As belas manhãs

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Título:

As belas manhãs Autor:

Manuel Carvalho Capa: Pombais do nordeste transmontano Pintura de Majao (Maria João Sousa)

Dêpot Legal: Bibliothèque nacional du Québec - 2017 Bibliothèque nacional du Canada - 2017 ISBN 978-2-9813189-2-3 Reservados todos os direitos de edição e tradução

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MANUEL CARVALHO

As belas manhãs

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Do autor:

Saga - Editora Peregrinação - Cacilhas - 1989 Um Poeta no Paraíso - Éditions Luso-Montreal - 1994 Parc du Portugal - Éditions Luso-Montreal - 1997 À beira-Main - Éditions Luso-Montreal - 2003 O homem que falava com as flores - Edição do autor - 2015 Ti Vida - Edição do autor - 2016

Co-autor: Rostos, Olhares e Memória - UTL - Montreal - 2012 Rostos, Olhares e Identidade – A Voz de Portugal - Montreal - 2013

Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do Douro. Colares e a Batalha foram lugares que o viram crescer. Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria. Depois de muitas andanças, chegou a Montreal, no Canadá, em 1980. Tem colaboração literária espalhada por diversos jornais e revistas em Portugal e na diáspora.

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Aos meus netos, Alicia e Tiago.

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Pombais, dispersos pelos montes calcinados pela canícula e vislumbrados por entre a ramaria refrescante dos castanheiros em flor, esbatidos contra um céu dum azul intenso onde vogam farrapos de nuvens brancas e volteiam revoadas de pombos. É esta tela, de tonalidades vivas, que ressalta, onírica, do universo da minha infância.

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Os meus agradecimentos ao cicuirano Alcides Meirinhos pela preciosa ajuda nas traduções em Lhéngua Mirandesa.

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Uma bela manhã, o senhor Luís Carteiro, que uma vez por semana levava o correio de Miranda para Cicouro, mais os jornais que iam expressamente para os homens de letras, o senhor cabo Mendes e o Cagão, quatro léguas a pé, com chuva ou sol, quando não neve, apareceu com a notícia de que tinha rebentado uma revolução lá longe, nas capitais. O pobre homem até saltava de contente. - Desta vez nem senti o caminho, morto por vos trazer a novidade, rejubilava, agora é que me vão dar uma bicicleta e uma farda, conho, tenho a certeza. Se lá para baixo todos os carteiros têm farda, eu sou menos do que os eles? Então eu pensei que talvez o meu pai nunca mais me mandasse guardar as vacas e os medos lá para os lameiros, sozinha, a ver lobos por detrás de cada fraga e de cada olmo, o coração mais apertado do que eu sei lá e lembro-me bem, nessa noite rezei muito: - Buono Jasus, Nuossa Senhora de Fátima, guardai esses senhores de l'eisército que fazírun la reboluçon, para que you nunca más baia culas bacas pa ls cerrados i puoda anzonar culs outros ninos. O Cagão fez uns versos apropriados, lindos, lindos, e andava a declamá-los em voz alta pela aldeia, o papel dos versos numa mão, uma garrafa de aguardente na outra, os olhos grandes e vermelhos como sóis. - Biban los nuossos salbadores! Áh conho que ye agora que si ampeça la fartura! Desta si se acában los curas. Porque ele não queria crer em Deus, dizia que era tudo uma grande aldrabice dos padres para comerem e beberem regaladamente sem trabalhar. Contava-se que certa vez, perdido de bêbado, no regresso da festa da Luz, noite cerrada, no meio duma grande trovoada, começou a blasfemar: 9


- Pus se hai diabro que benga yá eiqui! - Veio um trovão tão grande como nunca se viu. - Ai, miu Dius, qu'el ben ende. - Até se cagou todo pelas pernas abaixo, por isso ficou até morrer com a alcunha de Cagão, nunca eu soube o seu nome de baptismo. - Bíban los nuossos salbadores!, não se fartava de repetir entre cada golada. Bebeu tanto, tanto que caiu, borracho de todo, em frente da porta da senhora Joana, mesmo em cima duma bosta fresca de vaca. Ali ficou a ressonar como um justo até que a mulher o foi buscar. - Se fusses antes tratar de l ganado, zgraciado, outro galho mos cantarie, resmungava ela, aos encontrões, lá conseguiu levá-lo para casa. Os homens ficaram toda a noite a falar no adro da igreja, esquecidos do trabalho e de tudo o mais. - Sabeis l que se passa?, perguntavam ao senhor cabo Mendes e ao senhor padre João. Eles também não sabiam grande coisa, não eram bruxos. - Conho, sabemos tanto como vocês. Estavam todos para ali como abelhas sem rainha, até que, por fim, o senhor cabo Mendes pensou para com os seus botões: “carago, eu sou a autoridade, tenho o dever de esclarecer esta gente.” Encheu-se de brio e resolveu mandar uma patrulha a Miranda saber o que se passava. - E vocês regressem às vossas casas, ordenou aos homens, porque o principal é haver ordem nestes momentos difíceis. - E não se esqueçam de rezar o terço pelos novos dirigentes, acrescentou o senhor padre João. Cada qual foi, sem mais palavras, para sua casa. Todos menos o senhor padre João, faz como eu digo não faças como eu faço, costuma-se dizer. O safado foi-se mas é meter na casa da Josefa que enviuvara de fresco, ainda não havia 10


seis meses. O povo até murmurava que o senhor padre João podia, pelo menos, ter esperado que o morto arrefecesse na cova. Depois disso, a Josefa teve dois filhos dele, quando cresceram um foi para a Guarda Fiscal e é hoje o comandante do posto de Constantim e o outro foi para o seminário e fez estudos mais avançados. Quando se apanhou com eles fez um manguito aos padres e foi para professor num liceu, para os lados do Porto. Não podiam negar o pai, a mesma cova no queixo e o nariz batatudo, tal e qual o senhor padre João. Este, quando morreu, foi muito reconhecido, deixou tudo o que tinha à Josefa e aos filhos, das melhores hortas da aldeia e uma casa nova que mandara fazer, já para o fim da vida. Mesmo agora não sei se há lá casa igual àquela, nem mesmo as dos emigrantes. No fundo, toda a gente gostava muito do senhor padre João. - El ye home, desculpavam-no, al menos assi, nun se mete culas mulhieres casadas nien culas rapazas casadeiras.

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Quando, no dia seguinte, mais morta do que viva, a patrulha regressou de Miranda, já o sol ia alto. O povo deixou tudo para se reunir no adro da igreja e ouvir da boca do senhor cabo Mendes o recado que trouxeram: - O exército vai pôr tudo na linha, berrou para se fazer ouvir, mas para isso é preciso muito trabalho, trabalho, trabalho. Agora o lema é Deus, Pátria e Família. O Cagão ficou vermelho como a minha blusa das festas e o senhor cabo Mendes prosseguiu: - Quem não seguir estas ordens à risca, vai parar com os ossos à cadeia, para exemplo de todos. O povo saiu dali de cabeça baixa. - Mas cumo dianho bamos nós a trabalhar inda más?, perguntava cada qual para os seus botões. Havia tanta tristeza à solta por ali que eu desatei a chorar amedrontada. Só me calei quando o meu pai me espetou um valente tabefe que me fez espichar o sangue do nariz. Quanto ao Cagão, nunca mais ninguém o ouviu dizer mal dos padres. Mudou tanto que, certo dia, para espanto de todos, foi perguntar ao senhor padre João se o queria para sacristão. Ainda chegou algumas vezes, poucas, a ajudar à missa, porque o senhor padre João desconfiou que ele andava a beber às escondidas o vinho da sagrada cerimónia e não era homem para se deixar enganar nos negócios. Afinal, não valeu a pena ter havido toda aquela inquietação no povo porque, no fim de contas, nada mudou. O Sol continuou a nascer, todos os dias, do mesmo lado, eu continuei a ir com as vacas para os lameiros, o senhor Luís Carteiro continuou sem a farda e a bicicleta e quem tinha pão comia, quem não tinha não comia. As pessoas até já desconfiavam que aquilo eram tudo tretas e que não se tinha passado nada. 12


Houve revolução, não houve revolução, estava-se nesta incerteza quando, passados alguns anos, o senhor Luís Carteiro tornou a aparecer com a esperança de que agora é que lhe iam dar a bicicleta e a farda porque quem passava a dirigir as finanças era um professor muito sábio, mais santo do que os santos. Todo o dinheiro lhe passava pelas mãos e ele é que punha e dispunha, tanto para isto, tanto para aquilo, e algumas migalhas teriam de sobrar para a farda e para a bicicleta, ou pelo menos só para a farda, já se contentava o pobre do homem. O senhor padre João, nas missas, não se fartava de nos pedir para rezarmos por aquele santo professor que tudo sacrificara por amor ao povo. Na minha mente de criança, eu desenhava-o de grandes barbas brancas e descalço como os santos da igreja. Mais tarde, quando fizeram a escola e penduraram o retrato dele na parede, apanhei uma grande desilusão. Afinal não tinha nada cara de santo, cá com um nariz mais afiado do que o bico das galinhas e olhos de ave de rapina que me metiam medo. A questão da escola foi uma grande balbúrdia que alvoroçou todo o povo. Certa manhã, assim sem mais nem menos, apareceram na aldeia uns senhores muito bem postos de Miranda e espalhou-se logo a notícia que andavam a escolher o melhor local para construir uma escola. O que o meu pai não gritou nessa noite, santo Deus! - Quien ye que agora me bai a guardar las bacas? Foi a primeira vez que lhe vi lágrimas nos olhos, lágrimas de raiva porque espalhou-se logo a notícia que os garotos tinham de ir todos aprender as letras. - Para que dianho sirbe los garotos daprandéren las letras? Nuossa Senhora mos balga, anton criemos los filhos pa ls roubáren a la giente? Para arar un huorto ou para segar l centeno nun fai falta ir a scuola. O senhor padre João bem se fartava de pregar na missa, chegou a ameaçar as pessoas com as chamas do in13


ferno, mas ninguém o escutava, andava tudo com o diabo no corpo. O Cagão também fez uns versos em defesa da construção da escola, qualquer coisa assim, se a memória não me falta : "A escola é um ninho, cheio de amor e carinho, onde a criança inocente vai aprender a ser gente." - Mirai solo l çcaramiento deste madraço, riam-selhe na cara, an beç de fazer pula bida passa los dies cul nariç anfilado ne ls jornales i inda ten la pouca bergonha de benir parqui a dar cunseilhos a los outros, ai de nós se le seguíssemos l'eisemplo, la fame que haberie por ende, inda stá para nacer l finório espabilado que seia capaçe de anchir la barriga de letras. A história estava feia a valer e enquanto os obreiros andaram a construir a escola no cimo da aldeia, nas eiras, o senhor cabo Mendes teve de lá meter sentinelas de noite, com receio que algum maluco, mais afoito, fosse pegar fogo àquilo tudo. - Ai daquele que levante um dedo contra o património do Estado, ameaçava, mais para meter medo do que para outra coisa. O senhor cabo Mendes, no fundo, era um bonacheirão, o que mais lhe interessava na vida era beber uns copos de vinho e petiscar uns nacos de salpicão e presunto com os amigos. Mas o dever é o dever, pagavam-lhe para fazer aquele trabalho, que remédio tinha ele se não procurar amedrontar as pessoas. Como é bom de ver, nós, os garotos, é que nos amolámos. Construiu-se a escola, chegaram os professores, o senhor professor Sousa e a senhora dele, a senhora professora dona Eulália e se não fazíamos os trabalhos da escola, apanhávamos palmatoadas de criar bicho, com aquela régua de carvalho, grossa de dois dedos que só de vê-la ficávamos 14


a bater os queixos como castanholas e que nos deixava as mãos inchadas como salpicões. - Toma, malandra, para estudares a lição. Se não íamos buscar as vacas ao lameiro a tempo e horas, era em casa que as pagávamos, a vara de marmeleiro até assobiava pela espinha abaixo: - Toma, sue preguiciosa, para daprenderes a respeitar las ordes de tou pai. Apanhei tantas que uma noite caí de joelhos aos pés da cama e, lavada em lágrimas de sangue, implorei ao santo da parede da escola que me levasse deste mundo para outro melhor porque já não podia mais com tanta pancada dum lado e doutro. Mas o santo, com outras coisas mais importantes em que pensar, não fez caso da minha prece e lá continuei naquele calvário que não desejava nem para as almas pecadoras do inferno. A situação não podia continuar assim por muito mais tempo e tinha de rebentar por algum lado. Certa manhã chuvosa, o senhor professor Sousa devia ter dormido mal a noite e desatou a malhar em nós como em palha de centeio, as reguadas estalavam-nos nas mãos como trovões. - Dois vezes dois?, toma, grande burra, sete menos cinco?, hoje rebento contigo. Era o fim do mundo por aquela escola fora, ninguém sabia se ia sair inteiro dali. Ao apanhar a quinta reguada, atirada com fúria tresloucada, para espanto da criançada toda, que seguia a cena de boca aberta, o Zé soltou um guincho como um porco na matança e quando a régua já descia, como um pássaro negro, para mais uma bicada, levantou a grande bota cardada, que herdara do irmão mais velho, e aplicou tal pontapé nas partes baixas do professor Sousa que a régua voou sem norte por cima das nossas cabeças e foi estilhaçar, com um grande estrondo, o vidro do quadro do tal santo que nessa altura já sabíamos chamar-se senhor professor doutor Oliveira Salazar. Ficou o santo meio destroçado, ficámos nós todos com o coração a bater no peito como um 15


cochicho engaiolado, ficou o senhor professor Sousa branco como um lençol de linho, a torcer-se de dores. Quanto ao Zé, esse saltou como uma lebre pela janela aberta e já só o vimos a correr pelas eiras acima, como se levasse fogo no rabo. Chegou a noite e não havia sinal de vida do rapaz. Os pais, os irmãos, os avós, a aldeia em peso, toda a gente o procurou, em vão. Correram-se os currais, as capoeiras, os pombais, olhou-se no fundo dos poços, ninguém o encontrou, já se ouviam gritos de desgraça pela aldeia. Foi então que o senhor cabo Mendes pôs ordem na confusão: - Vamos fazer uma batida pelos montes. Soltaram-se os cães, os homens agarraram as espingardas, acenderam-se as candeias, os montes encheram-se de gritos e latidos, como nas batidas aos lobos. Só encontraram o Zé, já o dia tinha nascido, lá para o Carreirón de Mobeiros, perto da raia, tolhido de frio e medo, escondido como um coelho num matagal de urzes. Ficou, para o resto da vida, com um brilho estranho nos olhos e meio tolhido da língua. Quando os homens regressaram à aldeia, o senhor professor Sousa foi esperá-los de mãos nos bolsos e um sorriso trocista pousado nos lábios. - Então o malandro já apareceu? O pai do Zé cravou a navalha do olhar nele, subiu-lhe a raiva à boca e falou como uma voz que arrefecia o sangue nas veias: - L senhor porsor Sousa nunca más torne a tocar nun pelo de l miu filho. O senhor professor Sousa olhou-o nos olhos, parecia que ia crescer para ele mas depois derreteu-se todo como manteiga, meteu o rabo entre as pernas e fugiu para casa, perseguido pelas ameaças do povo em peso. - Ordem, ordem, berrava o senhor cabo Mendes. O senhor professor Sousa e a senhora professora dona Eulália não ganharam para o susto e passado pouco tempo pediram a transferência para outro lugar mais seguro. Como 16


lá por Miranda não arranjaram outros professores com coragem para se irem enterrar naquele buraco perdido do mundo, a escola fechou as portas. O meu pai até se emborrachou, alegre como um pardal, quando lhe deram a notícia. - Loubado seia Dius Nuosso Senhor qu'inda hai justícia neste mundo, desabafou como se lhe tirassem um peso de cem arrobas do peito, los filhos tornam a ser nuossos.

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Fiquei com a segunda classe coxa e que, mesmo assim, já chegava para contar os laparotos na coelheira e para saber ler e escrevinhar alguma coisa. Mas ler o quê?, se lá na terra nunca me passou pelas mãos o luxo dum livro ou dum jornal. Valeu-me, para não esquecer o pouco que aprendi, que a nossa vizinha, a tie Felismina, tinha o marido no Brasil e, quando me apanhou com algum entendimento das letras, agarrou-se a mim como carraça às orelhas dum cão, sempre a choramingar para eu lhe escrever as cartas para o marido. Eram cartas muito aborrecidas, molhadas de lágrimas mas também muito corajosas. Nesse tempo ainda não tinha entendimento para compreender essas coisas e lhes dar o devido valor. Só agora, mais madura, é que admiro a coragem da senhora Felismina e de tantas mulheres como ela que, com os maridos lá longe, para o fim do mundo, que só apareciam pela terra para lhes fazer mais um filho, suportavam todas as responsabilidades duma casa, o fabrico das terras, a criação dos filhos, sempre com a boca cheia de queixumes mas com uma força que muitos homens gostariam de ter. Enfim, eram cartas muito compridas, que me deixavam os pés cheios de formigueiros de estar para ali parada tanto tempo. Ainda hoje, passados tantos anos, recordo mais ao menos o que diziam, mais pormenor menos pormenor, pareciam todas cópias umas das outras: “Manuel, Deus queira que te dês bem nessas terras tão longe, para governares a família, sabes, quem morreu foi o tiu Luís, com um ataque, já lhe tinha dado outro, há um mês atrás, ainda o levaram ao curandeiro de Alcanices mas já não havia nada a fazer, foi melhor assim do que ficar tolhido e só dar trabalho aos filhos, dou-te também a novidade que um rapaz de S. Martinho, o filho mais novo do tiu Coxo, 18


anda atrás da nossa rapariga, o rapaz é trabalhador e o pai como tu sabes tem boas terras, mas antes de lhe dar o consentimento quero saber a tua ideia, tu é que mandas, o nosso Alfredo vai este mês assentar praça em Bragança, e diz que depois quer ir para a Guarda Fiscal, assim Deus o ajude, matámos fez ontem oito dias, o porco estava bem cevado, pesava para cima de cinco arrobas e deu um bom fumeiro, só tive pena que não estivesses presente no dia da matança, a vida dos pobres é assim, temos de nos resignar, quem morreu também foi a Deolinda, caiu dum olmo quando andava a apanhar folhas para os porcos, partiu o pescoço e morreu logo, deixa os filhos tão pequenos que mete dó, mas lá se hãode criar com a ajuda de Nosso Senhor Jesus Cristo, o povo diz que com o novo governo isto vai tudo mudar para melhor, parece que quem manda em tudo é um professor muito esperto que é devoto a Nossa Senhora, isto é o que dizem, que eu ainda não vi nada, o que eu quero é que me deixem governar a casa como até aqui, recebe muitos beijos dos teus filhos e da tua mulher, o senhor Paco manda-te também cumprimentos e dizem que também vai para aí para o Brasil é o António Preto, que Deus o guarde e o guie e que, pelo menos, lhe dê tanta sorte como a ti, é o mal que eu lhe quero, cá ficamos a rezar por ti e que Deus encaminhe sempre os teus passos para o bom caminho, já me esquecia de te dizer que comprei o lameiro da Urrieta Cuba ao senhor Praça, deilhe as duas notas como tu mandaste e prometi-lhe que quando voltes a escrever lhe entrego o resto do dinheiro, não sei se fizemos bom negócio ou não mas já está feito, agora cevada ao rabo.” E quando, já toda lampeira, me preparava para passar a cola do envelope pela língua, a tie Flismina queria sempre acrescentar mais qualquer coisa: - Ten pacéncia, mie filha, acalmava-me, esta cabeça yá ampeça a quedar bielha. E lá saía mais uma ninharia, notícia do nascimento ou de morte, relato de baptizado ou casamento, facadas mor19


tais nos meus magros tempos de brincadeira. Quando, finalmente, conseguia fechar a carta e lhe colava o selo, a senhora Felismina recebia-a na concha das mãos como se fosse o seu próprio coração em carne viva: - Dius te lo pague, mie rica filha, Dius te pague l grande fabor que me faziste. E lá vinham duas lágrimas, grossas como punhos, pôr em perigo o meu trabalho de duas gordas horas. - Tenha cuidado, tie Felismina, olhe que borra a direcção, afligia-me. A senhora Felismina enxugava as lágrimas à manga da blusa, ajeitava o lenço preto na cabeça e fazia-me uma festa na cara. - L que you piedo aa Dius para ti, mie filha, ye que nunca tengas l miu çtino, ser biúda sien l ser. Mas já mal a escutava, morta por me juntar à garotada que, lá para as eiras, enchia as tardes de algazarra. Principalmente no Verão, quando os dias pareciam não ter fim e as andorinhas voavam, doidas, por cima das nossas cabeças, naquela paz dos princípios de Julho antes do inferno das ceifas e das trilhas. - Esta malandraige até se squece de la cena, resmungavam as nossas mães. E não poucas vezes, era a toque de chibata, já a noite caía, que regressávamos a casa.

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Entretanto, eu ia medrando, já estava uma mulher feita, com um bom palmo de cara e os peitos a encher a blusa. Os rapazes começavam a rondar-me a porta mas o meu pai trazia-me de rédea curta, nem queria ouvir falar em namoros. Precisava muito de mim para trabalhar a seu lado nas terras porque o meu irmão ainda era muito pequeno para essas lidas e a minha mãe desde que tivera o meu irmão nunca mais fora a mulher de antigamente, mal podia com uma gata pelo rabo, nem os curandeiros espanhóis lhe atinavam com o mal. Diziam que eram os ovários descaídos mas as mezinhas e rezas que lhe receitavam não remediavam grande coisa, um dia melhor, outro dia pior, sempre cheia de dores de cabeça e amarela com um círio do altar. - Tenes muito tiempo para namorar, resmungava o meu pai, de nariz torcido, quando via algum rapaz a cheirar à porta, los rapazes nun se acában. Mas a verdade é que também eu não ligava a nenhum. Isto é um modo de falar porque, desde os meus quinze anos, eu só tinha olhos para aquele ceifeiro trigueiro de olhos negros e riso de malandro que por altura das ceifas chegava à aldeia de viola ao ombro e a boca cheia de cantigas. Todos os anos, certos como as andorinhas, aquele rancho crestado de homens e mulheres aparecia como que por encanto. Dormiam nos palheiros e ajudavam nas ceifas a troco duns alqueires de pão e do naco de toucinho para a sopa, que dinheiro não havia para lhes pagar. Contavam histórias de arrepiar, de fome e miséria lá para as Beiras, das terras donde vinham. - Vocês são uns felizardos, invejavam-nos, uns mais, outros menos, aqui todos têm qualquer coisa de seu e um

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tecto onde se abrigar, quanto a nós, olhem bem para esta desgraça, de nosso só temos a roupa que trazemos vestida. Nós víamos os trapos remendados e encardidos que lhes cobriam os corpos e sentíamo-nos uns fidalgos com a nossa pobreza, tremíamos com a revelação de que pudesse haver tanta pobreza por esse mundo além. Mal acreditávamos que outros filhos de Deus, feitos com o mesmo barro que nós, não tivessem um pedaço de terra onde plantar uns pés de couve e, chegada a hora da verdade, onde cair mortos. Mas, apesar de se vestir de trapos como os outros, o António tinha aquela viola e uma voz que subia rouca dos palheiros naquelas noites de Verão e que, misturada à luz da lua cheia e ao miar das gatas com o cio, enlouquecia as raparigas e ateava ódios de morte no coração dos rapazes da terra. - Un die bás aparecer culas tripas al sol, ameaçavam-no. Eu ainda era praticamente uma criança e ele nem me olhava para a figura, mas se alguma vez me tivesse acenado com um dedo eu tinha deixado tudo, casa, pais, terra, e era capaz de segui-lo até ao fim do mundo. Felizmente que assim não o quis o destino e no verão dos meus quinze anos o António não apareceu com o rancho. - Matam-no, contaram os companheiros, o desgraçado meteu-se com uma mulher casada, lá para os lados de Foz-Côa, e o marido, desvairado, espetou-lhe uma forquilha nas tripas, nem teve tempo de rezar um padre-nosso de arrependimento por em vida ter desencaminhado tanta mulher. E contaram histórias sem fim de raparigas enganadas e zorros nascidos como cogumelos, pelas terras onde passavam. - Para nós foi um bem ele ter morrido, confessaram os homens. Já havia lugares onde éramos recebidos à pedrada. Mas os olhos profundos e magoados das mulheres do rancho diziam que tinham uma opinião diferente. Pela minha 22


parte, chorei às escondidas duas lágrimas de pena mas, como diz o povo, o tempo tudo lava e passado pouco tempo já mal lhe recordava os traços da cara. Ficou-me dessa mágoa a decisão de que quando casasse era para abalar da terra, não queria passar o resto da minha vida naquele lugar tão perdido do mundo. Desconfio que essa ânsia de ver outras coisas era herança do meu avô, do lado da minha mãe, que abalara da aldeia atrás duma cigana, para nunca mais voltar. Já tinha filhos crescidos e uma bonita idade para ter juízo mas os olhos da cigana deram-lhe a volta ao miolo. Desde então, quando algum bando de ciganos acampava nas redondezas, a minha avó bem perguntava por ele mas ou não sabiam nada ou não lhes interessava responder, faziam-se desentendidos, mudos como pedras. Constou-se que ainda o chegaram a ver na festa do Naso, na feira dos burros, mas talvez fosse engano ou vontade de dar à língua, porque ninguém chegou à fala com ele. As pessoas estão sempre a querer ver o que nunca existiu e há sempre alguém, mais endromineiro, capaz de inventar histórias do diabo para entreter os serões no inverno. Certo é que a minha avó morreu sem lhe tornar a pôr os olhos em cima e lá em Cicouro, quando eu fazia alguma travessura, as pessoas diziam-me logo: - Sales-t'al tou abó Bonifácio, esse tamien nunca podie star quieto, siempre cula cabeça nas nubres.

