Os artistas são a cigarra da humanidade”. Almoçamos. No restaurante, há um garçom fisicamente deficiente. Ficamos tocados com seu sorriso e paz que emana dele. Aqui, ele é aceito e amado por seus pais, proprietários do restaurante, e de todos os clientes. Foi uma bela recordação. Siesta na praça. Ao acordar, surpresa. Intrigadas com a nossa presença, as vacas que comiam ervas da praça se aproximaram. E nos olhavam curiosamente. Heniu e eu moramos nos Alpes onde há muitas vacas as quais podemos observar longamente. Elas também parecem curiosas a nos observar como essas do Pampa. A caminho, deixando este país inesquecível, Foz de Iguaçu. Outro choque. Beleza indescritível des-


sas monumentais quedas d’água. E são tomados devaneios. Quantos Guarani acossados terão perecidos nessas águas tumultuadas! E se lançaram na água, em Itaipu. Chegada à Ciudad del Este. A famosa zona franca. Nosso tour pelas terras das Missões chegou ao fim. Vendedores por tudo, negociantes por toda parte, carros sem fim, ônibus, três horas de engarrafamento. Enquanto avançávamos, dois metros por hora, um turista nos informou, gentilmente, que corríamos o risco de uma advertência policial se não estivéssemos com o cinto de segurança. A liberdade não era o traço das Missões. Mas aqui onde ela está? Zona Franca, franco caos de cada um por si, onde o que mais vale é ser forte e agressivo. Heniu se impacienta. É preciso entrar na fila esquerda, mas há os que furam. Todos forçam a passagem. Filas de carroças guiadas por pequenos vendedores de legumes para alimentar a população deste moloch. O ar é irrespirável. Ufa, finalmente partimos. Atravessamos a ponte sobre o Rio Paraná. Matilde e eu tivemos de fazê-lo a pé. Depois, um retorno

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Anotações de viagem: “O Paraguai, sem dinheiro, deixou suas terras à disposição para a construção de Itaipu. Deveria ter sido reembolsado de uma parte dos investimentos. Provavelmente, houve alguma trapaça, por alguns ‘garrafões de vinho’. Há cadáveres nessa barragem!”

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Vendedores por tudo, negociantes por toda parte, carros sem fim, ônibus, três horas de engarrafamento.

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18 Depois, um retorno de paz após tantos desencontros, descobertas, e acentuados contrastes, uma refeição em uma paisagem que nos faz esquecer a loucura da Ciudad del Este.

de paz após tantos desencontros, descobertas, e acentuados contrastes, uma refeição em uma paisagem que nos faz esquecer a loucura da Ciudad del Este. De volta ao Rio Grande do Sul, descobrimos músicas gaúchas. Ao som de sua música, nos recolhemos. Esta viagem foi mais que uma viagem ao país das missões jesuíticas do Paraguai. De fato, ao percorrer a região tal como é hoje, com feridas, a utopia desponta mais viva ainda. Não tanto em nome de uma sociedade ideal que nos surpreende. Mas porque ela é um horizonte, um motor. Esta utopia é tua, Antônio. Ela te levou a lutar, sem trégua e descanso, para um mundo justo e fraterno, uma “Terra Sem Males”, diriam os Guarani. Tu, tu falas de uma utopia concreta, certo de que era possível de construir, aqui, ali, um horizonte da vida cotidiana. Não se pode desistir. Tu jamais desistiu. É por isso também que tu fizeste reviver essas Missões a tal ponto que, te escutando, não só se vê mais tudo em ruínas, mas tudo bem vivo, saciados pelos eflúvios de um chimarrão. Obrigado, Antônio, por essa viagem, plena de sua alma. Pascale e Heniu

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De volta ao Rio Grande do Sul, descobrimos musicas gaúchas.

Documentários em França 97, no You Tube da Rede Marista:

Parte 1: https://youtu.be/5boMSgQMUg8 Parte 2: https://youtu.be/NlawbfpGU6U Parte 3: https://youtu.be/6IHFPGusmQY

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Irmão de caminhada, de luta e de fé por Rabeca Peres da Silva* Com seu Mariano, liderança Guarani da comunidade de Passo Grande/ RS. Ele sempre participou dos encontros de Sepé Tiaraju.

Como missionária do CIMI – Conselho Indigenista Missionário –, fiz parte da equipe de Porto Alegre trabalhando com os povos indígenas, Guarani e Kaingang, da Região Metropolitana. A luta dos indígenas pela demarcação de suas terras é um grito constante, é uma luta permanente, é um direito original, verdadeiro e constitucional. Nesta caminhada de 10 anos, tenho encontrado aliados pela causa indígena que se somavam à luta pela terra, entre esses o querido irmão Antônio Cecchin. Nossos caminhos se cruzam novamente, pois, desde Canoas/RS, ele e sua querida irmã Matilde fazem parte de minha vivência pastoral. * Bacharel em Teologia-ESTEF; Mestre em Teologia Bíblica-PUC; professora de Educação Infantil e terapeuta de Shiatsu, Reflexologia e Reiki.

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Desde 2006, as comunidades Guarani do Estado organizam, em São Gabriel, mobilizações de luta e resistência em honra a memória deste grande líder Guarani.

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O encontro entre o CIMI, os povos indígenas e o Irmão Antônio se deu graças à memória viva do Guerreiro Guarani Sepé Tiaraju. São Sepé Tiaraju, o mártir dos sete povos missioneiros, rogai por nós, como expressava incansavelmente o Irmão Antônio. Como irmão de caminhada, de luta e de fé, ele fez memória do caminho onde estava o Facho de Luz, Sepé: na Sanga da Bica, em São Gabriel, e dos 1500 mártires Guarani, tombados pelos exércitos da Espanha e de Portugal, em 1756, na Coxilha de Caiboaté. Essa lembrança viva foi um anúncio profético de grande esperança para os povos indígenas e para a humanidade. Sepé Tiaraju está vivo e sua luta pela garantia de seu território está presente na luta dos Guarani, dos povos indígenas, bem como dos pobres deste imenso rincão que é o Brasil. Os Guarani foram até São Gabriel e até a Coxilha de Caiboaté para desvelar a história e a presença deste grande líder indígena. A luta pela terra brotava com mais força, mais resistência e de profunda mística na presença forte do sangue derramado por Sepé e dos 1500 mártires guerreiros indígenas. Os Guarani nos mostraram e nos alertaram que a luta de Sepé está viva e prossegue em cada rosto indígena, em cada palavra dos mais velhos, em cada organização e mobilização pelos seus direitos. Os Guarani com seus Karai e Kuña Karai (os pajés mais velhos) entoavam cantos e pronunciavam palavras fortes de esperança e de resistência. Desde 2006, as comunidades Guarani do Rio Grande do Sul organizam em São Gabriel, a cada dia 7 de fevereiro – dia em que Sepé foi assassinado –, mobilizações de luta e resistência em honra à memória deste grande líder Guarani. São eles, os Guarani, que nos mostram o caminho que nos leva à Terra Sem Males. O Irmão Antônio anunciou o caminho das pegadas de Sepé, a exemplo de João Batista, que preparou os caminhos do Senhor. Fez dessas pegadas uma proposta de reflexão ecológica, ele esteve junto com grupos de bicicleteiros, entre eles os Kaingang, percorrendo os locais onde Sepé esteve com seus guerreiros. Nestas redondezas da região de São Gabriel,


Com Seu Francisco, liderança indígena Kaingang (in memorian). Ele sempre participava da bicicletada nos encontros do Sepé e contribuía nas reflexões sobre as questões ecológicas.

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Índios Guaranis, em São Gabriel, na assembleia anual, realizada próxima ao local do Martírio de São Sepé Tiaraju.

os indígenas Kaingang, junto com os bicicleteiros, refletiam a importância do cuidado com a mãe-natureza, e denunciavam o alto índice de agrotóxicos poluentes nos rios e localidades, atingindo famílias de trabalhadores. Descanse em paz, querido irmão de caminhada, na Terra que o Senhor Jesus preparou para aqueles que cumpriram seu legado: Eu tive fome e me deste de comer, estava na luta e se juntaste a mim, meus direitos eram negados pela sociedade e governantes e assumiste comigo a causa pela terra e pela dignidade, venham benditos do meu Pai , porque toda vez que fizeste algo aos meus excluídos e pobres foi a mim que fizeste, venham até mim para viver e experimentar a Terra Sem Males.

Continuemos firmes nas lutas: ecológica, no apoio à demarcação das terras indígenas e em prol de todos os necessitados que lutam pela garantia de seus direitos.

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Militante e profeta na luta pela terra sem mal

por Roberto Antonio Liebgott*

No Rio Grande do Sul, nenhuma pessoa militou mais pela canonização de Sepé Tiaraju do que o nosso querido Ir. Antônio. Os direitos indígenas e o mártir Sepé – herói e santo – foram pauta e causa de vida do Irmão. A busca da terra sem mal é uma constante na trajetória dos Guarani e parece ter sido também uma das causas prediletas na história missionária do nosso saudoso Irmão. * Membro da Equipe do Cimi-Sul – Porto Alegre e Coordenador do Cimi-Sul

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Ele, incansavelmente, fazia memória de Sepé. Era objetivo de vida organizar informações e fundamentos históricos para que a Igreja passasse a reconhecer Sepé como um Santo.

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Foi no contexto das lutas sociais, populares, dos sem-terra, dos papeleiros e dos indígenas que o Irmão se fez missionário. Deu radical testemunho de um Evangelho encarnado na existência dos que sofrem e tentam construir caminhos de transformação ao modelo de dominação, exploração e concentração. O querido Irmão dedicou-se sobremaneira em manter viva a memória de Sepé Tiaraju. Sepé foi morto em 7 de fevereiro de 1756, às margens da Sanga da Bica, afluente do Rio Vacacaí, no município gaúcho de São Gabriel. Três dias depois, ocorreram a Batalha de Caiboaté e a morte de mais de 1.500 dos principais guerreiros Guaranis. Encerrava-se assim uma das mais bem-sucedidas experiências de vida comunitária cristã de todos os tempos. Desde então, a resistência do Povo Guarani às frentes de ocupação e colonização tem sido dramática. Milhares de pessoas acabaram assassinadas em guerras, epidemias, confrontos, perseguições, confinamentos religiosos e territoriais. No ano de 2004, o Cimi decidiu estruturar, de modo mais permanente, uma equipe de missionários em Porto Alegre. O objetivo foi o de trabalhar com as comunidades Guarani e Kaingang que vivem nos arredores da capital gaúcha ou dentro dela. Foi quando nos encontramos com o Irmão Antônio. Ele, incansavelmente, fazia memória de Sepé. Era objetivo de vida organizar informações e fundamentos históricos para que a Igreja passasse a reconhecer Sepé como um Santo. Então nos procurou para planejar as homenagens aos 250 anos de martírio de São Sepé Tiaraju. Ele queria que os Guarani protagonizassem as celebrações e eventos futuros. Desde então, convi-


vemos periodicamente para pensar e planejar os caminhos de São Sepé. Em abril de 2004, tendo em vista as homenagens aos 250 anos de martírio de Sepé Tiaraju, organizamos um grande encontro dos Guarani Mbya em São Miguel das Missões. Lá, foi momento de profunda mística e partilha das lutas e esperanças das comunidades, bem como se projetou, a partir de então, um cronograma de atividades com vistas aos 250 anos. Em setembro de 2004, realizamos, pela primeira vez, uma viagem a São Gabriel com lideranças indígenas. Ato impactante na principal avenida da cidade. O dia era 07 de setembro. Mais de duzentos indígenas entraram em caminhada pela cidade e logo no meio da avenida houve o encontro com o desfile militar. Nosso trajeto era a Sanga da Bica, local do martírio de Sepé. Passamos pela ostensiva força militar – cavalos, tanques, caminhões, jipes, fuzis – e fomos com os Guarani ritualizar a vida e fazer a memória do martírio do líder indígena. A partir de então, organizamos o Comitê Sepé Tiaraju. Juntaram-se a este comitê professores, intelectuais, escritores, religiosos, religiosas, pastores e militantes das causas sociais e lideranças indígenas. Realizamos dezenas de reuniões na casa do Irmão e depois na Assembleia Legislativa, onde recebíamos o apoio do gabinete do então deputado Frei Sérgio. O querido Frei colocou seu gabinete à disposição para ajudar na organização do evento e, inclusive, no apoio pela busca de recursos financeiros para viabilizar as celebrações dos 250 anos de martírio de Sepé. Criamos, por fim, um Comi-

Mais de duzentos indígenas entraram em caminhada pela cidade e logo no meio da avenida houve o encontro com o desfile militar.

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Passamos pela ostensiva força militar – cavalos, tanques, caminhões, jipes, fuzis – e fomos com os Guarani ritualizar a vida e fazer a memória do martírio do líder indígena.

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tê Sepé Tiaraju em São Gabriel, e lá nos reuníamos a cada mês na prefeitura da cidade ou na casa da família Assis Brasil. A partir do comitê local, organizamos o grande evento dos 250 anos de Sepé. Neste processo, o Ir. Antônio foi fundamental tanto no que se referia às reflexões, como nas motivações, sempre evangelicamente proféticas e em torno da memória de Sepé Tiaraju, líder de uma luta pelo direito à terra, à vida e ao modo de ser de seu povo. Sepé deu a vida para defender as terras de seu povo. Tornou-se símbolo de luta e resistência. Segundo dizia o querido Irmão Antônio, o “Sepé foi canonizado pela vontade popular, é reconhecido oficialmente como herói guarani missioneiro rio-grandense (Lei nº 12.366, do Estado do Rio Grande do Sul, e Herói da Pátria Brasileira pela Lei Federal 12.032/09), mas é ignorado pelo brasileiro e rio-grandense”. No ano de 2006, realizamos, com importante participação de nosso querido Irmão Antônio, os 250 anos de memória e martírio em São Gabriel. Lá na Sanga da Bica, local do assassinato de Sepé, na Coxilha de Caiboaté, foram realizadas inúmeras celebrações e atos religiosos. Ao longo dos anos subsequentes, sempre em fevereiro, organizamos encontros do povo Guarani em São Gabriel. Lá, se realimentava e se era fortalecido pelo espírito e pelo sangue de nossos antepassados, conscientes de que esta terra sempre pertenceu aos povos indígenas e que deles foi roubada. Nos eventos, o Povo Guarani não comemora os episódios de 250 anos atrás, mas retoma a memória do que ocorreu ao povo para refletir, aprender e seguir lutando por seus direitos, principalmente pelo sagrado direito à terra, com força e determinação. O Irmão Antônio sempre se fez presente e articulou, com apoio de outros segmentos sociais, a Pastoral Ecológica e os Papeleiros, as Comunidades Eclesiais de Base, um


evento denominado de “Bicicletada”, onde se faziam, pedalando, os Caminhos de São Sepé. Nestes momentos de mobilização e articulação se refletia sobre a longa história de desrespeito e violências contra os Guarani, bem como de sua resistência frente à colonização que lhes era imposta. Os eventos constituíamse em espaços de discussão sobre a importância desse povo para a sociedade envolvente, especialmente pelos ensinamentos que transmitem acerca do modo de ser, de viver coletivamente e de exercerem as suas práticas culturais que os fazem fortes e transformadores. Os Guarani, ao longo dos tempos, dispersam-se em núcleos familiares, formando pequenas comunidades por diferentes regiões, em contínuo movimento e ocupando de maneiras diversas seus territórios tradicionais. Se antigamente eles eram donos de toda a terra, gradativamente foram empurrados, com uso da violência, para pequenas áreas, mas isso não significa que os vínculos territoriais tenham sido desfeitos. Passados séculos, os Guarani se fazem presentes, mas isso é visto como algo que incomoda a ordem, que põe em questão a autoridade e a legitimidade daqueles que colonizaram as suas terras. A presença guarani parece incomodar também autoridades, políticos, intelectuais das universidades e, de maneira especial, proprietários de grandes e pequenas áreas de terra. Isso porque este povo traz a perturbadora

Ao longo dos anos subsequentes, sempre em fevereiro, organizamos encontros do povo Guarani em São Gabriel.

