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02 LEGADO Porto Alegre Ano 2 / Número 2 Setembro de 2015 Publicação sobre Espiritualidade e Patrimônio Marista Rede Marista



LEGADO Publicação sobre Espiritualidade e Patrimônio Marista

Porto Alegre Ano 2 / Número 2 Setembro de 2015


REVISTA LEGADO PROVÍNCIA MARISTA DO RIO GRANDE DO SUL REDE MARISTA (RS, DF, AMAZÔNIA) SUPERIOR PROVINCIAL / PRESIDENTE: IR. INACIO ETGES CONSELHO PROVINCIAL/ CONSELHO ADMINISTRATIVO: IR. CLAUDIANO TIECHER, IR. DEIVIS ALEXANDRE FISCHER (VICE-PROVINCIAL / VICE-PRESIDENTE), IR. EVILÁZIO BORGES TEIXEIRA, IR. LAURI HECK, IR. ODILMAR FACHI, IR. SANDRO ANDRÉ BOBRZYK GERENTE DA COORDENAÇÃO DE VIDA CONSAGRADA E LAICATO: IR. DEIVIS FISCHER EQUIPE DA ÁREA DE PATRIMÔNIO E ESPIRITUALIDADE MARISTA: IR. CLAUDIANO TIECHER (COORDENADOR) E GUSTAVO BALBINOT (ASSESSOR) CONSELHO EDITORIAL DA REVISTA LEGADO: IR. CLAUDIANO TIECHER, GUSTAVO BALBINOT (COORDENADOR), IR. DEIVIS FISCHER, IR. MARCELO BONHEMBERGER, LIDIANE RAMIREZ DE AMORIM. SUPERVISÃO EDITORIAL: LIDIANE RAMIREZ DE AMORIM E DIEGO WANDER SILVA PRODUÇÃO: ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO CORPORATIVA REVISÃO: ANA PAULA ACAUAN PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: DESIGN DE MARIA ISSN 2358-8993


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Ousemos devanear! Ousemos fantasiar!

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ESTUDOS Carisma e Gestão: a construção e o desenvolvimento de Capacidades Dinâmicas no Instituto Marista Marcelo Cordeiro

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Das topias e utopias de Marcelino Champagnat: o nascimento de uma grande obra educativa Maurício Perondi

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Leitura de alguns valores pedagógicos de Champagnat Ir. Marcelo Bonhemberger e Ir. Deivis Alexandre Fischer

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Marca, identidade e comunicação: um mesmo coração e espírito Lidiane Ramirez de Amorim

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Marcelino Champagnat e o acompanhamento de adolescentes e jovens no Instituto Marista José Jair Ribeiro

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O arquivo provincial da Província Marista do Rio Grande do Sul Graziele Erig Santorum

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PRODUÇÕES DIVERSAS A potência dos afetos de Champagnat: um carisma através do tempo Ana Tereza Naspolini

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Fraternidades do Movimento Champagnat da Família Marista: vivência dos quatro pilares Eliza Maria M. B. Barbosa

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APRESENTAÇÃO

OUSEMOS DEVANEAR! OUSEMOS FANTASIAR! No devaneio e na fantasia que envolvem todo recomeçar, os sonhos são aceitáveis e a imaginação plausível. Devaneios e fantasias permeiam nossas mentes neste novo começo do Instituto Marista. Talvez alguns se perguntem sobre o que passou. Nada daquilo valeu a pena, pois estamos falando de um “novo” começo? O que faremos daquele 1817? Acontecimentos em nossa história não faltam para valorizarmos o legado construído com a contribuição de muitas pessoas. Da mesma forma, é possível colher testemunhos e interpretações diversas para cada um desses acontecimentos, através de uma pesquisa histórica e detalhada das diversas fontes disponíveis. Da Mnemósine grega até as memórias cibernéticas contidas e armazenadas em computadores

e tecnologias, temos percorrido uma historiografia rica que necessita ser conhecida, interpretada e divulgada. A Revista Legado quer ser um meio para dar visibilidade à pesquisa e às diversas interpretações sobre temas, pessoas, acontecimentos, aspectos, valores e dimensões que são relevantes para a preservação do nosso valoroso Patrimônio Espiritual Marista. Gerações acreditaram no ideal lançado por Marcelino Champagnat e ousaram devanear e fantasiar, a seu tempo e a sua maneira. Mas novos começos sempre são empreendidos, e é justo para com a história resgatar para os contemporâneos da missão marista aspectos fundantes e essenciais, que são o coração de nossa existência, à luz de nossas intuições e também das capacidades imaginativas. Em sua segunda edição, a Revista Legado quer ser um espaço

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para Irmãos, Leigos(as) e colaboradores compartilharem descobertas, estudos, intuições, análises, recortes, ponderações, triangulações de dados, para com os demais entusiastas do carisma marista.

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Sem dúvidas, o Curso de Extensão em Patrimônio e Espiritualidade Marista (PEM) é o espaço por excelência para provocar o avanço de estudos e a produção de conhecimento acerca de nosso Patrimônio Espiritual e de nossa Espiritualidade. Ele interage com a mente e o coração, pois motiva, para além de conhecimentos e novas descobertas, para uma identificação mais profunda e sensível da obra na qual ele está inserido. Entendemos a Revista Legado como uma extensão do curso PEM que congrega e reúne artigos de alunos que aceitaram o desafio de publicar a sua pesquisa, bem como sistematizar o conteúdo do curso, motivando outros a iniciarem a mesma caminhada. Para um novo começo, é necessário conhecer o passado, mas através de diversos narradores, que são os atores e autores da história marista neste tricentenário.

Sempre que pensamos em guardar a memória, corremos o risco do esquecimento. Memória e esquecimento estão lado a lado. Os “esquecidos” da história devem ser considerados para as construções das novas perspectivas. Por isso, o relevante trabalho dos diversos observadores, de muitas áreas do conhecimento, que se unem aqui, para contribuir com temas da tradição marista sob diversos olhares das mais diversas ciências. Nas palavras de Maturana e Varella (1996, p. 45): “Tudo que é dito, é dito por um observador”. O meu muito obrigado aos autores desta edição da Revista que submeteram suas produções ao Conselho Editorial e, assim, nos brindam com novos olhares para a nossa história, desde diferentes pontos de vista. Aos leitores, que os conteúdos aqui apresentados impulsionem ânimo para a caminhada, juntos, rumo a um novo começo. Ir. Claudiano Tiecher Coordenador da área de Espiritualidade e Patrimônio Espiritual Marista – EAM/PEM


ESTUDOS

CARISMA E GESTÃO:

Marcelo Cordeiro1

A CONSTRUÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE CAPACIDADES DINÂMICAS NO INSTITUTO MARISTA

Marcelino Champagnat é a fonte e a raiz que dão vida à educação marista. Os tempos e as circunstâncias mudam, mas a sua visão e a sua dinâmica espiritual vivem nos nossos corações. Art. 1º Missão Educativa Marista RESUMO Este artigo versa sobre a construção e o desenvolvimento de Capacidades Dinâmicas (CD), responsáveis pela manutenção da essência e renovação da missão marista ao longo dos anos. Como discussão teórica, se referenciam as diretrizes estabelecidas pelo fundador e pelos primeiros Irmãos Maristas, além da discussão em torno das características adaptativas da instituição. Propõe-se, ainda, um debate acerca dos temas de estratégia, gestão e formação de Capacidades Dinâmicas como conceitochave deste trabalho. Do ponto de vista metodológico, o estudo se caracteriza como uma pesquisa exploratória e se utiliza da estratégia de análise de conteúdo para realizar os debates pertinentes. Com recorte transversal, foram selecionados dois documentos seminais do Instituto Marista para a análise: o Guia das Escolas (FURET et al., 2009) e o Missão Educativa Marista (1998). Após a análise, foi possível perceber alguns aspectos centrais que podem ser caracterizados como Capacidades Dinâmicas da instituição; dentre eles, destacam-se três: (a) a reafirmação do apelo fundacional; (b) os ensinamentos do Fundador, passados de geração a geração; (c) a capacidade do carisma marista de adaptação aos diferentes contextos e culturas.

PALAVRAS-CHAVE: Perenidade. Capacidades Dinâmicas. Gestão. Instituto Marista. 1. Doutorando em Administração (PUCRS), Mestre em Administração (UFRGS), graduado em Relações Públicas (UFSM). Atua como Assessor de Planejamento Estratégico na Rede Marista. E-mail: <marcelo.cordeiro@maristas.org.br>

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INTRODUÇÃO

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A construção de organizações longevas é um tema de interesse de diversos estudiosos da sociologia, da antropologia, da economia e da administração (ANSOFF, 1965; COLLINS; PORRAS, 1999). O Instituto Marista, que em 2017 completa 200 anos (TURÚ, 2015), convoca seus membros para um novo começo, rito de passagem que revela a necessidade atemporal de se reinventar e buscar novas formas de cumprir a missão legada pelo Fundador, São Marcelino Champagnat, espraiando seu carisma, como dom profético em todos os espaços de atuação dos Irmãos Maristas. Por se tratar de um instituto religioso, a gestão desse tipo de organização se conecta fortemente com dimensões pouco exploradas pelas organizações ditas “de mercado”, como a espiritualidade, a mística e outros elementos (MURAD, 2010). O apelo de Turú (2015, p. 6) demarca essa reflexão, em torno da missão da instituição marista: “O que queremos dizer

quando falamos em missão?”. Em muitos contextos, a missão acaba sendo perdida ou traduzida para significados que não correspondem ao seu apelo fundacional. A missão, portanto, deve, ao mesmo tempo, ser atualizada e original, fundacional e profética, conectada com as necessidades do mundo e da própria Igreja. Para que ela ocorra, é necessário que esteja encarnada no cotidiano de cada um que faz a organização, como aponta Murad (2010). Discutir os pontos centrais que levam uma organização com essas características a encontrar longevidade em seus empreendimentos e no cumprimento de sua missão é algo que vem despertado interesse recente por uma série de teóricos do campo da gestão (BARNEY, 1996; TEECEE; PISANO; SHUEN, 1997; COLLINS; PORRAS, 1999; COLLINS, 2013). Além desse interesse, é possível perceber os movimentos da própria Igreja2, no sentido de renovar o seu elã, no alvorecer do século XXI. Este trabalho defende a ideia central de que o elã da organização

2. A eleição do Papa Francisco, no Concílio de 2013, é entendida por estudiosos das ciências religiosas como um sinal de mudança e modernização da estrutura da Igreja, apontando para o estabelecimento de mudanças significativas nas estruturas e nas perspectivas da Cúria Romana.


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e a manutenção da sua perenidade, bem como a fidelidade à sua missão, são fortemente influenciados por um conceito explorado no campo da gestão e das ciências sociais: as Capacidades Dinâmicas (CD) (TEECHE; PISANO, 1994). A ciência da administração recebe, em muitos momentos, contorno áspero. Em função de sua natureza numérica e prescritiva, acaba por estar associada apenas àquelas questões que concernem à sustentabilidade financeira, olhando mais para o desempenho econômico, sem considerar, com isso, as relações humanas e as dimensões diversas da estratégia, vinculadas ao desenvolvimento da gestão de uma organização no longo prazo. Isso, de fato, se configura um equívoco, uma vez que é preciso compreender, antes de tudo, a natureza da organização, seus propósitos e princípios, para fazer sua missão crescer e se cumprir (COLLINS; PORRAS, 1999). Drucker (1999) referencia o desafio que as organizações enfrentam para construir narrativas consistentes não apenas do ponto de vista

de sua sustentabilidade financeira, mas, principalmente, no que se relaciona ao seu legado estratégico. Ao olhar esse debate desde o ponto de vista do Instituto Marista, é possível encontrar em suas raízes e em seus movimentos mais recentes um olhar pertinente para a questão da estratégia, ainda que essa não tenha sido deliberadamente planejada, mas tenha sido impulsionada, eventualmente, mais por uma vontade prática do que por um planejamento sistemático do que fosse necessário fazer para dar conta das iniciativas. Refletindo sobre esse tema, Sammon (p. 5, 1997) elucida: “Enquanto os outros se perguntavam por que as ideias inovadoras que tinham não chegavam a se realizar, ele [Champagnat], ao contrário, sonhava e assumia todos os riscos para dar à luz esses sonhos”. Nessa reflexão, é possível encontrar capacidades que, ao longo do tempo, moldaram o jeito de construir a organização que se tem hoje e reverberam, ainda, na maneira de ser, agir e construir um instituto religioso bicentenário.

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Este trabalho, de maneira ampla, discute a construção destas Capacidades Dinâmicas, referenciadas pela primeira vez por Teece, Pisano e Shuen (1997), caracterizadas como aqueles elementos, que, ao mesmo tempo, geram a habilidade da organização em mover-se para o futuro, sem, contudo, deixar de lado a sua essência. Para dar conta da investigação em torno desse tema, foram selecionados dois importantes documentos do Instituto Marista, de períodos históricos distintos, mas que revelam a essência da organização: (a) o Guia das Escolas (FURET et al., 2009), em sua primeira edição; e (b) o documento Missão Educativa Marista (MEM) (1998). Além disso, foram utilizadas referências institucionais, como as cartas de Marcelino Champagnat. Assim, a partir desses dois recortes, será traçada a discussão sobre quais Capacidades Dinâmicas são referidas em ambos os documentos, a relação e as características delas e a forma como se inter-relacionam e marcam a es-

sência do Instituto Marista, ainda hoje. A questão central deste artigo, assim, pode ser traduzida na seguinte questão: “Quais as Capacidades Dinâmicas emergentes em duas épocas distintas – início do século XIX e final do século XX – do Instituto Marista, que contribuem para a estruturação da estratégia de continuidade do carisma e sustentabilidade da missão?”. O objetivo, portanto, é analisar os diferentes aspectos, prescritivos, discricionários ou orientadores, em torno das CD que emergem da leitura desses documentos, realizando um paralelo entre eles, a partir de uma análise de conteúdo temática (BARDIN, 2010). Sabe-se da limitação de se esgotar essa discussão, uma vez que a história da instituição é ampla e diversa, estando espalhada por todos os continentes e com interpretações diversas sobre o próprio modo de cumprir a missão. O ponto central é lançar luz sobre a discussão, a fim de oferecer novos subsídios para debate desse tema. Para dar conta de tal tarefa, o trabalho é composto dessa introdução, que


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traz as linhas gerais do que está sendo pesquisado, bem como a descrição do problema e do objetivo da pesquisa; na sequência, é explorada a revisão de literatura, baseada em dois pilares: (a) os conceitos sobre gestão, estratégia e Capacidades Dinâmicas; e (b) o debate em torno das características do Instituto Marista, documentos basilares e outros temas. Na sequência, são apresentados os aspectos metodológicos, bem como a descrição das etapas cumpridas. Na penúltima sessão, são discutidos os resultados do estudo e suas implicações. Por fim, apresentam-se as conclusões e, ainda, as referências utilizadas para a elaboração deste artigo. ELEMENTOS TEÓRICOS PARA ANÁLISE A estruturação dessa revisão de literatura cumpre alguns critérios, no sentido de dar um corpo teórico relevante ao trabalho. Assim, procura-se explorar os conceitos e as ideias mais recentes sobre o tema da estratégia, aliando a isso o debate sobre missão e perenidade

de organizações como a instituição marista. Na sequência, é elucidado o debate sobre Capacidades Dinâmicas (CD), introduzido por Teece, Pisano e Shuen (1997), derivado dos estudos sobre a Visão Baseada em Recursos (RBV), inaugurada por Penrose (1959). O desejo, contudo, não é exaurir esses conceitos, mas apenas oferecer os elementos basilares que conduziram a essa reflexão, que corrobora com o contexto do Instituto Marista, seu jeito de atender à missão legada pelo fundador, Marcelino Champagnat. Sobre a dimensão do carisma, que compreende a missão, o espírito e a espiritualidade marista, é importante mencionar quão profícua é em produções de artigos e outros textos, desde as origens da congregação. Assim, foram selecionados alguns aspectos para serem debatidos, fazendo um movimento de diálogo entre textos mais seminais (FURET et al., 1853; FURET, 1999) e reflexões mais recentes, preconizadas, sobretudo, pelos Superiores-Gerais do Instituto Marista (ARBUÉS, 2000; SAMMON, 2008; TURÚ, 2015).

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Estratégia, Missão e Perenidade

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A elaboração da estratégia passa, invariavelmente, por uma conjugação de fatores internos e externos que, a partir de uma leitura acurada dos gestores, contribui para a reflexão e tomada de decisão sobre os movimentos que a organização deve conduzir (DRUCKER, 1999). Sobre essa discussão, alguns autores (O’BRIEN; MEADOWS, 2013; SCHOEMAKER; DAY; SNYDER, 2013) discutem o papel da leitura de cenários e o uso da inteligência da organização e de seus gestores no processo de formulação estratégica. A orientação das organizações em um mundo cada vez mais globalizado e com fontes de informação infinitas coloca os gestores em uma situação de atenção e cuidado no que se refere à leitura dos cenários e entendimento do contexto da organização. O’Brien e Meadows (2013) defendem a importância da capacidade da organização de fazer leitura apropriada dos seus cenários estratégicos, uma vez

que esses podem impactar não apenas na condução futura da organização, como ainda levar a uma perda da essência, que deve ser mantida e sustentada ao longo dos anos. O processo de gestão estratégica das organizações é algo que desperta pesquisas em diferentes campos da administração. As grandes áreas de estudo da gestão se debruçam sobre o tema da estratégia e buscam entender a forma como as organizações formulam e implementam as suas estratégias. Por trás disso, assim como apontam Chenhall e Langfield-Smith (2007) e Neely, Adams e Crowe (2001), está a preocupação central das organizações, que é gerar resultados. De fato, a máxima que exige um processo de aferição dos resultados das organizações é vaticinada por grande parte dos autores de estratégia, que apontam como imperativa a necessidade de planejar, mas que esse planejamento conduza a resultados efetivos. Contrariando essa visão da aceleração, autores como Collins e


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Porras (1999) e Collins (2013) discutem a necessidade da organização de se manter fiel aos seus princípios fundadores. É essa dimensão, segundo os autores, que garante a sustentabilidade da estratégia e, consequentemente, da organização, no longo prazo. Com uma perspectiva semelhante, Teece (2010) revela uma preocupação constantemente presente em seus trabalhos: a dinâmica acelerada do mundo dos negócios e a capacidade que as organizações possuem de organizar recursos para geração de vantagem competitiva. Nesse caso em específico, o autor trata o debate em torno da criação de um modelo de atuação como um recurso fundamental para a organização, uma vez que ele estabelece o fluxo dos processos de tomada de decisão entre os principais interessados na organização. Assim, a organização, como propõe Barney (1991), deve, em primeiro lugar, conhecer as suas competências e recursos essenciais vinculados à sua missão e ao seu apelo fundacional. De nada adianta aparecerem

oportunidades extraordinárias no ambiente se elas contrariarem o jeito de ser da organização, sua missão e sua visão de futuro. Na discussão sobre estratégia, a formação de valor e a criação das vantagens competitivas despertam muito interesse, uma vez que é a forma que a organização possui para manter seu crescimento. Teece (2010) coloca essas dimensões do valor e da vantagem competitiva como algo central do debate sobre estratégia. E, para gerar um valor que seja permanente, ou permanentemente renovado (TEECE, 2010), é importante que a organização saiba lidar com a modelagem da sua atuação, modificando o que precisa ser modificado, mas garantindo a sua sustentabilidade e perenidade ao longo do tempo, sem desconfigurar a sua essência. Esse equilíbrio constante entre a capacidade de se reinventar e, ao mesmo tempo, mudar é explorada de forma substancial pela discussão em torno das Capacidades Dinâmicas, que serão apresentadas a seguir.

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Capacidades Dinâmicas: habilidades de reinvenção de organizações longevas

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Teece (2010), Teece e Pisano (1994) e Teece, Pisano e Shuen (1997), dentro da discussão da RBV (Resourse Based-View), constroem o argumento de que não importam apenas os recursos e as competências que a organização possui (BARNEY, 1991; PRAHALAD, HAMEL, 1990) para dar conta da manutenção da perenidade e das vantagens competitivas duradouras. O argumento central se assenta na possibilidade – através do conhecimento, estudo e pesquisa – que as organizações possuem de, em um tempo não muito longo, conseguir copiar ou mimetizar determinado recurso. Dessa maneira, o recurso deixa de ser o sustentáculo da estratégia. Para oferecer uma explicação mais abrangente, os autores propõem uma visão complementar. Os recursos seguem importantes para a organização, principalmente os intangíveis3, mas a capacidade de movimentar os recur-

sos, renovando-os ou fixando-os, é que deve ser explorada pela organização (TEECE; PISANO; SHUEN, 1997). Essa categoria conceitual foi denominada pelos autores como Capacidades Dinâmicas (CD). Elas são capacidades que asseguram, ao mesmo tempo, a perpetuidade dos elementos centrais de uma missão, bem como sua atualização constante. Dessa maneira, Teece, Pisano e Shuen (1997) referenciam essa categoria teórica como um elemento fundante da estratégica de organizações longevas, à medida que elas oferecem a possibilidade de se renovar constantemente, sem perder a essência. De acordo com a teoria das CD, a organização usa dois tipos de capacidade: operacionais ou dinâmicas. Cada capacidade possui efeitos diferentes sobre a base de recursos e a vantagem competitiva das organizações (TEECE; PISANO; SHUEN, 1997). As capacidades operacionais (Operational Capabilities – OP) são desenvolvidas na firma de forma continuada, baseadas em padrões

3. Os recursos podem ser caracterizados como todos os elementos utilizados nos processos da organização: seja um insumo, um conhecimento ou o próprio elã da organização, as capacidades dos funcionários, etc. Os recursos intangíveis recebem mais destaque nesta discussão por serem mais difíceis de serem mimetizados, uma vez que dependem de aspectos subjetivos e culturais (BARNEY, 1991).


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mais estáveis nas técnicas, escalas, produtos e mercados consumidores (HELFAT; WINTER, 2011). Uma CD envolve procedimentos voltados para a modificação dessas OP. As organizações usam CD para ganhar flexibilidade operacional e modificar a forma com que criam valor. A história das organizações que operam de maneira fundamental suas CD acaba gerando aquilo que os autores chamam de path dependence, caracterizada como o impacto da história da organização sobre seu próprio futuro. Assim, a construção das trajetórias organizacionais está condicionada pelos próprios movimentos históricos que a organização construiu até certo momento na história (TEECE; PISANO; SHUEN, 1997). A path dependence tem um impacto significativo na formação e na dissolução das CD (TEECE; PISANO; SHUEN, 1997; TIDD; BESSANT; PAVITT, 2008), uma vez que mesmo superadas a resistência e assimiladas as novas CD à cultura organizacional, o

histórico (inclusive aquele gerado pela implementação do processo) permanecerá como parte do posicionamento organizacional. Carisma e a Missão Educativa Marista: um apelo renovado Uma organização longeva, com quase dois séculos de história, desenvolve CD no sentido de garantir a perenidade do seu carisma. Essas capacidades podem ser encontradas em diferentes contextos, desde o comportamento dos seus membros, passando pelos seus ritos, seu Fundador ou outros aspectos. O carisma marista, legado por Marcelino Champagnat, se encontra hoje representado pela expressão do trabalho de milhares de pessoas ao redor do mundo. Nos primórdios do Instituto, as motivações para criá-lo estavam alicerçadas em um forte apelo da Igreja pela educação. Furet (1999), biógrafo oficial da vida de Marcelino Champagnat, lembra em prólogo a emergência significativa dos institutos religiosos dedicados à educação de crianças

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e jovens, no alvorecer do século XIX, citando um número expressivo de outras congregações que emergiram desse apelo.

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Champagnat, de certa forma, foi inspirado por esse movimento e levado a construir o Instituto dos Irmãos Maristas, como bem conta a história. Furet (1999, p. 23) narra as consequências do Concílio de Trento, que influenciou, de maneira significativa, três movimentos na Igreja, que podem ser caracterizados como precursores da fundação do Instituto Marista: (1) a reanimação do zelo do clero pela instrução (educação) de crianças e jovens, estabelecendo o ensino do catecismo; (2) a revitalização da forma de ensinar o catecismo às crianças, preconizando o letramento, para um melhor entendimento dos ensinamentos; e (3) a fundação de sociedades religiosas dedicadas ao catecismo e à educação de crianças e jovens, conforme ocorreu com o Instituto Marista. Nos primórdios, o Instituto foi, em grande medida, inspirado nos Irmãos das Escolas Cristãs (Las-

salistas), segundo apresenta Furet (1999). A inspiração de Champagnat estava em oferecer formação para as crianças e jovens empobrecidos, principalmente, aqueles localizados na zona rural, distantes das cidades, onde o trabalho da congregação fundada por São João de La Salle possuía mais expressão. Nesse contexto, as Constituições do Instituto (2010, p. 17), em seu segundo artigo, já expressa o que vem a ser o apelo fundacional da missão legada por Champagnat: “Tornar Jesus Cristo conhecido e amado”. O espaço privilegiado para exercer esse apostolado é o campo da educação. Desde a fundação do Instituto, ainda que os tempos venham mudando e o conceito moderno de educação, alavancado pela Constituição e estudos da pedagogia tenham se alterado, ainda há relação com aquele papel que o Fundador gostaria que a instituição ocupasse, no sentido de oferecer uma formação adequada às crianças e aos jovens pobres. Esse campo privilegiado de atuação é legado às gerações futuras dos Irmãos Maristas. Mes-


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mo que tenham, de certa maneira, ampliado o espectro de sua atuação, é evidente a relevância significativa que as obras educativas possuem na história do Instituto Marista, seguindo fiel ao seu apelo fundacional. Ao olhar para trás e perceber as profundas raízes da missão marista, todos os superiores-gerais do Instituto apontaram caminhos e trajetórias para renovar o espírito fundacional. Questionar, constantemente, por que se existe é uma forma de não apenas discursar retoricamente sobre os fundamentos que construíram a instituição, como, ainda, estabelecer as bases para a construção do futuro. Nesse contexto, Turú (2015) convoca o Instituto Marista a realizar essa e muitas outras perguntas, no sentido de aprimorar a missão e fazê-la ecoar em diferentes contextos. Diante de uma missão que se renova cotidianamente, podem ser encontradas aquelas Capacidades Dinâmicas, que, ao mesmo tempo, mantêm a essência e são capazes de transformar as gerações que dão sucessão a uma causa específica

e a um apelo fundacional que necessita de atualização (BARRETO, 2010). Assim, se torna relevante a compreensão dessas capacidades para fazer avançar a missão, em novos tempos e em outros cenários. Na sequência, são apresentadas as estratégias metodológicas utilizadas para levar a cabo a pesquisa proposta neste estudo. PERCURSO METODOLÓGICO Este estudo se caracteriza como uma pesquisa documental, utilizando como técnica a análise de conteúdo categórica, embasada nas prerrogativas de Bardin (2010) e Flick (2009). A análise de conteúdo temática se refere ao agrupamento e à comparação de conteúdos em documentos textuais ou não. No caso da análise em questão, optou-se pela utilização de dois documentos relevantes sobre a prática pedagógica marista: o Guia das Escolas4 (1853) e a Missão Educativa Marista (1998). Os documentos oferecem uma cobertura bastante distinta do ponto de vista temporal, característica relevante para o estudo, pois ele busca

4. Editado pela primeira vez em 1853, o Guia das Escolas foi reeditado e reimpresso no Brasil em 2009, versão que foi utilizada para a realização deste trabalho.

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pontos de convergência e ainda de divergência que possam elucidar a construção de Capacidades Dinâmicas no Instituto Marista.

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A análise dos dados compreendeu as etapas sugeridas por Bardin (2010) e que se referem à pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Durante a pré-análise dos dados, que, segundo Bardin (2010), se trata do processo de organização dos dados em si, entendendo sua dinâmica e apontando para o processo de esquematização da próxima fase da pesquisa. Nessas etapas se cons-

trói e se prepara a base de dados. Para Bardin (2010), esse processo tem três objetivos: a escolha dos documentos, a formulação das hipóteses e dos objetivos e a formulação dos indicadores. Assim, esse processo esteve alinhado aos objetivos de pesquisa expostos neste trabalho e fundamenta as discussões realizadas. As unidades de registro adotadas, dessa maneira, estão vinculadas à temática e, a partir delas, estabeleceram-se as categorias de análise para este estudo. Assim, foram estabelecidas, a partir do referencial teórico, as categorias de análise para decomposição das CD pertinentes:

Quadro 1: Categorias de análise Categoria

Descrição

Missão marista

Aspectos que se remetem ao que é o fazer da instituição, bem como sua razão de ser e as motivações de sua criação.

Atitudes esperadas pelos Irmãos/Educadores

Aspectos ligados ao comportamento e às competências dos participantes da missão marista.

Estratégias de atuação

Aspectos vinculados à maneira de atuar da instituição como um todo, conectando a missão às atitudes das pessoas.

Apelos fundacionais

Aspectos que descrevem a história dos primeiros Irmãos e a formação do “jeito marista” de ser e educar.

Fonte: o autor


CARISMA E GESTÃO: A CONSTRUÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE CAPACIDADES DINÂMICAS NO INSTITUTO MARISTA

Para realização da análise dos dados, como já referido na escolha, foi utilizado o método de análise de conteúdo. Segundo Bardin (1977), a análise de conteúdo, como método de análise dos dados de uma pesquisa, é composta por vários procedimentos que são explicados a seguir. O processo de organização da análise de conteúdo dos artigos seguiu, dessa forma, os passos sugeridos por Bardin (1977), no sentido de se chegar às inferências que compreendem a análise dos resultados da pesquisa e, ainda, as considerações gerais deste trabalho. A análise de conteúdo diz respeito à construção de tais inferências a partir do tratamento lógico dos dados escolhidos para a análise. Para facilitar o manuseio dos dados, bem como a construção dos códigos e das categorias, ao longo do processo de leitura e interpretação, se utilizou o software MAXQDA 10. Os dados compreendem um elemento central no processo de análise de conteúdo, pois formam aquilo que Bardin (1977) chama de corpus da pesquisa. Assim,

por se tratar do estudo de dados secundários, foram estabelecidos alguns critérios para a seleção do material. A partir dessas categorias iniciais, foram realizadas as análises do material existente. No próximo tópico, são discutidos os elementos centrais encontrados ao longo da pesquisa documental. CONSTRUÇÃO DAS CAPACIDADES DINÂMICAS NO INSTITUTO MARISTA Ao longo da pesquisa, como já mencionado, foram escolhidos dois documentos distintos, de dois períodos históricos relativamente distantes, mas que caracterizam a essência da instituição marista. De maneira ampla, a seguir é apresentada a caracterização de ambos no sentido de dar maior consistência e entendimento ao material de estudo estabelecido. Editado pela primeira vez em 1853, o Guia das Escolas (FURET et al., 2009) foi elaborado no sentido de disseminar os ensinamentos do Fundador, já que se vislumbrava, no futuro, o crescimento e o

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avanço da expansão da missão marista. À época da elaboração desse documento, o mundo marista correspondia a apenas três províncias, todas em território francês. Comparado ao período de elaboração do documento Missão Educativa Marista (MEM) (1998), esse período histórico é bastante distinto e reflete, de forma objetiva, as condições socioculturais daquela sociedade. Enquanto o MEM oferece uma discussão aprofundada sobre

documentos da Igreja e até mesmo reflexões pedagógicas sobre o ser humano, o Guia das Escolas (2009) tem um caráter de manual, com prescrições objetivas de como deve se conduzir o cotidiano de uma sala de aula e o funcionamento da escola, enquanto estrutura mínima. Na sequência, é estabelecido um quadro que sintetiza as características dos documentos, baseado em Farneda (1997).

Quadro 2: Síntese dos aspectos gerais dos documentos analisados | 22 |

Aspectos

Guia das Escolas

Missão Educativa Marista Comissão Internacional da Missão Marista Ir. Henri Vignau – Conselho-Geral - Roma Ir. Jeffrey Crowe – Conselho-Geral - Roma

Autores

Furet é o responsável final pela redação, contudo os membros do 2º Capítulo Geral do Instituto revisaram o documento em várias sessões de discussão.

Ir. Carlos Martinez Lavin – México Ir. Dominick Pujia – Estados Unidos Ir. Honoré Rakatonorivo – Madagascar Ir. Manoel Alves - Brasil Ir. Manuel de Léon – Filipinas Ir. Mark Farrelly – Austrália Ir. Maurice Bergeret – França Ir. Miguel Cubeles – Espanha Prof. Alberto Libera – Bolívia Profa. Emma Casis – Filipinas


CARISMA E GESTÃO: A CONSTRUÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DE CAPACIDADES DINÂMICAS NO INSTITUTO MARISTA

Organização

Dividido em três partes, subdivididas em trinta e três capítulos, e estes em 65 seções, com diferentes números de itens.

O documento está dividido em três partes; as partes estão organizadas por números de parágrafos, em tópicos.

Documentos Norteadores

Bíblia Sagrada Catecismo da Igreja

Diversos, com destaque para as Cartas dos Superiores-Gerais, a biografia escrita por Furet e encíclicas papais.

Fonte: Elaborado pelo autor (2015), com base em Farneda (1997)

A partir de uma visão geral dos documentos, é possível traçar os aspectos que se referem ao que se está estudando de maneira central neste artigo: como as Capacidades Dinâmicas se materializam ao longo dos documentos, traduzindo os espíritos de suas épocas. O objetivo aqui é levantar as evidências que traduzem, ao longo do texto, os aspectos centrais da pedagogia e do jeito de ser marista, que corroboram com os comportamentos fundacionais. Esses comportamentos indicados, em diferentes épocas, e fortalecidos pelo estímulo cotidiano das gerações de maristas que passaram pela instituição indicam uma perspectiva daquilo que pode ser identificado como Capacidades Dinâmicas.

Ao longo da pesquisa, utilizando-se da técnica de análise de conteúdo embasada em Bardin (2010) foi possível realizar a leitura dos dados e categorizar alguns indícios que são discutidos a seguir, apontando evidências textuais e comparativas entre os documentos estudados. Os temas foram organizados por tópicos, a fim de favorecer a compreensão e a amarração final do trabalho. Missão Marista Presente em ambos os documentos, o tema da missão marista é o ponto de partida das duas propostas de sistematização das práticas e do “jeito marista de ser”.

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Enquanto o Guia das Escolas (2009) aponta ser um marco que descreve as prescrições do Fundador, o MEM (1998) aponta para uma visão mais holística, respeitando toda a tradição centenária da educação marista. Contudo, a essência da missão permanece praticamente inalterada, quando as publicações são postas lado a lado. Na apresentação do documento, isso se materializa. O MEM (1998) traduz o apelo fundacional da missão como sendo “finalidade fundacional de Marcelino Champagnat: oferecer uma educação a todos aqueles privados da oportunidade de adquiri-la ou marginalizados pela sociedade” (MEM, 1998, p. 7), e o Guia das Escolas (2009) aponta nesta mesma direção: “A sua missão, diz ele, condensando o pensamento em admirável fórmula, é formar bons cristãos e virtuosos cidadãos” (FURET, 1999, p. 26). Além de traduzir em uma perspectiva prática o objetivo fundacional da missão marista, a proposta do Guia das Escolas (2009) corrobora com os próprios escritos do Fundador. Ao analisar

a carta número 34, por exemplo, é possível verificar nas suas próprias palavras a descrição e o indicativo de qual foi o elã inicial que o levou a fundar o Instituto Marista: “Compreendi desde então a urgente necessidade de uma instituição que pudesse, com menor custo, proporcionar aos meninos da região rural o grau satisfatório de ensino que os Irmãos das Escolas Cristãs proporcionam aos meninos carentes das cidades” (CHAMPAGNAT, 1997, p. 91). As evidências em torno da consonância da missão e do apelo que se faz em ambos os documentos sobre a necessidade de os maristas se manterem fiel ao seu apelo fundacional são significativas. Em muitos momentos, os autores das duas obras reforçam a missão como apelo fundacional e aspecto carismático central da instituição marista, colocando seus destinatários, crianças e jovens, como públicos privilegiados do desempenho de tal missão. A finalidade e a perspectiva da instrução dos jovens é o apelo que se traduz e se renova ao longo dos anos.