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Foi então que os espanhóis nos levaram a triste notícia que tinha rebentado uma guerra civil muito grande em Espanha. - Muorre-se giente cumo moscas, relatavam, com os olhos esbugalhados de pavor. E de todos os povos em redor, Moveiros, Arcilheira, Alcaniças, Ceadeia, as pobres criaturas acorriam ao nosso lado, mais em busca do conforto das palavras do que doutra coisa qualquer, porque nós ainda éramos mais pobres do que eles e não lhes podíamos valer na grande desgraça que por lá ia. A tie Cassilda, que era espanhola de Alcaniças mas que se casara, há muitos anos, do nosso lado com o tiu Parreira, andava sempre com o lenço ensopado em lágrimas por causa dos dois irmãos que viviam em Madrid. - Los falangistas cercórun Madrid mas los republicanos stan çpuostos a lhuitar até a la muorte. Los mius armanos son republicanos, segredava-nos, com uma ponta de orgulho na voz. E pousando no regaço a roca com que todo o santo dia fiava lã, mostrava-nos a fotografia dos irmãos que trazia sempre consigo no bolso da saia. Eram dois homens já maduros, com um sorriso de rapazes e as espingardas erguidas no ar como bandeiras. - Ainda acaba por ser presa por causa desse retrato, avisou-a o Cagão. - Me cago en todos los fascistas, enfureceu-se a tie Cassilda, mostrando que lhe corria nas veias o mesmo sangue bravio dos irmãos. Por fim, pelas notícias que nos chegavam, os falangistas começaram a levar a melhor e os republicanos já fugi24


am aos montes para França. Para o nosso lado não se atreviam porque o governo português era tu-cá-tu-lá com os falangistas e entregava-os logo que lhes punha aa unhas em cima. Um dia, apareceram lá na aldeia dois fugitivos que perderam o norte, todos rotos, com uma cara de medo e de fome que era uma dor de alma. O senhor cabo Mendes andava numa pilha de nervos, não sabia o que fazer deles, lá mandou outra vez uma patrulha a Miranda receber ordens. Passados dois dias apareceram no povo dois carabineiros acompanhados dum homem de óculos escuros, todo vestido de preto como os corvos. Levaram os desgraçados de volta para Espanha, ainda mal tinham atravessado a raia quando se ouviram tiros e mais tarde soube-se que tinham matado os infelizes logo ali no cabeço da raia. Alguém encontrou os corpos atrás dumas urzes, já meio comidos pelos lobos e pelos corvos, nem se deram ao trabalho de os enterrar. As pessoas depois, quando iam ao lado espanhol, faziam um grande rodeio para não passar por aquele local porque, diziam, as almas penadas deles apareciam aos caminhantes. Mas o que deixou o povo ainda mais alvoroçado foi o que se passou já quase no fim da guerra. Ninguém sabia contar ao certo a história, cada qual acrescenta sempre mais um ponto e, no fim, vá-se lá saber onde está a verdade. Mas, assim por alto, vivia em Zamora um senhor muito distinto, professor de muito saber que até escrevia livros e que era afeiçoado aos republicanos. Também teve de fugir porque não era mais do que os outros e os falangistas andavam a matar neles como coelhos. Iam, pela calada da noite, buscálos a casa e nem lhes davam tempo para vestir as calças, as famílias nunca mais os tornavam a ver, era um mar de lágrimas e de sangue por todas as terras. O que aconteceu foi que o tal senhor, o don António, se foi esconder em casa do senhor cabo Mendes, porque eles eram amigos há muitos anos, desde muito tempo antes de começar a guerra. Mas essas coisas acabam sempre por se saber, fica sempre a ponta do rabo de fora. Numa terra pe25


quena onde toda a gente se conhece, não se pode ter um homem escondido em casa, há sempre uma alma má à espreita e então, certo dia, apareceram de surpresa umas autoridades de Miranda e levaram os dois presos. Foi um grande berreiro naquela casa: - Ai que eu nunca mais vejo o meu marido, gritava a senhora Joana, a mulher do senhor cabo Mendes. Os filhos também choravam baba e ranho e até muita gente do povo se juntou ao berreiro porque, descontada uma ou outra coisita, o senhor cabo Mendes não era má pessoa. Farto estava ele de saber que toda a gente ia, de vez em quando, comprar umas alpercatas ou uns metros de pana ao lado espanhol e sempre fechava os olhos, não havia memória de que alguma vez tivesse feito mal a alguém. Toda a gente teve pena dele, custa muito ver um homem ficar com a vida assim estragada enquanto o diabo esfrega um olho. - Lo matan, lo matan, augurava, de braços para o céu, a tie Cassilda que, desde que nunca mais soubera dos irmãos, com certeza mortos e enterrados nalgum buraco como animais, coitada, andava meio taralhouca, sempre a falar sozinha, o fuso da roca sem parança a fiar, a fiar. - Nun puodo perder tiempo, dizia a toda a gente, los mius armanos precízian de muita roupa caliente nas trincheiras.

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Passado pouco mais de um mês, foi outro cabo, o senhor cabo Pinheiro, ocupar o lugar do senhor cabo Mendes, ficava assim confirmado que o caso era sério a valer. A única notícia que a senhora Joana tinha do marido era que o tinham levado para Lisboa, já toda a gente dava razão aos agoiros da tie Cassilda e ninguém tinha esperança de tornar a vê-lo com vida. Passados muitos meses, quando já não se falava no assunto porque até as maiores desgraças acabam por esquecer, o senhor cabo Mendes regressou à terra, desfardado, à paisana, calado como um rato, magro como um cão sem dono. E pronto, estava o caso arrumado, dai para a frente tratava, o melhor que podia e sabia, das suas terras e muita sorte teve ele em o deixarem tranquilo. Mas nunca mais se recompôs nem foi o mesmo homem. Se antigamente gostava de ler os jornais que lhe chegavam do Porto, daí para a frente nem se fala, devorava-os de fio a pavio, sempre à espera que o governo caísse para poder vestir outra vez a farda. Acabou por morrer sem ver o seu sonho realizado, ainda não chegara aos sessenta anos quando se finou como um passarinho, do coração magoado. Aquele sim, pode-se dizer que morreu de desgosto. Falavase que, para o fim da vida, já levantado de todo da cabeça, todas as manhãs vestia uma farda que tinha arrecadada num armário, e andava lá por casa a dar ordens à mulher e à família, como se estivesse num quartel. Para o que uma pessoa está guardada, valha-nos Deus. Quanto ao don António, levou mais tempo mas também acabou por aparecer. Mandou fazer uma casa toda airosa num terreno que comprou ao António Torrado, e por lá ficou a viver com a família um bom par de anos até que, depois de mexerem muitos cordelinhos, puderam regressar ao lar, a Zamora. 27


O povo dizia que o don António deu uma boa recompensa ao senhor cabo Mendes, se assim foi não fez mais do que a sua obrigação porque o pobre tinha um ordenado certinho todos os meses e ficou sem nada por ter ajudado o amigo. O senhor cabo Mendes bem queria que os jornais levassem a notícia doutra revolução que o tirasse da triste vida em que caíra mas o que os jornais levaram, isso sim, para mal dos nossos pecados, foi que tinha rebentado uma grande guerra no mundo e que o senhor professor doutor Oliveira Salazar fizera o milagre de nos livrar dela. - É um santo, insistia, aos domingos, na missa, o senhor padre João, só um santo nos poderia salvar dessa calamidade. - É verdade, sim senhor, confirmava o tiu Cacholas que andara numa guerra anterior, também muito grande, ainda eu não era nascida e que ficara meio rebentado dos pulmões por causa dos gazes e da humidade das trincheiras. - É verdade, sim senhor, o senhor padre João tem toda a razão, repetia, vocês não fazem uma pequena ideia dos horrores duma guerra. E lá se punha, outra vez, para quem ainda tinha cachola para ouvi-lo, a desfiar o rosário dos sacrifícios que passara: - Passei fome, fome de cão, e frio, frio de morrer, vocês lá sabem o que é frio, as trincheiras alagadas de água, enterrados em lama até ao pescoço, e os meus camaradas a morrerem a toda a hora, mesmo ao meu lado. Malditos alemães! Se alguém tinha a ousadia de duvidar das suas palavras, puxava logo da medalha que lhe tinham dado, uma relíquia que nunca largava, nem mesmo a dormir. Tanto assim que, quando pressentiu a hora de prestar contas ao Criador, o seu último desejo foi que o levassem a enterrar com a medalha pregada no peito. Foi grande a zanga entre os filhos por-

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que o Mário, um avarento que só visto, não estava de acordo que o pai levasse a medalha para a cova: - Aquilho bal bun denheiro, carago, dizia. Mas os irmãos não tinham o mesmo pensar: - Conho, exaltavam-se, fui la redadeira buntade de l bielho. Lá foi mesmo para a cova com a lata pregada no peito mas o Mário ainda andou uns tempos de trombas com os irmãos. Depois passou-lhe, que remédio, havia as partilhas para fazer e toda a vida para remoer a teima. Foi melhor assim porque contrariar a vontade dos moribundos é coisa muito séria, não têm conta os exemplos que só não vê quem não quer ver. Nunca mais me esquecerei do caso da pobre da Maria Beça que, na hora da verdade, prometeu à mãe nunca se desfazer do oiro que estava nas mãos da família há três ou quatro gerações e que, passados meses, casou com o Carlos, um valdevinos que só queria andar de festa em festa, a comer e a beber regaladamente. A pobre foi-lhe na cantiga, que lá lábia tinha ele para enroscála, e, aos poucos, foi-se desfazendo de tudo, hoje um fio, amanhã umas arrecadas, depois um medalhão, quando caiu em si e se lembrou da promessa que fizera à mãe. Já não tinha remédio, começou a ouvir vozes e gemidos pela calada da noite, cada vez mais magra e escanzelada, fartou-se de encomendar rezas e mais rezas, de nada lhe valeram. Morreu seca como um capão, a cabeça a rebentar com os gemidos dos espíritos que a atormentavam dias e noite, sem tréguas nem piedade. Na hora da morte, que não tardou, as suas últimas palavras foram: Perdonai-me, mai. Não sei se ainda foi a tempo porque até metia medo no caixão, com os olhos esbugalhados e a boca escancarada, até o senhor padre João lhe deu a extrema-unção meio a fugir. Toda a gente queria era vê-la enterrada bem fundo porque com as almas do outro mundo não se brinca, desgraçado de quem lhes caia nas garras 29


Lá em nossa casa, mal soavam as trindades, nunca deixávamos de rezar para que os homens encontrassem o caminho da razão e acabasse a guerra porque, mesmo naquele canto, sempre nos chegavam alguns ecos da grande miséria que devorava o mundo. - Nas cidades está tudo racionado, contavam aqueles que andavam a tratar da vida lá para Lisboa e outras terras. Dão umas senhas para trocar nas mercearias e o dinheiro não vale nada, só falta morrer à fome. “Deus Nosso Senhor nos acuda, pensávamos nós, se até sem estarmos metidos na guerra é assim, o que seria se caíssemos nela”. Eu andava mais ao menos ao corrente do que se passava porque começara a namorar com o Afonso, um rapaz alistado na Guarda Republicana que estava colocado em Lisboa e, quando ia de visita à terra, contava-nos tudo o que sabia. Dizia-se até, muito em segredo, porque as orelhas tinham ouvidos, que se havia aquela fome toda, mesmo nós não entrando na guerra, era porque o governo enviava comboios e mais comboios de mercadorias para os alemães. - Mas tu não digas nada a ninguém, pedia-me o meu futuro marido, há gente presa por muito menos. Na abalada, levava sempre a mala bem sortida de mimos, salpicões, presunto, fogaças, porque os pais dele eram dos mais ricos do povo, matavam dois porcos todos os anos. Muita gente invejosa, com as filhas por casar, chegavam-lhe a perguntar, só para nos estragar o namoro, qual a razão por que um morgado como ele, que poderia arranjar a rapariga que quisesse das aldeias em redor, namorava comigo que tinha uma casa mais pequena do que a dele, o que era a pura verdade. Os meus pais, quando ele foi lá a casa pedir consentimento para me namorar, nessa noite, muito alvoro30


çados puseram-se a contar os bens que lhe cabiam em herança: - Ten l cerrado de l Bal de Palombo, la cortinha de los Lhameirones, la cortina de Bal de Palombino, la hourta de las Eiras, dous cerrados an Ourrieta l Poço, la huorta de la Fuonte, contava pelos dedos o meu pai. - La huorta de Ourrieta Cuba, acrescentava a minha mãe, la huorta de Ourrieta Queimada. E já não havia dedos que chegassem para tantos bens. O meu pai riu muito nessa noite e aconselhou-me: - Arranjeste un buono partido, carago, tráta-lo bien. - Quedai çcansado, pai, tranquilizei-o. Porque eu sentia que o rapaz estava preso pelo beiço e era por isso que teimava em casar comigo, mesmo eu sendo mais pobre do que ele. O único problema eram os pais dele que não viam com bons olhos um namoro tão desigual, mas quando um rapaz gostava a valer duma rapariga que remédio tinham senão vergar. O pior era quando uma rapariga gostava dum rapaz que não era do agrado dos pais, como o que aconteceu com a minha prima Joaquina que se cegou pelo Luís Preto, um pobretana quase sem ter onde cair morto. Quando se casaram, o pai nunca mais lhe seu a benção, nem mesmo na hora da morte e nunca quis conhecer os netos. As pessoas, admiradas com tanta teimosia, metiamlhos pelos olhos dentro: - Tiu Antonho, mirai los buossos neticos, son mesmo la buossa cara retratada. - L carago, era a resposta dele, nun tengo nietos ninguns, porque, explicava com todas as letras, nun andube a trabalhar toda la bida cumo un mouro, para ir anriquecer outra casa i inda quedar agradecido. Muita sorte teve a minha prima em não ser deserdada, valeu-lhe que Miranda ficava longe e o velho nunca se pôs a caminho. Ameaçava, ameaçava mas nunca se resolveu,

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só no dia em que fechou os olhos, levado por uma trombose súbita, é que ela sossegou. Pois o Afonso estava lá para Lisboa e queria casar à viva força mas eu fiz-lhe ver que, se as coisas estavam assim tão feias nas cidades, o melhor era ter paciência e esperar pelo fim da guerra para ver se tudo se compunha. - You, quando me casar, ye para dzaparcer deiqui cuntigo, disse-lhe logo no princípio do namoro. A muito custo, lá acabou por concordar mas quando regressava à terra de férias tinha de ter muito cuidado com ele, cada vez mais atrevido. Uma vez apanhou-me com as vacas em bal de Palombo que é um sítio meio deserto, não havia vivalma em redor e o malandro não esteve com meias medidas, atirou-se a mim, esfomeado como um lobo. Foi uma grande luta que travámos, até que, por fim, já estafadinha de todo, com os bofes a saltarem-me à boca, chamei as últimas forças que me restavam, peguei numa pedra e racheilhe a cabeça de alto a baixo. Quando se viu a escorrer sangue como um porco, lá me largou e foi para a ribeira lavar-se, eu, condoída, ainda o ajudei a estancar o sangue. Coitado, tinhalhe batido com toda a gana, e o golpe era grande, mas teve de ser assim porque se ele me tivesse caçado depois podia muito bem romper com tudo, com tanta rapariga por onde escolher. Eu é que me amolava depois, nunca mais nenhum rapaz me queria para bons fins, para mais com vinte e tal anos como já tinha. Foi o que aconteceu com a Joana do tiu Negro, deixou-se enrolar nas falinhas mansas do Augusto peleiro que passava pela terra um par de vezes por ano a mercar tudo o que fosse pele de coelho ou de ovelha. Dava uma ninharia por cada peça mas ninguém refilava, dinheiro era coisa que não abundava e o pouco que ele pagava fazia muito jeito para comprar uns luxozitos no lado espanhol ou nas festas da Luz e do Naso. Num dia escaldante de verão, a Joana vinha de São Martinho, o Augusto encontrou-a a meio caminho, convi32


dou-a a montar na mula, no meio daquelas peles todas. Não sei que voltas lhe deu ao miolo, um homem feio e desdentado como aquele que cheirava ao bedum das peles que tresandava, o certo é que lá a convenceu a apearem-se atrás dumas urzes. Passados nove meses, a Joana pariu um zorro e, como é de calcular, ficou solteira para o resto da vida. Andava com uns e com outros, coitada, o que todos queriam era gozar-lhe o corpo e depois nunca mais lhe olhavam para a cara, muita sorte teve em não emprenhar mais vez nenhuma. Lá foi envelhecendo, desprezada por todos, até pelo próprio filho que quando chegou a homem abalou para França e nunca mais deu fé de si. O que aquela mulher não passou para criar aquela criança, podia ser o que fosse mas que ela ficasse com a barriga a dar horas, e não deviam ter sido poucas as vezes, o filho nunca soube o que era miséria, sempre lavadinho e de barriga cheia. Isso eu já não vi mas constou-me que quando começou a ficar espigadote, o rapaz tratava a mãe como um trapo, até lhe chegava a bater e que a pobre, tão maltratada, sempre resignada, nunca abriu a boca contra ele, o filho era o sol da sua vida. Pode-se adivinhar como fiquei contente com o fim da guerra. Fiquei eu e ficou toda a gente, uma guerra é sempre uma guerra e um cristão não gosta de saber que os filhos de Deus se andam a matar uns aos outros. Os homens mataram uma vitela e houve carne e vinho até de madrugada, o sino não se cansou de badalar toda a noite até que, por fim, o senhor padre João, também já com uns copos bem bebidos no bucho, se zangou: - Conho, parem com isso que me rebentam o sino. Mesmo sem ter bebido um dedal de vinho, ninguém estava mais feliz do que eu porque já estava a ver o caso mal parado. Àquela guerra nunca mais lhe víamos o fim e não tardava nada eu já estava com a mocidade passada, no povo já havia raparigas da minha criação com três ou quatro filhos agarrados às saias. Estava mesmo a ver que tinha de quebrar 33


a palavra, isso é o que custava mais porque, como já disse, casar e ficar na terra, o meu marido lá para Lisboa, era andar de cavalo para burro. - Mira qu'el cansa-se i arranjaba outra más nuoba, avisava-me a minha mãe, la filha más nuoba de l tiu Jaime, la Luísa, anda mesmo a meter-se-le delantre de los uolhos, ten muito tino. Se a guerra não tivesse acabado lá teria que me decidir, não podia deixá-lo fugir. Mas graças a Deus, entrou tudo nos eixos, passado um mês casámos, foi um lindo casamento, como se viram poucos na terra. - Mátan-se dous canhonos, disse o meu sogro. O meu pai não quis ficar atrás: - You mato ua bitela. Todos os convidados comeram e beberam até chegar com o dedo. O Afonso quis imitá-los e ou fosse por causa da excitação ou fosse lá pelo que fosse, o vinho subiu-lhe à cabeça e, ele que andara tantos anos à espera daquele momento, não conseguiu fazer a sua obrigação na noite de núpcias. Lá na terra nunca ninguém soube o que aconteceu, seria uma vergonha para ele, adormeceu mal caiu na cama, borracho como um peru, muito nos ríamos os dois depois disso. Mas não perdi pela demora, de madrugada quando acordou, os galos mal cantavam, ainda com os vapores do vinho, até parecia maluco. Quando me levantei, o lençol tinha uma grande mancha de sangue e quase nem me segurava nas pernas, toda dorida. Ele, todo vaidoso e inchado como um pavão, voltou-se para o outro lado, a roncar como um porco depois de esvaziar a gamela. Eu que pensava ir logo com o meu marido para Lisboa, bem me amolei, ainda fiquei na terra três meses e tal à espera que ele fosse transferido para Leiria. - Não vale a pena ires para Lisboa por uns meses, explicou-me, porque eu vou ser transferido para outra terra e depois é que te vais juntar a mim.

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Não tive outro remédio senão esperar e quando finalmente parti já tinha uma grande barriga do meu primeiro filho. O povo diz que quando um homem borracho se põe numa mulher o filho nasce também borracho mas felizmente não aconteceu nada disso porque o meu filho Zé é um pisco a beber. Quando nalguma festa se alarga mais um bocadinho sabe muito bem pôr-se no seu lugar, não bebe o juízo como há, infelizmente, muitos homens e mulheres por aí. Na carta que recebi, oito dias antes de eu abalar da terra, o Afonso dizia que já tinha casa arrendada nos Outeiros e que estaria na estação de Leiria à minha espera. Que não me preocupasse com a viagem, tranquilizava-me, e mandava-me o mapa com as instruções dos comboios que eu deveria apanhar: “Vais de automotora de Duas lgrejas ao Pocinho, tomas o comboio para o Porto, depois mudas na estação de Campanhã, tornas a mudar em Coimbra e apanhas o comboio que vai para Lisboa, da linha do Oeste.” Comecei a tremer como uma vara, com o papelito nas mãos. Quem está habituado a grandes viagens pode achar uma grande parvoice a minha reacção mas compreendam que eu nunca tinha saído da minha terra, a minha viagem mais comprida tinha sido a Moveiros, ali logo no outro lado, na Espanha, quando torci um pulso, andava eu pelos meus quinze anos, e o meu pai me levou ao endireita. Para mim aqueles nomes, Pocinho, Porto, Coimbra, sei lá o que me pareciam, ficava toda arrepiada só de enrolálos na língua. A verdade é que o Afonso me falava, outras pessoas também, mas quando nunca se viu com os próprios olhos, tudo mete medo.

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- As casas são tão grandes que até tapam o sol, explicavam-me, e é preciso muito cuidado nas ruas para não sermos atropelados pelos automóveis. Digam-me lá como eu podia compreender o que era um automóvel se em toda a minha vida só tinha visto dois ou três de fugida quando construiram a escola. Hoje também eu rio dos meus receios de então. Afinal, o mundo é o mesmo em todo o lado, mais casa menos casa, mais carro menos carro, mais avião menos avião, as pessoas são todas feitas de carne e osso, boas e más, parvas e espertas, mas é preciso ver para saber, ninguém nasce ensinado. Na véspera da partida, todos me tratavam como uma criança. - Nun te squeças de lhebar esto, nun te squeças de lhebar aquilho, mira la roupa de l nino. Disso não me esquecia, era a minha maior preocupação, já tinha o enxoval todo prontinho. Tantas noites que eu gastara com as agulhas na mão, truca, truca, camisolas, sapatinhos, gorros, tudo branco porque ninguém adivinha se vai nascer menino ou menina. Para não me acontecer como à minha prima Joaquina, quando ficou grávida pela primeira vez tinham tanta vontade que fosse um menino que fizeram o enxoval todo azul mas depois veio uma menina e foi um grande desgosto. - Nun te squeças de la merenda pa la biaige, meti-te ne l saco un chouriço, i un cacho de presunto, i uns uobos cozidos, que la biaige ye grande. Eu dizia a tudo que sim, sem pinga de sangue. - Si, mai, si, pai. - Nun te squeças de preguntar, pul camino, quales son los cambóios que debes apanhar. - Si, mai, si, pai. - Mete más esta chouriça, mira esta chambra. - Si, mai, si, pai. Só tinha medo por causa da criança, não lhe fosse acontecer alguma coisa com tantos nervos. Não era a primei36


ra, ainda não havia muitos meses, a Rosa perdera o filho quando lhe deram à bruta a notícia da morte do pai no Brasil. Coitadinha, fartou-se de sangrar, esteve às portas da morte, quem a salvou foi a senhora Custódia que sabia umas rezas contra aquelas maleitas e lhe deu a beber um chá de ervas que só ela sabia preparar, lá acabou o sangue por estancar ainda a horas. Era duma desgraça parecida que eu tinha medo. - Por que ye que l miu home nun me bieno a buscar?, ainda cheguei a queixar-me. Mas o pobre também não podia andar sempre acima e abaixo, já nesse tempo as viagens custavam um dinheirão, eu sabia isso tudo muito bem mas tinha de desabafar de qualquer modo quando não era capaz de rebentar. - I agora, bai-te a deitar para salirmos de madrugada, disse o meu pai. - Si, pai. Parecia uma cachorrita perdida, não consegui fechar olho toda a noite, tolhida de inquietação, a morrer de susto mas ao mesmo tempo, coisa esquisita, apressada por partir à descoberta da nova vida que me esperava. "Ganha coraige, rapaza ", encorajava-me, perdida no negrume dos pensamentos. Mas ainda não tinha abalado e já estava roída de saudades da terra, da minha família, da minha casa, sensação esquisita que nunca mais me abandonou pela vida fora, como se estivesse a deixar para trás um pedaço do meu corpo, um braço ou uma perna que me tivessem cortado. Se há pessoas que compreendem os emigrantes uma delas sou eu. Podem juntar muito dinheiro, levar uma bela vida, mas faltalhes uma coisa que nem sei explicar o que é, nem eles, calculo, há sentimentos que não há palavras para explicá-los, sentem-se no fundo do peito e pronto. Quando a minha mãe me foi chamar de madrugada, eu estava a chorar como uma madalena. - L que ye esso filha?, encorajou-me. 37


Mas ela estava tão comovida como eu e desfez-se também em pranto. Foi a minha vez de animá-la: - L que ye esso, mai, parece que bou pa l fin de l mundo, deixai alhá que quando acá benir yá bos trago un nieto. Vesti-me a correr e daí a pouco estava a subir para o burro que o meu pai segurava pela arreata. - Bamos alhá que inda tenemos muito que andar, apressou-me ele. Era verdade, da minha terra à estação de Duas-Igrejas ainda são cinco léguas bem puxadas, o povo dormia a sono solto, só um ou outro gato vadio é que viu a minha partida. - Bamos alhá, filha, disse o meu pai, esporeando o burro dele. - Bamos, pai, obedeci. Ficou a minha mãe rodeada de sombras, cada vez mais longe. - Adius, mai. - Adius, filha, buona biaige, Nuossa Senhora te guarde. Cravei os olhos no seu vulto negro até que, por fim, o cabeço a tragou. - Inda bamos gastar uas buonas cinco horas, disse a experiência velha do meu pai. Há uns quinze anos atrás, quando eu ainda não era ninguém, também ele fora levar o meu tio João a Duas Igrejas, mas a viagem desse era maior, ia para África, para Angola, foi uma viagem sem regresso, acabou por morrer por lá. Regressaram os filhos e os netos, depois que Portugal deu a independência às colónias e que tiveram de retornar com a trouxa às costas. Eram donos de bons comércios em Luanda e ficaram sem nada, tiveram de recomeçar a vida do zero. Mas os meus primos eram gente rija, com as ajudas que arranjaram do governo, montaram um café e um restaurante em Miranda, hoje estão outra vez cheios de dinheiro.

