Transmigracoes

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Do autor:

Saga - Editora Peregrinação - 1989 Um poeta no Paraíso - Éditions Luso - 1994 Parc du Portugal - Éditions Luso - 1997 À beira-Main - Éditions Luso – 2003 O homem que falava com as flores - Edição do autor-2015 Ti Vida – Edição do autor – 2016 As belas manhãs - Edição do autor -2017 Entre Morros e Capim – Edição do autor-2018 Antologia Literária – Autores de Origem Portuguesa (Québec) – 2018 – Biblioteca José d’Almansor Antologia Literária – Autores Luso-Canadianos - 2020

Co-autor: Rostos, Olhares e Memória – UTL – 2013 Rostos, Olhares e Identidade – A Voz de Portugal - 2013

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Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do Douro, em 1946. Colares e a Batalha foram lugares que o viram crescer. Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria. Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980. Tem colaboração literária espalhada por diversos jornais e revistas em Portugal e na diáspora. É o coordenador da revista on-line "Satúrnia - Letras e Estudos Luso-Canadiano

Textos publicados em jornais e revistas, em Portugal e na diáspora. 3


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O PRESÉPIO MAIS LINDO DO MUNDO

Tarde cinzenta de Dezembro. Um céu de chumbo abatera-se sobre a cidade, esmagava os telhados do casario, num abraço enregelado. A neve, que não cessara de cair nos últimos dias, perdera o seu alvo encanto e cobria as ruas com um manto conspurcado e friorento. - Este ano não faremos o presépio. – As palavras, inesperadamente soltas da boca da mulher, ficaram a pairar no apartamento como uma revoada de farrapos negros soprados por forte vendaval. O marido olhou-a, demoradamente. Os olhos azuis dela, estavam apagados, cor de cinza, já não iluminavam, como outrora, o rosto agora entumescido pelo efeito secundário dos medicamentos. - Porquê? – Era uma pergunta supérflua, desnecessária, a única palavra, trémula, cheia de asperezas, que conseguira vencer o nó cerrado da garganta. - Não vale a pena. – O fio de voz era quebradiço como cristal, ficou a retinir por ali, serpenteou pelo soalho, refugiou-se, esmorecido, pelos cantos mais obscuros. Ele voltou a cabeça para que a mulher não se apercebesse da névoa que lhe embaciou o olhar. De manso, foi-se sentar no sofá, a seu lado, e envolveu5


a no fogo de um abraço imenso e desesperado. Agora as lágrimas sulcavam-lhe as faces, salgavamlhe os lábios, desciam até ao queixo que tremia. - Não chores, mais cedo ou mais tarde todos acabamos por deixar este mundo – consolou-o ela. Na cabeça do homem ressoavam, como marteladas, as palavras cansadas e compassivas do médico: “A sua mulher já entrou na fase terminal. Irão precisar de muita coragem.” Procurava, em vão, respostas aceitáveis para as perguntas impiedosas que o perseguiam, sem tréguas, como matilha esfomeada. Como seria apaziguante se um véu de compreensão lhe cobrisse a alma em carne viva e se uma onda de resignação lhe viesse lavar do peito dilacerado aquele sufoco. Mas ainda não soara a hora da aceitação e da reconciliação com a vida, as peças do drama ainda continuavam soltas, desordenadas, sem encontrarem o seu devido lugar na harmonia cósmica. A tarde findava. Sombras mais espessas avançavam pela janela rasgada a toda a largura da parede, apossavam-se da sala. Os dois vultos entrelaçados, ceifados sobre a vastidão árida do sofá, confundiam-se com o negrume da noite que chegava sem pressas e diluia, pouco a pouco, os contornos dos objectos familiares. Ficou, por ali, interminável, dilacerante, o grito agudo do silêncio. Inesperadamente, num repente de inconformismo, o homem estremeceu, sacudiu a letargia, ergueu-se 6


ligeiro e sorridente, as palavras romperam num estralejar de centelhas resplandecentes. - Vamos fazer o presépio, e é para já. Com uma palmada brusca no interruptor, acendeu a luz que, numa rápida vassourada, expulsou as pesadas sombras que os esmagavam e mais lhe reforçou a determinação que brotara vá-se lá saber em que fonte regeneradora do seu ser. Quando regressou da despensa, sobraçando a caixa com as figuras do presépio, os olhos fulgiam-lhe. - Vai ficar bonito – disse, como quem esparge um braçado de flores. – Confia no meu talento. Rapidamente, no recanto do costume, junto à televisão, ergueu a mesita que cobriu com o pano vermelho e aveludado de sempre. Pouco a pouco, meticulosamente, com ternura de prestidigitador, os dedos foram arrancando do ventre fecundo da caixa as figuras de porcelana que emergiam do sono profundo mais belas e brilhantes do que nunca: primeiro o Menino Jesus, despojado de tudo, deitado sobre as palhas douradas; depois o S. José e a Nossa Senhora, em adoração, debruçados sobra a manjedoura, a sonharem um mundo novo; vieram de seguida os reis magos, mortos de cansaço, com as suas oferendas de ouro, incenso e mirra; o anjo, triunfal, de asas abertas, soprava na trompete anunciadora do nascimento da esperança redentora; os pastores, extasiados, guiavam-se pelos sinais anunciadores do prodígio; os animais abeiravam-se, 7


dóceis, conduzidos por um instinto milenar. Os dedos ágeis, cada vez mais inspirados, plantaram, aqui e ali, algumas árvores, ergueram, acolá, um aglomerado de casas fumegantes, espargiram flocos de algodão, a arremedar a pureza da neve, sobre a singeleza do estábulo, o presépio ia crescendo, crepitava de vida, restabelecia a harmonia do universo. Estava, mais uma vez, recriada ali, naquele recanto sofrido da cidade, a cena bíblica que atravessara os séculos e continuava, eterna, a alimentar a esperança dos homens e a dar calor e sentido às existências amarfanhadas pelas cutiladas da vida. A mulher, atenta, tudo observava, as mãos descarnadas pousadas no regaço, as faces maceradas menos crispadas, os lábios exangues a desabrocharem num ténue sorriso há tanto tempo arredio. - Está pronto – disse ele, radiante. – Vês como não custou nada a fazer? - Ainda falta uma coisa muito importante. Um brilho divertido bailava no olhar dela. – Esqueceste-te da estrela. - É verdade, que esquecimento o meu – riu-se o marido. – Rebuscou no fundo da caixa, descobriu a peça dourada por entre os enfeites que por lá restavam. ` - Aqui está! - Com desvelos imensos, ergueu-a no topo do estábulo, triunfal, anunciadora 8


da Boa Nova. – Espero que ainda funcione.Quando, após breve hesitação, a estrela começou a piscar alegremente e a irradiar o seu facho de luz que multiplicava constelações pelas paredes, os olhos da mulher tornaram a iluminar, como nos tempos aprazíveis, o rosto agora suavizado pela bemaventurança daquele instante que detivera, fugazmente, a marcha inexorável do tempo. - Gostas? Os olhos azuis, que ele nunca mais esqueceria pela vida fora, continuavam repletos duma ternura sem mácula e a resposta veio num sopro, com a leveza das palavras transcendentais: - É o presépio mais lindo do mundo.

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HISTÓRIA DE NATAL

A solidão é das criaturas mais ferozes e impiedosas que surgiram à face da Terra. Desde tempos imemoriais, mais precisamente desde que os homens são homens e se começaram a desencontrar, que o seu terreno de caça tem a vastidão do mundo. A longa experiência ensinou-lhe que há épocas do ano mais propícias, quando as suas presas estão mais vulneráveis, indefesas, à mercê dos seus apetites insaciáveis, incapazes de resistir ao seu abraço mortífero. Assim acontece na quadra natalícia quando as emoções andam mais assanhadas. Assim aconteceu com aquele homem solitário , de olhar apagado, vergado pela tristeza desde que a companheira de tantos anos partira para outros mundos e o deixara desamparado, incapaz de reatar as pontas da meada da vida truncada. Naquela véspera do dia de Natal nevara dia e noite, sem repouso. O homem, naufragado no poço sem fundo das suas recordações, encostou a fronte à vidraça e sentiu o frio repassá-lo até ao coração. Na varanda, a neve, imaculada, já com um palmo bem medido de espessura, tinha a beleza dos postais de boas-festas. Uma beleza que o esmagava e acabrunhava ainda mais. 11


A solidão, que rondava por ali, quando lobrigou o homem, soltou uma gargalhada satânica e, experiente em tais andanças, adivinhou a fragilidade da presa. Com uma pirueta, esvoaçou ao seu redor, atirou-lhe logo as garras ao pescoço, cravou-lhe a dentuça na alma. Mas, surpreendentemente, desta vez, o homem não cedeu à primeira investida, um estremecimento de resistência revoltou-lhe o corpo. Naquela noite de todos os prodígios, no mais profundo do seu ser reacendeu-se a última brasa que restava da fogueira que lhe alumiara os passos nos seus descuidados tempos de criança. Para espanto da solidão, o rastilho do pensamento que lhe aflorou a fronte ateou-lhe um sorriso nos lábios que alastrou, traquinas, infantil, pelo rosto sulcado pelos reveses da vida. “Isto não é de homem ajuizado e da minha idade,” ainda hesitou, relutante em ceder à tentação. Mas foi de pouca dura a resistência. Logo afastados os pruridos, dono duma energia há tanto tempo arredia, envergou o casaco e as botas da neve, enfiou um gorro cabeça abaixo e saltou para a varanda com a ligeireza e o entusiasmo dos tempos da infância. Atirou-se à obra, jovial. Em três tempo, o boneco de neve estava de pé, a alva cabeçorra à espera do gorro que o homem tirou da própria cabeça, para o ornamentar com desvelos paternais. As mãos, ágeis, 12


inspiradas por forças desconhecidas, modelaram um nariz proeminente e o arredondado da testa, desenharam uma boca, tornearam os contornos dum manto. Ao redor, a solidão rangia os dentes, restolhava sobre a neve, com silvos de serpente enfurecica. Mas o homem já nem se apercebia da sua presença. As mãos, a escorrerem poesia, ávidas, continuavam a moldar a sua criação, a aperfeiçoar-lhe os contornos, a burilar os últimos detalhes. “Estás mesmo engraçado”, disse, dando dois passos atrás , para admirar o resultado do seu labor. O sorriso continuava-lhe pendurado dos lábios, como uma flor. A solidão continuava a arrastar-se pela neve, enroscou-se num recanto afastado da varanda, perplexa, vencida. Mas a tarefa do homem ainda não terminara. Os seus passos determinados conduziram-no ao interior do apartamento, à cozinha, donde regressou com algumas rodelas de cenoura que pregou na capa do boneco, numa imitação de botões flamejantes. Duas azeitonas pretas deram vida aos buracos dos olhos, foram o retoque final. “Agora, sim, estás perfeito. Tenho que te dar um nome. Monico, estás de acordo? “, - Pareceu-lhe que a sua proposta agradara ao boneco. – Ficas, então, o Monico.