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Permanece este Povo na contramão da sociedade capitalista a bradar, como o grito de Sepé Tiaraju: “Alto lá! Esta terra tem dono”, ela é de Nhanderu, é de todos os Guarani e deve servir para todos os filhos da terra e não ficar sob o domínio e a posse de poucos privilegiados.

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memória de um passado sangrento, mas principalmente porque, no presente, sem grandes alardes ou enfrentamentos diretos, eles lutam por justiça, direitos e dignidade. Eles produzem uma resistência cotidiana ao modelo de sociedade e de economia concebido e construído em estruturas humanas individualistas, excludentes, preconceituosas e egoístas. Permanece este Povo na contramão da sociedade capitalista a bradar, como o grito de Sepé Tiaraju: “Alto lá! Esta terra tem dono”, ela é de Nhanderu, é de todos os Guarani e deve servir para todos os filhos da terra e não ficar sob o domínio e a posse de poucos privilegiados. Atualmente, as terras dos Guarani estão quase totalmente concentradas, loteadas, devastadas, ocupadas por empreendimentos diversos, tais como as grandes propriedades para o monocultivo de eucalipto, pinus, soja, arroz e/ou para a criação de parques onde eles não podem adentrar. É importante ressaltar que os Guarani seguem sua trajetória histórica de resistência e luta, acampados entre as cercas das fazendas e as estradas; andando nas proximidades das grandes cidades; percorrendo caminhos entre um acampamento e outro, entre uma terra demarcada e as tantas por eles reivindicadas; confeccionando seus artesanatos e comercializando-os às margens das rodovias ou nos centros urbanos; coletando matéria-prima em “propriedades priva-


das” para seus trabalhos manuais ou para manutenção de seus barracos de beira de estrada; plantando pequenas roças de milho, batata, mandioca, melancia, abóbora, amendoim; criando pequenos animais como porco, galinha e pato. E, nos pequenos espaços de terras que lhes restaram, eles vivenciam sua cultura, suas crenças, língua e tradições, em íntima relação com o sagrado, com o que lhes dá esperança de viver, apesar de toda uma existência de sofrimento e perdas. Resistem, apesar de todas as influências e imposições da sociedade dominante, de aparatos de Estado, das leis e de uma cultura excludente. Eles vão tecendo laços de parentesco e entre-ajuda, convivem, partilham, sonham, protegem uns aos outros, mantêm em segredo seus mais sagrados conhecimentos e crenças, como fonte de vida futura, ritualizando acontecimentos cotidianos. Conhecem um Deus que lhes quer sempre Guarani, um Deus que, através deles, pretende mostrar ao mundo que é possível pensar sociedades alternativas a esta que domina e oprime, a sociedade dos juruá (dos brancos). Com suas formas de viver e de pensar, os Guarani colocam em questão a sociedade, intolerante ao diferente, fundada no desejo de concentração de bens materiais, nossa cultura pensada para fortalecer o individualismo nas relações entre pessoas, nas relações econômicas, políticas, jurídicas, religiosas e educacionais. Irmão Antônio participou dessa luta e resistência Guarani. Por isso ele está presente hoje no meio das comunidades, é lembrado, é memória perene. Ele está presente por seu comprometimento com a defesa da vida, dos direitos, mas, fundamentalmente, por sua militância profética, por um Evangelho encarnado na vida dos Povos. O querido Irmão protagonizou uma importante mobilização pela santificação de Sepé Tiaraju e, com isso, também pretendeu conscientizar a sociedade gaúcha e brasileira sobre a existência deste santo e herói brasileiro no Rio Grande do Sul, sendo contínua presença na caminhada dos povos indígenas da América Latina e multiplicou-se em milhares de lutadores e lutadoras do Povo Guarani, dos Povos Indígenas e todos os Povos Latino-americanos.

Ele está presente por seu comprometimento com a defesa da vida, dos direitos, mas, fundamentalmente, por sua militância profética, por um Evangelho encarnado na vida dos Povos.

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Querido amigo, enfim chegando na Terra Sem Males! Irmão Antônio, Profeta dos catadores e carroceiros Profeta da ecologia, das CEBS, dos sem terra Apaixonado pelas causas dos excluídos Seguiu para a morada celestial! Lá confraternizará com lutadores e lutadoras a vida doada Será acariciado e acolhido com o carinho eterno Estará com outros profetas Que, assim como você, deram testemunhos de vida Ofertadas exclusivamente às lutas por justiça e dignidade Lá estará com os torturados, os exilados, os perseguidos, os desaparecidos Reencontrará os mártires da caminhada As mulheres e homens das CEB’s, os catadores, ecologistas Os indígenas, quilombolas, camponeses, sem teto Lá estará com Sepé Tiaraju líder, santo e guia na busca da terra sem males

Permaneceremos pelos caminhos que ajudou a construir Por uma sociedade plena de justiça e solidariedade Respeitosa nas diferenças e igualitária em direitos Por um outro mundo possível Pelo BEM VIVER. ATÉ O REENCONTRO, querido Amigo! Brasília, 16 de novembro de 2016 Conselho Indigenista Missionário

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Marco Nedeff

Lá será um SER DE LUZ, um ENCANTADO A interceder pelos que aqui permanecem Lutando contra a intolerância, o preconceito, a discriminação Contra a criminalização, a exploração e a exclusão Combatendo a devastação, a contaminação, a concentração dos bens da terra


A família Abib não mediu esforços para a construção do monumento dos 250 anos do Martírio de São Sepé Tiaraju, no próprio local onde aconteceu,na Sanga da Bica, entrada de São Gabriel. Os sete postes lembram os Sete Povos das Missões.

Um pouco do nosso amigo Irmão Cecchin por Guilherme Abib*

Lembramos que o primeiro encontro com o Professor Antônio se deu na Primeira Romaria da Terra aqui, em São Gabriel. Naquela ocasião, o Padre Aléx nos apresentou e, desde então, os encontros se tornaram mais frequentes. Nossa admiração pelo professor foi aumentando à medida que começamos a perceEstátua de Sepé Tiaraju, padroeiro dos Prefeitos, entregue à cidade de São Gabriel pelo Irmão Antônio, em 2013.

ber que se tratava de um verdadeiro Apóstolo do Evangelho, que tomava atitudes simples, porém, de enorme importância em favor dos excluídos. * Advogado, assessor do MST, da CPT, dos Movimentos Sociais e Fundador do PT em São Gabriel.

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Irmão Antônio recebe do Prefeito de São Gabriel, Roque Montagner, a medalha Plácido de Castro, em reconhecimento por relevantes serviços prestados a São Gabriel, em 2013.

Irmão Antônio e Antônio Abib, com a estátua de Sepé Tiaraju, em São Gabriel.

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O Professor Antônio pôs em prática a Teo­logia da Libertação, convicto de que, sem dignidade, não seria possível a busca da felicidade e, por consequência, a salvação. Estávamos diante de um Apóstolo que nos deixou muitos ensinamentos, um mestre imbatível para seguirmos. Acreditamos com toda a força da fé que pessoas como o Irmão não morrem. O Irmão Cecchin sempre nos demonstrou que este era seu interesse, fazer com que renascesse em nossa sociedade o sentimento de vida com fraternidade, como foi o modelo dos Sete Povos das Missões que tinha como líder Sepé Tiaraju. Irmão Cecchin vinha nos visitar e se hospedava em nossa casa, que chamava de “Paraíso na Terra”, seja a trabalho ou por lazer, fazia com que lembrássemos de que a vida é muito mais que a superação do dia a dia a que nos propomos. Irmão Cecchin nos desafiou a olhar mais na face das pessoas, para perceber que ali estavam os descendentes dos índios nativos, na imensa maioria, as pessoas mais pobres. Aprendemos com o Irmão Cecchin que “não entenderemos o presente, sem reconhecermos o passado”. Por isso o Irmão se dizia um prático, não por nada, tinha a necessidade de estar próximo das pessoas por quais lutava, só assim poderia entendê-las, reconhecendo-as e convivendo com elas. O Irmão Antônio queria manter viva a história de Sepé para demonstrar que existiu um modelo humanizado de sociedade e que vale a pena acreditar numa sociedade mais fraterna e humana. No local, aqui em São Gabriel, onde mataram Sepé Tiaraju, é forte a energia que sentimos quando ali estamos. Também naquele local, há uma trilha fundada pelo Irmão que a batizou de Trilha de Sepé. Enfim, pobre somos nós que não damos o devido valor aos ensinamentos de Sepé, pois, condenados estamos a viver num mundo de ilusões. Muito obrigado ao Irmão Antônio!


Agradecemos a oportunidade de conviver e trabalhar pelas águas de Mãe Oxum com o Profeta da Ecologia, Irmão Antônio Cecchin, criador do lindo Movimento ROMARIA DAS ÁGUAS, entre outros.

Por Maria Inês Pacheco1 e Everton Alfonsin2

9 anos da FAUERS* com o Irmão Cecchin

Em nosso último encontro em 2016, na 23ª Romaria, Irmão Antônio mostrou-se cheio de esperança para uma grande festa em 2017, concomitantes entre a 24a Romaria das Águas e os 300 anos da Aparição de Nossa Senhora em São Paulo.

Ficam seus ensinamentos de escuta, denúncias e anúncios. Ficam conosco sua alegria, indignação e força. Ficam a saudade e o exemplo. Fica, também, o registro desse trabalho parceiro (no blog http://romariadasaguasguaiba.blogspot.com.br/ que a Diretoria da FAUERS organizou com o Irmão Antônio sobre estes 23 anos do evento).

1. Diretora de Projetos. ecopedagogiamip@gmail.com 2. Presidente da FAUERS. presidente@fauers.com.br * Federação Afro Umbandista e Espiritualista do Rio Grande do Sul

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Em 2008, a Diretora de Projetos da FAUERS, Maria Inês Pacheco, passa a compor a equipe de organização do evento, e cria a primeira cartilha sobre o movimento, com a colaboração de participantes orientados pelo Irmão Antônio e Matilde Cecchin.

Nosso início Fomos convidados pelo programa Cantando as Diferenças para conhecer, em outubro de 2007, um movimento socioambiental e inter-religioso que acontece à beira do Rio Guaíba. Ficamos encantados. Daí nasceu a participação da FAUERS na organização estadual do programa, e nossas homenagens à Rainha da Ecologia, Mãe das Águas Doces, Oxum. Em 2008, a Diretora de Projetos da FAUERS, Maria Inês Pacheco, passa a compor a equipe de organização do evento, e cria a primeira cartilha sobre o movimento, com a colaboração de participantes orientados pelo Irmão Antônio e Matilde Cecchin, que reuniram vários documentos e reportagens para compilar o que havia acontecido até 2007. Assim nasce, também, o blog que conta esta história. E nossa trajetória com este verdadeiro Irmão. O presidente da FAUERS, Everton Alfonsin, assume o compromisso de levar a grande imagem da Rainha da Ecologia pelas cidades da bacia hidrográfica do Guaíba, movimentando as comunidades no conhecimento deste evento e organizando os festejos. Assim, através desta parceria, aconteceram caminhadas, carreatas, cavalgadas, vigílias e as coletas das águas nas nascentes em vários municípios pelo Rio Grande do Sul. Puro exercício de fé com ação socioambiental e inter-religiosa, com a festa sempre culminando na Usina do Gasômetro, em 12 de outubro.

A criação da cartilha em homenagem à Rainha da Ecologia, Mãe das Águas Doces, Oxum.

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Momentos de Romaria com a liderança do Irmão Antônio 2008 – 15ª Romaria 2009 – 16ª Romaria – Irmão Antônio na reunião de organização com a comunidade em Canoas/RS noticiada no jornal local. 2010 – 17ª Romaria – Abertura do evento na escola Alvarenga Peixoto, com uma ação social organizada pela FAUERS, para a saída da imagem em Romaria pelo Estado, quando o grupo Axé Jovem, da Federação, representa a música-tema do movimento. E o encerramento, na Usina do Gasômetro, quando a imagem retorna para seu santuário.

2011 – 18ª Romaria – a Senhora das Águas chega à Serra Gaúcha, em Canela, e nesse ano é publicada pelo Ministério do Meio Ambiente a 2ª Cartilha do Movimento, organizada pela Diretora de Projetos da FAUERS. 339


2012 – 19ª Romaria – Planejando em agosto, na FAUERS e encerrando em outubro, na Usina do Gasômetro, com o Rito das Águas do Guaíba. Muitas nascentes visitadas, cuidadas, revitalizadas com o movimento.

2013 – 20ª Romaria – Um depoimento com “Abraços aos montes do Irmão Antônio Cecchin” Texto escrito pelo Irmão Antônio, enviado por e-mail e postado no blog do movimento Encontro dos PEREGRINOS MAIS NOTÁVEIS DA ROMARIA, que completa duas dezenas de anos. http:// romariadasaguasguaiba. blogspot.com. br/2013/07/encontrosde-organizacao-da-xxromaria.html

A 12 de outubro próximo, esperamos poder realizar a ROMARIA de número 20. O sonho sempre foi e continua a ser, de que o evento se transforme em autêntico MOVIMENTO DE MASSAS, (muito mais urgente do que aquele que anda por aí pelas ruas e praças) a fim de que, através da valorização da VIDA e da VIDA EM PLENITUDE, tomando como símbolo a ÁGUA, o povão se conscientize e se engaje na SALVAÇÃO DO PLANETA. Motivado então estará para SALVAR A ESPÉCIE HUMANA que está correndo os piores índices de RISCO DE VIDA. Sem salvarmos os HUMANOS, como ficaria o PLANETA? Sem os CRIADOS À IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS, aguardaria a TERRA E TODA A NATUREZA milhões ou bilhões de anos uma nova aurora para HUMANOS MAIS HUMANOS do que nós?... Tudo isso estou dizendo na ânsia de realizarmos a melhor ROMARIA DAS ÁGUAS de todas, em sua 20ª edição. Tivemos altos e baixos, sempre de acordo com mais ou menos preparação e empenho.

2014 – 21ª Romaria – Em parceria sempre. Iniciando a organização do evento na FAUERS, numa bela manhã de agosto, e...

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... organizando o encerramento da Romaria, em outubro, no Parque Náutico. 2015 – 22ª Romaria – O movimento se inicia com debate em Canoas pelo Dia Mundial da Água, em 22 de março, mas de reduzido movimento, com cheia nos rios em outubro, impedindo, inclusive, o Rito das Águas no Gasômetro.

2016 – 23ª Romaria – Um movimento compacto que ocorre na sede da FAUERS, em Canoas, porém profundo e inesquecível e se encerra na Ilha Grande dos Marinheiros. O Irmão Antônio resgata a história do movimento, emocionado e feliz com atendimento às crianças da comunidade onde se localiza o Santuário da Imagem da Nossa Senhora das Águas. 341


Foram quase 10 anos intensos junto a este líder religioso e pela educação popular, voltado ao socioambiental. Estes foram anos de uma grande experiência de vida cidadã e religiosa, à qual agradecemos imensamente...

Flagrantes do Guerreiro Incansável

2011 – no santuário junto aos pilares da ponte na Ilha Grande dos Marinheiros

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Na bicicletada realizada em fevereiro de 2012, em Rio Pardo, com apoio da FAUERS.


Uma releitura de sua liderança educativa Irmão marista Antônio Cecchin, 89 anos – cuja idade não impede de ser organizador de diversas pastorais sociais e da Romaria das Águas – nasceu em Santa Maria/RS e desde cedo optou pela vida religiosa. Aos 18 anos, já lecionava no Colégio Rosário, de Porto Alegre. Graduou-se em Letras Clássicas e em Ciências Jurídicas e Sociais. Em 1959, rumou para Paris para se especializar em Economia e Humanismo. De lá, foi trabalhar no Vaticano, como secretário do Promotor Geral da Fé, até o ano de 1961. Sob o papado de João XXIII, acompanhou as preparações e as primeiras nomeações de teólogos que participariam do Concílio Vaticano II. Na volta ao Brasil, começou a aplicar novos métodos de educação catequética, já influenciado, no Brasil, por intelectuais como Paulo Freire. Ambos sofreram a perseguição pela ação junto aos pobres e oprimidos no tempo da ditadura. Irmão Antônio tem, ainda, uma história de organização, compreensão e ação junto com as populações da periferia de Canoas. Conhecer o Irmão Cecchin foi a alegria que não tive de conhecer Paulo Freire pessoalmente. Em 1994, como integrante da comissão de formatura da turma de Pedagogia na Unisinos, convidei Freire, por telefone, para ser nosso paraninfo. Infelizmente, foi na ocasião em que ele teve seu primeiro problema de saúde e foi impedido de vir nos apadrinhar. Porém, anos depois, venho conhecer Irmão Antônio, verificando que muitas coisas os aproximam. Convivendo com o Irmão Cecchin, experimento o mergulho na corrente das águas límpidas da dialógica que Paulo Freire anunciava:

Um Ecopedagogo no Movimento Romaria das Águas/ RS Por Maria Inês Pacheco Escrito em agosto de 2009. Editado em outubro de 2016. Através deste artigo publicado em 2009, e reeditado em 2015, com muita alegria, sigo atualizando os dados deste lutador pelas questões socioambientais.

o ser humano é um ser de relações pessoais, impessoais, concretas e imaginárias, divinas, espirituais...