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- L que mos bal ye que hoije stá ua rica nuite, disse o meu pai. Estava bela noite, sim senhor, estrelada, com um ventinho morno, os ralos e os grilos a cantarem, numa algazarra, por todo o lado. Para matar o tempo, o meu pai pôs-se a contar-me uma história que eu já lhe ouvira sei lá quantas vezes, acerca de um lobo que uma noite de inverno e neve o perseguira toda a noite no regresso de Moveiros onde ele tinha ido buscar um contrabandozito. Eu sabia aquela história de cor e salteado, às vezes quando ele se punha com aquilo à lareira, resmungava logo: À pai, outra beç! Mas nessa noite estava-lhe muito agradecida, evitou que eu caísse nos meus pensamentos negros que tanto mal me faziam. O caminho levou-nos bem as cinco horas, o meu pai tinha razão, a automotora, aquele monstro de ferro, que me deixou de olhos arregalados, já lá estava à minha espera. Foi só comprar o bilhete e já mal tive tempo de chorar encostada ao peito do meu pai que também tinha os olhos rasos de lágrimas. Só sabia dar-me pancadinhas nas costas, sem palavras, mais mudo do que os mudos, mal sabíamos nós que era a última vez que nos víamos. Passados três meses deu-lhe um ataque e morreu em dois dias sem tornar a reconhecer ninguém. Eu só soube a má notícia depois de me ter nascido a criança, o meu marido escondeu-me tudo mais de dois meses com medo que eu desse à luz antes de tempo. Então a automotora lá foi pelos montes abaixo a apitar e a deitar fumo por todo o lado, um fumo mais negro do que o véu das viúvas que entrou sem cerimónias pelas janelas e deixou toda a gente a tossir. Fiquei logo cheia de vómitos, cada arranco que só Deus sabe, o que me valeu foi o guarda fiscal e a mulher que estavam sentados no banco em frente do meu. - Chupe esta rodela de limão, disse-me ela.

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Não calculam o bem que me fez, depois disso, cada vez que me metia em viagens, nunca me esquecia de levar dois ou três limões, não conheço nada melhor para os enjoos. - Já se sente melhor?, perguntou-me o guarda fiscal. Era gente muito boa, tinham ido de férias à terra, eram de Ifanes e seguiam viagem até às Caldas da Rainha, quando souberam o meu destino ficaram muito contentes. - Então fazemos a viagem juntos!, exclamou a mulher. Mais contente do que eles fiquei eu, como se pode calcular, ainda hoje agradeço à Virgem por mos ter posto no caminho quando não acho que não me desenrascava naquele mar de gente na Campanhã e em Coimbra. Eram muito faladores e alegres, depois de muito termos conversado, chegámos à conclusão que ela ainda era minha prima afastada, pela parte da minha mãe, o que nos rimos com a descoberta. Que a viagem deu para tudo, o comboio tragava terra e mais terra, montanhas, rios, campos, mais montanhas, invadia cidades, saía gente, entrava gente. Devia ter os olhos tão cheios de espanto que eles cada vez que olhavam para a minha cara largavam a rir. - Portugal é muito grande!, exclamei, incapaz de me conter. - Nós da primeira vez também ficámos admirados, disse o guarda, então quando vimos o mar, até os olhos nos iam saltando da cara. Em tão boa companhia, não me custou tanto fazer a viagem. No intervalo das conversas e das risotas, trincávamos alguma coisa ou dormitávamos, tive muita pena de deixá-los quando desci na estação de Leiria, era como se nos conhecêssemos desde sempre.

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Só quando o meu marido me cerrou nos braços e me perguntou como me sentia é que os ossos me começaram a doer todos. Bem feitas as contas, tinham sido quase dois dias de viagem e se tinha dormitado três ou quatro horas por junto tinha sido muito. - O menino está bem?, perguntou o meu marido, admirado de me ver uma barriga tão grande. O que eu ri com a cara dele. - Está bem, sim senhor, tranquilizei-o, ainda não há dez minutos que o senti dar pontapés. Só então ele desengelhou a testa e riu também. - E agora vamos para nossa casa, disse com os olhitos a rirem, ainda é meia légua a pé, estás com coragem? - Pensas que estás a falar com alguma menina da cidade?, respondi-lhe à letra. Rimos os dois um bom bocado até que, por fim, o meu marido pegou na minha mala. - Bom, vamos lá então, porra que isto pesa, deves cá trazer cá dentro um porco inteiro. Peguei no saco e segui-o pelo caminho rasgado pelos campos verdes, estava um dia muito lindo, cheio de sol. - Mas aqui já está tudo crescido!, exclamei admirada por ver tudo tão viçoso e as árvores cheias de frutos. - É do clima, explicou-me, aqui tudo cresce mais depressa do que lá em cima. Está calor, não está? Eu já sentia os pés a escaldar e os lábios grossos da sede mas tranquilizei-o: - Não te preocupes comigo. Mas quando entrámos no pinhal e aquele ventinho fresco me banhou a cara até suspirei de alívio. Era a primeira vez na minha vida que metia os pés num pinhal e aquele cheiro forte a resina pôs-me a cabeça à roda. 41


- Estes ares são muito bons, a nossa casa fica mesmo à beira do pinhal, explicava o Afonso. Mas quase não ligava às palavras dele, toda olhos para aquela imensidão de árvores tão esguias como eu nunca supus que pudesse existir, se lá na minha terra os montes eram mais carecas do que a cabeça dum careca, cheios de urzes e dum ou outro carvalho para enganar. Só muito mais tarde é que os espanhóis plantaram alguns pinhais para o lado deles, de tal forma que até javalis começaram a aparecer por lá, malditos animais que numa noite são capazes de voltar de pernas para o ar um campo que deu tanto trabalho a semear. Aqui e ali, mulheres descalças, com enormes montes de caruma à cabeça, cruzavam-se com nós, a barulheira dos pássaros e das cigarras não nos largava, o sol jorrava pelos pinheiros abaixo, e sempre aquele fresquinho a arrepiar-me a espinha, cada vez tinha os olhos maiores de espanto. Depois, quando eu pensava que aquilo não teria fim, a mata rasgouse de repente e apareceu uma povoação sossegada, com galinhas a esgaravatar, tranquilas, por todo o lado. - A nossa casa é aquela, apontou o Afonso. Procuroume os olhos, à procura da minha reacção, gostas? Segui a direção que o dedo apontava e vi uma casita branca de portas e janelas azuis. Não respondi mas o brilho do meu olhar bastava. - Eu sabia que irias gostar. As pessoas, com quem nos cruzávamos, davam-nos as boas-tardes e ficavam a cochichar nas nossas costas. O meu marido meteu a chave na fechadura e apontou-me, disfarçadamente, as cabeças curiosas que espreitavam das janelas das casas em redor. - As pessoas são a mesma coisa em toda a parte, comentou, bem humorado, ao empurrar a porta, entra. Antes de entrar, olhei bem à minha volta, queria que aquilo me ficasse tudo bem gravado nos olhos, e exclamei: - É um bom sítio para nascer o nosso filho. 42


Enquanto o meu filho não nasceu, passei uma vida de rainha, chegava a aborrecer-me de não ter nada que fazer e o meu entretém eram os bordados. Quando me doíam as costas de estar tanto tempo sentada bastava mostrar o nariz à porta da rua para as vizinhas meterem logo conversa comigo, mortinhas por isso estavam elas. Queriam saber tudo, donde eu tinha vindo, se gostava de morar ali, mais isto, mais aquilo. Elas também não se faziam rogadas, desunhavam-se a falar, ao fim de uma semana não havia vida que eu não soubesse por miúdos. - Aqui a calhandrice ainda é maior do que na nossa terra, confessava ao meu marido quando ele à noite regressava do quartel. Ele sorria, feliz. - A criança já mexeu, hoje?, era a primeira coisa que me perguntava, mal descia da bicicleta.

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Entretanto, a minha barriga crescia a olhos vistos, aos seis meses já tinha um bandulho maior do que um tambor. - Ainda são capazes de vir para aí um par de gémeos, assustava-se o meu marido, nunca vi uma barriga tão grande. Eu desatara a comer como uma loba, quanto mais comia mais fome tinha e mal caía a noite dava-me logo o sono. Se me deixassem, creio que era capaz de dormir semanas a fio, de manhã era meu marido que tinha de me acordar para lhe preparar o café. - Preciso de te levar para umas patrulhas para ver se te passa essa soneira, ria-se. Mas à medida que a minha hora se aproximava nem sabia o que me havia de fazer, trazia-me nas palminhas das mãos. - Sentes-te bem?, a criança tem mexido?, tem cuidado aí, podes cair, até me aborrecia com tanta minhoquice. - Ó homem, pára com isso, a minha mãe quando me teve andava a segar, mal teve tempo de se arrastar para debaixo dum castanheiro e eu nasci bem escorreita. Nunca lhe falei nisso para o não apoquentar ainda mais mas nos últimos dois meses passei tormentos que nem as almas do purgatório devem ter. Isto até parece mentira mas calculem que a partir do sétimo mês de gravidez se me meteu cá dentro uma sede da água do fontanário lá da minha terra que nenhuma água deste mundo podia matar. As vizinhas bem me levavam água da fonte da Carvalha, uma água gostosa e fresquinha como poucas, a senhora Alice chegou mesmo a deslocar-se propositadamente aos Milagres aonde há uma nascente saída da rocha que tem fama nas redondezas, mas nada me servia, só queria a água da fonte lá da terra, daria dez anos de vida para me ajoelhar na pedra gasta por tantos joelhos, ver a minha figura refletida no espelho da 44


água e beber pela concha das mãos como sempre fizera desde que me conhecia. Uma noite sonhei que o meu desejo se tornara realidade, lá estava a fonte com a sua cobertura redonda de pedra, tão antiga que até mesmo os mais antigos tinham perdido a memória da sua construção. Ajoelhara na pedra como diante dum altar, via o fio da nascente lá no fundo a saltar da fraga, a vir abrir-se à superfície como uma flor. Inclinei-me, inclinei-me e lentamente fui entrando na água, transformada em pedra, em água, sei lá explicar. Acordei toda aflita, alagada em suor. Levantei-me e fui-me à bilha, bebi, bebi, mas a água sabia-me a caldo, voltei para a cama toda desconsolada e larguei a chorar baixinho para não acordar o meu marido. Pobre homem, já lhe chegavam as outras preocupações, não precisava de apoquentá-lo ainda mais com as minhas loucuras. Eu bem me fazia forte mas quando vieram as dores do parto foi-se a valentia toda, pensei que morria. O meu filho era muito grande e, ainda por cima, vinha atravessado, rasgou-me toda. Fiquei cinco dias de cama, mas foi uma grande alegria para o meu marido, queria um menino e Deus fez-lhe a vontade. Quem me ajudou a deitá-lo ao mundo foi a minha vizinha, a senhora Alice que já tivera cinco filhos e sabia da poda como é bom de ver. Ela própria disse que nunca lhe tinha passado um caso tão bicudo pelas mãos mas, graças a Deus, tudo se resolveu em bem. Eu sentia muitas dores mas a alegria de ter dado à luz um rapagão daqueles fazia-me esquecer tudo, uma mãe é assim, é já da natureza, até os animais ficam felizes quando deitam os filhos ao mundo. Pior foi depois quando soube da morte do meu pai, porque apesar dele me fazer trabalhar daquela maneira, era muito meu amigo, a vida no campo, naqueles tempos, era mesmo assim. Os filhos também tinham de trabalhar para a casa se se queria ver alguma fartura.

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- Trabalha que para ti trabalhas, dizia-me sempre o meu pai, quando me via mais revoltada pois o que uma rapariga nova quer é festas e namoros. - Tenho uma má notícia para te dar, disse-me o Afonso, ao sétimo dia de parto. Era o primeiro dia que me levantava e estava muito fraca, pensei que me ia subir o parto à cabeça quando ele me desenrolou tudo. Coitadinho do meu pai, passou a vida inteira a trabalhar como um mouro. O único distraimento dele era a caça, enchia-nos a casa de lebres, coelhos, perdizes, uma vez ainda chegou a matar um veado, foi um assombro na aldeia. Gostava muito de trabalhar mas se o desafiavam para uma batida aos lobos era capaz de deixar tudo, tal era a sua paixão por aquilo. O meu irmão tem bem a quem sair, mesmo agora depois de velho, ainda é capaz de passar um dia a correr as serras atrás dum bando de perdizes, que agora já não é como antigamente, cada vez há menos caça, há mais espingardas do que perdizes, é o que dizem.

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Mas a vida não fica parada à espera que nos passem os desgostos. O meu irmão estava com pressa de casar com uma rapariga de Constantim e queria ver as partilhas feitas o mais depressa possível. Lá andou, lá andou até que convenceu a nossa mãe a deixar-nos tudo em vida que a pobre, com a morte do meu pai, se já antes não tinha ponta de coragem para nada, daí para diante varreu-se-lhe dos olhos todo o gosto de viver, ficou para ali enterrada em luto à espera que a morte a levasse. - Vocês podem ficar com tudo, a mim chega-me um pote de caldo e uns capões para o lume, não preciso de mais nada, disse-me na carta que me enviou. O Afonso meteu duas semanas de licença e foi lá acima tratar das partilhas com o meu irmão. Foram umas partilhas muito sossegadas, como não há memória na terra, pois havia casos em que os próprios irmãos ficavam inimigos de morte para o resto da vida. Recordo-me do António Castanho que ia matando o irmão à fueirada, tudo por causa dum bocado de terra na serra, cheio de pedras onde nem o centeio vingava. Aquilo não valia a vida dum gato quanto mais a dum homem, para mais a dum irmão. Fizeram-se as partilhas mas quem ficou a tratar de tudo o que nos tocou foi o meu irmão, já naquele tempo não havia ninguém que quisesse tomar de renda as terras a não ser um ou outro lameiro para pasto ou alguma horta com mais água. Mas mesmo assim não era nada parecido com os dias de hoje em que está tudo abandonado, fala-se em emparcelamentos, em mudar tudo mas com o tempo que as coisas levam acho que já não vou estar neste mundo para ver as transformações. Foi a partir daí que o meu marido começou a andar preocupado e a falar no regresso à terra. 47


- Já viste, dizia-me, qualquer dia os meus pais morrem e depois quem é que me vai fazer pelos bens? O melhor era eu pedir a transferência lá para cima, o que é que tu pensas? Eu compreendia-o muito bem porque custa muito ver os bens que são das nossas familías, sabe-se lá desde quando, ficarem assim abandonados, a criar urzes e cardos para regalo dos lobos, mas por outro lado não estava nada disposta a voltar ao princípio e a esquecer todos os meus sonhos. - Ó homem, respondi-lhe, o que for será. Pouco depois, tornei a ficar grávida e o medo de que o parto fosse tão difícil como o primeiro fez-nos esquecer todas as preocupações. Não há nada como um sarilho para fazer esquecer outro, mas, graças a Deus, foi uma diferença como do dia para a noite. Comecei a ter as dores manhã cedo e passada meia hora a criança já estava cá fora a berrar, a senhora Alice quase nem teve tempo de arregaçar as mangas, mas quando vi que era um menino fiquei muito triste. - Dê graças a Deus por vir são e escorreito, mulher, animou-me a senhora Alice. Mas o desgosto ficou cá dentro do peito durante muito tempo. Ao Afonso tanto lhe fazia mas eu queria por força uma menina, uma filha numa casa era uma grande ajuda para as mães quando começava a ser mulherzinha enquanto os rapazes era só sujar e comidinha pronta na mesa, queriam lá saber das canseiras das mulheres. Deus Nosso Senhor não me fez a vontade, lá tinha os seus desígnios e quem somos nós pobres ignorantes para refilar, mas às vezes ponho-me a pensar que se em vez do Luís tivesse nascido uma menina tudo teria sido diferente, basta uma pequena diferença para voltar completamente a vida do avesso. Se ao princípio eu tinha sido uma princesa, mesmo depois do nascimento do meu primeiro filho não me podia queixar, era uma criança que não me dava trabalhinho nenhum, dava-lhe a mamada e punha-se logo a dormir que era um regalo, até se podem contar pelos dedos das mãos as noi48


tes perdidas com ele. Mas quando nasceu o Luís tudo mudou de figura, logo na primeira semana trocaram-se-lhe os sonos, berrava de noite que parecia que o matavam. O Afonso já não podia mais, quando se levantava de manhã estava mais morto do que vivo, as melhores noites dele era quando ficava de plantão ou de prevenção no quartel. - Não deixe a criança dormir muito de dia, aconselhava-me a senhora Alice. Cortava-me o coração mas tive que lhe seguir o conselho, quando não era capaz de me rebentar a cabeça com a falta de sono mas, por fim, as coisas lá começaram a encarreirar, o tempo cura todos os males. Com quatro pessoas como já éramos lá em casa, porque, pensando que não, as crianças eram uma grande despesa, o ordenado do meu marido já não dava para muitas folias. Galinha só nos dias de festa e carne quase nem vê-la, um guisadito de vez em quando, com mais batatas do que carne já era um luxo. Ainda o que nos valia era que tínhamos sempre alguma criação, umas galinhas poedeiras e uns coelhitos, para tapar os maiores buracos. A partir de certa altura, também criávamos um porco com os restos da comida e umas mãos-cheias de farelos. Eu ia à feira dos dezoito ou dos vinte seis comprá-lo em leitão e, quando ficava maiorzito, lá o vendia a qualquer porqueiro que por ali passasse, sempre se apurava algum dinheirito que boa falta nos fazia. Certo dia, o Afonso apareceu-me com uma ideia nova. - Este ano, vamos matar um porco. - És maluco!, exclamei. - Por que não?, insistiu. Ou tens medo de já não saber fazer os enchidos? - Até de olhos fechados os fazia, mas tu não vês que precisamos do dinheirito da venda do animal para comprar roupas para todos?

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Os garotos andavam quase rotos e o meu marido nem tinha umas calças decentes para se vestir à paisana nos finsde-semana. Isto para não falar de mim que até tinha vergonha de sair à rua, mas ele estava tão entusiasmado com a ideia que não consegui vergá-lo. - Ó mulher, tu não vês que depois já não precisamos de comprar carne durante todo o ano, o que pouparmos chega para roupas para todos e ainda vai sobrar dinheiro. Acabou por me convencer e depressa já andava mais entusiasmada do que ele. Ainda o animal não estava no curral e já andávamos a pregar pregos na cozinha para as varas do fumeiro, já contávamos os chouriços, os chavianos, os botelos, as alheiras. Cheguei até a escrever ao meu irmão para que me mandasse para baixo uma lata de pimentão espanhol, já que nos tínhamos decidido, pelos menos íamos fazer tudo a preceito. Quando chegou o dia da feira, o meu marido meteu um dia de folga e fomos os dois comprar o leitãozito. Nunca fizemos uma escolha tão rigorosa, este não presta porque tem a perna muito baixa, aquele também não porque é a dar para o barrigudo, o outro tinha o focinho curto. Estávamos já descoroaçados quase a ver que não encontrávamos nenhum a nosso gosto quando, quando menos contávamos, demos de caras com um leitãozito tal e qual a gente tinha pensado, branco, perna alta, comprido, o rabito encaracolado. Mal lhe pôs os olhos em cima, o Afonso deu-me uma cotovelada disfarçada, para que o porqueiro não notasse o nosso interesse. - É este, segredou-me. Acenei a cabeça de acordo e depois de muito regatear o preço lá o conseguimos levar para casa. Quando o vimos a roncar no curral, desatámos a rir como duas crianças. - A melhor data para a matança deve ser para os fins de Novembro, quando o frio começa a apertar, disse o meu marido.

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- Ó homem, deixa-me primeiro criar o bicho e depois temos tempo de pensar nisso, respondi-lhe, a rir. Acho que nunca tive tanto desvelo com um animal como dessa vez, a lavadura sempre a horas, até uma ração de milho lhe dava todos os dias, o curral sempre asseado com caruma nova, era um regalo vê-lo medrar de dia para dia. Quando vieram aqueles dias abrasadores de Agosto, já ali estava um belo exemplar, a pele muito rosada, o pelo curtinho e brilhante, derretia-se todo para que lhe coçássemos o lombo. - Vai dar uns ricos presuntos, estalava os dedos o meu marido, achas que o fumeiro já estará curado para o Natal?, parecia uma criança a sonhar, as saudades que eu tenho de um salpicão assado nas brasas. Mas, é bem certo, guardado está o bocado para quem o há-de comer. Os dias continuavam um braseiro e, quando veio, a peste varreu tudo a eito. Ainda me agarrei a Nossa Senhora mas de nada me valeu, não éramos mais do que os outros. Uma manhã, quando lhe fui meter a lavadura no balseiro, o bicho não se levantou para comer, não foi preciso saber mais, desatei logo a chorar. Ainda durou três dias, ao anoitecer do terceiro dia esticou o pernil e pronto, morreu ali o nosso sonho. O Afonso fez uma cova bem funda no quintal e quando acabou de enterrá-lo voltou-se para mim e disse: - Só tornamos a pensar em matanças quando voltarmos para a nossa terra.

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Eram uns tempos muito maus aqueles, a miséria andava à solta, o que valeu foi que depois as pessoas começaram a abalar para França. A minha vizinhança foi quase toda, primeiro os homens, depois as mulheres e as crianças, se não fosse assim não sei o que teria acontecido, havia gente que já nem um bocado de pão seco tinha para dar os filhos. Nós tínhamos arrendado um campo de sequeiro onde semeávamos uma saca de batatas e plantávamos umas couves e lá iamos vivendo, assim vivesse toda a gente como nós. Eu tinha olhos para ver a miséria que ia nas casas da vizinhaça, bem vistas as coisa, nós éramos uns reis no meio de tanta pobreza. Pelo menos tínhamos o ordenadinho do meu marido certo todos os meses, era pouco mas era uma fortuna em comparação com aqueles infelizes que andavam à jorna, de sol a sol, sujeitos a tudo e mais alguma coisa, com a enxada nas mãos todo o santo dia, quase sem se alimentarem, só a toque de vinho. Vejam o ti Faustino, não havia nas redondezas trabalhador como aquele para cavar uma vinha ou semear um campo de batatas e com umas mãos de oiro para fazer um enxerto ou podar uma árvore como havia poucas. Coitado, começou a tossir, isto é uma constipação, dizia, só que a constipação nunca mais passava, quando deu por ela, tinha uma tuberculose galopante às costas. Nunca mais foi homem na vida, andava por ali como um farrapo até que Deus Nosso Senhor fez a mercê de levá-lo, os filhos mortos de fome, mais encardidos do que uma rodilha. A mulher lá andava todos os dias nas jeiras, se havia trabalho, está bom de ver, mas o que era a jorna de uma mulher para sustentar cinco bocas? Eu tinha tanta pena daquela gente que um dia disse ao meu marido:

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- Ó homem, nós não somos ricos, seja pelo desconto dos nossos pecados, o filho mais velho, o Rui, que venha que venha cá jantar a casa, onde comem quatro comem cinco. Pobre criança, foi como chegar água ao pé duma couve com sede, pôs-se a arrebitar, já nem parecia o mesmo. Por fim, uma alma caridosa lá lhe arranjou trabalho como moço de recados num hotel em Leiria, e depois quem o via, tão bem apresentado, não fazia a mais pequena ideia do que fora a sua criação. Passados uns anos começou a servir às mesas, de casaca preta e laço ao pescoço, parecia um fidalgo. Os irmãos também não morreram, mal ou pior fizeram-se homens como os outros, casaram, enquanto o dia esfrega um olho já estavam para ali cheios de filhos, que a roda da vida não pára, quem as vezes pára somos nós, quando menos esperamos. Enfim, a vida ia passando, os meus filhos começaram a ir à escola, foi mais uma despesa, livros, cadernos, mas felizmente para a sopa nunca nos faltou e aos domingos, quando os pobres batiam à porta havia sempre uma côdea de pão para cumprir a nossa obrigação, eles também já sabiam, pobrezinhos, e nunca faltavam. Então havia um, o ti Carlos, que era muito engraçado e muito educado, minha senhora para aqui, minha senhora para ali, pobre como Job mas sempre alegre. O meu Luís, quando já era homenzito, gostava muito de conversar com ele. - Quer um cigarrito?, perguntava-lhe. E enquanto fumavam, ficavam para ali a tagarelar, o ti Carlos a contar as peripécias da vida dele, tudo com tanta graça que se escrevesse um livro toda a gente gostaria de lêlo. - Olhe que se passa amanhã, ti Carlos, e ainda tem muita porta para correr, lembrava-lhe eu. O ti Carlos ria com gosto por entre as barbas brancas.

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- Já tenho a barriga cheia, minha senhora, amanhã é outro dia. Quando se despedia, o Luís piscava-lhe um olho e metia-lhe sempre no bolso mais dois ou três cigarros. - É para o caminho, ti Carlos. Mas certo domingo deixou de aparecer. - O ti Carlos não tem aparecido à porta, estranhei, terá morrido? - Devem-no ter levado para os Andrinos, foi a opinião do Luís. As autoridades tinham ordens para prender todos os mendigos que apanhassem e aos da região de Leiria enviavam-nos para o albergue da quinta dos Andrinos, Portugal está cheio de pedintes, explicou-me o meu marido, é uma vergonha com tanto turista por aí. Passado mais um ano, o ti Carlos voltou a bater-me à porta. - Olha o ti Carlos!, exclamei, alegre por vê-lo com vida. Mas já não era a mesma criatura bem-disposta dos outros tempos, no albergue tinham-lhe arrancado a alegria do coração. - Sabe, minha senhora, disse-me, com os olhos azuis de criança muito tristes, nem os presos vivem assim, fazemnos trabalhar mesmo sem podermos e a comida que nos dão nem os porcos a querem. Calcule a senhora que estou lá há um ano e só hoje é que me deram folga para visitar as pessoas amigas, nem os condenados a trabalhos forçados, minha senhora. Qual foi o meu crime?, diga, minha senhora. Largou a chorar como uma criança e nem conseguiu acabar o prato de sopa. Depois desse dia nunca mais o tornei a ver, deve ter morrido em pouco tempo, mataram-no quando o encerraram naquele lugar. Há pessoas, como certos pássaros, que quando os metam numa gaiola nunca mais tornam a cantar e que acabam por morrer sem tocarem na comida que lhes põem diante. O ti Carlos foi bem uma delas. 54


- Não deviam ter feito uma coisa dessas à pobre criatura, disse eu ao Afonso. Ele tornou a vir com aquela história da vergonha para os turistas mas o Luís não gostou da explicação. - São tudo mentiras para esconder a miséria deste país, exaltou-se. Foi a primeira vez que o vi bater o pé ao pai.