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Atitudes esperadas pelos Irmãos/Educadores

ponto, é mais ampla, pedagógica e, em certos pontos, filosófica.

Outro aspecto relevante de se observar ao longo dos documentos são as atitudes esperadas que traduzem a educação e o “jeito de fazer” marista. Furet (2009) já nos primeiros tópicos explicita quais são as características de uma boa educação cristã e quais as atitudes necessárias dos Irmãos que se dispõem a exercê-la. Nesse contexto, o autor sugere uma série de características que são explicadas como sendo a tradução de um bom Irmão ou Educador. Essa prescrição, certamente, era levada à risca nos momentos de formar os Irmãos ao longo dos anos e colocá-los em sala de aula. A parte 3 do Guia das Escolas (2009) se dedica, explicitamente, a traçar as características de um bom educador, das virtudes que ele deve possuir e das posturas que deve expressar. Esses aspectos são reforçados de forma não prescritiva pelo MEM, como forma de estimular os educadores a buscar um jeito de educar de maneira integral, traduzindo a pedagogia marista. A reflexão, neste

No legado de Marcelino, é possível encontrar em várias cartas a maneira como ele gostaria de ver o comportamento dos Irmãos Maristas, bem como o apreço que despendia a eles, inspirando-os a servirem de exemplo para os estudantes maristas. Nesse sentido, na carta de número 19, de 1831, revela o entusiasmo do precursor da missão marista em inculcar nos Irmãos uma postura de amor, cuidado e apreço em relação às crianças e jovens. “Toda a vida deles será eco daquilo que você lhes tiver ensinado. Esforce-se, não poupe nada para formar à virtude seus corações juvenis” (CHAMPAGNAT, 1997, p. 58), sugere o Fundador para o Irmão destinatário da carta, estimulando-o a ter uma atitude de acolhida e zelo pelos estudantes que lhe eram confiados. Estratégias de atuação Tanto o Guia das Escolas (2009) quanto o MEM (1998) são fartos em apontar estratégias de atuação

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consonantes com o jeito marista legado por São Marcelino Champagnat. Pelo seu tom prescritivo e discricionário, o primeiro documento acaba por apontar as minúcias de comportamento esperado de um educador, enquanto o MEM aponta, de forma mais ampla, por quais caminhos deve-se conduzir a educação marista, frente aos novos desafios do tempo atual. Contudo, os dois documentos deixam evidente a necessidade de se contar com as pessoas, com os educadores, para levar em frente a forma de construir essa educação baseada em uma pedagogia da presença e do amor. Uma novidade significativa é a expansão das fronteiras de atuação marista para além da educação, que aparece de forma explicita no MEM. O discurso mais abrangente de uma educação que não está circunscrita apenas pelo contexto escolar é uma abordagem que diferencia o MEM do Guia das Escolas. Enquanto o primeiro atualiza a missão e a coloca no mundo, de maneira mais ampla e irrestrita, o segundo estabelece as bases para o

florescimento e expansão de uma organização que está em seus primeiros passos. Esse discurso presente no MEM (1998) é a consolidação de um processo histórico de diversificação das frentes de atuação marista, que passou da educação básica para o ensino superior, em vários países do mundo. As estratégias são encorajadoras, com um tom fraternal, estimulando os leitores a conhecerem e se aprofundarem no jeito marista de viver a educação. O estudante é colocado no centro desse processo, sendo apontado como o destinatário central do processo educativo. Apelos fundacionais Em ambos os documentos analisados, foi possível perceber o papel significativo que o apelo fundacional – da criação de um Instituto Religioso para a formação de crianças e jovens – é presente ao longo dos documentos. Em vários artigos, o MEM resgata o apelo fundacional do Instituto, apontando, até mesmo, as Constituições Maristas para justificar a missão em torno do tema da evangeliza-


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ção dos jovens. Essa expressão – evangelização –, importante frisar, não é um termo corrente na época da redação do Guia das Escolas (2009), ela materializa uma tradução ou atualização da catequização, daquilo que era considerado disseminado na sociedade cristã da época: a escola catequizava os alunos. Com o advento de uma visão laical da educação, esse tema teve de ser atualizado a fim de responder aos apelos contemporâneos. Os apelos do Fundador e os temas vinculados à educação, no sentido cristão, estão presentes significativamente nos documentos, uma vez que tanto o MEM quanto o Guia buscam nas palavras e nos ensinamentos de São Marcelino suas inspirações. CONSIDERAÇÕES FINAIS Elaborar um trabalho que verse sobre a construção de Capacidades Dinâmicas em organizações com cunho religioso, como o caso do Instituto Marista, é a tentativa de aproximar dois universos de estudo e prática por vezes distantes. A busca por uma compreensão mais acurada dos fenômenos de gestão

que ocorrem no corpo de organizações com esse particular merece atenção e perspicácia, possibilitando um entendimento mais amplo de sua história, ao transcender as narrativas místicas e espirituais vinculadas ao Fundador. O objetivo deste artigo foi analisar os diferentes aspectos, prescritivos, discricionários ou orientadores, em torno das Capacidades Dinâmicas que emergem de dois documentos específicos do Instituto Marista: o Guia das Escolas (2009) e o Missão Educativa Marista (1998). Ao chegar ao final da pesquisa, é possível afirmar que esse objetivo foi alcançado, uma vez que se chegou a alguns elementos centrais, que podem ser caracterizadas como Capacidades Dinâmicas emergentes em diferentes épocas. Contudo, é importante reforçar que este é um estudo exploratório inicial e que uma gama significativa de outras capacidades pode emergir de estudos futuros. Uma limitação presente no estudo é a sua natureza de corte transversal, bem como a utiliza-

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ção de dados secundários para a realização da pesquisa. Ainda que o trabalho tenha se proposto a usar tais recortes, é importante salientar que resultados mais ricos e precisos poderiam emergir de uma pesquisa de campo com o cruzamento dos dados secundários com dados primários, envolvendo entrevista em profundidade ou outras técnicas de coleta e tratamento do corpus da pesquisa.

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As contribuições podem ser traduzidas como a possibilidade de se ampliar o campo de discussão do tema das Capacidades Dinâmicas em um ambiente fértil, característica de um instituto religioso de quase dois séculos. Como estudo futuro, sugere-se a ampliação das discussões relacionando as duas áreas, bem como a possível exploração do tema com um viés longitudinal de estudo, validando os construtos trabalhados teoricamente por meio do levantamento dos dados secundários, através da aplicação de survey ou a construção de modelos de hipóteses para a explicação dos fenômenos.

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ESTUDOS

Maurício Perondi5

DAS TOPIAS E UTOPIAS DE MARCELINO CHAMPAGNAT: O NASCIMENTO DE UMA GRANDE OBRA EDUCATIVA | 31 |

RESUMO Este trabalho surgiu de uma pesquisa sobre a motivação e a forma como Marcelino Champagnat desenvolveu o seu sonho de criação do Instituto Marista, no interior da França, no período que seguiu a Revolução Francesa. Realizamos uma investigação qualitativa, que teve como fontes primárias a Promessa de Fourvière e cartas escritas e recebidas por Champagnat. Os resultados apontaram que a motivação central de Marcelino pode ser chamada de “uma utopia fundante”, através da qual mobilizou-se para a fundação do instituto, a partir de uma articulação conjunta entre doze colegas seminaristas, que criaram originalmente a Sociedade de Maria. Para a concretização de sua utopia, foi essencial um “acontecimento fundante”, que foi o encontro com o jovem Montagne. Ambos os aspectos se concretizaram através de um lócus específico, que é o mundo da educação no qual o Instituto se estruturou e se expandiu.

PALAVRAS-CHAVE: Marcelino Champagnat. Utopia. Educação. 5. Graduado em Filosofia. Mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. É membro do Centro de Pastoral e Solidariedade e do Observatório Juventudes, ambos da PUCRS. Participou do Curso de extensão em Patrimônio e Espiritualidade Marista – Edição 2014. E-mail: <mauricio.perondi@pucrs.br>.


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INTRODUÇÃO Só é capaz de criar quem tem sonhos, só é capar de grandes feitos quem tem utopias; do contrário, só se reproduz o que já existe. Marcelino Champagnat foi alguém que teve sonhos e utopias. Isso o levou a criar o Instituto dos Irmãos Maristas, dedicado à educação de crianças e jovens há quase dois séculos.

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Nas memórias maristas e nas formações sobre o carisma e sobre o instituto, costumamos ouvir que houve um acontecimento fundante (LANFREY, 2013), bastante conhecido, que é o “fato Montagne”. No entanto, ao aprofundarmos os antecedentes da vida de Champagnat, percebemos que tal fato só foi possível porque, antes, existiu uma “utopia fundante”, que tem como momento emblemático a Promessa de Fourvière. Desse modo, defendemos neste trabalho a ideia de que o fato fundante de Montagne tem suas raízes na utopia de Fourvière.

Segundo Ainsa (2006, p. 23 e p. 47), a versão mais aceita sobre o termo utopia vem do grego u-topos, que quer dizer “não lugar”, ou seja, um lugar que ainda não existe, mas que se busca construir, através do ideal de que a realidade do presente pode ser melhor no futuro. Por isso, “a utopia se projeta a partir dessa necessidade do homem de apostar no futuro, porque os desejos, os sonhos e as esperanças, os programas e os objetos são os motores das suas ações”. A partir desse conceito, entendemos que Marcelino Champagnat teve uma grande utopia, que o levou, junto com outros, a fundar o Instituto dos Irmãos Maristas. Para a realização da pesquisa que originou este trabalho, optamos pela metodologia qualitativa, que teve como base a análise documental de fontes importantes da história inicial do Instituto. Para tal, utilizamos a Promessa de Fourvière e mais quatro cartas enviadas ou recebidas por Marcelino Champagnat.


DAS TOPIAS E UTOPIAS DE MARCELINO CHAMPAGNAT: O NASCIMENTO DE UMA GRANDE OBRA EDUCATIVA

Na primeira parte do trabalho, buscamos aprofundar como aconteceu o surgimento da utopia de Champagnat para a fundação do Instituto, desde a sua trajetória no Seminário de Lião, onde, conjuntamente com um grupo de outros onze seminaristas, lançou as bases da Sociedade de Maria. Na segunda parte do texto, aprofundamos como e onde Champagnat concretizou a sua utopia (sonhos), ou seja, quais foram as topias (lugares) que possibilitaram que os seus ideais fossem colocados em prática. MARCELINO CHAMPAGNAT E A UTOPIA FUNDANTE Partimos do pressuposto de que houve uma utopia fundante para que Marcelino Champagnat criasse a Congregação dos Irmãos Maristas. Tal utopia seria o sonho coletivo vivenciado por um grupo de jovens seminaristas

no contexto de pós-Revolução Francesa, através da criação da Sociedade de Maria. Durante os anos de 1813 e 1816, Champagnat fez a sua formação religiosa para o sacerdócio no Seminário Maior Santo Irineu, em Lião, França. Ali associou-se a um grupo de seminaristas, liderado por um deles, chamado João Cláudio Courveille. Eles se reuniam frequentemente para a partilha de vida e para discutir assuntos relacionados à espiritualidade e à missão que enfrentariam logo que fossem ordenados (STROBINO, 2015, p. 69). Segundo Manfrey (2013, p. 60), o grupo constituía uma “pequena sociedade secreta6”, que buscava contribuir para regenerar a fé cristã no contexto pós-revolucionário. Seu sonho era criar uma grande Ordem Religiosa, a Sociedade de Maria, que seria subdividida em três ramos:

6. As sociedades secretas parecem ser algo que fascina, sobretudo os jovens. Um clássico do cinema que explora muito bem essa fascinação é o filme “Sociedade dos Poetas Mortos”, no qual o professor Keating (Robin Williams) incentiva os jovens estudantes de sua escola a pensarem por si mesmos. A partir desta motivação, eles criam uma sociedade e passam a realizar encontros numa caverna, onde leem poesias e expressam suas ideias (WEIR, 1989). Na área da literatura juvenil, Pedro Bandeira tornou-se um clássico, com mais de 30 milhões de livros vendidos, ao fascinar os jovens com as aventuras de um grupo de jovens chamado de “Os Karas”, que se reúnem em um local secreto do seu colégio, a partir de onde se envolvem em inúmeras aventuras de espionagem e de mistério.

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os Padres da Sociedade de Maria (ramo masculino), as Irmãs da Sociedade de Maria (ramo feminino) e os leigos da Sociedade de Maria (Ordem Terceira).

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No entanto, durante os seus encontros, Marcelino Champagnat insistia na necessidade e na conveniência de se ter um ramo masculino não sacerdotal, que seria só de irmãos. Sua atuação central seria na catequese, na educação e nas missões. Os demais membros do grupo não demonstraram grande apreço para com a ideia e sugeriram que o próprio Champagnat se ocupasse desse ramo, o que de fato veio a acontecer, posteriormente. Segundo Strobino (2015), ainda antes da sua ordenação, esse grupo de seminaristas se comprometeu através de uma promessa escrita, em que afirmavam que se apoiariam mutuamente, independentemente do lugar onde estivessem atuando. No dia 23 de julho de 1816, um dia após a ordenação, ratificaram a sua promessa numa celebração

realizada no Santuário de Nossa Senhora de Fourvière, em Lião. Esse compromisso ficou conhecido como Promessa de Fourvière, que é considerada a ata de fundação da Sociedade de Maria. Na sequência, apresentamos a Promessa na íntegra, realizada pelos doze jovens seminaristas: Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Tudo para a maior glória de Deus, e para a honra de Maria, Mãe de nosso Senhor Jesus Cristo! Nós, abaixo assinados, queremos trabalhar para a maior glória de Deus e de Maria, mãe de nosso Senhor Jesus Cristo, afirmamos que temos a sincera intenção e a firme vontade de nos consagrarmos, logo que surgir oportunidade, à instituição da piedosíssima Congregação dos Maristas. Eis porque, pelo presente ato, que leva nossas assinaturas, dedicamo-nos irrevogavelmente, nós e tudo o que temos, tanto quanto possível, à Sociedade da Bem-Aventurada Virgem Maria. Esse compromisso nós o assumimos, não levianamente como crianças, nem por razões humanas


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ou por algum interesse temporal, mas com toda a sinceridade, após termos refletido seriamente, tomado conselho e pesado tudo diante de Deus, unicamente para a glória de Deus e honra de Maria, mãe de nosso Senhor Jesus Cristo. Para atingirmos esse objetivo, dispomo-nos a assumir quaisquer contrariedades, trabalhos, sofrimentos e, se preciso, todos os tormentos; tudo podendo naquele que nos dá forças, nosso Senhor Jesus Cristo, a quem, por isso mesmo, prometemos fidelidade, no seio de nossa Mãe, a santa Igreja Católica e Romana; unindo-nos com todas as nossas energias, ao chefe santíssimo desta mesma Igreja, o romano pontífice, e também ao nosso reverendíssimo bispo, para, desse modo, sermos bons ministros de Jesus Cristo, nutridos pelas palavras da fé e da sã doutrina que recebemos por sua graça; confiamos que, sob o governo pacífico e religioso de nosso rei cristianíssimo, esta maravilhosa instituição será fundada. Prometemos solenemente nos doar, nós e tudo o que temos, para salvarmos as almas por todos os meios, sob o nome augustíssimo de Virgem Maria e sob seus

auspícios. Respeitamos, entretanto, em tudo, o parecer dos superiores. “Louvada seja a santa e imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria! Assim seja!” (FURET, 1999, p. 32).

Na leitura da Promessa, é possível perceber a intensidade do compromisso assumido, visto que eles destacam que têm “a sincera intenção” e a “firme vontade” de se dedicar à Sociedade de Maria, “logo que surgir oportunidade”. Também revelam que essa foi uma decisão refletida durante muito tempo e que não está sendo tomada de forma “leviana”, mas com a seriedade que a mesma requer. Outra característica presente na linguagem da Promessa é o seu caráter coletivo, visto que durante todo o texto é utilizada a terceira pessoa do plural: “nós, abaixo assinados, queremos trabalhar...”, “este compromisso, nós o assumimos...”, “prometemos solenemente nos doar...”. Geralmente, as consagrações religiosas são realizadas de forma individual, usan-

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do a primeira pessoa do singular: “Eu me consagro...”. Portanto, a própria linguagem aponta que a Promessa de Fourvière remete a um projeto coletivo, a uma utopia comum a esses jovens seminaristas.

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Geralmente, um sonho coletivo tem mais chances de obter êxitos do que projetos individuais, ainda mais quando se pretende realizar uma missão que tenha amplo impacto, como era o caso do projeto desses seminaristas de Lião. Já dizia a celebre frase de Cervantes: “Quando se sonha sozinho é apenas um sonho. Quando se sonha junto é o começo da realidade”. Outra característica da utopia é que ela cativa os que estão próximos, pois pessoas utópicas acabam inspirando e motivando que outras também acreditem em seus sonhos. Um exemplo é o que aconteceu com Jean-Claude Colin, que era um dos seminaristas do grupo de Champagnat. Ele era oriundo de uma família que havia sofrido perseguição durante a Revolução Francesa e ficara órfão aos quatro anos de idade. Tinha

problemas de saúde, que o fizeram interromper os estudos durante um ano por causa de uma grave doença que quase o levou à morte. De acordo com Strobino (2015, p. 77), era um jovem “de saúde frágil, muitas vezes adoentado, caracterizado como pouco entusiasta das ‘ideias novas’ que fermentavam entre os seminaristas. Entretanto, aderiu com simpatia ao projeto da Sociedade de Maria...”. O relato demonstra o quanto a contribuição do grupo pode ser importante para fomentar os ideais, visto que, mesmo com as suas fragilidades, Colin tomou iniciativas importantes em sua vida, tais como fundar a Congregação dos Padres Maristas, ser cofundador das Irmãs Maristas e ser o iniciador do envio de missionários maristas para as Missões da Oceania Ocidental. Quanto a Marcelino Champagnat, logo que foi nomeado como coadjutor numa vila chamada La Valla, uma pequena localidade no interior francês, começou também a arquitetar uma forma de concretizar a criação de um ramo de religiosos leigos.


DAS TOPIAS E UTOPIAS DE MARCELINO CHAMPAGNAT: O NASCIMENTO DE UMA GRANDE OBRA EDUCATIVA

Ao conhecer um jovem chamado João Maria Granjon, sentiu que ele poderia ser um dos primeiros membros da instituição que desejava fundar. Auxiliou em sua alfabetização, convidou-o para morar na vila, perto da igreja, onde poderia visitá-lo mais frequentemente e dar-lhe aulas mais seguidas. Nesse momento, sucedeu-se o acontecimento que foi determinante para que Champagnat decidisse fundar o Instituto, que é o “fato Montagne”. Na ocasião, foi convidado a visitar um jovem chamado João Batista Montagne, que se encontrava muito doente. Segundo Furet (1999, p. 82), durante a visita, percebeu que o jovem não conhecia nada da fé cristã e nem mesmo sabia se Deus existia. Temendo que morresse nessa situação, aproveitou para instruí-lo como foi possível e confessou-o ao final. Logo após, o jovem acabou falecendo. Tal fato marcou Champagnat de tal modo que, ao retornar para a paróquia, foi conversar com o jovem Granjon e lhe falou em seus

planos de fundar uma sociedade de irmãos, que se dedicasse à educação de crianças e jovens. Imediatamente, recebeu uma resposta positiva de Granjon. Isso aconteceu no dia 28 de outubro de 1816. Esse momento é considerado no Instituto um acontecimento fundante (LANFREY, 2013), pois, através dele, Champagnat percebe que “não há mais tempo a perder” (UMBRASIL, 2008, p. 120), ou seja, a criação do Instituto era algo urgente, que deveria se iniciar imediatamente. No entanto, como viemos sustentando desde o início deste trabalho, esse fato só foi possível porque Champagnat já nutria o sonho de criar um instituto com tal finalidade. Também contribuiu para a imediata efetivação do projeto o fato de que, logo no sábado seguinte, Champagnat conheceu outro jovem, chamado João Batista Audras, que se mostrou interessado nos propósitos do Instituto, que lhe foram apresentados. Isso motivou ainda mais para que se agilizassem os trâmites necessários,

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fazendo com que Champagnat comprasse uma pequena casa ao lado da Paróquia, onde, juntamente com os dois jovens, deu início ao Instituto dos Irmãozinhos de Maria (nome inicial do Instituto dos Irmãos Maristas), no dia 2 de janeiro de 1817. Assim como ocorrera com a criação da Sociedade de Maria, com os seus colegas seminaristas, o início do Instituto também foi uma obra coletiva de Champagnat, junto aos dois jovens. | 38 |

AS TOPIAS DE MARCELINO CHAMPAGNAT Conforme vimos, se utopia indica “o não lugar”, o ideal aonde se quer chegar; por outro lado, topia diz respeito ao “lugar concreto”, ou seja, o espaço onde a utopia se realiza. No caso de Marcelino Champagnat, pode-se dizer que a sua utopia se concretiza de modo efetivo através da educação de crianças e jovens. Em suas próprias palavras expressa:

Nascido no cantão de Saint-Genest-Malifaux, departamento de Loire, só consegui aprender a ler e a escrever à custa de imensos sacrifícios, por falta de professores capacitados. Compreendi desde logo a urgente necessidade de criar uma Sociedade que pudesse, com um gasto mínimo, dar às crianças do campo o ensino de qualidade que os Irmãos das Escolas Cristãs propiciam aos pobres nas cidades (Carta 34. De Champagnat para o Rei Louis-Philippe. Enviada em 28 de janeiro de 1834).

A partir da experiência pessoal de dificuldades enfrentadas no seu próprio processo educativo, Champagnat percebe a necessidade da educação para as crianças do contexto francês da época. Essa é uma preocupação que se evidenciava tanto nas congregações religiosas católicas, entre os protestantes da Reforma e de segmentos leigos. Lanfrey (2013, p. 328) chega a destacar que existia uma espécie de “utopia escolar” nesse período, que depositava na educação uma esperança de me-


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lhoria da sociedade francesa que ainda sofria com algumas difíceis consequências, provocadas pela Revolução Francesa. Segundo Lanfrey, (...) havia nele [Champagnat] vontade para responder a uma necessidade religiosa e social. Desejo de dar uma resposta à falta de bons professores na zona rural (...) Champagnat partilhava da utopia de regeneração da cristandade, através das crianças, que o fez considerar o mundo da infância estratégico (2013, p. 64).

Em contextos como esse, a utopia seria uma espécie de “esperança, com um signo de uma mudança dialética possível” (AINSA, 2006, p. 62), pois ela questiona e se opõe à realidade do presente, não se satisfazendo com a sua incompletude, buscando, por isso, acreditar que a realidade do futuro pode ser diferente do que a do presente. Nesse sentido, Champagnat acreditava profundamente que a vida das crianças e dos

jovens poderia ser muito diferente, caso tivessem uma educação de qualidade. Outra característica das escolas criadas por Champagnat é a sua localização geográfica, visto que, no início do Instituto, a maioria delas estava situada em áreas rurais ou pequenos povoados, que eram os locais onde mais faltavam escolas. Contudo, isso não limitou a abrangência de suas escolas, visto que logo mais outras foram criadas próximas a Paris. Isso sem contar que nos últimos anos de sua vida teve tempo de enviar nove irmãos como missionários à Oceania (FURET, 1999). Através desse posicionamento, ele buscou conjugar ao mesmo tempo a dimensão local com a global. De acordo com Feixa, Costa e Saura (2002), recentemente tem se utilizado a expressão “glocal” para falar em experiências localizadas em pequenas unidades territoriais ou sociais, mas que, ao mesmo tempo, apresentam conexões com grupos e experiências de diversas partes do mundo. Res-

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salvadas as devidas proporções, é o caso do que fez Champagnat, através da instituição e da rede de escolas e de comunidades que ele ajudou a constituir.

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Mesmo com todo o empenho possível, a história demonstra que o sonho contido na utopia não se concretiza exatamente do jeito que se projeta, visto que sempre surgem vicissitudes que não estavam previstas. Isso aconteceu com a própria Sociedade de Maria, conforme destaca o Pe. Colin, numa carta enviada ao Pe. Champagnat: Em certo tempo, parecíamos destinados a viver juntos; Deus nos unira por ideais e sentimentos no mesmo projeto, que devia redundar na sua glória, mas os desígnios divinos estão acima das concepções humanas (Carta 4, AFM 1, 22.01, com data de 5 de dezembro de 1826).

Na carta, Colin certamente se refere ao ideal que fora firmado na Promessa de Fourvière, de que se manteriam unidos. Contudo, cada um dos membros trilhou um cami-

nho diferente, ainda que em alguns momentos esses tenham se cruzado. Ainda assim, isso não significou que eles deixaram de se dedicar à missão que se propuseram, mesmo que de formas diferentes. Outro exemplo é o caso dos irmãos que Champagnat enviou para as missões na Oceania. O ideal era que eles se dedicassem à educação e à catequese; no entanto, ao chegarem aos locais da missão se depararam com uma situação em que foram colocados a realizar trabalhos manuais, conforme reflete o comentário de uma das cartas enviada por um dos missionários a Champagnat: Sabemos, com efeito, que quase todos os Irmãos enviados à Oceania em companhia dos padres maristas, naqueles primeiros grupos, se decepcionaram com a missão, pois tiveram de abandonar o sonho da evangelização que os animava, para ficarem disponíveis apenas para o trabalho manual: plantar, cozinhar, construir. (Comentários iniciais da Carta 208, CAHIER 48L.61, 17 de maio de 1840. Enviada pelo Ir. Michel).


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Pela história posterior, sabemos que, mesmo com as dificuldades, os Irmãos foram persistentes e anos após conseguiram modificar ou até mesmo romper com a situação em que se encontravam. Tais relatos demonstram que a dimensão utópica não deve levar à ingenuidade ou a uma perspectiva romântica de que tudo será perfeito. Por outro lado, as dificuldades encontradas não devem levar ao desânimo e à desistência dos ideais. Quando a burocracia tem mais destaque do que deveria acaba por matar a utopia. Devido à complexidade das situações cotidianas e das estruturas sociais, políticas e econômicas, muitas vezes há dificuldades para colocar em prática os sonhos que temos. O próprio Champagnat passou por isso, em várias ocasiões. Talvez a mais emblemática tenha sido a sua saga na tentativa de legalização do Instituto junto ao governo francês, conforme se percebe no relato a seguir:

O desenvolvimento do Instituto conseguido em 1837 animou o Padre Champagnat a tentar novamente obter a autorização legal dos Irmãozinhos de Maria. Firmado na proteção de Nossa Senhora, acalentou por muito tempo o sonho de que teria êxito em suas tentativas, por isso não poupou esforços para fazer com que pessoas amigas e influentes no cenário político da época se interessassem pelo projeto e o intermediassem junto aos poderes públicos (SIMAR, 1999, p. 217).

Nesse esforço para conseguir a legalização, Champagnat contava com o apoio dos Irmãos, que eram seus companheiros de missão, assim como a aprovação de sua diocese (Lião) e de outras pessoas públicas que também acreditavam no seu projeto. Entre outros fatores, uma carta do arcebispo demonstra o apoio recebido: A Divina Providência me dá ocasião favorável para obter a autorização dos pequenos Irmãos de Maria e vou aproveitá-la sem perder instante. Para esse fim, anexo à

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presente os vossos Estatutos (...). Rogo-vos que os assineis, vós e todos os Irmãos e, a seguir, remetei-mos. Podeis fazê-lo com plena segurança de consciência, e deveis concorrer a essa demanda que faço no vosso interesse e para a vossa tranqüilidade. (Carta 38 (AFM 128.15). De D. Jean-Paul Gaston de Pins para Champagnat. Enviada em 6 de dezembro de 1832).

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O apoio de D. Jean-Paul aponta a importância de termos pessoas e instituições com quem contar, visto que uma utopia nunca se realiza de modo individual, pois ela sempre remete a um esforço coletivo, que demanda diferentes contribuições. Champagnat foi incansável na busca pela legalização do Instituto, visto que desejava muito conseguir a aprovação, tendo em vista a expansão das escolas e da obra marista como um todo, pois ele tinha grandes ideais. Talvez a expressão mais utópica de Champagnat é aquela que

reflete justamente essa dimensão, em que ele afirma que “todas as dioceses do mundo entraram em nossos planos” (FURET, 1999, p. 108, nota 265). Tal assertiva aponta para o quão utópico ele foi com relação a como imaginava o futuro da instituição. Contemporaneamente, num contexto de globalização, essa proposição seria perfeitamente compreensível; entretanto, num período histórico com inúmeras dificuldades de transporte, comunicação e de recursos financeiros, podemos dizer que essa foi uma ação que esteve à frente do seu tempo. Tal posicionamento demonstra uma utopia de futuro, que consistia em ampliação das escolas, projetando um largo alcance da presença marista. Segundo Ainsa (2006, p. 46), a partir do século XVII, a utopia se projeta no futuro, pois “confiar no futuro é o primeiro requisito que um utopista deve ter. Trata-se fundamentalmente de construir o porvir a partir das ricas potencialidades da humanidade”. O autor (ibidem) destaca outros autores que enfati-


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zavam essa perspectiva, tais como Victor Hugo, que afirmava que “a utopia é a verdade do amanhã”; Lamartine, ao dizer que “as utopias não são mais que verdades prematuras”; ou então, Karl Mannheim, ao afirmar que “é possível que as utopias de hoje se tornem a realidade do amanhã”. No entanto, apesar de nos lançar para frente, a utopia também precisa estar voltada para o passado, pois é este que a impulsiona. Isso porque os três tempos, passado-presente-futuro, não se constituem como momentos lineares na vida dos sujeitos e das instituições, mas estão intimamente relacionados, como é possível perceber numa parábola kafkiana Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho pela frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente e, do mesmo modo, o segundo, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim

apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi nenhuma noite –, saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição de juiz entre os adversários que lutam entre si (KAFKA, 1920 apud ARENDT, 2001, p. 33).

A partir da parábola de Kafka, Hannah Arendt destaca que o tempo não constitui algo contínuo, tampouco um fluxo de ininterrupta sucessão; ele é partido ao meio, no ponto onde “ele”, o sujeito está, com variações oscilantes entre o passado e o futuro. Ricouer (2007) também enfatiza que passado, presente e futuro não podem ser separados, visto que estão intimamente interligados. No caso dos seguidores do sonho de Champagnat, também cabe olhar para o passado que inspirou de modo tão profundo o fundador, visto que

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a viagem nostálgica para as origens permite refazer os passos de uma história pessoal e familiar [e institucional] e reencontrar os lugares que foram deixados ou os que apenas conhecemos por referências de uma carga simbólica ou emotiva. O espaço recuperado é também a história recuperada (AINSA, 2006, p. 131).

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A reflexão proposta pelo autor reflete a importância de olhar para o passado e, inclusive, para os lugares do passado. Por isso, além de olharmos para a utopia fundante de Champagnat, cabe recuperarmos as imagens, os simbolismos e o contato dos lugares onde ele viveu, ou seja, as topias onde ele concretizou os seus sonhos. Por isso, são muito importantes os cursos sobre o Patrimônio Espiritual Marista, as peregrinações aos lugares fundacionais, as oficinas sobre os lugares simbólicos maristas, etc. Esse contato certamente contribui para manter viva a utopia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, Ela se afasta dois passos. Caminho dez passos E o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, Jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: Para que eu não deixe de caminhar. GALEANO, Eduardo

A frase de Galeano nos inspira a pensar que a utopia é que nos faz caminhar. É ela que fez com que o Instituto Marista, que se iniciou no interior da França, ganhasse o mundo e atravessasse dois séculos de história. Foi ela quem inspirou Marcelino Champagnat, através da convivência com outros colegas, a fundar a Sociedade de Maria e, posteriormente, o Instituto Marista. A “utopia fundante” de Champagnat, concretizada através da Promessa de Fourvière, tornou possível o “acontecimento Montagne”, que foi decisivo para a


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fundação do Instituto. Com isso, nos permitimos afirmar: o “fato Montagne” só existiu porque antes existiu a Promessa de Fourvière, ou seja, porque existiu a utopia. Essa utopia foi concretizada através de uma topia concreta, que é o mundo da educação, que é o lugar onde Champagnat e os primeiros irmãos iniciaram a missão do Instituto. Vimos que a utopia sempre é um projeto coletivo, de pessoas que se engajam num sonho maior, tornando-se contagiante e motivando os que estão próximos a participarem. Também é possível destacar que a utopia não remete a uma ideia de perfeição, visto que os projetos nunca se realizam conforme o planejado e que muitos desafios aparecem no decorrer no caminho. No entanto, a perseverança de quem acredita, geralmente, consegue sobrepujar os problemas enfrentados. Olhando para o passado, percebe-se que a utopia fundante fez com que o Instituto Marista tives-

se um crescimento e uma história muito importante. Após dois séculos, pode-se olhar para o futuro e imaginar que, se os Irmãos Maristas e os Leigos que abraçam o carisma mantiverem a utopia viva, há grandes possibilidades de que a instituição continue fortalecida na evangelização através da educação. “Em todo o caso, mesmo que a etimologia da utopia indique um território que não está em nenhuma parte, a utopia do futuro deveria ser uma verdadeira panutopia, a utopia de todos os lugares possíveis” (AINSA, 2006, p. 298), ou, para dizê-lo na linguagem de Champagnat, “em todas as dioceses do mundo”.

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REFERÊNCIAS AINSA, Fernando. A reconstrução da utopia. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2006. ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Perspectiva, 5ª edição, 2001. FEIXA, Carles; SAURA, Joan R.; COSTA, Carmen (orgs). Movimientos juveniles: de la globalización a la antiglobalización. Barcelona: Ariel, 2002. | 46 |

FURET, Jean-Baptiste.Vida de São Marcelino José Bento Champagnat. Tradução Ângelo Mizael Canatta. São Paulo: Ed. Loyola, 1999. LANFREY, André. Marcelino Champagnat e os Irmãos Maristas: professores congreganistas no século XIX. Brasília: UMBRASIL, 2013. RICOUER, Paul. A memória, a história e o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.

SIMAR – Secretariado Interprovincial Marista. Cartas de Marcelino Champagnat. São Paulo, 1999. STROBINO, Ivo Antonio. Sociedade de Maria. Polígrafo do I Módulo do Curso de Extensão em Espiritualidade e Patrimônio Marista – Edição 2015. UMBRASIL. Caminho da educação e amadurecimento na fé: a mística da Pastoral Juvenil Marista. São Paulo: FTD, 2008. WEIR, Peter. Sociedade dos Poetas Mortos. Produção: Steven Haft. Interprete: Robin Williams. Música: Maurice Jarre. Produzido por Buena Vista Home Entertainment; Tochstone Home Entertainment. DVD (129 min), NTSC, 1989.


ESTUDOS

Ir. Marcelo Bonhemberger7

Ir. Deivis Alexandre Fischer8

LEITURA DE ALGUNS VALORES PEDAGÓGICOS

DE CHAMPAGNAT

RESUMO Este artigo busca discutir elementos pedagógicos que possam auxiliar na prática de Irmãos, educadores e colaboradores institucionais, a partir de uma análise histórico-hermenêutica de alguns valores presentes nas concepções de Marcelino Champagnat. Tal resgate emerge desde os primórdios do Instituto Marista, debatendo a ação educativa com respaldo nos valores fundamentais da pedagogia marista, preconizada numa educação integral do ser humano.

PALAVRAS-CHAVE: Valores. Pedagogia. Educação.

7. Irmão Marista. Mestre em Filosofia e Ciências Antropológicas pela Università Pontificia Salesiana (UPS) e graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor da PUCRS e membro do Escritório de Humanidades e Ética da PROPESQ/PUCRS. E-mail: <mbonhemberger@gmail.com>. 8. Irmão Marista. Mestre em Educação pela PUCRS. Graduado em Filosofia pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Atualmente é Vice-presidente da Rede Marista e Vice-Provincial da Província Marista do Rio Grande do Sul. E-mail: <ir.fischer@maristas.org.br>.