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A Federação se orgulha de ter levado a Rainha da Ecologia por tantas cidades do Estado, com sua linda mensagem pelos cuidados das águas, liderada pelo guerreiro Irmão Antônio Cecchin.

Relação significativa que implica em diálogo, diálogo que implica em relação significativa, que requer abertura, pluralidade na singularidade, transcendência, criticidade, contextualização, responsabilidade, desafios, e ação proativa, ‘no’ e ‘com’ o mundo. Leio em sua história a contemporaneidade e a práxis da pedagogia freireana. Na construção da proposta da Romaria das Águas, traz um ‘tema gerador’ que potencializa a ‘reflexão-ação’ para encaminhamentos na resolução de problemas socioambientais nas águas da bacia do Guaíba. Numa ‘atitude democrática solidária’ e de sentimento de justiça com a mãe-natureza e com os catadores, que chama de Profetas da Ecologia, Irmão Cecchin rea­liza uma profunda interligação: 1. busca ‘ligar novamente’ as comunidades com o sagrado da água; 2. busca ‘religar’ as diferentes religiões, que, com suas diferenças, num ritual único, encaminham a coleta das águas nas nascentes e o derramamento destas águas limpas nas poluídas do Guaíba, num gesto de compromisso anual pela despoluição de todos os mananciais.

Romaria das Águas encerrada na Usina do Gasômetro com o Bispo de Cachoeirinha, encarregado da ecologia pela CNBB, e as mães das terreiras que acompanhavam o movimento.

Uma ‘participação sociopolítica-ambiental’ que acontece na ‘transdisciplinaridade’ para a resolução de questões concretas, que carregam em si uma teia abrangente de problemas ecológicos, espirituais, éticos, morais e estéticos.

Para saber mais, no You Tube da Rede Marista, Romaria das Águas: https://youtu.be/w_VcE2DDovM Blog: Romaria das Águas do Guaíba

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2 de fevereiro, Procissão Fluvial de Nossa Senhora dos Navegantes da Ilha da Pintada.

Fé, liberdade, inclusão e respeito às diferentes culturas

Mãe Bia de Iemanjá e Padre Rudimar Dal´Asta, Marista.

por Beatriz Gonçalves Pereira*

Eu, Mãe Bia de Iemanjá, venho, através deste pequeno texto, dizer que o Irmão Antônio Cecchin passou por minha trajetória de vida, deixando um marco de aprendizado, ampliando a valorização e o respeito à tradição de Matriz Africana, visibilizada em nossa Unidade Territorial Tradicional (UTT), situada na Ilha da Pintada, Porto Alegre/RS. Ocorria intensa integração em torno das procissões fluviais e era impressionante a forma como o Irmão Antônio dialogava sobre a questão dos direitos humanos, onde a fé e a cultura de cada povo prevaleciam. * Presidenta da AFROSOL. Educadora Popular na ONG CAMP. Coordenadora da Rede Integrada de Proteção à Criança e ao Adolescente. Delegada Orçamento Participativo. Conselheira da (APA) Área de Proteção Ambiental Delta do Jacuí. Coordenadora do Fundo Ubuntu Povos Tradicionais de Matriz Africana /RS.

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Mães de Santo, Filhas e filhos do Reino de Iemanjá e Oxóssi recebendo a imagem de Nossa Senhora Aparecida das Águas da Ilha Grande dos Marinheiros na comunidade da Ilha da Pintada, em Porto Alegre.

Irmão Antônio, Mãe Bia de Iemanjá, Padre Valério, Jesuíta.

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E, assim era com os indígenas, os(as) negros(as), os(as) recicladores(as), os(as) pescadores(as), os pobres e os(as) esquecidos(as) desta terra. Ele envolvia e encantava com seu chamamento, encorajando todas e todos a tomar o caminho da valorização e da união cultural, avançando através das águas, com Nossa Senhora Aparecida das Águas e Nossa Senhora dos Navegantes. Fazia isso com muita clareza e conhecimento, buscando na Bíblia as palavras encorajadoras e direcionadas aos pobres e esquecidos(as). Dizia Irmão Antônio: “Nossa Senhora Aparecida das Águas surge do fundo do rio em uma rede de pescadores, numa comunidade que passava por um momento de desespero e muita dificuldade e eis que surge a virgem negra, Mãe de Jesus, envolta em um manto azul, com um dragão debaixo dos pés, que significava o mal abatido e exterminado por Nossa Senhora. O mal, hoje, é o sistema que oprime, exclui as populações mais pobres, que são os negros, indígenas, recicladores, pescadores, etc. A ganância, a destruição da natureza que mata todos os dias, as águas dos nossos rios. A Mãe natureza é vida, é a força dos Povos Tradicionais de Matriz Africana, águas de Oxum, Iemanjá, Iara e de tantas outras divindades...água que gera e dá a vida”. Ao longo de sua trajetória, foi impressionante a dedicação do Irmão Antônio com a luta por uma vida digna para as mulheres, reconhecendo tanto as que estavam aqui na terra, quanto as do céu. Sou uma das mulheres agradecidas aqui na Terra, por tudo que construímos coletivamente. Foi através deste processo de doação e dedicação que avancei na caminhada de direitos culturais, juntamente com o nosso grupo no reino de


Iemanjá e Oxóssi, ampliamos nossa participação nas mais diversas manifestações, diminuímos a distância entre nossa tradição e outras religiões, empurrando o preconceito para ser diluído nas profundezas das águas, projetamos as ilhas para o coração da nossa capital, levando o diferente para a população. Reafirmo, tudo isso foi conquistado através de muita fé, trabalho, escuta, diálogo, respeito e movimento, que se ampliava por onde o Irmão passava. Irmão Antônio sempre acreditou que um outro mundo era possível, mas tínhamos que nos envolver e lutar por ele. Para nós, POVOS TRADICIONAIS DE MATRIZ AFRICANA, o Irmão Antônio era do povo Bantu, pois atuava no seu trabalho comunitário nos coletivos e grupos, baseando sua prática numa forma de viver africana que dialogava com a expressão “EU SOU PORQUE NÓS SOMOS”.

Irmão Antônio na cerimônia a Nossa Senhora Aparecida das Águas, no Reino de Iemanjá e Oxóssi na Ilha da Pintada, em Porto Alegre.

“EU SOU PORQUE NÓS SOMOS” Expressão africana

Muita luz, Irmão Antônio, em sua nova morada celestial!

Obrigado!

Festa na Capela de Nossa Senhora dos Navegantes, na Ilha da Pintada em 2 de fevereiro.

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NEGRA MARIAMA* Negra Mariama! Negra Mariama chama pra enfeitar O andor porta-estandarte Para ostentara imagem Aparecida Em nossa escravidão, Com o rosto dos pequenos Cor de quem é irmão. Negra Mariama chama pra cantar Que Deus uniu os fracos pra se libertar E derrubou do trono latifundiários Que escravizaram pra se regalar Negra Mariama chama pra dançar Saravá esperança, até o sol raiar. No samba está presente O sangue derramado

Negra Mariama são todas as mulheres negras que lutam por um mundo sem exclusões.

O grito e o silêncio dos martirizados. Negra Mariama chama pra lutar Em nossos movimentos Sem desanimar. Levanta a cabeça dos espoliados, Nossa companheira chama pra avançar. * Do livro de Cantos das CEBs e da Rede Mística Feminina do Meio Popular.

Arte 348de Teresa Reckziegel de Lucena


Meninas que se identificam com a cultura negra, através das aulas de dança de Maria Bárbara Pereira.

“Procurava alguma coisa que faltava em mim” por Maria Bárbara Pereira•

Meus pais, Olmiro Pereira e Izaura Ferreira Pereira, vieram de Santa Catarina para o Rio Grande do Sul trazendo 8 filhos. Passado um tempo, minha mãe ganhou mais 3, um deles sou eu, que nasci no dia 4 de dezembro, dia de Santa Bárbara. Em Santa Catarina, tem uma igreja onde meus pais sempre iam nas festas que aconteciam lá, e, por isso, me deram este nome, já que tinha nascido nesse dia. * Líder comunitária, educadora popular da cultura negra e Lalorixá.

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Bárbara trouxe o povo de Canoas para a primeira Romaria das Águas, no local do futuro santuário de Nossa Senhora Aparecida das Águas.

Antes de iniciar a Romaria das Águas, pela Ilha, a procissão de Nossa Senhora Aparecida.

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Meu pai veio na frente para arrumar emprego e um lugar para colocar a sua família. Conseguiu um lugar onde já tinham outras casinhas, um dos primeiros lugares de ocupação em Canoas, conhecido como “maloquinhas”, que fica na Rua República na Vila Cerne, onde ainda tem alguns moradores. Depois, meu pai, um homem muito esforçado, comprou um terreno bem na Vila Cerne – quer dizer, neste tempo nem era Vila Cerne, mas por causa de uma figueira que parecia um cerne, então ficou este nome. Ali então, começaram minhas atividades, pois já morava por ali desde os 5 anos. Eu participava dos terços com minha mãe e tios Roberto e Carmen, sempre levando a Santinha nas casas. Com 10 anos, já desafiava as professoras. Teve uma vez que lutei para cantar A Violeteira, pois a professora me dizia: “onde já se viu negra cantar A Violeteira?” e eu respondia: “Pois serei eu a primeira!” As professoras acabavam chamando minha mãe, mas no final eu mostrava que podia e elas acabavam deixando eu fazer. Sempre à tardinha, nos juntávamos para fazer nossa bandinha de lata, cantávamos nos campinhos, pois tudo ali era muito tranquilo. À noite, sempre torcia para que meu tio Aroldo viesse com os companheiros dele trazer a sua bandinha e fazer serenata para minha mãe, que era a irmã dele. Meu tio cantava muito bem. Desta bandinha guardo muito bons exemplos de cultura, de partilha e de trabalho em grupo.


Bem, eu, desde pequenininha, incomodava muito minha mãe, meu pai e meus irmãos. Eu era como se fosse uma vidente, só que eu falava para minha mãe e ela não entendia. Isso acontecia mais à noite, ela, então, acabava brigando comigo e me batendo, pois meus irmãos tinham que sair cedo para trabalhar. Eu gostava muito de dançar, fui trabalhar com 14 anos de babá e foi ali que eu descobri mais a dança. Fundamos na Vila Cerne o time: o Império F.C.. Neste time fui princesa e rainha por 16 anos, e fui a primeira mulher presidenta de time de futebol em Canoas, campeã de juniores e veteranos. Criamos o departamento feminino, o grupo de jovens, uma pequena bateria com o sonho de ser uma escola de samba, que teria o nome de Raízes da Realeza, tudo tão simples, mas, com tudo isso, nasceu em mim uma força, uma energia com vontade de lutar por outras coisas, outros direitos. Com o passar dos anos, apareceu em nossa casa um homem com o nome de Antônio Cecchin, o Irmão Antônio. Meu pai nos avisou que ele viria nos visitar e nós falamos para o meu pai: “Se for mais um político vindo aqui para nos enganar, nós vamos nos esconder lá para trás, para ele não nos ver”. Quando conhecemos o Irmão Antônio, percebemos que ele era diferente, tinha uma outra fala, uma outra conversa.

Primeira celebração afro na comunidade da Vila Cerne, na festa de Santo Antônio.

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Tereza Galvão, líder e coordenadora do Clube de Mães Nossa Senhora da Saúde, relatando sua atuação ao Bispo, D. Antônio Cheuiche.

À esquerda, no cartaz da Campanha da Fraternidade de 1988, Tereza Galvão.

Bárbara, em resgate da cultura afro, através da dança.

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Meu pai e minha mãe, mesmo já vividos de anos..., pois não é que o Irmão Antônio conquistou o coração, a mente e renovou as esperanças deles, com tantas lutas que foram aparecendo e sendo conquistadas vitórias? Criamos um grupo de jovens e vieram muitos negros em maioria, poucos brancos. Uns cantavam, outros tocavam violão, cavaquinho, pandeiro, parecia que faltava alguém para dizer: vocês podem fazer aqui na igreja, aqui na comunidade, e foi que foi feito. Faltava alguma coisa em mim. Já tendo meus filhos Bianca e Joelins Pereira, quando um dia vem vindo o Irmão Antônio, já em minha casa, e fala: “Bárbara, os negros em Porto Alegre já estão se organizando para lutar por seus direitos, conhecimentos e sobre a Pastoral do Negro, e tu tens que estar lá junto para ter mais conhecimento e trazer para o teu povo”. Fui participando e descobrindo mais forte minha energia. O que, tempos atrás, eu achava que era a minha vidência era mais a minha herança negra que gritava em mim. Sabendo disso, ainda tentei fugir, pois já dava aulas de dança, já procurava através da dança buscar e resgatar a cultura afro, renovar energias e os valores do meu povo negro. Mais e mais, fui buscando minhas raízes e fui resgatando essas energias que não poderiam estar só na Igreja Católica. Tudo aquilo que meus pais não entendiam e que através destas forças eu poderia, já desde menina, ter ajudado mais pessoas. Mas tudo tem seu tempo. Eu fui buscar em outros caminhos o que em mim era tão forte que, às vezes, parecia que não era de mim – embora algumas Lalorixás e Babolorixás me mandassem avisar que eu tinha que me desenvol-


ver–, eu não queria aceitar, achava que era só minha aquela força e não a força de um povo, a cultura de um povo, o caminho de um povo. A força dos orixás que procuravam um jeito de fazer o Irmão Antônio ir até nós, embora os caminhos religiosos dele fossem outros. Os orixás o encaminharam para que despertasse em nós, enquanto negros, a imensidão da nossa cultura. Na religião católica eu não achava esta força, esta energia que se apossava de mim e assim, então, fui buscar aprender, saber, praticar, ser envolvida, deixar-me envolver, ter conhecimento e formação religiosa e até chegar a um aprontamento religioso. Hoje, já faz mais de 25 anos que sou de Matriz Africana batizada e Lalorixá, que é o representante maior em cada casa de Matriz Africana, ou dirigente espiritual, seja ele de nação ou umbanda. Criei o grupo Afro Cultural Ylú Ayê, grupo este de resgate afrocultural através da música, dança, seminários afro e de percussão. Criamos o projeto Daloyá do Ylú Ayê que acontece todas as sextas-feiras no Centro das Comunidades, lugar este fundado pelo Irmão Antônio Cecchin através das lutas das comunidades, onde temos artesanato, percussão, dança afro e samba. Continuo dando aula de afro e samba na Estação Cultura, antiga estação do trem em Canoas. Nestas caminhadas, fui parar na Ilha Grande dos Marinheiros, pois ele novamente veio me buscar e pedir para que levasse o povo do Ylú Ayê para, juntos, começar a procissão de Nossa Senhora Aparecida,

Ritual do ofertório negro, em celebração afro, acompanhado pela percussão de jovens.

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Romaria das Águas com rito africano do Abraço Negro.