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No dia em que o meu filho Zé fez a quarta classe, o meu marido voltou-se para mim: - Então, queres pôr o rapaz a estudar ou não? Claro que queria, quantas vezes já nós tínhamos falado disso, então nos últimos meses não devia haver um dia em que o assunto não viesse à baila. Eu bem queria mas agora era outra loiça, havia propinas para pagar, livros que custavam os olhos da cara, despesas sobre despesas. - Vai estudar, pois, repeti para dar forças a mim própria, Deus vai-nos ajudar. Porque, no fundo do meu peito, uma das grandes razões que me levavam a não querer regressar à terra era poder dar aos meus filhos a oportunidade de serem alguém na vida, de não ficarem uns pobres ignorantes como eu. Naquele tempo, lá para cima a única oportunidade duma criança sair da cepa torta era ingressar no seminário mas para isso era preciso muita sorte, cair nas boas graças dos padres que andavam sempre a farejar os catraios mais finos e alinhados. - Olha que daqui a um ano é o Luís, advertiu-me o meu marido. Pois claro, se um ia estudar o outro também iria, não éramos pais para diferençar os filhos, ainda se o Luís tivesse saído rapariga punha-se na costura, mas eram logo dois galarotes. - Deus vai-nos ajudar, teimei. Pelos meus filhos eu estava disposta a tudo, até a passar fome se fosse preciso. Foi desta maneira que o meu Zé fez o exame de admissão à Escola Comercial. No liceu nem valia a pena a gente pensar, aquilo era só para os filhos dos ricos, para os filhos dos doutores, as crianças todas engravatadas, como homens em ponto pequeno.

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Coitadinho do rapaz, com onze anos levantava-se às seis horas da manhã e lá ia a pé para Leiria, quatro quilómetros bem puxados, a cortar caminho pela mata dos Marrazes, estivesse bom ou mau tempo, no regresso a mesma história. Mas era muito alinhado, aquele rapaz nunca nos deu problemas, sempre com boas notas, estudioso, era muito engraçado, tão criança e já com um falar de homem que fazia rir, nunca se queixava dos sacrifícios que passava. Quando o irmão começou também nos estudos, já iam os dois, faziam-se companhia um ao outro, mas o mais novo já era mais traquinas, ficava-se pelos Marrazes a jogar à bola com os outros rapazes, às vezes aparecia-me com as calças todas rotas nos joelhos. Se o Zé não o estivesse sempre a puxar, só me aparecia em casa já noite cerrada, estudar não era com ele. Eu levantava-me todos os dias às cinco da madrugada, mais cedo do que as galinhas, para lhes preparar o pequeno-almoço e a merenda para levarem. Aqueles filhos não calculam os sacrifícios que os pais passaram por causa deles, o meu marido nunca ninguém o viu num café ou nas tabernas, todos os tostões eram poucos para tanto buraco. Mas cedo compreendi que já não podíamos mais, já estávamos a tirar ao comer, qualquer dia apanhávamos uma doença daquelas de amarrar à cama e depois é que era o bom e o bonito. Então, uma noite de maior desespero, voltei-me para o Afonso: - Assim não pode ser, disse-lhe. - Queres tirá-los da escola?, perguntou-me. - Tu és maluco!?, os rapazes vão tirar o curso nem que eu tenha de suar sangue. - Eu já não posso fazer mais nada, gemeu, com a voz molhada de tristeza. E não mentia, o pobre, tinha o serviço de guarda, o campo de sequeiro para tratar e já arrendáramos mais outro terreno de regadio onde colhíamos de tudo, aquele terreno era uma maravilha, a terra negra, negra, mas também

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suávamos lá todas as tardes e todos os fins-de-semana, saíanos do corpo. - Eu sei que tu não podes trabalhar mais do que já trabalhas, sosseguei-o, mas escuta, e falei-lhe da ideia que trazia metida na cabeça desde há uns tempos, a fábrica de plásticos está a meter pessoal e eu posso ver se me aceitam lá. - Tu és maluca, caiu do céu, tu já trabalhas como uma doida. Era verdade mas ainda era mais verdade que precisávamos de mais dinheiro como os olhos precisam de luz. - Eu cá me arranjarei, decidi. Uma mulher quando quer uma coisa consegue-a, aos homens o que é preciso é sabê-los levar, fazê-los acreditar que são eles que mandam, porque é isso o que eles querem, e no fim fazemos o que temos na ideia. Fui falar ao escritório da fábrica e passados uns dias já estava a trabalhar. Que vida a minha, nem é bom recordar, levantava-me às cinco da madrugada, preparava a merenda dos filhos e do marido, fazia o café, tratava dos animais, o porco, os coelhos, as galinhas, até pombos, aquilo parecia um jardim zoológico, andava nessa azáfama até que a sirene da fábrica berrava as oito horas menos um quarto. Lá ia eu a correr para não chegar atrasada, quando não o encarregado descontava-me uma hora na féria. Chegava sempre com os bofes na boca e era logo amarrar a cabeça a trabalhar. A princípio meteram-me a desbarbar uns bonecos muito lindos que saíam todos os dias da fábrica aos milhares, ali todo o santo dia com a faca nas unhas, zás, zás, lá tinham que ficar sem rebarba nenhuma que o encarregado andava sempre de olho em cima de nós, parecia um cão raivoso. Quando veio 25 de Abril a primeira exigência dos trabalhadores foi que o saneassem, os patrões estavam renitentes, a princípio não queriam, mas quando viram o caldo entornado cederam logo, que para eles o dinheiro valia mais do que os orgulhos. No primeiro dia, passada 58


uma hora, já tinha os dedos cheios de cortadelas, depois já nem ligava, uma pessoa habitua-se a tudo, ao meio-dia tocava a sirene, meia hora para a bucha e outra vez, zás, zás, até às cinco horas da tarde, a maldita sirene não tinha pressa nenhuma. Era sair a correr e ir fazer o jantar, tratar outra vez dos animais, eu sei lá que mais, uma loucura. Para lavar a roupa, tinha de ir muito longe, à fonte da Carvalha, a tal com água férrea muito boa, lá para o meio do pinhal, onde até diziam que apareciam lobisomens, com uma grande bacia de roupa nos quadris. Por mais que tentasse, nunca me habituei a pôr os carregos à cabeça como as mulheres dali, quando experimentava andava mais de oito dias com o pescoço dorido, nem sei como elas aguentam com aqueles pesos monstros, estão habituadas desde crianças mas mesmo assim, depois de velhas é que as pagam, com a espinha sem conserto, feita num acordeão, cá se fazem cá se pagam. Depois era lavar, lavar, um montão de roupa que só visto, os garotos sujavam mais do que um homem, a roupa tão encardida que parecia que não via água há anos, no regresso a bacia com a roupa molhada pesava como chumbo, tinha que descansar uma data de vezes pelo caminho, depois era pôr tudo aquilo a secar e agarrar-me ao ferro, sempre pontos para dar, a limpeza da casa, um pesadelo. O meu marido, coitado, também as passava boas, como eu já não tinha tempo para ajudá-lo, via-se aflito para trazer as hortas bem tratadas, os garotos ainda lhe davam uma ajuda, regavam, coisas assim leves, mas o trabalho mais pesado era todo para cima dele, só assim podíamos trazer os filhos a estudar, gente com mais posses do que nós, mal os filhos acabavam a escola primária metiam-nos logo a aprender um ofício, não estavam para grandes sacrifícios, mas eu, porque não me esquecia do que passara em pequena, tinha muita pena das pobres crianças, tão pequenas e às vezes já em trabalhos tão perigosos. Não têm conta os infelizes que ficaram sem os dedos e mesmo sem as mãos por aquelas ser-

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rações de madeira, distraíam-se e pronto, as serras pareciam esfomeadas de sangue tão novo e fresco.

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Tudo o que tenho estado para aqui a dizer não é para me queixar que, mesmo assim, por aquelas terras, naqueles tempos, havia mulheres com uma vida cem vezes pior do que a minha. Coitadas daquelas que tinham que andar todos os dias às jeiras, com uma enxada ou um sacho nas mãos, de sol a sol, sujeitas à brutalidade dos caseiros, toda a vida naquilo até que alguma doença as levasse de vez e, tantas, tantas, quando chegavam a casa ainda levavam porrada dos maridos, às vezes só porque não tinham a sopa servida a horas na mesa. Costuma-se dizer que casa onde não há pão todos ralham e ninguém tem razão, era o que acontecia com aquela pobre gente e depois para compor a festa e esquecer a vida, o pouco dinheiro que havia ainda o deixavam na taberna, tanto fazia os homens como as mulheres, de Manuel a Maria pouca diferença ia, os filhos criavam-se ao deus-dará, poucos chegavam a acabar a escola primária, olhem que princípios para a vida. - Mas o senhor professor Oliveira Salazar não vê esta miséria toda?, perguntava ao meu marido. - O que é que queres, respondia-me, há gente que nem à porrada se endireita, queres que se meta tudo na cadeia? Eu calava-me, sem palavras, mas no fundo do meu peito as respostas dele já não me satisfaziam, não satisfaziam a mim e não satisfaziam a muita mais gente e a prova dos nove tivemo-la quando o general Delgado se candidatou às eleições e, sem papas na língua, que o fulano devia ser doido varrido para se arriscar assim, se pôs a descobrir os podres todos dos grandes. O ciclone que aquilo não foi, se as trombetas do Juízo Final tivessem desatado a acordar os mortos a agitação não teria sido maior, mas só um cego é que não via 61


que aquilo ia dar borra por algum lado. Então podia-se lá meter na cabeça duma pessoa que todos aqueles galos velhos, que estavam no poleiro há tantos anos, iam assim ceder o lugar de mão-beijada, mas que se borraram todos pelas pernas abaixo, lá isso borraram, que o dissesse o meu marido, os dias e noites que ele não ficou de prevenção, durante meses contam-se pelos dedos das mãos as noites que ele passou em casa. - O governo tem muito medo desse general, contavame, mas o nosso capitão já disse que, der lá para onde der, ele não pode ganhar as eleições, nem que seja à porrada. O pior cego é aquele que não quer ver, as pessoas estão sempre prontas a acreditar em quem lhes promete o céu mas também se costuma dizer que há males que vêm por bem. Como estava bom de ver, o general Delgado, com muita trafulhice pelo meio, acabou por perder as eleições e se não fosse ligeiro a fugir tinham-lhe tratado do pêlo, mas tudo isso abriu os olhos a muita gente, fez compreender a pasmaceira em que se vivia. Foi assim que o povo começou a ir para França. A princípio iam poucos, com carta de trabalho nas mãos mas a coisa começou a engrossar e depressa foi uma loucura, toda a gente queria partir, já ninguém ligava a papéis, pagava-se a um passador e pronto, lá iam às carradas. Se os apanhavam, passados uns tempos tornavam a aventurar-se, tantas vezes que fosse preciso até passarem, muito dinheiro ganharam os passadores. E às vezes eram uns grandes vigaristas, como aconteceu com o meu vizinho, o senhor Triste, escorregou com dez contos logo ali para a mão do passador, uma fortuna naquele tempo. O malandro andou com ele e mais uns vinte desgraçados às voltas numa camioneta até que, já em Espanha ou lá o que era, num ermo mais ermo do que o inferno, lhes disse para esperarem, que o passador espanhol não tardava a aparecer para os passar para França. - O senhor não fica com a gente?, ainda desconfiaram os pobres diabos. 62


Mas o velhaco já tinha a resposta pronta na ponta da língua: - A camioneta dava muito nas vistas, não receiem nada que o passador já deve estar quase a chegar. Mas foi o chegas, o tempo passou, passou e nada, quem apareceu foram os carabineiros que os recambiaram, enquanto o diabo esfrega um olho, para Portugal. Ficaram sem o dinheiro que tinham dado e ainda por cima tiveram que pagar uma multa para não irem a julgamento. Multa! mais algum pardalão que se aproveitou dos infelizes e que meteu o dinheiro no bolso, foi o que foi. O senhor Triste ficou encalacrado da vida que eu sei lá. - Agora der lá por onde der é que eu tenho que abalar para França, dizia às pessoas amigas, como é que eu vou pagar os calotes? Felizmente, da segunda vez teve mais sorte e lá conseguiu dar o salto, foi um alívio para a família quando recebeu carta com a boa-nova. Foi mais ou menos quando rebentou a guerra em África e muitos rapazes aproveitaram para fugir à tropa, porque se dantes nas inspecções só aproveitavam os mais escorreitos, daí em diante não escapava nenhum, até os coxos e os marrecos eram aproveitados. - E quanto mais cegos melhor, dizia por brincadeira o Luís. Tinha razão, nem mesmo os atrasados se livravam, vejam só aquele rapaz, o filho do ti Américo, tinha o pensar dum rapazinho de dez anos quanto muito e lá foi para Angola. Morreu numa emboscada e depois regressou num caixão que a família nem pôde abrir, souberam lá se aquilo era o cadáver do pobre ou se não vinha nada lá dentro, que o povo murmurava muito em casos desses. Foi mesmo um crime apurar um rapaz daqueles e ainda maior crime foi enviarem-no para Angola. Estava-se mesmo a ver que ia morrer por lá, se mesmo os que tinham os cinco alqueires bem medidos também morriam ou fica63


vam estropiados quanto mais um pobre diabo daqueles que mal sabia qual era a sua mão direita. Aconteceram coisas muito tristes naquela guerra. Cada vez que passava ao pé daquele rapaz que andou a estudar com os meus filhos, o Pedro, e que ficou sem uma perna em Moçambique, vinham-me logo as lágrimas aos olhos. Então não era uma dor de alma? Quando regressou a casa já tinha uma perna de plástico que lhe tinham posto na Alemanha, quase não se notava que não era verdadeira, pouco ou nada coxeava mas é sempre muito triste ver um rapaz na flor da idade ficar aleijado e calculo o que eles sofriam lá por dentro. O Pedro era uma jóia de rapaz, antes de ir para a tropa ninguém tinha nada para lhe apontar, sempre com uma palavra boa para toda a gente, mas depois que regressou assim estropiado, começou a beber à toa, a rapariga com quem ele namorava, quase desde criança, queria casar na mesma mas às tantas teve que largá-lo da mão, ninguém podia aturá-lo com a bebida, provocador e malcriado, um desgraçado que para ali andava, a guerra só faz destas coisas. Era disso que eu tinha medo por causa dos meus filhos. Ainda hoje me recordo, como se tivesse sido ontem, do desfile do primeiro batalhão de Leiria que partiu para Angola pouco depois da guerra rebentar. Eu via os soldados a marchar, tão pálidos e sérios nas fardas amarelo-torrado, com a fanfarra à frente e as pessoas a lançarem flores das varandas e fiquei cega de lágrimas, a pensar nos meus filhos. “Queira Deus que a guerra acabe antes de eles serem chamados para a tropa”, foi a minha oração naquele instante. Mas ao mesmo tempo, não nego, sentia orgulho naqueles rapazes que, ainda quase sem barba na cara, iam partir para terras tão longe, dar a vida por nós como diziam os jornais, sempre cheios de fotografias com as atrocidades dos pretos. Só se falava disso, tanta gente esquartejada à catanada, que ódios tamanhos, meu Deus, para que essas coisas tivessem acontecido.

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Ao meu lado, o meu Luís, na altura um rapazito de treze ou catorze anos, não dizia nada, os olhos muito abertos e tão sem pinga de sangue que me assustou: - Sentes-te mal? Meteu na minha a sua mão que tremia como um passarito friorento e quando eu, maria-vai-com-as-outras, também comecei a bater palmas, voltou para mim os olhos húmidos e só disse: mãe!, mas eu mal o ouvi, as minhas palmas a engrossar a trovoada que subia até às alturas do castelo, bêbada com o perfume das flores que caíam das janelas. Depois, quando o desfile acabou e ficou só a tristeza das flores esmagadas pelas botas, metemo-nos ao caminho de regresso a casa. Subimos a ladeira dos Marrazes, direitos à carreira do tiro. Naquele tempo ainda aquilo era um paraíso só perturbado pelo cantar ao desafio das cigarras e da passarada nas ramadas dos pinheiros mas bem depressa tudo mudou. Dai para a frente foi um pandemónio que só visto, tudo cheio de tropas em manobras, os montes até estremeciam com tanto tiroteio, o dinheiro que para ali se gastava só em balas. Nos poucos dias de tréguas, a garotada dos Outeiros ia pelas barreiras apanhar as balas e depois de derreter o chumbo iam vendê-lo ao ferro-velho às portas de Leiria, logo à saída da ponte. Os meus filhos, principalmente o Zé, andavam sempre com dinheiro fresco no bolso graças a isso. Mais tarde o Luís, quando começou a andar com a cabeça cheia de ideias, já não acompanhava o irmão e estava sempre a criticá-lo: - Esse dinheiro está manchado de sangue. O Zé achava graça às saidas do irmão. - Depois não me venhas pedir uns cobres para o macito de cigarros, respondia-lhe, a rir. Atordoada com o desfile, eu ainda estava meio enxofrada, com o sangue a ferver nas veias, e pouco antes de chegar à carreira do tiro, no meio dumas quintas que para ali havia, o que aconteceu, ninguém me tira isso da ideia, só podia ter sido obra do demónio. Pois não foi que nos cruzámos 65


com um preto, talvez o único preto que existia em cem léguas ao redor, criado de lavoura numa daquelas quintas e que fora ali parar só Deus sabe como, um pobre diabo que não fazia mal a uma mosca, com uns olhos grandes e negros de boi manso, sempre de boina negra a cobrir a carapinha já esbranquiçada. - Bom dia, senhor António, cumprimentou-o o meu filho. - Boa tarde, menino, respondeu o homem, mostrando os dentes brancos num sorriso que me deixou os nervos assanhados. - Então tu dás a salvação a um terrorista? Mal estas palavras me saíram da boca, logo mil vezes me arrependi de tê-las dito. Mas já era tarde, a ferida que se rasgou nos olhos do pobre homem por minha culpa! É mágoa que levarei comigo para a cova. Poucos dias passados, quando me deram a notícia que o pobre se tinha enforcado na braçada duma oliveira, foi pior do que me tivessem cortado um braço, não sei como não caí redonda logo ali. Nessa noite não consegui fechar olho e no dia seguinte, mal a porta da igreja se abriu, fui-me rojar diante da imagem de Nossa Senhora de Fátima. Mas só no dia em que fechar os olhos para sempre e a minha alma se apresentar diante do Criador, para prestar contas dos meus actos, é que saberei se o meu arrependimento mereceu perdão. Foi a partir desse triste dia que compreendi que não é só com as mãos que se matam pessoas e que sem a justiça divina este mundo seria um regabofe.

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Daí para a frente foi pior do que deitar fogo a um palheiro. Começou também a guerra na Guiné e em Moçambique, só Deus sabe quando aquilo teria fim se não fosse o 25 de Abril. Mas ainda antes da África, aconteceu a invasão da Índia que pôs toda a gente em desassossego, a telefonia a tocar músicas guerreiras como se estivéssemos no tempo dos afonsinos e os malvados a dizerem que havia grandes combates. Pobre da senhora Adelaide, o marido era sargento do exército e estava para lá destacado. O que ela não chorava quando lhe perguntávamos se tinha notícias dele. - Não, senhora, não sei de nada, mal respondia com as lágrimas a saltarem-lhe aos olhos inchados de tanta noite em claro, deve ter morrido tudo, ainda conseguia dizer. E pronto, ferravam-se-lhe os soluços na garganta, uma tristeza tão do fundo da alma que até eu me punha a chorar com ela porque devia ser verdade o que dizia. Tão poucos eram os nossos contra tantos dos outros e já lá ia o tempo em que a padeira de Aljubarrota matara sete espanhóis com a pá do forno. Só mais tarde, muito mais tarde, quando o pobre do homem lhe pôde escrever a dizer que estava prisioneiro é que as pessoas lhe tornaram a ver a vida na cara, pobre mulher, o que ela passou. Mas o mais bonito foi quando o marido regressou a Portugal e explicava que não tinha havido combates, que os portugueses se tinham rendido logo à primeira e que até tinham sido bem tratados. Foi um espanto para toda a gente e lembro-me de me ter voltado para o Afonso e de lhe ter dito, preto no branco: - Estes governantes são uma cambada de mentirosos. Ele não gostou mesmo nada do meu desabafo mas também não sabia o que me havia de responder. Se bem me recordo, explicou-me que o comandante das tropas não tinha 67


obedecido às ordens de Salazar que eram de combaterem até à última gota de sangue. - Ele deu essa ordem porque não é pai, explodi, furiosa, é o que faz não casar e não ter filhos. Jesus, como eu estava, parecia uma gata assanhada. - Vamos acabar com a conversa, zangou-se, e vê lá se não dizes essas coisas desta porta para fora. Aquela molhada de anos foi de grande agitação. A Índia, a África, assaltos a quartéis e a barcos, para não falar nos estudantes que andavam sempre em desordens lá para Coimbra. Os jornais quase não falavam de nada, quem os lesse pensava que era tudo um mar-de-rosas. Eu é que sabia de tudo porque quando acontecia mais alguma coisa lá ficava o meu marido de prevenção. O desgraçado até arrepelava os cabelos de raiva, sempre preocupado com as hortas. - O que esses agitadores precisavam era de serem todos fuzilados, desabafava quando via as couves e os feijões a morrer de sede e ele sem tempo para regá-los. - Credo, homem, não digas isso, ralhava eu, a rir. Farta de saber estava eu que aquilo era tudo um desabafo, não era homem para fazer mal a uma mosca apesar da cara de réu que punha quando andava contrariado. Mas nem tudo eram preocupações e arrelias. A vida, no meio de muita coisa má, também nos traz algumas alegrias e uma das maiores foi quando o meu Zé acabou o curso comercial, com notas muito boas. O pai nessa noite bebeu uns copos bem bebidos. - Agora vamos tratar de te arranjar emprego, dizia para o filho, amanhã já falo com o senhor Antunes da serração, talvez se arranje qualquer coisa lá para o escritório. - E a mãe vai deixar de trabalhar na fábrica, acrescentou o Zé, já cumpriu bem a sua parte. - Então e eu?, ria o meu marido, já vermelho como um pimentão dos copos emborcados, eu não mereço descanso?

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- Na Guarda as pessoas também trabalham?, juntou à festa o Luís. Todos largámos a rir, foi uma daquelas noites que pagam todos os sacrifícios duma vida inteira. - Vai lá encher a garrafa de vinho, mulher, ria cada vez mais o meu marido, queres matar-nos à sede? Afinal, foi só passado um ano, quando também o Luís acabou o seu curso que eu larguei a fábrica. Custa a crer mas eu já estava habituada àquela vida e quando no primeiro dia ouvi a sirene e fiquei em casa de braços cruzados a olhar para as paredes, sem saber o que fazer, pouco faltou para desatar a chorar de tristeza. Que bichos tão estranhos são as pessoas, até à prisão nos habituamos, vá-se lá saber o que queremos. - Ainda está com pena de deixar aqueles exploradores?, troçou o Luís. Embora eu lhe desse sempre para trás, porque cada vez andava com mais medo das palavras afiadas dele, pois o meu coração de mãe adivinhava que aquelas ideias todas que ele ia colher aos livros que devorava até de madrugada não lhe iriam trazer nada de bom, no fundo, pela calada, tinha de concordar com ele. Só Deus e eu é que sabemos o que penei todos aqueles anos na fábrica para receber a miséria duma féria que mal chegava para pagar as meias-solas que rompia no caminho enquanto os patrões estavam, cada dia que passava, mais podres de ricos, carros, casas como palácios, luxos e mais luxos. - Sempre assim foi, sempre assim será, respondi-lhe, e tu deixa de ler tanto, andas mais amarelo do que uma maçaroca de milho. Cada vez que ele chegava a casa com mais um braçado de livros que ia buscar à biblioteca itinerante que por ali passava de vez em quando, era quase como se me deitassem pimenta nos olhos, ficava mais fula que eu sei lá. - Vai mas é passear, aos bailes, namorar por aí, faz como o teu irmão, olha que a juventude passa como um re69


lâmpago, quando damos por ela já passou, ralhava-lhe quando o via passar serões e mais serões com o nariz enterrado nos livros, esquecido por completo da vida. Ele quebrava-me com um abraço ou com um beijo, não precisava de muitas artes, o malandro, porque, não tenho vergonha de confessá-lo, o Luís sempre foi o meu filho mais apaparicado, talvez por ser o mais novo, talvez por sempre o ter sentido mais franco nos seus sentimentos. - Mãe, dizia-me, eu não quero andar neste mundo de olhos fechados, só por ver andar os outros. Havia tanta franqueza naqueles seus grandes olhos castanhos que eu calava-me como uma coruja, muito triste cá por dentro, porque adivinhava que por aquele caminho ainda haveria de apanhar muita bordoada na vida. Até que aquilo de que eu tinha mais medo acabou por me bater à porta. Uma manhã, entretinha-me eu a pôr um pouco de ordem no desarrumo do seu quarto quando fui dar com aquela molhada de panfletos no fundo do guarda-fatos. Fiquei com os olhos a arder de lágrimas, mal conseguia ler todo aquele palavreado contra a guerra nas colónias, as folhas de papel eram como um ferro em brasa que me escaldava as mãos. - Meu Deus, meu Deus, era só o que conseguia dizer. E já via o meu rico filho com os ossos espetados numa cadeia, vinham-me à cabeça todas as histórias que se contavam, com o medo nos olhos, acerca dos desgraçados que tinham a pouca sorte de cair nas garras da Pide. Coisas horrorosas, umas inventadas, outras verdadeiras, onde há fumo há sempre fogo, a minha cabeça parecia um cavalo doido com o freio nos dentes. Peguei naquilo tudo e só respirei fundo quando vi as labaredas da lareira engolirem o último bocado de papel. - Nunca mais tomes a trazer papéis daqueles cá para casa, disse-lhe, mal nessa tarde entrou da porta para dentro. - Tem razão, mãe, reconheceu, não tenho o direito de inquietá-la com essas coisas. 70


Mas já era tarde, o mal estava feito, daí para a frente, durante alguns anos a minha vida foi um inferno. Só conseguia adormecer quando o sentia entrar em casa, tinha pesadelos medonhos, as minhas noites encheram-se de monstros que queriam arrebatar-me o meu filho, acordava assarapantada, com o coração aos saltos no peito, parecia que ia morrer. - O que tens, mulher?, inquietava-se o Afonso. - Não é nada, dorme. Nunca lhe contei nada, muito preocupado já andava ele desde que o nosso Zé fora à inspecção. - Só peço a Deus que não me mandem o rapaz para a Guiné, confessava, é o pior sítio. Mas foi mesmo à Guiné que o Zé foi parar. No dia em que nos chegou a casa com a notícia, chorei lágrimas de sangue. - Não sou o primeiro, mãe, animava-me, não morrem todos lá, veja ali o Zé do Nuno que ainda está mais gordo do que quando abalou. - Pois sim, rebatia eu, e vê tu o filho da ti Rosa que foi apanhado pelos terroristas e nunca mais ninguém soube nada dele, nem sabe se está vivo ou morto. Pobre da ti Rosa que andava carregada de luto por um filho que talvez ainda fosse vivo. - Mais valia que me viessem dizer: o teu filho morreu, chorava, era um grande desgosto mas passava. Assim o desgosto é o mesmo e, ainda por cima, vivo sempre nesta dúvida, estará vivo, estará morto? - Sempre há uma esperança, animavam-na as vizinhas, vai ver que um dia ele lhe aparece cá em casa são e escorreito. Ninguém podia dizer mais nada porque no fundo toda a gente estava convencida de que os terroristas o tinham matado.