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INTRODUÇÃO Atualmente instituições educacionais de qualidade buscam a formação integral do sujeito. E é a educação integral que preenche e beneficia o desenvolvimento em plenitude. Por educação, entendemos uma formação que abrange as diferentes dimensões da pessoa: física e estética; afetiva; cognitiva; comunitária e social; ético-valorativa; e transcendente (TEIXEIRA, 2004). E é nesse contexto em que se insere a educação marista, cujo | 48 |

o jeito de educar fundamenta-se em uma formação integral. Investe na observação, na investigação, na reflexão, na abertura à realidade, no posicionamento crítico, na negociação, no protagonismo, em atitudes solidárias, no respeito e no cuidado com a natureza, na compreensão e na significação do mundo. Desenvolve o espírito de pertença, o “sentido de outro” e apresenta a solidariedade como “a virtude cristã dos nossos tempos”, amparada na ética e na espiritualidade (UNIÃO MARISTA DO BRASIL, 2009, p. 43).

A educação marista não busca constituir-se de partes desconexas, ela quer ser propulsora, emancipadora e evangelizadora, concebendo um estilo próprio de educar. Por isso, preocupa-se com o desenvolvimento pleno do ser humano, em todas as suas dimensões. Múltiplas facetas estão implicadas nesse caminho. Neste texto pretendemos apresentar alguns valores do jeito marista de educar, um legado do Instituto Marista baseado na intuição original de seu fundador, São Marcelino Champagnat (1789-1840) e, sobretudo, suas implicações. Essa herança tem quase dois séculos de prática educativa dos Irmãos e de seus colaboradores, espalhados por mais de 80 países. Este artigo resulta de uma pesquisa bibliográfica em que buscamos explicitar alguns elementos que inspiraram – e ainda inspiram – a caminhada dos continuadores da proposta educativa do fundador. Sem dúvida, a sua obra se constituiu no empenho em ajudar crianças e jovens a serem bons cristãos e bons cidadãos (FURET,


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1989). Soma-se a isso o pensamento de Juliatto (2013, p. 288), segundo o qual “a educação Marista apresenta-se hoje como uma alternativa pedagógica bem-sucedida para ser aplicada nas escolas”. A formação exerce um papel importante no desenvolvimento de competências e habilidades no desígnio de inteligências. Quer, portanto, congregar as quatro inteligências: intelectual (LIBANIO, 2006), emocional (GOLEMAN, 2007), espiritual (ZOHAR; MARSHALL, 2004) e social (GOLEMAN, 2011). Porém, não se resume a isso. Vai muito além da preocupação continuísta-técnica. Ela quer ser uma proposta pedagógica expandida e dinâmica, respeitosa dos processos individuais e coletivos do desenvolvimento humano, em vista do bem comum. Aspira ser construtora de cidadãos éticos (SOUZA, 2004), responsáveis (HANS, 1984) e cuidadores (CRESTANI, 2014). A pergunta que nos orienta ao longo dessa trajetória argumentativa formula-se nos seguintes termos: Quais valores servem de

base e inspiração pedagógica que percebemos em Champagnat? Essa questão instiga a busca por respostas para continuarmos fiéis à intuição original de Marcelino, frente às diferentes tessituras da contemporaneidade. A seguir, apresentamos uma reflexão sobre as concepções e perspectivas educativas de Marcelino, as principais características da educação marista, a pedagogia da presença, da simplicidade, do espírito de família, do amor ao trabalho e do jeito de Maria. CONCEPÇÕES E PERSPECTIVAS EDUCATIVAS Champagnat nasceu na França e viveu a infância durante a Revolução Francesa. Após esse período, a situação escolar degradou-se intensamente. Ele sofreu as consequências funestas dessa época. Já no primeiro dia de aula, teve uma experiência extremamente contraproducente. Daí nasceu uma das primeiras intuições que o levaram a concretizar em princípios pedagógico-educativos e em suas convicções sobre educação.

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Analisemos esse traumático episódio. Marcelino, ainda criança, foi à escola rural do Rosey, pequena vila situada no interior da França pós-Revolução. Nesse período, a educação estava em completa desordem e num estado miserável. A única sala de aula dessa escola era regida por um professor apenas, Barthélemi Moine, que, provavelmente, ministrava para diversas séries. O ensino baseava-se no chamado Método Individual, ou seja, o professor atendia individualmente cada estudante. Obviamente, os demais aguardavam a sua vez para serem atendidos. Ao chegar a vez de Marcelino para apresentar a lição na frente da turma, a timidez e a ansiedade, por alguns minutos, o deixaram apático e atônito – sentimentos naturais no primeiro dia de aula. O inesperável ou a salvação apareceu. Um colega de turma, querendo impressionar o professor, adiantou-se sem ser chamado, para apresentar a lição. A paciência do professor colapsada pela intrusão desse aluno não titubeou: magistralmente desfechou uma bofeta-

da no rosto do menino e, claro, ordenou de imediato a volta para o seu lugar. Esse evento marcou indelevelmente Marcelino. Ao regressar para casa, falou para os pais que não voltaria mais à escola. Isso o fez rejeitar, abandonar e renunciar essa etapa formativa. Porém, não desistiu por completo. Anos depois, já adolescente, retornou à escola, quando decidiu ingressar no seminário. Nesse período, aprendeu algumas lições com sua tia Luisa, religiosa da Congregação de São José. Tanto a tia como sua mãe exerceram um papel educativo, embora tivessem dificuldades para ensinar no que tange à leitura e à escrita, como podemos perceber em sua biografia: “Sua mãe e sua tia, não podendo ensinar a ler senão muito imperfeitamente, o enviam a um professor para que se aperfeiçoasse na leitura e aprendesse a escrever” (FURET, 1989, p. 4). Esses aspectos, entre outros, levaram Marcelino a perceber certas necessidades relacionadas ao universo fragilizado da educação.


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Durante os estudos seminarísticos em Lyon, Marcelino sentiu necessidade de formar educadores capazes de remediar a precária situação da juventude. Tal anseio o levou a inserir a ideia de fortalecimento para o ensino dos jovens no projeto da Sociedade de Maria, cuja idealização se dava com seus demais colegas seminaristas. Quando Marcelino pode pôr em prática esse seu projeto, ele levou a cabo aquela inquietação que o acompanhara desde a infância. Na carta à rainha Maria Amélia, em maio de 1835, assim expressa: Ordenado sacerdote em 1816, fui enviado a um município do cantão de Saint Chamond (Loire). O que constatei com meus próprios olhos nesta nova situação e que afetava a educação dos jovens me lembrou das dificuldades que, por falta de professores, eu mesmo experimentara na idade deles. Apressei-me então em executar um projeto que havia formado de fundar uma associação de Irmãos professores para os municípios rurais, cuja penúria não lhes permitia ter os Irmãos das Escolas Cristãs. Dei aos membros

da nova Sociedade o nome de Maria, persuadido de que bastaria este nome para atrair um bom número de candidatos. Apesar da falta de recursos materiais, tivemos logo um bom resultado, o que, justificando minhas conjecturas, superou minhas expectativas (CHAMPAGNAT, 1997, p. 141).

A partir de sua experiência de vida, Marcelino concentrou esforços em sanar as dificuldades contingentes do contexto em que estava inserido. Essa preocupação em atender aqueles que não tinham acesso à educação pode ser constatada desde os tempos mais tenros. Lanfrey (2012, p. 133) confirma: “Champagnat já tem sua percepção própria da sociedade e das necessidades pastorais de seu tempo, quando afirmava aos colegas seminaristas: ‘Precisamos de Irmãos’”. Afinal, por que Irmãos? Para quê? Que características teriam? Ele se refere essencialmente a Irmãos educadores, ou seja, o que veio a denominar “Pequenos Irmãos de Maria”.

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Coadjutor em La Valla após ser ordenado ao sacerdócio e ao sentir a urgência de seu plano – especialmente depois de visitar o jovem Jean Baptiste Montagne, que se encontrava em situação de intensa ignorância –, o então Padre Marcelino apressa-se a levar a cabo aquilo que vinha projetando. Reúne os primeiros jovens que se interessam em contribuir com tal propósito. A primeira questão que surge para a atuação é a formação dos futuros religiosos. Preocupado com esse aspecto de fundamental importância, antes de tudo, busca oferecer a eles subsídios pedagógicos. Podemos percebê-lo, em rápida verificação histórica, quando recorre ao professor Maisonneuve ao preparar o primeiro grupo de Irmãos para ocupar-se das tarefas escolares (FURET, 2009). Aos poucos, as escolas na França pós-revolucionária foram se espalhando em regiões rurais, onde os Irmãos das Escolas Cristãs, da Congregação de São João Batista de La Salle,

não tinham atuação. Era o manual pedagógico La Conduite des Écoles Chrétiennes, utilizado pelos Irmãos de La Salle (lassalistas), que norteava as escolas maristas nos seus primórdios, inclusive o método de ensino. Na época, estavam em evidência dois métodos de ensino: mútuo e simultâneo. Pelo método mutuo o professor titular se servia de monitores para ministrar seu ensino. Os monitores recebiam turmas de 8 a 10 alunos, e a partir daí a escola se abria para todos os alunos. Esse método era criticado pela diminuta influência que exercia o professor, por seu espírito democrático e por sua deficiência na formação moral e religiosa. O método simultâneo, vulgarmente chamado “método dos irmãos de La Salle”, era utilizado por diversas congregações. Excetuando o catecismo e certas explicações necessárias, o professor dava aula em silêncio, utilizando o “sinal” 9 para despertar a atenção. Ensinava, sucessivamente, nas diversas secções da aula, com ajuda de monitores (LLANSANA, 1983, s/p.).

9 “O ‘sinal’, instrumento de madeira, era utilizado pelos irmãos no método simultâneo, cujo ruído chamava atenção da classe, evitando palavras desnecessárias” (PUJOL, 2008, p. 34).


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A adoção do método tinha implicações políticas e econômicas. O método lancasteriano ou mútuo organizava-se por um só professor auxiliado pelos alunos considerados mais avançados. Era econômico pelo fato de envolver apenas um professor. No entanto, demonstrou-se ineficiente na prática. O método simultâneo, por sua vez, organizava-se separando os alunos por níveis, com um professor para cada nível. Comprovou ser mais eficiente porque atendia os alunos de acordo com o desenvolvimento de sua aprendizagem. Os Irmãos Maristas adotaram em suas escolas o método simultâneo-mútuo, uma síntese do método lancasteriano e dos Irmãos de La Salle. Se algumas práticas se assemelhavam às experiências educativas já existentes, quais aspectos poderíamos dizer que caracterizam alguns insights de Champagnat? A seguir, tentamos elencar alguns valores que se desenvolveram a partir dos insights do fundador.

CARACTERÍSTICAS DA EDUCAÇÃO MARISTA Apresentamos aqui alguns aspectos implementados por Marcelino Champagnat. Pelo fato de não ter tido a escolaridade na infância, suas “intuições pedagógicas”, se assim podemos falar, baseiam-se no seu extraordinário sentido prático, na visão de fé e no bom senso. Assim, ele recusou todo e qualquer castigo físico, proibindo os Irmãos de praticarem punições corporais em uma época em que o castigo físico era método natural. Introduziu a música e o canto coral para criar um clima de alegria no ambiente escolar. Exigia da municipalidade, ou da comunidade local, que a escola tivesse um pátio para o lazer e o esporte. Esses insights foram inovadores em relação a outras práticas educativas da época. O fundador queria, igualmente, que os Irmãos estimulassem todos os alunos a jogarem durante os recreios. Insistia sobre a higiene no ambiente escolar e no asseio das roupas dos alunos;

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sobre a necessidade de arejar as classes periodicamente, apesar dos longos meses de rigorosas temperaturas da França; enfim, que todos os alunos tivessem postura correta quando escreviam. Além do mais, utilizava o ensino de leitura mediante o sistema da fonia, quando habitualmente se utilizava o sistema silábico. Para isso, Champagnat elaborou um livro chamado Novos princípios de leitura para uso dos irmãos de Maria, conhecido comumente como método de leitura (ESTAÚN, 2014). Tais nuanças sutis diferenciaram as escolas dos Irmãos Maristas de outros de seus primórdios. Vejamos outros atributos que configuram o nosso jeito de educar, que tem origem nas inspirações do fundador. Pedagogia da presença “Presença” vem do latim praesentia (inglês, presence; alemão, Anwesenheit; francês, présence). Com esse termo, expressamos o ato de alguém que está participando de um acontecimento no qual é

protagonista, espectador, ator e/ ou narrador. A presença se insere na linguagem especialmente com o verbo “estar”. A origem desse verbo é o latim e equivale a in stare, ou seja, o “estar aí”, mas estar aí de forma significativa. “O ato pelo qual se concretiza a presença de alguém ou de algo é a manifestação do que é” (ESTAÚN, 2014, p. 95). Para Galimberti (1992, p. 693), presença é “automanifestação de tudo o que há pelo simples fato de existir. A presença é ‘já ali’, oferta a nossa experiência, antes de qualquer juízo, reflexão comum ou científica que a interpreta, adotando determinadas categorias”. Vejamos agora o entendimento marista do termo. Desde os seus primórdios, a presença foi uma característica fundamental da educação marista. Champagnat recomendava aos primeiros Irmãos que permanecessem o quanto pudessem junto aos educandos. “Para tanto, é preciso que sejamos educadores, vivamos no meio das crianças e que elas permaneçam muito tempo conosco” (FURET, 1989, p. 498).


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Tradicionalmente, fala-se na pedagogia da presença como um traço característico do jeito marista de educar. Estaún (2014, p. 19) conceitua a expressão “a presença” como maneira habitual de falar, relacionada à pedagogia marista de expressar, em seu sentido mais comum, o fato de que o educador deva estar fisicamente presente nos diversos espaços ou ambientes onde acontece o ato educativo. [...] Concretiza-se em qualquer espaço ou estância de onde se pode projetar a eficiência do ato educativo.

A presença é um meio importante de estabelecer vínculos. Cria-se uma relação de proximidade entre educador e educando, gerando a confiança e a abertura necessárias para o desenvolvimento da práxis pedagógica. Tal ação tende a possibilitar maior eficácia, mobilizando os diferentes agentes da educação na construção da aprendizagem. O estabelecimento de vínculos, que gera afeição e respeito, é uma condição necessária para efetivação desse processo.

O 21º Capítulo Geral do Instituto Marista acrescenta um adjetivo que qualifica o substantivo presença. Trata de presença significativa (DOCUMENTO DO XXI CAPÍTULO GERAL, 2009, passim). Isso requer dos educadores as habilidades e a abertura necessárias para se aproximarem do universo dos educandos, ajudando-os a construir sentido e a eles mesmos participarem da vida do educando sendo geradores de sentido. Outro aspecto importante no tocante à presença é o testemunho, um dos elementos centrais da pedagogia marista. O testemunho extrapola o processo de ensino e aprendizagem em sala de aula. Ele requer do educador coerência entre o discurso e a prática, atenção às demandas contemporâneas e atuação incentivadora junto aos educandos. Pedagogia da simplicidade A ideia de simplicidade é usada por alguns pensadores em sua forma metafísica, entendida como uma dimensão mais ele-

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vada do ser. Ontologicamente, é mais rica que a não simplicidade. São Tomás de Aquino (SUMA TEOLÓGICA, I, q. 3, 7), por exemplo, demonstra que Deus é uma realidade simples. É ato puro, não possuindo gênero, diferenças e acidentes. A simplicidade tem características próprias. Pode-se falar de simplicidade ontológica, como quando se diz que a realidade é simples; e de simplicidade semiótica, como quando se diz que a realidade pode ser descrita (MORA, 2004). Do latim simplicitas, diz-se por esse termo aquilo que não é complicado. Etimologicamente, significa sem dobras, qualidade daquilo que é fácil de compreender ou observar; forma simples e natural do dizer, agir e ser.

A simplicidade se expressa no trato com as crianças e os jovens por meio de relações autênticas, sinceras e sem duplicidade. Ela enraíza-se na vida real e evita a ostentação. Encoraja as crianças e os jovens a serem autênticos em todas as circunstâncias, abertos, verdadeiros e firmes nas suas convicções (TESCAROLO; ALVES, 2003).

A simplicidade, virtude que veio a se difundir no Instituto Marista, é somada à humildade e à modéstia, formando, assim, a tríade das virtudes maristas. Tais características são simbolizadas por três violetas, flor cujas características vão ao encontro das virtudes maristas.

Como aspecto pedagógico, é importante ressaltar que a simplicidade trata tanto de um aspecto a ser considerado na metodologia, no processo pedagógico, quanto a algo a ser alcançado como finalidade, no sentido de uma característica a ser desenvolvida no educando.

A prática da simplicidade demonstra que a competição exagerada, a soberba intelectual e a ostentação não devem orientar nossa vida. A simplicidade do mestre previne o distanciamento dos educandos. Torna-os abordáveis e permite a aproximação entre todos os membros da comunidade escolar (JULIATTO, 2013, p. 296).


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O próprio termo “pequeno” (petit), presente no nome original do Instituto (Pequenos Irmãos de Maria), revela o espírito do Instituto Marista. Não é por acaso que Marcelino usa esse vocábulo. Na biografia sobre o fundador, o autor salienta que é para relembrar aos Irmãos que o espírito de sua vocação é um espírito de humildade, que sua vida há de transcorrer de forma singela e desconhecida do mundo (FURET, 1989). O fundador insiste tanto na humildade e como na simplicidade, porque para ele foram características muito marcantes em Maria, em quem se espelha e consagra o Instituto10. A vivência da simplicidade se constrói no cotidiano. Expressa-se em pequenos atos que revelam as disposições interiores que subjazem o nosso agir. Ela se contrapõe à soberba, à ostentação, ao orgulho. É importante enfatizar que o orgulho foi tratado de maneira contundente por Marcelino em várias ocasiões. Em uma situação, para combater o espírito orgulhoso de um de

seus discípulos, Champagnat foi bastante duro: “Os Irmãozinhos de Maria esforçam-se por imitar sua divina Mãe e adquirir-lhe o espírito. Para tanto, conservam-se na simplicidade e na modéstia [...]. Ao contrário [...] não têm o espírito do Instituto, mas o espírito de orgulho” (FURET, 1989, p. 376). Em expressões que utiliza como essa, fica evidenciado que considera contraditório o espírito de orgulho ao espírito do Instituto que fundou. Espírito de família Várias vezes, quando estamos numa Unidade Marista, ouvimos expressões como: “há alguma coisa diferente aqui, algo como acolhida, um clima diferente”. De onde decorre o clima que se quer desenvolver? Encontramos na história e na tradição marista o que conhecemos como “espírito de família”. A que se refere o espírito de família? Que implicações traz? Onde encontramos elementos que nos evidenciam que é um valor originário do Instituto Marista?

10 Podemos perceber esse aspecto na biografia de Furet (1989) e nos estudos de Lanfrey (2011), especialmente quando trata do espírito do Instituto

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Numa época em que os sacerdotes constituíam uma classe privilegiada dentro da Igreja, Champagnat não hesitou em deixar o convívio do clero para viver com os jovens candidatos à vida religiosa marista, e, nessa convivência, forjou entre eles o espírito de família, a exemplo da família de Nazaré. Nesse ambiente, os jovens aprendiam a ser Irmãos uns dos outros, conforme o desejo do fundador, expresso no seu Testamento Espiritual: “Que não haja entre vós senão um mesmo coração e um mesmo espírito” (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2010, p. 166). Ao mesmo tempo, aprendiam a ter os mesmos sentimentos e atitudes para com as crianças e jovens. Esse espírito de família nos remete à fidelidade e à herança que foi transmitida pelos Irmãos com o passar do tempo. Ele expressa um último desejo do fundador no sentido de que o espírito comunitário fosse continuado além das unidades educativas: “Amai-vos uns aos outros como Jesus Cristo os amou. Que haja entre vocês

um mesmo coração e um mesmo espírito” (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2010, p. 166). O espírito de família está no cerne da proposta de Jesus, que chamou os apóstolos a formar uma comunidade em torno de seu projeto. Na concepção cristã, fazemos parte da mesma família, somos filhos de um mesmo Pai. Daí decorrem as relações baseadas na solidariedade e na compaixão. A pertença a uma família é fonte que irradia o amor, a fraternidade e a felicidade. Busca-se construir um ambiente de proximidade. As diferenças são acolhidas, aceitas como complemento à diversidade e à pluralidade. Amor ao trabalho O Pe. Champagnat era entusiasta do trabalho manual. Em La Valla, fez os móveis da casa com suas próprias mãos; e, com a ajuda dos jovens candidatos em 1822, reformou e aumentou a casa. De maio de 1824 a agosto de 1825, com a ajuda de três pedreiros e de uns 30 jovens Irmãos, construiu uma casa


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de quatro pisos, com capacidade de abrigar 150 pessoas, que ainda hoje se encontra em bom estado de conservação. Para construí-la, enfrentou a dureza de extrair as pedras de uma rocha, apenas com a ajuda de picaretas e malhos. Também o sustento dependia, em grande parte, da fabricação de pregos e de tecidos. As atividades eram feitas pelos candidatos, assim como o cultivo da horta e a execução das tarefas da casa.

No ambiente escolar, o amor ao trabalho implica uma cuidadosa preparação das nossas aulas e atividades educacionais, a correção das tarefas e dos projetos dos alunos, o planejamento e a avaliação das nossas atividades, os programas e o acompanhamento daqueles que experimentam qualquer tipo de dificuldade. Isso exige que sejamos prospectivos e decididos a desenvolver respostas criativas às necessidades das crianças e dos jovens.

O trabalho foi se desenvolvendo nos diferentes contextos sociais e ganhando distintas expressões e contornos. Nesses contextos, os Maristas continuam com essa caraterística de valorizar o trabalho, realizando com amor e entrega. No aspecto pedagógico, o trabalho emerge como uma forma de “aprender fazendo”, pois favorece um ambiente teórico-prático que contribui para o desenvolvimento da corresponsabilidade e o sentido da dignidade humana.

Na atualização para os nossos dias, expressamos que o amor ao trabalho está relacionado com a dedicação e o entusiasmo com que realizamos o trabalho na perspectiva do serviço, conforme o próprio Evangelho menciona no episódio do lava-pés. O trabalho que realizamos nos faz partícipes da construção do bem comum, de acordo com que escreve Bento XVI na encíclica Caritas in veritate:

O documento Missão Educativa Marista (apud TESCAROLO; ALVES, 2003, p. 113) afirma:

Querer o bem comum e trabalhar por ele é exigência de justiça e de caridade. Comprometer-se pelo bem comum é, por um lado, cuidar e, por outro, valer-se daquele conjunto de

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instituições que estruturam jurídica, civil, política e culturalmente a vida social, que desse modo toma a forma de pólis, cidade (PAPA BENTO XVI, 2009, § 7).

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O amor ao trabalho caracteriza um dos elementos centrais de nossa identidade institucional. Podemos verificá-lo no Plano Estratégico da Rede Marista (20152022), que assim se expressa: “Compreendemos o trabalho na perspectiva do serviço e como meio de contribuir para a concretização e perpetuidade da missão” (REDE MARISTA, 2015, p. 36). Do jeito de Maria A característica distintiva do Marista, segundo o desejo do seu fundador, está no cultivo de uma relação terna e filial para com Maria, denominada de “a Boa Mãe” (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2010, p. 167). Essa relação se concretiza na confiança filial, na entrega e na identificação com Maria. Eis as palavras constantes no seu Testamento Espiritu-

al, nesse contexto referindo-se aos Irmãos: “Que uma devoção terna e filial à nossa bondosa Mãe, vos anime em todo instante e em todas as circunstâncias. Fazei-a amar em tudo quanto for possível. Ela é a primeira superiora do Instituto” (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2010, p. 167). Ele também não se cansava de repetir: “Sem Maria não somos nada e com Maria temos tudo, porque Maria tem sempre, em seus braços ou em seu coração, seu adorável Filho Jesus” (CHAMPAGNAT, 1997, p. 411). Dizia também: “Maria deve ser conhecida, amada e honrada pelos alunos, como caminho para amar e conhecer a Jesus” (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2010, p. 72). No documento Missão Educativa Marista (apud TESCAROLO; ALVES, 2003, p. 53), encontramos a seguinte afirmação: “Maria é para nós modelo perfeito de Educador Marista, como ela foi para Marcelino Champagnat. Mulher e leiga e primeira


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discípula de Jesus, orienta nosso caminhar na fé. Como educadora de Jesus em Nazaré, inspira nosso estilo educativo”. Turú (2009), que é Irmão Marista, atual Superior-Geral do Instituto, escreveu uma circular dedicada ao tema. Nela, ele nos convoca a sermos hoje o rosto mariano da Igreja, através de três ícones: Anunciação, Visitação e Pentecostes. Em síntese, ele nos provoca, no ícone da Anunciação, à abertura ao Espírito, pois “nós nos educamos e educamos para a interioridade, promovemos a sensibilidade e a abertura para a beleza” (TURÚ, 2009, p. 19). No ícone da Visitação, chama-nos a viver a vida como serviço e a levar Jesus aos demais. Por fim, em Pentecostes, ele nos convida a desenvolver a nossa vida comunitária em torno de Maria, em que se florescem as nossas qualidades humanas e espirituais, que são evangelizadoras por meio de seu testemunho de amor fraterno. Enfim, o nosso jeito de educar possui uma feição mariana. Em Maria encontramos inspira-

ção para uma educação baseada no amor, na escuta, na presença, no entendimento, na paciência e na audácia. Esses traços nos impulsionam a estarmos atentos às mudanças hodiernas, buscando empreender e agir com coragem e responsabilidade, atualizando, com fidelidade, o carisma e o estilo educativo que nos foi legado, nos processos de decisão que tomamos em prol da nossa missão. CONCLUSÃO A educação marista se insere nos diferentes tempos e contextos. Os valores de Marcelino Champagnat possuem características fundamentais: a) uma pedagogia integral; b) uma pedagogia marial, que conduz os alunos a Jesus por meio de Maria. A essas pedagogias acrescentam-se os predicados maristas: a presença, a simplicidade, o espírito de família e o amor ao trabalho. Assim, longe de ser uma indicação do passado, nosso afã é uma reclassificação do futuro. A qualidade humana, educativa e pastoral pode assentar-se sobre esses

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valores, para tornar agradável o trabalho de quem se esforça com alegria, para tornar atrativa a tarefa de quem se entrega com transcendental aspiração à proposta de Marcelino (PUJOL; BARRIO; LLANSANA, 2013). Referências AQUINO, Tomas. Suma Teologica T. II. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1959.

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ESTUDOS

Lidiane R. de Amorim11

MARCA, IDENTIDADE E COMUNICAÇÃO − ­ UM MESMO CORAÇÃO E ESPÍRITO RESUMO Reflexões sobre a identidade marista vêm sendo desenvolvidas com mais ênfase desde os anos 70, tendo sido pauta do 17º Capítulo Geral e novamente no 20º Capítulo Geral, em 2001. Quase quinze anos depois e prestes a celebrar 200 anos de presença no mundo, a discussão sobre a dimensão identitária nunca esteve tão atual e necessária. Em um tempo em que o Instituto Marista (re)pensa sua atuação no mundo, em que clama por “Maristas novos”, para atuar em “novas terras”, em que a missão cresce e se reconfigura assumindo novos contornos, a essência, o carisma e os princípios fundantes atuam como elo entre o que o Instituto foi, é e o que se poderá chegar a ser. Ao longo desse tempo, a Marca Marista é um dos ícones institucionais que mais se fortaleceu e ganha extrema relevância no contexto contemporâneo da missão, sobretudo no Brasil, configurando-se como voz e rosto da identidade institucional. O presente artigo busca articular as dimensões de marca, identidade e comunicação, compreendendo a identidade como essência da marca e a comunicação como articuladora da marca e dos sentidos e significados da identidade, nos diversos espaços de missão.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Marca. Comunicação Organizacional. Marista. 11 Doutora e mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do RS (PUCRS), graduada em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria. Atua profissionalmente como Gerente de Comunicação Corporativa da Rede Marista. E-mail: <lidiane.amorim@maristas.org.br>

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DO AZUL DO MANTO AO MONOGRAMA, SÍMBOLOS QUE MATERIALIZAM A IDENTIDADE

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“Deu-lhes também, após várias experiências, uma vestimenta simples e modesta que os distinguia dos leigos. Dando uma forma exterior à Congregação, tornava-a conhecida e favorecia as vocações” (FURET, 2004, p. 60). Sete anos após reunir os primeiros Irmãos em Comunidade, na cidade de La Valla, e fundar o Instituto dos Pequenos Irmãos de Maria, Champagnat já demonstrava ter um olhar atento para a dimensão simbólica de sua obra, para elementos que permitissem sua diferenciação e reconhecimento, a partir do que mais profundamente a caracterizava. Mais que uma vestimenta, a sobrecasaca azul que descia até a meia altura das pernas, junto a um pequeno manto que identificava os Irmãos, era uma forma de comunicar quem eram aqueles religiosos, no que acreditavam, quem os inspirava. Era, de certo modo, a materialização de sua identidade. “A cor azul foi escolhida para lembrar aos

Irmãos que eram filhos de Maria; vestindo seu hábito e sua cor, deveriam sempre lembrar-se de viver a vida do jeito de Maria, imitando-lhe as virtudes” (idem). A vestimenta, a nomenclatura, a cor, os símbolos e ícones, o monograma marial, são elementos adotados ao longo do desenvolvimento da atuação marista do mundo com o intuito de tangibilizar traços da identidade institucional. Com o passar desses quase 200 anos de existência e com o transcender das fronteiras que possibilitou a internacionalidade da missão marista, hoje presente nos cinco continentes, esse conjunto de símbolos foi sendo ressignificado, ganhando, em alguns casos, novos traços e contornos, acompanhando as diferentes culturas que os acolheram. Do mesmo modo, inúmeros desafios emergiram ao longo de décadas, entre eles o de zelar e atualizar a identidade em tempos de profundas transformações. De todos os símbolos, talvez o que hoje tenha maior força e representatividade, sobretudo na atuação marista no Brasil, é a Marca Marista.


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O contexto competitivo que marca o cenário educacional contemporâneo exigiu das instituições educacionais a adoção de estratégias de diferenciação próximas ao que organizações de outras naturezas vêm implementando (LÜCK, 2011). Mais do que em outras épocas, a gestão e comunicação de marca têm se apresentado como um dos principais diferenciais das organizações que buscam consolidar-se em distintos cenários e buscar relações duradouras com seus interlocutores. Um volume alto de investimento é direcionado para estratégias que buscam consolidar marcas e aproximar organizações de seus públicos de interesse. Poucas são as organizações cuja marca permanece com alta representatividade e poucas mudanças ao longo de quase dois séculos. Mais do que um logotipo que diferencia as instituições que pertencem ao Instituto Marista e a suas Unidades Administrativas, a Marca Marista hoje representa iconograficamente um conjunto de atributos

que foram se consolidando ao longo dos séculos, sintetiza sua trajetória, carrega em si seus princípios e valores, é a identidade marista materializada em contornos que comunicam muito além do nome de uma instituição: comunica suas causas, seus diferenciais, sua essência e sua missão. Com o presente artigo, buscamos (re)pensar a Marca Marista e suas manifestações comunicacionais, à luz da identidade institucional como elemento essencial da identidade de marca, compreendendo-a como um vetor essencial do carisma e fator fundamental de diferenciação em um cenário de alta competitividade, como é o que encontram as frentes de atuação marista no Brasil. Temos como objetivo também discutir a importância da identidade em meio aos processos de transformações pelos quais a Instituição e suas Unidades necessitam passar para adequar-se ao tempo presente sem descaracterizar-se, sem esquecer “a rocha da qual foi talhada” (IS, 51:1)12.

12 “Olhai a rocha de que fostes talhado” é o trecho original de Isaías, que inspira esta parte do artigo, numa metáfora que também faz referência à rocha que edificou a primeira Casa Mãe, l’Hermitage, berço do Instituto Marista. Em 1824, Marcelino Champagnat iniciou a construção da casa de l´Hermitage com suas próprias mãos, aproveitando ‘e lapidando’ a rocha da região localizada no vale do rio Gier. O elemento rocha tornou-se, assim, bastante simbólico na história do Instituto (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2007).

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Metodologicamente, trata-se de um estudo bibliográfico que se ancora nos documentos oficiais do Instituto, bem como em autores da área de Comunicação Organizacional, Gestão de Marca e Identidade. Para abordar o tema da identidade marista, nos debruçamos sobretudo nas circulares do Ir. Seán Sammon que têm como tema central a identidade marista, especialmente as edições de 2003, 2005 e 2006.

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A EVOLUÇÃO DA MARCA QUE NOS UNE O entrelaçar das iniciais A e M da expressão Ave Maria, que compõem o monograma amplamente utilizado por instituições católicas, figura nos documentos do Instituto Marista desde os primórdios da instituição. Segundo consta na edição nº 67 (2009) do informativo Notícias Maristas, produzido pela Casa Geral13, em Roma, o monograma tem origem nos ícones gregos que sintetizam em uma só expressão o início de duas palavras gregas Ἁγία Μαρία (Santa Maria). Ainda se-

gundo o informativo, a partir de investigações do Irmão Pierre Zind, o monograma de Maria teria chegado ao conhecimento dos Irmãos Maristas, no Seminário Maior de Lyon. Por volta do século XVII, o Superior Francisco Rigoley obteve o monograma mariano como emblema para identificar o Seminário Maior Santo Irineu, onde, mais tarde, em 1813, Champagnat, aos 25 anos, daria início ao curso de Teologia. Nesse mesmo seminário, onde talvez Champagnat tenha tido o primeiro contato com o símbolo, foi também o espaço onde a proposta de fundar uma associação religiosa missionária sob as bênçãos da mãe de Deus, a Sociedade de Maria, foi acalentada pelos seminaristas. Conforme Llansana (1983), os três anos de Teologia no Seminário Maior, anteriores à ordenação sacerdotal, se constituíram em tempo dedicado ao fervor, ao amadurecimento, à amizade, ao desejo apostólico e aos projetos de fundação. Lá Champagnat encontrou parceiros de sonhos e ideali-

13 O informativo Notícias Maristas existe desde 2008 e é produzido e editado em Roma, pela Casa Geral, ou seja, pela instância administrativa máxima do Instituto Marista.


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zou a obra que quatro anos depois se tornaria realidade e que levaria o mesmo monograma como marca. A obra de Lessard e Coste (1960) Origens Maristas traz os primeiros selos da Sociedade de Maria, compostos pelo monograma coroado sob estrelas, conforme a figura a seguir:

dos Irmãos Maristas marcaram o momento de independência dos Irmãos em relação aos Padres e demais ramos da Sociedade de Maria: “Na realidade a criação do ‘M’ novo é a manifestação da tomada de independência dos Irmãos Maristas em relação aos Padres Maristas, que acontece em 1845, apesar da resistência do Pe. Colin” (HOFFELDER, 2005, p. 9). Contudo, vale ressaltar que antes desta data, em 1824, o monograma marial já era encontrado esculpido na verga de uma porta da casa de La Valla, conforme figura 2.

Figura 1 – selo da Sociedade de Maria Fonte: Lessard e Coste (1960)

Figura 2 – Monograma esculpido em La Valla Fonte: TURÚ (2012)

De acordo com Hoffelder (2008), é notável que as primeiras aplicações do monograma marista, ainda em formato de selo para os documentos do Instituto, é inspirada na versão da Sociedade de Maria. Ainda segundo a autora, estima-se que a adoção e a adaptação do monograma por parte

A preocupação de Champagnat e dos primeiros Irmãos em identificar visualmente os religiosos maristas, por meio de suas vestimentas, também aparece na constante aparição do monograma marial nos documentos do Instituto. Ao longo dos anos, o símbolo foi sendo adaptado e aplicado em distin-

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tos formatos, sem, contudo, perder seu ícone central: o entrelaçar das iniciais “A” e “M”. Na linha do tempo a seguir de documentos oficiais, podemos perceber a evolução gráfica do símbolo até o brasão oficial da Congregação dos Irmãos Maristas, ainda vigente.

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Figura 3: Linha do tempo – Monograma Marista Fonte: elaborado pela autora, com base no Portal do Instituto (champagnat.org)


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Tanto o brasão quanto o próprio monograma foram sofrendo alterações na medida em que a missão marista foi se ampliando e alcançando inúmeros outros países. Sem um direcionamento específico, até final dos aos 90 e início dos anos 2000, as obras das distintas Unidades Administrativas (Províncias) foram adaptando o símbolo à sua maneira, desenvolvendo logotipos variados e identidades visuais e discursivas distintas entre si. Importante lembrar que, atualmente, o Instituto Marista utiliza como logotipo14 oficial a iniciais FMS, que decorrem da expressão Fratres Maristae Scholis (Irmãos Maristas das Escolas), nomenclatura oficialializada pela Igreja quando da autorização da congregação como Instituto de autônomo e de direito pontifício, em 186315.