Irmão Antônio, Bárbara e Matilde, na Romaria das Águas, em 2016.

que, então, se transformou na Romaria das Águas. Nesta caminhada, começou nossa participação como representante da Religião Afro. Íamos em dois ônibus, numa mistura de católicos e o povo de Matriz Africana, pois o importante para nós era o que o Irmão tinha nos passado a luta pelas águas, os cuidados que tínhamos que ter e que tínhamos que passar às nossas crianças, adolescentes e jovens, pois tínhamos ali duas representações fortes de duas mulheres: Nossa Senhora Aparecida, que apareceu aos pescadores, e Mãe Oxum, que representa a força da água doce e da fertilidade. Para nós, de linha africana, foram tantas caminhadas junto ao Irmão Antônio que, para nós, ele passou a ser chamado o Tonico, ao lado de sua irmã Matilde, como nosso irmão mais velho, nosso amigo, nosso companheiro de caminhada e de luta. Hoje, continuo minhas caminhadas com o exemplo de dois grandes homens: meu pai, Olmiro Pereira, que, depois de ter criado toda sua família, não deixou de abraçar as lutas que o Irmão apresentava, na ocupação de terras para morar. Ele dizia: “Se eu não usufruir, meus filhos e netos usufruirão”. E Irmão Antônio Cecchin, que fazia do povo, que ele encontrava no caminho, a sua família, a sua comunidade, sofrendo as dificuldades junto com eles, mas sempre passando esperança de um mundo melhor e mais justo. Homens assim não deveriam morrer, mas ter um jeito de ser eternos para exemplos de outros. Que fique na memória, em nossos corações, em nossa caminhada, que se torne energia do bem da partilha e do amor nesta dança da vida.

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“Põe a semente na terra, não será em vão. Não te preocupes com a colheita, plantas para o irmão.” (J. Thomaz)

A força inesquecível das primeiras sementes por Maria Helena Arrochelas*

Sim, foram três significativos momentos de semeadura, que marcaram a minha vida, uma das inúmeras amigas e admiradoras do Cecchin.

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Missa da Terra Sem Males, em Santo Ângelo, em 2002.

* PRIMEIRA SEMEADURA Nos anos 1980, em Canoas/RS * SEGUNDA SEMEADURA Nos anos 1990, em Petrópolis/RJ * TERCEIRA SEMEADURA Já no início de 2000, em Porto Alegre/RS

* Teóloga. Trabalha com movimentos populares e de igrejas. É diretora do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade/CAALL, unidade da Universidade Cândido Mendes e coordenadora editorial do Boletim REDE.

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PRIMEIRA SEMEADURA Nos anos 1980, em Canoas, no Rio Grande do Sul

Acolhendo conselho do Padre José Oscar Beozzo, deveria procurar o Irmão Antônio Cecchin para começar a entender que, antes de proclamar-me cristã, deveria buscar a justiça principalmente para os mais pobres. Nesse dia apresenteime a um jovem senhor muito alto, muito magro, de olhos brilhantes. E lá fui eu conhecer um acampamento de Sem-Terra, beber pela primeira vez chimarrão em roda, escutar os anseios, as aflições, mas também as pequenas vitórias de um grupo que dormia embaixo de lonas pretas, com dificuldade para tudo, desde cozinhar, lavar, cuidar, fazer reunião depois de um dia de muita labuta e outras tantas aflições que acontecem em um acampamento de quem, simplesmente, procura um pedaço de terra para morar e plantar. Me causou impacto a agilidade do Cecchin no ir, de um lado para o outro, em espaços complicados, sempre sendo escutado por todos com uma impressionante atenção. E lá fui eu conhecer um acampamento de Sem-Terra, beber pela primeira vez chimarrão em roda, escutar os anseios, as aflições, mas também as pequenas vitórias de um grupo que dormia embaixo de lonas pretas...

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SEGUNDA SEMEADURA Nos anos 1990, em Petrópolis, Rio de Janeiro

A instituição em que eu trabalhava, o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade/CAALL, propôs à comunidade petropolitana o desafio de escutar, e apoiar, as lutas dos catadores de rua da cidade de Petrópolis. Com isto, começar a dar os primeiros passos para que esta classe, invisível aos olhos da sociedade, pudesse ser reconhecida. No primeiro momento a preocupação não era tanto com o meio ambiente e sim com a situação dos catadores que, sem oportunidade de estudo, com problemas de saúde, só tinham como ganha-pão a recolha dos restos jogados fora.


Foi com ele que aprendi a conhecer e a ser devota de São Sepé.

E lá fomos de novo beber da fonte do Cecchin que já tinha iniciado um trabalho pioneiro no Brasil com os catadores de rua de Porto Alegre. E lá vieram ele e Matilde dar com os costados em Petrópolis para conhecer a realidade – sempre tão cara aos dois – dos que catavam lixo na cidade e ajudar na criação da Primeira Associação de Catadores da Cidade de Petrópolis, a APUV (Associação de Papeleiros Unidos Venceremos). Associação esta que, incrivelmente pequena, deu o primeiro passo para que a Prefeitura de Petrópolis iniciasse um Programa de Reciclagem para a cidade.

TERCEIRA SEMEADURA Já no início de 2000, em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul

A visita a Porto Alegre para conhecer os mínimos detalhes da vida daqueles esquecidos, aos quais Cecchin se dedicou com tanta devoção, com tanto empenho, com tanto carinho. Andanças emocionadas sem fim..... e que não há como descrever. Só registrar e guardar no coração. Já com as sementes bem plantadas pelo querido amigo, aceitei o convite para participar de um grupo que se reúne duas vezes por ano para refletir e fortalecer compromisso com a vida, e “Vida em abundância”, como diz o discípulo João. Em cada um destes momentos, estar com o Cecchin sempre foi ficar embebida de uma dose cavalar de conhecimento e compromisso, de se juntar às lutas por justiça. Foi com ele que aprendi a conhecer e a ser devota de São Sepé, a

Eu e Irmão Antônio, em Petrópolis, com o líder dos carrinheiros, em 1998.

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Grupo de Emaús, do qual Irmão Antônio fazia parte, que presta assessoria às CEBs, e aos movimentos sociais. Acima, uma das reuniões anuais, em que Irmão Antônio estava sempre presente.

Companheiros no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.

conhecer a Romaria das Águas... Era sempre aquele choque vital de energia e garra e tudo isto envolvido numa simplicidade, numa generosidade, sem fim. Muitas vezes nas reflexões do grupo era só olhar o Cecchin e aguardar o momento que ele “nos puxava para a realidade”! Muito mais teria a dizer como a emocionante visita a Santo Ângelo escutando o coral das crianças guarani, as caminhadas nos Fóruns Sociais Mundiais, a entrega do Prêmio Alceu Amoroso Lima, com as bênçãos do Cecchin, ao Movimento Passe Livre, as mil contações de histórias, a partilha das dificuldades, dos avanços. Assim era o Cecchin, e é assim que ele vive na luta de todos que buscam justiça. Sua determinação, sua coragem se deixam muitas e muitas saudades, nos impulsionam para con­ ti­nuar na luta! Antônio Cecchin, queridíssimo e leal amigo, SEMPRE PRESENTE, em cada pedacinho que luta por justiça!

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Um entrelaçar de vidas, sonhos e lutas

Marco Nedeff

Na Catedral de Porto Alegre, as cabeças indígenas, na crua representação da “vitória” dos portugueses sobre os indígenas .

por José Oscar Beozzo*

Na metade dos anos 1970, fui convidado pelo coordenador do COM (Centro de Orientação Missionária) de Caxias do Sul, RS, o Padre Orestes Stragliotto, para ministrar um curso de história da Igreja na América Latina no centro que preparava missionários(as), leigos(as) e religiosos(as) do Brasil e dos países do Cone Sul. O destino de boa parte dos participantes era a Região Amazônica no quadro da iniciativa da CNBB de “Igrejas irmãs”, em que uma diocese do sul do país apadrinhava outra situada em áreas de recursos limitados tanto em pessoal quanto em meios materiais, mas com enorme riqueza cultural, religiosa e de sabedorias ancestrais. * Historiador, Teólogo, Coordenador-Geral do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular/CESEEP.

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Começava ali uma longa e rica amizade, em que o Cecchin, na sua simplicidade, vasta cultura, apego ao povo e compromisso inarredável com suas lutas, levoume a descobertas emocionantes por caminhos insuspeitados.

Por mais de vinte anos, voltava regularmente para este espaço de formação missionário. Meu curso vinha logo depois das aulas instigantes e profundas do teólogo jesuíta uruguaio Juan Luiz Segundo. Na primeira vez que pisei em terras gaúchas, cheio de curiosidade por conhecer seu povo, sua história e suas lutas atuais, quem foi me receber, em Porto Alegre, a pedido do Pe. Orestes, para levar-me para Caxias, foi o Ir. Antônio Cecchin. Sorridente, solícito, recebeu-me como se já nos conhecêssemos há muito tempo. Começava ali uma longa e rica amizade, em que o Cecchin, na sua simplicidade, vasta cultura, apego ao povo e compromisso inarredável com suas lutas, levou-me a descobertas emocionantes por caminhos insuspeitados. Compartilho como preito à sua memória alguns desses momentos inesquecíveis de duradouro aprendizado.

A HISTÓRIA TRISTE NAS COLUNAS DA CATEDRAL

Nas poucas horas de que dispúnhamos, antes de subir a serra para Caxias, o Irmão Antônio levou-me para conhecer a Catedral de Porto Alegre, dedicada a Nossa Senhora Madre de Deus, cujo título denota a justaposição de palavras castelhanas e portuguesas, em que Mãe de Deus é substituída por Madre de Deus. Sem ser uma substituição, a expressão “che”, típica do castelhano rio-platense do Uruguai e Argentina, entrecortava e coloria a fala do Ir. Antônio, como interjeição recorrente do vocabulário gauchesco. Trata-se de típica permuta linguística nessa fronteira móvel e mutante entre o antigo império espanhol e o império português nas Américas e que deixou suas marcas na língua do cotidiano das populações dessa região A Catedral de Porto Alegre impressiona pela imponência de sua fachada encimada por duas torres, com um vasto corpo de cinco naves e majestosa cúpula, que coroa a nave central na sua interseção com o presbitério. O Ir. Antônio não se perdeu, porém, nos detalhes da grande obra arquitetônica iniciada por Dom João Becker, em 1920, e só concluída sob o arcebispo Dom Vicente Scherer, em 1972, no clássico percurso da “ro360


manização”, em que a velha igreja colonial de estilo barroco, construída em taipa de pilão, foi demolida para dar lugar ao novo templo, cujos desenhos iniciais saíram da prancheta de engenheiros alemães, mas que só foram acolhidos depois de receber no Vaticano os retoques finais do arquiteto da Cúria Romana, Giovanni Batista Giovenale. O Ir. Antônio levou-me direto para as oito colunas maciças que sustentam a cripta. Estavam pesadamente assentadas sobre cabeças de indígenas. As cabeças encontram-se como que esmagadas sob a mole de pedra e cimento, na crua representação da “vitória” dos portugueses sobre os indígenas. Continuam representando sua derrota e permanente subjugação, não rompida até hoje. O filme de ontem é vividamente reprisado no presente nos massacres que se repetem contra os remanescentes dos povos indígenas, que resistem à invasão e roubo das poucas terras que lhes restaram. A derrota militar dos povos indígenas pelas armas desdobrou-se na imposição cultural da língua e dos costumes dos vencedores, assim como de sua religião. Para todo este processo de dominação cultural e religiosa, a Igreja Católica desempenhou papel central, sem dar-se conta talvez, naquela época, deste seu pecado “original” em terras das Américas, a ponto de celebrá-lo e deixá-lo estampado sem pudor nas cabeças esmagadas dos indígenas que sustentam o edifício da catedral metropolitana. Era com indignação que o Ir. Antônio apontava as cabeças sob as colunas para arrematar o quanto a Igreja do Rio Grande do Sul ainda não fizera uma conversão penitencial e reparadora do seu passado colonial e como continuava em pleno século XX a celebrar o que deveria ser objeto de vergonha: uma religião implantada num conluio com o projeto colonizador construído sobre o sangue de milhares de vítimas inocentes que a ele se opuseram. Este percurso foi e

A Catedral de Porto Alegre impressiona pela imponência de sua fachada encimada por duas torres, com um vasto corpo de cinco naves e majestosa cúpula, que coroa a nave central na sua interseção com o presbitério.

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Passeata das mulheres na abertura do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, no dia 23 de janeiro de 2003. Da esquerda para a direita: Ir. Cecchin, Beozzo, Matilde Cecchin.

Em São Paulo, na greve geral do último dia 28 de abril de 2017, os Guarani da aldeia do Pico do Jaraguá foram violentamente reprimidos pela polícia por bloquearem a estrada local. Exigiam a demarcação do minúsculo território ancestral que ocupam naquele lugar.

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continua sendo implementado através da violenta espoliação das terras indígenas, seguido de limpeza étnica com morte ou dispersão dos sobreviventes, que passam a errar pelas estradas ou terminam como párias envergonhados de sua identidade nas periferias de Manaus, Belém e mesmo São Paulo e Rio de Janeiro. Felizmente, nos dias de hoje, um setor importante da Igreja acompanha e apoia o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), na sua defesa dos povos indígenas, de suas terras, de suas culturas e no respeito de suas tradições religiosas ancestrais.

HISTÓRIA QUE SE REPETE NO PRESENTE

No Rio de Janeiro, o estopim das manifestações de julho de 2013, ao lado do aumento das passagens dos ônibus, foi a retomada por indígenas da Aldeia Maracanã, espaço do antigo Museu do Índio, ao lado do estádio em frenética reconstrução para os Jogos Panamericanos, Copa do Mundo e Olimpíada. A um policial que promovia o despejo e indagava como haviam entrado ali, o índio Uratau Guajara respondeu: “Eu estou sempre aqui. Meus antepassados estão por aqui. Você não pode ver? Minha filha aqui foi gerada. Está vendo o nosso coração aceso pulsando no meio da Aldeia? Vocês não podem nos tirar daqui. Vocês podem até levar este corpo físico pra DP, mas nossa alma é impalpável, imaterial, intangível. Nós sempre estaremos aqui. Morreremos por isto” .

Em São Paulo, na greve geral do último dia 28 de abril de 2017, os Guarani da aldeia do Pico do Jaraguá foram violentamente reprimidos pela polícia por bloquearem a estrada local. Exigiam a demarcação do minúsculo território ancestral que ocupam naquele lugar. São quatro aldeias, a Pyau, a Itakupé, a Itawerá e a Ytu incrustadas no Parque, que agora foi cedido pelo governo do Estado para ser explorado pela iniciativa privada em atividades de ecoturismo! Só a


aldeia Ytu tem sua área demarcada, 1, 7 hectare, equivalente a menos de dois quarteirões, o menor território indígena do país. Assim mesmo é acossada pela especulação imobiliária que vem asfixiando o Parque entalado entre a Rodovia dos Bandeirantes, a rodovia Anhanguera e o Rodoanel.

SÃO SEPÉ TIARAJU

O Ir. Antônio foi um apaixonado por recuperar o rosto indígena do Rio Grande do Sul dentro de uma narrativa que o descreve como terra de colonos alemães, italianos ou poloneses que para ali imigraram no século XIX ou açorianos que fundaram no século XVIII o antigo Porto dos Casais. Essa narrativa dominante, veementemente denunciada e rejeitada pelo Ir. Antônio, tenta apagar no Rio Grande do Sul a memória dos seus ancestrais indígenas ou os reconhece apenas como peões das fazendas de gado, como os gaúchos dos pampas. Por isso, atormentou bastante a CEHILA (Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina) até lograr que um dos livretos da CEHILA-Popular fosse consagrado a resgatar a história de São Sepé Tiaraju, o novo São Miguel do Rio Grande. A autora do folheto foi Adélia Carvalho. Escreveu a apresentação da obra Dom José Gomes, bispo de Chapecó, SC (1968-1998), um dos bispos mais comprometidos com a causa indígena e que foi um dos fundadores e primeiro presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário: 1972) e da CPT (Comissão Pastoral da Terra: 1975), da qual foi também presidente. O Ir. Antônio continuou com sua luta junto às autoridades civis para que Sepé fosse reconhecido como um herói do Rio Grande do Sul. Seu empenho se intensificou com a aproximação dos 250 anos da morte de Sepé Tiaraju no arroio de Caiboaté, ocorrida a 7 de fevereiro de 1756. Sua persistência teve êxito. “Em 30 de novembro de 2005, o governador de Rio Grande do Sul promulgou uma lei que instituiu Sepé Tiaraju como herói Guarani e rio-grandense, e disse: ‘É muito importante a valorização da figura de Sepé Tiaraju para o Rio Grande do Sul, para América Latina e, principalmente, para as nações indígenas’” .