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Beliscado pelo frio, regressou ao aconchego do apartamento. Através da vidraça que a neve começava a rendilhar com delicadas filigranas de cristal, ficou a admirar a sua obra. O boneco, com o gorro à banda, todo pimpão na sua farpela, parecia sorrir-lhe. Um esquilo observara toda a cena do conforto do seu refúgio na abrigada dum ébano de braços vergados pelo peso da neve. A princípio, condoerase com o rosto devastado do homem esborrachado contra a vidraça. Assistira, indignado, ao ataque traiçoeiro da solidão. Dera um guincho de satisfação com a reacção inesperada do homem. Até dera sapatadas de alegria na neve quando o boneco começara a crescer e a ganhar forma. Mas o seu maior contentamento aconteceu quando vira a gulodice das rodelas de cenoura a servir de botões. Feliz por não ter de ir esgatanhar a neve à procura da sua ração de bolotas em qualquer esconderijo improvável, saiu do seu refúgio, de orelhas espetadas e ventas frementes. Mal o homem virou costas e entrou em casa, amaranhou varanda acima, atraído pelo inesperado festim que se lhe oferecia, farto, em tempos de tanta míngua. Uma golfada de ira alastrou pelo rosto do homem quando viu o esquilo comer o primeiro botão, o seu primeiro impulso foi abrir a porta de rompão e expulsar o intruso a pontapés. Mas foi detido por

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estranha voz impregnada de paz que crescia no silêncio da noite sagrada. Após deglutir dois botões, saciado, o esquilo, sem pressa de regressar ao seu refúgio, trepou, agilmente, pela capa do boneco acima e , ternurento, brincalhão, encostou-lhe o focinho ao rosto enregelado. Foi quanto bastou para que o milagre acontecesse.Num repente, numa alquimia redentora ,o boneco de neve ganhou vida, humanizou-se. Estremeceu, piscou os olhos de azeitona, a boca rasgou-se num sorriso bonacheirão a ressumar emoções mal contidas. No silêncio daquela noite repleta duma luminosidade quase diurna, , um rio da ternura ousara correr para os braços do mar profundo da vida, o calor do amor vencera, mais uma vez, para remissão da humanidade, a ferocidade da solidão. A princípio atónito, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam, o homem acabou por derrubar os altos muros que o aprisionavam. Liberto, num impulso irresistível, em harmonia com o mundo, escancarou a bocarra da porta e convidou o boneco de neve a entrar. “Vem, vamos consoar juntos”, as palavras esvoaçaram como revoada de notas musicais soltas das cordas dum violino a vibrar por ali. “Pomos a cozer duas postas de bacalhau com grelos. Com um bom copo de vinho a acompanhar, vamo-nos regalar.” 15


Do lado de fora, o esquilo alรงou a cauda, radiante, os olhos tremeluziam-lhe como estrelas.

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NOITE DE CONSOADA

A St-Laurent estava quase deserta. Não fossem os enfezados enfeites luminosos, a pingar das árvores despidas e famélicas, que pintalgavam os restos de neve arremessados contra os bordos dos passeios, nem se acreditaria que era a noite de consoada. O homem, ainda novo, quarenta anos mal feitos, caminhava com passada mole, sem destino, num remar cansado contra a noite infindável. Vergavam-no o peso das recordações que lhe tinham cravado a dentuça no pescoço e teimavam, raivosas, em não lhe dar tréguas. As mais antigas, nebulosas mas ainda assim felizes, eram fragmentos cada vez mais esboroados das consoadas da infância em Miranda: a crepitante fogueira acesa pelo entusiasmo da rapaziada, carradas e carradas de lenha queimadas num imenso braseiro que alimentavam noite fora as labaredas esfomeadas de chegar ao céu; a missa do galo, na Sé enregelada, com a ladainha do padre a ressoar pelas imensas naves, tão interminável que até impacientava o seráfico Menino Jesus da Cartolinha como sempre regaladamente instalado na sua guarida; o silente regresso a casa, a paz pousada 17


como pombas brancas nos beirais dos telhados, os passos a ressoar nas pedras lisas e escorregadias da calçada medieval. Nos primeiros anos em Montreal, lar de imigrantes aturdidos em busca de sentido para a nova vida, eram noites tristes, cheias de saudades mal saradas, de lágrimas furtivas da mãe sufocadas pelos cantos da casa, disfarçadas por sorrisos apagados. Já homem feito, numa fuga constante às fragilidades coladas para sempre à pele, as noites de consoadas eram passadas, nas mais diversas e inesperadas circunstâncias, ao sabor das suas relações amorosas frívolas, inebriantes, sem cadeias. Quando as coisas corriam para o torto, havia sempre os braços abertos da casa dos pais, as eternas bolas mirandesas, o calor duma alegria mais resignada e o vozeirão sadio do pai repleto de recordações. Era a elas que se agarravam todos com a fúria de náufragos num mar estranho a que nunca pertenceram por inteiro. Estava, agora mesmo, a ouvir a voz do pai: que rapaz este, recordas-te mulher?, não havia presente de Natal que lhe servisse. Só tinha olhos para os canivetes mirandeses, até lhe saltavam os olhos da cara quando via um nas mãos de alguém. Ainda mal se sustinha nas pernas, parecia um cachorrito a saltar atrás de quem lhe mostrasse o dianho dum canivete. - As palavras rudes 18


ensopavam-se de lágrimas ternurentas. - Nunca vi uma coisa assim, o garoto parecia embruxado. Como é que se podia dar um brinquedo desses a uma criança! Só se fôssemos doidos. A mãe, sombra diáfana, sorria, passava-lhe a mão protectora pelos cabelos e, sem que eles se apercebessem, ia-se despedindo aos poucos do filho, do marido, soltas, desde há muito, as amarras ao cais da vida. O falecimento dos pais quebrara a derradeira ligação umbilical aos prados floridos da infância. O fascínio dos canivetes fora, para sempre, assim o acreditara, vencido pelo do mistério das mulheres. Mas com o correr da vida, principalmente nesta época do ano, face a face com as recordações assanhadas, cada vez se apercebia, com mais crueza, da fraqueza das raízes que o agarravam ao chão que pisava, da sua solidão. Uma solidão imensa, dolorosa, que lhe perfurava as entranhas e abria sulcos profundos de tristeza que nada, nem mesmo as mais envolventes aventuras amorosas, podia sarar. Quando chegou ao Parque du Portugal, as pernas trémulas recusaram continuar a caminhada sem norte, forçaram-no a sentar -se num banco mesmo à beira do fontanário donde o leão de pedra da bica, seca nesta época do ano, o observava meio intrigado. Mais à frente, o padrão dos descobrimentos, esguio e esbranquiçado, na sua 19


frieza pétrea, era sentinela vigilante, indiferente à sua presença. No telhado do coreto, os pombos encolhiam-se uns contra os outros para se protegerem do frio cortante e também não lhe prestavam atenção. Só o manto de neve que cobria a calçada do parque é que rastejava ao seu encontro para o envolver no seu abraço frígido. Enregelado, estava disposto a erguer-se, prosseguir o calvário da caminhada, quando, assombrado, pressentiu um vulto sentado a seu lado. Sem pinga de sangue, olhos dilatados de espanto, reconheceu logo a figura inconfundível do Menino Jesus da Cartolinha: rosado, a cartola na cabeça, todo aperaltado na sua farpela de cetim bordado a oiro dos dias de festa, um sorriso fraterno desenhado nos lábios infantis. A um gesto do Menino, o parque animou-se rapidamente. Um grupo de anjos desceu do céu, instalou-se no coreto com um farto instrumental de harpas, cítaras e flautas que encheram a noite com a magia da sua música celestial. Logo de seguida, dois outros anjos, surgidos do frio, desdobraram alva toalha de linho sobre a neve e serviram em silêncio, uma frugal ceia de consoada composta de pão de centeio, salpicão e presunto. O Menino, sorridente, retirou da algibeira da casaca um belo canivete de cabo de madeira esculpido que ofereceu ao homem.

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- Reconheces? É o canivete dos sonhos da tua infância. Podemos começar a cear. O homem lentamente, num ritual litúrgico, a saborear cada instante, cortou o pão em longas e suculentas fatias, o salpicão em rodelas finas e sumarentas, o presunto em lascas rosadas, com firmeza e uma sabedoria que só podia nascer do fundo da memória ancestral. Faltava o vinho mas logo da boca do leão do fontanário começou a jorrar um bica-aberta fresco e capitoso que recolhiam na concha das mãos e sorviam deliciados. Finda a ceia, os anjos recolheram os restos das vitualhas e os instrumentos musicais e evolaram-se, sem ruído, nas profundezas da noite. O Menino Jesus da Cartolinha, um tudo nada mais corado pelos efeitos do vinho, demorou um último olhar nos olhos do homem e preparou-se para partir também. - O canivete - balbuciou o homem. A suave mão do Menino aflorou-lhe o ombro. - É teu. É o teu presente de Natal. Quando, instantes depois, com passo firme e decidido, o homem regressou ao seu apartamento, com o canivete no fundo da algibeira, era a criança mais feliz do mundo.