Figura 4: Logo FMS Fonte: Portal do Instituto (champagnat.org)

Em busca de um alinhamento visual e discursivo A atuação marista no Sul do Brasil teve início em 1900, com a chegada dos primeiros Irmãos Maristas a Bom Princípio, no Rio Grande do Sul.16 Durante o primeiro século, as manifestações comunicacionais de modo geral, incluindo logotipos, não estavam alinhadas e as unidades tinham plena autonomia para desenvolver símbolos que as identificassem. Considerando o contexto da Província Marista do Rio Grande

14 Logotipo é a representação visual gráfica de uma organização ou instituição utilizado para identificá-la e diferenciá-la das demais organizações. Em grego, logos quer dizer significado, conceito, e typos significa símbolo ou figura. Assim, a palavra logotipo quer dizer “símbolo visível de um conceito” (RENAN, 2003). 15 No presente artigo, por nos dedicarmos com mais ênfase ao estudo do monograma, símbolo que deu origem à marca marista utilizada no Brasil, não aprofundamos a pesquisa com relação ao logo FMS. Avaliando os documentos oficiais até 1960, nos quais o brasão ainda estava presente, acreditamos que a opção pelo uso do logo FMS seja mais recente 16 A chegada dos Irmãos Weibert (August Marx), Jean-Dominici (Johann Fattler) e Marie-Berthaire (Pierre Redt) ocorreu no dia 2 de agosto de 1900, e representa o marco do início da presença marista em todo o Sul do Brasil.

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do Sul17, os esforços em alinhar as diferentes expressões visuais da Marca Marista ocorreu em 2005. Nesse período, a Província vivenciou seu processo de alinhamento e unificação de sua identidade visual18 acompanhando um movimento global de reestruturação do Instituto Marista19. O processo de unificação possibilitou que todas as unidades de educação básica estivessem identificadas por um mesmo logotipo e um conjunto de materiais institucionais, uniformes estudantis, sinalização, favorecendo a percepção de rede e fortalecendo a identidade, unidade e pertença a uma mesma instituição. Além dos aspectos visuais, houve também um alinhamento na nomenclatura. A expressão Marista passou a ser obrigatória na grafia do nome dos Colégios e Unidades Sociais.

A identidade visual de 2005 se manteve em vigor até o processo de unificação da Marca Marista do Brasil, em 2009 (figura 3). As unidades tiveram o período de três anos para readequar todas as manifestações comunicacionais de acordo com o novo desenho de marca, bem como os novos parâmetros de papelaria, fachada, cores, sinalização e uniformes estudantis. A transição foi concluída em 2012. No Ensino Superior, a relação da Marca Marista com a marca dos demais empreendimentos – PUCRS e o Hospital São Lucas – se tornou mais evidente a partir da aplicação do endosso20, em 2007. Quatro anos depois do primeiro movimento de alinhamento, em um amplo processo de articulação da atuação Marista em território

17 A Província Marista do Rio Grande do Sul, criada em 2002, com a unificação das antigas Províncias de Santa Maria e Porto Alegre, abrangia a atuação marista em 18 cidades do Rio Grande do Sul, além de uma escola em Brasília (DF) e atuação missionária na região amazônica, por meio do Distrito Marista da Amazônia. Em 2011, a nomenclatura utilizada para denominar a Província passou a ser, oficialmente, Rede Marista. 18 A ADG, Associação dos Designers Gráficos, define identidade visual como o conjunto sistematizado de elementos gráficos que identificam visualmente uma empresa, uma instituição, um produto ou um evento, personalizando-os. Em síntese, a identidade visual é a forma como uma empresa é identificada visualmente. 19 O projeto foi desenvolvido pela Assessoria de Comunicação e Marketing, estrutura criada em 2002, com o objetivo de atender, gerir e desenvolver os processos e demandas comunicacionais dos Colégios e Unidades Sociais, além do atendimento à instância canônica e institucional da Província. 20 Endosso é uma espécie de chancela, um recurso gráfico que expressa que uma instituição está ligada a outra. Dá-se pela assinatura conjunta da chamada “marca mãe” e a marca endossada. Nesse caso, a Marca Marista endossa a marca da Universidade, o que significa que a PUCRS é uma instituição marista.


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nacional, motivado pela União Marista do Brasil (Umbrasil)21, inicia-se o caminho de unificação da Marca Marista em todo o país. O monograma na cor azul sob doze estrelas, que representam as virtudes de Nossa Senhora, leva também a palavra Marista, fundamental, uma vez que o monograma marial costuma ser utilizado por outras instituições (figura 4).

O logotipo é composto do M, de Maristas, em forma de coração, e simboliza também a figura de um educador junto a uma criança, acrescida das três violetas. Abaixo do símbolo, a expressão “Maristas”, em uma tipografia com traço manuscrito que faz referência à juventude e busca a proximidade.

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Figura 5: Marca Marista unificada no Brasil Marista em 2009 Fonte: Rede Marista

Assim como o Brasil, outras regiões no mundo promoveram o alinhamento da sua identidade visual. Em 2011 foi a vez das unidades da Europa passarem a ser identificadas por uma mesma marca. A nova marca adotada pelas Províncias da Europa nasce com o objetivo de identificar a presença da obra marista na região.

Figura 6: Marca Marista unificada na Europa em 2011 Fonte: Portal do Instituto (champagnat.org)

Recentemente, em março de 2015, as duas Províncias do México também apresentaram a marca que agora representa a atuação marista no país. Numa proposta mais clássica que o logotipo desenhado para a Europa Marista, a marca adotada pelo México traz o monograma sob as doze estrelas e abaixo as três violetas, similar ao Brasão oficial do Instituto, acompanhado do lettering Maristas.

21 A União Marista do Brasil (Umbrasil) é a associação das nove mantenedoras das Unidades Administrativas do Brasil Marista – Províncias e Distrito. Representa um universo de 159 unidades como objetivo de criar sinergias e articular projetos e processos entre suas associadas.


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PARA ALÉM DO SÍMBOLO

Figura 7: Marca Marista unificada no México Fonte: Portal do Instituto (champagnat.org)

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Embora tais processos de alinhamento das manifestações visuais da instituição nas regiões do Brasil, México e da Europa sejam fundamentais, por outro lado evidenciam o quanto um movimento internacional com esse objetivo é, todavia, distante. Se em cenários regionais houve significativos avanços, no âmbito internacional a identidade visual marista ainda apresenta diferenciações significativas. Ainda assim, quando alargamos o olhar para outros símbolos, a raiz única que deu origem à atuação marista no mundo se torna evidente. Mais importante que os desenhos e logotipos, é a unidade da identidade institucional e do sentido de pertença a um mesmo todo, reforçado pela compreensão do carisma e alimentado cotidianamente pelo patrimônio espiritual.

Mais que um símbolo com especificidades técnicas, de cor, formato, aplicação, a marca é entendida, nos estudos contemporâneos, como um conjunto de sentidos e significados, constituídos ao longo da história da instituição por ela representada. Carrega em si um patrimônio – concreto e simbólico. No caso da Marca Marista, ela sintetiza graficamente um patrimônio espiritual, uma história bicentenária, um carisma particular e um conjunto de valores herdados de São Marcelino Champagnat, perpetuados pelos Irmãos Maristas e ressignificados por milhares de Leigos e profissionais que hoje dão vida à missão herdada do fundador. A criação e gestão de marcas, de acordo com Cameira (2013), ultrapassam a dimensão estritamente visual e evoluem em direção à identidade. O mesmo defende Desserti (2007), para quem a marca assume a função de geradora de identidade da organização, um suporte linguístico que se


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relaciona com os espaços sociais. Nesse sentido, surge uma nova lógica de marca, esclarece Semprini (2006), que de certo modo a liberta da conotação puramente comercial e estende sua influência para o discurso social. Ao se converter em um vetor que materializa a identidade e a personalidade das organizações, a marca assume o caráter de promessa, uma vez que comunica os objetivos, os princípios, o modo de ser e de atuar da organização (WHEELER, 2008). Passa a simbolizar um conjunto de expectativas que residem na mente dos interlocutores que com ela interagem, dos seus públicos prioritários, da comunidade onde está inserida. Ao longo da trajetória do Instituto Marista, os espaços foram sendo dotados de símbolos, como as esculturas do fundador, os quadros com as imagens de Nossa Senhora, o crucifixo, as vestimentas dos Irmãos, passando pelos selos e pelos logotipos que estampavam os documentos oficiais. Todos eles podem ser compreendidos como

manifestações comunicacionais que produziam o sentido de pertença a um instituto de religiosos devotos de Maria, dedicado à educação evangelizadora, sobretudo de crianças e jovens menos favorecidos. São marcas que dizem de que instituição se trata, com que instituição estamos nos relacionando e, mais do que isso, o que podemos, ou não, esperar dela. Os tempos, porém, mudaram, e os sinais externos que chegaram a tornar clara e compreensível a identidade marista e seu modo de vida – como a batina, a reza diária do terço nas aulas – em muitos lugares já não são mais visíveis (SAMMON, 2003, p. 30). De todos esses elementos, a Marca Marista é o símbolo que se consolidou como suporte linguístico da essência institucional e que possui o complexo desafio de simbolizar a riqueza do patrimônio espiritual marista, bem como da identidade e da trajetória da instituição. O significado de uma marca, no contexto sócio-político-cultural em que se encontra, vai além de um

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nome ou de suas aplicações. São conceitos simbólicos que produzem sentidos para quem com ela se relaciona, a partir da experiência concreta com a instituição por ela representada. Ou seja, a percepção sobre a marca – e sobre a instituição – é totalmente dependente da dimensão sensível, simbólica e vivencial com a qual interagem os interlocutores (CAMPOS et al., 2012).

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Isso reforça a ideia de que os aspectos visuais e as estratégias de comunicação não são mais importantes que a vivência da marca que, em última instância, é a vivência da própria instituição. Conforme Campos et al. (2012), um símbolo ou logotipo só se torna marca efetivamente quando se torna identificável, ou seja, quando as pessoas a associam a uma instituição. Assim, a marca passa a ter uma história e interferir no modo como os sujeitos percebem a organização. O sentido da experiência concreta supera o sentido discursivo, linguístico, estético. É mais marcante o que se vive do que o que se assiste, ou lê, ou se escuta.

A imagem que a Marca Marista possui hoje é fruto dessa relação entre experiência e narrativas. Por mais de um século, os atributos foram sendo constituídos por meio da experiência direta promovida pelos Irmãos Maristas com as famílias e comunidades onde habitavam. Com o tempo, as estratégias comunicacionais surgem para reforçar os sentidos já construídos e que hoje são fundamentais na diferenciação em relação às demais instituições de cenário educacional. Se a imagem e os atributos da marca emergem, sobretudo, da experiência, a gestão da marca está intimamente ligada à gestão da organização como um todo e de todos os seus processos de comunicação. Não significa que as manifestações comunicacionais sejam menos importantes e exijam menor cuidado. Ao contrário, elas assumem o compromisso de interface tanto quanto a marca e, por isso, devem corresponder ao que organização é e almeja ser e dizer para seus públicos.


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Por manifestações comunicacionais, compreendemos toda estratégia, programa, peça, campanha por meio dos quais a organização estabelece relações com diferentes interlocutores, e vão além disso. Mas também o que comunica por meio dos seus sujeitos e do seu comportamento. Ao ser o fenômeno de cultura também um fenômeno de comunicação, e na medida em que tais fenômenos só comunicam porque se estruturam como linguagem, podemos concluir que todo e qualquer fato cultural, organizacional, toda e qualquer atividade ou prática social, se constituem como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e de sentido, práticas comunicacionais (SANTAELLA, 1994, p. 5). Um educador, um profissional de atendimento, um gestor, ao estabelecerem relações e ao desenvolverem suas atividades, o fazem representando a instituição e produzem determinados sentidos que impactam na percepção sobre a organização.

A imagem e reputação da instituição e, consequentemente, da marca se constituem das experiências relacionais (comunicacionais) que ocorrem com/entre esses sujeitos. O mesmo ocorre com os ambientes, com o serviço em si e, claro, com os produtos e estratégias de comunicação. Na contemporaneidade, em que os sujeitos possuem amplo acesso à informação, com poder de fala e de alcance expressivos, e são, comprovadamente, mais criteriosos que gerações de outros tempos, a busca pela coerência entre todas as dimensões (simbólicas e experienciais) é fundamental. De acordo com Marcondes (2003, p. 53), “assim como as sociedades de todos os tempos adotam preceitos sagrados, religiosos e políticos, o consumidor contemporâneo mantém, com suas marcas de preferência, uma relação de crença também muito especial”. Não se espera de uma marca/ organização confiável múltiplos rostos, vozes, modos de ser e de se comunicar. A incoerência ou a

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gestão não integrada dos aspectos referidos acima provocam uma percepção difusa sobre a instituição e sua marca. É como se ela tivesse múltiplas faces, o que acaba por provocar desconfiança. Em que instituição se deve acreditar e confiar? Naquela que se apresenta nas campanhas de comunicação e marketing ou naquela que os sujeitos (re)conhecem na experiência cotidiana?

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Quanto mais alinhados e coerentes forem as manifestações da marca e os processos de gestão organizacional, mais seu caráter, sua identidade, seus valores se reforçam e tornam-se ainda mais marcantes. A gestão da marca, nessa perspectiva, é como se fosse gestão da confiança e isso não ocorre dissociada dos seus processos cotidianos e comunicacionais. O que traz como premissa que a gestão da organização e seus processos estejam profundamente ancorados na identidade, ou seja, na missão, nos valores, e, no caso de instituições confessionais, no seu carisma e no seu patrimônio espiritual. Neles reside

a inspiração para as atitudes, decisões, para os modos de ser dos sujeitos organizacionais. A Marca Marista é o ponto de convergência desses elementos e atua como pilar de confiança para os interlocutores com os quais as unidades maristas se relacionam. O desafio que se instaura a caminho do bicentenário da presença marista no mundo é manter pulsantes os atributos e valores herdados dessa trajetória secular, atualizando-os para os apelos da contemporaneidade. O que só será possível na medida em que esses mesmos atributos estejam presentes na atuação diária, nas decisões, em cada atividade que se desenrola nos espaços de missão e, para isso, precisam ser conhecidos e, sobretudo, compreendidos. É mantendo o cotidiano inspirado pelos fundamentos de Champagnat, é tomando as decisões de modo coerente com o carisma, que a identidade e a marca institucional se manterão consistentes e a instituição não correrá o risco de se distanciar do que sempre foi e das razões pelas quais foi fundada.


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Identidade marista, a essência da marca Se para a perpetuidade da marca – e da organização – é preciso cuidar e dar vida à identidade cotidianamente, o desafio que têm Maristas de hoje é compreender e multiplicar a essência que os une. Uma identidade complexa e híbrida, que é civil e canônica concomitantemente, que é religiosa e laical, que resulta do carisma de um instituto religioso que é também uma instituição educacional. Daí a importância de conhecer e compreender a história, as raízes, os propósitos que fizeram com que os ideais de São Marcelino Champagnat ultrapassem séculos e fronteiras. A essa reflexão, o antigo Superior-Geral do Instituto Marista Irmão Seán Sammon22 nos convida em uma de suas circulares: “O que acontecerá, porém, se não conseguirmos encontrar respostas honestas e coerentes às perguntas ‘Quem somos nós’ e ‘O que mais almejamos na vida’, perdendo as-

sim a oportunidade de construir uma identidade vigorosa e arrojada para nosso Instituto?” (SAMMON, 2003, p. 9). A identidade é tema recorrente nos escritos do Ir. Seán Sammon e revela-se como uma questão central da vida consagrada na contemporaneidade, desde o final do Concílio Vaticano II23. No contexto das teorias das organizações, a identidade organizacional também tem sido tema amplamente explorado por estudiosos das mais diversas áreas, sobretudo a partir da década de 90, quando as pesquisas atingem certa maturidade. Um dos conceitos clássicos, de Jo Hatch e Schultz (1977, p. 361), entende a identidade organizacional como produto reflexivo do processo dinâmico da cultura organizacional. Já, para Dubar (1996), a identidade de um determinado grupo repousa sobre uma representação social construída, sobre a qual uma coletividade toma consciência de sua unidade por meio da diferenciação.

22 Ir. Seán Sammon foi Superior-Geral no período de 2001 a 2009. No Instituto Marista, o SuperiorGeral é considerado o sucessor do fundador, São Marcelino Champagnat, e representa a instância máxima da instituição na sua dimensão canônica. 23 O Concílio é considerado o principal evento da Igreja Católica do século XX. Trata-se de uma grande conferência realizada de 1962 a 1965, convocadas pelo Papa João XXIII, com objetivo de repensar questões fundamentais da Igreja e da sua relação com a sociedade. Uma série de transformações na Igreja foi decorrente do Concílio, entre elas, temas relacionados à liberdade religiosa, ecumenismo e relações com outras religiões e comunidades cristãs (DESJOYAUX, 2012).

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Ir. Sammon apresenta uma definição de identidade institucional, a partir do que se entende por identidade pessoal: “A consciência que cada um tem de si e do mundo em que vive” (2003, p. 30). A identidade de um grupo ou instituição, ressalta, sugere um significado semelhante.

ditam autores como Vasconcelos e Vasconcelos (2000), Silva e Nogueira (2000), para quem a identidade envolve um sentimento de pertença, de unicidade do indivíduo em relação a um determinado grupo e de continuidade histórica, ou seja, de duração ao longo de um determinado período de tempo.

Uma organização com identidade marcante oferece uma resposta imediata e convicta quando perguntada sobre o que representa. Assim como a identidade de uma pessoa a torna única e singular, a de um Instituto religioso ajuda seus membros a responderem quem são e o que mais tem valor para eles (idem).

O tempo é uma dimensão central na configuração da identidade organizacional, na medida em que ela atua como elo entre o presente e o passado. Embora os conceitos contemporâneos a percebam como fluída e móvel, ao contrário da concepção de raízes fixas e contornos bem definidos da modernidade (MAFFESOLI, 2005), a identidade organizacional ainda é definida pelas características da organizaçao de caráter duradouro, que persistem no tempo, e que seus públicos consideram centrais, distintivas – que tornam a organização única (PRATT e FOREMAN, 2000). Conforme Ir. Sammon (2006), a identidade de um grupo passa a ser visível quando é possível reconhecer a natureza ou essência de que esse grupo é

Ter uma identidade clara, compreendida e assumida “nos integrará como grupo, reanimará nossas energias e propiciará a renovação de nosso compromisso”, afirma Sammon (2003, p. 9). Tal processo é essencial para avançarmos com entusiasmo e com clareza de direção; do contrário, corremos o risco de caminhar sem rumo. Ir. Sammon vai ao encontro do que acre-


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constituído, características que o distinguem de outros grupos e sua continuidade ao longo do tempo. Nesse sentido, a identidade marista atua como elo entre maristas de culturas e locais distintos, de tempos diferentes, e como ligação fundamental com os ideais do fundador, São Marcelino Champagnat. Nossa identidade marista, por mais difícil que seja representá-la em palavras, constitui um elemento fundamental que nos une como irmãos de Marcelino. É sobre essa base que devemos firmar a nossa identidade, conquanto busquemos novos modos comunitários de viver e servir em um mundo em permanente transformação (SAMMON, 2005, p. 29).

As palavras do Ir. Sammon, embora se dirijam aos religiosos, à dimensão canônica do Instituto, inspiram também a repensar a identidade organizacional enquanto instituição educacional. Também para os Leigos de Champagnat, para as lideranças, para os profissionais que hoje atuam nas diferentes Unidades,

é a identidade que os une em torno de um mesmo propósito e é sobre ela que se alicerça o diferencial da instituição, mesmo que se busquem novas formas de atuar e servir, adequadas ao tempo presente. A identidade é discutida no âmbito canônico, entre os Irmãos, desde o final dos anos 70. Foi tema do 17º Capítulo Geral, de 1976 e voltou a ser tratada pelo 20º Capítulo Geral (SAMMON, 2003, 2005). Nossa identidade como grupo e o lugar que a espiritualidade de Marcelino deve ocupar na identidade do Instituto são temas importantes, direta ou indiretamente tratados pelo 20º Capítulo Geral. Foram também abordados no trabalho do Conselho Geral e em muitos dos retiros realizados mais recentemente, assim como em algumas etapas das visitas da Administração Geral às Províncias e Distritos (SAMMON, 2003, p. 9)

Trata-se de um tema recorrente, talvez decisivo em um período em que o Instituto se coloca diante de um novo começo (TURU, 2014). E

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quais são os traços mais marcantes da identidade marista? Ao longo de quase 200 anos, alguns contornos foram sendo reconfigurados, outros se consolidaram, tornando-se elementos essenciais da identidade institucional. Desde as primeiras cartas redigidas pelo fundador, até as atuais circulares de seus sucessores, reafirmar quem somos e o que buscamos é pauta recorrente e nos permite jamais esquecer a essência fundante que deve mover a atuação marista no mundo. | 82 |

Sylvestre (2014), o Irmão que conviveu com Champagnat por décadas, registrou suas lembranças na obra que data de 1886. Lançada no Brasil em 2014, reafirma a origem do nome e do modo de ser da instituição: Deu-lhes por modelo a vida humilde e escondida de Nossa Senhora, em Nazaré. Queria que a Congregação fosse caracterizada pelas virtudes de humildade, simplicidade e modés-

tia; queria que fosse designada com o nome bendito de Maria unido à especificação Pequenos Irmãos, para que todos os membros do Instituto se recordassem sempre da devoção especial à Rainha do céu, que devem professar (2014, p. 130).

Viver e agir do jeito de Maria, honrando a denominação Maristas, aparece como justificativa para a nomenclatura em diversos documentos e relatos e revela um traço identitário importante, que diferencia o Instituto Marista de outras congregações e organizações. “Dando-nos o nome de Maria, o Padre Champagnat quis que vivêssemos do seu espírito” (C, 2), explicitam as Constituições, evidenciando um modo de ser particular almejado pelo fundador para caracterizar seu projeto, também presente no documento Água da Rocha (2007): “O próprio nome que escolheu para o seu Instituto – Pequenos Irmãos de Maria24 – sintetiza os elementos fundamentais

24 Ainda com relação à nomenclatura vale retomar o artigo 1 das Constituições “1. Marcelino Champagnat fundava, em 2 de janeiro de 1817, o Instituto religioso laical, ou Instituto religioso de Irmãos, sob o nome de Pequenos Irmãos de Maria. Considerava-o como um ramo da Sociedade de Maria. A Santa Sé aprovavanos em 1863 como Instituto autônomo e de direito pontifício. Ao mesmo tempo em que respeitava nosso nome de origem, dava-nos o de Irmãos Maristas das Escolas (F.M.S. - Fratres Maristæ a Scholis)”.Ou seja, concretamente, ainda que o Instituto estivesse em plena atividade há 46 anos, possivelmente já sendo reconhecido pelo nome originalmente conferido pelo fundador, a Santa Sé opta por numa outra nomenclatura, diferente da original. Em uma outra proposta de estudo poderiam ser apuradas as possíveis causas da decisão da Santa Sé, relacionando-as, por exemplo, com a nomenclatura oficial dos Irmãos Lassalistas, ou Irmãos de la Salle – Irmãos das Escolas Cristãs – cuja formulação é bastante similar à do Instituto Marista.


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da identidade de sua comunidade: a virtude evangélica da simplicidade, o apelo à fraternidade e a contemplação da pessoa de Maria” (2007, p. 58). Ir. Sammon (2003) também distinguiu aspectos essenciais da identidade institucional: a) viver e trabalhar no meio dos jovens; b) evangelizar prioritariamente pela educação, mas eventualmente por outros meios; c) demonstrar preocupação especial pelas crianças e jovens pobres, excluídos da sociedade. O Superior-Geral reafirma aspectos como os interlocutores essenciais da missão – crianças e jovens – e atualiza e amplia outros como o horizonte da atuação, claramente fazendo referência à atual configuração que já não se restringe à educação formal como meio de intervenção no mundo e de concretizar sua missão. Esse mesmo aspecto aparece também no documento Missão Educativa Marista (1998), ao afirmar que a educação marista ultrapassou as fronteiras da educação escolar formal, concretizando-se em outras obras, estruturas e ações educacionais de natureza pastoral e social.

Mais recentemente, o atual Superior-Geral, Ir. Emili Turú, aborda a questão identitária num interessante contraponto em relação ao que a instituição não é, ou não deveria ser, mas que eventualmente é como pode ser percebida. “Não somos nenhuma multinacional de serviços educacionais, nem uma ONG internacional” (2012, p. 39), ressalta Ir. Emili. Ele resgata uma característica fundamental, que é a eclesialidade do Instituto: “Somos uma comunidade eclesial com características próprias, onde experimentamos a alegria do dom recebido do Espírito Santo e sentimos a responsabilidade de oferecer nossa peculiar contribuição” (idem). Outro fundamental traço da identidade diz respeito a um dos elementos essenciais do carisma marista: a espiritualidade. A espiritualidade marista é cristã, apostólica e mariana, encarnada e inspirada em Marcelino Champagnat (ÁGUA DA ROCHA, 2007). Se a identidade diz respeito a aspectos que mantêm a unidade de um determinado grupo e o elo temporal entre passado, presente e

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futuro e a espiritualidade, conforme o documento Água da Rocha, é um elemento decisivo da união de maristas de todo o mundo e fundamental para a vitalidade do ser-em-missão; logo, é também dimensão central da identidade marista.

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A identidade carrega, ainda, o conjunto de valores, princípios que inspiram as atitudes e os comportamentos dos sujeitos organizacionais. Ao longo desses quase 200 anos, diversos são os valores cultivados e marcantes, que diferenciam o Instituto Marista25. Nesse sentido, podemos graficamente expressar as dimensões da identidade a partir dos elementos acima referidos:

Figura 8: Dimensões da identidade Fonte: elaborado pela autora

O carisma, como núcleo da identidade, de onde emerge a missão, o espírito e a espiritualidade maristas, os valores, como norteadores do comportamento, o comportamento, que expressa o modelo de gestão/governança que, por sua vez, deve inspirar-se no carisma e nos valores, e as manifestações comunicacionais, expressões que materializam a identidade e também servem como teia (in)visível de sentidos (VIZER, 2011) que alimenta as relações entre os diversos sujeitos e a identidade institucional e também é capaz de significá-la e contribuir para a compreensão e perpetuidade da identidade. COMUNICAÇÃO, GESTÃO DE MARCA E IDENTIDADE Compreender o papel da comunicação na gestão da marca, na perpetuidade e significação da identidade requer (re)pensar a própria comunicação. Muito mais do que um conjunto de saberes técnicos e especializados, que gere conteúdos, canais e mídias, a compreensão contemporânea de comunicação

25 A Rede Marista, na formulação do seu plano estratégico em 2011, revisado em 2014/2015, estabeleceu como valores: amor ao trabalho, audácia, espírito de família, espiritualidade, presença, simplicidade e solidariedade.


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organizacional/empresarial a coloca num patamar estratégico e reconhece seu caráter fenomenológico, enquanto dimensão essencial para a existência das organizações. É lugar comum afirmar que a comunicação é um processo primário e elementar da vida social, que é parte constitutiva dos sujeitos, que nos põe em evidência, parafraseando Vizer (2006, 2011), nos faz ser perante os demais e perante nós mesmos. Concepção que vai ao encontro das proposições de Maffesoli (2006), para quem a comunicação está implícita na socialidade, é uma forma de “reencarnação” do velho simbolismo por meio do qual percebemos que só podemos existir em relação, ou seja, na relação com os outros. Esse é um dos principais pontos de partida para (re)tecer a compreensão sobre comunicação. Um caminho possível para tanto é partir da teoria social da comunicação, que a concebe como lugar essencial essencial da criação dos sentidos.

Se refiere a la constitución de sentido – y en especial de los “sentidos de realidad” – a partir de los cuales se fundamentan las creencias que aseguran la construcción de la vida social, tanto por parte de los individuos como las comunidades. Las “realidades” humanas, por mas complejas y cambiantes que sean, son construidas por los hombres (y las mujeres) (VIZER, 2006, p. 29)26.

Se as realidades humanas, por mais complexas e mutantes que sejam, são construídas pelos sujeitos, como ressalta Vizer (2006, 2011), as organizações também são uma estrutura social, econômica, política, comunicacional essencialmente realizada e constituída por homens e mulheres. A produção dos sentidos e da própria vida social nesse lugar antropológico passa pelos sentidos de realidade que ali são (re)tecidos e que se fundamentam nas crenças, nos ritos e mitos, no simbólico e imaginário, na identidade organizacional e também nos processos comunicativos e comunicantes, nas relações de poder, de disputa, de cooperação e coabitação.

26 Refere-se à constituição de sentido – e em especial dos “sentidos da realidade” – a partir dos quais se fundamentam as crenças que asseguram a construção da vida social, tanto por parte dos indivíduos como das comunidades. As “realidades” humanas, por mais complexas e mutantes que sejam, são construídas pelos homens (e pelas mulheres). (Tradução nossa.)

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A importância que a comunicação assume na construção dos sentidos na sociedade se reflete, igualmente, nos ambientes organizacionais, sobretudo porque é pelos processos comunicacionais que as organizações se autoeco-organizam e reafirmam sua identidade, seu jeito de ser, sua filosofia. Se é possível afirmar que sem a comunicação não poderíamos construir nem reconstruir sujeitos, as instituições, a cultura e a natureza, da mesma forma, a realidade organizacional, também social, não poderia constituir-se na ausência de comunicação. Ela é, portanto, constituinte do universo de realidades e de sentidos organizacionais. As organizações também desenvolvem e realizam de forma mais ou menos profissionalizada, ações, atividades, processos, projetos, programas, políticas e diretrizes de comunicação, intencionais,

planejadas e desenvolvidas para alcançar objetivos e para estabelecer relacionamentos pontuais e/ ou sistemáticos com seus interlocutores. Denominamos esse conjunto de práticas como dimensão empírica da comunicação organizacional, por ser fruto da experiência prática, da empeiria27. A dimensão empírica, a nosso ver, engloba as dimensões pragmáticas da comunicação, denominadas por Kunsch (2010, 2012)28 de instrumental e estratégica. É por meio da sua dimensão empírica (estratégica) que a comunicação atua como vetor da identidade institucional, ao materializá-la nas suas diversas manifestações, planos, produtos, iniciativas, estratégias. Por outro lado, atua como mediadora e impulsionadora da identidade, significando-a junto aos sujeitos organizacionais para que ela se fortaleça

27 Empeiria é o termo grego de onde se origina a expressão empírico e significa experiência dos sentidos ou sensorial. 28 Para compreender como a comunicação está configurada nas organizações, Kunsch (2010, 2012, 2014) distingue a comunicação organizacional em quatro dimensões: instrumental, estratégica, humana e cultural. A dimensão instrumental caracteriza-se como funcional e técnica, em que predomina a transmissão de informações. Já a dimensão estratégica assemelha-se à instrumental, por estar relacionada com a visão pragmática da comunicação, na busca pela eficácia e pelos resultados. É considerada um fator que agrega valor à organização e aos negócios. A dimensão humana considera a comunicação interpessoal e as múltiplas perspectivas que permeiam o ato comunicativo no interior das organizações. Implica fundamentalmente na valorização das pessoas por seu fazer comunicativo diário. A dimensão cultural faz referência à relação permanente entre comunicação organizacional e cultura organizacional.


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e inspire os comportamentos da instituição, desde as atitudes cotidianas até as decisões estratégicas e os modos de gestão. Isso exige, primeiramente, que os profissionais de comunicação a compreendam nessa maneira. A dimensão compreensiva é fundamental, e começa pelos próprios profissionais da área. Num segundo momento, é essencial que compreendam a identidade institucional, para que consigam atuar a partir dela, como inspiração central do desenvolvimento de suas práticas. Por fim, é preciso também atuar na gestão da marca a partir da identidade, cuidando de todas as suas manifestações e do que constrói as percepções sobre a marca e a instituição. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES “Se conseguirmos responder ao questionamento espiritual inscrito no cerne de nossa identidade – “A quem ou a que entregamos nossos corações?” – tudo o mais referente ao processo de renovação terá sentido.” (SAMMON, 2003)

Poucas organizações possuem identidades tão consolidadas e representativas que se mantêm durante um longo período, com expressiva vitalidade. Tal foi a força, a fé, a coragem empreendidas por São Marcelino Champagnat, tal foi o árduo trabalho de construir o sentido de seu projeto para todos os envolvidos desde o princípio, que fez com que sua obra perseverasse, apesar dos desafios e impedimentos. No cenário organizacional, poucas também são as marcas – e instituições – que se mantêm fortes por séculos, ou que conseguem cultivar seus ideais fundantes frente às mudanças necessárias em cenários de tantas transformações. A mudança também faz parte do processo de consolidação e renovação da identidade organizacional, uma vez que as organizações necessitam, ao mesmo tempo, atualizar-se mediante os apelos de novos tempos, sem abrir mão do que as diferencia, as tornam únicas: sua identidade.

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Conforme bem destaca Ir. Sammon (2006), a etapa decisiva para qualquer Instituto implica necessariamente em assumir compromissos, é preciso fazer escolhas para vencer os períodos de mudança e transição. “Se pretendemos renovar a identidade do Instituto e da missão, não nos resta outra alternativa senão enfrentar esse processo de avaliação e escolha”, afirma (SAMMON, 2006, p. 31).

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A fala do Ir. Sammon está atrelada à dimensão canônica, mas talvez o Instituto esteja vivendo esse momento crucial em toda sua amplitude, na complexidade de sua identidade híbrida. Também as estruturas, as obras e os espaços onde a missão se concretiza enfrentam momentos de mudança e transição que exigem escolhas e reforçam a necessidade de um compromisso compartilhado com a identidade, ou seja, com sua razão de existir. O compromisso é compartilhado porque está nas mãos das pessoas, dos sujeitos organiza-

cionais, dos Irmãos, Leigos, profissionais das diversas áreas que dão vida ao carisma, à missão, à identidade. De acordo com Nassar (2004), a identidade organizacional não é patrimônio exclusivo da organização, e sua construção/ consolidação se dá na mente dos indivíduos, por meio de suas experiências pessoais e relações cotidianas. Assim também é a marca institucional, um patrimônio simbólico, espiritual, que está nas mãos das pessoas. “Como você e eu podemos fortalecer a identidade do nosso Instituto?”, questiona Ir. Sammon. Concentrando nossos esforços na vida e no trabalho, afirma, o que não implica o envolvimento de todos no mesmo trabalho, nas mesmas condições, mas o engajamento em um propósito comum. Nesse sentido, a comunicação, como dimensão fundamental na tessitura de relações e experiências que configuram a identidade institucional e dão sentido à marca, torna-se ainda mais importante. É por meio do diálogo e das relações, por/em comunicação, que a


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identidade consegue perpassar os caminhos, as lacunas, as estruturas, e é isso que mantém a marca institucional coerente com seu propósito e permite que um conjunto de pessoas estejam cientes de seu propósito compartilhado. Hoje, talvez mais do que em outros tempos, num contexto de transformações profundas nos modos de ser, viver, de crer, de se relacionar, a questão fundante sobre quem efetivamente somos, como sujeitos, como Instituição, como Igreja, ganha ainda mais relevância. Para se manter viva, uma instituição deve periodicamente se submeter a um processo de avaliação e, se necessário, transformar-se, afirma Ir. Seán Sammon (2006). A maioria precisa ainda ser lembrada de sua razão fundante, da rocha da qual foi talhada, de sua identidade. Eis o nosso desafio: atender ao que o fundador espera de nós, conforme seu testamento espiritual: “que tenhamos um mesmo coração e um mesmo espírito”.