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- Era melhor ter morrido em combate do que ter caído nas mãos deles, explicava-me o Afonso, foram capazes de tê-lo esfolado vivo, aquilo é gente capaz de tudo. Mas, felizmente, mais uma vez se enganou. O rapaz estava mesmo vivo e um dia apareceu de surpresa em casa. A mãe, pobre mulher, quase ia morrendo com o choque, que as coisas boas em grande quantidade também matam. Afinal, os terroristas tinham-no levado para outro país ali ao lado e lá o mantiveram preso aquele tempo todo até que os portugueses, certa vez, fizeram uma operação de surpresa do lado de lá da fronteira para ver se caçavam os cabecilhas dos outros. Constou que aquilo não teve os efeitos que eles queriam mas, pelo menos, libertaram um magote de soldados que para lá estavam prisioneiros há um ror de anos, entre os quais o desgraçado do filho da ti Rosa. - E lá tratavam-te bem?, perguntavam-lhe depois as pessoas. - Bem não me trataram mas também não me trataram mal, eles também não tinham grande fartura. Sem rodeios, contava como ele e mais meia dúzia de desgraçados se tinham perdido numa operação e tinham ido cair como patinhos na boca dos terroristas. - Qualquer dia destes apanham aquilo tudo, dizia com aquela sua grande boca de favas, só lá anda a morrer gente sem benefício nenhum. Os amigos bem lhe diziam para ter tempero na língua. - Olha que podes ser preso. Mas ele estava meio amalucado e não parava de disparatar. - Se me prenderem, já estou habituado. O que penso, digo-o, não há para aí filho da puta nenhum que me consiga meter uma rolha na boca. Quando o Zé embarcou para a Guiné, o Luís já andava a chocá-la, lembro-me muito bem duma conversa que os

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dois tiveram na véspera da partida do Zé. A meio da conversa, o Luís voltou-se para o irmão: - A mim não me apanha essa corja. - És aleijado ou quê?, gracejou o Zé. - É por não ser aleijado que eles não me apanham, respondeu o Luís, eles que mandem os filhos defender-lhes os tachos. Na altura não liguei muito à conversa, preocupada como andava com a partida do Zé. Só mais tarde é que juntei umas coisas com as outras e é que compreendi o que aquelas palavras queriam dizer, mas já era tarde de mais, o malandro já andava há muito com ela fisgada. Custou-me muito a aceitar o que ele fez mas hoje já não sei dizer se fez bem se fez mal, talvez se tivesse ido para a tropa nos tivesse morrido na guerra. Pelo menos assim, apesar de todas as desgraças, e de todas as cambalhotas que deu, está vivo e de saúde e enquanto há vida há esperança, como diz o ditado. Foi mais ou menos quando Salazar deu aquele trambolhão. Uns diziam que tinha caído duma cadeira, outros na banheira, houve até quem inventasse que lhe tinha dado uma congestão em cima da criada, não há nada como a imaginação do povo para inventar histórias do arco-da-velha. Cá para mim foi a velhice e mais nada, um homem com aquela idade devia era estar na reforma a tratar do seu quintal, não era para estar à frente dum país. Pelo que diziam, depois do acidente já não mandava nada, dizia: faça-se assim, e os ministros: sim senhor, vossa excelência manda, e pelas costas dele iam fazer a contrário. Isto é que o povo murmurava, mas a povo diz tanta coisa! Vá lá a gente fiar-se em tudo o que ouve. Depois de lá terem metido o Marcelo Caetano, constava que os ministros continuavam a ir ao Salazar com as papeladas para assinar como se nada se tivesse passado e ele continuasse a mandar. Até parece anedota mas era a que se contava, que o velho tinha aquele vício de mandar metido no corpo, ninguém lho podia arrancar. Até naquele estado mise73


rável, já quase sem se poder mexer, e com os pés voltados para a cova, ainda queria ser a rei e senhor de tudo. Foram muitos anos no poleiro e o que é de mais também acaba por cheirar mal, quando entrou o Marcelo Caetano toda a gente suspirou de alívio. O povo já estava com os olhos mais abertos, muitos já andavam pelo estrangeiro, viam como é que se vivia por lá e faziam a comparação, afinal o que Salazar nos deu foi miséria, se não o diziam, pensavam-no. O Caetano quando no princípio ia falar à televisão era todo falinhas mansas e deu muitas esperanças, já não havia tanto medo e até se falava que iam acabar com a Pide. Tanta esperança que eu tive! “Talvez a guerra do ultramar acabe”, pensava, esperanças de mãe, uma mãe está sempre disposta a acreditar no que é melhor para os seus filhos, já que o Zé tinha ido para a Guiné, pelo menos que se salvasse a Luís. - A guerra só acaba quando este governo for derrubado, contrariava-me o Luís. - Cala-te lá, zangava-me a valer. Afinal tinha razão, inteligência foi coisa que nunca lhe faltou, eu sei que uma mãe nunca vê os defeitos dos filhos, quem feio ama bonito lhe parece, mas não era só eu a dizê-lo. Pouco depois fazer aquela burrice, o patrão dele, o senhor Nunes, encontrou-me na loja do Zé Costa e disse-me, palavra par palavra: - Foi uma pena que a seu rapaz tivesse feito uma coisa dessas. Eu gostava muito dele e tencionava pô-lo a chefiar a secção da contabilidade logo que regressasse da tropa.

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Naquela noite, noite que está cá gravada no peito como marca no lombo de gado, o Luís entrou em casa acompanhado por um amigo que morava mais lá para baixo, para o fundo da terra. - Boa noite, mãe, saudou-me, o Jaime pode jantar com a gente? - Pois claro que pode, respondi. Achei estranho, para mais o outro rapaz trazia um saco de viagem na mão mas pensei para comigo: “deve ter vindo de jogar à bola ou coisa parecida e ainda não foi a casa”. Lá me passava pela cabeça o que estava para vir, e puslhes, logo que pude, a comida à frente. Era um guisado de borrego e disse por brincadeira: - Quando é guisado cabe sempre mais uma pessoa à mesa, se não se come mais carne, comem-se mais batatas. O Jaime deitou-me um sorriso amarelo e começaram a comer em silêncio, um silêncio tão grande que eu franzi a testa, o Luís não era rapaz para estar assim calado. “Aqui há marosca”, foi o meu pensamento mas caleime à espera do que ia sair dali, até que, por fim, o Luís limpou a boca ao guardanapo e voltou-se para mim: - Mãe, disse com uma voz muito calma e baixa, eu e o Jaime vamos esta noite para França. Contava com tudo menos com aquilo, pôs-se-me um nó na garganta como se me estivessem a estrafegar. - Eu e o Jaime resolvemos fugir à tropa, continuou com aquela voz sem vida. - Isso é tudo por causa dessa maldita política, foi a primeira coisa que me saltou à boca quando consegui falar, maldita a hora em que te meteste nessas coisas. Desatei a chorar como uma madalena, um choro tão grande, tão grande, que me saía da alma, porque eu via a mi75


nha vida toda por água abaixo, todos os meus sonhos mortos, tantos sacrifícios que eu fizera, e para quê?, para quê? Não havia resposta para a minha pergunta, fez-me bem chorar assim quando não tinha rebentado, estive naquilo mais de meia hora bem à vontadinha. O meu Luís deixou-me chorar e só quando me viu mais aliviada é que me abraçou: - Mãe, disse baixinho, também me custa muito deixar-vos. - Então, porque vais? - Mãe, eu não quero ir fazer uma guerra em que não acredito. Não quero ir arriscar a minha vida e muito menos matar para defender os interesses de uma corja de patifes. O amigo dele estava mais calado do que um rato, só a olhar para as traves do telhado, então eu compreendi que já não podia modificar nada, nem que me fartasse de barafustar. Já tinham a decisão mais do que tomada, ninguém podia atravessar-se no caminho do destino. - É então esta noite? - É sim, mãe. Eu já só tinha medo que tudo corresse mal e os prendessem, porque já tinham ido à inspecção e podiam considerá-los desertores, o que era uma carga de trabalhos. Com as lágrimas a correrem-me pela cara abaixo, pus-me a prepararlhes uma boa merenda para a viagem, meti-lhes num saco de pano meia dúzia de latas de sardinhas, um pão dos grandes, metade dum queijo flamengo e pus um tacho de água a ferver para cozer meia dúzia de ovos. - Vou-te preparar o saco da roupa, disse. - Coisa de pouco peso, mãe. Meti-lhe duas mudas de dentro, quatro ou cinco pares de peúgas, duas camisolas de lã grossa, dois pares de calças, quase não via nada à frente dos olhos, tonta como aqueles malucos a quem dão remédios para cortar os ataques. “Quando o voltarei a ver?”, era só o pensamento que me atravessava o espírito, “talvez nunca mais”. Os rapazes, na cozinha, não piavam, brancos como lençóis. “São tão novos, 76


vão passar as passas do algarve, sabem lá eles o que é a vida, o pai vai morrer de desgosto quando souber, agora que estava tudo a correr tão bem, ainda se já fossem homens feitos, Virgem Maria protege-os com o teu manto, ai Jesus que me esquecia de meter um par de lenços de assoar, sabe-se lá se apanham alguma gripe pelo caminho”. - Vocês têm dinheiro?, perguntei-lhes. - Temos sim, mãe. Não liguei às palavras do meu filho e fui ao meu guarda-fatos e apanhei o envelope que tinha escondido debaixo das mantas de inverno, oito contos, uma fortuna para mim, amealhados grão a grão para comprar uma máquina de costura que me fazia muita falta, numa casa de família há sempre pontos para dar, uma bainha para descer, um fecho para pregar, adeus máquina. - Toma filho, vão precisar deste dinheiro nos primeiros tempos. “Ainda bem que é primavera e que o tempo já aqueceu”, pensei, atormentada com aquelas histórias que ouvia sobre a passagem dos Pirenéus com neve. - Escreve logo que possas, filho, não te esqueças, olha a aflição em que ficamos. Depois, ouviu-se o motor dum carro a trabalhar e uma buzinadela de ladrão. - É o passador, disse o Luís. Agarrei-me a ele, desvairada. Daqui para a frente já não sei explicar bem as coisas porque naquele momento já não estava no meu perfeito juízo, o meu filho teve que se soltar da tenaz dos meus braços à força e o beijo que me deu na testa ficou-me a arder como um ferro em brasa, andei mais de oito dias a senti-lo. Foi uma noite de morrer a que passei. Tranquei-me no quarto e espalhei sobre a cama todas as fotografias que tinha do meu filho: “Esta aqui é de quando o Luís tinha cinco anos, foi tirada na praia da Vieira, era a primeira vez que eu via o mar, fiquei de boca aberta para aquela loucura de 77


água, que dia tão lindo, o céu muito azul, a areia brilhante a cegar os olhos e toda aquela gente a torrar ao sol, famílias inteiras ao redor dos grandes farnéis com o garrafão do tintol sempre à mão, já me tinham falado mas eu nunca tinha visto assim aquelas mulheres quase despidas, estava mais envergonhada do que elas, palavra. Para onde estás a olhar? perguntava ao meu marido, para nada, respondia mas o malandro não tirava os olhos gulosos de cima delas, hoje já ninguém liga, assim é que vejo como os anos passaram, mas naqueles tempos só as raparigas mais afoitas é que se punham em fato de banho, meninas da cidade é claro, coitadas das moças do campo, onde é que elas tinham dinheiro para aqueles luxos e se mostrassem as pernas acima dos joelhos caía-lhes o carmo e a trindade em cima, era o bastante para perderem casamento; esta foi quando o Zé fez a comunhão solene, que engraçada a cara dele, com doze anos e já tão sério, um perfeito homenzinho; esta aqui somos nós todos no Mosteiro da Batalha, foi o nosso vizinho Artur quem no-la tirou, tínhamos ido a uma excursão a Fátima e de caminho parámos na Batalha, aquele mosteiro acho que foi a coisa mais maravilhosa que vi em toda a minha vida, aqueles trabalhados todos, a gente chega até a duvidar que tenha sido obra das mãos dos homens, tudo mais perfeito que bordado; esta foi quando o Zé assentou praça nas Caldas, Jesus, credo, parece sei lá o quê, com o cabelo rapado; nesta o meu Luís está muito magrinho, tinha apanhado a febre asiática e levantou-se da cama ainda muito fraco para ir tirar as fotografias para o bilhete de identidade, foi uma grande sorte o Zé não apanhar a febre também, eu e o meu marido ainda chegámos a amarrar à cama, contam-se pelos dedos as pessoas que se salvaram, foi pior do que a peste dos porcos. Tu és de ferro, dizia o meu marido para o Zé, fora as doenças próprias das crianças, o sarampo, as bexigas e coisas assim, nunca o Zé apanhou nada, graças a Deus, ainda hoje, já um madurão de quarenta e tal anos, parece que espirra saúde pelos olhos, o meu Luís era mais fraquito, até a tosse convulsa apanhou, 78


passei noites em claro por causa dele, o meu medo era que lhe rebentassem os peitos, tão pequeno, coitadinho, ainda não tinha nove anos e num sofrimento tão grande, quando começou a ser maiorzito, como gostava muito de jogar à bola e de ir aos ninhos, o ar dos pinhais fez-lhe bem e começou a arrebitar, falta de saúde é coisa de que agora também não se pode queixar. Foi assim aquela noite, as fotografias ainda hoje têm marcas de tanta lágrima, veio a madrugada é a nem a senti chegar: esta aqui é dos meus filhos na feira de Março, em Leiria, ficaram muito bem, lembro-me de lha ter tirado quando estrearam um fato muito lindo, verde clarinho, os dois de igual, toda a gente via logo que eram irmãos, foi a primeira vez que lhes pus gravata, o Zé ia fazer treze anos e o Luís doze, que sacrifício para eles, o fotógrafo com a cabeça debaixo do pano, levanta a cabeça, vira-te para a direita, abre os olhos, não se mexam, quando o clarão os cegou, os rapazes até suspiraram de alívio, mortificados de estarem para ali tanto tempo como estátuas.” Quando o meu marido regressou do quartel, por volta das oito horas da manhã, apanhou-me naquele preparo, as lágrimas a correr, a correr, agarrada às fotografias. Depois contou-me que supôs que eu estava meio avariada da cabeça, não dizia coisa com coisa, e não andava muito fora da verdade.

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Naqueles tempos mais chegados nunca mais se me viu um sorriso pintado na cara, as pessoas perguntavam-me pelo meu Luís e eu desatava logo a chorar como uma criança, às vezes até me criticavam: - O seu Zé também anda lá fora e em maior perigo e a senhora não chora tanto por ele. Era verdade e não era, porque o Zé, se Deus quisesse, e assim o quis, não tardava muito estaria de volta e o Luís sabia Deus o que seria, não tinha uma ponta de esperança de o tornar a ver tão cedo. Felizmente, para meu descanso, passados quinze dias, recebi carta dele, dizia que estava em Paris, em casa dum amigo e que não estivéssemos preocupados, que já tinha arranjado trabalho numa fábrica, um serviço muito leve e limpo. O meu marido andava mais amedrontado do que um coelho na época da caça. No primeiro dia, mal conseguiu perceber dos meus lábios o que o Luís tinha feito, foi-se aos livros do rapaz e tudo o que lhe cheirava a política, zás, passou a manhã a queimá-los na lareira, só parou quando viu tudo em cinzas. Mas mesmo assim não ficou descansado, com medo que a Pide nos fosse revistar a casa. - Já viste, mulher, na alhada em que aquele malandro nos meteu? Se lhes dá na telha de marrar para ali até são capazes de me expulsarem da Guarda e de me meterem uns tempos na grelha só por vingança. Eu benzia-me dos pés à cabeça: - Não há-de ser tanto assim, homem, Nossa Senhora está do nosso lado. - Tu não os conheces, tornava ele, só me faltava mais esta para o fim da vida, logo agora que estou quase a atingir a reforma por inteiro.

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- Acaba lá com esses agoiros, homem, tentava animálo. Mas eu ficava mais aflita do que ele, não passava um dia em que não me viesse à cabeça a desventura do senhor cabo Mendes e até se me gelava o sangue nas veias com receio que a mesma desgraça se abatesse sobre o nosso lar. Trazia o coração negro, negro, o Zé na Guiné, o Luís fugido lá para França e aquele medo de que fizessem mal ao meu marido, tudo isso me arrasou os nervos. Ainda andei a tomar drogas para dormir a noite mas não havia remédio que me valesse, era uma aflição que só Nossa Senhora e eu é que sabemos, uns abafos e uns calores tão grandes que havia momentos em que pensava morrer. - Tu estás magra como uma cadela, mulher, alarmava-se o meu marido, tu não comes ou quê? - Então não vês que sim, homem? Porque pela falta de apetite não era, mesmo nos momentos de grande aflição nunca tive fastio, graças a Deus, há pessoas que à mínima contrariedade já não são capazes de meter nada a boca, mas eu sou o contrário, nessas ocasiões parece que tenho mais apetite do que nunca, sou como uma loba, e se não meto qualquer coisa à boca ferra-se-me logo um buraco na boca do estômago, há quem diga que estou muito sujeita a apanhar uma úlcera porque os nervos atacamme o estômago mas se não a apanhei de nova acho que não vou apanhá-la agora depois de velha. - Então se comes bem, porque diabo estás a emagrecer de dia para dia?, insistia. - Então não vês que é das aflições?, respondia-lhe, palavras que tinham o condão de o afligir ainda mais. - Logo agora que a nossa vida era um mar-de-rosas. - Deixa lá, homem, que o diabo não há-de estar sempre atrás da porta, lá o animava como podia. Na verdade, aqueles últimos anos, depois que os garotos acabaram os estudos foram talvez os melhores da nossa vida, com os filhos empregados, o meu marido andava mais 81


contente do que um pavão e até a barriga lhe crescera mais uns furos. Começávamos a sentir pela primeira vez que aquela era a nossa terra, a tal ponto que uma noite na cama voltei-me para ele e disse-lhe: - E se vendêssemos uns lameiros lá na terra e fizéssemos aqui uma casita? Ele ficou calado como um rato, sinal de que não achava a ideia tola de todo. E assim se fez, dei logo ordens ao meu irmão para tratar das vendas, comprámos um bom terreno e em três tempos um empreiteiro de Leiria construiunos uma casita airosa com luz e casa de banho. Foi como mudarmos de uma barraca para um palácio, então para as filhos foi uma alegria que só visto, já tinham outros pensares e queriam outras comodidades. Na primeira casa onde morámos, se queríamos tomar banho tinha que ser na cozinha numa grande banheira esmaltada mas apanhava-se muito frio no inverno. Estava sempre com medo das correntes de ar por causa dos resfriados e se queríamos fazer as necessidades tinha que ser no pátio. O meu marido fizera uma casota de tábuas para nos resguardar do frio e das vistas mas mesmo assim era uma porcaria. Só quando mudámos para a casa nova com sanita, banheira e água corrente é que vimos a diferença, tão diferente como do dia para a noite, e a luz, nem sei como passámos tantos anos à luz do candeeiro. Depois, quando falhava a electricidade parecia que já não sabíamos andar dentro de casa, como cegos aos encontrões uns aos outros, é bem certo que só quem nunca teve as coisas é que não sente a falta delas. Ainda hoje, lá em Cicouro, em casa do meu irmão ainda se alumiam à luz da candeia, os desgraçados. Não é por miséria, não senhor, ainda há uns meses compraram um tractor que lhes custou um dinheirão, mas é assim, não há ninguém que lhes possa tirar aquelas ideias enferrujadas da cabeça, burro velho não ganha andadura. - Para quê pôr luz em casa? espantava-se o meu irmão quando eu lhe tocava no assunto, nós aqui deitamo-nos 82


com as galinhas, isso ĂŠ bom para ti que jĂĄ ganhaste os vĂ­cios das cidades.

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Mas se eu deitava a minha falta de saúde para cima das minhas preocupações, a senhora Alice, a mesma que me ajudou a deitar os meus filhos ao mundo, torcia o nariz desconfiada: - O que vossemecê anda é com uma grande bruxaria ou coisa parecida em cima, trate-se enquanto é tempo. Olhe que já já cheguei a ouvir gargalhadas em sua casa pela calada da noite e para lhe ser franca, fique a saber que a bruxa da Estação anda-me sempre a dizer que perto de mim mora alguém que está a precisar de ser socorrida urgentemente e que outra pessoa há-de ser senão a vizinha? Enquanto ela dizia estas coisas, toda eu tremia como varas verdes e os dentes rangiam-me como castanholas, só quem passa por elas é que pode avaliar. Eu sei que há muita gente que não acredita, riem e até troçam, a senhora Alice era uma delas, contava-me que quando lhe falavam nisso soltava uma gargalhada de troça na cara das pessoas, foi isso que a perdeu, quando certa vez uma cigana lhe bateu à porta. - A senhora quer ler a sina? A senhora Alice nesse dia andava com os azeites é respondeu-lhe torto: - Não tenho tempo para aturá-la, mulher, a minha sina é trabalhar como uma escrava, isso já eu o sei desde há muito tempo, não preciso que mo digam, desampare-me a loja. A cigana não gostou da resposta e rogou-lhe logo ali uma praga: - Dentro de uma semana vai acontecer uma desgraça nesta casa. A senhora Alice largou a rir. 84


- Maior desgraça do que a minha vida, com cinco filhos para criar? Mas logo parou de rir, fulminada pelos olhos negros da cigana, foi como se lhe tivessem dado uma facada na alma. Passada precisamente uma semana, o marido, assim sem mais nem menos, agarrou uma manta e foi viver para um barracão que tinham encostado ao pinhal e que lhes servia de arrecadação. Desde esse dia, o pobre do homem nunca mais quis saber da vida, nem da mulher, nem dos filhos, nem do trabalho, para ali vivia como um bicho, sem falar com ninguém, o seu alimento eram ervas e raízes que colhia pelos campos, a senhora Alice pensou que ia dar em doida. A princípio, toda a família e até os amigos iam ter com ele na esperança de trazê-lo à razão. - Ó homem, o que é isso?, já que não pensas na tua mulher, pensa pelo menos nos inocentes que tens lá em casa. Ele ollhava-os a todos, tranquilamente, com um sorriso de santo nos lábios, mas nunca mais abriu a boca para ninguém. A senhora Alice, certo dia, numa última tentativa levou-lhe os filhos para ver se assim o convencia a regressar a casa, qual quê, mais valia estar quieta. - Não tens compaixão dos teus filhos?, gemia a pobre mulher. Era como falar para uma parede. Foi então que a senhora Alice se recordou da praga da cigana e foi falar com a bruxa mas já não havia nada a fazer. - A maldição foi muito grande, explicou a bruxa, é um poder enorme que ninguém pode quebrar. Pobre da senhora Alice, viúva com o marido vivo, com cinco bocas para sustentar, o que lhe valia era que nesses tempos nasciam crianças como cogumelos depois duma chuvada e ela não tinha mãos a medir, deixava à légua em sabedoria todas as parteiras, mesmo gente rica das terras em redor se socorriam dela na hora da verdade. Quando abalei para Cicouro, ainda o homem continuava para ali no barracão, a cama dele era um monte de fe85


no, só saía para colher as ervas e as raízes, sempre com aquele sorriso nos lábios como se estivesse sempre a troçar da gente, um homem trabalhador como ele era. - A culpa é minha, estava sempre a dizer a senhora Alice. Às vezes, a bruxa, por descargo de consciência, ainda fazia uma ou outra sessão para ver se conseguia quebrar a maldição, é o consegues, foi para toda a vida. Mas do mal o menos, o homem era uma paz d’alma, não fazia mal a uma mosca, nem mesmo quando os garotos lhe atiravam pedras. Não era como aquele rapaz da minha terra que deu em lobisomem, eu tinha na altura aí uns dez anos e mal o via assomar ao cimo da rua, pernas para que te quero, não era manca a fugir para casa. Ele ainda era um garoto, teria uns quinze anos, mas quando lhe davam os ataques eram precisos meia dúzia de homens dos rijos para segurá-lo. Às vezes fugia para os montes e andava por lá misturado com os lobos até recuperar as feições humanas, um dia uma alcateia atacou um rebanho e o pastor viu-o no meio dos lobos a atirar-se a uma ovelha e a esfacelá-la à dentada. A família não teve outro remédio senão prendê-lo pelo pescoço com uma corrente de ferro, no curral das vacas, mas quando lhe vinham as ataques uivava toda a noite e quando nascia a manhã encontravamno banhado em sangue das dentadas que dava nele próprio, felizmente que só viveu dois ou três anos assim, quando morreu, o senhor padre João recusou-se a acompanhar o enterro. - Aquilo não era uma pessoa, era um bicho, explicou as suas razões. Naquela noite só se ouviam alcateias a uivar pelos montes, ninguém se atrevia a assomar o nariz à porta da rua, toda a gente agarrada ao terço. O marido da senhora Alice sabe-se que foi praga da cigana mas este nunca ninguém soube o que foi. Era um rapazito muito tranquilo que fazia a que queria do realejo, quando se punha a tocar juntava sempre gente ao redor para 86


escutá-lo. Depois, quando começou com os ataques, as pessoas desataram a dizer que aquilo devia ser música dos infernos para tentar as crentes e um dia os homens não estiveram com meias medidas, tiraram-lhe a realejo das mãos e escavacaram-no em mil bocados. - Chega de desencaminhar os filhos de Deus, persignaram-se as velhas aliviadas. O rapazito não disse nada, branco como a cal, mas as lágrimas corriam-lhe como um ribeiro pela cara abaixo, até eu me pus a chorar também com pena dele. Eu, para falar francamente, nunca fora muita dessas coisas de bruxas, tinha-lhes a meu respeitinho mas não era pessoa para andar metida com elas por tudo e par nada, a mesma coisa se passa com a igreja. Tenho fé em Deus como todo o cristão mas não sou para andar sempre metida na igreja a bater com a mão no peito, acho que o importante é a gente conduzir-se como deve ser, com rectidão e não fazer aos outros o que não queremos para nós. Mas dessa vez não tive outro remédio, eu é que sei como andava quebradinha de todo, já sem forças para arrastar os pés, de madrugada, quando os galos se punham a cantar já estava com os olhos arregalados há que tempos. E se os vivos nunca me meteram grande medo, somos todos feitos do mesmo barro, de carne e osso, com a diferença que uns berram mais do que os outros, às vezes para esconder as misérias que lá vão por dentro, dos mortos é diferente, mais a mais depois que eu vi o meu pai a falar pela boca da bruxa. Juro pela luz dos olhos dos meus filhos e dos meus netos, que são a maior riqueza da minha vida, aquilo não era a bruxa que falava, não senhor, era a meu pai, até o jeito como torcia a boca era o dele, e as coisas que disse sobre a nossa vida que mais ninguém podia saber? Viva eu cem anos, nunca, nunca mais me sairão da lembrança as palavras dele: “Filha, recordas-te da madrugada em que te levei ao comboio a Duas Igrejas?”