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A NEVE A A INTOLERÂNCIA

Hoje caíram trinta centímetros de neve. A coisa mais normalíssima do mundo nos rigorosos Fevereiros canadianos. Que, por sinal, este ano até tem sido muito clemente, com temperaturas bastante acima do normal para a época. A vizinhança saiu toda para a rua e há um ar de festa nesta azáfama de limpar as entradas das casas e os drive-ways. A paisagem é feérica, cantarolam as máquinas de limpar a neve, as crianças divertem-se com esta dádiva dos céus, há acenos amistosos por cima das muralhas de neve. E, como sempre nestas ocasiões, recordo os anos de martírio em que habitei na baixa de Montreal. Ao mais pequeno nevão, lá andava eu, para trás e para diante, à procura do meu carro que, coberto pelo uniformizante e alvo manto, já não sabia onde ficara estacionado. Quando finalmente o conseguia localizar, era preciso trabalhar arduamente para o desenterrar da montanha de neve que o cobria. A caída do céu mas sobretudo a acumulada pelas máquinas de limpeza das ruas que, na primeira fase dos trabalhos, e para desobstruir as artérias o mais rapidamente possível, a varrem sem 23


contemplações para os bordos, contra os carros estacionados ao longo dos passeios, para danação dos pobres proprietários. Foi o que me aconteceu naquela manhã, que nunca mais esquecerei. Nevara intensamente durante toda a noite e a cidade acordara envolta num espesso manto branco. Mas ao chegar junto do meu automóvel, foi grande a alegria que me invadiu ao verificar que o carro que pernoitara à frente do meu já saíra, deixando o espaço limpo, o que me facilitou enormemente a tarefa que eu avaliara muito mais penosa. Mas mesmo assim ainda cavei uma avantajada meia hora, o que me deixou de bofes na boca , pois a neve estava granulosa e pesava como chumbo. Finalmente concluída a minha tarefa e quando me aprestava para arrecadar a pá, o demónio materializado no vulto escarlate dum carro roncante rasgou a paz polar da manhã e, sem me dar tempo para abrir a boca, veio estacionar a minha frente, bloqueando-me de novo a passagem. Respirei profundamente e fui falar ao condutor, um sujeito de rosto esquálido e olhos esbugalhados. Pausadamente, expliquei-lhe a situação, implorei-lhe que me deixasse sair. Em vão, o homem era intratável. - Foute moi la paix (Deixa-me em paz) respondeu-me, irascível.

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Apertei a pá nas mãos, disposto a matar, o lobo à solta. - Sors immédiatement ton char ( Tira o carro imediatamente). O homem leu-me a loucura nos olhos e amedrontou-se. Foi o que o salvou. Foi o que me salvou. Ainda hoje me pergunto: e se ele não tivesse tirado o carro? O que teria acontecido? É por estas e por outras que quando o meu nível de intolerância social começa a subir perigosamente, segredo a mim próprio: olha que há circunstâncias em que até o mais pacato cidadão se pode transformar num homicida. E imediatamente vejo o mundo e as gentes com olhos muito mais clementes.

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SARAMAGO E O FRIO

Montreal. Manhã de Janeiro. A cidade tirita invadida por uma vaga de frio polar que rasga as carnes e encalha o sangue nas artérias. Enregelado, apresso-me a entrar na estação do metropolitano e, já bem instalado no conforto da carruagem, reactivada a circulação sanguínea, abro o jornal a toda a largura e refugio-me no paraíso da leitura. Apostava a vida em que, como sempre, não depararei com a mais leve menção à comunidade portuguesa. Somos uma comunidade "ordeira e trabalhadora", mergulhada numa paz sem ondas. Nem mesmo a nossa cozinha , portanto tão saborosa e apreciada noutras paragens, consegue despertar o interesse desta sociedade tão dada aos prazeres da vida. O que lá vai salvando a honra do convento é o vinho do Porto que galga terreno a olhos vistos, não tanto por mérito próprio, desconfio, mas mais por arremedo dos ingleses, tão ostracizados neste rincão francófono do mundo, mas tão paradoxalmente imitados nos seus hábitos. Quando o Saramago ganhou o Nobel, ainda cheguei a alimentar a esperança de ver os 27


escaparates das livrarias invadidos pelas suas obras o que, naturalmente, por tabela, nos iria proporcionar uma certa visibilidade há muito ansiada. Mas qual quê! Mais uma vez, vi ludibriadas as minhas mais do que razoáveis expectativas. Saramago continuou um ilustre desconhecido, ausente dos escaparates. A comunidade portuguesa continuou "ordeira e trabalhadora". Os francófonos continuaram avessos aos pastéis de bacalhau e às sardinhas assadas. Casualmente, descravei os olhos do jornal e, de chofre, num golpe de rins do acaso, o milagre realizou-se: à minha frente, uma jovem de frescura estudantil, lia o "Le Dieu Manchot", isto é, o " Memorial do Convento". Pela serena concentração na leitura e pela forma regalada, quase sensual, como humedecia os lábios com a língua, sentia-a embevecida e presa pela trama da história. Quando ergueu os olhos, sorri-lhe. Ela esboçou um trejeito contrariado, ultrajada com a insolência do velho cretino. E remergulhou nas aventuras e desventuras de Sete-Sóis e Blismunda. Nada incomodado por mais esta demonstração da eterna incomunicabilidade humana, continuei a sorrir, confrontado, mais uma vez, com a prova real de que, geralmente, basta um fortuito quase-nada para nos reconciliar com a vida 28


e transformar o curso das nossas existências. Afinal de contas, Saramago não é tão desconhecido, por estas bandas, como eu pretendia. Reconheço também que a comunidade portuguesa não é tão amorfa como a pintei. Os quebequenses também já se começam a aventurar nos nossos restaurantes e a provar os nossos deliciosos pratos de bacalhau. E até mesmo o frio, que me esperava, de dentes arreganhados , à saída da bocarra do metro, é, esquecidos os padrões climatéricos mediterrânicos, suportável e tonificante.

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CUBA

É preciso fazer das tripas coração para deixar as areias brancas e as águas de cristal de Varadero e largar rumo ao tórrido Agosto de Havana. Mas, estando em Cuba, seria tão imperdoável não visitar a velha capital colonial de como ir a Roma e não ver o Vaticano ou a Paris e não admirar a torre Eiffel. Pelo caminho, ainda me detive na aldeia piscatória Cojimar para posar para a eternidade junto à estátua do Hemingway que, homem de acção e aventura como sempre foi, se deve aborrecer terrivelmente, prisioneiro do bronze, ali no seu pedestal fustigado pela canícula. Chegado enfim a Havana e depois do tradicional giro pelo Malecon que é o equivalente da marginal lisboeta e duma obrigatória olhadela à Praça da Revolução e à estátua do herói José Marti, dirigi-me à Bodeguita del Medio para almoçar. A Bodeguita del Medio é um restaurante com velhas tradições localizado na velha Havana, uma parte da cidade considerada património mundial e a precisar de urgentes obras de restauração sob pena de se perder um património arquitectónico de valor 31


incalculável. Enquanto esperava o frango e os "cristianos e moros" do almoço, furei até ao balcão para dessedentar com o "mojito". Ora como nestes tempos de deriva e assombro o imaginário e a realidade se entrelaçam como irmãos siameses, seguia eu o boiar preguiçoso do ramito de hortelã à tona do rum quando o Fidel Castro em pessoa me bateu no ombro. Te gusta? Um tanto aturdido com tão inesperado encontro e sem atinar se ele se referia ao mojito, à Bodeguita, a Havana ou mesmo a Cuba, acenei afirmativamente com a cabeça. Ele sorriu e encaminhou-me para um recanto discreto da Bodeguita, mesmo sob a célebre inscrição que Salvador Allende ali deixou em 1961: viva Cuba livre, Chile espera. Depois de nos termos sentado, Fidel, num discurso inflamado, falou-me de Moncada, da Revolução, da Sierra Maestra, de semeador de sonhos que foi o Che, do homem novo que quase aconteceu , da esperança num mundo melhor e sem tiranos. Pelo meu lado, já mais calmo, dei-lhe conta do que vi na minha visita: a corrupção que grassa por todo o lado, o mercado negro, a grave penúria de bens de consumo, o descontentamento crescente da população, o perigo de o ver transformar-se no 32


Patriarca do seu amigo Gabriel Garcia Marques. Fidel baixou a cabeça, acabrunhado. -Sei tudo isso desde há muito. Também eu pressinto que a Revolução está a chegar ao fim, inacabada. Ou pensas que eu não escuto o uivo dos chacais ao meu redor? Ou pensas que não me chega aos ouvidos o fragor do desmoronamento? E dito isto, Fidel esfumou-se da minha frente. Fiquei a sós com o meu mojito, o ramito de hortelã tristemente encalhado no cubo de gelo. Na minha cabeça ecoavam as palavras exaltadas do grande poeta cubano Nicolás Guillen: Acabou Eu vi-o. Martin prometeu-ta e Fidel deu-ta. Acabou.