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ESTUDOS

José Jair Ribeiro29

MARCELINO CHAMPAGNAT E O ACOMPANHAMENTO DE ADOLESCENTES E JOVENS “Não há educação sem amor. Não há educação imposta como não há amor imposto. Quem não ama, não compreende o próximo e não o respeita.” Paulo Freire RESUMO O acompanhamento é uma atitude pedagógica importante para o processo educativo de uma pessoa, principalmente quando é visto como uma dimensão da própria vida humana. Nessa perspectiva, estudando a pessoa de Marcelino Champagnat e sua dedicação em fundar um Instituto voltado para a educação de crianças, adolescentes e jovens, e reconhecendo a importância do acompanhamento para o ser humano, o presente artigo busca compreender como Champagnat acompanhava os Irmãos na reflexão sobre o acompanhamento de adolescentes e jovens nos dias de hoje.

PALAVRAS-CHAVE: Acompanhamento. Adolescentes. Jovens. Projeto Vital. Irmão Silvestre. 29 Possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição, Viamão/RS (1993), graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba/ PR (1999) e mestrado em Teologia pela Università Pontificia Salesiana, Roma/Itália (2005). É Assessor de Pastoral da Coordenação de Pastoral e Coordenador da PJM, é membro do Observatório Juventudes da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: <jair.ribeiro@maristas.org.br>.

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INTRODUÇÃO

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Para compreendermos o projeto educacional de Champagnat e o que realizou pela educação evangelizadora, precisamos entender que educação é coisa do coração, pois não há educação sem amor. Também não há educação sem responder a estas perguntas: que tipo de educação se visa? Para que tipo de sistema? Para que tipo de sociedade? Que tipo de cidadão se quer formar? Essas questões direcionam o projeto educacional, e a partir delas se elaboram os métodos pedagógicos. De alguma forma, Champagnat respondeu a essas perguntas, pois soube educar crianças e jovens para um mundo que começava a se descortinar no pós-Revolução Francesa. Eram novos tempos e, por isso, era preciso um novo projeto de educação, uma nova relação entre professor-estudante, uma nova interface entre educação-religião, entre o cotidiano da vida e a sala de aula.

Champagnat apostou numa nova relação entre professor-estudante. Em vez de se colocar diante deles como portador de um saber específico, se colocou no meio deles; em vez de olhá-los de cima para baixo, colocou-se na mesma altura para estar olho a olho, rosto a rosto e, juntos, buscarem o novo, pois queria que todos se sentissem parte na construção do Instituto. Procurando entender cada vez mais sobre a pedagogia utilizada por Champagnat para educar crianças e jovens, nos dedicaremos neste artigo a estudar o acompanhamento como estratégia pedagógica fundamental para ajudar adolescentes e jovens a amadurecerem seus projetos vitais. ACOMPANHAMENTO, UMA ARTE! A origem etimológica da palavra acompanhamento e companheiro é cum-panis, isto é, “comer o mesmo pão”. Olhando para o sentido da palavra, poderíamos


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dizer que é ir em companhia de; seguir a mesma direção...; observar a marcha...; ser da mesma política...; participar dos mesmos sentimentos...; orientar. Em outras palavras, o acompanhamento é deixar-se tocar pelo(a) outro(a), é sentir compaixão, é partilhar a vida, é participar dos mesmos sentimentos. Olhado por esse ângulo, o acompanhamento pode ser visto como uma dimensão da vida humana. Podemos dizer que não vivemos sem acompanhamento. Tendo presentes diversos aspectos de nossa vida, veremos que a criança precisa de acompanhamento, que o(a) adolescente precisa do acompanhamento dos(as) educadores(as), que a casa a ser construída precisa do acompanhamento do engenheiro, que o(a) doente – em casa ou no hospital – precisa de acompanhamento, que toda empresa precisa ser acompanhada, que toda empresa depende de bons acompanhamentos, e que todo(a) político(a) é “mais” se bem acompanhado(a), que a pessoa idosa precisa de acompanhamento. As

pessoas e as instituições precisam de acompanhamento. O “acompanhamento” marca a vida da sociedade e a nossa vida (DICK, 2008, p. 8).

As pessoas carregam em si a dimensão de acompanhamento, isto é, de alguém que exerce alguma forma de acompanhamento e de acompanhado(a), de alguém que necessita de acompanhamento. No trabalho com adolescentes e jovens, acompanhar significa ajudar a cuidar dos projetos vitais que eles(as) têm. Mas o que seria um projeto vital? “Projeto vital é uma intenção estável e generalizada de alcançar algo que é ao mesmo tempo significativo para o eu e gera consequências no mundo além do eu” (Damon, 2012, p. 53). O projeto vital ajuda a orientar, a dar rumo para sua vida, pois é uma espécie de objetivo, mas tem longo alcance e é mais estável do que objetivos mais simples e comuns, como “divertir-se esta noite”, “passear no shopping” ou

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“ir bem na prova”. Pode ajudar na busca pessoal de um sentido de vida, mas vai além do aspecto pessoal, e isso é muito importante nos dias de hoje. No fundo, é ajudar os(as) adolescentes e jovens a terem uma preocupação central na vida ou, ao menos, pensarem sobre a importância de ter um foco, um horizonte maior que a própria sobrevivência.

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Acompanhar é ajudar adolescentes e jovens a darem sentido à própria vida, a ter uma causa central à qual se ater. É ajudar a responder aos porquês. Por que estou fazendo isso? Por que isso é importante? Por que isso é importante para mim e para o mundo? Por que me esforço para alcançar esse objetivo? Acompanhar é ajudar a descobrir a razão por trás dos objetivos e motivos imediatos que comandam a maior parte do nosso comportamento diário. É ajudar a formar o caráter, pois é o caráter uma das dimensões que influenciam decisões e escolhas. O cultivo do projeto vital juvenil carrega um paradoxo. Os(as)

adolescentes e jovens devem descobrir seus projetos vitais pessoais, com base em seus interesses e crenças, mas, ao mesmo tempo, suas descobertas são guiadas por outras pessoas e os projetos vitais que eles(as) descobrem são inevitavelmente formatados pelos valores que encontram na cultura em torno deles(as). O paradoxo é que o projeto vital é tanto um fenômeno profundamente pessoal quanto inevitavelmente social. A arte de quem acompanha está justamente em ajudar a clarear o projeto vital e isso não é muito fácil, pois a vida é uma arte e cada indivíduo é o artista principal de seu projeto. Por isso, para ajudar a construir o projeto vital, é necessário ser significativo na vida do grupo, da pessoa, estar presente, tornar-se uma referência. Olhando para a história de vida de Marcelino Champagnat, poderemos identificar com muita facilidade sua preocupação em acompanhar pessoas, de modo mais especial, adolescentes e jovens.


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CHAMPAGNAT: UM MESTRE NA ARTE DE ACOMPANHAR Para bem fundamentar o acompanhamento na pedagogia de Champagnat, seria preciso aprofundar vários aspectos de sua vida para perceber sua pessoa, personalidade, sonhos e utopias. Abaixo nos limitamos a citar alguns acontecimentos e algumas atitudes de Champagnat que consideramos suficientes para alcançar o objetivo proposto. Convívio familiar e no seminário O convívio familiar é marcante na vida de cada pessoa, pois deixa marcas positivas ou negativas. Com Marcelino não foi diferente. A partir da vivência com sua família, foi aprendendo desde cedo a se sentir cuidado e amado, a valorizar as pequenas coisas, quando o encontro e as conversas eram frequentes, as dificuldades de relacionamento e econômicas eram partilhadas e resolvidas em conjunto, quando a gratidão era incentivada e vivenciada no dia a

dia (LANFREY, 2013, p. 51-56). Sua experiência formativa nos anos que antecederam sua ordenação sacerdotal também ajudou a reafirmar que ser acompanhado é importante para a formação da pessoa e também para aprender a acompanhar (LANFREY, 2013, p. 57-60). Tanto no ambiente familiar quanto no seminário, foi sendo educado na perspectiva da abertura, do olhar atento ao(a) outro(a), do fazer a sua parte, do colocar a vida e os bens em comum. Tudo isso foi importante e essencial para que mais tarde pudesse cuidar dos Irmãos com empenho e dedicação. “A sua orientação não consistia em multiplicidade de palavras. Na maioria das vezes era apenas uma carícia paterna ou apenas uma palavra, a mesma palavra, muitas vezes repetida. Pronunciada por ele, porém, tal palavra descia até o fundo do coração, levando ao arrependimento, ao amor de Deus e ao desejo de progredir. Quantos de nós, junto dele, recobramos a paz, a confian-

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ça e felicidade. Ele era firme, sem dúvida! Todos nós teríamos temido a sua voz, a um só dos seus olhares. Mas, acima de tudo, era bom e compassivo. Era para nós como um pai! Ao fundar a sua congregação, ele quis organizar uma família cujo chefe fosse um pai e na qual os Irmãos mais antigos velassem sobre os mais jovens” (IRMÃO FRANCISCO, sd)30.

Na paróquia de La Valla

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Depois de ordenado sacerdote, foi destinado para ser vigário/ coadjutor na paróquia populosa do cantão de Saint-Chamond (Loire), em La Valla. Não foi preciso muito tempo para que as pessoas pudessem perceber que era um homem atencioso, acolhedor, trabalhador, que demonstrava preocupação com elas, que queria instruí-las. Ir. Silvestre assim se refere: Para subir ou descer aquelas encostas íngremes, o cansaço não era menos. Eu sei disso, pois as percorri tanto no inverno quanto no verão. Por isso posso avaliar a grandeza do seu

sofrimento e dedicação ao deslocar-se do presbitério às diversas aldeias da paróquia. Não se deslocava somente para a visita aos doentes; muitas idas e vindas eram motivadas também por seu desejo de restabelecer a união nas famílias, reconciliar os inimigos, aliviar os pobres, consolar os aflitos e trazer para o bom caminho pessoas que se tinham desviado do bem, que falavam mal do pároco. Para isso, possuía o dom especial de repreender e corrigir as pessoas sem as melindrar (IRMÃO SILVESTRE, 2014, p. 122).

Preocupado com a pouca instrução das pessoas de sua paróquia, visto que não havia escolas, e, percebendo que era importante que aprendessem a ler, principalmente as crianças, adolescentes e jovens, “contratou um professor para dar início à instrução e educação das crianças, pois eram muitos descuradas” (IRMÃO SILVESTRE, 2014, p. 123). Em uma ocasião, foram chamá-lo com urgência para confessar um rapaz de 17 anos, Jean

30 In: Arquivos dos Irmãos Maristas – AFM, Roma, doc. 505.8, citado pelo Ir. Ivo Strobino na apostila do curso


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Baptiste Montagne, que agonizava. Assim relatou Irmão Silvestre (2014, p. 125): Conforme seu costume, deixou tudo e foi apressadamente à casa do doente. Antes da confissão, quis comprovar seus conhecimentos religiosos. Com grande pesar, constatou que o rapaz nem sequer sabia da existência de Deus. Sentou-se junto dele durante duas horas, ensinando as principais verdades da religião e instruindo-o sobre o sacramento da penitência. Ouviu-lhes a confissão e suscitou nele sentimentos de pesar e arrependimento. Então, prometendo voltar logo, deixou-o para seguir até outro casario, onde atendeu mais uma pessoa. Mas, infelizmente, o rapaz faleceu nesse intervalo. Embora aflito com essa morte súbita, consolou-se com o pensamento de que, provavelmente, tinha-lhe aberto as portas da feliz eternidade. E dizia para si mesmo: “Quantos meninos, talvez, se encontram nesta mesma situação, correndo o perigo de se perderem para sempre”. Muito impressionado com esse pensamento, não titubeou mais em começar logo a congregação.

Quando o acompanhamento é percebido como uma dimensão do ser humano, a atitude do cuidado passa a ser um critério vital, uma marca da pessoa em tudo o que realizará, em todos os momentos da vida. Champagnat sabia disso e agia segundo essa sua convicção. Não tenho mais tempo a perder Percebendo que havia meninos que demonstravam interesse em dedicar-se com mais empenho às obras de Deus, convidou dois deles para ir morar em uma casa ao lado da casa paroquial. Era um local humilde, semelhante à pobre casa de Nazaré. Era o dia 2 de janeiro de 1817. O pequeno grão de mostarda estava semeado. Foi o berço do Instituto e a realização do sonho/missão de Champagnat: fundar uma congregação que pudesse educar evangelizando e evangelizar educando. Outros adolescentes e jovens viam a experiência que era realizada e manifestavam o desejo de também fazer parte. O grupo foi

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aumentando, até o momento em que Champagnat tomou a decisão de ir morar junto a eles. Era o desabrochar de uma de suas características mais próprias: companheiro de caminhada. Assim se refere Irmão Silvestre (2014, p. 133) a esse fato:

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Há algum tempo, o Fundador intuíra a vantagem de estar presente o tempo todo na casa, para formar os Irmãos, completar sua instrução, acompanhá-los no exercício de suas funções, corrigi-los e orientá-los. Em vista disso, decidiu morar com eles, apesar das muitas objeções que o pároco lhe apresentou: refeições simples, ambiente geral de pobreza, desconforto de ordem pessoal. Sem ligar a tais objeções, Champagnat deixou o presbitério e foi partilhar a indigência e pobreza dos seus Irmãos, participando de seus trabalhos, foi “comer o mesmo pão”.

cipação, partilha. Ou, como diz o próprio significado da palavra, necessita comer o mesmo pão. Queridos Irmãos, o período de férias, neste ano,começará no dia... Marcelino se identifica como Fundador não por ter lançado teses filosóficas nem por ter escrito livros sobre a formação, mas simplesmente por seu modo de ser, sua presença no meio dos Irmãos e seu relacionamento de pai e amigo. Todos os anos no período das férias escolares reunia os Irmãos na Casa Mãe para o convívio, partilha, realização do retiro, para a formação, pois tinha a convicção de que o Instituto era uma casa que todos ajudam a levantar, como a casa paterna/materna, para onde todos gostam de voltar. Eis uma das cartas-convite aos Irmãos:

Essa atitude de Champagnat demonstra que o acompanhamento, para ser o mais eficaz possível, necessita de envolvimento, parti-

Queridos Irmãos, o período das férias, neste ano, começará no dia 28 de setembro. Logo que pude-


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rem venham à Casa Mãe para o retiro, que começará nos primeiros dias de outubro... Venham todos se reunir e se reafervorar na Casa que presenciou vocês se tornarem filhos da mais carinhosa das Mães [...] (CHAMPAGNAT, Carta 210, p. 444).

Através das atividades de férias, manifesta sua convicção sobre o que é preciso fazer para acompanhar uma pessoa, um grupo: ser presença significativa, confiar, caminhar junto, acompanhar a trajetória de cada um – caminhando ao lado de –, com abertura e compaixão. DO ADOLESCENTE SILVESTRE AO IRMÃO SILVESTRE São muitas as histórias de vida que poderíamos contar de adolescentes e jovens que passaram pelas mãos de Champagnat e se tornaram pessoas melhores, centradas em causas nobres. Mas a história que mais nos chamou a atenção foi a do Irmão Silvestre.

Nasceu em 1819, dois anos após Champagnat ter recebido os dois primeiros jovens. Os Irmãos Maristas assumiram uma escola em sua cidade natal, Valbernoîte, em 1827, recebendo cedo a influência marista. Conheceu Champagnat quando este visitou sua sala de aula. Em 1831, foi a l’Hermitage para pedir admissão ao noviciado. Tinha 12 anos de idade. Chegou a l’Hermitage com o desejo de tornar-se Irmão. E é nesse período em diante que Champagnat passou a acompanhar a sua vida. Por conhecer os impulsos dos adolescentes e os estágios da maturidade, Champagnat utilizou sua pedagogia para ajudar no amadurecimento de cada adolescente e jovem, de modo especial de Silvestre. Por exemplo, só o recebeu no noviciado cinco meses após chegar a l’Hermitage; um ano depois permitiu que emitisse a profissão religiosa temporária, mas por apenas um mês; depois foi aceito por três meses, anualmente e trienalmente, chegando à profissão definitiva em 1843, com 24 anos de

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idade, três anos após a morte de Champagnat (SILVESTRE, 2014, p. 18-20). A renovação da profissão temporária era normal após o noviciado, mas não por um mês, três meses. Eis o olhar pedagógico de Champagnat dando oportunidade a Silvestre para crescer e amadurecer sua decisão e, ao mesmo tempo, acompanhar o seu projeto vital.

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Irmão Silvestre era de baixa estatura, impulsivo e brincalhão. Por onde passava, acabava chamando a atenção das pessoas, “era uma atração à parte, despertando curiosidade”, conforme ele mesmo descreve. As histórias de frivolidades são muitas, como “tonsurar” um noviço ao lhe cortar o cabelo; derramar óleo na batina de Champagnat; rolar morro abaixo, às cambalhotas, arrastado por duas cabras que ele havia amarrado à própria cintura; o carrinho de mão... Mas não foram suficientes para que Champagnat desacreditasse do desejo de Silvestre e da sua própria convicção de que seria um bom Irmão.

O episódio do carrinho de mão nos ajuda a entender que, para acompanhar uma pessoa ou grupo, é preciso confiança e compreensão. Nesse episódio, o Irmão diretor queixou-se a Champagnat das leviandades de Silvestre e relatou o acontecido. Eis a resposta de Champagnat: Lastimo deveras que o Irmão Silvestre tenha levado o carrinho somente até a sala de estudos. Se o tivesse levado ao sótão, eu lhe daria uma recompensa. Não vejo que mal possa ter feito com o carrinho. Vocês também se divertiam quando jovens. Parece-me que são vocês que estão errados; em vez de convidá-lo para jogos inocentes e de participar com ele em brincadeiras, a fim de fazê-lo distrair-se e passar o tempo, vocês o deixam sozinho; vocês se ocupam do estudo e em conversas sérias. Não é de estranhar, portanto, que ele tenha brincado com o carrinho. Não vejo razão para recriminá-lo e menos ainda para deixá-lo isolado, com o risco de fazê-lo desgostar-se do trabalho e da vocação (FURET, 1999, p. 256).


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Champagnat conhecia bem o jovem Irmão e gostava dele, devido à sua candura e docilidade. Essa atitude demonstra cumplicidade, abertura para as travessuras, compreensão de que a vida não é feita só de regras, normas, mas também do lúdico, de brincadeiras, de alegrias. Enfim, parte da perspectiva de Silvestre para conversar, para entender e não somente daquilo que foi estabelecido ou precisa ser feito. Atitude fundamental para a confiança. Em 25 de novembro de 1837, Champagnat enviou uma carta endereçada ao Ir. Silvestre, que se encontrava em La Côte. Deu notícias sobre as missões, animou-o e transmitiu saudações a todos os Irmãos da comunidade. Com essa carta, podemos perceber o seu olhar atento e constante, mesmo estando geograficamente distante. Assim iniciava a carta: Meu caro amigo, desejo ardentemente que Jesus e Maria abençoem suas boas disposições. Sua franqueza não deixará de ser abençoada, e você arrebatará o prêmio da vitória. Coragem!

Mas lhe recomendo que se mostre sempre disposto a dar a conhecer suas disposições a seus superiores e diretores (CHAMPAGNAT, Carta 158, p. 325).

Em 1840, antes de decidir pela emissão definitiva dos votos, Silvestre passou por uma crise. Não teve dúvidas, escreveu a Champagnat relatando sobre a sua indecisão e este, apesar de muito doente, quis vê-lo e chamou-o a l’Hermitage. Foi o último gesto de carinho de Champagnat para com ele, pois a visita aconteceu dia 5 de junho de 1840, véspera do falecimento de Champagnat. Entrei no quarto e fiquei de joelhos na cabeceira de sua cama, chorando. Ele fez sinal para que eu me levantasse e segurou com afeto meu braço, sem pronunciar palavra alguma. Ajoelhei-me novamente ao pé de sua cama e voltei a chorar. Fiquei ali alguns minutos, aniquilado, até que me fizeram sinal para retirar-me. Ao sair, o Irmão Luís Maria me chamou à parte e disse-me: “O padre Superior, no seu leito de morte, pediu-lhe que lhe dissesse que acre-

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dita firmemente na sua vocação”. Na escola, depois do meu regresso, refleti muito naquelas palavras que, para mim, eram sagradas (IRMÃO SILVESTRE, 2014, p. 236).

ser levados em consideração por aqueles(as) que compartilham o mesmo pão com adolescentes e jovens, não importando o lugar que atua na missão marista.

Diante dessas palavras, não precisamos fazer grandes reflexões para entender que a confiança é fundamental/essencial no acompanhamento.

• Conhecer o(a) jovem: o discurso sobre o conhecimento do(a) adolescente e jovem, sobre partir da realidade dele(a), é antigo e muito batido, mas nem sempre é levado em consideração. Às vezes, dizemos que partimos da visão de mundo dos(as) adolescentes e jovens, mas na realidade partimos da nossa própria visão. Por exemplo, continuamos pensando a vida de forma linear, com passos simétricos, um atrás do outro, em ordem, afirmando que o mais importante é definir o projeto vital e depois somente segui-lo, sem grandes modificações. Adolescentes e jovens de hoje não estão pensando assim. Já sabem que as coisas não têm mais toda essa ordem, sabem que tudo acontece ao mesmo tempo e na mesma hora. Ou seja, o mais importante não é somente definir o projeto vital,

CUIDADOS ESSENCIAIS

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Em uma conversa, um jovem disse: “a vida sem o objetivo de fazer alguma coisa, de fazer diferença, é como uma corrida sem uma linha de chegada”. O acompanhamento que não parte do(a) adolescente e jovem e que não esteja diretamente voltado para ele(a) é como uma corrida sem linha de chegada, na qual podemos correr muito, mas não sabemos quando nem aonde estamos chegando. Olhando para a vida de Champagnat e pela experiência que temos no trabalho com adolescentes e jovens, acreditamos que alguns cuidados precisam


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mas sim ajudar a sustentar essa definição, ajudar a entender as modificações que ocorrem de forma quase que natural. Já não pensam em um projeto vital engessado e pronto, com manual de instrução impresso para ser seguido quando aparecem os problemas. Os(as) adolescentes e jovens continuam buscando as grandes causas na vida, mas já não buscam como em períodos anteriores. Mas isso não nos dá o direito de dizer que não buscam mais nada, que não querem mais nada. Quem afirma isso está sendo no mínimo injusto, ou não está partindo do mundo deles(as). Para um bom acompanhamento, é preciso partir da visão de mundo que eles(as) têm e gostar do que gostam, para quem sabe venham a se interessar por aquilo que achamos importante. • Ajudar a buscar a fonte, a dar direção e significado: é quase comum ouvir que os(as) adolescentes e jovens são descompromissados nos dias de hoje e, olhando com mais pro-

fundidade, vamos ver que em parte é verdade. No fundo, é a ausência de algo, uma espécie de vazio. Eis a questão central: falta de direção, falta de significado, falta de uma motivação maior, pois o mundo adulto também está encontrando essa mesma dificuldade. O acompanhamento pode ajudar a não perder o foco, a manter a direção, a procurar o significado mais profundo de tudo o que está acontecendo em sua vida pessoal e ao seu redor. Quando as grandes causas não existem mais no mundo juvenil, esses(as) se sentem perdidos e confusos. É preciso ajudar a trazer/pensar/refletir para o horizonte juvenil causas motivadoras de vida e a colocar as perguntas essenciais para a vida. Quando não colocam mais as grandes perguntas sobre a vida, acabam tirando do seu horizonte a busca pelas respostas e, com isso, vão se fechando sempre mais sobre si mesmos e, quanto mais se fecham em si, mais vazio vão se sentindo. No fundo, é preciso

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ajudá-los(as) a caminhar com suas pernas, a sonhar os seus sonhos, a ver o mundo com os seus olhos. O acompanhamento pode ajudar a ver, a clarear a direção, mas jamais deveremos ver e sonhar por eles(as).

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• Ajudar a procurar resultados duradouros: ajudar a encontrar um projeto vital claro é essencial para a conquista da felicidade e da realização e fazê-lo no ambiente cultural de hoje é muito mais difícil do que deveria ser. É preciso ajudá-los(as) a buscarem projetos vitais nobres, pois esses levam a mantê-los(as) mais compromissados(as) e empenhados(as). Diante da cultura do descartável, do imediato e das buscas individuais, é preciso ajudar a buscar respostas menos rápidas, menos imediatas e menos individuais. Acredito que a forma mais adequada para isso é envolvê-los(as) em causas nobres, é oportunizar-lhes a experiência de fé/vida, de serviço voluntário, de se engajar na luta ecoló-

gica e de se sentir “mais útil”. Já não podemos ficar somente no discurso. É preciso levar a experienciar formas diferentes de se viver a vida. E aqui existe um grande desafio, pois o mundo adulto não está sendo um bom exemplo de posturas éticas e morais coerentes e convincentes. O acompanhamento precisa ajudar a provocar essas novas experiências e acompanhá-las para que se tornem formadoras de caráter e de identidade, influenciando nos projetos vitais. • Ajudar a formar pessoas autônomas: é na adolescência que passam a colocar em prática o processo de separação-individuação e de corte do cordão umbilical. Há a diminuição de um lado e aproximação de outro. Há a diminuição da dependência familiar e o crescimento da autonomia. Nesse aspecto, precisam de ajuda, pois a tendência é esticar a dependência familiar, continuar vivendo o projeto vital que a família pensou para ele(a). A autonomia é


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importante, pois ajudará a pensar no seu projeto vital, a ter os seus próprios sonhos e desejos. O grupo, os amigos e o acompanhamento são fundamentais para enfrentar com mais normalidade essas “perdas” e, ao mesmo tempo, construir os novos ganhos. O acompanhamento deve reforçar e ajudar a construir a autonomia, mas uma autonomia societária e não individualista-narcisista. • Alimentar uma postura otimista e autoconfiante: os acompanhantes deveriam ajudar a interpretar as experiências de forma esperançosa, evitando a todo o custo o tipo de pessimismo do pensamento catastrófico que tende a imaginar o pior que pode acontecer assim que algo começa a dar errado. Quando algo começa a dar errado, o(a) adolescente e jovem já se assumem como incompetentes, como irresponsáveis, como uma pessoa má ou sem sorte, etc. Para construir um projeto vital, é preciso saber encarar os problemas

que vão aparecendo, pois esses também fazem parte da vida. O incentivo, a acolhida através da escuta, o enxergar o todo, o controle da ansiedade e do emocional são fundamentais para ajudá-los(as) a enfrentarem os projetos vitais com mais força e garra. • Inspirar responsabilidade: uma das muitas formas com as quais podemos inspirar responsabilidades aos(às) adolescentes e jovens, o sentimento de que são capazes e de que estão dando a sua contribuição, é tornar claro que os consideramos capazes. O sentimento de “fazer a diferença” é muito presente na vida deles(as). Gostam de estar envolvidos em coisas que valham a pena, em projetos vitais positivos, pois hoje há uma corrente de pensamento bastante forte que afirma que a sua identificação deve se alimentar da rejeição do outro. Por isso, os acompanhantes juvenis devem propor serviços comunitários, serviços voluntários, envolvimento social como

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forma de ajudar a formar o caráter e a dar forma aos projetos vitais. Será ajudando as pessoas que cada qual descobrirá que estará sendo a diferença e não só fazendo a diferença.

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• Esforço comunitário em prol do projeto vital juvenil: uma grande contribuição que os acompanhantes de adolescentes e jovens podem dar é ajudando a sociedade como um todo a se importar com os projetos vitais juvenis. Já não é mais possível deixar todas as responsabilidades dos fracassos, dos desânimos juvenis em suas próprias mãos. As instituições (família, escola, comunidade de fé, Estado) devem oferecer condições para que possam construir os seus projetos vitais. Todos precisam ter clareza de que não darão conta sozinhos dos grandes questionamentos da vida, como: Qual a minha vocação? Que contribuição posso oferecer ao mundo? Para que estou aqui? Não podemos fugir dessas questões e muito menos deixar que eles(as) fujam.

CONCLUINDO Recuperando a ideia que tínhamos no início do artigo e olhando o percurso realizado, adquirimos mais convicção sobre a importância do acompanhamento para o amadurecimento de cada pessoa; sobre o quanto é fundamental provocar para que cada qual tenha um projeto vital que dê sentido para a sua vida e a diferença que um(a) educador(a) poderá ser na vida de adolescentes e jovens quando entende o acompanhamento como dimensão do ser humano. Obrigado, Marcelino Champagnat, por nos deixar como herança o acreditar que em cada adolescente e jovem soa uma corda do bem e que cabe ao(à) educador(a) descobri-la. Que educadores e educadoras não desanimem nessa tarefa humana e divina que é “partir o pão com...”.


MARCELINO CHAMPAGNAT E O ACOMPANHAMENTO DE ADOLESCENTES E JOVENS

REFERÊNCIAS CHAMPAGNAT, Marcelino. Cartas. São Paulo: Simar, 1997. DAMON, William. O que o jovem quer da vida? Como pais e professores podem orientar e motivar os adolescentes. São Paulo: Summus editorial, 2009. DICK, Hilário & Teixeira, CARMEM LÚCIA & LEVY, Salvador Segura. Acompanhamento: mística do/a Acólito/a da Juventude. São Paulo: Centro de Capacitação da Juventude (CCJ), 2008. FURET, Jean-Baptiste. Vida de São Marcelino Champagnat. São Paulo: Loyola e Simar, 1999. IRMÃO SILVESTRE. Relatos sobre Marcelino Champagnat. Edição brasileira curada por Ir. Ivo Antônio Strobino. Brasília: Umbrasil, 2014. LANFREY, André. Marcelino Champagnat e os Irmãos Maristas: professores, congreganistas no século XIX. Brasília: Umbrasil, 2013

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ESTUDOS

Graziele Erig Santorum31

O ARQUIVO PROVINCIAL DA PROVÍNCIA MARISTA DO RIO GRANDE DO SUL RESUMO O Arquivo Provincial da Província Marista do Rio Grande do Sul (PMRS) custodia documentação de caráter histórico relativa a Irmãos falecidos, a obras que foram fechadas e ao conjunto de publicações que traçam um itinerário da obra marista desde seu aporte no Rio Grande do Sul, em 1900. A responsabilidade de garantir o acesso e a preservação dos documentos é do Secretário Provincial, tendo as atividades de arranjo e descrição a cargo do Arquivista Provincial, que conta com o repositório digital, Archivum, para subsidiar tais funções. Percebe-se, no entanto, que, mesmo com a estruturação dos fundos, séries e subséries e consequente eficiência na busca dos itens documentais, a demanda de pesquisas não é sistêmica e fica restrita a um grupo de setores e pessoas já familiarizado com o Arquivo. Nesse sentido, pretende-se abordar temáticas comuns à ciência arquivística

PALAVRAS-CHAVE: Arquivos eclesiásticos. Arquivo Provincial. Patrimônio marista. 31 Arquivista Provincial da Província Marista do Rio Grande do Sul. E-mail: <graziele.santorum@maristas.org.br>. Artigo realizado na conclusão do Curso de Patrimônio e Espiritualidade Marista (PEM). Porto Alegre, março de 2015.

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INTRODUÇÃO

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O presente artigo tem sua natureza na observação, não tabulada, de pesquisas solicitadas ao Arquivo Provincial da Província Marista do Rio Grande do Sul (PMRS) no decorrer de um ano (2014). Com a simples análise empírica das pesquisas demandadas ao Arquivo Provincial, foi possível concluir que a maioria provém de grupo de usuários regulares, formado por Irmãos32 maristas e colaboradores estritamente ligados a setores de cunho canônico dentro da instituição. A partir desse fato, surgiu a preocupação em ascender o Arquivo Provincial enquanto setor responsável pela guarda, preservação e acesso de documentos de grande valia para todos que se identificam com o carisma marista, e, além disso, setor acessível para Irmãos, Leigos, gestores, colaboradores e público externo realizarem pesquisas acerca dos mais de 100 anos de presença marista no Rio Grande do Sul.

32 Título dado ao religioso marista.

Para isso, será necessário tratar inicialmente de alguns conceitos da Arquivologia, como teoria das três idades e princípio da territorialidade, além de versar sobre as peculiaridades de arquivos e documentos para fundamentar as atividades desenvolvidas no Arquivo Provincial. Em seguida, serão apresentadas as características dos arquivos eclesiásticos e algumas normas que regem as organizações eclesiásticas, o que requer uma atenção toda especial na área arquivística. E, por fim, será tratado o caso do Arquivo Provincial da PMRS – abordando atividades intelectuais e técnicas desenvolvidas pelo arquivista – pensando-se enquanto setor de caráter atuante na Província e no Instituto. Dessa forma, será possível contextualizar o ambiente do Arquivo Provincial e a memória nele imbuída ao longo da história marista no Rio Grande do Sul. E, com isso, aproximar e atrair o leitor acerca das possibilidades existentes no Arquivo enquanto centro de conhecimento espiritual e patrimonial a ser explorado.


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CONCEITOS DE ARQUIVO Os arquivos são tidos, muitas vezes, como um simples móvel onde se guardam documentos, ou ainda, amplas salas nas quais se depositam “papéis velhos e sem utilidade”, os quais são erroneamente denominados de “arquivo morto”. Todavia, “arquivo” é muito mais do que o representado nessas ideias comuns, conforme conceitua o autor norte-americano Schellenberg (2006, p.41): Os documentos de qualquer instituição pública ou privada que hajam sido considerados de valor, merecendo preservação permanente para fins de referência e de pesquisa e que hajam sido depositados ou selecionados para depósito, num arquivo de custódia permanente.

O Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (DBTA, 2005, p.27), por sua vez, conceitua arquivo como:

1. Conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte; 2. Instituição ou serviço que tem por finalidade a custódia, o processamento técnico, a conservação e o acesso a documentos; 3. Instalações onde funcionam arquivos; 4. Móvel destinado à guarda de documentos.

Tendo em vista o caráter orgânico dos documentos, eles se constituem como fonte fiel para o produtor e têm papel fundamental para a administração, seja ela pública ou privada, enquanto prova fiscal e jurídica, além de se constituírem como fonte para memória e pesquisa histórica. Em Arquivologia, tem-se a classificação dos arquivos de acordo com sua extensão (arquivos setoriais e arquivos gerais), sua frequência de uso (arquivos correntes33, intermediários34 e

33 Arquivos correntes são formados pelos documentos vinculados aos fins imediatos para os quais foram criados. São consultados frequentemente. 34 Arquivos intermediários são aqueles cujos documentos que provêm do arquivo corrente perderam parte do seu uso, mas são eventualmente consultados pelo produtor.

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permanentes35), a agência criadora (arquivos públicos e privados), o acesso (arquivos franqueados, restritos e confidenciais) e, por fim, o formato (características externas ao documento).

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Para fins de entendimento deste trabalho, é necessário conhecer outros pontos fundamentais da disciplina arquivística, que são seus três princípios norteadores: princípio da territorialidade, princípio da proveniência e teoria das três idades. Este último já foi tratado anteriormente e, de maneira mais ampla, diz respeito à destinação de cada documento de acordo com sua frequência de uso. O princípio da proveniência diz respeito à necessidade de organizar os documentos de uma mesma proveniência (produzidos por um mesmo órgão ou pessoa) de acordo com sua ordem primitiva, levando em conta seu contexto orgânico. E, por fim, o princípio da territorialidade refere-se ao direito dos documentos de serem mantidos nos locais (ou o mais próximo deles) em que foram gerados, evitando

deslocamentos equivocados. Sobre esse último princípio, a ideia básica é a de os arquivos sejam conservados o mais perto possível do lugar da sua criação e da sua aplicação; significa que eles devem ser guardados pela instituição que os criou (ROSSEAU E COUTURE, 1998). Dessa forma, fica claro que as características dos arquivos são definidas de acordo com as razões pelas quais os documentos foram produzidos e somadas às razões pelas quais os documentos foram preservados. Revelando a seriedade com que a área aborda tanto as tarefas intelectuais quanto os procedimentos técnicos, que se adequam com a realidade e especificidades do arquivo a ser trabalhado. A seguir serão apresentadas as características dos arquivos eclesiásticos e algumas peculiaridades do Arquivo Provincial da PMRS, de maneira a elucidar o tema proposto no presente artigo e complementar os assuntos tratados anteriormente.

35 Arquivos permanentes ou históricos são aqueles que não possuem mais valor administrativo, porém são conservados de forma definitiva em razão de seu valor histórico ou documental.