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“Pois então não me havia de recordar, pai?, isso são coisas que nunca se esquecem nem que a vida dê mil reviravoltas.” “Então deves estar recordada que, antes de entrares para a comboio, me prometeste voltar para me mostrar o meu neto” “Mas pai, interrompi-o, o senhor morreu antes do Zé nascer.” A bruxa, ou o meu pai, sabia eu lá quem era, calouse, eu à espera, com o coração como um cavalo aos pinotes no peito e depois a voz do meu pai voltou: “Eu estava na sepultura à espera, há vinte e dois anos que estou à espera, só depois de cumprires a tua promessa é que eu poderei finalmente encontrar o caminho do além.” E pronto, já não era ele quem ali estava comigo, era outra vez a bruxa. Paguei-lhe da melhor das vontades os duzentos escudos que me pediu, até os dentes me rangiam quando dali abalei, só a pensar na pobre da Maria Beça e na sina igual que me tocaria se a providência não me tivesse atravessado no caminho da vida os conselhos da senhora Alice. - Parece que viste o diabo, estranhou-me o meu marido, quando cheguei a casa. - Não vi o diabo mas vi coisas parecidas, respondilhe, e deixei-o de boca aberta com as coisas que lhe contei. - Ele há cada uma!, coçava ele a cabeça. - Mal o Zé chegar da Guiné a primeira coisa que fazemos é ir lá acima à terra cumprir a promessa, disse eu. E quase que sentíamos a alma do meu pai a arrastar os grilhões pelos cantos da casa. O Afonso também não era de bruxarias mas quando viu o exemplo em casa convenceu-se, que remédio! tanto assim que quando um dia a Guarda recebeu ordens para ir prender a bruxa, ele estava escalado para ir na patrulha mas deu parte de doente nesse dia, que com coisas sérias não se brinca. Os colegas dele que tiveram a triste sina de a deter 88


daí para a frente só tinham problemas sobre problemas na vida, nunca mais nada lhes correu de feição, - Ainda bem que eu dei parte de doente, reconheceu. Mas pelos vistos, quando toca a essas coisas toda a gente tem medo de se escaldar, passados poucos dias já a bruxa estava de volta a casa, com mais freguesia do que nunca. No fundo, até foi bom para ela, fez com que a sua fama se espalhasse por todo o lado, dizia-se que até o juiz encarregado do processo a foi visitar ao calabouço pedir-lhe a intervenção por causa duns problemas que tinha em casa com a mulher, por culpa duma amante, uma rapariga uns vinte anos mais nova do que ele que o punha doido varrido e que o trazia pela trela como a um cãozito de luxo.

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E se ao princípio eu andava mais preocupada com o Luís do que com o Zé, depois da ida à bruxa a coisa mudou de figura, que coisa estranha a vida sempre às reviravoltas, a partir daí comecei a contar os meses, as semanas, os dias que faltavam para o Zé acabar a comissão, numa impaciência de mulher prenhe à espera do parto. O que me valia era que o Zé era mais pontual do que um relógio, não havia semana em que não recebêssemos carta, estou bem, não se preocupem comigo, isto aqui não é tão mau como o pintam. Mas nós não acreditávamos nas palavras dele, pelo que o conhecíamos, mesmo que aquilo fosse o inferno, não diria nada que nos pudesse inquietar, ainda se ele tivesse outra especialidade, chorava-se o meu marido, mas logo atirador. O meu marido, na altura da distribuição das especialidades ainda meteu uma cunha ao capitão lá da Guarda, chegámos a oferecer-lhe um presunto que mandámos vir lá de cima da terra, mas mal-empregado, antes o tivéssemos comido nós, tão lindo que era, não nos valeu de nada, o Zé foi parar a atirador na mesma. - As coisas boas nunca são para as pobres, estão a ver?, atacou o Luís, os pobres é que são carne para canhão, vejam aí se os filhos dos ricos andam aos tiros pelas matas, para eles está reservado o ar condicionado e as secretarias. - O que é que queres, filho?, se nós fôssemos ricos e tivéssemos influências fazíamos também o mesmo, quem é que não procura o bem dos filhos? Mas se o nosso Zé só nos falava das coisas boas que passava, como par exemplo das patuscadas de marisco e cerveja em Bissau, já o filho do ti Lázaro, que também por lá andava na mesma altura, quando escrevia aos pais só falava de operações e combates.

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- Então o seu Zé não lhes conta nada?, admirava-se a mãe do rapaz, sempre a enxugar as lágrimas ao avental. E mostrava-me fotografias de estarrecer que a filho lhe mandava, palhotas num braseiro, cabeças de pretos espetadas em paus, então ao ti Lázaro não lhe cabia um feijão no cu, falava para quem o queria ouvir nas condecorações que o filho já recebera, coisa do arco-da-velha. A mim custava-me a acreditar no que ouvia, logo o filho do ti Lázaro, o Carlos, um rapazinho de cabelos louros e olhos azuis, com cara de anjo, jardineiro na Câmara de Leiria, que tratava das flores com carinhos de artista, incapaz de se meter numa zaragata. Era tanta a minha confusão que acabei por escrever ao Zé a pedir confirmação de tudo o que ouvia. - Diz-me a verdade, ouviste?, pedi-lhe. - É verdade, mãe, confirmou o meu filho, na volta do correio, o Carlos oferece-se voluntário para todas as operações, até os terroristas já lhe chamam a anjo do inferno e puseram-lhe a cabeça a prémio. - Meu Deus!, benzi-me, de boca aberta, vá uma pessoa saber o que vai na cabeça dos outros. Quando o Carlos regressou tornou para os seus jardins e para as suas flores como se nada se tivesse passado, sempre com aquela cara de santo do altar, quando lhe falavam da guerra só sorria e não abria a boca, como se tivesse posto uma pedra sobre o assunto. As medalhas que ganhou era o pai que as guardava, para ele tinham menos valor do que um vintém furado. - Este filho!, abanava a cabeça o ti Lázaro, desconsolado, incapaz de reconhecer naquela mosca morta o herói de que trouxera a boca cheia durante quase dois anos. Ainda o estou a ver nas vésperas da chegada do filho a meter-se com toda a gente, já com um grão na asa. - O meu filho está quase a chegar, ria-se de orelha a orelha. E logo falava no plano que trazia na cabeça de o ir esperar a Lisboa com uma folha de couve lombarda espetada no alto duma cana-da-índia. 91


- Ainda a barco virá a meia viagem e já o meu herói poderá saber que estou estou ali à sua espera, ria-se até às lágrimas que enxugava com aquelas manápulas gastas de polir o cabo da enxada de sol a sol. Depois, cada dia mais decepcionado, sem motivos para se alegrar, foi ficando cada vez mais curvado, roído pelo reumatismo. Morreu passado pouco tempo e até o filho parecia contrariado de ter de largar as suas flores para acompanhar o enterro. Quando o Zé chegou não trazia medalhas penduradas no peito mas, graças a Deus, voltava são e salvo, cheio de coragem para se deitar à vida. - Qualquer dia vamos marcar a data do casamento, dizia, sorridente, abraçado à namorada. - Isso é que é falar, dizia a meu marido, feliz da vida, a piscar-me a olho, são das melhores famílias cá da terra, segredava-me. Quando soube do namoro, eu também gostara da rapariga mas já não podia dizer o mesmo dos meus futuros compadres, a verdade deve seja dita. Lá por o senhor Augusto ser guarda-livros e andar sempre engravatado parecia que nos falavam por favor, sempre com o nariz no ar como se a mundo fosse deles e nós não passássemos dum monte de esterco sem serventia. Mas quando chegou a altura do casamento, acabaram as caganças todas, aquilo não tinham um tostão para mandar cantar um cego, mais espremidos do que limões. E não era para menos, embora o senhor Augusto tivesse um ordenadão, os luxos eram muitos naquela casa, a minha nora ainda vá que não vá, não se alargava por aí além mas aquela filha mais nova, a Ana, era uma loucura, derretia rios de dinheiro aos pais, aquilo era menina para estrear uma peça de roupa cada semana, sempre na última moda, com a cara mais borrada de pinturas do que uma máscara de carnaval. Quando o Luís regressou de França, o Zé, meio a sério, meio a brincar, disse-lhe certa vez: 92


- Atira-te à minha cunhada, fica tudo em família. Mas o Luís respondeu-lhe torto: - Quando casar há-de ser com uma mulher e não com uma boneca. Com tudo isto, quem acabou por arrotar com as despesas do casamento fomos nós, e ainda por cima queriam ser eles a decidir tudo, era preciso ter descaramento, com aquela mania das altezas queriam fazer a boda num hotel em Leiria. - Alto lá, pus-me ao alto, porque o pacholas do meu marido já estava pelos ajustes, se a senhor Augusto e a dona Hermínia têm convidados da alta que gostam desses lugares finos, os convidados do nosso lado são gente simples que até teria medo de sujar o capacho da entrada do hotel, a festa faz-se aqui na nossa casa, montam-se uma mesas no quintal e toca a comer e a beber e quem ficar com os calores pode ir dar uma volta pelo pinhal para espairecer. - Pois claro, mãe, ajudou-me o Zé, no hotel ainda era capaz de ficar tudo com a barriga a dar horas e nessas ocasiões quer-se é fartura, muita comida, muito vinho e muita alegria. Fartura e alegria foram coisas que não faltaram, eu e a senhora Alice, com a ajuda de mais duas mulheres passámos uma semana inteirinha agarradas aos tachos, de vez em quando, por descargo de consciência, a dona Hermínia lá mostrava a ponta do nariz. - Corre tudo bem? Fingia que ajudava aqui e ali, sempre com medo de estragar o verniz das unhas ou de partir o salto dos sapatos e com cada sugestão mais estrambólica que até nos punha de boca aberta. - O que estava mesmo a calhar eram umas lagostas, dizia com aquela vozinha aflautada de quem comia iguarias dessas todos os dias. - Ó senhora, respondia-lhe, pensa que isto é algum casamento de reis?

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Coitada, Deus a tenha no seu eterno descanso, morreu ainda nova, de cancro, no fundo não era má criatura, todos temos os nossos defeitos, o que a perdia era aquela mania das grandezas. Mas, graças a Deus, tudo correu da melhor maneira, o meu marido, que não é nada dessas coisas, bailou e cantou toda a noite e até a senhor Augusto, lá para o meio da noite, para espanto de todos, tirou a gravata e desabotoou o colarinho, parecia mesmo uma galinha de pescoço pelado, - Que figura!, repreendeu-o a dona Hermínia. - Ó senhora, disse eu, deixe a homem estar à vontade, pelo menos no dia do casamento da filha. Ainda gostaria de saber se o senhor Augusto vai para a cama de gravata ao pescoço, perguntei-lhe, descarada. Até o senhor Augusto riu com a minha saída. - A senhora pode tirar a prova esta noite, se o seu marido nos der a consentimento, respondeu-me à letra o malandro. Já a noite ia adiantada quando o Zé me abraçou. - Só falta aqui uma pessoa, disse-me ao ouvido. O que ele foi dizer, só não chorei diante de toda a gente por vergonha e para não estragar a festa. - Deixa lá, filho, que o Luís não está mal, ainda tive forças para lhe responder, e fui esconder-me no escuro da casa de banho a morder as mãos para sufocar os soluços. O Luís continuava a escrever-nos de tempos a tempos, as cartas dele eram como as trovoadas, chegavam quando menos se esperava e se nos fôssemos fiar nas palavras dele a revolução era já para amanhã, mesmo o meu marido já troçava: - Então desta vez a revolução é para quando? - Não brinques com coisas sérias, ralhava eu, no dia em que isso acontecer até te hás-de borrar todo pelas pernas abaixo.

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- Só se for no dia de são nunca à tarde, mulher, continuava a troçar, essas coisas só acontecem na cabeça cheia de teias de aranha do teu filho. Eu até parecia outra desde que o Zé chegara da Guiné, arrebitara como uma candeia a que tivessem posto azeite novo e então quando o Zé, por influência do senhor Augusto, arranjou emprego no banco em Lisboa nem queiram saber a alegria do meu marido: - Vou já vender uns lameiros na terra, arranja-se dinheiro para a entrada dum andar lá em Lisboa, não tenham problemas filho, ainda ficamos com muitas terras onde moer o corpo quando me reformar, se Deus quiser e nos der saúde, decidiu logo, com uma energia como eu nunca lhe vira em vinte e tal anos de casada. Foram palavras que vieram mesmo a calhar. - Podermos ir todos lá acima tratar da venda, aproveitei eu, e com uma piscadela de olho para o meu marido: - Para uma boa lua-de-mel não há nada como aqueles bons ares mirandeses. - Olhem que não não é má ideia, entusiasmou-se o Zé, o que dizes a isto, Marília?, perguntou à minha nora.

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É bom de ver como fiquei satisfeita por eles terem aceitado a minha proposta, melhor ocasião para pagar a minha promessa não podia haver e já era mais do que tempo de ajudar a alma do pobre do meu pai a encontrar o caminho do além. O Zé tinha comprado um carrito e lá nos metemos os quatro caminho acima. O meu marido falava pelos cotovelos, feliz como um rapazito a quem tivessem prometido uma guloseima. - Sabem em que mês estamos?, perguntou quando já íamos lá para Celorico, no meio daquelas montanhas todas. - Pois então não havíamos de saber, homem?, tens cada pergunta. - Pois estamos em Setembro, continuou sem ligar nenhuma à minha troça, daqui a quatro dias é a festa do Naso, temos que lá ir comer a posta mirandesa, e batia as palmas de tão contente, lembras-te, mulher, da festa do Naso? Se me lembrava!, e também eu me deixei levar pelo entusiasmo das recordações, os dois ao desafio a desenterrar coisas velhas de há trinta ou quarenta anos. O meu filho e a minha nora riam como uns perdidos das nossas baboseiras. - Vocês parecem um casal de emigrantes de regresso à terra, disse a minha nora. Mal chegámos a Cicouro e passámos diante do cemitério, ordenei: - Pára aí, Zé, ordenei, e tu vem comigo. Estava um dia muito bonito, os pardais esgaravatavam a terra das campas e depois, com algum insecto ou verme no bico, voavam, para os olmos onde tinham os ninhos. Quando chegámos diante da sepultura do meu pai, chamei-o, baixinho e, sem mais palavras, contei-lhe ao que ia: 96


- Aqui está o seu neto, é parecido consigo, não acha? Agora pode partir em paz. E quase que ouvi o meu pai agradecer-me, finalmente em paz. A sua alma em forma de pássaro levantou voo e foi poisar num olmo a ganhar forças para a grande viagem para o além. - Boa viagem, pai, murmurei. Podemos ir, disse ao meu Zé. Ele olhou-me um pouco preocupado mas os meus olhos estavam secos. - A mãe é uma pessoa muito forte, disse, com admiração na voz. *** O meu marido parecia um girassol a abrir, passado um dia era como se nunca de lá tivesse saído, no mirandês cerrado da raia, falava de sementeiras, de vindimas, de negócios com uma desenvoltura que até me fez remorsos de o ter prendido lá para baixo, por causa dos filhos, aqueles anos todos. Já pelo meu lado a coisa fiava mais fino, primeiro foi logo o choque de ver a minha mãe feita um farrapo, enterrada em luto dos pés à cabeça à espera da morte. - A senhora vai com a gente lá para baixo, foi a primeira coisa que me veio à boca. - Nun seias tonta, filha, la mie sepultura yá stá eilhi a la spera al lhado de la de l tou pai, disse-me com uma voz que já não era deste mundo. Já estava a adivinhar a morte que não tardou muito. Passados quatro meses morreu sem um pio, como um passarinho, o meu irmão foi encontrá-la já sem vida, sentada no escano da cozinha, já com o lume apagado. Mas o que mais me afligiu foi a falta de casa de banho e o medo que eu tinha de ir fazer as necessidades lá para o curral das vacas, sempre com medo de apanhar alguma cornada. Tive também uma grande decepção logo no primeiro dia quando fui direitinha ao fontanário, parecia que me tinham voltado os desejos da gravidez do meu Zé, mas mal vi aquela salamandra a olhar97


me desconfiada lá do fundo, as tripas deram-me tal volta que nem consegui levar a água aos lábios. - Anton stás cuntenae de buoltar a la tierra, apuis destes anhos todos?, perguntava-me o meu marido. Eu dizia-lhe que sim, mentia-lhe por piedade mas andava com o coração coberto com um manto negro por pressentir que um dia teríamos fatalmente que nos voltar a enterrar naquele buraco, ninguém pode fugir ao seu destino. Já na festa do Naso ainda vá que não vá, já não era como nos meus tempos, tudo cheio de carros dos emigrantes, mas a capela e os carvalhos à sombra dos quais nos abrigámos para assistir à missa campal ainda eram os mesmos de há vinte e tal anos, até mesmo os cabanais dos comes e bebes, com as grandes mesas corridas, sempre a abarrotar de gente, não tinham mudado muito. - Esto ye que dá salude, mulhier, rie-se l miu home anterrando la faca na chicha suculenta, come, filha, dizia para a minha nora, chicha cumo esta nien los fidalgos la ténen alhá para Lisboua. Mas eu bem via os esforços que a rapariga tinha de fazer para vencer a repugnância que lhe causavam os pratos de esmalte meio desbeiçados e os copos mal lavados e até eu tinha que me voltar para o outro lado para não ver as moscas pousadas nas vitelas penduradas das traves do telhado e as mãos encardidas das tendeiras a voltar a carne nas brasas.

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No regresso, quando me agarrei de volta à minha casinha nos Outeiros, soltei um suspiro de alívio e deixei escapar a preocupação que trazia no peito: - A gente não volta lá para cima, homem. O que eu fui dizer! - O quê!? quase que ia sufocando a meu marido, foi pior do que lhe ter chegado pimenta ao rabo, se não quiseres ir, vou eu sozinho, depois de me reformar aqui não fico nem mais um hora. Ele numa fúria daquelas e eu a largar às gargalhadas, quanto mais ele inchava o peito de raiva mais eu era incapaz de me conter. - Estás maluca ou quê?, bufava. - Ó homem, lá acabei por ser capaz de dizer, não te dava uma semana para estares de volta com a rabinho entre as pernas, tu não sabes estrelar um ovo nem pegar numa vassoura, acabavas por morrer enterrado em merda até às orelhas. Era esse o ponto fraco dos homens desse tempo, à força de nos descarregarem tudo para cima dos lombos, acabavam por ficar presos pelo bico como uns passarinhos, sem as mulheres em casa eram uns atarantados, sempre com medo que lhes morrêssemos. - Quando chegar a nossa hora quero ir em primeiro, estava sempre a dizer o meu marido. Ele bem tinha olhos para ver o que se passava à sua volta, havia casos que até dava vontade de rir, um deles era a do senhor Esteves, um dos maiores ricaços da região, que nem sabia o que tinha de seu. Enviuvara ainda não havia seis meses e não tivera outro remédio senão casar com a criada, que a finória pusera-lhe a faca ao pescoço: - Ou casa comigo ou vou-me embora, ameaçara-o. 99


- Mas, ó Joana, arrepelara os poucos cabelos que lhe restavam o senhor Esteves, aqui mandas em tudo, já és praticamente a patroa. E não era fugir à verdade o que ele dizia, mesmo ainda em vida da senhora Hortênsia, já era a Joana a dona da casa, era ela que punha e dispunha, só lhe faltava dormir com o senhor Esteves. - Quero as coisas preto no branco, teimara a Joana, não estou para um dia levar um pontapé no traseiro, dos seus filhos, e depois de velha cevada ao rabo, onde é que eu vou cair morta? - Está bem, está bem, resignou-se o senhor Esteves. O que é que ele podia fazer?, já não estava em idade de aventuras e de meter de portas adentro alguma desconhecida que o roubasse à grande e à francesa, pelo menos com a Joana já sabia o que tinha em casa, sempre rezingona mas trabalhadeira como poucas, ao fim de mais de vinte anos lá em casa, o senhor Esteves já não precisava de abrir a boca para ela lhe adivinhar os desejos. Quem a princípio não gostou nada da brincadeira foram os filhos que ficaram num abrir e fechar de olhos sem uma boa fatia da herança mas o velho era tão podre de rico que chegava bem para todos, lá acabaram, por se resignar e do mal, o menos, pelo menos sabiam o pai em boas mãos. A Joana tratou dele até à hora da morte como dum pai, mesmo depois de casados nunca se habituou a tratá-lo por tu, continuava a ser o senhor Esteves para aqui, o senhor Esteves para acolá. - Vai, vai lá para cima sozinho, dizia eu ao meu marido, só assim é que vais avaliar a falta que eu te faço. - Não preciso de experimentar para saber, reconhecia ele. Então depois que passei quinze dias em Lisboa, em casa do Zé, por altura do nascimento do meu primeiro neto, o Carlinhos, nem queiram saber, quando regressei a casa abraçou-se a mim com umas saudades que só visto. A casa

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estava de pernas para o ar, loiça suja a esmo, trapos por todo a lado, passei uma semana inteirinha a pôr tudo em ordem. - Qualquer dia volto para casa do Zé, ameaçava-o quando brigávamos, até as pulgas te hão-de comer vivo. Olha que bem contentes haviam de ficar, já não precisavam de pagar a uma mulher a dias para tomar conta da criança e limpar a casa. Claro que as minhas palavras eram só um desabafo, não era eu que me iria meter em casa duma nora. Casamento, apartamento, diz a povo, só assim é que há harmonia numa família. O que eu estava era sempre a pedir que deixassem o meu netinho com a gente nos Outeiros, a pena que eu tinha dele, o dia inteiro encerrado no apartamento como numa gaiola, não corras, não saltes, olha os vizinho de baixo, não faças isto, não faças aquilo, uma criança assim fica encolhida do espírito para toda a vida.