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BIDA NUÔBA

Como natural do planalto mirandês, foi com exultação que recebi a notícia do reconhecimento, pela Assembleia da República, do mirandês como língua oficial. E, contudo, devo reconhecê-lo, com toda a humildade, não falo o mirandês. Nascido em Cicouro, «alpié d'la raia de Spanha, terroù pertués de abundantes frutas i áuga », como cantou o poeta e meu conterrâneo António Luís Domingos Fernandes, cedo fui arrancado às terras que me viram nascer elevado pelos meus pais « lá para baixo », como então se dizia, em busca duma vida menos madrasta. Nas férias de verão, regressávamos periodicamente às origens. Ficaram-me desse tempo, para sempre, nos olhos, farrapos das aguarelas de cores estonteantes das viagens de comboio, Douro acima: odores intensos, farnéis abertos nos bancos de madeira, os pregões nas estações, o gralhar dos ranchos nómadas de segadores, a bocarra das locomotivas a vomitar espessos rolos de fumo que serpenteavam pelas serranias abaixo, um calor tórrido que esbraseava os 35


pulmões. E, depois , na parte final da viagem, o interminável percurso entre a estação de Duas Igrejas e Cicouro, em cima dum desconjuntado carro de jumentos, noite cerrada, por entre montes , fragas e histórias de lobos e almas penadas. Foi logo nas primeiras férias que sofri o meu primeiro confronto de culturas. «Tás mui taludo », elogiou-me uma vizinha . Sem perceber o que ela me dissera, corri para a minha mãe em busca duma tradução decifradora de tão estranho linguarejar. Incidente sem consequências de maior, logo esquecido no fogo nas brincadeiras infantis e que não me deixou estigmas visíveis, acredito, mas que me gravou na alma a singularidade das terras que me foram berço. À medida que me cresciam mais profundas e vigorosas raízes nos novos lugares adoptivos, as visitas foram rareando, quase esquecido da minha origem mirandesa. Salvou-me da mais completa aculturação o facto de ter casado com uma mirandesa profundamente arreigada ao torrão e às tradições natais. Aqui devo esclarecer que muito contribuiu para a minha reabilitação a minha propensão para a boa mesa e a irresistível cozinha mirandesa. Tempos houve para mim em que abancar nas tendas da festa do Nazo com uma suculenta posta à mirandesa à minha frente ou então, na adega do meu sogro, saborear umas rodelas de salpicão e uns nacos de presuntos 36


acompanhados por um bica-aberta » que jorrava do pipo no qual regaladamente me recostava, faziam parte dos meus prazeres predilectas, para cuja satisfação seria capaz de sacrificar urgentes afazeres e dar anos de vida. Foi assim que, sem grandes convulsões, orgulhosamente voltei a reencontrar e reassumir a minha identidade mirandesa. Que se apoia em bases muito frágeis, como o pude comprovar no passado mês de Junho me desloquei aí a New Bedford para apresentar o meu último livro à comunidade portuguesa local. No decorrer duma entrevista no canal televisivo português, no programa literário animado pelo escritor e director do departamento de estudos Luso-Brasileiros da Universidade Brown, em Providence, Onésimo Teutónio Almeida, dei-me conta do árduo caminho que ainda me falta percorrer para recuperar integralmente a minha identidade perdida. Naquele seu jeito inigualável de falar de coisas sérias num tom ligeiro e divertido, a páginas tantas do nosso ameno e agradável cavaquear, o Onésimo pediu-me para dizer umas frases em mirandês. Embaraçado, depois de balbuciar três ou quatro palavras avulsas, acabei por humildemente reconhecer a minha imperdoável e crassa ignorância dos mais elementares princípios da língua mirandesa. Salvou-me da situação melindrosa o 37


traquejo do meu interlocutor que desviou o curso da conversa para margens mais seguras e menos constrangedoras. Vexado, na viagem de regresso a Montreal, tomei a firme decisão de na próxima viagem a Portugal, na lista de livros a comprar, dar prioridade ao Vocabulário e Gramática de língua mirandesa que entretanto já deverão estar disponíveis ao público. Não quero, nunca mais, voltar a ser apanhado no flagrante delito de ignorância da própria língua materna. A minha maior alegria seria um dia conseguir escrever um texto escorreito nessa « lhéngua mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i campechana. »

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RAÍZES

Se visitarem Montreal e depararem nos jornais locais com a menção de uma Marie-Hélène da Silva violinista ou com um Joel Dasilva dramaturgo, não induzam logo à primeira vista que se trata de descendentes de imigrantes portugueses de recente data. Na verdade, a maioria dos Silva e das suas variantes ortográficas Dassylva, Dasilva e Da silva, que enchem páginas e páginas da lista telefónica, são descendentes dum tal Pedro da Silva, natural de Lisboa, chegado a estas terras em data incerta e que em 1693 casou com uma " fille du Roi ", Jeanne Geslon, deixando numerosa prole, antes de morrer em 1717 na cidade do Quebeque. Este bravo Silva é hoje figura histórica pois coube-lhe a missão de ser o primeiro carteiro oficial do Canada, transportando durante vários anos as mensagens do governador da Nova França entre Montreal e a cidade do Quebeque. Mas já bem mais cedo outros aventureiros portugueses por cá andaram ao serviço dos reis da França e da Inglaterra, tal como um certo João Afonso célebre piloto que acompanhou o Senhor de Roberval numa expedição ao Canada, Mateus da Costa que participou na colonização da Acadia, ou 39


mesmo um tal João Rodrigues, falecido em Beauport em 1720, e que se afirma ser o antepassado de todos os Rodrigue actuais. Mas estes não são casos únicos. O Canada, dado a sua especificidade de terra de acolhimento, é terreno fértil e fascinante de estudos genealógicos e patronímicos que por vezes conduzem a resultados surpreendentes. Por exemplo, há meses, em Vancouver, na costa do Pacífico, encontrei um sujeito de tez acobreada, que me afirmou ser descendente de portugueses e que orgulhosamente ostentava o " lusitano " apelido de Desa. " Desa ? ! " admirei-me. Vexado perante a minha incredulidade, no dia seguinte o mister Desa apresentou-me a sua árvore genealógica, que recuava até ao século XVI, repleta de antepassados Sá e onde nem mesmo faltava um inesperado Carvalho, encaixado entre um Nóbrega e um Miranda . Só então é que eu compreendi que o Desa era uma corrupção de " de Sá ". Instruiu-me então o mister Desa que a família dele emigrara no século XVIII de Goa para Mombaça, na África, e que depois , de trambolhão em trambolhão, acabara por se estabelecer, em finais do século XIX, em Vancouver. -Mas olhe que nunca renegámos as nossas raízes, continuamos fervorosos católicos, devotos 40


do Saint Éczévia. Tornei a arranhar a cabeça. " O quê?!, mas que raio de português era eu que desconhecia a existência do Saint Éczévia, padroeiro de Goa e grande evangelizador do Oriente? " E vi, sem apelo nem agravo, o meu pedestal a desmoronar-se no espelho dos olhos negros do meu " compatriota ". Salvou-me uma intuição. " Escreva aí o nome. " E só não soltei uma gargalhada com receio de melindrar o mister Desa, quando à minha frente, em letras garrafais, vi materializado o nome do São Francisco Xavier que, pronunciado à inglesa, se transformara no Saint Francis Ëczévia.

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CÁ NADA

Frustrados por só depararem com terras geladas e inóspitas, estaria nesta expressão de decepção dos primeiros navegadores portugueses que abordaram estas paragens a origem do nome Canadá. Fabulação ou não, está historicamente comprovado pela profusa cartografia da época e pela toponímia de origem portuguesa de vários locais, a presença dos navegadores portuguesas na Terra Nova e ao longo de toda a costa do Atlântico Norte, logo desde o início do século XVI ou mesmo ainda mais cedo, segundo a opinião de credíveis historiadores. Desde então e até aos nossos dias, a presença de frotas bacalhoeiras portuguesas ao largo da Terra-Nova sempre foi uma constante e, nos tempos em que os bancos piscatórios pareciam inesgotáveis, sendo então inimaginável a recente "guerra do bacalhau", a "White Fleet" portuguesa era, todos os anos, hospitaleiramente acolhida no porto de S. João da Terra Nova. A atestá-lo está a estátua do navegador Gaspar Corte-Real erigida no Prince Philip Drive, oferecida em 1965 pelos pescadores portugueses ao povo da Terra Nova. 43


Menos controversa do que a historiografia de tão obscura época é a odisseia da chegada do vinho do porto a estas paragens, deslumbrante história que roça as fronteiras do maravilhoso. No outono de 1679, um barco com um carregamento de vinho do porto largou a cidade do Porto com destino a Londres. O que nessa época era corrente, a meio da viagem, foi atacado por um corsário francês a custo do qual conseguiu escapar, navegando para o alto mar. Acossado por violenta tempestade, afastou-se imenso da sua rota pelo que o capitão tomou a decisão de ir fundear em S. João da Terra Nova para reabastecimento e repouso da tripulação. Impossibilitados de prosseguir viagem devido ao rigor do inverno, só na primavera seguinte se fizeram ao mar. Finalmente, chegados a Londres, constataram, com natural espanto, que a prolongada estadia na Terra Nova tinha dado ao vinho um aroma e um sabor agradavelmente diferentes. Desde então, a companhia proprietária do carregamento passou a enviar anualmente grandes quantidades de vinho para envelhecer na Terra Nova. Assim surgiu este celebrado porto e esta espantosa lenda perpetuada nos rótulos das garrafas dos portos Newman's. Só que agora, passados tantos séculos, em nome de, acredito, justificados interesses mercantilistas, recente legislação portuguesa proibiu a exportação de vinho do Porto em barril e, por 44


tabela, a sobrevivência do Newman's e desta lenda, estão seriamente ameaçados. Delicado problema cuja solução deveria contemplar as suas vertentes cultural e histórica. Porque nem só de rigorosos controlos de qualidade vive o imaginário humano. Afastados os bacalhoeiros e perdida esta lenda, poucos vestígios nos restarão da antiga presença lusíada nestas terras dos Corte Real.