Dom José Gomes, bispo de Chapecó, SC (19681998), um dos bispos mais comprometidos com a causa indígena e que foi um dos fundadores e primeiro presidente do CIMI (Conselho Indigenista Missionário).

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Ruínas de São Miguel das Missões, a principal redução guaraníticojesuítica dos Sete Povos das Missões. Declarada pela Unesco Patrimônio Mundial da Humanidade desde 1983.

A insistência de Irmão Antônio logrou que fosse aberto o processo diocesano de reconhecimento da santidade e do martírio de “São” Sepé Tiaraju.

A mesma insistência “opportune importune” do Irmão Antônio logrou que fosse aberto o processo diocesano de reconhecimento da santidade e do martírio de “São” Sepé Tiaraju, já de longa data consagrado como mártir pelas camadas pobres do povo do Rio Grande. O poema de Adélia Carvalho, encomendado pelo Ir. Antônio, recorda a batalha final de Sepé à frente de seu povo contra os exércitos combinados de Espanha e Portugal, na luta desigual de lanças e flechas contra trabucos e canhões: “Morreu o SANTO SEPÉ Como herói, como cristão... Lutando em favor do povo, Na defesa do seu chão... E o lunar de sua testa TOMOU NO CÉU POSIÇÃO Três dias depois, leitor, Nos campos de Caiboaté Foram semeados corpos Dos irmãos de SÃO SEPÉ Contaram mil e quinhentos, Os mortos, lá num sopé” .

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Depois deste vil massacre Incendiaram as missões E os índios sobreviventes São perseguidos quais cães... Quem não fugiu ficou preso... só se via assombrações.

Durante a preparação dos Jogos Olím­picos estavam indígenas de Niterói brigando por uma ponta de praia de onde queriam os vizinhos de condomínio de luxo que fossem expulsos pelo poder público. Um pouco antes, indígenas no Rio de Janeiro haviam acampado nos arredores do Estádio do Maracanã para que não fosse demolida a Casa dos Indígenas, além de uma escola e o centro esportivo do bairro. O então governador Sérgio Cabral havia decretado a desocupação daquela área para entregá-la para as empreiteiras que construíam o novo estádio do Maracanã fazerem ali um grande estacionamento. Era parte da barganha e do escandaloso e espúrio mercadejar de corrupção e propinas que uniu o poder público e o grande capital. Ainda neste mês de maio em que fazemos memória da luta do Ir. Antônio em favor dos povos indígenas, foram os indígenas Gamela do Maranhão atacados e feridos por capangas de fazendeiros que invadiram seu território tradicional, território que o Governo Federal e a Funai nunca terminam de demarcar e proteger, estourado o prazo de cinco anos dado pela Constituição de 1988, para que todos os territórios dos povos indígenas do país fossem devidamente demarcados e homologados.

Missa da Terra Sem Males, em Santo Ângelo, em 2002.

O Governo Federal e a Funai nunca terminam de demarcar e proteger os territórios indígenas, estourado o prazo de cinco anos dado pela Constituição de 1988, para que todos os territórios dos povos indígenas do país fossem devidamente demarcados e homologados.

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Amizade e Compromisso

Romaria das Águas, procissão terrestre na Ilha da Pintada.

por Fr. Luiz Carlos Susin*

Uma tarde de domingo nas ilhas do delta do Guaíba de frente para Porto Alegre – algo parecido com a canção de Gilberto Gil, a tarde de “domingo no parque”, se bem que só na forma. A nossa foi de um passeio patrocinado pelo Ir. Antônio, que * Membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião/Soter. Trabalha há 18 anos na pastoral na Vila Maria da Conceição, bairro popular de Porto Alegre.

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nos falou da fantástica vista da cidade desde as ilhas, e de comunidades de base em formação.


Além da beleza da paisagem e da tradicional comunidade açoriana da Ilha da Pintada, se formavam meio caoticamente corredores de casas arranjadas de migrantes por todas as beiras. Eram tempos de Olívio Dutra como prefeito e de Dom José Mário Stroeher como bispo auxiliar de Porto Alegre. Ambos confiavam à iniciativa pioneira do Ir. Antônio a busca de reforço. Olívio nomeou-o subprefeito. Quanto ao reforço pastoral, para tanto era o nosso passeio na tarde de domingo. Não era o nosso primeiro contato com Ir. Antônio. Ainda jovem e no interior do Estado, eu tomei contato com a forma revolucionária de sua pedagogia freiriana na catequese, e soube das perseguições e torturas sob a ditadura. No final da década de 1970, entre a Romaria da Terra que começava em São Gabriel/ RS sob a invocação de São Sepé, e a coragem dos agricultores sem terra em Encruzilhada Natalino, já estávamos acostumados à presença discreta mas incisiva e proativa de Ir. Antônio. Quando regressei de meus estudos de teo­logia na Europa, no começo de 1984, topei com a Romaria da Terra em Canoas, onde era visível, no novo bairro que surgia de uma espetacular ocupação de migrantes operários e suas famílias, a capacidade de articulação popular por parte do Ir. Antônio com sua irmã Matilde. Eles moravam lá, no meio do povo. E os capuchinhos moravam ao

Romaria da Terra realizada em 1984 nas ocupações de Canoas.

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Irmão Antônio Cecchin no barco, na Romaria das Águas, acompanhando Nossa Senhora Aparecida das Águas.

Nossa Senhora Aparecida das Águas, na frente do Galpão de Reciclagem, onde o povo gosta de acender velas.

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lado. Portanto, não deve ter sido difícil ao Ir. Antônio imaginar que os capuchinhos seguiriam com ele para as ilhas. E, de fato, a nossa escola de teologia e espiritualidade franciscana teve desde o começo a clara opção de pastoral popular em periferia. O passeio, como aquele da canção do “domingo no parque”, terminou sangrando, mas espiritualmente, com uma pergunta direta ao coração. E começou uma nova etapa pastoral, com diversos capítulos, para nós, os capuchinhos. Junto às Ilhas, em torno do primeiro barracão de catadores e recicladores de resíduos, junto ao povo saindo do lixo para a dignidade, somaram-se muitas energias e alianças. Nós nos situamos na pastoral presbiteral até formarmos uma comunidade de presença estável no fundo da Ilha da Pintada. As irmãs franciscanas de Nossa Senhora Aparecida assentaram comunidade na Ilha das Flores. As irmãs salesianas vieram dar seu contributo. Mas antes dos religiosos, leigos como a inesquecível Belinha e seu grupo já se articulavam com mulheres das Ilhas, e um tempo de grande dinamismo floresceu e tornou as Ilhas mais bonitas. Começou a Romaria das Águas, que se estendeu até as nascentes dos rios que desaguam no delta do Guaíba. E a cooperação macroecumênica, um ecumenismo da religiosidade popular afro-católica. O passeio e o compromisso que decorreu no espaço das Ilhas não foram a última aliança brotada


das intuições do Ir. Antônio. Sobre o terreno de um firme compromisso comum cresceu uma amizade que não precisava de explicações nem de muita manifestação, “rocha firme em tempestade” (Shakespeare), que se tornou fraternidade e confidências, um olhar comum sobre o mundo desde o compromisso com opções evangélicas. Na ESTEF, a escola de teologia, Ir. Antônio sabia estar em casa, e nas tantas iniciativas de caráter popular, tinha liberdade inclusive de reclamar a cooperação com a autoridade de quem sabia do compromisso comum. A amizade, de fato, esteve sempre associada à certeza do compromisso comum. Uma lição que herdamos de Ir. Antônio é que não importa tanto a classe e o lugar das pessoas nas hierarquias. O que importa é se, desde onde se anda, se pode assumir um compromisso evangélico, o da opção preferencial pelos pobres, a prioridade do mestre Jesus. Desde os tempos da ditadura, foi amigo do cardeal Scherer, e não teve amigos somente na esquerda política: antigos alunos dos tempos do Rosário que andaram por políticas mais à direita

Reunião do Grupo Emaús.

Festa do Divino Espírito Santo, na Ilha Grande dos Marinheiros. As comunidades estavam presentes com suas bandeiras.

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Irmão Antônio equilibrou seus momentos de nervosismo profético com o bom humor e a confiança de que o Reino, afinal, é de Deus. Conheceu a fundo a miséria e até a mesquinhez humana, mas não deixou de apreciar a poesia e a beleza em todas as suas formas, encontrando-a até nas coisas mais simples, no mesmo lugar da miséria.

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conservadora, com seus atávicos privilégios de classe, tinham também pu­ xões de orelha ami­ gáveis. Na Igreja e nos movimentos sociais, tudo e todos que podiam somar eram bem-vindos com suas doses de compromisso. Ir. Antônio aparecia assim cada vez mais aos meus olhos como uma pessoa que sabia lidar com paradoxos, ao estilo do administrador do evangelho de Lucas: canalizava para bons projetos até o dinheiro eventualmente mal havido de quem estivesse disposto a ajudar na opção pelos pobres, ou, melhor do que isso, canalizava o privilégio de uma boa educação disposta a servir nesta opção evangélica. Por isso, já no final, não foi discutir a fundo o recurso da Petrobras: lançou-o para os diversos projetos de reciclagem da área metropolitana. Equilibrou seus momentos de nervosismo profético com o bom humor e a confiança de que o Reino, afinal, é de Deus. Não esqueceu nem o latim de sua formalidade escolar, mas citava-o para descansar e entreter-se com os amigos. Conheceu a fundo a miséria e até a mesquinhez humana, mas não deixou de apreciar a poesia e a beleza em todas as suas formas, encontrando-a até nas coisas mais simples, no mesmo lugar da miséria. Vigor e ternura, amizade e disciplina, ímpeto e paciência, paradoxos que se tornaram uma herança a frutificar.


Uma referência por Leonardo Boff*

O Irmão Antônio Cecchin é uma referência no Brasil, especialmente no Rio Grande do Sul e em Porto Alegre. Há muitos anos o conheço e visitei o trabalho que fazia com os catadores de materiais recicláveis na cidade de Porto Alegre, cujo centro se encontrava numa das Ilhas do Guaiba. Participou como fun-

Leonardo Boff e Antônio Cecchin.

dador dos principais movimentos sociais e era grande animador das Comunidades Eclesiais de Base.

* Teólogo, escritor, articulista do JB online e um dos signatários da “Carta da Terra”. Tem destinado esforços na busca de novo paradigma cosmológico e ecológico.

De sólida formação acadêmica, estudou em Paris e trabalhou por anos em Roma. Mas fez uma decidida opção pelos pobres. Durante o regime militar foi preso por duas vezes e na última barbaramente torturado, especialmente fazendo experiências na cabeça. Refeito, continuou o seu trabalho junto com sua irmã Matilde até o fim. Ainda nos dias 4, 5, 6 de novembro estivemos juntos num encontro com o grupo Emaús em Correias, Petrópolis. Já víamos os limites de sua saúde. Era uma pessoa de virtudes eminentes. Não tenho dúvidas de que era um santo: tomado pela paixão por Cristo e pela paixão pelos pobres, catadores e papeleiros. Se triste é a partida do amigo deste mundo, alegre é a chegada ao Reino dos justos junto a Deus. Pois é lá que, seguramente, está junto com os milhares que ajudou ao longo da vida. 371


Cecchin, nosso irmão maior Romaria da Terra, em 1984, na Vila Santo Operário.

por Ivo Lesbaupin*

Cecchin foi uma presença marcante no grupo de Emaús e para mim, pessoalmente. Sempre lembraremos suas intervenções apaixonadas sobre a organização dos papeleiros no Rio Grande do Sul, para a qual ele deu tudo de si. Na primeira prefeitura de Porto Alegre do PT, de Olívio Dutra, foi apoiado e conseguiu uma série de melhorias para eles. O fato de que o governo Lula tenha dado uma atenção significativa às necessidades e reivindicações dos papeleiros engrandeceu Lula aos olhos do Irmão Cecchin. * Sociólogo, professor da escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Equipe de Assessoria do ISER (Instituto de Estudos da Religião - RJ).

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Aliás, a despeito de todas as críticas, Cecchin se manteve sempre fiel ao PT, que ele continuava considerando comprometido com os pobres e oprimidos: era assim que ele se sentia, era assim que queria ver o Partido dos Trabalhadores. Na época em que ocorreu o conflito entre Tarso Genro e Olívio Dutra, ele sofreu muito, não admitia que pudesse haver este tipo de disputa interna. Outra preocupação constante sua era com as CEBs, que eram para ele a verdadeira Igreja. Insistia frequentemente que devíamos nos dedicar à defesa e à dinamização destas comunidades. Lembrava que elas estavam na origem do MST – outro movimento ao qual estava muito ligado – e estavam envolvidas nas lutas em favor dos direitos dos trabalhadores. Foi um batalhador incansável da causa de São Sepé Tiaraju – de quem eu ouvi falar pela primeira vez através dele, Cecchin –, líder da resistência dos povos indígenas que morreu assassinado na luta contra os poderes dominantes de então, Portugal e Espanha. Uma das primeiras cartilhas populares, em preto e branco, ainda nos anos da ditadura, era justamente sobre Sepé Tiaraju, que até hoje tenho em casa. Mas Cecchin não era apenas um homem comprometido com as lutas dos setores populares, com as lutas dos mais simples, ele tinha muita sensibilidade e afeição por cada um e pude testemunhar isso várias vezes na convivência de quarenta anos do nosso grupo. Na última ocasião em que esteve conosco, durante o almoço falou dos tempos da ditadura e, referindo-se ao fato de que tinha um certo tremor nas mãos, disse “não é Parkinson, é consequência das torturas” (quando de sua prisão na ditadura, no início dos anos 1970). Cecchin será sempre nosso irmão maior.

Grupo Emaús, em encontro anual.

A despeito de todas as críticas, Cecchin se manteve sempre fiel ao PT, que ele continuava considerando comprometido com os pobres e oprimidos: era assim que ele se sentia, era assim que queria ver o Partido dos Trabalhadores.

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A voz jesuânica defensora dos “profetas da ecologia” por Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães*

Ao longo de nossa vida, precisamos de referenciais humanos éticos, que sejam próximos e encarnados em nosso contexto histórico, capazes de concretizar verdadeiras balizas em nossos discernimentos para as opções da caminhada. Em linguagem cristã, dizemos que as comunidades de fé precisam da luminosidade contagiante das testemunhas, ou seja, de seres humanos que encarnam, como Jesus, em suas palavras, posturas e atitudes, o próprio Evangelho. Pessoas que sejam íntegras, libertadas para a práxis da justiça e da misericórdia, de vida simples, acessível e coerente com os valores do Reino e, sobretudo, proféticos na defesa da cidadania dos empobrecidos e marginalizados, da dignidade da vida e da paz. * Doutor em Ciências da Religião, Teólogo, Membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião/Soter. Professor de Cultura Religiosa no Departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais/PUC-MG.

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Antônio Cecchin foi uma dessas pessoas belas e imprescindíveis. Pessoas que, por causa do testemunho de vida que concretizam, deixam marcas profundas nos olhos e no coração de quem com elas convive em seu cotidiano. Quem teve a oportunidade de conhecer de perto a pessoa do Cecchin, imediatamente se deu conta de estar diante de uma pessoa totalmente descentrada de si, tomada por aquele sentimento de urgência que o coloca a serviço da inclusão social dos oprimidos. Apaixonado pelo projeto salvífico de Deus, anunciado e testemunhado por Jesus de Nazaré, Cecchin viveu inquieto e constantemente desafiado pelas graves contradições da realidade urbana. Aproximou-se dos movimentos sociais e irmanou-se de corpo e alma na luta pela cidadania, tornando-se a voz dos “papeleiros”, em quem ele reconhecia verdadeiros “profetas da ecologia”. Como sou catequista, já tinha lido sobre sua contribuição original na concretização de uma catequese popular libertadora, baseada na pedagogia de Paulo Freire, capaz de empoderar os catecúmenos para uma caminhada transformadora da sociedade. Essa pedagogia catequética fraterna libertadora fez dele um homem perigoso aos olhos dos conservadores. Por isso foi preso como subversivo durante a ditadura militar. Como sou assessor das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, também já tinha conhecimento do intenso envolvimento de Cecchin na caminhada das comunidades de base no Rio Grande do Sul. Foi um cristão profundamente crítico, no sentido profético, do cristianismo morno, conservador, assistencialista, vazio e ritualista convencional tão predominante na Igreja Católica. Por perceber com clareza solar a intrínseca dimensão sociotransformadora de toda ação evangelizadora autêntica, viveu a fé cristã encarnada no compromisso com a construção diária de outra sociedade possível. De mãos dadas com os movimentos populares, viveu a vida cristã traspassada pela unidade indissolúvel fé-vida, fé-sociedade, fé-política, fé-ecologia. Conheci de perto tão somente os seus últimos anos de vida, de modo especial nos encontros do Grupo Emaús, anos dedicados integralmente a promover, com entusiasmo jesuânico intrépido e contagiante, a conquista da dignidade cidadã dos catadores e recicladores.