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Uma bela manhã, a telefonia levou a notícia que tinha acontecido uma revolução lá para Lisboa, dei dois safanões no meu marido que ainda ressonava como um porco. - Acorda, homem, acorda, escuta o que estão a dizer na telefonia. O meu marido soltou dois resmungos e voltou-se para o outro lado. - Deixa-me dormir. Abri as goelas à telefonia e ainda o sacudi com mais força. - Acorda, alma do diabo, é uma revolução. - Esta mulher já nem me deixa dormir, ainda resmungou, mas de repente sentou-se na cama e ficámos os dois de boca aberta para as palavras do locutor, esquecidos de respirar. - Porra, é verdade, exclamou. Levantou-se dum salto e agarrou a farda, tão desvairado que enfiou os dois pés na mesma perneira das calças. - Onde vais, homem?, assustei-me. - O meu lugar é no quartel. Mas o pobre nem era capaz de se fardar, mais atarantado do que uma mulher grávida a quem tivessem rebentado as águas. O locutor falava no movimento das forças armadas, em liberdade e sei lá que mais. - Mas esta é a revolução que o Luís queria, exclamei num arroubo de alegria. E, lembro-me bem, cai de joelhos voltada para o crucifixo que tínhamos na parede à cabeceira da cama e rezei muito: - Bom Jesus, Nossa Senhora de Fátima guardai esses senhores do exército que fizeram a revolução, para que o meu Luís possa regressar a Portugal. 102


Na rua rebentaram dois foguetes e havia vozes alvoroçadas por todo o lado, corri a abrir a janela de par em par. - O que foi?, perguntou-me a senhora Francisca, da janela dela. - Então a senhora não ouviu a telefonia?, é uma grande revolução. Eu já só imaginava rios de sangue, Lisboa a ferro e fogo, os edifícios a desmoronarem-se como castelos de cartas, de repente lembrei-me do meu Zé, da família em Lisboa. - Ai, homem, o meu rico neto, o coração saltava-me no peito como um cavalo, ai, homem, que eles morrem todos. O Afonso nem me ouvia, tão depressa agarrava no casaco como ia encostar o ouvido à telefonia. - Parece que desta vez é a sério, disse de olhos mais atarantados do que os duma criança. - Ai o meu rico neto, chorava eu baba e ranho por todo o lado. - Ó alma do diabo, explodiu, nem me deixas ouvir o que dizem, vai chorar pró olho da rua. Não fui para o olho da rua mas fui outra vez para a janela, toda a gente tinha saído das casas, havia mulheres em camisa de dormir e à filha do senhor José até se lhe viam as mamas todas, a safada aproveitara-se da situação para se mostrar. Rebentaram mais dois foguetes mesmo por cima das cabeças e desta vez vi que tinham subido do pátio do Manel Ribeiro. O desgraçado ainda era capaz de aleijar alguém com aquela brincadeira, já devia estar bêbado como de costume, era a maior bebedolas das redondezas e tinha a mania que era contra o governo, o que o salvou foi que ninguém o levava a sério quando não já estava com os ossos numa cadeia há muito tempo. Depois que o Luís abalara para França, cada vez que me via, vinha-me sempre com disparates, o parvo do homem. - A senhora não se rale que daqui a nada o seu filho já está de volta, segredava-me com a boca tão encostada à 103


minha cara que me custava a suportar aquele bafo a vinho que deitava logo de manhã, temos um plano para rebentar com tudo lá para Lisboa. A primeira vez que me apareceu com aquela conversa, assustei-me a valer, andei todo o santo dia a pensar naquilo mas depois o que ele dizia entrava-me por um ouvido e saía-me pelo outro. - Está bem, senhor Manuel, estou com muita pressa, depois falamos, despachava-o logo. Toda a gente dizia que era uma pena ele ser um borracho daquela natureza, não há torneiro como ele na região de Leiria, diziam, é por isso que o patrão o atura, a mim quer-me parecer que os grandes artistas têm todos um parafuso a menos. Pobre diabo, depois de bêbado só se metia em zaragatas e andava sempre com a cara feita num bolo de tanta porrada que levava, os próprias filhos tinham vergonha dele e deitavam-no ao desprezo e a mulher era uma desgraçada, tinha que ir buscá-lo todas as noites ao café quando não dormia lá, foi uma esmola que Deus fez à família tê-lo levado tão depressa, já nem devia ter fígado de tanta bebedeira que apanhou. Então depois do 25 de Abril nunca mais o vi no seu estado normal, nem devia chegar a curti-las, era bebedeira atrás de bebedeira, não despegava umas das outras. A revolução subiu-lhe à cabeça, deu parte de doente, deixou de trabalhar de vez, e arranjou uma boina como as do exército onde espetava todos os emblemas que conseguia arranjar, dos partidos, dos sindicatos, sei lá que mais, já nem tinha pano para pôr mais. - Mas vocês até tem aí emblemas dos fascistas, riamse dele. - Assim é que se vê a força da democracia, nem aos inimigos se corta o pio, explicava, muito sério. Quando se lhe acabaram as foguetes, saiu para a rua, a telefonia em altos berros numa mão e uma garrafa de aguardente na outra.

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- Vivam os nossos salvadores, gritava, vai começar a era da fartura. Devia ser da fartura de vinho que ele estava a falar, o desgraçado, até que bebeu tanto, tanto que caiu borracho de todo em frente da porta da ti Luísa, mesmo em cima duma bosta fresca de vaca e ali ficou a ressonar como um justo até que a mulher o foi buscar. - Se fosses antes trabalhar, desgraçado, outro galo nos cantaria, resmungava ela, até que, aos encontrões, lá conseguiu levá-lo para casa. As pessoas ficaram a falar toda a manhã na rua, esquecidas do trabalho e de tudo o mais. Sabe o que se passa?, perguntavam ao meu marido que lá conseguira fardar-se. O meu marido não era bruxo. - Porra, sei tanto como vocês. Estavam todos para ali como abelhas sem rainha até que por fim o Afonso se encheu de brios e montou na bicicleta. - Vou ao quartel a Leiria, saber o que se passa, e vocês regressem a vossas casas, ondenou, porque o principal é haver ordem nestes momentos difíceis. Ninguém refilou, foi a última vez que as pessoas lhe obedeceram, mal sabia ele para o que estava guardado. - Toma cuidado, disse eu. - Eu sei o que estou a fazer, respondeu-me, senhor de si. Parecia um cavaleiro dos velhos tempos, montado na sua bicicleta, com os amarelos da farda a brilhar ao sol. Com o correr do dia, as coisas começaram a ficar mais claras, soube-se que o Marcelo Caetano e o Américo Tomás já estavam presos e que afinal, graças a Deus, pouco sangue chegara a correr. Aqueles covardões, que estavam sempre a dizer aos outros para dar a vida por isto e por aquilo, borraram-se todos quando lhe apontaram uma espingarda ao peito, se fos105


sem homens com eles no sítio, depois de tanta baboseira que deitaram da boca para fora, tinham pegado numa arma e lutavam até morrer, só assim é que podiam merecer um bocado de respeito do povo, mas isto são parvoíces desta cabeça, bem vistas as coisas foi melhor assim, escusou de haver mortes de inocentes. Depois, quando deu na televisão foi uma coisa muito bonita de ver, os soldados todos com os cravos vermelhos nos canos das espingardas e o povo ao redor a aclamá-los, acho que nunca houve no mundo uma revolução tão linda, só quando eu vi aquela loucura na televisão é que eu compreendi que essa revolução não era nada parecida com aquela outra que o senhor Luís Carteiro nos anunciara. “Meu Deus, pensei eu naquele momento, passaram já quase cinquenta anos, como o tempo corre sem a gente dar por isso.” Estava eu, lá no café, com os olhos pregados na televisão e ao mesmo tempo a pensar naqueles homens e mulheres que passaram toda a vida a sonhar com aquele momento e que morreram antes de poder saboreá-lo. Coitado do senhor cabo Mendes, que grande alegria teria se ainda fosse vivo, foi uma grande injustiça que essa gente toda não pudesse ressuscitar nem que fosse só por uma hora, Deus podia pôr a tocar as cornetas do juízo final só por um bocadinho para eles, era uma grande mercê que lhes fazia. Depois comecei a pensar também no meu Luís, os saltos de alegria que devia ter dado quando soube da notícia, via-o já a apanhar o primeiro comboio a caminho de casa, tinha tanto medo que ele chegasse sem eu estar que ainda não estava há uma hora no café e já estava a voltar-me para o meu marido: - Anda, homem, vamos para casa que o Luís pode chegar de um momento para o outro.

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Afinal, o Luís só voltou passado um mês, antes disso ainda nos escreveu a dizer que tinha bastantes assuntos a tratar, que não podia abalar assim sem mais nem menos, mas pela carta via-se bem a alegria que lhe alagava o coração. Chegou quando eu menos contava, nestas coisas é sempre assim, estamos à espera, à espera, numa grande ansiedade, sempre a pensar na mesma coisa, quase sem conseguir dormir, chega hoje, chega amanhã e nada até que às páginas tantas deixamos de pensar no assunto por um bocado e aí está a coisa a acontecer de repente. Nessa tarde, já era quase noitinha, estava eu a acabar de regar umas leiras de feijões, quando ouvi que me chamavam. “Quem diabo me estará a chamar?”, perguntei para com os meus botões. Como já era lusco-fusco não via ninguém, só quando o rapazito chegou à minha beira é que reconheci que era o filho mais novo da senhora Francisca. - Chegou o seu filho, disse-me sem fôlego. O pobrezito tinha ido sempre a correr e parecendo que não ainda era um bom pedaço de caminho das casas até à horta do ribeiro. - O meu Zé?, perguntei, feita parva. Estava-se mesmo a ver que era o Luís mas naquele momento nem me passava pela cabeça que pudesse ser ele. - É o senhor Luís, respondeu, é o senhor Luís que chegou de França. À diabo, larguei a sacho e desatei a correr por aquele carreiro fora, mais ligeira do que uma rapariga de vinte anos. Ainda hoje estou para saber como é que não me deu nenhuma macacoa, até me podiam ter rebentado os pulmões como aos cavalos mas nessas alturas uma pessoa vai buscar forças 107


sabe lá onde. Depois que contei o caso ao meu marido ele, por troça, estavam sempre a dizer que eu precisava que me chegassem filhos todos os dias para ver se me abatiam as gorduras, pois à medida que uma pessoa vai caminhando para velha até a água engorda. Quando cheguei à minha porta acho que estava lá a vizinhança toda. - Onde está o meu Luís?, ainda tive fôlego para gritar. Quando ele avançou para mim, de braços abertos, nem o reconhecia, tão mudado que estava, um homem feito, de bigode na cara, ainda cheguei a duvidar que fosse a meu filho, mas quando exclamou: mãe!, todas as minhas dúvidas me deixaram, era bem a voz dele, a voz que eu ouvia dentro da minha cabeça desde que ele partira. Deixei-me abraçar como uma criança e chorei, chorei, a cabeça enterrada no peito dele, as pessoas, à volta, nem piavam, ` - Deixe-me vê-la, mãe, disse o meu filho, cada vez está mais nova, brincou, e enxugue essas lágrimas. - Aí tem o seu filho, senhora, Nossa Senhora trouxelho de volta, felicitou-me a senhora Francisca. Foi o suficiente para que as outras pessoas começassem todas a falar outra vez, quebrado a encanto daquele momento. - Há alguma coisa para comer em casa?, perguntou a meu Luís, estou com uma fome de lobo. O que ele queria era ver-se livre de toda aquela confusão, estafado da viagem estava o pobre. Meti logo a chave à fechadura, o meu filho agarrou a mala e despediu-se das pessoas, até amanhã, boa noite, as pessoas pareciam pregadas ao chão, não tinham pressa de abalar e depois que fechei a porta ainda ali ficaram a falar umas com as outras. Andava tudo muito excitado, o 25 de Abril tinha posto toda a gente a falar pelos cotovelos, acho que houve gente que falou mais nessa época do que durante toda a vida, foi como se lhes tivessem tirado uma rolha da boca. Nessa noite,

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mal fechei porta e acendi a luz voltei-me para a meu filho como para um santo do altar. - Deixa-me ver-te bem. Quando pensava nele via-o sempre como um rapazito ainda de cara penugenta e corpo desengonçado, meu Deus!, o homem que eu tinha diante de mim. - Como estás mudado! o Luís riu com gosto da minha cara de parva. - O tempo passa depressa, mãe. - A quem o dizes, olha para mim, estou velha não estou? Nessa altura eu já me sentia velha, mal sabia as voltas que ainda teria que dar na vida. - Qual velha qual carapuça, mãe, parece uma rapariga de dezoito anos, o pai tem que se pôr a pau quando não ainda algum rapaz lha rouba. Fez-me uma festa na cara e eu corei toda. - Deixa-te de parvoíces, resmunguei, estamos aqui nestas coisas e tu deves estar cheio de fome, logo hoje que ainda não me deitei ao jantar, o teu pai disse que vinha mais tarde e eu entretive-me na horta a regar os feijões. - O que preciso é dum banho, mãe. Vou já aquecer-te uma panela de água, o teu quarto está pronto. Não lho disse naquele momento, porque não era apropriado, mas o quarto estava preparado desde o dia em que ele abalara. Às vezes o meu marido dizia-me: - Aqui este quarto podemos usá-lo para meter batatas e cebolas, desmonta-se a cama e arruma-se aí a um canto. - No quarto do Luís não se toca, opus-me sempre. Tinha para mim que se o quarto estivesse arrumado, pronto a recebê-lo, ele poderia aparecer em casa numa noite qualquer de surpresa e se desmanchássemos tudo era como que, sei lá, matar a esperança, perder o meu filho para sempre. - Queres que te ajude a desfazer a mala? 109


- Não é preciso, mãe, amanhã tenho tempo. - Então, vou-te preparar a água. Enquanto punha a panela com água sobre o fogão, sorria ao pensar na cara apalermada do meu marido quando entrasse em casa e eu lhe dissesse sem mais nem menos: o teu filho já chegou. Já devem ter compreendido pelo que tenho contado dele que o meu marido não gostava muito de mostrar as seus sentimentos, devia pensar lá para com ele que isso são coisas de mulheres, mas a mim bastava-me olhar-lhe para a cara para ler como num livro aberto o que lhe ia no coração, quando estava comovido as veias do pescoço começavam-lhe logo a saltar e desatava a fungar como se estivesse constipado. Às vezes até lhe perguntava para picá-lo: estás constipado, homem? queres que eu te faça um chá de limão? Maldita raça a dos homens, por que razão querem sempre esconder o que sentem?, só lhes deve fazer mal não deitar cá para fora o que lhes vai na alma, nisso ainda têm muito que aprender com as mulheres. Estava eu enterrada nestes pensamentos quando ele entrou porta adentro sem sequer dar as boas-noites. Quando entrava assim já sabia que estava o caldo entornado, então desde o 25 de Abril era uma desgraça. - Ó homem, estava sempre a avisá-lo, qualquer dia dá-te um ataque que te leva o diabo, o teu coração não aguenta, não podes andar sempre debaixo dessa tensão. Tinha sempre qualquer coisa para andar preocupado, ou algum bêbado lhe chamara facista pelas costas ou era alguma discussão lá no quartel com os colegas, ou era qualquer coisa que vira e não lhe caíra no goto, posso dizer que me admirava era se ele chegasse a casa bem disposto. Mas para que me contasse as coisas era preciso tira-lhe tudo a saca-rolhas, eu insistia com ele porque sabia que depois de desabafar ficava mais aliviado, cortava-me a coração deixá-lo adormecer com aquele veneno todo lá por dentro. - O jantar está pronto?, perguntou. 110


- Hoje está um bocado atrasado porque temos uma visita. Franziu a testa e buscou-me os olhos, intrigado, mas não sei o que leu neles que compreendeu logo a que se passava. Olhou para a porta que dava para a interior da casa e acenou a cabeça a pedir confirmação do que estava a pensar. Acenei a cabeça com os olhos rasos de lágrimas e ele ia-se voltar outra vez para a porta quando o Luís entrou na cozinha. Caíram nos braços um do outro, chorava o pai, chorava o filho, chorava eu, só faltava ali o Zé para completar o quadro. Inesperadamente, o Luís voltou-se para mim a rir: - Mãe, sabe o que eu gostava de comer hoje? - Faço-te o que quiseres, nem que vá pedi-lo às vizinhas. - Era aquele bacalhau com molho à espanhola que a mãe fazia, lá em Paris até sonhava com isso. Nem calculam a minha raiva por não poder atender o pedido do meu filho, antes me tivesse pedido a lua, nessa noite seria capaz de arranjar asas para ir lá acima buscá-la. Não era por falta de bacalhau, não senhor, porque apesar de ser difícil encontrá-lo, o Zé Mendes da mercearia arranjarame sempre dois quilitos pela Páscoa e ainda tinha umas pastas na despensa, mas a mal é que não estava demolhado, lá me passava pela cabeça que o meu filho chegasse aguado de bacalhau. - Ó filho, isso não pode ser, expliquei-lhe, mas deixa estar que amanhã já te vais regalar. O Luís estava com uma cara tão triste que até o coração se me arrepelava todo. - Deixa lá, filho, que te vou fazer umas febras assadas na brasa que até te vais lamber todo, vai lá tomar banho o deixa o caso por minha conta. - Vou já acender o lume, ofereceu-se a meu marido, com alegria nos olhos, e vais provar o vinho do pipito que fiz este ano, nunca provaste nada parecido em toda a tua vida. 111


O Luís ria com toda aquela azáfama, mais tarde contou-me que quando andava lá por fora se punha a pensar no dia do regresso, como seria, como não seria, ainda os pais estariam vivos? Às vezes sonhava com os petiscos que eu lhe fazia, com pequenas coisas que pareciam insignificantes mas que só quando não as temos é que lhes damos o devido valor. Foi um serão muito animado, para mim o 25 de Abril foi naquela noite, o meu marido e a rapaz pareciam rotos a comer febras, nem lhes dava despacho a assá-las, e o vinho que se bebeu? O meu marido levantou-se sei lá quantas vezes para ir encher o jarro ao pipo, até eu lhe toquei ao caneco, a meio da noite estava cá com umas cores, nem na noite em que o Zé acabou o curso. - Querem ver que a mulher se nos emborracha, ria o meu marido. - É do lume, desculpava-me eu. Depois das bifanas, o meu marido ainda foi buscar dois salpicões que o meu irmão nos tinha mandado da terra e assou-os no borralho, embrulhados em papel, à moda lá de cima. - Destes pitéus nem em França tinhas, dizia ao filho. Falou-se de tudo e mais alguma coisa, sabem alguma coisa deste?, perguntava o meu Luís, e daquele?, queria saber tudo, os grandes olhos castanhos dele pareciam engolir as notícias, como aquelas pessoas que estão esfomeadas e quando lhes põem um naco de pão à frente até as migalhas engolem, assim era o meu filho nessa noite. Quando nos fomos deitar já os galos cantavam e eu não sabia se estava mais embriagada do vinho se da alegria de ter o meu filho de volta. - Esta foi a única coisa boa que o 25 de Abril me trouxe até agora, disse o Afonso antes de apagar a luz. E só então é que reparei que durante toda a noite ninguém dissera uma única palavra sobre política ou coisa parecida

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Mas não perdemos pela demora, daí para a frente a nossa casa era uma balbúrdia pegada todas as noites. Gente de Leiria que eu nunca vira nem mais gorda nem mais magra, juntavam-se na nossa cozinha, parecia mesmo a sede dum partido. - Esses malandros já estão a tratos ao pipito?, gemia o meu marido quando chegava a casa. - Qualquer dia expulso tudo a pontapé, isso é que expulso, rosnava o pobre. E, sem coragem para entrar, ficava de ouvido colado à parede a ouvir as baboseiras que deitavam da boca para fora, quem os ouvisse não as levava presos, todos tinham remédio para os males do mundo, pareciam aqueles vendedores das feiras, bastava uma esfregadela de pomada da cobra para os reumatismos e as dores fugirem a sete pés da gente. Havia então um rapazito, um fedelho ainda com a cara penugenta, filho dum advogado com cartório em Leiria que era mesmo digno do se ouvir. Lá falar bem falava ele, com uma voz bonita e cheia que nem assentava naquele corpo desengonçado, a princípio até eu ficava de boca aberta a ouvi-lo, regalada, não é todos os dias que uma pessoa ouve alguém a falar com tanta arte de dar pão a todas as bocas, nem mesmo o padre na missa lhe chegava aos calcanhares. Quando dali saíam com os goldres bem cheios de vinho o meu marido até rilhava os dentes de raiva. - Agora que já estão bem atestados vão acabar do borrar as paredes de tinta lá para Leiria, tu já me viste aquilo, mulher? Se vira! Da primeira vez que pus os pés em Leiria depois do 25 de Abril até ia quase caindo para a lado com o espanto, meu Deus!, que mudado estava tudo, as paredes todas forradas de cartazes e de pinturas, nem mesmo as estátuas escapavam à fúria dos pincéis. 113


- É uma pouca-vergonha, mulher, continuava ele, já não há autoridade neste país, compreendes agora por que razão eu ando neste estado? Eu olhava-o cheia de piedade, o que podia dizer para consolá-lo?, se lhe fosse confessar o que sentia até era capaz de me encher para ali de nomes feios, para dizer a verdade eu gostava mais daquela alegria doida das pessoas do que da tristeza sem esperança das caras de antigamente. - Deixa lá homem, quando se acabarem os foguetes vais ver como tudo volta a acalmar. Mas havia coisas que também me faziam ferver toda por dentro, lá isso faziam, gente que nunca na vida levantara um dedo para ajudar os outros andavam para ali mascarados de salvadores, bem arranjados estávamos se o poder lhes fosse parar às mãos. Até mesmo a minha vizinha, a senhora Francisca que era alentejana e sabia o que era comer o pão que o diabo amassou me contava coisas que se estavam a passar e que até davam vontade do rir. - Lá na minha terra, dizia, até se encolhem todos de medo quando vêm chegar aquelas excursões com gente de Lisboa, dizem que vão ajudar nas ceifas mas ainda mal pegaram nas foices já se estão a sentar à sombra dos chaparros sempre com a boca cheia de cantorias, é mais o estrago do que a ajuda, quando os camponeses os vêm embarcar nas camionetas de volta a Lisboa até suspiram de alívio. Quando ouvia essas coisas o meu marido ria como um perdido. - Ainda hão-de chorar todos pelos tempos passados, dizia. Aí a senhora Francisca esticava o pescoço. - Alto lá, isso também não. E logo ali contava mais uma vez, com a voz cheia de lágrimas, a miséria que passara, campos inteiros sem serem tratados a criar caça para entreter os senhores que viviam lá para Lisboa e as pessoas a passar fome de cão sem um peda-

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ço de pão para meter na boca e se alguém refilava lá estava a guarda republicana para lhes tratar da saúde. - Isso são calúnias levantadas pelos comunistas, saltava a meu marido. - Calúnias?, corava até à raíz dos cabelos a senhora Francisca. E lá tinha eu que me meter pelo meio a desapertá-los, o que não era difícil porque a senhora Francisca era uma paz de alma. Aquelas reuniões lá na nossa casa tinham que dar para o torto mais dia, menos dia, não podia ser por menos. Certa noite, estava o tal rapazola a meio de um dos seus bonitos discursos quando o meu marido entrou na cozinha para fazer qualquer coisa e qual não foi o meu espanto quando, sem mais nem menos, se voltou para os presentes com um sorriso na cara: - Quando acabarem a reunião, em vez de irem para Leiria sujar as paredes podem ficar aqui a pintar-me a casa, que bem precisada está e é bem melhor obra. Fiquei sem pinga de sangue quando lhe ouvi aquelas palavras, mas se eu fiquei espantada os outros não ficaram menos, durante um bom pedaço de tempo não se ouvia uma mosca a zunir na cozinha até que o rapazote, branco como a cal da parede se voltou para o meu marido: - Já estamos habituados a provocações fascistas. O rapazote, depois da sua tirada, ficou a tremer como varas verdes, o meu marido abria e fechava a boca como um peixe fora de água, e o outro pessoal pareciam estátuas de sal como as da história da bíblia. Foi quando a meu Luís, que estava sentado num mocho, lá para um canto como se aquilo não fosse nada com ele, começou a rir às gargalhadas, mas umas gargalhadas tão estranhas, tão sem propósito, que eu não sabia se ria do pai, dos amigos, de nós todos, se dele próprio, foi o bastante para que me viesse um daqueles repentes em que ficava a ver tudo turvo.

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- Rua, gritei, para o olho da rua ou corro tudo à vassourada. Não foram mancos a fugir aqueles valentões que ainda há bem pouco eram capazes de voltar o mundo de pernas para o ar com a força do palavreado, parecia uma fita de doidos com as gargalhadas do meu filho a fazerem eco pelos cantos da cozinha. - Graças a Deus que ainda se salvou o meu pipito da tempestade, conseguiu gracejar o meu marido quando ficámos sós. - Cala-te, apontei-lhe a vassoura ao peito, se tivesses vergonha nessa cara não abrias o bico, e tu pára do rir, estás maluco ou quê?, ordenei ao meu filho. - Mãe, disse ele, levantando os olhos para mim, também já estava farto, até à ponta dos cabelos, dessa malta. E pela tristeza que lhe ia nos olhos compreendi pela primeira vez que alguma coisa não ia bem com o meu rapaz. Ainda era cedo para adivinhar a maldita doença que lhe começava a roer a alma e que foi a pior herança que o fascismo deixou a muitos rapazes e raparigas desse tempo, à força de sonharem com o paraíso acabaram por se desligar da realidade, incapazes do viver num mundo de pessoas de carne e osso. Estávamos naquilo quando nos entrou em casa o nosso compadre, o senhor Augusto, que desde o 25 do Abril era unha e carne com o meu marido, se um dizia mata-se a outro dizia esfola-se, eram capazes de passar noites inteiras a dizer mal do 25 de Abril e a recordar, como duas velhas carpideiras, os velhos tempos em que havia autoridade. - Sabem o que aconteceu a noite passada?, perguntou o senhor Augusto. E antes que alguém abrisse a boca contou mais uma daquelas histórias que mais coisa menos coisa já eu sabia de cor e salteado mas que o Afonso se regalava todo de ouvir. - Ontem à noite, o feitor do senhor Esteves apanhou um grupo de malandros de pincel na mão a borrar-lhe o mu116


ro da quinta e não esteve com meias medidas, meteu dois cartuchos de sal na caçadeira e, pumba, pumba, largaram pincéis, largaram baldes, largaram tudo, pernas para que te quero, pareciam coelhos a fugir. O meu marido ria até às lágrimas. - Ainda devem estar a esta hora com os rabos a arder de molho, ria também o senhor Augusto. - Sente-se, compadre, sente-se, convidou o meu marido, sente-se e beba um copo do pouco vinho que ainda me resta que também eu tenho grandes coisas para lhe contar esta noite. - Ó homem, ralhei-lhe, depois da triste figura que fizeste, devias era estar caladinho. - Olha quem fala, ó compadre Augusto, eu às vezes chegava a pensar que ela estava do outro lado mas esta noite é que tive a prova dos nove, é das nossas e das rijas, o compadre devia tê-la visto, a padeira de Aljubarrota ao pé desta ainda tinha muito que aprender. Eu olhava para o meu Luís sem saber o que dizer, cada vez percebia menos a minha reacção mas em casos assim o melhor é pôr uma pedra sobre o assunto e seguir em frente em vez de estar sempre no mesmo sítio a remexer na porcaria sem resultado nenhum, porque a pior coisa que pode acontecer a uma criatura é perder o rumo da vida, como infelizmente aconteceu com o meu Luís. Graças a Deus que com o Zé o caso foi diferente, para ele haver revolução ou não haver revolução era igual ao litro, o importante para ele era a carreira no banco, era um regalo vê-lo trepar por ali a cima, já pouco faltava para chegar a gerente e quando nos ia visitar era uma enchente de rir com ele. - Sou um felizardo, dizia, quando estou com gente da esquerda conto-lhes a história do meu irmão revolucionário mas se as pessoas são da direita também não me atrapalho, falo-lhes do meu pai guarda republicano quo reza todas as noites para que a autoridade tome a reinar nesta terra.- Desa117


távamos todos a rir com as saídas dele e até o pobre Luís deitava um sorrisito cá para fora. - Isto é a filosofia da bola, continuava, qualquer dia cansam-se do andar com os emblemas dos partidos ao peito e tornam a meter os do Benfica e do Sporting.