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UMA BELA HISTÓRIA POR CONTAR

Quantas histórias ficam por contar? Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada? E algumas delas, modeladas pela mão de escritor inspirado seriam diamantes a refulgir na galeria das obras imortais. É essa a grande dor dos ficcionistas. Uma dor que rói até às entranhas, nascida da percepção inconformada de que o mundo invisível é muito mais vasto do que aquele que se nos apresenta ao olhar tantas vezes descuidado. Como eu gostaria de ter “engenho e arte” para contar a história de uma menina negra nascida na ilha da Madeira e que morreu em Montreal naquele terrível dia 21 Junho de 1734, coberta de opróbrio, às mãos de impiedoso carrasco. Como se chamaria essa menina? Maria? Provavelmente. Como provavelmente seria filha de escravos negros dos engenhos da cana do açucar da ilha da Madeira. Como viveu naquela ilha maravilhosa? Que sonhos lhe povoavam a mente de 47


criança? Foi uma criança feliz? De que forma rocambolesca veio parar à NovaFrança? Acorrentada no porão dalgum barco negreiro? De forma mais civilizada, na companhia do seu novo amo, o comerciante François Poulin? Que pulsões lhe lavraram o corpo de ébano quando os seus olhos deslumbrados (assustados?) viram as primeiras neves a tombar, tocadas pelo frio e pela solidão? Que desvario a invadiu quando, em língua estranha e hostil lhe trocaram o nome, lhe cravaram, a ferro e fogo, na alma o ferrete da sua nova condição de escrava irremediavelmente perdida nas terras polares? Tantas interrogações, tantas zonas de penumbra que só a imaginação fértil do criador poderá retocar de luz e trazer à tona do compreensível. Tanto material, palpitante de vida, à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão. Que era bela, cheia de vida, atrevida, impetuosa, é claro como a água. Adivinho-lhe o corpo escultural em requebros lascivos. Pressintolhe os olhos profundos a lampejar poalhas douradas. Ouço-lhe as risadas em cascata a sugerir promessas mal cumpridas. Respiro-lhe os silêncios misteriosos de selva africana. Sinto-lhe o sangue em alvoroço, seiva farta e generosa a jorrar na aridez das vidas árduas e acabrunhadas. Só assim se compreende que 48


tivesse ateado tantas paixões e destroçado tantos corações desde o escravo César ao branco Claude Thibault que se perdeu por sua causa. Só assim se compreende que tivesse morrido de forma tão trágica. Porque as sociedades atoladas num quotidiano sem histórias não perdoam àqueles que vêm, com a sua rebeldia, agitar as águas miasmáticas e estagnadas. Em 1730, foi (re)baptizada, na cidade de Montreal, com o nome de Marie-Josèphe Angélique. Nesse dia, a criança que talvez se chamasse Maria, refugiou-se no mundo inacessível do sonho quase cósmico onde manteve acesa, pressinto-o, a chama dum regresso libertador à sua ilha, montada no seu corcel de fogo e luz. A vida da escrava Marie-Josèphe Angélique, que supostamente na noite fatídica de 10 de Abril de 1734 incendiou meia Montreal, está imortalizada e analisada de forma mais ou menos romanesca numa profusão de obras literárias e documentários nascidos ao longo dos anos. Já faz, inegavelmente, parte integrante do imaginário colectivo e da História do Quebeque. Principalmente agora que a governadora Geral do Canadá, Michaëlle Jean, num gesto arrojado e corajoso a lançou para as luzes da ribalta ao prestar-lhe uma sentida e significativa homenagem pública e que o Centre d'histoire de Montréal resolveu montar uma exposição que 49


decorrerá de 12 outubro de 2006 até 25 Março de 2007 para além de lhe dedicar uma bem documentada e articulada página web integrada na série Grands Mystères de l’histoire canadienne. Sim, a história de Marie-Josèphe Angélique está contada e a sua memória finalmente reabilitada. Uma reabilitação tardia mas que é, mesmo assim, um facho de esperança que ilumina o caminho de todos aqueles que aspiram a um mundo humanizado em plena harmonia com a natureza. Mas está por contar a história mais bela de todas. A mais pura, única como o mais precioso metal que resta no cadinho, criado pelas mãos mágicas de alquimista febril. A história da pequena Maria(?). Desde o dia do seu nascimento até ao trágico dia em que foi (re)baptizada com esses áspero nome de Marie-Josèphe Angélique. A história da criança que se fez mulher por entre destroços e ruinas dum mundo convulso. As suas cinzas ficaram em Montreal, espalhadas aos quatro ventos pela maldade dos homens mas o seu espírito, luminoso e puro, esse, partiu, acredito, em voo silente, para a sua bela ilha da Madeira. É até muito possível que ainda por lá ande, na forma de esbelta pomba branca, a ruflar sobre as cabeças dos amorosos.

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A LENDA DO BARCO EM CHAMAS

Numa crónica anterior interrogava-me eu quantas histórias não ficarão por contar. Quantas vidas magníficas ficarão para sempre irremediavelmente ignoradas, cobertas pelo manto espesso do tempo que corre à desfilada. Quanto material, palpitante de vida, estará à espera de saltar para as páginas de romance fremente por ser escrito, com a ansiedade com que o trigo ondulante espera que o transformem em pão. A saga dos irmãos Corte-Real e das suas viagens ao Novo_Mundo, envoltas em mistério e quantas vezes em fantasia, é mais uma dessas histórias fascinantes. Ao ponto de ter inspirado ao Fernando Pessoa o seu belo poema Só: A nau de um deles tinha-se perdido No mar indefinido. O segundo pediu licença ao Rei De, na fé e na lei Da descoberta, ir em procura Do irmão no mar sem fim e a névoa escura. Tempo foi. 51


Nem primeiro nem segundo Volveu do fim profundo Do mar ignoto à pátria por quem dera O enigma que fizera. Então, o terceiro e El-Rei rogou Licença de os buscar, e El-Rei negou. (...) Que belo romance histórico daria! Os ingredientes estão todos lá. Qualquer dia irei escrever à minha amiga Deana Barroqueira, escritora nascida nos Estados Unidos mas a residir em Portugal e sugerir-lhe este tema. Autora consagrada de romances históricos de aventuras, com certeza irá considerar seriamente a minha sugestão. Então quando lhe revelar a lenda fascinante do “Barco em Chamas” da Île au Héron, sei, adivinho que não poderá resistir ao desejo de deitar mãos à obra. Esta lenda, pouco lisonjeira para os rudes navegadores portugueses da época, encontrei-a numa página da internet do Centre d'études acadiennes da Université de Moncton e em tradução livre e resumida conta-se assim: Em 1500, Gaspar Corte-Real, navegador português, chegou a estas paragens e, sob o pretexto de dar uma festa em sua honra, convidou os principais chefes indígenas a subir a bordo da sua caravela. Embriegou intencionalmente os incautos 52


desgraçados que quando acordaram, sobressaltados, já estavam em pleno mar, a caminho de Portugal onde foram vendidos como escravos. Deslumbrado com o sucesso da sua viagem, Gaspar empreendeu nova viagem em 1501 tendo chegado desta vez à Île au Héron, situada na Baie des Chaleurs, no Golf StLaurent, onde lançou âncora. Alertados por mais esta incursão, um numeroso grupo de índios, sedentos de vingança, reuniu-se no local e numa noite muito escura atacou a caravela e massacrou toda a equipagem. Somente Corte-Real foi poupado: a sua morte deveria ser mais lenta e dolorosa. Amarrado, foi colocado sobre um rochedo do Héron, à beira-mar. Depois de durante mais de três horas o terem martirizado atrozmente, abandonaram-no à mercê da maré que subia lentamente e que acabou por engolir o infeliz navegador. No verão de 1502, Miguel Corte-Real , irmão de Gaspar, inquieto pela falta de novas, partiu por sua vez de Lisboa e após longa viagem alcançou a Baie des Chaleurs onde encontrou a caravela abandonada do irmão encalhada em terra. O barco parecia intacto, não se avistava vivalma. Mas mal se aproximaram, de surpresa, várias canoas rodearam a caravela e, ágeis como macacos, os índios subiram rapidamente a bordo e massacraram parte da tripulação. O capitão e os restantes sobreviventes ao assalto inesperado, 53


foram-se refugiar na proa da embarcação que, sem governo, partiu à deriva, com todos os combatentes a bordo. Subitamente, deflagrou um grande incêndio que alastrou rapidamente pelo barco que, com as velas em chamas, singrava velozmente sobre as águas. Só um dos índios sobreviveu à catástrofe para contar o que aconteceu. Do destino de Miguel Corte-Real e dos seus companheiros não narra a lenda deixando em aberto todas as suposições, entre as quais se inclui o mistério das inscrições talhadas no já célebre Dighton Rock, encontrado séculos mais tarde. A partir desse fatídico dia, geralmente no mistério da noite, frequentemente em vésperas de tempestade, surgia na baía um barco em chamas que fantasmagoricamente singrava sobre as águas apavorando a população da Île au Héron.

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HISTÓRIA DE NATAL

Esta história passou-se há mais de trinta anos numa fábrica de metalurgia nos arredores de Lisboa. Hoje, nestes tempos que correm, ainda seria possível acontecer? É preciso acreditar que sim. Mais do que nunca, é preciso acreditar nas histórias de Natal. A fotocopiadora vomitava cópias, num ritmo sincopado. O velho António passou a mão pela testa. - Porra, já lá vão cinco mil, hoje. Estes gajos querem rebentar-me. - António, faz-me duas cópias. Era o Rodrigues, desenhador. - Aguenta aí, pá. Não pode ser a correr. Tudo tem o seu tempo. Rodrigues deu-lhe um piparote amigável na barriga. - Hoje estás de mau humor. Estás é a precisar de ir para a reforma. Aquela era a ferida viva do velho. Uma ferida que vinha desde o tempo em que uma paralisia do 55


braço esquerdo o atirara da oficina para as tarefas da fotocopiadora. - Mas o que é que tu queres, pá? Achas que tenho trabalhado pouco? Sabes quantas cópias já tirei hoje? Não sabes não, nem queres saber. Queria-vos ver aqui, no meu lugar. Nem metade do meu rendimento davam. O Rodrigues desatou a rir. - Estava a reinar contigo, António. - Eu sei, pá, eu sei, conheço-te bem. Mas há gajos aí que quando falam é a sério. Querem é verme pelas costas para meterem cá outro. Depois é que vão torcer a orelha. Como o António não apanham cá ninguém. - Não lhes ligues. - É o que eu faço, pá. Não lhes passo cartão. - E as tuas botas já chegaram? A boca meio desdentada abriu-se num queixume. Passou a mão sapuda pelos cabelos grisalhos e hirsutos, esfregou os olhitos já sumidos num mar de rugas. - Nem me fales disso. Já as requisitei há mais de um ano e nada. Já ninguém liga a este trapo velho. - Não percas a esperança. Talvez seja o teu presente de Natal deste ano. Aquela história das botas já dera a volta à fábrica, rasgara rios de risota.