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ARQUIVOS ECLESIÁSTICOS Arquivos Eclesiásticos podem ser compreendidos amplamente como arquivos religiosos, uma vez que, segundo o Dicionário Aurélio (2013), o termo eclesiástico é “relativo à Igreja católica ou ao clero”. Dessa forma, podemos entender que os Arquivos Eclesiásticos são os conjuntos de documentos produzidos ou recebidos por uma instituição religiosa. Os arquivos da Igreja Católica são historicamente reconhecidos por narrarem fatos relevantes à estrutura da própria instituição eclesiástica, mas também por conterem registros de cidades, estados e países, sendo as cúrias36 os grandes centros responsáveis por preservarem a memória de cada diocese. Todavia, o Código de Direito Canônico trata de outros arquivos que a Igreja contempla enquanto instituição – que não os famosos livros de batismo e casamento – são eles: Comum (c. 486), Secreto (c. 489), Histórico (c. 491 § 2), o das Igrejas Catedrais (c. 491 § 1), o das colegiadas, o das paróquias e 36 Órgão administrativo de uma diocese.

outras Igrejas do território (c. 491 § 1), o das fundações (c. 1306 § 2), o dos institutos de vida consagrada, sociedades de vida apostólica e institutos seculares, o de outras instituições seculares e o das Conferências Episcopais. Interessam, aqui, os arquivos conhecidos como “dos institutos de vida consagrada”. Cada congregação deve constituir o seu próprio arquivo, onde será guardada a documentação paroquial produzida e recebida. Conforme o Código de Direito Canônico (1983, p.271), entende-se por “vida consagrada” o que segue: § 1. A vida consagrada pela profissão dos conselhos evangélicos é uma forma estável de viver, pela qual os fiéis, seguindo mais de perto a Cristo sob a ação do Espírito Santo, consagram-se totalmente a Deus sumamente amado, para assim, dedicados por título novo e especial à sua honra, à construção da Igreja e à salvação do mundo, alcançarem a perfeição da caridade no serviço do Reino de Deus e, transformados em sinal preclaro na Igreja, preanunciarem a glória celeste.

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§ 2. Assumem livremente essa forma de vida nos institutos de vida consagrada, canonicamente erigidos pela competente autoridade da Igreja, os fiéis que, por meio dos votos ou de outros vínculos sagrados, conforme as leis próprias dos institutos, professam os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência e, pela caridade à qual esses votos conduzem, unem-se de modo especial à Igreja e a seu mistério.

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Dessa forma, os religiosos que optam pela vida consagrada não têm ligação clerical nem laical com a Igreja. Porém, assumem responsabilidades que vão ao acordo das doutrinas da congregação ou ordem religiosa escolhida. De acordo com Código de Direito Canônico (1983, p.279), no Cânone 598: § 1. Cada instituto, de acordo com a índole e os fins que lhe são próprios, defina em suas constituições o modo segundo o qual serão observados, conforme o próprio teor de vida os conselhos evangélicos de castidade, pobreza e obediência.

O poder de decisão de cada instituto de vida religiosa se centra na pessoa do Superior, o qual governa segundo normas do direito universal e próprio. Assim, o documento (1983, p.287288) prevê que: Cân. 620 – Superiores maiores são os que governam todo o Instituto, ou uma Província deste, ou uma parcela equiparada à mesma, ou uma casa autônoma, bem como seus vigários. [...] Cân. 621 – A união de várias casas que, sob o mesmo Superior, constitui uma parte imediata do mesmo Instituto, [...], recebe o nome de Província.

Tendo em vista a organização política e administrativa descrita de maneira breve acima, é possível prever que a produção documental em nível de institutos de vida consagrada é intensa, uma vez que se mostram proativos na missão evangélica e têm rotinas definidas.


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Os institutos de vida consagrada são muitos, podendo contemplar comunidades de gênero masculino ou feminino. São exemplos: Carmelitas, Clarissas, Beneditinos, Franciscanos e Maristas, os quais serão abordados mais especificamente no próximo capítulo. O ARQUIVO PROVINCIAL MARISTA Para compreender o contexto documental do Arquivo Provincial e onde ele se insere no âmbito institucional, é necessário apresentar alguns pontos que traçam a estrutura organizacional marista. É importante salientar que a existência do Arquivo Provincial é prevista pelo Governo-Geral do Instituto Marista, em Roma, cujas normativas vão ao encontro das premissas da Igreja; porém, gozam da autonomia prevista aos institutos de vida consagrada. O Vade-Mécum37 do Instituto dos Irmãos Maristas (2008), editado pela Casa-Geral, disserta sobre a necessidade de o Superior-Geral eleger Irmãos e Leigos

capazes de assumirem cargos de Procurador-Geral, Postulador-Geral, Secretário-Geral e Administrador-Geral. Além desses, fica previsto no Vade-Mécum (2008, p.12) que: O Ir. Superior-Geral e seu Conselho nomeiam outros Irmãos e contratam auxiliares Leigos para as diversas tarefas de animação das atividades próprias do Instituto. Entre esses estão os encarregados dos arquivos, das estatísticas, pesquisas históricas, comunicações, os secretários e membros das comissões, os animadores dos cursos de formação e outros (cf. C 137.11). | 117 |

Tal estrutura organizacional deve ser refletida e mantida em cada unidade administrativa38 marista, podendo variar, por exemplo, o contexto regional. Assim, fica garantido o cumprimento de normas e padrões estabelecidos pelo Instituto. Todavia, a preocupação sobre a organização dos arquivos, cabe destacar, foi latente desde os primórdios do Instituto Marista. É o

37 Guia administrativo para uso dos Irmãos Provinciais e de seus Conselheiros. 38 Unidade administrativa se refere à Província ou Distrito.


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que revela carta deixada pelo fundador, o Padre Marcelino Champagnat39 (1789-1840):

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Prezado Senhor, Desejaríamos ter um relato histórico da fundação do estabelecimento dos Irmãos em sua paróquia, (município), do seu desenvolvimento e o nome dos benfeitores. Ficaremos muito contentes em receber esses diversos informes que serão guardados nos arquivos da casa principal e nos do respectivo estabelecimento. Tais informes servirão para o exercício da gratidão das gerações futuras, herdeiras de seus frutos. Seu... (CHAMPAGNAT, 1836)

Entre os anos de 1823 e 1840, Marcelino Champagnat, enquanto primeiro Superior-Geral escreveu mais de 300 cartas40. Elas eram dirigidas aos primeiros Irmãos e demais pessoas envolvidas na administração das escolas. Na carta 078, citada anteriormente, Champagnat deixa muito clara a necessidade de a memória não apenas ser guardada para gerações futuras, mas também ser escrita e

descrita, com seus devidos personagens, lugares e demais contextualizações para ser disseminada àqueles que não estão presentes naquela realidade. Fica claro, portanto, que os Arquivos Provinciais ficam responsáveis por salvaguardar documentação que reflete as relações orgânicas estabelecidas entre as unidades maristas. Exemplo disso é a própria carta de Champagnat. Escrita em 1836, é preservada até hoje nos arquivos da Casa-Geral, em Roma, e disponibilizada ao mundo, em quatro idiomas, pela Internet41. Em relação aos Arquivos na atualidade, fica definido que cada unidade deverá ter um arquivista responsável por classificar e conservar os documentos, além de atender a demandas de consultas e pesquisas. O documento ainda prevê o seguinte: “É desejável uma coordenação crescente entre os arquivos provinciais e a Administração-Geral, introduzindo meios eletrônicos e Internet, para que o serviço seja cada vez mais

39 Fundador do Instituto dos Irmãos Maristas, inicialmente batizado de Sociedade de Maria. 40 Reunidas originalmente em: Lettres de Marcellin J. B. Champagnat (1789-1840) Fondateur de l’Institut des Frères Maristes, présentés par Frère Paul Sester. Rome, Casa Generalizia dei Fratelli Maristi, 1985. 41 Através do site champagnat.org, mantido pela Casa-Geral do Instituto.


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simplificado e eficaz” (INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS, 2008, p.12). A introdução de equipes, equipamentos e meios cada vez mais especializados e desenvolvidos do ponto de vista tecnológicos, são avanços que garantem melhorias no fazer técnico e intelectual do Arquivo Provincial. E, acima de tudo, vislumbram a capacidade de atender a padrões demandados pela Casa-Geral e, consequentemente, atingir maior número de usuários. O acervo O Arquivo Provincial da PMRS custodia documentação de caráter histórico, relativa a Irmãos falecidos ou egressos, a obras que foram fechadas e ao conjunto de publicações que traçam um itinerário da obra marista desde seu aporte no Rio Grande do Sul, em 1900. De acordo com o Manual dos Secretários Provinciais (2007, n.1.05), elaborado pela Casa-Geral, os documentos provinciais podem ser de várias naturezas:

a. Os documentos pessoais contêm a identidade civil e canônica do religioso e outros dados relativos ao Irmão (testamento, suas relações com a Administração-Geral, seus pedidos ao Conselho provincial, etc.). O acesso a esses documentos, cujos dados têm um caráter confidencial, deverá ser reservado, levando-se em consideração o que eles contêm. b. Os documentos públicos e administrativos (títulos de propriedades, contratos, acordos, transações, etc.) são aqueles que estabelecem uma relação entre pessoas físicas ou jurídicas e a administração pública, como os registros de propriedade, os | 119 | contratos com as empresas ou com particulares. Esses documentos são importantes, pois eles servem para comprovar nossos direitos patrimoniais ou os nossos empenhos institucionais. O Secretário provincial deve conservá-los nos Arquivos provinciais, em seus documentos originais ou cópias devidamente autenticadas. Nesse grupo de documentos, podem ser incluídas as decisões de governo do Instituto (as atas do conselho provincial e dos capítulos), os pedidos e as permissões concedidas pelo Conselho-Geral, as


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eventuais autorizações feitas pelo Bispo local, etc. c. Os documentos históricos se constituem no conjunto de publicações que representam um reflexo das atividades e do desenvolvimento de nossas obras.

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Os documentos recolhidos para o Arquivo seguem a premissa do princípio da territorialidade e dizem respeito a funções e atividades da Província ou de seus Irmãos. Já a responsabilidade de garantir o acesso e a preservação dos documentos é do Secretário provincial, tendo as atividades de arranjo e descrição a cargo do Arquivista provincial, que conta com o repositório digital Archivum42 para subsidiar esta última. O quadro de arranjo do Arquivo Provincial é composto por cinco fundos, a saber: Província do Brasil Meridional (1900 a 1963), Província de Santa Catarina (1951 a 1964), Província de Porto Alegre (1963 a 2002), Província de Santa Maria (1963 a 2002), Província Marista do Rio Grande do Sul

(2002 aos dias atuais). Todos com os dossiês de Irmãos falecidos em cada período, ordenados cronologicamente; documentação diversa sobre casas fechadas, conjunto de publicações que refletem as atividades de cada época, entre outros. A guarda do acervo se dá em local apropriado: sala ampla, com arquivo deslizante, conta com controle de luminosidade, umidade e temperatura. O acondicionamento da documentação se dá em pastas de papel neutro43, confeccionadas manualmente. Usuários Os usuários do Arquivo Provincial da PMRS são, em sua maioria, internos à instituição. Pode-se dizer que, desses, grande parte são Irmãos, Leigos e colaboradores ligados a setores de cunho canônico da Província. Todavia, o Arquivo Provincial compromete-se a atender a todo e qualquer usuário que demandar pesquisa – público interno e externo, de caráter religioso ou lai-

42 Link para consulta geral: http://www.biblioteca.pucpr.br/archivum/pergamum/biblioteca/index.php 43 Papel sem resíduo ácido, considerado resistente ao ataque de fungos e à proliferação de bactérias.


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co. Analisar-se-á, evidentemente, o nível de acesso dos documentos. Considera-se, dessa forma, as pesquisas feitas pessoalmente no Arquivo e também solicitações via e-mail, meios de comunicação institucional, telefone ou carta. Para pesquisar no Arquivo, é necessário contar com o subsídio da Arquivista, pois não há instrumentos de pesquisa disponíveis ao usuário. Em contrapartida, o sistema Archivum vem sendo abastecido para oferecer maior autonomia e praticidade ao usuário. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista a obra iniciada por São Marcelino Champagnat, na França do século XIX, reconhecemos a força histórica com que o Instituto dos Irmãos Maristas é perpetuado. Ainda hoje os ideais e carisma do Fundador são continuados por Irmãos e Leigos em 8244 países, de forma a preservar os valores e princípios iniciados por ele.

A cultura de arquivos não é ideia nova no contexto institucional, afinal, a própria existência do setor (em adequadas condições) e a presença efetiva de um arquivista demonstra a preocupação em se preservar os documentos e a memória da Província, inserida no Instituto, o que é uma característica bastante positiva dos arquivos eclesiásticos em geral. A existência de normativas e padronizações documentadas, bem como a notável preocupação em buscar atualização – haja vista a implementação do sistema Archivum –, demonstra que os Arquivos Provinciais do Instituto são reconhecidos entre os gestores. A partir dessa realidade, então, se percebe a baixa exploração e difusão do acervo do Arquivo Provincial para o público em geral. E, tendo em vista que a documentação do Arquivo Provincial pode servir de fonte de pesquisa para os mais diferentes setores de todas as unidades da PMRS, além de Irmãos e Leigos que se identificam com o carisma marista, o que se sugere é disseminar tal potencial.

44 Dado disponível em <http://champagnat.org/202.php>, acesso em 27 ago. 2015.

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O que implica, no entanto, que os propósitos da Arquivologia e da instituição se estruturem através de projetos de difusão de acordo com o público desejado (Colégios, Unidades Sociais, Fraternidades), a fim de valorizar os pontos positivos do setor e alinhar aspectos que vinham sendo prejudiciais para o reconhecimento do Arquivo de forma mais ampla. REFERÊNCIAS

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ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005. Disponível em: <http:// www.por talan.arquivonacional.gov.br/Media/Dicion%20 Term%20Arquiv.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2014. BRASIL. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Código de Direito Canônico. São Paulo: Loyola, 1983. CHAMPAGNAT, Marcellin. Carta de Marcelino: 078. [S.l.: s.n.], 1836. Disponível em: <http:// w w w. c h a m p a g n a t . o r g / 5 1 0 . php?a=2b&id=1080&cat=1>. Acesso em: 10 fev. 2015. 1 carta.

FERREIRA, AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS. Constituições e estatutos. Roma: CSC Gráfica, 2010. INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS. Manual prático para uso de secretários provinciais. Instituto dos Irmãos Maristas: Roma, 2007. INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS. Vade-Mécum: guia administrativo para o uso dos Irmãos Provinciais e de seus conselheiros. Instituto dos Irmãos Maristas: Roma, 2008. ROUSSEAU, Jean-Yves; COUTURE, Carol. Os fundamentos da disciplina arquivística. Glossário. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998. SCHELLENBERG, Theodore Roosevelt. Arquivos modernos: princípios e técnicas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.


PRODUÇÕES DIVERSAS

A POTÊNCIA DOS AFETOS DE CHAMPAGNAT:

UM CARISMA ATRAVÉS DO TEMPO45

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Ana Tereza Naspolini46

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RESUMO A história de Marcelino é um exemplo do poder renovador da ação de Deus na história humana. Acreditamos que recebeu um carisma, um dom espiritual único, dado por meio dele para toda a Igreja, a serviço da humanidade. Inspirado pelo Santo Espírito, descobriu um modo novo de viver o Evangelho, como resposta concreta às necessidades espirituais e sociais das crianças e dos jovens, naquela época de crise. Constatamos a atualidade desse carisma por sua capacidade de inspirar gerações de discípulos, incluindo a nossa (MEM47, 36).

PALAVRAS-CHAVE: Marcelino Champagnat. Afeto. Carisma

45 O conceito afeto neste artigo, além do sentido afetivo, tem o significado de “poder afetar e afetar-se”. “Afecto”. Relaciona-se com devir. 46 Psicóloga e Pedagoga. Mestre na área de Psicologia da Aprendizagem (PUC-SP). Após anos de experiência como professora, acompanhou e orientou o trabalho pedagógico de professores na Rede Marista e em outras instituições, como coordenadora e diretora. Ao longo de sua experiência profissional, aperfeiçoou seus conhecimentos no Brasil e no exterior. Dedicou-se particularmente à Pedagogia da Escuta e do Acolhimento, baseando sobre esse alicerce sua vivência como educadora. Ultimamente, dedica-se à consultoria pedagógica e participa de grupos de reflexão marista. E-mail: <anatenas@terra.com.br>. 3 MEM – Missão Educativa Marista: um projeto para o nosso tempo. É um documento contendo parágrafos numerados. O número da citação refere-se ao parágrafo do texto.


A POTÊNCIA DOS AFETOS DE CHAMPAGNAT: UM CARISMA ATRAVÉS DO TEMPO

INTRODUÇÃO Percorrendo a obra literária sobre a vida de São Marcelino Champagnat, uma pergunta vai se constituindo: como é possível a força de um carisma perdurar e se renovar por tanto tempo? O menino Marcelino cresceu e deixou para trás o campo, as ovelhas. Encontrou pela frente outro campo, outras ovelhas. Perante as necessidades da nova situação e animado por um “dom de Deus a serviço da Igreja” – o carisma –, se propôs uma larga e expansiva missão: acolher e educar crianças e jovens pobres da zona rural. Sua infância foi vivida durante a Revolução Francesa (17891799) e sua juventude nos anos que se seguiram. A literatura fala dos tempos difíceis para a população pobre da França naquele período. Foi nesse berço que nasceu a sua vocação e se desenvolveu o seu carisma. Foi ao encontro de crianças que, não tendo o direito à instrução, viviam abandonadas.

Com 27 anos de idade, sacerdote recém-ordenado, juntamente com outros jovens padres, faz sua consagração à Maria, no Santuário de Nossa Senhora de Fourvière (Lyon – França). Tal consagração expressa o comprometimento de fundar uma instituição dedicada a Nossa Senhora, cuja missão seria a evangelização de crianças e jovens necessitados. E se a obra era dedicada a Nossa Senhora, a metodologia do trabalho missionário só poderia ser do jeito da Mãe de Jesus. Aos tempos complicados da época somaram-se outras dificuldades que emergiam no próprio grupo de ideal mariano. Champagnat enfrentou com decisão e firmeza todas elas e elegeu como investimento psicológico, espiritual e missionário o ramo dos Irmãos Maristas, os chamados Pequenos Irmãos de Maria, mantendo a promessa ou consagração feita em Fourvière e compreendendo mais claramente seu carisma e missão. Atribuía incansavelmente os bons resultados de seu projeto à Mãe de Jesus.

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Homem de oração e de trabalho, enfrentou, com bravura, simplicidade e com as próprias mãos, as necessidades básicas do grupo de jovens que a ele se agregavam. Ainda no início de sua missão, construiria l’Hermitage48. Foi assim que, durante sua tão curta vida49, viu sua obra se expandir em ritmo acelerado.

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A seguir, veremos como os afetos e as ações de Champagnat tocam as pessoas. Contemplaremos o extravasar de uma força interior que rompe estruturas e alarga fronteiras para se propagar como possibilidades. Para definir os contornos dessa questão, centralizamos as reflexões em duas hipóteses: 1) há uma força interior (potência) que impulsiona Marcelino e está relacionada com o carisma e os afetos que lhe dão forma; e 2) há traços que caracterizam Champagnat como “homem do seu tempo” e também como “homem além de seu tempo”, “do nosso tempo”. Algo fazia dele uma pessoa amável, sensível, amada e amorosa, empática, congruente e atuante. Havia nele uma força 48 Primeira casa do Instituo Marista. H.I.I.M., p. 64 49 Faleceu com 51 anos, em 6 de junho de 1840. 50 Carta ativa, n. 93.

que não só atraía, mas convencia e movia à ação. Havia nele não só o sonho – grávido de esperança – de alcançar “todas as dioceses do mundo”50, mas algo que conduzia os acontecimentos para essa realidade. Foi assim que logo alcançaria a Oceania, as Américas... A expansão da obra marista em nossos dias é uma realidade, ainda que tenhamos o conhecimento de que a continuidade a partir desse momento histórico pode não depender exclusivamente de homens consagrados como religiosos maristas. Sendo assim, o prosseguimento está na potência de “sins” de Leigos vocacionados a levar avante o sonho e a força de Champagnat. E são muitas as possibilidades. A EDUCAÇÃO NO TEMPO DE CHAMPAGNAT Sabemos que o processo de ensinar está vinculado à concepção de criança, de aprendizagem de conhecimento e outros constructos derivados da filosofia, psicologia, antropologia e outras ciências.


A POTÊNCIA DOS AFETOS DE CHAMPAGNAT: UM CARISMA ATRAVÉS DO TEMPO

Não podemos estudar Champagnat sem acolher essas realidades. Tais considerações têm como intencionalidade compreender o santo fundador em suas circunstâncias mais do que tecer análises de seus “agires” e “dizeres”. Conhecendo Champagnat, tendo-o em seu contexto e considerando as prioridades do seu projeto, não é de se estranhar que não tenha criado nenhum método novo de ensino ou não tenha escrito nenhum tratado sobre a educação, salvo algumas normas ou sentenças. Ele seguia o que vigorava à época. Outros, como os Irmãos Lassalistas, já tinham manual próprio para seguir. Champagnat não hesitou em convidá-los para ensinar os jovens Irmãos Maristas a serem educadores, sobretudo para aprenderem o Método Simultâneo51. E, como era costume, adotou o Conduite des Écoles Chrétiennes52. Contudo, Champagnat, sempre atento às necessidades, ousou ino-

var algumas práticas pedagógicas, rompendo convicções vigentes, por exemplo: 1) a proibição dos castigos físicos, quando eram tidos como recurso normal; 2) o ensino da música e do canto, prática ausente na região; 3) a introdução do método fônico para o ensino da leitura, quando a norma era utilizar o método silábico; 4) a opção pelo método de ensino Mútuo/ Simultâneo53; 5) a importância à experiência, além do indispensável ensino teórico; 6) o enriquecimento da teoria pedagógica a partir de livros sobre a educação e formação de professores54. Essas inovações, que representaram verdadeiros desafios a Champagnat, são mais valorizadas quando consideradas dentro da visão de criança e de ensino que prevalecia à época. Temos a impressão de que o fundador/educador realizou tais mudanças mais por intuição, guiado pelo inabalável amor que dedicava às crianças, do que por estudos científicos.

51 O Método Simultâneo consistia em reunir os alunos por capacidade, em seções ou grupos. Enquanto o professor atendia a uma seção, os alunos das outras seções estudavam ou escreviam (Apostila do Módulo 2, do Curso Patrimônio e Espiritualidade Marista (PEM), p. 137. 52 Conduite des Écoles Chrestiennes é uma obra essencial para o projeto de educação humana e cristã de João Batista de La Salle e de seus primeiros irmãos, os Lassalistas. 53 O Método Mútuo/Simultâneo consistia em o professor atender a cada seção individualmente, enquanto as demais seções eram atendidas por um aluno monitor, que aprofundava os conhecimentos ensinados antes pelo professor. Era um método mais interativo (Idem, p. 138). 54 Apostila do Módulo 2, do Curso Patrimônio e Espiritualidade Marista (PEM), p. 158.

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Nos próximos itens, abordaremos de modo breve e até superficial a concepção de criança e de aprendizagem daquele tempo e região, para compor minimamente os contextos das origens da obra marista. Concepção de criança

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O lugar que a criança ocupa como sujeito num determinado tempo está ligado à visão que se tem de mundo e outras concepções filosóficas. Assim, no século XIX, a criança era entendida como naturalmente má, necessitando de castigos e muita vigilância para aprender a se comportar adequadamente como ser social. A preocupação da educação era guiá-la pelo “bom caminho”55, corrigi-la e formar bons hábitos. Contudo, Champagnat, ultrapassando essas convicções, percebia a criança como ser frágil e dócil, como filha especial de Deus, alguém que “mereceu o sangue do Senhor Jesus”56 e como portadora de características específicas de desenvolvimento. Daí a dedicação ao catecismo, a inovação no método de ensino e as orientações para aplicar os castigos físicos, por exemplo.

O documento Missão Educativa Marista (MEM) revela que os maristas sempre tiveram a seguinte concepção de criança57: • nos materiais mais antigos, lê-se “que a criança é capaz de desenvolver-se humana e espiritualmente; necessita de limites e desenvolve-se moralmente; possui direito a uma educação integral; tem necessidades próprias; tem seu amadurecimento sadio prejudicado pelo ritmo acelerado das mudanças, pela cultura do individualismo e do consumismo, pela insegurança na família...”. • E mais recentemente: “A criança é ativa e coopera com os adultos e seus pares; difere uma das outras; desenvolve sua autoestima por meio das relações que estabelece; desenvolve espírito crítico e valores por meio da educação; é o centro do processo educativo; constrói seu conhecimento; é capaz de aprender a aprender, a fazer, a conviver e a ser; pode ser agente de transformação social”.

55 Vida, versão eletrônica, p. 526. 56 Idem, p. 546. 57 Item resumido a partir do livro Projeto Marista para a Educação Infantil, p. 42-50.


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Concepção de aprendizagem Prevaleciam práticas que chegaram a atravessar décadas do século XX, a concepção de que a criança (pessoa), quanto ao conhecimento, é mera reprodutora. Inteligente era o aluno que sabia de cor, portanto, memória era sinônimo de inteligência! Ora, se assim é, então é muito lógico que os alunos memorizem e devolvam aos mestres respostas elaboradas previamente e formatadas conforme conveniências sociais. Era treinamento, diríamos hoje. Até uso de consequências positivas ou negativas favoreciam o condicionamento, ou seja, eram recursos psicológicos para “ensinar” ou condicionar. A emulação58 era um recurso muito empregado para motivar os alunos. Incluía-se, na lista dos treinamentos, a caligrafia. Essa era tratada e aprendida como obra de arte, também repetida ou reproduzida. Da mesma forma, no ensino da redação e da tabuada havia treino e repetição, embora fossem utilizados exercícios variados59. Concomitan-

temente, essa modalidade de ensino estava presente também na Igreja, no ensino do catecismo. Havia inclusive a crença de que quanto mais repetição, mais aprendido e apreendido o conteúdo da lição. Contudo, como já vimos, a visão que Champagnat tinha do mundo ia além de seu tempo. Prova disso é o modo como ele mesmo dava o catecismo: Em La Valla, Marcelino dá o catecismo de maneira tradicional, quer dizer, escolar, da diocese de Lião: recitação, explicação, aplicação. Depois | 129 | da oração e de um canto, “pede a fórmula” às crianças que a sabem recitar, depois as faz repetir para aqueles que não sabem ler. Certifica-se da sua compreensão por meio de subperguntas variadas, procurando não humilhar ninguém. “Explicava a lição por meio de fórmulas correntes, de comparações sugestivas e parábolas simples.” Retira algumas conclusões práticas e termina por uma história edificante ou piedosa exortação. “Tudo isso com um talento particular, uma animação da qual somente ele conhecia o segredo.”60

58 Emulação: Ato ou efeito de emular. Sentimento que leva o indivíduo a tentar igualar-se a ou superar outrem; competição, disputa, concorrência, geralmente em sentido moralmente sadio, sem sentimentos baixos ou violência (HouaissEletrônico: Dicionário da Língua Portuguesa). 59 Guia das Escolas, p. 224 e 230. 60 Páginas 29 e 30 do artigo escrito por Pierre Badoil, fms, e publicado em L’osservatore Romano nos dias 13 e 20 de maio de 1990. Está traduzido no opúsculo Marcelino Champagnat, Uma vida a serviço da educação, do jeito de Maria, FTD: sem data, p. 29.


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Percebe-se, então, que a conduta de Champagnat e dos primeiros Irmãos era já redimensionada, ressignificada61. O que era necessário, então, para bem educar uma criança? Em carta ao Irmão Barthélemy, Ampuis, Rhône, em 3 de janeiro de 1831, Champagnat explicita o cerne dessa questão:

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Vocês têm em mãos o preço do sangue de Jesus Cristo. Seus numerosos alunos, depois de Deus, lhes deverão sua salvação. Sua vida inteira será o eco daquilo que lhes tiver ensinado. Esforcem-se, não poupem nada para formar seu jovem coração à virtude; (...) Que somente Deus pode fazer a felicidade deles, que é para Ele que eles são criados. Quanto bem, meus amigos, vocês podem fazer!162

O próprio Marcelino Champagnat define “fazer Jesus Cristo conhecido e amado”63 como núcleo da missão. E estabelece a educação como um meio para levar as crianças e os jovens à experiência de fé pessoal e de torná-los “homens honestos e cristãos coerentes”64, ou seja, “bons cristãos e virtuosos cidadãos”.65 Tendo-se clara a missão e o meio pelo qual ela aconteceria, podemos encontrar respostas para a questão que se nos coloca. Para bem educar uma criança, dizia Champagnat, para ter êxito na nobre missão de ensinar, o Irmão deve amar esse trabalho e amar as crianças. E acrescentava que era preciso colocar todo o seu coração no cumprimento desse dever e se devotar inteiramente a seu trabalho de educador66. Era preciso amar as crianças, amar a todas “igualmente”67 em nome de Deus e das famílias, e só

61 Projeto Marista para a Educação Infantil, p. 48. 62 Cartas Ativas, n. 19. 63 Vida, p. 312, 458. 64 Páginas 29 e 30 do artigo escrito por Pierre Badoil, fms, e publicado em L’osservatore Romano nos dias 13 e 20 de maio de 1990. Está traduzido no opúsculo Marcelino Champagnat, Uma vida a serviço da educação, do jeito de Maria, FTD: sem data, p. 32. 65 Vida, p. 498. 66 Avis, p. 431-433. 67 Amar igualmente – provavelmente, a expressão no discurso de Champagnat quer dizer que no coração do Irmão havia um lugar igualmente especial para cada uma das crianças e que nenhuma se sentia menos objeto de atenção do amor do Irmão do que outra. Nem rejeitados nem favorecidos (Avis) MEM 103 p. 132-133.


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então o Irmão era digno e capaz de educá-las68. Era preciso estar junto. Na relação continuada – aluno/professor – a formação da inteligência e do coração era possível. Pela presença amorosa, era possível prevenir certas indisciplinas, dar avisos pessoais, fazer pequenas observações, encorajar, fazer reprimendas69. Era preciso fazer a criança trabalhar muito para dominar sua própria natureza. Cabia a ela desenraizar o mal e cultivar o bem70. Era preciso desenvolver e cultivar acima de todas as outras faculdades o juízo ou discernimento. Segundo o Guia das Escolas, esse “é um dos grandes objetivos da instrução e da educação”71. Era preciso agir como Maria, o exemplo de presença, atenção e ação. Além da presença como Maria, era preciso desenvolver a

simplicidade, a humildade nos educadores; a modéstia no contato com os outros; o espírito de família num relacionamento fraterno e afetuoso; o amor ao trabalho. Era preciso enfrentar as autoridades e os costumes tradicionais da época a fim de que a instrução ocorresse conforme a concepção de Champagnat. Era preciso falar do “indizível” nas sociedades camponesas. Era preciso, movimentando-se na zona de potência72, efetivar rupturas e desenvolver o “senso de possibilidades”73 – esperanças e privações. Era preciso pensar e agir sob outras luzes, cujas sombras sempre são exatamente irrealidades. Era preciso ... Podemos entender, hoje, todos esses “era preciso”, dispostos organicamente num campo

68 Avis, p. 431-433. 69 Avis, p. 431-433. 70 Avis, p. 428-429. 71 Guia das Escolas, p. 221, in MEM, p. 148. 72 Potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer, que define antes a potência humana. (Giorgio Agamben, «Su ciò che possiamo non fare», Nudità, nottetempo, Roma, 2009, p. 67-70) in http:// aindanaocomecamos.blogspot.com/2009/06/sobre-aquilo-que-podemos-nao-fazer.html. Acesso em 29/11/11. 73 Senso de possibilidades: “Poderia definir-se o sentido de possibilidade como aquela capacidade de pensar tudo aquilo que também poderia ser e de não dar mais importância àquilo que é do que àquilo que não é” (Robert Musil, in O Homem sem Qualidades), in http://www.citador.pt/textos/o-sentidode-possibilidade-robert-de-musil. Acesso em 29/11/11.

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de imanência74, em que o pulsar dos afetos que nascem da fé, da confiança e da esperança se constitui numa espécie de senha para o futuro.

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A literatura marista é muito rica de orientações para “bem educar” uma criança e tem uma certeza: “Para bem educar uma criança, é preciso antes de tudo amá-la”. Sempre o amor. A força que levava não só os camponeses que chegavam para ser Irmãos, mas também os educandos, os meninos da zona rural, a converter-se em agentes de transformação. DE CHAMPAGNAT PARA O NOSSO TEMPO Para desenvolver esta parte da reflexão, tomamos emprestado da filosofia os conceitos de “devir” e de “potência”, para dizer da força de Champagnat que, continuando viva, renova constantemente a face e o coração marista. Não são apenas surgimentos de desejos, afetos e projetos pessoais, mas inovações institucionais. Nesse sentido, bastaria olhar os docu-

mentos dos Capítulos Gerais dos Maristas e suas derivações. Devir e potência tomados como conceitos filosóficos encerram outros conceitos como os de movimento e possibilidades. Dinâmica que transforma, dissolve, cria e recria realidades existentes75. É de destacarmos que o movimento de atualização ou transformação, conservando a essência, cria algo que não existia antes, mas que continha em si a possibilidade de se tornar e a possibilidade de não se tornar. Um dos exemplos clássicos para explicar o conceito de potência é o da semente. O que é a semente? É árvore? É fruto? É uma mesa de madeira? São muitos os devires da semente, até o de morrer, perdendo a força de se perpetuar. Consideramos ao longo desta reflexão o conceito de “potência” um pouco mais alargado, o defendido por Deleuze e Guattari, mas, sobretudo na história de Bartleby, Melville e Agamben. Eles acrescentam a ideia da privação, o que leva a pensar a gama de possibilidades incluindo a negação, ou seja,

74 Campo de imanência: entendemos por campo de imanência um conjunto de conceitos em constante movimento de transformação e de interrelação, entre eles, Deleuze e Guattari comparam o campo de imanência ao rizoma. In: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010493131998000200008&script=sci_arttext. Acesso em 29/11/11. 75 Conforme o Dicionário Houaiss eletrônico. Significado para devir.


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faz parte da potência tanto o poder ser, poder fazer, como o poder não ser, o poder não fazer. A potência é sempre potência de ser e de não ser. Acrescentam que a potência é um dado ontológico do humano. Dizer que o ser humano é um ser de potência implica dizer que ele pode a própria impotência (poder não)76. Perceberemos essa ideia quando da análise do “não acontecimento” de traços do carisma de Champagnat, nas unidades maristas de hoje. Devir é um conceito filosófico “que qualifica a mudança constante, a perenidade de algo ou alguém. Aliás, cada coisa jamais é a mesma; dia a dia perde e conquista algo, mesmo quando aos nossos olhos desapareceu para sempre...”77. O exemplo clássico para devir é o das águas de um rio que continua o mesmo, a despeito de suas águas serem continuamente outras. O devir não trata de correspondências de relações, nos diz Deleuze. Também não tem sua essencialidade na manutenção de semelhanças ou identificações entre

um estado e outro. O devir pode até ser pensado em termos de evolução, não como afiliação, mas como sendo da ordem da aliança, onde as transformações são mútuas. (...) Por isso, precisamos estar sempre abertos para novas experimentações e sairmos da zona de conforto, da rotina, da repetição. Deleuze fala em “linhas de fuga” desterritorializantes como linhas de ruptura, como recursos para novas experimentações78. Octavio Ianni, no contexto da sociedade pós-moderna, usa a expressão “um olhar desterritorializado, movendo-se através de territórios e fronteiras, atravessando continentes, ilhas e arquipélagos”79. Prosseguindo com o conceito de devir, retomamos a questão da “força”. Que impulso é esse que anima Champagnat a abandonar a escola, a sair de sua casa, a entrar no seminário, a continuar seus estudos, a fazer a consagração a Nossa Senhora de Fourvière, a decidir-se pelos Irmãos Maristas, a deixar seu “conforto” de pároco e ir morar com os candidatos

76 “Sobre aquilo que podemos não fazer”. Giorgio Agamben. In: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0104-80232006000100002&lng=en&nrm=iso&tlng=en ou in http://dx.doi.org/10.1590/S0104-80232006000100002. Acesso em 28/11/11. 77 Wikipédia, a enciclopédia livre. 78 http://www.pucsp.br/margem/pdf/m16gd.pdf. Acesso em 23/11/2011. 79 Octavio Ianni in http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0102-69091998000200002. Acesso em 26/11/2011.