Escrevo essas palavras com saudade viva de sua pessoa e com muita gratidão a Deus no coração pela graça de ter conhecido de perto e convivido com esse santo homem de Deus, Antônio Cecchin, um admirador confesso da luta indígena de São Sepé Tiaraju.

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Cheiro de Deus por Frei Betto*

Há muitas décadas me deixei cativar pelo Irmão Antônio Cecchin. Conheci-o em 1962. Ele marista, assistente da JEC gaúcha; eu, ex-aluno marista, dirigente da JEC nacional. Nunca mais nos perdemos de vista. Havia nele características que me chamavam a atenção: a fala ponderada, a teimosia evangélica, as mãos e os pés grandes, a voz desafinada, os gestos incisivos, o destemor frente à hierarquia eclesiástica, a ousada humildade, o rosto caricato, a vocação catequética, a fidelidade à causa dos pobres. Entre tantos atributos, um se destacava: o senso de liberdade. Cecchin emancipou-se dos maristas; independizou-se de seu bispo, o cardeal Scherer; irmanou-se à Teologia da Libertação e à Igreja dos Pobres. * Escritor e Religioso. Seguidor da Teologia da Libertação, é militante de movimentos pastorais e sociais.

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Quando a repressão da ditadura militar me obrigou, em 1969, a deixar São Paulo e deslocar-me para o Rio Grande do Sul, busquei abrigo na Rua Coronel Vicente, na ermida acolhedora de Cecchin e Matilde. Eram ali os meus sábados, estudante de Teologia em São Leopoldo. Abri-me com Cecchin: eu andava metido na subversão até a medula. Conciliava os estudos de teologia nos jesuítas com a montagem do esquema de fronteira para fuga de militantes revolucionários apadrinhados por Marighella. Precisava de um endereço para receber correspondência com nome falso. Cecchin disponibilizou-me o dele. Este o motivo por que veio a me fazer companhia tão logo fui preso em Viamão e levado ao DOPS de Porto Alegre, em novembro de 1969. Cecchin não demonstrou a menor surpresa ao ser preso. Foi como se já esperasse. Pelo contrário, injetou ânimo e otimismo nos companheiros de cárcere. Voltei a reencontrá-lo no empenho pela multiplicação das CEBs Brasil afora. Dotado de profundo senso pedagógico, consagrou-se ao trabalho de base. Nunca foi de escrever muito nem de proferir palestras. Mas, ao “pé do fogo”, saboreando seu chimarrão, abriu consciências e corações na direção de um novo modelo de Igreja e de “um outro mundo possível”. Dedicou-se ao trabalho nas ilhas do Rio Guaíba, em Porto Alegre. Foi catar cidadania no lixão. Evangelizou-se ainda mais no contato com aqueles homens e mulheres identificados com a vida oculta de Jesus. Cecchin trabalhou, há muitos anos, no Vaticano, na congregação responsável pelos processos de canonização. Ali aprendeu que a “licitação” de acesso aos altares não difere muito, infelizmente, das que participam as empreiteiras quando se trata de sugar o dinheiro público. As santidades oficiais padecem também de nossos pecados pessoais e estruturais. Cecchin retornou com outra ótica do que seja a santidade. Para ele, santos eram Sepé Tiaraju, o Padre Cícero, a irmã Dorothy Stang. Santos eram os catadores do lixão impregnados da bem-aventurança da pureza de coração. Hoje, posso também afirmar: santo é Antônio Cecchin. Meu santo protetor, professor, confessor. Cada vez que o encontrava sentia um forte aroma no ar: o cheiro de Deus.

Dotado de profundo senso pedagógico, consagrou-se ao trabalho de base. Nunca foi de escrever muito nem de proferir palestras. Mas, ao “pé do fogo”, saboreando seu chimarrão, abriu consciências e corações na direção de um novo modelo de Igreja e de “um outro mundo possível”.

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As páscoas do Irmão Antônio e as páscoas do povo por Marcelo Barros*

O

lusco-fusco

da

tarde

anuncia a noite, da qual os textos eclesiais antigos dizem que “esta noite é mais luminosa do que o dia”. No horizonte, um imenso luar une o céu e o reino das águas criando um caminho dourado que pode nos recordar que chegou a grande festa. É a primeira lua cheia da primavera. Enquanto povos indígenas do Nordeste celebram a alegria do verde que se espalha pelo sertão, castigado pela seca, neste ano de 2017, as Igrejas cristãs do Ocidente e do Oriente se unem às sinagogas judaicas e todas as comunidades de fé bíblica festejam nesse grande sábado as muitas Páscoas do Amor Divino por esse mundo. A Páscoa da criação se renova cada ano na volta da primavera. A Páscoa da libertação dos hebreus continua em tantas histórias de conquistas dos oprimidos. A do Messias que, para os judeus, está para vir e para os cristãos, começou a se realizar na morte e ressurreição de Jesus de Nazaré... E as Páscoas da humanidade hoje... * Monge, Teólogo Biblista, escritor, um dos fundadores do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), membro da Comissão Teológica da Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (ASETT), que reúne teólogos da América Latina, África, Ásia e ainda minorias negras e indígenas da América do Norte. Coordenador de uma coleção sobre a teologia do pluralismo religioso e um cristianismo aberto a outras culturas e religiões.

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É nessa luz pascal que medito na Páscoa completada do Irmão Antônio Cecchin, companheiro e amigo que consagrou sua vida a testemunhar essas diversas páscoas de Deus. Sem dúvida, o testemunho de vida de um irmão ou irmã que é, para nós, referência de fidelidade à profecia serve para que os irmãos e irmãs que entram em contato com esse testemunho percebam que vale a pena viver profundamente aquilo no qual se acredita. Não estamos sozinhos. A profecia é, sim, vivida no mundo de hoje. Quase sempre, a primeira vez que encontramos alguém assim nos marca muito. Foi exatamente o que ocorreu comigo, quando, nos meados dos anos 1970, passei pela primeira vez em Porto Alegre e tinha a pessoa e a casa de Antônio Cecchin como referência. Ele me recebeu como um companheiro a quem já conhecesse há mais tempo. Contou-me suas experiências de educador e como, naquele tempo, se dedicava a transformar a Catequese doutrinal em uma mistagogia, uma iniciação amorosa dos catequizandos na história da salvação. Partilhou comigo suas experiên­ cias quase folclóricas, na época em que trabalhou como marista em Roma, na Congregação para as Causas dos Santos, organismo da cúria romana que cuida dos processos de canonização. Para mim, era quase inimaginável pensar o Irmão Antônio trabalhando na cúria romana. Mas, “quem te viu, quem te vê”, aquele período o ajudou a ser mais crítico e mais exigente com relação à Igreja que ele sempre amou muito. Voltei a encontrá-lo no começo dos anos 1980, quando, como membro do secretariado nacional e assessor da Pastoral da Terra, fui enviado pela CPT ao primeiro acampamento de Ronda Alta e assessorei as primeiras romarias da Terra que se fizeram no Rio Grande do Sul. Ali, encontrei o Irmão Antônio Cecchin que já era um patriarca, respeitado por todos. Percebi, então, que, naquele contexto, ele exercia uma função difícil de ponte entre tendências diferentes que já se enfrentavam na caminhada das pasto-

Irmão Antônio, na verdade, Lourenço José, em Roma.

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Daniel de Andrade

Ocupação da Fazenda Anoni, lutas do campo e da cidade unificadas.

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rais e movimentos sociais. Penso que ele ajudou muito os(as) companheiros(as) a permanecerem sem­pre ligados às bases, sabendo apoiar e estimular a caminhada das bases, mas sem dirigi-la. Nesse caminho, ele, junto com Matilde, aprofundou o trabalho com os irmãos e irmãs recolhedores de material reciclado nas ilhas do Guaíba. Ao mesmo tempo que inspirava em todo o Estado uma profunda releitura da saga dos Guaranis e das lutas de Sepé Tiaraju, o santo que os gaúchos canonizaram e que a lenda convida a vermos acenando para nós na luz de uma estrela do Cruzeiro do Sul. Para o Irmão Antônio, a inserção nas bases era não apenas um fruto de uma convicção social política ou de uma leitura do mundo a partir da esquerda. Era, sim, expressão de uma profunda espiritualidade que o fazia sentir na vida do povo a vivência do reino de Deus e dos apelos do Evangelho pela justiça e fraternidade. Ele viveu sempre essa fé, alimentada por uma vida de oração pessoal. Ele aprendeu a viver a oração na solidão e com pequenos grupos de base, como também, em casa, com sua irmã Matilde. Já com sua congregação e com a hierarquia, sempre procurou o diálogo e a relação fraterna, mas isso não impediu que seu ministério profético de irmão fosse quase sempre vivido na diáspora. Desde o começo dos anos 1980, muitas e frequentes vezes, o encontrava nas atividades das pastorais sociais. Estivemos juntos em muitas ocasiões, sem falar em momentos excepcionais, como a viagem que, ainda nos anos 1980, fizemos juntos a Cuba. Eu ia para dar um curso bíblico a companheiros do Partido e ele integrava um grupo de cristãos em contato com grupos cubanos. Éramos umas 30 pessoas que viajávamos juntos. Em Havana e arredores, várias vezes, nos encontrávamos em visita para conhecer grupos e projetos. Sem dúvida, o Irmão Antônio era o mais entusiasmado de todos. Também o encontrava em todos os encontros do grupo Emaús, do qual comecei a participar desde o início dos anos 1980 e ele já era membro do grupo


antes de mim. Confirmo o testemunho de outros irmãos sobre a participação ativa e original de Antônio, com suas palavras sempre inflamadas do zelo revolucionário e suas provocações que muitas vezes subvertiam a tentação do grupo a ser por demais sério e racional. Nas celebrações eucarísticas, com as quais começamos o domingo, era sempre o primeiro a chegar na capela. Quando eu chegava para organizar o ambiente, já o encontrava orando. Sempre que precisávamos, ele preparava os cânticos da celebração com todo amor e dedicação. Em novembro do ano passado, eu estava na casa de Luiz Alberto e Lúcia, no Rio, quando, junto com Luis Carlos Susin, chegou o Irmão Antônio. Eles vieram subindo juntos para Correias, onde teríamos o encontro de Emaús. Como sempre, o vimos cheio de bom humor e energia. Puxava os mais diversos assuntos. Ele se mostrava interessado por tudo o que estava acontecendo. Uma semana depois do encontro, ele partiu. Pelo modo inesperado como isso aconteceu, ficamos chocados e sofremos. No entanto, as culturas tradicionais afrodescendentes nos ensinam que, quando alguém parte, depois de uma vida longa e fecunda, mesmo se a saudade nos entristece, a fé nos faz participar da festa do céu. No evangelho, ao se despedir do seu grupo de discípulos e discípulas, Jesus afirma: “Quando vocês não puderem mais me ver, ficarão tristes e chorarão. Mas, eu hei de ver vocês de novo e, então, a tristeza de vocês se transformará em alegria e essa alegria será tão grande que ninguém poderá roubá-la de vocês” (Jo 16, 20 - 21) . Querido Irmão Antônio, patriarca de nossas lutas e da caminhada do povo gaúcho e da retomada da saga de Sepé Tiaraju, nessa celebração pascal, assumimos como nossas as lutas e dores pelas quais passa o povo brasileiro nesse momento difícil de um governo ilegítimo e de um Congresso que não nos representa. Aprendemos de você a não largar mão da esperança e a unir essa caminhada à Páscoa de Jesus. Queremos sim ver a presença dele no rosto de cada irmão e irmã sofredor e, junto com você, celebrar a alegria de uma Páscoa que será sem fim.

Irmão Cecchin liderou a campanha pela canonização do Santo Sepé Tiaraju, pela sua forte identificação com a luta da comunidade gaúcha.

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“Combati o bom combate”

São Marcelino Champagnat

São Paulo em II Timóteo 4,7

por Matilde Cecchin

Antônio Cecchin dizia: “Vim a Porto Alegre aos nove anos, não para ser Marista, mas para ver o Guaíba”, e aos 62 anos de idade, vê-se rodeado do Guaíba por todos os lados. Todo o Arquipélago do Guaíba necessita dele e ele vai abraçar as Ilhas e todas as suas águas, criando a Romaria das Águas. Quem poderia imaginar que, anos depois, aquela parte da humanidade, ainda capaz de sonhar com outro mundo possível, estivesse com olhos e ouvidos atentos ao que se passava, a partir das Ilhas, em Porto Alegre, com o Orçamento Participativo, percebendo no Fórum Social Mundial, uma alternativa para combater a ditadura do poder financeiro. 382


No dia 18 de abril de 1989, o prefeito de Porto Alegre, Olívio Dutra, enviou ao Irmão Antônio o seguinte ofício: “Tendo em vista os contatos mantidos com a comunidade e a decisão da Administração Popular de escolher como seu representante junto à população, pessoas capazes e com trabalho em favor dos trabalhadores pobres desta cidade, vimos, usando das nossas atribuições de Prefeito de Porto Alegre, designar V. S. representante desta administração junto ao Bairro Arquipélago. Certos de que essa designação enriquecerá nosso trabalho de construção de uma sociedade fraterna, subscrevemo-nos atenciosamente.” A primeira preocupação de Cecchin foi relacionada à comunicação: já que ilhas são isoladas por água, seria importante criar um jornalzinho, um boletim informativo das Ilhas, “que vai funcionar como cimento de união entre os grupos de pessoas organizadas, entidades, que caminham conosco rumo a reivindicações sempre maiores para o bem de todos, e poderão trazer suas informações para que todos saibam que estamos construindo nossa democracia participativa” (Dezembro de 1989). Chegou o momento em que a Ilha da Pintada elegeria seu Conselho Popular: “panfletos, cartazes, carros com alto falante, corpo a corpo e até boca de urna. Nada faltou na campanha eleitoral com eleições realizadas em uma tarde de sábado. (...) Apesar do dia chuvoso, 3 mil eleitores compareceram” ( ZH de 02/04/1989). A organização dos Conselhos Populares, com origem nas Ilhas, foi a antevéspera do Orçamento Participativo.

O prefeito Olívio Dutra, acompanhado pela esposa, Judite, participa do encontro das CEBs, das Ilhas.

Na foto abaixo, Irmão Antônio exercendo sua liderança no Fórum Social Mundial.

“A criação de subprefeituras na Grande Glória, Restinga e Zona Norte aos moldes da já existente nas ilhas do Guaíba, faz parte do processo de descentralização administrativa desenvolvido pela 383


BOA LUTA!!! Olívio Dutra

Frente Popular em Porto Alegre...” (ZH de 08/05/1989) Mais uma vez realizava-se a Profecia: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais porque de ti sairá o Guia que há de apascentar meu povo.” Mateus, 2,6

Irmão Antônio atuou conforme solicitação de Olívio Dutra.

Na Celebração do A...DEUS, Olívio esteve presente até o final. Suas palavras de despedida ao Irmão foram:

Medalha Cidade de Porto Alegre, em 1992.

“ Outras medalhas recebidas, em reconhecimento à representação das comunidades junto ao poder público.