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- Para que diabo queres tu as botas se nunca vais às oficinas? – perguntavam-lhe. - Então não tenho mesmo direito dos outros? Os gajos da preparação técnica também não vão às oficinas e têm direito a elas. Não são mais do que eu. - Não queria mais nada o fidalgo. Talvez cheguem a tempo de as levares no caixão. - Brinquem, brinquem. Mas quando mas virem nos pés acaba-se o gozo. O telefone desatou a tocar, insistentemente. - Arre que é chato. Já atendo. Rodou o corpo roliço e a mão sã avançou para o telefone. - António Mendes, departamento de reproduções. O quê? Já aí vou. Pousou o auscultador e voltou uns olhito intrigados para o Rodrigues. - Parece que há uma encomenda para mim ali ali em baixo na recepção. Será mais alguma brincadeira dessa malandragem da preparação técnica? Os preparadores e os desenhadores amontoavam-se no exíguo espaço da recepção. Sobre a balcão, um pacote embrulhado em garrido papel alusivo à quadra natalícia, chocou com o olhar desconfiado do velho.

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- Abre - convidou o Perdigão, o chefe dos preparadores. – Parece que é o teu presente de Natal. - Vocês não brinquem comigo. Estou velho mas ainda sou capaz de partir as trombas a qualquer um. - Abre - ordenou um vendaval de vozes. Quando do embrulho esventrado saltou um reluzente par de botas de construção, o homem não pôde conter as lágrimas que saltaram indomáveis carão abaixo. - Feliz Natal – gritavam ao redor. - Vocês são os melhores colegas do mundo – lá acabou por conseguir gaguejar, por entre um arremedo de risos, o velho António, a assoar-se, para disfarçar, a um lenço imenso. – É por vossa causa que eu não me quero reformar. Podem acreditar.

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MEU CARO PORTUGAL

Desta vez estou a escrever-te de Labrador City, uma cidadezinha mineira perdida no norte do Canadá. Estamos em vésperas do Natal e amanhã, o avião, já pousado no minúsculo aeroporto de Wabush, aqui mesmo ao lado, levar-me-á a Montreal e ao calor da família e do lar onde já pressinto a lareira a estrelejar em festa, e a rescendência duma travessa de douradas filhós sobre a mesa ornamentada com a toalha de linho das grandes ocasiões. Regressei há pouco dum longo passeio na noite silente da cidadezinha envolta em imaculado sudário de neve. No céu constelado, a estrela polar, enorme, rutilante, quase ao alcance da mão, parecia pousada sobre as casas profusamente iluminadas nesta quadra festiva. As silhuetas esguias e serrilhadas dos abetos recortadas contra o céu, com apuros de fina filigrana, advertiam-me de que estamos na fronteira da civilização e que daqui para a frente, transposta a última fileira do casario e extinto o derradeiro halo de luz, é o reino da tundra e dos espaços gelados sem fim, onde só raras

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alimárias se ousam aventurar em errâncias inexplicáveis. Quase me sentia figurante dum presépio gigantesco e fabuloso, perdido no tempo e no espaço, erguido pela coragem e imaginação transbordantes da humanidade e não me surpreenderia se , por entre cânticos celestiais, com um ruflar de asas, um anjo descesse dos céus e começasse a caminhar a meu lado, em descuidada cavaqueira. Só faltou, como festim da despedida, que uma aurora boreal , tão frequentes nesta época do ano, engalanasse o firmamento com os seus mais feéricos e matizados atavios, numa orgia de cores como só a mãe-natureza, em hora de garridice, nos sabe oferecer. Mas se a aurora boreal faltou ao encontro, o que me aconteceu não foi, acredita, menos espantoso. De chofre, inesperadamente, " numa confluência das muitas memórias que a memória tem…e que sacodem o íntimo das almas ", como escreveu um velho escritor da diáspora, senti-me arrebatado por estranha exaltação. Alerta, agucei os sentidos na expectativa dum prenúncio, duma revelação que chegou finalmente nas calorosas boas-noites que me lançavam as pessoas com quem me cruzava. E foi nessa saudação, proferida numa língua tão distante daquela que me foi berço, que decifrei o significado de tal arrebatamento. Eram, 60


reconheci-as perfeitamente, embora em roupagens tão diferentes, as mesmas palavras-afagos-beijos que me embalaram a infância na minha natal Cicouro transmontana e, mais tarde, a juventude nos bucólicos Outeiros, ali à beira do pinhal leiriense. - Good night, Manuel – saudavam-me aquelas boas gentes rurais, já quase todas minhas conhecidas, após alguns meses de convívio. E eu ouvia: - Buôna nuite, Manolito – nessa materna "lhéngua mirandesa, doce cumo ua meligrana, guapa i campechana." - Boas noites, Manel - no português cantante das gentes dos campos do Lis.. E na imensidão da noite branca, deixei, comovido, repassado duma serenidade rente ao sobrenatural, que as reminiscências brotassem, sussurrantes, do fundo dos tempos e me envolvessem no seu véu diáfano e protector. Ainda há instantes, a minha mulher perguntou-me, ao telefone, que presente gostaria de receber este Natal. Enternecido, hesitei: " talvez um livro… " enfim, a imutável e corriqueira resposta-escapatória face às tentações mercantilistas de todos os anos. Mas, desta vez, até talvez prescinda do livro.. Que melhor presente poderia esperar do que este reencontro com os espaços míticos da infância e da juventude, num inesperado reatar de fios da tão 61


emaranhada meada desta minha vida dispersa por tantos lugares? Será este o meu fado? O de reencontrar a minha alma irremediavelmente portuguesa, nas mais estranhas e inesperadas circunstâncias? Será esta a minha sina? A de te reconhecer, meu velho e inesquecível Portugal, na tua pureza matricial, nos mais remotos lugares? Que assim seja! Cumpra-se a vontade das forças telúricas que me norteiam os passos e a existência. E se alguém te perguntar por mim, e estranhar esta minha errância, responde-lhe que o estar perto ou estar longe é um mero estado de espírito e que um coração arrebatado, em perpétua transmigração, não reconhece fronteiras nem distâncias capazes de lhe extirparem da memória as mais profundas razões do seu pulsar.

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10 DE JUNHO

Sou um daqueles raros privilegiados que já se cruzaram com o espírito do 10 de Junho. Não o 10 de Junho façanhudo e belicoso das paradas imperiais de outras eras. Não o épico 10 de Junho a cheirar ao ridículo nacionalismo da raça lusitana, nós que somos nobre miscigenação de tantos povos. Tão-pouco o 10 de Junho das Comunidades só relembradas ciclicamente em tempo de eleitoralistas discursos esvaziados de qualquer visão futurista. Hoje sei-o por experiência própria, o espírito do 10 de Junho foge de tão pomposas celebrações como o diabo da cruz. Refugia-se na alma simples do povo. Manifesta-se em raras ocasiões. Nos mais inesperados lugares. Espera pacientemente tempos melhores. Passou-se há alguns anos. Eu estava lá, na hora certa, no lugar certo. Em New Bedford. Numa tarde esmagada pela canícula. Em vésperas do 10 de Junho. A Casa da Saudade de New Bedford organizara o lançamento de um dos meus livros e eu, retardado por arreliadores contratempos, levara mais de oito horas para vencer a viagem de carro 63


entre Montreal e New Bedford. Já estava, para ser franco, alarmantemente atrasado. Além disso, perdido naquele dédalo de ruas, iria perder um tempo precioso antes que pudesse localizar a Casa da Saudade. Só um milagre poderia remediar a situação. Mas, para minha salvação, o milagre aconteceu. Ao dobrar uma esquina, um homem de cara curtida pela vida observava o vulto hesitante do meu carro. Com o ar sereno de quem está ali à espera, de mangas arregaçadas para cumprir uma missão. “Este tipo tem cara de português”, pensei, talvez influenciado pelo facto de saber que metade da população daquela cidade piscatória é de origem portuguesa. - O senhor sabe onde é a Casa da Saudade? perguntei-lhe em português. A cara requeimada de pescador rasgou-se num sorriso aberto. A resposta, pronta na ponta da língua, chegou-me no melodioso falar açoriano: - Ainda fica longe daqui. Quer que o leve lá? – E ainda mal as palavras estavam ditas, já estava sentado a meu lado, pronto para me servir de cicerone. O homem tinha razão. Ainda nos fartámos de andar. Sozinho nunca daria, a tempo e horas, com o sítio. Saíra-me a sorte grande. Mas eu começava a inquietar-me pelo meu benfeitor. 64


- Agora, tão longe, como é que vai voltar para trás? Que maçada lhe dei! - Não se preocupe comigo. O tempo dá Deus de graça. Olhe, é aqui esta casa. Preparava-me para me desdobrar em mil agradecimentos mas já ele, lesto, saltara do carro. - Qual é o seu nome? – mal tive tempo de perguntar. Os olhos bons e serenos do homem cruzaram-se com os meus. - José Pacheco. E desapareceu. Não, aquele homem, com quem o destino me cruzara os passos, não era o José Pacheco. Apostava a vida em como era o espírito do 10 de Junho.