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analfabetos, a construir ele mesmo as primeiras instalações? Que certeza é essa junto ao jovem Montagne?80 E o que dizer da persistência para alcançar a autorização oficial para o Instituto? Poderíamos transcrever páginas e páginas de momentos, eventos e processos que puseram à prova a força de Champagnat.

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Lendo, ouvindo e refletindo sobre os fatos, sintetizamos toda a força e virtude – potência – do fundador numa tríade: a fé em Deus e em Jesus Cristo, a confiança em Maria e o amor ao outro, a caridade. Fé, confiança e amor podem ser considerados aqui atos (realidades) de uma potência: o carisma. Quanto ao primeiro elemento da tríade, repassando a vida de São Marcelino Champagnat escrita por Jean-Baptiste Furet, encontramos a manifestação de sua fé nas inúmeras vezes que emprega a expressão “vontade de Deus”81. Fazer a vontade de Deus era o que importava em sua vida. “Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalham os construtores.”

A alguém que o criticou por estar recebendo crianças demais, respondeu: “Desde há muito ouvi dizer que a esmola não empobrece, nem a missa atrasa ninguém; vamos experimentar”. Depois acrescentou com profundo espírito de fé: “Deus, que nos envia essas crianças e nos dá a graça de acolhê-las, haverá de nos dar também o suficiente para alimentá-las”82. A devoção e a confiança em Nossa Senhora é o segundo elemento da tríade. Sua relação com ela é de extrema intimidade. Confia nela plenamente. Confiança inabalável! Tem a certeza de sua intercessão junto ao Filho e ao Pai. Ela é o guia, o modelo, a inspiração de toda a sua vida e missão. É o seu Recurso Habitual, a Boa Mãe, a Primeira Superiora. Vários episódios e passagens revelam a convicção de Champagnat de que, tendo Maria como medianeira, tudo seria possível. Referia-se a Maria como a mãe que sempre traz Jesus em seus braços ou em seu coração. Tinha como lema: “Tudo a Jesus por Maria, tudo a Maria para Jesus”.

80 Vida, p. 104-106. 81 Vida, várias páginas. Na versão eletrônica, ao localizar a palavra “vontade”, a expressão“Vontade de Deus” é mencionada inúmeras vezes. 82 Vida, versão eletrônica, cap. 7, p. 104-106.


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Maria sempre esteve presente na vida do fundador, influenciando suas decisões. Assim, desde cedo, partiu depressa para novos lugares que precisavam de seus Irmãos, como Maria partiu depressa para visitar Isabel, após a Anunciação pelo Anjo. Fico pensando na potência de Maria grávida de Jesus! Desde cedo aprendeu de Maria nas Bodas de Caná a estar atento às necessidades de seu tempo e a fazer tudo o que Jesus lhe dissesse. Nunca assumiu nenhum serviço apostólico sem antes buscar as Inspirações do alto. Fico pensando na potência de um homem tomado pela confiança. O amor, sobretudo às crianças e aos Irmãos,constitui o terceiro elemento da tríade. Amava-os profundamente. Aos Irmãos tinha-lhes amor de pai. Disse isso em várias oportunidades. Concluiu suas expressões sobre quan-

83 Jo 13,34. 84 At 4,32. 85 Jo 13,34. 86 Vida, versão eletrônica p. 271.

to os amava em seu testamento espiritual. É uma declaração de quanto os amava e de quanto ele queria lhes dizer isto: Fico pensando na potência de um pai! Eu vos peço também, meus queridos Irmãos, com toda a afeição de minha alma e por toda a afeição que tendes por mim, procederdes sempre de tal modo que a santa caridade se mantenha entre vós. Amai-vos uns aos outros como Jesus Cristo vos amou.83 Que não haja entre vós senão um mesmo co- | 135 | ração e um mesmo espírito.84 Que se possa dizer dos Irmãozinhos de Maria como dos primeiros cristãos: “Vede como eles se amam”... É o mais ardente voto de meu coração neste último momento de minha vida. Sim, meus caríssimos Irmãos, atendei às últimas palavras de vosso pai, pois são as mesmas de nosso amado Salvador: “Amai-vos uns aos outros”.85 “Digne-se a Boa Mãe a vos conservar, multiplicar e santificar!86


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Outras fontes que revelam a afeição e o carinho que Marcelino tinha pelas pessoas são as cartas enviadas e recebidas. Folheando-se algumas delas, as enviadas, constatamos pelas expressões de despedida quão grande era seu amor paterno:

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Tenho a honra de ser seu pai mui dedicado (16)87. Tenho a honra de ser pai afetuoso (19). Tenho a honra de ser, meu caro Irmão, seu dedicado pai (36). Diga-lhe, meu caro amigo, que eu gosto muito dele (61). Seu dedicado e afetuoso pai (63). Reafirmo a todos minha terna afeição, queridos irmãos (67). Caríssimos e bem-amados Irmãos, amemo-nos uns aos outros (79). Aguardando o prazer de abraçá-los, tenho a honra de ser seu dedicado pai em Jesus e Maria (62). Queridos filhos em Jesus e Maria, como é bom e agradável para mim, pensar que, dentro de poucos dias terei o grato prazer de, com o salmista, dizer a todos vocês, num grande abraço: “Como é bom, como é agradável habitarem os Irmãos numa mesma casa! Muito grato é o consolo de vê-

-los reunidos num só espírito e num só coração, formando uma só família, todos se empenhando em buscar a glória de Deus e o progresso de sua santa religião, combatendo sob o mesmo estandarte da augusta Maria! (132).

Fico pensando na potência do amor! Já nas cartas recebidas, os destaques são para as expressões com que os Irmãos se dirigiam a ele: Meu reverendo pai (177), mui caro e reverendo pai (178), meu reverendíssimo pai (187). Champagnat acreditava realmente que o amor é a fonte, a força, o fundamento de todo trabalho de evangelização e educação. Nessa confluência de amor, caracterizou sua pedagogia como sendo de “presença” e marcada pelo espírito de família. À pergunta “Quais são as vantagens da vida em comunidade?”, Champagnat respondia com uma expressão de São Basílio: entre outras coisas, ela é preferível à vida solitária ou contemplativa, porque ela faz praticar mais perfeitamente a ca-

87 Os números entre parênteses se referem ao número da carta.


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ridade, que é a primeira e a maior de todas as virtudes. Com efeito, a verdadeira vida de família é a prática da caridade, é a caridade em todos os seus aspectos. Fico pensando na potência de uma família! São essas certezas – a fé, a confiança e o amor – que determinaram um Champagnat tão forte, tão corajoso, tão ousado, tão carismático, tão querido, tão contemporâneo; que determinaram um homem que compreendia o seu tempo e lhe dava respostas acertadas; um homem empático em torno do qual todos se sentiam bem; um homem com visão de futuro, cuja força se projeta para além dele, para além de seu tempo, para além de seu território. Fizeram dele alguém que fazia arder os corações, como os discípulos de Emaús. Fico pensando na potência das incertezas! Finalizamos esta parte, abordando o conceito de idiorritmia, alargando o critério de presença.

Em suas reflexões sobre o “como viver junto”, Barthes utiliza esse conceito. A palavra se refere a um grupo em que “o ritmo pessoal de cada um encontra o seu lugar”. Portanto, na prática da pedagogia do encontro, é importante respeitar o ritmo pessoal. O não entrar na cadência coletiva pode ser uma “linha de fuga”, que assegura a integração psicológica do ser. Por outro lado, rhythmos, a cadência coletiva, tem sua razão de ser quando se trata de viver junto, mas que essa cadência não reprima nem escravize ninguém. E que seja válido enquanto liberte. Educadores e educandos convivem, caminham juntos, são ambos interlocutores e ouvintes, no mesmo espaço e, alternadamente, no mesmo tempo e em tempos diferentes. O tempo de todos e o tempo de cada um. É como o dançar: o prazer que cada um sente no balanço dos compassos depende da harmonia entre os dois. A repetição e o equilíbrio proporcionam a liberdade possível irrigada pela leveza, delicadeza, ternura e comunicação entre os corpos, em silêncio.

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DO NOSSO TEMPO PARA CHAMPAGNAT

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Sair do nosso tempo para o de Champagnat requer um olhar para o protagonista e seu tempo, a partir de onde estamos, do início de século XXI, de nossos territórios, de nossas histórias, de nossas alegrias, das angústias dos nossos dias. Seria essa prática o meio pelo qual Marcelino, antes de fazer parte de nossas subjetividades, se tornaria real, pelas nossas convicções e ações. A dinâmica seria um ir e vir, um viver junto lá, estando ao mesmo tempo aqui. Indo até a fundação e nos encontrando com a “pedagogia da presença”, entenderíamos (ou não!) que essa pedagogia é a seiva que alimenta e atualiza a nossa pedagogia da acolhida, da escuta atenta, ativa e sensível, do encontro, do acompanhamento individual e coletivo. Encontramos na Biografia de Champagnat uma passagem muito interessante de sua vida que demonstra sua convicção sobre a “presença”. Foi quando ele rom88 Vida, versão eletrônica, cap. 7, p. 104-106.

peu com sua segurança e bem-estar, residindo em casa paroquial, e foi morar com os Irmãos88. Chegando a Champagnat, ele nos diz que o princípio da presença tem razões: prevenir, animar, orientar e corrigir. É o estar junto por causa do amor. A intenção só poderia ser a de levar as crianças e jovens para Jesus, conhecendo-o e amando-o. Nota-se que na época não havia uma explicitação apontando para uma escuta de dois interlocutores. A ênfase da escuta recaia sobre as crianças. O mestre falava e olhava e a criança ouvia e reagia. Quando vamos até um determinado lugar buscando luzes para as sombras dos nossos dias, poderemos encontrar “possibilidades” que sobreviveram não apenas porque se tornaram realidades (atos), mas pela sua potência de poder não se realizar. Os seres humanos, exatamente porque podem atualizar uma ideia, têm também o poder de não atualizá-la. Assim, irmos até Champagnat, hoje, é corrermos o risco de encontrar aspectos de seu carisma que ainda não existem aqui e agora, mas existem lá, ainda em forma de potência.


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UMA CONCLUSÃO EM FORMA DE CARTA (Possíveis proposições de São Marcelino para os nossos tempos). 3 de maio de 2015 Meus muito amados filhos. Olhemos para o futuro com audácia e esperança! Tenho a plena convicção de vos encontrar nos corações sagrados de Maria e de Jesus. Não penso em incluir notícias no conteúdo desta carta. Elas, hoje, voam nas asas do tempo, na velocidade da internet. Oxalá nossas buscas e realizações se inspirem nessa velocidade! Como é “belo e suave” ver o desenvolvimento do meu sonho. Como é leve sentir que continuamos todos ou no colo ou nos braços de Nossa Boa Mãe. Como sou feliz por saber que os vossos corações, e os das crianças e jovens que vós amais, vibram por conhecer Jesus. Como me sinto bem-aventurado por saber que vossas tendas se alargaram e abrigaram os leigos que desejam viver o meu carisma e participar de nossa missão e de nossa espiritualidade. E como são formosos os pés dos que vão para uma “nova terra”, com “corações novos para uma nova vida”. Gostaria de fazer-vos algumas recomendações: 1. Sobre a presença e o espírito de família, a que vós vos referis como sendo a pedagogia da escuta, do encontro, da acolhida e do acompanhamento.

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Ninguém pratica essas virtudes estando a distância. Não há tempo para essas virtudes, estando o coração ocupado. Ao priorizar as tarefas da missão, delegai as preocupações materiais e guardai para vós as responsabilidades mais desafiadoras. Reservai e preparai espaço interior para que o outro encontre em vós um lugar para acomodar suas aflições. Muitos dos nossos preferidos vivem e se desenvolvem nos contornos da violência ou dentro dela. Crescem os que sobrevivem, os que encontram “linhas de fuga”, os que encontram dentro de si a força para romper ou alargar os limites. Crescem e se fortalecem e se mantêm sobre certas forças de equilíbrio.

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E há jovens que necessitam ser atendidos pelo nome, que precisam de alguém que escute suas histórias e seus desejos. Há dentro deles um “devir” e nós somos chamados a dar-lhes uma resposta especial, usando a linguagem da ternura, da benevolência, do cuidado, da compaixão. Há dentro deles um desejo impaciente, assim como um Moisés esperando sair do mármore pelas mãos de Michelangelo! Vós conheceis a potência dos educandos. Agir como luneta é calcular a distância necessária e suficiente onde devemos estar para favorecer a construção do sujeito livre e justo. Tudo isso numa relação de convivialidade que permita a existência da inquietação que nasce quando “se sente falta”. É esse sentimento de ausência que impele o sujeito. E, como bem o sabeis, há um ponto de partida. Antes do ponto de chegada, porém, incessantes voltas e retomadas são necessárias. Não vos esqueçais de que a virtude que sustenta a pedagogia da acolhida, do encontro e do acompanhamento é a esperança. 2. Gostaria de chamar a vossa atenção para o inacabamento do ser humano. Não se pode colocar ponto final na largura, na altura ou na expansão de uma vida, em vida. Ponto final não rima com processo. Vida enquanto é


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vida, é “vivível”, em via de fazer-se, de alargar-se, estender-se, tornar-se sempre. É um movimento não só de idas, mas de idas e voltas muitas vezes confusas. Portanto, utilizai medidas baseadas no saber olhar, ouvir, sentir para avaliar os resultados da missão junto aos pobres retratados no Magnificat. Nesses casos, é indispensável pôr em funcionamento também o nosso terceiro e quarto ouvidos: o do coração e o da visão de mundo. E a virtude é a paciência. A prática da escuta, ou a pedagogia do acompanhamento é um processo primoroso para retirar a pessoa do anonimato e lhe favorecer a condição de sujeito, protagonista, autor e autônomo. Ao direcionar os holofotes para os que não têm vez, nem voz – os humildes do Magnificat de Maria –, desenvolvemos um processo de amor que compreende todas as virtudes sociais. 3. Volto minha preocupação aos nossos credos89 e tento refleti-la para vós. Cremos na pedagogia como movimento que alarga os limites para além dos seus contornos. Cremos na energia que nos impulsiona a enfrentar um dos maiores desafios do nosso tempo: educar crianças e adolescentes, ensinando-lhes a conhecer Jesus Cristo. Cremos numa pedagogia traspassada pelo “jeito de Maria”, que nos ensina a “guardar muitas coisas no coração”, meditando-as, encaminhando-as, transformando-as, recriando-as. Cremos numa liderança ética, exercida do “jeito de Maria”, transformadora, que conduz o liderado a um estágio de vida mais humano e mais espiritualizado, por meio da escuta ativa e sensível e da observação atenta como recursos habituais para o discernimento, para o aconselhamento, para as intervenções. 89 Ideias extraídas do Credo elaborado pela equipe do CEMEP (Centro Marista de Estudos e Pesquisa). Coordenado por Ana Tereza Naspolini, a partir do MEM, p. 77.

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Cremos no poder em forma de serviço. Longe de nós o exercício da autoridade que desumaniza. Cremos na autoridade conquistada na interatividade, pelo respeito e admiração. Cremos num carisma em constante atualização, recriando temas e rompendo paradigmas. Fogo que faz arder os corações. Cremos na missão como realidade em constante estado de “vir-a-ser”. Cremos na espiritualidade, nutrida pela esperança e oração, que sustenta em tempos de luta, que possibilita o perdão, que alimenta a fraternidade, que consolida os bons relacionamentos.

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Cremos na criança e no adolescente. Cremos na vida que pulsa em todas as suas dimensões. Cremos que seus erros são respostas provisórias. São pedidos de segurança, de compreensão, de orientação. Cremos no desejo de experimentar suas próprias forças que motiva suas peraltices, suas experiências. 4. Sobre novas tendas e outras terras, a desterritorialização. A Palavra de Deus nos diz “sai da tua terra” (Gn 12,1). O XXI Capítulo Geral nos anuncia: “Ide depressa para novas terras”. Ora, alargar a tenda, sair da terra, sair depressa implicam desterritorialização, ou seja, sair do já conhecido e amado, para outro território desconhecido, feito de gente que espera ser encontrada e amada, ou seja, significa ao menos destruir os limites do coração. E isso não é feito sem dor. Não somos prisioneiros fixos de um território; somos missionários, profetas. Carregamos em nós o dom do devir. Nesse sentido, é importante entender o significado simbólico de desterritorializar. É sair, sim, da própria terra,


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como Maria, para outras regiões. Contudo, existe também um fixar-se em si mesmo, em que muitas vezes a desterritorialização ou a transformação simbólica é mais difícil de acontecer. Romper com as bases que sustentam a segurança e o conforto é próprio de pessoas fortes, de pessoas que percebem o mundo para além de seu tempo/espaço. Pessoas sem projetos se enraízam e permanecem assim, fixadas. E quanto mais permanecem nessas terras, mais resistente será a desterritorialização, necessária à sociedade pós-moderna marcada por velocidade, mobilidade, fluxos. Necessária à nossa missão. 5. A força que nos chama à desterritorialização: a criança menos favorecida. Sabe-se que a concepção de criança é uma noção idealizada pelo homem em diferentes períodos históricos. Observam-se mudanças significativas ao longo do tempo. É preciso então, praticar uma pedagogia com didáticas resultantes de pesquisas que indicam a melhor e a mais atual forma de ensinar e de aprender, de acordo com a época em que se vive. Hoje, por exemplo, com a constituição das democracias modernas, a criança passa a ser um indivíduo com direitos particulares, como o de ser protegido, o de ser cuidado em suas necessidades físicas, psicológicas e mentais, e o de ter uma participação relativa em sua própria vida e no meio em que está inserido90. No processo da educação integral, considerai que as crianças, dominando muitas linguagens para estar no mundo, constroem conhecimentos e são protagonistas dos seus devires. Aprendem e se desenvolvem estando em relação com o outro. Por isso, podeis lhes oferecer uma pedagogia baseada no encontro e um currículo todo entrelaçado, sem roteiros fixos, mas com planejamento aberto às multiplicidades referenciais. Sem um modelo rígido de aula, podeis se dedicar ao registro do que observais e a fazer de vossas anotações o impulso para novas aprendizagens91. “O trabalho pedagógico é o produto de quem pensamos que a criança pequena seja” (Peter Moss). 90 Projeto para a Educação Infantil, P. 43. 91 Idem, p. 59.

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6. Embora um plano de imanência seja sempre movediço, vos envio princípios e conceitos que não podem ser negligenciados, embora saiba que, ao selecionar ou priorizar alguns essenciais, faz-se também a opção por deixar outros. É a questão de poder estar e de não estar contemplados num certo momento, num certo lugar, para um certo planejamento ou projeto: inacabamento, potencialidades, privações, ontologia, diversidade, devires, afetos, pertencimento, espiritualidade, ética, idiorritmia, adaptabilidade, flexibilidade, resiliência, honestidade, integridade.

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Entrevendo novos tempos e novos espaços simbólicos e reais, atuais e por vir, não posso deixar de recomendar que considereis no projeto educativo algumas intencionalidades, ou seja, educar para falar bem, saber ouvir e fazer parte de uma equipe; negociar para solucionar conflitos; formar para o autocontrole; fortalecer a autoridade da escola, dos professores e dos pais, pela seriedade; incentivar o uso e a análise crítica de recursos multimídia e outras tecnologias. Tendo exposto algumas de minhas convicções e preocupações sobre o que significa a missão marista, hoje, penso vos ter oferecido orientações necessárias ao serviço de formar “homens honestos e cristãos coerentes”92. Concluindo, gostaria de vos dizer que o processo educativo marista, hoje, ao colocar seu foco na presença e na importância de agir como Maria, favorece a comunicação, cria um clima favorável à compreensão, desenvolve o perdão e a misericórdia, privilegia a paixão pelo ser humano (espiritualidade e ética), torna leve a convivência, facilita a alteridade, desenvolve o reconhecimento e a dignidade do outro (fraternura) e desperta o homem para o reencantamento do mundo: “viver com” e “dançar junto”. Também por isso continua formando o “bom cristão e o virtuoso cidadão”, o que exige dos educadores audácia e esperança e os convoca a crescerem espiritualmente para serem fiéis ao Evangelho e ao Carisma Marista. 92 Páginas 29 e 30 do artigo escrito por Pierre Badoil, fms, e publicado em L’osservatore Romano nos dias 13 e 20 de maio de 1990. Está traduzido no opúsculo MARCELINO CHAMPAGNAT, Uma vida a serviço da educação, do jeito de Maria, FTD: sem data, p. 32.


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As casas de educação de hoje são afetadas pelas pesquisas e teorias educacionais. Elas bastariam para nos orientar na boa formação de professores e alunos. Mas, como é preciso tempo e disponibilidade para ouvi-las, conhecê-las, amá-las e transformá-las didaticamente, para praticá-las, nem sempre chegam ao coração dos educadores, nem às salas de aula. Lembrai-vos de que, ao ensinar/aprender, considerando a multiplicidade de inteligências e a diversidade de métodos e currículos, podeis formar profissionais competentes. Mas não é suficiente para humanizar pessoas e formar “bons cristãos e virtuosos cidadãos”. Além de todas as indicações acima, é preciso ensinar a ciência do amor, o conhecimento de Deus e a confiança em Nossa Senhora. E essas lições passam, sobretudo, pelo exemplo de vida. Meus queridos e bem-amados, vós sois continuamente o objeto especial de minha terna solicitude. Todos os meus anseios e todos os meus votos têm em mira a vossa felicidade; isso certamente vós já sabeis (Carta ativa, 63). Aguardando o prazer de vossa chegada, eu vos abraço mui afetuosamente nos Sagrados Corações de Jesus e de Maria (Carta ativa 135),

Champagnat

(aquele que está vivo dentro de nós)

No final da carta acima, Champagnat se refere a uma chegada. Quem diz chegada diz deslocamento, saída. A chegada tem sabor de aconchego, a saída de coragem. Se no aconchego há ternura, na saída há esperança. Ora o coração bate no compasso do entu-

siasmo, ora, ao ritmo da ansiedade. Podemos sair com um coração de pedra e chegarmos com um coração de carne. Há sempre uma travessia entre o sair e o chegar. Levar bagagens, trazer abraços. A felicidade do encontro substitui a dor da despedida.

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Simbolicamente, a chegada pode ser um ponto de parada provisório, porém necessário para se esvaziar e de novo se preencher e poder sair, e outra vez poder sair, e outra vez poder chegar. Com certeza, era isso que perpassava o coração de Champagnat.

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Dois caminhos pelo menos percorre o caminheiro: o que sai e o que chega. Os dois significam desterritorializar-se. O caminho metafórico – o de fora para dentro – vai fazendo transformações em nossas intimidades. Encontramos novas terras dentro de nós à espera de amor, de missão, de evangelização. O outro caminho – o de dentro para fora – é a partida real. É o caminho dos que têm coração sem fronteiras. É “sair da própria terra”. Na incerteza. Na solidão ou caminhando junto com “maravilhosos companheiros”, seguindo a voz de um “pai” que nos dá indícios por onde é necessário andar para chegar. “Caminhando e seguindo a canção” de uma potência feita de afetos, os afetos do padre

Champagnat. Potência e afetos, configurando um dom de Deus: o carisma. No meio do caminho, um encontro, um encontro com o fundador que vem vindo. Portanto, nem ele lá, nem nós aqui. Nem ele ontem, nem nós hoje, mas ele em nós por seu carisma. Ele já. Nós nele por nossa vocação marista, mas não totalmente ainda. A potência de São Marcelino, encerrando mil possibilidades de vir a ser, de poder ser e de poder não ser, e a tríade de afetos, dos afetos de Marcelino que nos tocam e nos co-movem, tocam-nos fortemente, agitam-nos, deslocam-nos para a missão. Missão de um homem que tem um sonho: tornar Jesus Cristo muito conhecido e bem amado. E os dois caminhos se cruzam e se intercruzam, vão e voltam e se entrelaçam... E deles nascem outras vias, outros rhythmos, a percorrer novas terras, a navegar outros oceanos.


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Encontramos, aqui, uma resposta à pergunta formulada no início: como é possível a força de um carisma perdurar e se renovar por tanto tempo? Outras respostas podem ser encontradas. Já se foram dois séculos! Champagnat continua conosco! REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes, 2003. DELEUZE, Gilles e PARNET, Claire. Diálogos. São Paulo: editora Escuta. 1998. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia (Volume 4), Rio de Janeiro: Editora 34. 1997. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34. 2ª ed. 2009.

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INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS. CONSTITUIÇÕES E ESTATUTOS. São Paulo. SIMAR, 1997.

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A POTÊNCIA DOS AFETOS DE CHAMPAGNAT: UM CARISMA ATRAVÉS DO TEMPO

SIMAR. CARTAS DE MARCELINO CHAMPAGNAT. Título original: Lettres de Marcellin J. B. Champagnat (1789-1840) Fondateur de l’Institut des Frères Maristes, présentés par Frère Paul Sester. Rome, Casa Generalizia dei Fratelli Maristi, 1985. Tradução: Ir. Sulpício José e Ir. Ireneu Martim. São Paulo: Secretariado Interprovincial Marista – SIMAR. 1999. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Curso de Espiritualidade e Patrimônio Marista (PEM), módulos 1. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Curso de Espiritualidade e Patrimônio Marista (PEM), módulos 2. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Em torno da mesma mesa: a vocação dos leigos maristas de Champagnat. Org. A.M. Estaún. Brasília: UMBRASIL. 2010. UNIÃO MARISTA DO BRASIL. Projeto Educativo do Brasil Marista: nosso jeito de conceber a Educação Básica. Brasília: UMBRASIL, 2010. 132 p.

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FRATERNIDADES DO MOVIMENTO CHAMPAGNAT DA FAMÍLIA MARISTA:

VIVÊNCIA DOS QUATRO PILARES

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Eliza Barbosa93

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RESUMO O presente artigo, a partir da relação entre os estudos do Projeto de Vida e do Plano Nacional de Formação e Orientações para a Organização Comum do Movimento Champagnat da Família Marista, objetiva a análise de pesquisa da metodologia vivenciada pelas Fraternidades da Região Planalto/Norte, dos municípios de Erechim, Getúlio Vargas e Passo Fundo, da Província do Rio Grande do Sul. O estudo leva em consideração, também, os escritos deixados por São Marcelino Champagnat e pelos primeiros Irmãos, assim como outros documentos oficiais do Instituto Marista. Os documentos levam a reflexões sobre a vivência dos antepassados maristas em relação à prática da oração e à preocupação com os estudos, a vida em comunidade e o trabalho apostólico.

PALAVRAS-CHAVE: Movimento Champagnat da Família Marista. Fraternidade. Marcelino Champagnat. Oração. Reflexão. Vida de comunidade. Apostolado.

93 Graduada em Pedagogia pelo IEGRS/RJ, com pós-graduação em Orientação Educacional, Supervisão Escolar e Administração Escolar. Faz parte do Movimento Champagnat da Família Marista, e atua em Erechim/RS. E-mail: <elizamaria_b@yahoo.com.br>.


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INTRODUÇÃO O Movimento Champagnat da Família Marista, como é definido nas Constituições dos Irmãos Maristas, é “extensão de nosso Instituto, um movimento que reúne pessoas atraídas pela espiritualidade de Marcelino Champagnat que aprofundam o espírito do nosso Fundador para dele viverem e difundi-lo” (art. 164.4). De acordo com o Projeto de Vida do Movimento Champagnat da Família Marista (n. 5), os membros reunidos em Fraternidades partilham e alimentam seus ideais comuns, procurando permanecerem sempre fiéis ao espírito do fundador e à tradição marista. As Fraternidades, segundo o Plano Nacional de Formação e Orientações para a Organização Comum do Movimento Champagnat da Família Marista no Brasil – MChFM (2013, metodologia, p.19), procuram vivenciar quatro pilares básicos: a oração, a reflexão (estudo), a vida de comunidade e o apostolado.

Diante disso, este artigo objetiva, além de apresentar aspectos históricos, definições dos quatro pilares básicos – da oração, da reflexão (estudo), da vida de comunidade e do apostolado –, apresentar aspectos dessa vivência por São Marcelino Champagnat e pelos Primeiros Irmãos, identificando aproximações e distanciamentos vividos pelas Fraternidades da Região Planalto/Norte, dos municípios de Erechim, Getúlio Vargas e Passo Fundo, da Província do Rio Grande do Sul. Na busca por corresponder a esses objetivos, a pesquisa aponta para o seguinte questionamento: como as Fraternidades pesquisadas vivenciam os quatro pilares básicos e a relação com o modo de vida de São Marcelino Champagnat e os Primeiros Irmãos, considerando os documentos da Igreja e do Instituto, para os Maristas de hoje? Nesse sentido, será apresentado, na primeira parte do texto, um histórico da oração, seguido de práticas realizadas pelo Pe. Champagnat e recomendadas aos Pri-

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meiros Irmãos Maristas, depois algumas devoções e, em seguida, a vivência da oração pelas Fraternidades, considerando a pesquisa realizada. Na segunda parte, serão apresentadas as formas de reflexão/estudo seguidas no início do Instituto Marista e a maneira como atualmente as Fraternidades realizam essa reflexão/estudo. Na terceira parte, serão relatados a vida, o espírito de comunidade dos Primeiros Irmãos e, em seguida, a maneira como as Fraternidades vivem em comunidade, segundo a pesquisa. O artigo se encerra com a definição, os aspectos do apostolado para o Pe. Champagnat e os Primeiros Irmãos, considerando as Circulares e as Cartas deixadas pelo Fundador e a vivência desse apostolado pelas Fraternidades pesquisadas. ORAÇÃO: HISTÓRICO Todo ser humano, desde sua origem, tem sede de se relacionar com um Ser Transcendente que, ao longo dos tempos, foi tomando nomes diferentes.

No Primeiro Testamento da Bíblia, o povo de Israel nos é apresentado como um povo profundamente religioso, voltado para Deus, o Deus Único e Verdadeiro, o qual é muito atuante na sua história. Na vida, na prática e nos ensinamentos de Jesus, o vemos relacionando-se profundamente com o seu Pai. Os evangelhos mostram Jesus reservando tempo para rezar sozinho, à noite ou de madrugada, participando na Sinagoga, aos sábados, subindo anualmente ao Templo, em Jerusalém, por ocasião das festas do povo. Desde os primeiros tempos, o cristão utiliza essa forma de comunicação como um diálogo, um ato de fé e uma maneira de se comunicar com Deus. Na vida e ação dos santos fundadores das Ordens e dos Institutos, foram instituídas formas de rezar, baseadas na Sagrada Escritura, em textos da Tradição, dos Padres e do Magistério.


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Alguns santos(as) definem a oração da seguinte forma: a. Santo Agostinho: “Teu desejo é a tua oração; se o desejo é contínuo, também a oração é contínua. Não foi em vão que o Apóstolo disse: Orai sem cessar (1Ts 5,17). Ainda que faças qualquer coisa, se desejas aquele repouso do Sábado eterno, não cessas de orar. Se não queres cessar de orar, não cesses de desejar”. b. São Judas Tadeu: “Toda oração elevada a Deus deve ser feita no nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, único nome que nos foi dado como mediador diante de Deus”. c. Santa Teresinha do Menino Jesus: “Para mim a oração é um impulso do coração, um simples olhar para o Céu, um grito de gratidão e amor no meio da provação como no meio da alegria”. “O apostolado da oração não é, por assim dizer, mais elevado do que o da palavra?”

d. Santo Ambrósio: “A oração é a elevação da alma a Deus ou o pedido a Deus dos bens convenientes”. e. São Bernardo: “A oração dá-nos a graça de vencer-nos e corrigir-nos”. f. São João Crisóstomo: “... a oração é a causa e a mãe das virtudes e que nenhuma das coisas necessárias à santidade terá acesso à alma que não se comunica com Deus pela oração”. “... a oração é para a alma o que uma fonte abundante é no meio de um jardim...”. g. São Francisco de Sales: “Procure ver Deus em todas as coisas sem exceção, e disponha-se a fazer a vontade d’Ele com alegria. Faça tudo para Deus, unindo-se com Ele por palavras e obras”. “A quem Deus não basta, nada basta”. h. São João Maria Vianney: “Para que nossa oração seja ouvida não depende da quantidade de palavras, mas do fervor de nossas almas”.

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E, conforme o Catecismo da Igreja Católica, n. 2725: “A oração é um dom da graça e uma resposta decidida da nossa parte”. Oração e Marcelino Champagnat

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A oração fazia parte da vida do Pe. Champagnat (“Tenhamos firme esperança e rezemos sem esmorecer. Quanta coisa se pode obter com a oração fervorosa e perseverante!” – Carta do Pe. Champagnat ao Irmão Hilarion, de 18 de março de 1838, nº 181, p. 382). No dia a dia e em todas as suas ações, iniciava, realizava e concluía sempre com a oração. E dizia: Nunca ousaria empreender qualquer obra sem antes tê-la demoradamente recomendado a Deus. Primeiro, por ser fácil ao homem enganar-se e considerar suas próprias ideias e ilusões como projetos inspirados por Deus. Depois, porque nada podemos sem a ajuda e proteção do céu (VIDA, p. 285).

Como tinha plena confiança na oração, recomendava várias práticas de devoção aos Irmãos e as colocou na Regra, como: iniciar todas as atividades escolares pela oração; recomendar-se a Deus sempre que fosse tratar com uma pessoa; multiplicar as jaculatórias, transformando o trabalho em oração contínua. Com essas práticas, na comunidade, realizavam-se novenas (terminavam uma e já iniciavam outra). Constatamos essas práticas em Cartas do Pe. Champagnat: Com o número reduzido de alunos que você tem, faça uma novena curta em honra da Santíssima Virgem: Cinco Pai-Nossos e... Nós também vamos começar hoje uma novena em L’Hermitage, na mesma intenção, isto é: Para o bom andamento de todos os estabelecimentos da Sociedade (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO IRMÃO BARTHÉLEMY, DE 1º DE NOVEMBRO DE 1831, Nº 24, P. 70).


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Não se esqueçam de rezar pelo êxito de nossos projetos referentes à Sociedade de Maria. Quando vocês terminarem a novena que estão fazendo, comecem outra, rezando às minhas intenções. Que todos os meninos a façam também (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO IRMÃO DENIS, DE 05 DE JANEIRO DE 1838, Nº 168, P. 346). Recomendem a Ela insistentemente seus meninos, façam com eles uma pequena novena em sua honra, servindo-se da breve oração do LEMBRAI-VOS (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AOS IRMÃOS ANTOINE E GONZAGUE, DE 4 DE FEVEREIRO DE 1831, Nº 20, P. 61). Vamos fazer uma novena para pedir a cura do Padre Roche, seu digno pároco (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO IRMÃO DENIS, DE 5 DE JULHO DE 1837, Nº118, P. 253). Vamos fazer uma novena para pedir operários, para que o campo do Soberano Senhor não fique sem ser cultivado (CARTA DO PE. CHAM-

PAGNAT AO PADRE JEAN CHOLLETON, VIGÁRIO-GERAL DE LIÃO, DE 05 DE AGOSTO DE 1837, Nº 127, P. 269). Na novena que estou fazendo diante da estátua onde também implorou graças São Francisco de Sales, – e com que eficácia! – não esqueço nenhum de vocês (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO IRMÃO FRANÇOIS, DE 20 DE JUNHO DE 1838, Nº 196, P. 417). | 157 |

O Pe. Champagnat estabeleceu vários exercícios de piedade: rezar o ofício de Nossa Senhora, rezar o terço e visitar o Santíssimo Sacramento várias vezes ao dia (depois sendo só uma vez). Outros exercícios foram suprimidos totalmente ou em parte, por não poderem ser realizados em todas as comunidades: hora de vigília de orações na passagem do ano-novo, a devoção dos seis domingos, consagrados a São Luís Gonzaga e várias orações. Preferia sempre as orações da Igreja a outras orações.