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O Ir. Antônio Cecchin partiu des­ ta para outra di­ mensão da vida, onde já deve estar sendo recebido por todas as Entidades Divinas com o carinho Em 2015, na Ilha Grande e a fraternidade que soube espalhar com sua fé e prática de vida aqui, entre nós, os que ficamos curtindo a sua saudade e buscando levar adiante o seu exemplo de luta contra todas as injustiças e pela construção de Um Outro Mundo Possível. Por isso, o Ir. Antônio Cecchin estará sempre presente entre nós.” Olívio Dutra


Irmão Antônio esforçou-se para criar políticas públicas que atendessem às maiores necessidades da população excluída, juntando a Fé com a Política.

Foram muitos os diplomas e sinais de reconhecimento ao trabalho de Antônio Cecchin durante sua trajetória.

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Poemas da ÁGUA por Maria Carpi

1 Que fazer com a água da Árvore nas árvores? Que fazer com as searas maduras e a tua fome? Que fazer com o sol enquanto as árvores dormem? 2 Uma água somente é água se for o inteiro rosto e o rosto, maduro, não o sentem as palavras. Abro os olhos quando afundo e os fecho quando ressurjo, a dar-me a água de nos encontrarmos, de repente, uma árvore trás os muros. Arte de Teresa Reckziegel de Lucena

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3 Essa água que sempre corre, em nós se demora como uma ovelha. Essa água sempre submersa, carrega-nos às alturas como uma pomba. Essa água sempre clara, é a sombra onde nossa luz descansa. É uma água, por perdida, achada. 4 Apesar dos braços detidos, apesar dos sonhos paralisados, apesar da impronunciada palavra, da Água Viva que nos busca, nenhuma gota ficará retida.


Origem da Romaria das Águas A criação do evento realizado anualmente na forma de uma PROCISSÃO FLUVIAL deveu-se a duas intuições que provocaram sentimentos contraditórios no Irmão Antônio:

“Romaria das Águas faz o povo se reunir pra cantar sua alegria e rezar pra Mãe Maria.”

ENCANTAMENTO pela água desde a infância, somado à opção pelos pobres que introduziram nos rituais católicos a exuberância da sua cultura. A culminância da cultura afro se manifestava na Procissão Fluvial de Navegantes. E, em 1983, foi proibida de ser fluvial. Após várias tentativas de realizá-la clandestinamente, o Irmão Antônio aconselhado pelo Bispo Dom Antônio Cheuiche a realizá-la por ocasião de Nossa Senhora Aparecida, a 12 de outubro, criou a ONG DEVOÇÃO NOSSA SENHORA APARECIDA (atual Associação Caminho das Águas) para efetivá-la.

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Imagem ícone dos últimos anos da Romaria das Águas lembrando a grande mortandade de peixes. No barco, a Rainha da Ecologia, Nossa Senhora Aparecida das Águas, é conduzida, acompanhada de duas líderes religiosas, Nazaré e Bárbara.

Indignação ética de Irmão Antônio diante da Polícia Federal que impedia a passagem das carroças dos catadores com os materiais recicláveis. O protesto serviu também para reclamar da falta de água potável que não era trazida pelos caminhões-pipa para a população. Ver documentários em França 97, no You Tube da Rede Marista.

TRISTEZA pelo abandono dos pobres das Ilhas,

com exceção da Ilha da Pintada, cercados de água por todos os lados: ÁGUA POLUÍDA. Uma vez por semana, passava o caminhão-pipa com água potável, mas... onde armazená-la? Nas poucas vasilhas de que o povo dispunha, durava um, dois dias. Restava o rio poluído. Para a Procissão Fluvial, em 12 de outubro, parcerias se efetivaram: Movimento Guaíba Vive, Pró Guaíba, entre outros. Infelizmente, os governos que se seguiram aos da Frente Popular extinguiram o Pró Guaíba. E, FELIZMENTE, através de DecretoLei, a Câmara Municipal incluiu a Romaria das Águas no calendário de eventos do município de Porto Alegre. “É DE LEI!”

A Secretaria da Cultura do Município, anualmente, a 12 de outubro de cada ano, é parceira da Romaria das Águas, mesmo com poucos recursos disponíveis. Para saber mais

Romaria das Águas

https://youtu.be/w_VcE2DDovM Blog: Romaria das Águas do Guaíba

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França 97

Parte 1: https://youtu.be/5boMSgQMUg8 Parte 2: https://youtu.be/NlawbfpGU6U Parte 3: https://youtu.be/6IHFPGusmQY


Resultados que ficaram

Um grande parceiro das Ilhas

Nossa Senhora das Águas nos pilares, debaixo da ponte, à espera da consciência ecológica.

por Mariza Corrêa Trapp*

Antônio Cecchin, “Irmão Antônio” como costumava ser chamado carinhosamente por todos, contribuiu muito para a administração na Ilha da Pintada, favorecendo assim seu crescimento em diversas áreas. É de extrema importância relembrar que Irmão Antônio realizou trabalhos em todas as Ilhas como: Ilha do Pavão, Ilha das Flores e Ilha Grande dos Marinheiros. Antônio Cecchin trabalhou na gestão do prefeito de Porto Alegre, Olívio Dutra, e juntamente com funcionários do município, propiciou o desenvolvimento do bairro Arquipélago em diversos âmbitos. Irmão Antônio foi um grande parceiro das Ilhas, um ouvinte participativo, que estava sempre junto à comunidade, interagindo, buscando soluções e procurando ajudar com as diversas solicitações e necessidades que lhes eram apresentadas. Realizou um trabalho magnífico nas Ilhas, atendendo principalmente aos mais carentes, acolhendo a todos, sempre com muito afeto e solidariedade. Todas as suas ações e resultados obtidos serão sempre lembrados por todos os habitantes das Ilhas com muito carinho e respeito, pois Irmão Antônio lutou pelo povo e nunca desistiu, apesar das dificuldades e da difícil realidade que contextualizava. E por meio destas lutas, conseguiu melhorias, crescimentos e benefícios a todos os ilhéus.

Através do Orçamento Participativo, reunindo a comunidade e ouvindo as demandas e especificidades de cada um, procurou suprir as necessidades dos habitantes, e deixou diversas obras concluídas como: • Recuperação do cemitério São Pedro, da capela, e iluminação da estrada que permite acesso ao mesmo. • Doação de terrenos e madeiras para a construção de casas para as pessoas carentes e com baixa renda do Estaleiro Mabilde. • Recuperação da Praça Salomão Pires Abraão. • Asfalto para as ruas da Ilha da Pintada. • Instalação de rede de águas tratadas. • Abertura da Rua Japejú. • Construção da EMEI Ilha da Pintada, e de um posto de saúde para o Estaleiro Mabilde. • Transporte realizado pela lancha Loureiro da Silva, que permitia o acesso dos alunos até a Escola Alvarenga Peixoto.

* Funcionária Pública Aposentada da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

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Posfácio 1

O sonho continua I

Acima, a juventude marista em contínua caminhada.

por José Jair Ribeiro (Zeca)*

Somos filhos e filhas, podemos afirmar, de um grande sonhador, de um Deus Pai e Mãe que sonha, mas de olhos abertos: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o que clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel.” (Êxodo 3, 7-8). O seu sonho é de vida plena para todos e todas. * Graduado em Filosofia e Teologia. Coordenador de Pastoral Marista e Coordenador Provincial da PJM (Pastoral Juvenil Marista).

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Cada um(a) de nós é continuador(a) deste sonho, é continuador(a) da promoção e defesa da vida: “veja: hoje eu estou colocando diante de você a vida e a felicidade, a morte e a desgraça (...), escolha, portanto, a vida...” (Deuteronômio, 30, 15-20).

Este sonho na boca de Jesus de Nazaré: “o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor”.

O avental-símbolo e o método: Ver, Ouvir, Conhecer e Agir.

Somos continuadores do sonho de Deus Pai e Mãe, a exemplo do legado deixado pelo Irmão Antônio Cecchin. Sonhar sonhos que dignificam a vida, que nos tornam mais cidadãos, mais cristãos, mais coletivos, enfim, que nos façam mais humanos e fraternos e construtores da terra sem males, da Civilização do Amor.

A Igreja de Avental: a simbologia da disposição de todos em auxiliar seu próximo, levando ações para onde elas são necessárias. Irmão Antônio Cecchin sempre agiu sob estes princípios.

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Posfácio 2

O sonho não acabou

por Herdeiros de Sepé*

A certeza de chegar em São Gabriel ali estava na nossa frente, nosso mestre, pai e talvez o avô, animador, com suas falas longas, conseguia prender a atenção dos rebeldes adolescentes que, desde 2006, primeira bicicletada, se transformaram em pessoas humanas com responsabilidade de adultos. Hoje, pais e mães de família competentes na luta pela vida, foi na bicicletada Caminhos de Sepé que se libertaram de vícios que a sociedade impõe, através do sentido da luta e da liberdade. * Grupo de jovens, em Canoas. Texto elaborado por Fernandinho, David, Maria Senilda e Stella.

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Todos somos filhos dessa mãe terra tão sofrida. O teatro e a leitura contribuíram para ver a importância de lutar com nossos índios, já que nossos adolescentes de periferia também sofrem de exclusão.

O significado de HERDEIROS DE SEPÉ

Não tem herança de dinheiro para receber de ninguém, somos pobres. Nós, gurizada, temos a nossa herança no nosso corpo, temos o sangue guarani de que o Irmão Antônio tanto fala. Fomos batizados na aldeia indígena de São Leopoldo pelo pajé Francisco, pedaleiro também pelos Caminhos de Sepé. Em cima de duas rodas os adolescentes transformaram a rebeldia em luta e responsabilidade, igual ao Ir. Antônio, o mais rebelde e teimoso. Nos Caminhos de Sepé, a teimosia e rebeldia duravam 7 dias até São Gabriel. Nosso mestre, desafiando seu corpo e sua saúde, tinha forças de levar água e ânimo para a gurizada.

Início do Povo Gaúcho a partir dos nativos, cujo DNA está presente em todos os pobres das nossas periferias.

Inspirado na luta de São Sepé para defender seu povo, o Irmão fazia longas falas e, incrível, os jovens escutavam atentos o Mestre. Herdeiros de Sepé é o nome do grupo de adolescentes constituído sob os olhares atentos e carinhosos de Maria Senilda de Oliveira com o propósito de viabilizar arte, esporte e cultura na periferia de Canoas, RS.

A última Bicicletada, com Irmão Antônio.

Senilda conheceu Irmão Antônio e Matilde quando era adolescente e chegava do interior para morar na Região Metropolitana de Porto Alegre.

Para saber mais, no You Tube da Rede Marista, Bicicletada: https://youtu.be/gxRQLO79QrE

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Coletivo de Comunicaçào do Levante da Juventude

Posfácio 3

O sonho continua II pelo Levante da Juventude

“Onde houver povo sem chão, sem liberdade, onde houver, com eles sempre estarão”... milhares de jovens continuando a luta do Irmão Cecchin! O compromisso firmado com nosso eterno lutador também é um compromisso com o povo brasileiro e com a democracia. Os tempos duros do Golpe de 1964, que marcaram o Irmão Cecchin e outros tantos resistentes, é um tempo que a juventude de agora luta para não viver. Às lutadoras e aos lutadores, que bravamente resistiram a esse período triste da nossa história nos deixando de legado o valor da democracia, é a elas e eles e ao futuro de milhares de jovens que dedicamos a nossa luta diária, o nosso esforço de organização da juventude trabalhadora e a nossa eterna esperança pela terra sem males de Sepé. Aos que tentam nos impor mais um golpe, a juventude em punho erguido grita: não nos calarão! O sonho pela liberdade continua, pois estamos unidos. 394


BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS Vídeos

Entrevistas on line

No YouTube da Rede Marista (https://www.youtube.com/channel/ UCNNE6bAkeDZmhxXcXAMrmaQ) podem ser vistos os seguintes vídeos:

Revista IHU on-line1

Bicicletada https://youtu.be/gxRQLO79QrE Eco92 Rio https://youtu.be/uKN7T8QEo3o França 97 Parte 1: https://youtu.be/5boMSgQMUg8 Parte 2: https://youtu.be/NlawbfpGU6U Parte 3: https://youtu.be/6IHFPGusmQY Romaria das Águas https://youtu.be/w_VcE2DDovM

Blogs e sites Romaria das Águas do Guaíba Ecoprofetas Facebook Ecoprofetas Rede Marista Revista IUH on line

Livros CECCHIN, Antônio, CECCHIN Matilde. Oitavo Povo das Missões – Além da Reciclagem (no Feminino). Vols 1 e 2. Porto Alegre: Libretos/2015 CECCHIN, Antônio. Empoderamento popular – Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: ESTEF/ 2010 PEREIRA, Frei Pilato. O Irmão dos Pobres – Antônio Cecchin: uma biografia. Porto Alegre: ESTEF/2009 SUSIN, Luis Carlos. Ir. Antônio Cecchin: memória para o futuro. Porto Alegre: ESTEF/2010

www.ihuonline.unisinos.br Entrevistas com Antônio Cecchin2 • Antonio Cechin, irmão marista, Profeta da Ecologia • “Os pobres me evangelizaram”. Entrevista especial com Antônio Cecchin, revista IHU On-Line, n. 223 • Antônio Cechin: 80 anos. Depoimentos, revista IHU On-Line, n. 223 • Tradicionalismo e ditadura são irmãos siameses. Entrevista especial publicada na IHU On-Line, n. 493 • Marcelino Champagnat. Um bicentenário e o desafio de refontizar as raízes e buscar o profetismo inicial. Entrevista especial com Antônio Cechin • Igreja, entre o apoio e a resistência ao golpe civil-militar de 1964. Entrevista especial com Antônio Cechin • Greve dos garis demonstra que racismo e discriminação devem ser superados. Entrevista especial com Antonio Cechin e Roque Spies • Irmão Cechin: aos 85 anos, o profeta dos catadores ainda está disposto a lutar • Fichas catequéticas, a prisão e a tortura. Entrevista especial com Antônio Cechin • Um apelo pelos pobres. Carta aberta do Irmão Antonio Cechin • “Usamos em um ano o que a natureza demora um ano e meio para recompor”. Entrevista especial com Andrei Cechin • “A partir do Natal do Menino Jesus, a Esperança não morre nunca mais, porque seremos imortais”. Entrevista especial com Antonio Cechin 1. Também muitos artigos do Irmão Antônio estão publicados em IHU on line. 2. Grafia com apenas um “c”.

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Anexo

Marcelino Champagnat. Um bicentenário e o desafio de refontizar as raízes e buscar o profetismo inicial.

Entrevista especial com Antônio Cecchin IHU On-Line IHU On-Line – Pode retomar, brevemente, quem foi Champagnat, quais suas origens e sua centralidade na constituição do Instituto Marista? Antônio Cecchin – Marcelino José Bento Champagnat, fundador da Congregação dos Irmãos Maristas, nasceu no ano de 1789 na França, no mesmo ano em que também iniciou a Revolução Francesa. Revolução que passou para a história como um dos mais importantes levantes de massas populares em prol dos direitos humanos. Desde o ventre materno, Marcelino já estava envolvido pelo espírito do levante revolucionário em prol dos direitos humanos. Seus pais João Batista Champagnat e Maria Chirat eram de tal modo imbuídos do espírito da revolução a ponto de João Batista ter aceitado a função de intendente de Rosey, aldeia em que residiam, no sul da França. Fora nomeado ao cargo pelos próprios corifeus da Revolução. De berço, Marcelino teve uma educação esmerada para a qual muito contribuiu uma tia freira que se homiziara nos Champagnat. Sabemos que a revolução se voltou também contra a Igreja de cristandade, que andara atrelada à monarquia real e contra a sede de democracia que, no fundo, era o objetivo principal do levante popular. As escolas, em sua grande maioria, estiveram de portas fechadas durante os longos anos de duração da revolução. Quando Marcelino conseguiu se matricular para fazer os cursos regulares, já era bem crescido. Na sala de aula em que entrava pela primeira vez era o maior de todos em tamanho. Logo no primeiro dia, foi vítima de um incidente que revelou o quanto lhe impregnara o caráter a questão dos direitos humanos. Na chamada inicial, ao soar-lhe aos ouvidos o próprio nome, levantou-se bastante atrapalhado repetindo postura que vira fazer pelos companheiros em seu redor, mas sem entender o que diziam. As crianças riram em coro e até houve quem gargalhasse. Incontinenti o professor se deslocou como um raio para junto de uma das crianças que rira mais forte, desfechando-lhe uma bofetada. Mar-

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celino não aguentou tamanha violência contra os direitos humanos de um menor. No mesmo instante abandonou a sala, saindo porta afora para nunca mais voltar a essa escola.