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CARTA PARA PORTUGAL

Caro amigo Antes de me sentar para te escrever, pus um CD da Amália a tocar. Sim, sim, da Amália! Rio-me aqui sozinho, divertido, ao imaginar a tua cara de espanto. É verdade, podes crer, agora também gosto de fado. Como aliás já gosto de muitas outras coisas a que antigamente, antes de emigrar, não ligava nenhuma e até tinha mesmo declarada aversão. Seria demasiado longo e talvez infrutífero tentar explicar-te as premissas desta mudança tão radical. Talvez lá mais para o fim da carta, comeces a ver uma luzita ao fundo do túnel. Aceita, pois, por agora, sem objecções, o facto consumado: gosto de fado, adoro fado. Neste preciso momento, a voz cristalina e sem par da grande diva desliza-me pela alma como uma cascata refrigerante de diamantes: (...) Dizem as velhas da praia Que não voltas. São loucas! São loucas! (...) Perguntavas-me na tua última carta, com uma ponta de inquietação, bem o percebi, se tencionava

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regressar, algum dia, a Portugal, pondo assim um termo a esta já tão longa aventura da emigração. Que resposta te poderei dar? Será a emigração uma viagem sem regresso? Certamente, na grande maioria dos casos. E os números nus e crus das estatísticas estão lá para comprová-lo. Regresso! Palavra de mil alquimias. Nos primeiros tempos, a sua evocação é abençoado remédio contra os males da saudade e do desenraizamento. Depois, à medida que novas raízes começam a rasgar húmus imprevistos, transforma-se, sem nos darmos conta disso, num espinho cravado nas carnes, num agente perturbador da paz de espírito. Como todos aqueles que um dia partiram do chão que os viu nascer, a minha firme intenção era regressar o mais rapidamente possível. Cinco anos? Dez anos? Já nem me recordo com precisão dos prazos então estabelecidos. Mas, como diz o ditado, o homem põe e Deus dispõe. E tortuosos são os caminhos da vida. Imprevistamente, estas terras alheias, onde nos nasceram e cresceram os filhos, começam, num impreciso e decisivo momento, a ser também nossas e, quando nos apercebemos disso, é irremediavelmente tarde. Já então, tal como cantou o Poeta, temos a alma pelo mundo em pedaços repartida e o sonho do REGRESSO, miragem cada vez mais esfumada e inalcançável, perde-se 67


definitivamente nos insondáveis espaços míticos do imaginário colectivo da diáspora. É um enorme choque, acredita, esta constatação. Mas ninguém pode viver eternamente paredes meias com o desespero. Finalmente, após longa travessia do deserto, num belo dia de todas as graças, um subtil e poderoso mecanismo de sublimação põe-se lentamente em marcha. É então chegada a hora de, estoicamente, fazer das tripas coração e agarrar agulha e linhas para remendar o rasgão que nos dilacera a alma. (...) Eu sei , meu amor, que nem chegaste a partir Pois tudo em meu redor me diz Que estás sempre comigo (...) No meu caso pessoal, a mais balsâmica das respostas para as minhas apreensões e simultaneamente para a tua pergunta descobri-a na mensagem inconformista da letra deste fado. Como poderei regressar se nunca parti verdadeiramente de Portugal? Estás a compreender o paradoxo? Portugal, meu amigo, nunca deixou de estar incrustado no meu espírito, no decorrer da minha errância por este mundo além. Adivinho, sinto a sua presença constante no pulsar da carne, no sussurro da memória, nos sobressaltos dos sentidos, no latejar das emoções, na voz da alma. 68


Sim, podes crer, nunca cheguei a partir definitivamente de Portugal, ou talvez melhor, recorrendo a uma imagem mais convincente, quando parti trouxe Portugal comigo, na mala, para, companheiro indefectível, me fazer companhia nas horas de solidão. Então agora que vivemos esta espantosa revolução das comunicações que alterou drasticamente a geografia do mundo e que encurtou as distâncias físicas e afectivas, a minha convicção é cada vez mais profunda e sustentável. Basta chegar a casa e ligar a televisão ou o computador para que Portugal, como um deus omnipresente, como um génio da lâmpada, desperte e invada as mais recônditas fibras do meu corpo sempre pronto para ser lavrado e semeado pelas forças telúricas que tutelam a minha existência. Será pois despropositado falar de regresso. Não queiras ser, com a tua pergunta dilacerante, uma das velhas da praia...da minha vida. Para quê subverter um equilíbrio tão penosamente conquistado? (...) Dentro do meu peito Estás sempre comigo. (...) Compreendes agora por que razão gosto de fado? E por que, entre todos, o meu predilecto seja o Barco Negro da Amália? 69


Como sempre que me é possível, aí estarei este verão em Portugal para mais um cíclico regresso às origens e aos prados floridos da infância. Até lá, recebe um grande abraço deste teu amigo.

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De Cicouro ao Pico da Pedra

Já em tempos escrevi que há certas pessoas escolhidas, que vieram a este mundo para desfraldar ao vento a bandeira da mudança, para agitar as almas atoladas no marasmo dum quotidiano sem história. São elas o fermento da transformação, tocadas pelo condão, pela graça, de dar forma ao informe, voz ao silêncio, luz às trevas, sentido ao incompreensível. O Onésimo Teotónio Almeida, com todo o vigor da Palavra que o habita, é uma delas. E mais uma vez o comprovei. Há tempos, enviou-me um e-mail perturbador, que virou toda a minha vida do avesso. Rezava mais ou menos assim: Manel, em recente viagem a Portugal andei por terras de Miranda do Douro e fui até Cicouro, à sua terra. Perguntei por si mas disseram-me que nos últimos anos já não aparecia, que ficava por Miranda quando ia a Portugal. Era verdade. A verdade nua e crua. Incompreensivelmente, sem justificação, nos últimos anos, vezes sem conta me ficara por Miranda, sem coragem para galgar os escassos vinte 71


quilómetros que me separavam da terra que me vira nascer. Assaltou-me uma mescla de tristeza e de vergonha. Compenetrado do meu indigno e imperdoável comportamento, logo ali, frente ao computador e ao e-mail apontado ao coração como uma adaga acerada fiz a promessa: este ano irei a Cicouro. E cumpri. Foi uma peregrinação purificadora e catártica. Calcorreei ruas empedradas e tortuosas. Andei por todo o lado. Mostrei-me. Encontrei familiares perdidos. Estampei na fronte um cartaz que berrava: estou aqui, o filho pródigo voltou, ainda não vos esqueci. Sempre num turbilhão, voraz, vasculhei todos os recantos do meu imaginário infantil: a casa onde nasci; a fonte de chafurdo onde tantas vezes me dessedentei; o bebedouro dos animais onde, em dia aziago, quase me afogara; galguei velhos caminhos poeirentos castigados pela canícula; embrenhei-me pela imensidão dos trigais dourados; sorvi o perfume inebriante dos braçados de flores silvestres; refresquei-me nas sombras frondosas dos castanheiros; numa alegria a irromper do fundo da memória da infância, assaltei pombais encarrapitados nos montes e alvorocei a paz das revoadas de pombos selvagens. Só quando o fôlego me faltou e as pernas fraquejaram de vez , é que me recolhi na abrigada 72


da Casa do Povo onde enxuguei o suor da fronte e saboreei uma cerveja entre dois dedos de conversa com um pequeno grupo de jovens arreigados aos valores da terra ancestral. Jovens generosos que ainda acreditam que aquelas aldeias raianas, quase desertas, poderão um dia renascer das próprias cinzas como a fénix da lenda e alcançar uma prosperidade que parece tão longínqua. Finalmente, sentia a alma apaziguada mas o meu esgrimir de emoções com o espírito do Onésimo não se ficou por aqui. Se ele tivera a coragem de se aventurar até à minha aldeia natal perdida no planalto mirandês, certamente uma das últimas fronteiras de Portugal, também eu, em réplica exemplar, iria visitar a Pico da Pedra, a terra que o viu nascer. Assim acertado na minha cabeça, na viagem de regresso a Montreal, detive-me um punhado de dias em S. Miguel e, numa pausa dos maravilhosos passeios pela ilha deslumbrante, talvez um dos últimos paraísos deste mundo tão violentado, foi uma enorme alegria para mim deambular, sem pressas, a sorver a história de cada pedra, pelas ruas adormecidas e tranquilas do Pico da Pedra. Lugar onde a paz parece continuar a reinar como em 1936 quando Luís Dias Martins Carreiro compôs o Hino do Pico da Pedra: (…) Vivemos em doce vida! 73


Numa paz doce e ditosa. Nesta aldeia tão querida, Terra linda tão formosa. (...) Já agora acrescento, num último retoque, em jeito de florilégio, que na aprazível e polivalente Casa do Povo está instalada uma interessante biblioteca denominada precisamente “Sala de leitura Onésimo Teotónio Almeida”. Prova real de que a aldeia não esqueceu um dos seus mais dilectos filhos. Após tão frutuosa viagem, tudo se parecia conjugar para um regresso tranquilo a Montreal. Mas (in)felizmente a ambição dos homens é insaciável. Por mais que a tentasse afugentar, não me saía da cabeça a soberba descrição que no livro Onze Prosemas o Onésimo faz da fulgurante aparição do Pico com que se deparou, inesperadamente, numa das suas frequentes viagens aéreas entre as duas margens do seu rio Atlântico(1). Regalem-se com este suculento naco de prosa, a evocar um realismo mágico de qualidade insuperável que um Borges ou um Garcia Marques não desdenhariam assinar: O comandante avisa We are presentrly fflying north of Terceira Azores quando eu julgava deveríamos andar a roçar os gelos da Gronelândia e súbito 74