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Para cumprir sua missão, completamente, o Irmão deverá sempre rezar por seus alunos. Só a instrução, sem a oração, é cumprir sua obrigação pela metade, dizia o Pe. Champagnat: “Reze, sobretudo pelos que têm mais defeitos, pelos que lhe dão mais trabalho para formá-los à virtude, pelos que parecem ter mais carência... É que não existe nada mais adequado para tornar dócil o coração das crianças do que a oração” (VIDA, p. 287). | 158 |

Em suas orações pessoais, Champagnat rezava pelos pastores da Igreja, pela conversão dos pecadores, dos infiéis, pelos alunos e especialmente pelos membros da Congregação. Todos os dias, consagrava seus Irmãos a Deus e à Santíssima Virgem, oferecendo-os a Jesus e a Maria (VIDA, p. 288).

Mesmo quando estava ocupado o dia todo, o Pe. Champagnat usava o tempo de lazer ou do repouso para fazer suas orações,

rezar o ofício divino, o breviário, o terço, fazer leituras espirituais e até cantar um hino. E dizia que gostava das viagens, porque lhes davam mais oportunidade de rezar, do que fazia habitualmente. Para Champagnat, a meditação e a santa missa eram os exercícios de piedade mais importantes. Não poder participar diariamente da missa era enorme sacrifício: Quem a omite por negligência, para dedicar-se ao estudo ou a qualquer outra tarefa não absolutamente necessária, prova que não tem zelo pela perfeição e não ama Jesus Cristo. A santa missa, a comunhão, a visita ao Santíssimo Sacramento, numa palavra, a divina Eucaristia, eis a fonte da graça; eis a primeira e a mais indispensável das devoções, a que nos trás os maiores benefícios e as maiores consolações (VIDA, p. 291).

E, quanto à meditação, falava aos Irmãos: “Se forem fieis à meditação, responsabilizo-me


FRATERNIDADES DO MOVIMENTO CHAMPAGNAT DA FAMÍLIA MARISTA: VIVÊNCIA DOS QUATRO PILARES

por sua salvação e, dou minha palavra, mais cedo ou mais tarde, se tornarão ótimos religiosos” (VIDA, p. 292). Sobre a oração, o Pe. Champagnat dizia:

Os Irmãos piedosos são uma preciosidade. Impossível dar-lhes o devido valor. São eles que sustentam o Instituto. Quanto mais numerosos forem, tanto mais florescente será a Congregação e tanto mais Deus haverá de abençoá-la (VIDA, p. 294). Os Irmãos piedosos são as colunas do Instituto. Não importa seus talentos, força e saúde; tornam-se úteis em qualquer lugar, porque aonde quer que se dirijam, levam consigo o bom espírito, e Deus abençoa tudo quanto se lhes confia. Mas o Irmão sem piedade não faz bem algum, nem para si, nem para os outros. É impotente para fazer o bem, pois lhe faltam as condições necessárias, ou seja, a oração e a união com Deus... (VIDA, p. 288).

DEVOÇÕES DO PE. CHAMPAGNAT O Pe. Champagnat tinha especial devoção ao Menino Jesus e celebrava solenemente a festa de Natal. Outra devoção era o mistério da Redenção. Na quaresma, meditava os sofrimentos do Nosso Senhor Jesus Cristo. Na Semana Santa, recolhia-se, como retiro, e era de total oração, para santificação sua e dos Irmãos. A maior de todas era a devoção ao Santíssimo Sacramento do altar, com visitas diárias e antes e depois de viagens ou passeios. Nessas visitas dizia ver o Senhor Jesus. As situações problemáticas eram resolvidas após suas preces, diante do sacrário, recomendando tudo a Nosso Senhor. Nas suas instruções aos Irmãos, repetia sempre: “Tornar Jesus Cristo conhecido e amado, eis a meta de sua vocação e a finalidade do Instituto” (VIDA, p. 312). A devoção a Maria surgiu desde pequeno. A mãe e a tia de Champagnat eram devotas de

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Nossa Senhora. Na juventude, essa devoção continuou e aumentou, fervorosamente, após o ingresso no seminário: rezar o terço diariamente (manteve em toda a vida) e orações mariais, fazer frequentes visitas a Nossa Senhora e a santuários marianos. Consagrava, oferecia e colocava sob a proteção de Maria tudo que fazia, para que ela apresentasse ao seu Filho Jesus. Surge o lema: “Tudo a Jesus por Maria, tudo a Maria para Jesus”. | 160 |

Numa dessas frequentes visitas surgiu a ideia de fundar uma congregação de religiosos, voltada para o ensino, dando-lhe o nome de Maria. E que os Irmãos considerassem Maria como Mãe, Padroeira, Modelo, Primeira Superiora e Recurso Habitual: Maria mostra visivelmente sua proteção sobre L’Hermitage. Como tem força o santo nome de Maria! Quão felizes somos de nos termos ornamentado com ele! Há muito que não se falaria mais de nossa Sociedade sem este nome milagroso! Maria, está aí toda a riqueza (resource) de nos-

sa Sociedade (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO DOM JEAN-BAPTISTE FRANÇOIS POMPALLIER, VIGÁRIO APOSTÓLICO DA OCEANIA, DE 27 DE MAIO DE 1838, Nº 194, P. 411). Maria, sim só Maria é nossa prosperidade; sem Maria não somos nada e com Maria temos tudo, porque Maria está sempre com seu adorável Filho ou no colo ou no coração (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO DOM JEAN-BAPTISTE FRANÇOIS POMPALLIER, VIGÁRIO APOSTÓLICO DA OCEANIA, DE 27 DE MAIO DE 1838, Nº 194, P. 411). Venham todos se reunir e reaquecer no santuário que presenciou vocês se tornarem os filhos da mais carinhosa das Mães. (CIRCULAR DO PE. CHAMPAGNAT AOS IRMÃOS, DE 21 DE AGOSTO DE 1838, Nº 210, P. 444).

Algumas práticas instituídas na Congregação, por Champagnat, para honrar Nossa Senhora:


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a. consagrar o dia pela Salve Rainha, ao acordar e ao deitar rezar três ave-marias para sua proteção, o ofício, o terço; b. rezar a ave-maria em todas as horas (“Reze todos os dias, antes de começar a aula, três Ave-Marias” – Carta ao Irmão Euthyme, de 19 de março de 1837, nº 102, p. 224); c. rezar outras orações; Estamos planejando viajar para Roma, dentro de poucos dias. É preciso que toda a Sociedade contribua para o êxito de nossa missão, mediante a oração e o redobrar do fervor. Até que voltem os que vão estar com Sua Santidade, vamos rezar a Ave Maris Stella e o Veni Creator, seguido da respectiva Oração (CIRCULAR AOS IRMÃOS, DE 10 DE AGOSTO DE 1833, Nº 29, P. 79).

d. celebrar as festas marianas solenemente se preparando com novenas, jejum,...;

e. se consagrar a Maria, trazer sempre consigo o terço e o escapulário (“Esqueci o meu terço, queira enviá-lo sem falta” – Carta do Pe. Champagnat ao Irmão François, de 10 de janeiro de 1838, nº 169, p. 348); f. imitar as virtudes da Boa Mãe e que os Irmãos a tornem conhecida e amada, propagando o seu culto e a sua devoção às crianças. Quando receberem nossa carta, queira recitar durante nove dias seguidos junto com os alunos, as La- | 161 | dainhas da Santíssima Virgem no encerramento das aulas da manhã ou por ocasião da visita do Santíssimo Sacramento. Intenção da novena: pedir uma boa viagem para o senhor Bispo e sua comitiva (CIRCULAR AOS IRMÃOS, DE JANEIRO DE 1828, Nº 10, P. 41).

O Pe. Champagnat também tinha devoção por São José:


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Quem poderia depois de Maria expressar melhor tudo o que estamos sentindo? Não é o grande São José, aquele homem seráfico?! Persuadidos desta verdade, aqui na casa mãe, no fim da santa Missa, rezamos durante nove dias as Ladainhas de São José, depois do canto do Salmo “Laudate Dominum”. Exorto-os a fazer a mesma novena, assim que tiverem recebido a presente Circular. Podem fazê-la no momento do dia que melhor lhes convier (CIRCULAR AOS IRMÃOS, DE 13 DE JANEIRO DE 1839, Nº 238, P. 498-499).

Diariamente, rezava a ladainha de São José e, quando doente, não conseguindo mais rezar sozinho, pediu a um Irmão que a rezasse junto à sua cama. Já muito doente, celebrou o mês de São José, para ter a graça de uma boa morte.

FRATERNIDADES E A VIVÊNCIA DA ORAÇÃO Destacamos algumas práticas, como a participação semanal em celebração eucarística e a leitura do Calendário Religioso Marista (mesmo não sendo diariamente), vivenciadas pelos vinte e oito fraternos pesquisados, seguida da oração pessoal diária (vinte e sete fraternos) e da participação em festas/ romarias marianas (vinte e seis fraternos). A prática de levar sempre consigo o terço e o escapulário e possuir altar com imagem da Virgem Maria foram observadas em vinte e cinco fraternos. Vinte e dois fraternos oferecem e recomendam tudo o que fazem a Nossa Senhora. A prática de rezar o terço foi constatada em vinte e um pesquisados, sendo que diariamente por dez fraternos; às vezes, seis; semanalmente, quatro; e um várias vezes na semana. A preparação para as festas/romarias fazendo novena ou tríduo e a participação em festas de santos padroeiros são práticas de vinte pesquisados.


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Gráfico 1 – Vivência da Oração nas Fraternidades 21

Tenho a prática de rezar o terço. Com que frequência?

25

Trago o terço e o escapulário sempre comigo.

27

Faço oração pessoal, diariamente.

22

Ofereço e recomendo à Nossa Senhora tudo que faço.

12

Faço visitas frequentes a santuários marianos.

25

Possuo altar com imagem da Virgem Maria.

26

Participo de festas/romarias marianas.

20

Participo de festas de santos padroeiros.

20

Preparo-me para as festas/romarias fazendo novena ou tríduo.

28

Participo de celebração eucarística. Com que frequência?

28

Leio, diariamente, o Calendário Religioso Marista.

13

Faço retiros espirituais.

15

Outras.

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Outras práticas realizadas também foram citadas na pesquisa, tais como: oração em família, oração pelos doentes, pelos idosos; participação em grupos de oração; realização de novenas (uma vez por mês); retiros espirituais; e visitas frequentes a santuários marianos. REFLEXÃO (ESTUDO): CHAMPAGNAT E OS PRIMEIROS IRMÃOS

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Para o Pe. Champagnat, o Irmão deve gostar de estudar e se dedicar aos estudos, regularmente. Um Irmão deve estar preparado para tudo e conhecer profundamente o que vai ensinar. Porém, o estudo mais importante e o que ele priorizava era o de religião. Deveriam dedicar uma hora por dia para esse estudo. Seria vergonhoso para um religioso educador não conhecer suficientemente a doutrina cristã; seria verdadeiro escândalo, se fosse menos capaz de ensinar o catecismo do que as outras ciências. O Irmão não pode descurar o estudo do catecismo sem tornar-se culpado, pois o resul-

tado de seus ensinamentos está na proporção do zelo que emprega em prepará-los. Donde se conclui que dar aulas de catequese sem preparação equivale a torná-las inúteis (VIDA, P. 398).

Os Primeiros Irmãos se destacaram pela maneira de como ensinavam o catecismo às crianças e como as formavam nas virtudes: Se é importante, no que todos estão de acordo, que os jovens sejam bem formados em religião, importante também é que os seus formadores sejam não somente bem formados, mas que além disso não fiquem abandonados a si próprios, uma vez enviados (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT AO PADRE PHILIBERT GARDETTE, SUPERIOR DO SEMINÁRIO MAIOR DE LIÃO, DE MAIO DE 1827, Nº 3, P. 29). Além do mais, nossos Irmãos, formados numa vida regular e de princípios seguros, submetidos à prova de exercícios durante dois anos de


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noviciado, constantemente fiscalizados nas funções que exercem nos municípios pelas autoridades civis e eclesiásticas, rodeados como estão por nossa solicitude, de modo a não perdê-los de vista nem um minuto, mantendo os superiores contínuas relações com eles, me parece que oferecem uma garantia mais do que satisfatória (CARTA DO PE. CHAMPAGNAT A DOM JEAN-PAUL GASTON DE PINS, ADMINISTRADOR APOSTÓLICO DE LIÃO, DE 03 DE FEVEREIRO DE 1838, Nº 171, P. 354). Mas, caríssimos Irmãos, para ter êxito no ensino da religião e satisfazer às exigências de um mundo quase sempre cego quanto à educação dos meninos, não devemos negligenciar os outros ramos da instrução necessária a um Irmão de Maria. A escrita, a gramática, a aritmética, a história, a geografia e mesmo, se necessário, o desenho, a geometria, a manutenção dos livros

de contabilidade, serão também objeto de nossos estudos e assunto de nossas conferências. Servir-nos-emos daqueles conhecimentos como de chamariz inocente para atrair os meninos e lhes ensinar depois a amarem a Deus, a se salvarem. Antes de mais nada devemos ser bons catequistas, mas procuraremos também tornar-nos professores competentes (CIRCULAR AOS IRMÃOS, DE 10 DE JANEIRO DE 1840, Nº 313, P. 616-617).

Reflexão (estudo) nas Fraternidades Segundo o documento Em torno da mesma mesa: “(...) objetivo da formação é revitalizar nossa história pessoal, uma vez que acreditamos na experiência como caminho de crescimento: experiência conhecida, interpretada e partilhada em comunidade” (nº 160).

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Gráfico 2 – Reflexão nas Fraternidades 25

Faço leitura da Palavra de Deus. Com que frequência?

15

Faço estudos da Palavra de Deus.

6 22 19 7 3

Procuro estudar o documentos oficiais da Igreja. Leio os documentos do Instituto Marista. Participo de cursos e encontros formativos, oferecidos pela Instituição Marista. Participo de cursos/estudos na comunidade religiosa e/ou na Diocese. Outras.

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Com relação à reflexão, a pesquisa realizada, conforme o gráfico 2, revela que a Palavra de Deus e os documentos do Instituto Marista têm sido os mais lidos pelos fraternos entrevistados. Vinte e cinco fraternos fazem a leitura da Palavra de Deus, sendo que treze diariamente, dez às vezes e dois nos encontros da Fraternidade. A leitura dos documentos do Instituto Marista é realizada por vinte e dois entrevistados. Em seguida, dezenove pesquisados participam

de cursos e encontros formativos oferecidos pela Instituição Marista. Estudos da Palavra de Deus são realizados por quinze fraternos. Ainda é possível avaliar que os documentos oficiais da Igreja e cursos/estudos da comunidade religiosa e/ou Diocese são menos vivenciados pelo grupo participante, uma vez que, no questionário, aparecem em poucas respostas, conforme observado no gráfico.


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VIDA DE COMUNIDADE NO INÍCIO DO INSTITUTO O Pe. Champagnat acreditava numa vida de comunidade. De acordo com o documento Água da Rocha, nº 100, ao construir a casa de L’Hermitage, ele estava construindo a comunidade: Ele gostava de passar os verões em L’Hermitage com os Irmãos, que vinham fazer retiro, descansar, estudar e se revigorar. Enquanto vivia o ritmo da comunidade, tanto em La Valla quanto em L’Hermitage, Marcelino animava e alimentava a vida comunitária, com seu exemplo, dedicando-se pessoalmente ao trabalho manual e à oração em comunidade.

Nas Circulares aos Irmãos, o Pe. Champagnat os convida para o retiro e as férias em L’Hermitage: Venham repousar e refazer as forças num lugar de paz, de silêncio e de recolhimento, venham com as mesmas disposições que tinham os apóstolos no Cenáculo e, como a multidão dos

primeiros cristãos eram um só coração e uma só alma, esforçar-nos-emos por reproduzir em nossa conduta as virtudes de que nos deram tão belos exemplos (CIRCULAR DE 24 DE AGOSTO DE 1835, Nº 62, P. 146). Queridos filhos em Jesus e Maria, como é bom e agradável para mim, pensar que, dentro de poucos dias, terei o grato prazer de, com o salmista, dizer a todos vocês, num grande abraço: “Quam bonum et quam jucundum habitare fratres in unum!” (Como é bom, como é agradável habitarem os Irmãos numa mesma | 167 | casa!). Muito grato é o consolo de vê-los reunidos num só espírito e num só coração, formando uma só família, todos se empenhando em buscar a glória de Deus e o progresso de sua santa religião, combatendo sob o mesmo estandarte da augusta Maria!” (CIRCULAR DE 12 DE AGOSTO DE 1837, Nº 132, P. 279-280).

Na Carta ao Irmão Louis-Marie, de 2 de janeiro de 1837, nº 80, p. 189, o Pe. Champagnat anima-


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va a comunidade: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros. É o que São João, o discípulo amado, repetia em todas as suas cartas. Eu também posso dizer isso a vocês no começo deste ano. Trago-os todos bem aconchegados ao meu coração”. E a Carta do Pe. Champagnat ao Irmão Denis, de 5 de janeiro de 1838, nº 168, p. 345, incentiva o espírito de comunidade:

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Quero, ardentemente desejo, que nos amemos uns aos outros como filhos do mesmo Pai, que é Deus, da mesma Mãe, que é a santa Igreja. Enfim, para tudo dizer em uma só palavra, Maria é a Mãe de todos nós. Poderia Ela ficar indiferente se conservássemos em nosso coração alguma coisa contra um daqueles que Ela tanto ama, talvez mesmo até mais do que a nós?

Fraternidades e vida de comunidade Segundo o Catecismo da Igreja Católica, n. 1878-1879:

Todos os homens são chamados ao mesmo fim, o próprio Deus. Existe certa semelhança entre a união das pessoas divinas e a fraternidade que os homens devem estabelecer entre si, na verdade e no amor. O amor ao próximo é inseparável do amor a Deus. A pessoa humana tem necessidade de vida social. Esta não constitui para ela algo acrescentado, mas é uma exigência de sua natureza. Mediante o intercâmbio com os outros, a reciprocidade dos serviços e o diálogo com seus irmãos, o homem desenvolve as próprias virtualidades; responde assim à sua vocação.

Analisando o resultado da pesquisa a partir do gráfico 3, constatamos que as Fraternidades procuram viver esse espírito de comunidade, que fora tão incentivado pelo Pe. Champagnat. Observamos que essa vivência é mais efetiva em âmbito local e menor em âmbito regional e provincial. Conforme as respostas, todos os vinte e oito fraternos entrevistados participam dos encontros da Fraternidade e vinte


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e três procuram ser presença em todos os momentos dos demais membros da Fraternidade. Além disso, vinte e dois pesquisados fazem visitas aos fraternos e vinte e um participam de diversos momentos de confraternização,

como aniversários, formaturas, homenagens,... A participação em encontros regionais e provinciais do Movimento Champagnat da Família Marista é vivenciada por quinze fraternos pesquisados.

Gráfico 3 – Vida em comunidade e Fraternidade 28

Participo dos encontros da Fraternidade.

15

Participo dos encontros regionais e provinciais do MChFM.

21

Participo de momentos de confraternizações dos fraternos: aniversários, formaturas, homenagens.

22

Faço visitas aos fraternos.

23

Procuro ser presença, em todos os momentos, aos membros da Fraternidade.

APOSTOLADO: DEFINIÇÕES A palavra “apóstolo” vem do grego apostelo, que significa “aquele que leva, aquele que está incumbido de, aquele que tem a tarefa, aquele que é enviado”. “Ide e pregai a boa nova a todas as criaturas” (Mt 28,19). Nesse caso, os verbos ir e pregar constituem,

então, o axioma (princípio tão evidente que não necessita de demonstração) dessa frase, e é nesse ponto que se justifica o “apóstolo”, aquele que executa, aquele que leva. Podemos observar alguns apóstolos, como:

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a. Cada um dos doze discípulos de Jesus Cristo – Os apóstolos seguiam os mandamentos de Jesus. b. Membro da Igreja que pregava a fé cristã – O apóstolo do Brasil. c. Pessoa que se dedica a evangelizar – Os apóstolos da comunidade religiosa.

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d. Pessoa que propaga qualquer doutrina ou ideal – Os apóstolos da fé. Segundo o Catecismo da Igreja Católica, n. 863: Toda a Igreja é apostólica na medida em que, através dos sucessores de S. Pedro e dos apóstolos, permanece em comunhão de fé e de vida com a sua origem. Toda a Igreja é apostólica na medida em que é “enviada” ao mundo inteiro; todos os membros da Igreja, ainda que de formas diversas, participam deste envio. A vocação cristã é também por natureza vocação ao apostolado. Denomina-se “apostolado”

“toda a atividade do Corpo Místico” que tende a “estender o reino de Cristo a toda a terra”.

Apostolado: Champagnat e os primeiros Irmãos O Pe. Champagnat preparava os Irmãos para o trabalho apostólico e não só para o trabalho escolar. O objetivo da Congregação era a santificação das almas e a preparação para essa missão. Aos domingos e outros dias, costumava enviar dois a dois para ensinarem catecismo aos camponeses, nos povoados da paróquia. Esse trabalho apostólico constava de oração, canto, perguntas aos jovens, respostas, conclusões práticas e exemplos. O modo de vida de São João Francisco de Régis talvez tenha também influenciado o Pe. Champagnat a formar uma comunidade de apóstolos. Algumas vezes, Marcelino Champagnat fez peregrinações, em La Louvesc, ao altar onde faleceu São João Francisco de Régis, jesuíta e missionário. As-


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sim, o Pe. José Leite fala no zelo apostólico de São João Francisco de Régis:

Com o bordão de peregrino e envolvido num pobre casaco, percorria montes e campos, no inverno sobre a neve, e no verão sob os raios abrasadores do sol. Onde havia uma casa para visitar, uma miséria para socorrer, ou um coração para consolar e abrir para Deus, aí chegava sempre o missionário por caminhos inverossímeis.

O Pe. Champagnat incentivava os Irmãos para o apostolado nas Missões da Oceania, conforme escritos em Circulares e Cartas. Na Circular do Pe. Champagnat aos Irmãos, de 1º de janeiro de 1837, nº 79, p. 186: Os nossos Padres e Irmãos que se destinavam à Polinésia embarcaram no dia 24 próximo passado. Que vasto campo de apostolado confiou ao nosso zelo o Soberano Pontífice, Vigário de Cristo! Va-

mos acompanhar com nossos votos e com nossas preces fervorosas esses missionários, aos quais foi de modo particular destinado aquele vasto campo de ação.

O Pe. Champagnat, na Carta ao Padre Jacques Fontbonne, Missionário em Saint-Louis, Estados Unidos da América, de 16 de maio de 1837, nº 109, p. 238, dá notícias das Missões: Você não pode imaginar que emulação suscitou na turma a missão da Polinésia. A gente invejava a sorte dos que tinham sido escolhi- | 171 | dos como primícias da Associação para aquelas ilhas. Nossos Irmãos lhes faziam despedidas na esperança de irem brevemente juntar-se a eles.

Já na Carta ao Irmão Denis, de 5 de janeiro de 1838, nº 168, p. 345, o Pe. Champagnat o anima a alimentar a esperança de ir às Missões: Você me fala do desejo que alimenta de partir para a Missão da Po-


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linésia. Alimente este desejo, meu querido amigo, creio que vem de Deus. Aliás, acho que você tem as graças e o jeito para isso. Deus sem dúvida tem projetos a seu respeito; prova fundamentada disso é a cura que lhe concedeu. Não a esqueça. Fique com as contas em dia, para que se for chamado a embarcar, você esteja preparado.

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Na Carta ao Irmão Marie-Laurent, de 8 de abril de 1839, nº 249, p. 516, o Pe. Champagnat recomenda: “Estamos também fazendo orações em favor da Missão da Oceania, pelos membros da Sociedade que lá trabalham e para aqueles que tencionamos mandar para lá. Estamos em vésperas de mandar Irmãos para Bordéus”. O Pe. Champagnat também se preocupava com o apostolado eclesial, como nos relatos das Cartas: a. Aos Padres Pierre Antoine Dumas e Barthélemy Artru, Párocos de Boulieu e Peaugres, de

30 de outubro de 1837, nº 148, p. 311: “Nosso grande princípio é ficarmos firmemente unidos ao episcopado”. b. Ao Padre Jean-François Bernardin Fustier, Pároco de Saint-Felicien, Ardèche, de 30 de outubro de 1837, nº 149, p. 312-313: Conforme os dizeres da carta, parece que nossos estabelecimentos do Vivarais estariam estorvando a administração episcopal, o que seria absolutamente contrário ao fim de nossa Sociedade, que é auxiliar o zelo dos Bispos pelo bem de suas respectivas dioceses. Queremos estar em perfeito acordo com os mesmos, só empreendendo e levando a efeito obras com o beneplácito e a aprovação deles, para a maior glória de Deus.

c. A Dom Pierre François Bonnel, Bispo de Viviers, Ardèche, de 1º de novembro de 1837, nº 150, p. 315: “Um dos princípios de nossas Constituições é de jamais nos lançarmos em


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qualquer projeto, onde quer que seja, senão amparados e paternalmente protegidos pelos senhores Bispos”. d. A Dom Bénigne Trousset D’Héricourt, bispo de Autun, Saône-et-Loire, de final de maio de 1837, nº 112, p. 243: “Todas as dioceses do mundo entram em nossos planos. Consideraremos dever nosso acorrer pressurosos em auxílio de nossos Bispos respectivos, sempre que nos honrarem com seu convite”. e. Ao Padre Alexis Sanquin, pároco de Vernaison, Rhône, de 24 de junho de 1839, nº 261, p. 531: “Com muito prazer, enviaremos nossos Irmãos para que exerçam o apostolado em sua paróquia, conjuntamente com a de Charly, desde o momento que nos acharmos em condições de mandá-los”. Na carta aos Administradores de Asilos de Saint-Etienne, Loire, de maio de 1838, nº 190, p. 401, sobre o serviço dos Irmãos no

Instituto de Surdos-Mudos, o Pe. Champagnat diz: Faz tempo que estamos imaginando os meios de prestarmos serviços aos meninos dos Asilos de Caridade. Com estas disposições, apressamo-nos em acolher a oferta que nos estão fazendo de irmos em socorro desses meninos. Se não sofrerem transtornos os nossos regulamentos, poderemos contribuir para melhorar a condição de vida dos meninos dos quais vocês nos falam. Faremos isto com muito prazer. | 173 |

Vivência do apostolado pelas Fraternidades Como dizia São Francisco de Assis: “Pregue o Evangelho em todo o tempo. Se necessário, use palavras. Tome cuidado com a sua vida, talvez ela seja o único evangelho que as pessoas leiam”. E Santo Agostinho: “Ajuda, portanto, aquele que tens ao lado enquanto caminhas neste mundo, e chegarás junto daquele com quem desejas permanecer para sempre” (pt.wikipédia.org).


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De acordo com a pesquisa realizada, constatamos que os fraternos assumem seu compromisso apostólico na família, no trabalho, na comunidade eclesial e em outros lugares, de acordo com a metodologia do Plano Nacional de Formação e Orientações para a Organização Comum do Movimento Champagnat da Família Marista (2013, p. 19). Percebemos que esse apostolado é realizado mais de forma pessoal do que comunitária. | 174 |

Na família, os fraternos entrevistados declaram realizar orações diárias para louvar e agradecer às bênçãos recebidas, reza do terço, orações pelos doentes, orações pelos amigos, orações para viagens, orações para dificuldades pessoais e familiares, ajuda aos familiares, cuidado com familiar enfermo, procura do diálogo, do perdão, ser presença, alegria e amor. No local de trabalho, procuram tratar todos com respeito, carinho e honestidade nas orientações e esclarecimentos do que

fazem. Também a pontualidade, a seriedade, a alegria, a dedicação e ser verdadeiro(a) são destaques na vida dos fraternos. Outro compromisso é colocar-se sempre a serviço e procurar lembrar algumas datas religiosas, com orações e, quando possível, missa com as famílias. Na comunidade eclesial, identificamos a participação dos fraternos mais individualmente do que em grupo, como Fraternidade. Notamos que há uma preocupação em ser presença, colaborar com os trabalhos, colocando seus dons a serviço. Assim, participam da missa e colaboram na Igreja em diversas pastorais e movimentos, como conselhos, Encontro de Casais com Cristo, Escola de Pais, Movimento Familiar Cristão, catequese, ministro da eucaristia, grupos de oração, visita aos doentes, coral, atividades sociais/festas, zeladora de capelinha, de calendário Antoniano, grupos de anjinhos, juvenis e de coroinhas. Na vida diária de amigos, em momentos de lazer e em reuni-


FRATERNIDADES DO MOVIMENTO CHAMPAGNAT DA FAMÍLIA MARISTA: VIVÊNCIA DOS QUATRO PILARES

ões ou encontros são outros lugares onde observamos o trabalho apostólico dos fraternos. No relacionamento com os vizinhos, na ajuda sempre que precisam, em visitas e reza do terço também notamos esse apostolado. CONCLUSÃO As Fraternidades do Movimento Champagnat da Família Marista procuram vivenciar os quatro pilares básicos em torno da espiritualidade, da partilha de vida e da missão. A oração, como diz o Projeto de Vida (n. 11), “é elemento essencial para ser membro do Movimento e da Fraternidade”. Assim, através da análise realizada, é possível a constatação de que os membros das Fraternidades pesquisadas vivenciam o pilar da oração com grande intensidade e com várias práticas, conforme o exemplo de São Marcelino Champagnat. Quanto à reflexão/estudo, “o Movimento Champagnat está preocupado em assegurar aos

seus membros seu constante crescimento marista e sua maturidade, proporcionando a todos adequados meios de formação” (PROJETO DE VIDA, n. 24). Os membros das Fraternidades pesquisadas, com as propostas e incentivo em nível provincial de formação, parecem demonstrar mais interesse nos estudos oportunizados pelo Instituto Marista do que nos cursos oferecidos em nível de comunidade religiosa local ou de Diocese. Entendemos a necessidade de haver incentivo para cursos e estudos em nível eclesial. “O modelo de Marcelino Champagnat para suas primeiras comunidades foi a casa de Maria, em Nazaré” (PROJETO DE VIDA, n. 13). As Fraternidades procuram seguir na vida de comunidade esse mesmo espírito. No pilar do apostolado, “o Movimento Champagnat leva cada um de seus membros a reconhecer e assumir a missão que lhe foi dada no batismo” (PROJETO DE VIDA, n. 15) e seguindo a tra-

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dição de São Marcelino Champagnat, as Fraternidades “atuam em comunhão com suas respectivas Igrejas locais, paróquia ou diocese, e em colaboração com outros movimentos de Igreja e grupos” (Projeto de Vida, n. 19). Percebemos que, embora com várias participações individuais, há necessidade de um maior engajamento das Fraternidades no trabalho apostólico, principalmente na comunidade eclesial.

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ANEXOS PESQUISA Para o trabalho de conclusão do Curso do Patrimônio e Espiritualidade Marista (PEM), preciso da sua contribuição, que será muito importante. Desde já, muito obrigada! As Fraternidades aprofundam e procuram vivenciar quatro pilares básicos: a oração, a reflexão, a vida de comunidade e o apostolado. Responda às questões a seguir de acordo com a maneira com que você vivencia esses pilares:


FRATERNIDADES DO MOVIMENTO CHAMPAGNAT DA FAMÍLIA MARISTA: VIVÊNCIA DOS QUATRO PILARES

1. Com relação à oração: ( ) Tenho a prática de rezar o terço. Com que frequência? ________________________________________________ ( ) Trago o terço e o escapulário sempre comigo. ( ) Faço oração pessoal, diariamente. ( ) Ofereço e recomendo à Nossa Senhora tudo que faço. ( ) Faço visitas frequentes a santuários marianos. ( ) Possuo altar com imagem da Virgem Maria. ( ) Participo de festas/romarias marianas. ( ) Participo de festas de santos padroeiros. ( ) Preparo-me para as festas/romarias fazendo novena ou tríduo. ( ) Participo de celebração eucarística. Com que frequência? ________________________________________________ ( ) Leio, diariamente, o Calendário Religioso Marista. ( ) Faço retiros espirituais. ( ) Outras. Quais? ________________________________________________ 2. Com relação à reflexão: ( ) Faço leitura da Palavra de Deus. Com que frequência? ________________________________________________ ( ) Faço estudos da Palavra de Deus. ( ) Procuro estudar o documentos oficiais da Igreja. ( ) Leio os documentos do Instituto Marista. ( ) Participo de cursos e encontros formativos, oferecidos pela Instituição Marista. ( ) Participo de cursos/estudos na comunidade religiosa e/ou na Diocese. ( ) Outras. Quais? ________________________________________________

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3. Com relação à vida de comunidade: ( ) Participo dos encontros da Fraternidade. ( ) Participo dos encontros regionais e provinciais do MChFM. ( ) Participo de momentos de confraternizações dos fraternos: aniversários, formaturas, homenagens... ( ) Faço visitas aos fraternos. ( ) Procuro ser presença, em todos os momentos, aos membros da Fraternidade. ( ) Outras. Quais? _________________________________

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4. Como realizo o apostolado: a. Na família: ____________________________________ b. No trabalho: __________________________________ c. Na comunidade eclesial: __________________________ d. Outros lugares: _________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 2. ed. Petrópolis/São Paulo: Vozes/Paulinas/Ave-Maria, 1993. CHAMPAGNAT, Marcelino. Cartas. São Paulo: Simar, 1997.

FRATERNIDADE AMIGOS DE MARIA E FRATERNIDADE IRMÃO TACIANO. Fraternidades Maristas celebrando a vida. Erechim, RS: Carpe Diem, 2012. FURET, Jean-Baptiste. Vida de São Marcelino José Bento Champagnat (tradução Ângelo José Camatta). São Paulo, SP: Loyola: Simar, 1999.


FRATERNIDADES DO MOVIMENTO CHAMPAGNAT DA FAMÍLIA MARISTA: VIVÊNCIA DOS QUATRO PILARES

INSTITUTO DOS IRMÃOS MARISTAS. Água da Rocha: Espiritualidade Marista fluindo na tradição de Marcelino Champagnat. São Paulo, SP: Editora FTD, 2007. _________. Constituições e Estatutos. Roma, 2010. _________. Em Torno da Mesma Mesa: A Vocação dos Leigos Maristas de Champagnat. Brasília, DF: UMBRASIL, 2010. _________. Projeto de Vida do Movimento Champagnat da Família Marista. Roma, 1990. PLANO NACIONAL DE FORMAÇÃO E ORIENTAÇÕES PARA A ORGANIZAÇÃO COMUM DO MOVIMENTO CHAMPAGNAT DA FAMÍLIA MARISTA NO BRASIL. Brasília, DF: UMBRASIL, 2013.

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CURSO DE EXTENSÃO EM PATRIMÔNIO

E ESPIRITUALIDADE MARISTA (PEM)

Oportunidade para aprofundar o conhecimento e o amor pelo carisma

Retornar às fontes maristas, revisitar a história, os documentos e os ensinamentos de São Marcelino Champagnat são vivências oportunizadas pelo Curso PEM, curso destinado a Irmãos, Leigos(as), lideranças e colaboradores da instituição. Através de um estudo aprofundado nos documentos e fatos do Instituto e da vida do fundador, São Marcelino Champagnat, o curso proporciona aos participantes uma imersão em diversas dimensões da espiritualidade e patrimônio marista. Os artigos apresentados nesta edição da Revista Legado decorrem dos trabalhos de conclusão da 4ª turma do PEM (2014). O

curso, promovido pela equipe de Espiritualidade Apostólica Marista (EAM) da Coordenação de Vida Consagrada e Laicato da Rede Marista, totaliza uma carga horária de 135 horas/aula, divididos em três módulos de quatro dias cada, e horas complementares de preparação dos trabalhos finais. Os professores são Irmãos e Leigos(as) da instituição e de outras unidades do Brasil, especializados nas áreas de espiritualidade e patrimônio espiritual. ACOMPANHE NOVIDADES NO PORTAL MARISTA: maristas.org.br/vidamarista CONTATO: pem@maristas.org.br

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Rede Marista RS | DF | Amazônia Rua Irmão José Otão, 11 Bom Fim - Porto Alegre | RS CEP: 90035-060 maristas.org.br


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