Vida sacerdotal

Aos 26 anos foi ordenado sacerdote. No dia seguinte, 23 de julho de 1816, ao lado de outros 11 companheiros de seminário, consagrou-se ao serviço de Maria, no santuário nacional de Nossa Senhora de Fourvière, na cidade de Lyon. Os 12 jovens sacerdotes consideraram essa data como a da fundação da Sociedade de Maria, nome que deram à congregação nascente. Nomeado pároco da pequena cidade interiorana de La Valla, logo se deu conta do total abandono em que se encontravam a infância e a juventude em toda a França, como sequela da revolução. Certo dia foi chamado junto ao leito de um jovem de sobrenome Montagne, em estado de saúde terminal. Sentado junto ao enfermo, fez a constatação da total ignorância que tinha o jovem a respeito da pessoa de Cristo, das verdades básicas sobre a fé e sobre o batismo. No próprio caminho de retorno à casa paroquial assumiu com convicção a ideia de fundar uma congregação de irmãos não sacerdotes, que se dedicassem em tempo integral à evangelização e à educação da juventude, através de escolas em que se pudesse “formar bons cristãos e virtuosos cidadãos”, expressão que depois repetia constantemente.

Fundação da Congregação

No dia 2 de janeiro de 1817, menos de meio ano depois do dia em que esteve à beira do leito de Montagne, fundava a Congregação dos Irmãos Maristas. Como Congregação, nasceram os Irmãos Maristas, ligados à Sociedade de Maria à qual Champagnat pertencia. Anos mais tarde, quando se tratou dos trâmites junto à Santa Sé, para a oficialização conforme exigência do direito canônico, o papa separou os Irmãos dos Sacerdotes dando autonomia a ambas as congregações


através de um motu proprio. Razão invocada? O Sumo Pontífice constatara que as duas famílias religiosas diferem totalmente quanto a seus objetivos principais. A citação bíblica utilizada pelo papa para separá-las adquiriu uma tonalidade um tanto hilariante: “não colocareis sob a mesma canga o boi e o asno”. Lendo e meditando a vida do fundador me convenci de que Champagnat não fundou a Congregação dos Irmãos Maristas para pobres em geral, mas sim para os mais pobres dentre os pobres, isto é, os pequeninos, os últimos, os excluídos por excelência. Esse objetivo central foi a paixão da vida inteira de São Marcelino. A fim de marcá-la definitivamente para os mais pobres, deu-nos o nome de Pequenos Irmãos de Maria. Não contente com o nome, consagrou nosso espírito congregacional como sendo de humildade, simplicidade e modéstia. Em síntese: para os pequeninos, abaixar-se à estatura deles: trabalhar com pequenez espiritual. Nesse ponto Champagnat preconizou a opção pelos pobres antecedendo 150 anos ao nosso bispo Dom Helder Camara, que nos fez a todos, como Igreja do Brasil e de toda a América Latino-americana, abraçar a opção pelos pobres. Se Santa Teresinha do Menino Jesus tivesse vivido nos tempos de Champagnat, certamente o fundador nos teria remetido à pequena via da infância espiritual de Teresinha de Lisieux e à autobiografia dela, condensada no livro “História de uma Alma”. Vida afora, repetiu inúmeras vezes nosso fundador, que desejava ardentemente seus Irmãos Maristas, no seguimento do Homem Jesus de Nazaré, que ocupassem os primeiros lugares, isto é, os mais próximos, junto ao presépio, junto à Cruz e junto ao altar da Eucaristia. Lugares do maior aniquilamento do Filho de Deus. Na hora da morte, dia 6 de junho de 1840, as últimas palavras de São Marcelino foram: jamais imaginei que teria tanta alegria ao morrer como Marista! IHU On-Line - Quando começou sua relação com os Maristas? Pode nos contar um pouco da sua história na Congregação? Antônio Cecchin - Embora mal me comparando ao profeta que se disse predestinado por Deus desde o ventre materno, comigo aconteceu algo semelhante porque, já mesmo antes de eu nascer, andava envolvido com clima marista através de meus pais Luiz e Romana. Como pequenos agricultores pobres, não lhes foi suficiente uma vida inteira de duros tra-

balhos para poderem adquirir um pedaço de terra sequer, para prover à sobrevivência familiar. Logo que casaram, tiveram que buscar emprego junto à Chácara Nossa Senhora de Lourdes, propriedade do colégio dos Irmãos Maristas na cidade de Santa Maria. Logo se tornaram administradores dessa mesma chácara, tendo às suas ordens 10 outros empregados. Nossa família de 15 filhos — 8 homens e 7 mulheres —, tendo-se deixar impregnar pelo espírito da congregação, se transformou em viveiro de vocações religiosas. Deu à Igreja nada menos que nove religiosos: 1 sacerdote, 4 irmãos maristas e 4 freiras. Estas últimas, de três diferentes Congregações femininas. Não raro me pergunto a mim mesmo: Será que eu poderia ter sido outra coisa na vida do que religioso marista? Será que foi a aparente loteria da vida que me fez nascer e viver marista até hoje, completados 87 anos, respirando espiritualidade marista desde zero anos até os 87? Na transparência dos fatos e acontecimentos de minha trajetória terrestre, só posso ler que Deus me predestinou desde antes do meu nascer para Irmãozinho de Maria. Então: “Ai de mim se não evangelizar os pequenos! Ai de mim se não os educar para a militância em favor dos direitos humanos. Ai de mim se não amar e fazer com que amem também Maria e seu Filho Jesus, de um amor de tipo conjugal como Deus me ama, e não só a mim mas a todas as pessoas”.

História como irmão Marista

Os estudos regulares, do primário ao universitário, foram feitos todos em instituições da própria congregação. Na PUC de Porto Alegre (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras), o bacharelado e a licenciatura em Letras Clássicas — grego, latim e português — com vistas ao exercício do magistério. Na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais a fim de ser causídico ou professor de Ciências Sociais ou mesmo, futuramente, diretor da Faculdade de Direito que os Maristas mantêm junto à PUC de Porto Alegre como me falou a meia-voz o Irmão Provincial ao sugerir-me que fizesse o curso de Direito. Terminados os dois cursos universitários, aproveitei os recursos financeiros à minha disposição, garantidos pela lei aprovada pelo governo do Estado do RS, denominada Lei Brossard, que contemplava os formados em universidades do RS com bolsa de estudos no exterior, para o aluno que somasse maior quantidade de pontos em todas as disciplinas do currículo universitário.

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Fui assim a Paris me especializar em Economia e Humanismo no IRFED, curso criado pelo padre dominicano, sociólogo e funcionário da ONU, padre Jacques Lebret. Aproveitei também, no curto estágio em que estive em Paris, para fazer o curso de Pastoral Catequética no Instituto Superior de Pastoral Catequética da Arquidiocese de Paris. Exerci o magistério em três colégios maristas: no Colégio Marista Rosário de Porto Alegre durante os meus 15 anos iniciais como professor; no Colégio Marista São Luís de São Leopoldo e no Colégio Champagnat no Bairro Partenon, na época internato e externato. Exerci também a função de diretor no colégio São Luís, em São Leopoldo, e em Porto Alegre, no Colégio Champagnat. Também exerci a função de Secretário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da PUC. Nos dois anos preparatórios ao Concílio Ecumênico Vaticano II convocado pelos serviços do Vaticano, ao tempo do papa João XXIII, exerci, na Cúria Romana, a função de secretário particular do Promotor Geral da Fé (vulgo advogado do diabo) na Sagrada Congregação dos Ritos, encarregada da Liturgia e das Causas de beatificação e canonização dos candidatos a santos. Antes de retornar ao Brasil, fiz meu segundo noviciado marista, na cidade de Saint Paul TroisChâteau. Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, até hoje só tive a oportunidade de utilizar a minha carteira de causídico, dando carteiraços à direita e à esquerda quando, em apoio a povo organizado em meios urbanos, ajudei a fazer ocupações de terrenos para moradia de gente pobre vítima de êxodo rural e que chegava na região de Canoas atrás de emprego no Polo Petroquímico de Triunfo. Chegava aos magotes, só com a roupa do corpo. Matéria-prima humana para as ocupações.

Trabalhos coletivos

Nos últimos trinta anos em que me dedico a trabalhos com Coletivos de Catadores de Resíduos Sólidos, me especializei em ocupações de elefantes brancos tais como terrenos baldios, prédios em ruínas, dois túneis desativados da antiga Viação Férrea em pleno centro de Porto Alegre, etc. O que nos anima sempre para tais ações, mesmo antes de terem surgido a Catequese e a Teologia da Libertação, são as palavras de Santo Tomás de Aquino em sua Suma Teológica:

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quando há pessoas ou grupos humanos que não conseguem satisfazer necessidades básicas tais como alimento, moradia, saúde, etc. tudo, absolutamente tudo no mundo passa a ser comum. Dando um exemplo, na linha do pensamento do teólogo e filósofo medieval Tomás de Aquino: um faminto, em necessidade extrema de comida, tem o direito de forçar a entrada na minha casa e ir à geladeira e saciar a fome. Fiz parte da Comissão Pastoral da Terra. Junto com o Pe. Arnildo Fritzen sou cofundador do Movimento dos Sem Terra, hoje coordenado nacionalmente por João Pedro Stedile, tendo dado contribuições do ponto de vista da logística da Igreja do Rio Grande do Sul em relação a esse movimento criado pelas comunidades eclesiais de base de Ronda Alta, na Encruzilhada Natalino, na Fazenda Anoni, na Caminhada desde Ronda Alta até Porto Alegre, em busca da Terra Prometida, seguida de ocupação da Assembleia Legislativa do RS durante o tempo de mais de um mês, enquanto duraram as conversações com os governos executivo, legislativo e judiciário a fim da garantia de um pedaço de terra para plantar, produzir e garantir a sobrevivência de cada família. Quando na CNBB e já membro também da CPT, padre Orestes e eu, que havíamos criado o Regional Sul III da CNBB, criamos também a Romaria da Terra. Mais tarde, com as CEBS das Ilhas do Guaíba, minha mana e eu criamos, através de uma experiência-piloto, no RS, o trabalho com coletivos de Catadores, transformada depois em Política Pública. Consequência imediata foi a criação da Pastoral da Ecologia como um setor da CNBB Regional e a Romaria das Águas como um movimento de massas para a despoluição dos mananciais, particularmente do Rio Guaíba. Quando o bispo Dom Helder Camara foi convidado pelo papa João XXIII para fundar o colegiado dos bispos do Brasil — CNBB — não conseguindo nenhum bispo do Rio Grande do Sul que aceitasse ser cofundador junto dele na Conferência para a criação do Regional Sul III de Porto Alegre, recorreu ao Padre Orestes Stragliotto, amigo já de vários anos, em função do projeto “Igrejas-irmãs”.

Trabalhos catequéticos

Trabalhei mais de 15 anos na CNBB como Coordenador da Catequese Regional e membro da Equipe Nacional do mesmo setor. Ao mesmo tempo como Adjunto Regional da Juventude


Estudantil Católica e como iniciador de Comunidades Eclesiais de Base em meios urbanos. Além, naturalmente, de coordenador Regional da Pastoral da Ecologia. No ano de 1968, na cidade de Medellín (Colômbia), participei do Encontro Internacional de Catequese, onde apresentei, perante os mais notáveis catequistas do mundo inteiro vindos particularmente dos mais importantes Institutos e Escolas Catequéticas dos mais diversos países, os princípios básicos de uma Catequese Libertadora para o Brasil, amadurecidos nas reuniões da Equipe Nacional. Para realizar essa façanha, totalmente acima das minhas forças, tive a graça de uma forte assessoria do teólogo Hugo Assmann, que, ao lado de Gustavo Gutierrez, foi um dos fundadores da Teologia da Libertação. Vieram primeiro, no Brasil, as Comunidades Eclesiais de Base, depois a Catequese Libertadora e, como coroamento, a ciência teológica batizada como Teologia da Libertação. A partir do Encontro Internacional de Catequese, adotamos nacionalmente, para a catequese libertadora, o método Paulo Freire como o mais consentâneo para uma autêntica libertação. Com os manos Matilde, Irene e Eugênio, elaboramos 4 séries de Fichas Catequéticas para adolescentes e jovens, publicadas primeiro pela Sono-Viso, a serviço da CNBB Nacional e depois pela Editora José Olympio. A primeira série como transição da Catequese Cristocêntrica que havíamos trazido do Instituto Catequético de Paris para a Catequese Libertadora Latino-americana. Consequência?... Na última semana de março de 1969, comemorativa do golpe militar que implantou a ditadura, o ministro da educação nacional vai à televisão com um exemplar de nossas Fichas, intitulado Rumo à Terra Prometida. Serve-se de duas catequeses preparadas para a idade da pré-adolescência (11-12 anos) e as declara altamente subversivas. Em novembro do mesmo ano de 1969, tendo como base as Fichas Catequéticas e minha companhia na JEC com Frei Betto no movimento nacional de JEC, acontece então a minha primeira prisão, seguida por uma segunda prisão, acompanhada de tortura, no ano de 1971. Saído da prisão, a fim de me recompor como pessoa, fui com minha mana Matilde com uma bolsa da organização de Adveniat da Igreja Católica da Alemanha para um curso de seis meses especializado em audiovisuais para a juventude, na cidade de Lyon, próximo ao santuário de Fourvière, onde Champagnat e amigos

jovens padres recém-ordenados estiveram a fim de se consagrar a Maria e fundar a Congregação. Retornando ao Brasil, Matilde e eu fomos trabalhar no reverso do mundo em que havíamos vivido até então, isto é, as periferias de Porto Alegre, criando CEBs, movimentos populares, radicalizando sempre mais na opção pelos pobres até os dias de hoje em que estamos às turras com autênticas Comunidades do Pão Nosso de cada dia, que são os mutirões de catadores, já pelo tempo de mais de 30 anos. No ano de 2006, celebrando os 250 anos do martírio de São Sepé Tiaraju, criamos, junto com os índios, os catadores, as CEBs, a juventude em geral, a bicicletada denominada Caminho de São Sepé Tiaraju. Finalmente e para não dizer que não falei de flores, assessorei algum retiro de sacerdotes e um capítulo nacional de uma congregação de Irmãs brasileiras. IHU On-Line - Como a mensagem de Champagnat, especialmente a evangelização e a luta em defesa dos direitos humanos, é atualizada nos dias de hoje, quase 200 anos do bicentenário do Instituto Marista? Antônio Cecchin - Champagnat foi um homem de seu tempo, à altura do verdadeiro tsunami que provocou a Revolução Francesa, tanto do lado positivo da defesa da democracia e dos direitos humanos quanto do lado negativo com as sequelas que se lhe seguiram em termos de educação e evangelização que descobriu como verdadeiras chagas abertas no flanco da Igreja. Pessoalmente, como membro da congregação marista, comecei a me sentir também fiel discípulo do fundador e bem atualizado em relação aos tempos de hoje, quando Dom Helder Camara, nos inícios da década de 1950, começou com um discurso inteiramente novo no Brasil, chamando-nos a atenção para a realidade global do terceiro mundo. Nossa nação, incrustada em todo um continente com absoluta maioria de pessoas pobres, com urgente necessidade de uma Igreja — que era de classe média — no seguimento de Cristo pobre, nos colocou a todos na obrigação de fazermos a opção pelos pobres e com isso retornar às raízes do cristianismo de Jesus e dos doze apóstolos.

Continua em: http://www.ihu.unisinos.br/?id=537856

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Irmão

Antônio Cecchin (At 9,2)

“...SEGUINDO O CAMINHO” em busca da Terra Sem Males

São Paulo

Livro póstumo, com 400 páginas, composto em Book Antiqua, Bernard MT Condensed e Chaparral Pro, impresso sobre papel couchê 90 gramas (miolo) e cartão 300 (capa), pela gráfica Epecê, em julho de 2017, em homenagem a Antônio Cecchin e também marcando os 200 anos da Fundação dos Irmãos Maristas.



O sonho continua.

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