uma força atravessa-me a espinha endireita-me na cadeira e faz-me abrir uma nesga da minha persiana (...) Nada de ilha e nem sequer mar só nuvens e mais branco e de repente uma alucinação Não é a serra de Santa Bárbara essa não fura assim este algodão espesso mas o Pico ele mesmo ou a ponta dele um cone de azul plantado sobre aquela imensidão de branco sereno e altivo imponente e majestático altaneiro e belo (...)Apetece-me chamar os vizinhos dar um berro no microfone ABRAM AS PERSIANAS E VEJAM ESTE ESPECTÁCULO mas ninguém mesmo ninguém sabe ou sequer preocupa em saber o que vai lá fora são todos estrangeiros lêem livros em inglês vêm de Londres e vão para New York O que lhes poderá dizer a treta de um triângulo azul escanchado nas nuvens e já me dá vontade de partir a cara a quem na minha cabeça se referiu ao Pico em termos assim tão grosseiros(...) É de ficar com água na boca, reconheçam lá. Já agora que estava em maré alta de emoções e mesmo de sorte, levando mais longe o meu arrojo, talvez também eu pudesse regalar-me com tão suculenta iguaria do espírito. Nesta feição, enquanto ainda sobrevoava o arquipélago dos Açores, eu bem esticava o pescoço e espiolhava o espesso manto de nuvens na 75


esperança de que o Pico tivesse forças para irromper por ali acima e mostrar-se em toda a sua magnificiência ao meu olhar deslumbrado. Mas de nada me valeu o esforço hercúleo. Talvez por só os escolhidos dos deuses poderem usufruir de tal privilégio. Talvez por a minha crença não ser suficientemente forte. As nuvens continuavam espessas, o céu escurecia cada vez mais a pressagiar tempestade. Finalmente, num último golpe de misericórdia, a voz monocórdica do comandante do avião anunciou que iríamos atravessar uma zona de grande turbulência e que deveríamos apertar os cintos de segurança. Adeus gloriosa alucinação do Pico. Era preciso render-me à evidência. Baixar os braços. Encarar de frente a realidade. E reconhecer que o Onésimo continua imbatível. (1) Ao fim de vinte e cinco anos de fazer-me ponte sobre o Atlântico, pé-cá, pé-lá, desembarcando em Lisboa, Ponta Delgada, Lages, ou Boston, o oceano tornou-se bem mais estreito e instalou-se num quotidiano de onde se vê sempre a outra margem, com as ilhas de permeio a facilitarem o salto.

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VINHO DO PORTO

No outono de 1679, um barco com um carregamento de vinho do porto largou a cidade do Porto com destino a Londres. O que nessa época era frequente, a meio da viagem, foi atacado por um corsário francês a custo do qual conseguiu escapar, navegando para o alto mar. Acossado por violenta tempestade, afastou-se imenso da sua rota pelo que o capitão tomou a decisão de ir fundear em S. João da Terra Nova para reabastecimento e repouso da tripulação. Impossibilitados de prosseguir viagem devido ao rigor do inverno, só na primavera seguinte se fizeram de novo ao mar. Finalmente, chegados a Londres, constataram, com natural espanto, que a prolongada estadia na Terra Nova tinha dado ao vinho um aroma e um sabor agradavelmente diferentes. Desde então, a companhia proprietária do carregamento passou a enviar anualmente grandes quantidades de vinho para envelhecer na Terra 77


Nova. Assim surgiu este celebrado porto e esta espantosa lenda perpetuada nos rรณtulos das garrafas dos portos Newman's.

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QUENTES E BOAS

Tempos houve em que Portugal respirava ao ritmo duma miríade de pregões que já fazem parte integrante do nosso imaginário colectivo. E feliz é o povo que conseguiu amealhar tamanha riqueza e incorporá-la na sua identidade milenar. Quem não recorda hoje com saudade e ternura os pregões das peixeiras, dos ardinas, dos cauteleiros e das mais variadas figuras típicas que, na azáfama do ganha-pão diário, enchiam as ruas de Lisboa e das nossas cidades de sons, cor, luz e vida? Mas há pregões que resistem à voragem do tempo e do progresso. Quem quer quentes e boas, quentinhas, ainda hoje apregoam os vendedores ambulantes de castanhas assadas quando ciclicamente chegam as brumas do outono. Evocação que nos faz rebentar com saudades do cheiro a castanhas a saltar nos assadores de barro, dos novelos espessos de fumo acre que acinzentam ainda mais as tardes friorentas e envolvem num manto brumoso as calçadas tortuosas e polidas. Eterna inspiração para tantos poetas e pintores, esses caçadores de nadas tão grandes. Há dias, um poeta, - sim, só um poeta pode 79


aventurar-se a tal loucura - instalou uma carripana toda engalanada na Philippe Square, em pleno centre-ville de Montreal, onde vende castanhas assadas com a bravura dum semeador de sonhos. De tempos a tempos, para delícia dos transeuntes, toca uma sineta que ressoa estridentemente pelas esquinas da praça a arrebanhar os crentes para um qualquer ritual catártico. Não sei qual é o seu país de origem nem me interessa sabê-lo, mas pela profundeza do olhar limpo adivinha-se que é homem que viu muitos lugares e muitas almas. E que sabe alguma coisa acerca das fomes que consomem as criaturas transviadas pelas veredas do mundo e da vida. Por três dólares, comprei um cartucho de castanhas que recolhi na concha das mãos com a emoção de quem segura um recém-nascido. Minto, só agora reconheço que aquilo não era um cartucho de castanhas mas sim um rutilante poema que se escondia aos olhos menos atentos. Três dólares por um poema tão belo. Mas que pechincha! Pelo sorriso enigmático que lhe arqueou os lábios e lhe acendeu fogueiras nos olhos, desconfio que o vendedor-poeta adivinhava a razão da minha emoção e que me lia descaradamente na alma como num livro aberto. A avaliar pela fraca afluência de compradores, pode o negócio ser fraco e de pouco

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futuro, mas enquanto durar, estou certo que o malandro se deve divertir Ă farta, lĂĄ isso deve.

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O EMIGRÊS

“Vai ao beisemento e tira da frisa o paquete de fresas que está a frisar, Antes de montares checa se os fusos estão a marchar.” Mas que raio de linguagem è esta?! Perguntarão num misto de espanto e indignação os leitores menos avisados. Depois, passada a primeira reacção, muitos rirão abertamente da ignorancância dos pobres emigrantes que mourejam por terras alheias, e outros, mais atreitos às coisas do espírito, com um sorriso displicente ou uma ruga de preocupação na fronte, consoante o momentâneo estado de alma, não perderão a oportunidade para dissertar sobre a importância da preservação da língua materna e sobre os traumas irreversíveis originados pelo repúdio das raízes culturais. Nem uns nem outros terão razão para tão extremas reacções e, desculpem a franqueza, estão a demonstrar uma crassa ignorância da realidade da diáspora. Na verdade, o texto que abre esta crónica é uma pequena mostra de “Emigrês”, na sua variante quebequense e que traduzido para português, resulta, mais ou menos nisto: “Vai à cave e apanha da arca frigorífica o pacote de morangos que está a

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congelar. Antes de subires verifica se os fusíveis estão em bom estado.” Segundo o linguista Mayone Dias, escritor e professor na Universidade da Califórnia, em Los Angeles, o Emigrês é o último dos dialectos portugueses e “o seu maior pecado (se pecados linguísticos existem) é a sua modernidade. Seja quais forem as atitudes, os preconceitos mesmo, que se geram à volta do emigrês, um facto inelidível, é que ele constitui o mais recente e, no conjunto das suas variáveis, o mais substancial de todos os dialectos portugueses e como tal deve ter jus a uma consideração que lhe mereça sérios estudos.” Confrontados diariamente com outras línguas e outras culturas e ainda segundo as palavras de Mayone Dias, “em termos linguísticos a experiência migratória representa tanto um processo de expansão como de contracção vocabular. Por outro lado, adquire-se um repositório léxico compatível com as novas vivências existências vivenciais, mas por outro lado perde-se grandemente toda a faixa referente a actividades de que o emigrante se vai desvinculando.” No meu caso pessoal, com quase vinte anos de errância, por vezes já me vejo em palpos de aranha para tricotar um texto em português mais ou menos escorreito. Ainda não há muito tempo escrevi um artigo, para um jornal local, que falava das naus englutidas por vagalhões assanhados. Foi a 84


minha mulher que me assinalou a monstruosidade daquela “englutidas”, flagrante decalque do francês. Meio envergonhado, lá me resignei a substituir o termo poe “engolidas” ou “deglutidas”, já não me recordo exactamente. Contudo, aquela palavra “englutidas” era, para mim, uma palavra muito mais melodiosa e viva do que a tradução literal encontrada. Confesso que me ficou atravessada na garganta. Mas quem sou eu para enriquecer a língua portuguesa com novas palavras?

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25 DE ABRIL

Dia 26 de Abril de 1974. Manhã soalheira de primavera. Em Paris, na Étoile, à volta dum quiosque que vendia jornais portugueses, formara-se uma pequena multidão que comentava, em balbúrdia, os históricos acontecimentos que se desenrolavam em Portugal. Foi quando um velhote, de rosto sofrido, e olhar em fogo, ergueu o jornal como uma bandeira e gritou para a turba: - Agora os jornais já podem dizer a verdade. Só então, pela força descomunal daquela mão a rasgar o véu azul da cidade, é que eu compreendi o milagre que me(nos) acontecera. Se afortunadamente, a natureza me tivesse prodigalizado o dom da versatilidade artística, ainda hoje: Se fosse pintor e pretendesse pintar um quadro alusivo ao 25 DE ABRIL, seria aquela mãobandeira que eu desfraldaria no céu azul da tela. Se fosse poeta e ousasse cantar a LIBERDADE, seria também aquela mão-relâmpago que eu cristalizaria na alquimia das palavras. 87


Se fosse escultor e me aventurasse a talhar uma estátua à FÉ NA HUMANIDADE, seria ainda aquela mão-raiz que eu arrancaria à cálida textura da madeira. Se fosse ourives e sonhasse eternizar o AMOR, seria, inevitavelmente, aquela mãonascente que eu bordaria em rutilante filigrana. Se fosse músico e compusesse um hino à PAZ, seria, mais uma vez, o ruflar daquela mão-asa que eu captaria no espaço sideral da pauta.

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Textos publicados em jornais e revistas, em Portugal e na diรกspora.

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