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O mundo à nossa volta ardia como uma fogueira da noite de S. João e o meu Luís a arrastar-se como um fantasma pelos quatro cantos da casa numa morte em vida que me punha os cabelos em pé, quanto mais não valia vê-lo pelas manifestações, agarrado a uma bandeira, a gritar morras e vivas, mil vezes me arrependi de lhe ter corrido com os amigos. - É tudo culpa tua, apontava eu o dedo ao meu marido, tinhas medo que te bebessem o vinho todo, grande avarento, deixa estar que quando morreres hei-de enterrar o pipo ao teu lado para que vás descansado. Ele calava-se, tão preocupado como eu, para mais nos últimos tempos mesmo o nosso compadre deixara de aparecer lá por casa, parecia que lhe tinha dado o sumiço. - Essa malandragem deve-lhe ter feito alguma, estranhava ele. - Qual malandragem qual carapuça, ainda ontem o vi todo regalado no café com uma cerveja na mão, devia estar farto de te ouvir é o que é, ou então virou a casaca e não tem coragem de nos enfrentar depois do tudo o que lhe ouvimos. - O meu compadre a virar a casaca?!, enfurecia-se. - Olha que já vi coisas piores. Eu também dizia aquilo só por dizer, para não estar calada, mas qual não foi o meu espanto quando o senhor Augusto nos entrou em casa certa manhã de domingo com o emblema dos comunistas na lapela. Uma foice e um martelo que se viam a duas léguas de distância. - Cruzes, canhoto, persignei-me sei lá quantas vezes. - Está a brincar com a gente?, tremia da cabeça aos pés o meu marido, se é uma brincadeira não tem graça nenhuma. Mas aquilo era mesmo a sério. 119


- Sabe, compadre, começou o senhor Esteves com um sorriso amarelo, o passado é passado, não se pode voltar atrás e agora é preciso salvar o pouco que ainda há para salvar. O compadre olhe à sua volta e diga-me lá qual é o partido capaz de restaurar a autoridade neste país, só o partido comunista. - Alto lá, gaguejava o Afonso, não me venha para aqui enfiar os pés pelas mãos com esse palavreado todo, o compadre se quiser mudar isso é lá consigo, eu não sou catavento nenhum, sou homem de uma só palavra. - Todos mudamos, insistia o senhor Augusto, quando não ainda agora andaríamos empoleirados nas árvores a saltar de galho em galho. O meu marido já não sabia o que dizer mas não lhe ofereceu nada de beber, sinal de que ainda não estava convencido.

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Pouco

tempo depois chegou a estrangeira. Foi o nome com que o Afonso a baptizou desde a primeira hora e mesmo depois de sabermos ser canadiana e chamar-se Marie, afinal um nome quase português, continuou sempre a chamar-lhe a estrangeira, parecia que lhe dava prazer rolar a palavra na boca como um rebuçado. - O que querem?, desculpava-se, quando olho para ela e lhe vejo os cabelos loiros como um campo de trigo e os olhos azuis como o céu, faz-me lembrar o tempo das ceifas lá na terra, e ficava todo baboso, com os olhos colados nela. - Maldito homem, resmungava eu, roída de ciúmes, querem lá ver que depois de velho é que lhe deu para andar atrás das mulheres. Que se fosse assim não seria o primeiro, quase ao pé da porta tínhamos um bom exemplo, o ti Mário, já com netos crescidos, depois de velho deu-lhe para sonhar com saias, parecia um babosa, um homem já meio tolhido pelo reumatismo que apanhou no fundo dos poços. Que lá artista era ele, se alguém falava em fazer um poço o único nome que vinha às bocas era o do ti Mário, obra que ele fizesse era para a vida, aquilo era uma perfeição. - Ó ti Mário, avisavam-no às vezes, tenha juízo, olhe que algum pai ou algum marido com a dor de corno ainda é capaz de lhe rebentar com o canastro, para mais um homem da sua idade, que já mal pode andar. O que lhe iam dizer! - Posso estar tolhido das pernas, não nego, mas a perna do meio está cada vez melhor. Cada um é para o que nasce, a mim deu-me Deus a sina de consolar as mulheres, e ria-se com aquela boca mais mirrada do que o cu duma galinha, os olhitos cinzentos a brilhar como faróis no meio da-

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quelas rugas todas, afinal foi o que eu sempre fiz na vida, furar até achar água. Até teria graça se um dia não se tivesse atirado a uma rapariguita de treze anos, no caminho da fonte da Carvalha. Valeu para a desgraça não ser maior que duas mulheres andavam por perto a apanhar caruma e ouviram os gritos aflitos, felizmente que ainda chegaram a tempo. Ao ti Mário nunca mais ninguém lhe pôs os olhos em cima, fugido lá para o Porto, para casa dum filho, diziam, e ainda bem, porque o pai da catraia andou mais dum mês com os olhos em lume e as ventas abertas como as dum perdigueiro. - Se lhe ponho as mãos em cima parto-lhe os ossos todos, rosnava. Mas voltando à estrangeira, no dia em que ela chegou foi como cair uma bomba lá nos Outeiros. Não é todos os dias que uma rapariga daquelas desce assim dum carro de praça, com umas pernas mais compridas do que eu sei lá enfiadas numas calças de ganga e de viola às costas e uma máquina fotográfica pendurada do pescoço, a olhar para tudo como se visse o mundo pela primeira vez. Logo as janelas e as esquinas se encheram de cabeças curiosas, ela bem fazia sinais aos filhos do Amadeu para que se aproximassem mas os catraios, ranhosos e encardidos como sempre, fugiram para trás dum monte de esterco donde ficaram a espiá-la. Só o cão da senhora Francisca é que se abeirou a cheirar a mala que ela tinha pousado no chão para limpar o suor da testa que, apesar de ainda estarmos em meados de Março, o sol já aquecia a valer. Os garotos lá acabaram por perder o medo, que a curiosidade era maior do que todas as vergonhas, e acercaram-se dela, foi o bastante para logo se juntar, como que por encanto, uma multidão à volta da rapariga, toda a gente com cara de parvos sem perceber patavina do que ela queria, por mais gestos e sorrisos em que se desfizesse, até que apareceu o meu Luís, atraído pela algazarra. Caíram nos braços um do outro, como duas crianças felizes, sem fazer caso das bocas abertas ao redor. 122


- Mãe, voltou-se ele para mim, apresento-lhe a Marie que é uma jornalista canadiana que conheci em França e que vem fazer uma reportagem sobre Portugal. Aquilo cheirou-me logo a esturro mas que remédio tive senão fazer boa cara, a boa educação é uma coisa muito bonita, fica bem em todo o lado e também não podia dar parte de fraca diante daquela gente toda. Com pena, com pena fiquei eu daquela rapariguita nossa vizinha que estava a acabar o curso de professora primária, com uma cara linda como a dos anjos e um coração alegre, claro como a água, que toda a gente sabia que adorava o meu Luís, só o parvo não tinha olhos a ver. - É uma catraia, respondeu-me, quando certo dia lhe toquei no assunto, isso passa-lhe. Quando os meus olhos se cruzaram com os dela e lhe vi as lágrimas a bailar à luz do sol até me apeteceu chorar com ela, coitadinha, naquele dia morreram-lhe as esperanças todas. - Ela vai ficar em nossa casa?, perguntei aflita ao ouvido do meu filho, olha que não tenho cama onde deitá-la. O Luís piscou-me o olho. - Deixe lá que eu arranjo-lhe um cantinho no meu quarto, e para parar a enxurrada de palavras escandalizadas que já me começavam a sair pôs-me a mão na boca, calma, disse-me, com um sorriso velhaco. Quem as pagou foi o Afonso quando chegou a casa. - Entende-te com o teu filho, isto é uma casa de respeito, se alguma vez já se viu uma pouca-vergonha destas. Mas ao meu marido parecia que lhe tinha dado a assombração desde o primeiro minuto. - Cala-te lá com isso, riu-se-me na cara, se a estrangeira se quer deitar com o nosso rapaz não tenho nada contra isso, ele é homem, não tem nada a perder. Quando lhe ouvi estas palavras pouco faltou para lhe deitar as unhas à cara. - Também tu!? 123


E saí para a rua sem saber o que fazer à vida, quem acabou por me acalmar foi a senhora Francisca que, com santa paciência, me levou para a cozinha dela e me fez um chá de cidreira para os nervos. - Os homens são todos iguais, disse ela, adoçando o chá, entre uns e outros que escolha o diabo. No fundo, a rapariga até era simpática, quando não tinha nada que fazer, andava para ali a tirar fotografias a torto e a direito, sempre com um sorriso na boca, já toda a gente começava a gostar dela, então o meu marido nem se fala, afeiçoou-se-lhe como um cão ao dono, bastava ela levantar um dedo para ele começar a abanar a rabo. Era capaz de perder noites inteiras a ensiná-la a falar português, era uma barrigada de rir com as asneiras dela, depois, quando se cansavam, a rapariga agarrava na viola e começava a cantar com uma voz que lembrava a água dum ribeiro a correr. O meu marido parecia hipnotizado, era preciso eu dar-lhe uma cotovelada para o obrigar a ir para a cama quando não ficava ali a noite inteira de boca aberta, esquecido de tudo, até da política e do vira-casacas do compadre. Só, de quando em quando, à medida que o dia das eleições se ia aproximando, é que a curiosidade o picava. - Então já decidiste em quem vais votar?, perguntavame. - Eu voto em quem muito bem me apetecer, não tenho nada que te dar satisfações. Era o bastante para o pôr fora de si, isto é o fim do mundo, até já a mulher tem segredos para o marido, exaltava-se, foi isto bem que a democracia nos deu. Mas, para dizer a verdade, também eu não sabia para que lado me voltar, havia partidos para todos os gostos e paladares mas aí é que a porca torcia o rabo porque todos ele nos ofereciam o céu de mão beijada e eu já me sentia velha para começar a espremer os miolos atrás da verdade escondida com o rabo de fora. Engraçado como eu nesse tempo, e já lá vão mais de quinze anos, me sentia mais velha do que 124


hoje, estava sempre com a palavra na boca, já estou velha para isto, já estou velha para aquilo, era uma boa desculpa para só fazer o que me dava na telha. No dia das eleições levantei-me cedo e qual não foi o meu espanto quando encontrei o meu filho e a Marie já a pé, na cozinha, mas os dois com uma cara de enterro que me fez engelhar o nariz, então o meu Luís, esse parecia uma árvore arrancada pela raiz, o bigode mais murcho do que uma couve sem água. - Então a que horas é que vais votar?, perguntei-lhe. Pousou em mim os seus grandes olhos castanhos. - Mãe, disse, eu não vou votar. - Como assim?!, espantei-me. - Já não sei no que acredito, mãe, continuou. Aquilo foi demais para as minhas forças e, sem ligar aos olhos muito abertos da rapariga, voltei-me para ele e cantei-lhas bem cantadas: - Tu que estragaste a tua vida para que este dia viesse, dizes-me agora que não vais votar? Olha bem para mim, eu também não sei em quem votar porque sou uma pobre ignorante mas vou lá pôr o meu voto. - E apontando o dedo para o meu marido, que naquele momento assomara o nariz à porta: não o disse ao teu pai mas digo-te agora a ti, vou votar em branco mas vou votar, porque se não o fizesse não tinham servido para nada todas as apoquentações e noites em claro que passei por tua causa. Acho que aquele foi o discurso mais comprido que fiz em toda a minha vida. - E agora, disse, vou-me preparar para sair, se vocês quiserem o pequeno-almoço, façam-no, têm muito boas mãos para isso. Mas infelizmente as desgraças desse dia ainda mal tinham começado, logo quando cheguei ao local da votação já lá estava uma serigaita da televisão que, com uma cara de troça, me meteu o microfone pela boca adentro: - A senhora sabe em quem vai votar? 125


Com quem ela se foi meter! Logo naquele dia! Media de alto a baixo. - Sabe, senhora, respondi-lhe, há pessoas que à força de falarem tanto no lobo acabam por lhe vestir a pele, e voltei-lhe as costas mas ainda pude ver a cara de parva com que ficou. Mais tarde, quando regressei a casa, ainda o rapaz e a rapariga estavam na cozinha, como se o tempo não tivesse passado. Quando me viu, ela pegou na viola e começou a tocar, mas desta vez não era o correr da água dum ribeiro que me chegava aos ouvidos, parecia antes o chorar dum animal ferido de morte. Aqui há marosca, foi o meu pensamento, mas calei-me à espera do que ia sair dali, até que, por fim, o Luís buscou-me os olhos: - Mãe, disse, com uma voz muito calma e baixa, eu e a Marie vamos partir, dentro de dias, para o Canadá. Contava com tudo menos com aquilo, pôs-se-me um nó na garganta como se me estivessem a estrafegar. - Isso é tudo por causa dessa maldita política, foi a primeira coisa que me saltou a boca quando consegui falar, maldita a hora em que te meteste nessas coisas. Desatei a chorar como uma madalena, um choro tão grande, tão grande, que me saía da alma, porque eu via a minha vida toda por água abaixo, todos os meus sonhos mortos, tantos sacrifícios quo fizera e para quê? Não havia resposta para a minha pergunta, fez-me bem chorar assim quando não teria rebentado. Estive naquilo mais de meia hora bem à vontadinha, desta vez as minhas lágrimas ainda eram mais amargas do que quando o meu Luís partira para França, porque naquele tempo ele ia com o coração cheio de raiva e o sangue a ferver nas veias, não havia mal quo lhe chegasse, mas desta vez ia fugido com o rabo entre as pernas, sem forças para se defender das porretadas da vida. Nessa noite quando contei o caso ao Afonso ele começou logo a fungar como se estivesse constipado e as veias

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do pescoço davam-lhe cada pulo que quase me arrependi de lhe ter tocado no assunto. - Quando me vierem os papéis da reforma tratamos logo de regressar à terra, foi só o que ele disse. E eu, pela primeira vez na vida, calei-me sem saber o que dizer, curvada à voz do destino.

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Depois disso,

muitas vezes se pôs e se levantou o sol, e muita água correu nas ribeiras até que, uma bela manhã, o senhor Mário Carteiro que, duas vezes por semana, levava o correio de Miranda para Cicouro, mais os jornais que iam expressamente para os homens de letras, o senhor Augusto Francês e o Lérias, quatro léguas de motorizada, com chuva ou sol, quando não neve, apareceu-me à porta com uma carta de avião. O pobre do homem até saltava de contente: - Vim a correr para lha entregar pois sei a alegria que sempre sente. Porque a criatura era uma bondade de homem, como hoje já não se fabricam, afeiçoara-se a mim como alguns cães ao dono. - tie Cunstáncia, dizia-me a vizinhança por brincadeira, qualquiera die l senhor Mário pide-vos casamiento. Eu ria, ele ria, ríamos todos. - Só se fosse para o meter mais depressa no caixão, respondia eu, deixem-no viver tranquilo sem uma velha para lhe estragar os dias. Então eu pensei que talvez a carta me levasse boas notícias do meu Luís e dos meus netos, tão longe, numa terra que eu nem sabia bem dizer onde ficava mas que imaginava sempre coberta de neve, onde o sol nunca se levantava, quanto me rio hoje dos meus enganos. E, lembro-me bem, rezei baixinho: - Bom Jesus, Nossa Senhora de Fátima guardai o meu filho e os meus netos e que esta carta finalmente lave toda a aflição que me aperta o coração, dia e noite, por causa deles. A carta o meu Luís convidava-me a vir visitá-los aqui, a Montreal, porque, contava-me por alto, já era tempo 128


de eu conhecer os meus netos. A carta não o dizia mas o meu coração de mãe adivinhou por detrás das palavras meio trémulas, o angustiado grito de alma que encerrava. Logo ali, tomei a decisão: - Mas com certeza, se o meu filho e os meus netos precisam de mim, abalo logo que puder. O Lérias, que escutara as minhas palavras, aproveitou a oportunidade para festejar. Fez uns versos apropriados, lindos, lindos, e andava a declamá-los em voz alta pela aldeia, o papel dos versos numa mão, uma garrafa de aguardente na outra, os olhos grandes como sóis: - Biba la tie Cunstánçia que se bai partir pa l Canadá, ampeçan-se a cumprir las profecies. Porque ele acreditava que Cicouro, um dia, quando todos os velhos morressem, porque os novos já tinham partido há muito, dispersos pelos quatro cantos do mundo, haveria do ser uma aldeia só habitada por almas penadas. Contava, para quem o queria ouvir, que muitos anos atrás, no regresso da festa das Luzes, noite cerrada, no meio duma grande trovoada, ouvira uma voz tenebrosa que lhe fizera tão terrível revelação, por isso ficou para sempre com a alcunha de Lérias, já poucos recordavam o seu nome de baptismo. - Biba tie Custánçia, não se fartava do repetir entre cada golada. Bebeu tanto, tanto que caiu borracho de todo, em frente da porta da tia Marta, mesmo em cima duma bosta fresca de vaca e ali ficou a ressonar como um justo até que a mulher o foi buscar. - Se fusses antes tratar de l ganado, çgraçado, outro galho mos cantarie, resmungava ela, até que, aos encontrões, lá conseguiu levá-lo para casa. Eu fiquei toda a noite a velar, esquecida de tudo o mais. Como estarão o meu filho e os meus netos, inquietavame, como se arranjarão?, mas a noite não me dava resposta, só aumentava o peso que sentia esmagar-me o peito. Estava eu para ali como abelha sem rainha até que por fim pensei 129


para com os meus botões: “conho, eu sou mãe e avó, devo saber o caminho a seguir”. Enchi-me de brios e, mal amanheceu, vesti a saia, calcei uns socos e entrei a correr na loja do senhor Augusto Francês: - Quero telefonar para Lisboa, para o meu filho Zé. Foi trigo limpo, o meu Zé tratou-me de tudo, ainda não tinham passado dois meses já ele estava em Cicouro com toda a papelada pronta nas mãos, o carro à minha espera para me levar ao avião. - Aquele maluco, abanava a cabeça o Zé, estou farto de lhe escrever para regressar a Portugal, arranjava-lhe um emprego no banco ou noutro lugar qualquer, isto agora é um país de futuro, com a entrada na Europa não há país como este para quem for esperto, o que esse maluco fez lá para cascos de rolha? Eu não dizia nada, de boca cosida, mas olhava-o enternecida, de soslaio. O meu Zé engordara, já tinha cabelos brancos, todo ele irradiava segurança, de homem que estava bem seguro na vida, a voz tinha chispas de aço de quem está habituado a mandar e a ser obedecido mas, mesmo assim, continuava a preocupar-se com o irmão, o sucesso não matara a amizade que os unia. - Tens razão, filho, mas o destino não está nas nossas mãos, há coisas que estão acima da nossa vontade. Antes de partir, quis ir despedir-me do meu marido. - Espera aí, filho ordenei quando passámos diante do cemitério. - Eu vou consigo, mãe, disse o Zé, quando me apeei. ` - Não, filho, desculpa-me mas desta vez quero estar sozinha. Ele compreendeu, acendeu um cigarro e ficou a verme caminhar por entre as filas de sepulturas. O molho de rosas ainda estava viçoso, por esse lado estava tranquila, flores será coisa que nunca faltará sobre a campa na minha ausência, deixei instruções bem claras à minha cunhada para se ocupar dessa tarefa. 130


Estava um dia muito bonito de Maio, os pardais esgaravatavam a terra das campas e depois, com algum insecto ou verme no bico, voavam, para os olmos onde tinham os ninhos. - Afonso, disse baixinho. E sem mais palavras, contei-lhe ao que ia, disse-lhe adeus porque não sabia se era para sempre. Setenta anos já é uma bonita idade apesar das pessoas dizerem que estou rija como um pêro. - Não há bicho que entre consigo, dizem-me lá na aldeia. Eu era a maior preocupação do Lérias que, por causa da minha boa saúde, via assim as suas profecias adiadas, daí a razão da sua grande alegria com a minha partida. - Afonso, adeus, e quase que ouvi o meu marido retribuir-me o adeus. Se há pessoas que morreram em paz do espírito ele foi uma delas. Há três anos finou-se sem um pio, de noite, ataque cardíaco, escreveu o médico na certidão do óbito, mas não foi nada disso, os médicos também se enganam, morreu porque chegara a sua hora. Desde que regressámos à terra, quando se reformou, aqueles foram os melhores anos da sua vida. Tratava de três ou quatro das melhores hortas que tínhamos, mais por prazer do que por outra coisa, ia à caça com o meu irmão e juntava-se na loja do senhor Angusto Francês, com os outros velhos, que por lá apareciam, a conversar e a beber uns copos de vinho. Ganhara novas cores e parecia dez anos mais novo, nem queria que lhe falassem de Leiria, nem da Guarda Republicana e muito menos de política. - Podemos ir, disse ao meu Zé. Ele olhou-me um pouco preocupado mas os meus olhos estavam secos. - A mãe é uma pessoa muito forte, disse com admiração na voz, ligando o motor. - E agora temos muito tempo para falar da tua vida, ameacei-o com o dedo espetado. 131


O Zé soltou uma gargalhada malandra. - Isso é assunto morto, eu e a Rita agora parecemos um casalinho casado de fresco. Há um ano, recebera uma carta da minha nora, aquilo não era uma carta, era um mar de lágrimas. “Se não desabafo, rebento”, as palavras pareciam gritos. Contava-me que o Zé andava maluco com uma rapariga lá do banco, vinte anos mais nova do que ele, que já nem ligava aos estudos do filho e que falava mesmo em se divorciar. Fiz a mala a correr, chamei um carro de praça de Miranda e no dia seguinte já estava bem instalada no autocarro a caminho de Lisboa. Coitada da minha nora, quando me recebeu parecia um farrapo, envelhecera dez anos desde que a vira pela última vez no funeral do meu marido, até o azul dos olhos, que era a coisa mais bonita da cara dela, estava deslavado por tanta lágrima chorada, - Esse malandro vai-se explicar comigo, tranquilizeia. Quando o Zé chegou a casa, trancámo-nos os dois na sala de estar. - Fala, ordenei-lhe. Não foram grandes as novidades que me deu, coisas que o meu coração de mãe e a minha experiência da vida já sabiam de cor e salteado. Falou-me dos dias todos iguais, das noites passadas diante da televisão, a dorminhocar um para cada lado, o filho lá por fora atrás das raparigas, do aparecimento daquela rapariga que o escutava com adoração. Enfim, pieguices de homem do quarenta e tal anos que todas as manhãs, diante do espelho, se começa a afligir com os cabelos brancos e as rugas. - Tolices, atalhei-lhe as desculpas, para saíres dessa pasmaceira não precisas do andar atrás de raparigas com as fraldas ainda agarradas ao rabo. Descalça as pantufas e começa a sair por aí com a tua mulher, com os olhos mais abertos para as belezas da vida.

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Felizmente, escutou os meus conselhos, começou a passear com a mulher aos fins-de-semana, nas férias, a vida deles deu uma volta enquanto o diabo esfrega um olho. Quase sempre, basta um pequeno empurrão para pôr outra vez nos carris uma carruagem que descarrilou, toda a gente está sujeita a errar na vida, parecemos brinquedos nas mãos das forças da natureza. Mas, confesso, isto pode parecer estranho em mim, depois disso fiquei a gostar mais do meu Zé, por descobrir que, por debaixo da máscara que apresenta aos outros, defeito que herdou do pai, há uma pessoa de carne e osso, sujeita às ferroadas da vida, como todos nós.

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Apesar de já poucas coisas me espantarem na vida, o avião, aquele monstro do ferro, ainda me deixou de olhos arregalados e mal os motores começaram a roncar e se pôs a correr pela pista fora para levantar voo, fiquei logo cheia do vómitos, cada arranco que só Deus sabe. O que me valeu foi o casal que estava sentado ao meu lado. - Tome este comprimido, eu já chamo a hospedeira para lhe trazer um copo de água, disse a mulher. Não calculam o bem que me fez, passada meia hora parecia que não era nada comigo, e palavra puxa palavra, vejam só a coincidência, fiquei a saber que eram transmontanos, de Ifanes, gente muito boa, tinham ido de férias a Portugal e viviam em Montreal há quinze anos. Ficaram muito contentes e mais contente fiquei eu, ainda hoje agradeço à Virgem por mos ter posto no caminho. Nem sei se me teria desenrascado naquela confusão da chegada à alfândega, os funcionários a falarem para mim era como se falassem para um boneco, não percebia uma palavra do que me diziam. Eram muito faladores e alegres, depois de muito terem falado, chegámos à conclusão que ele ainda era meu primo afastado, o que nos rimos com a descoberta. Assim a viagem passou depressa, daí a poucas horas já estavam a anunciar a chegada a Montreal, devia ter os olhos tão cheios do espanto que de cada vez que olhavam para a minha cara, largavam a rir. - O mundo é muito pequeno, exclamei a certa altura. - Nós da primeira vez também ficámos muito admirados, disse ele, então quando vimos tanta neve até os olhos nos iam saltando da cara. Assim, não me custou tanto fazer a viagem, no intervalo das conversas comíamos alguma coisa que as hospedei-

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ras nos levavam ou dormitávamos, tive muita pena quando nos apartámos em Montreal. Só quando o meu Luís me abraçou e me perguntou como me sentia é que os ossos me começaram a doer todos. Afinal desde Cicouro até aqui, tudo bem somado, com a noite passada em casa do meu Zé, tinham sido dois dias de viagem e se tinha dormido seis horas por junto tinha sido muito. - Está bem?, perguntou o meu Luís, preocupado. O que eu ri com a cara preocupada dele. - Estou bem, sim, tranquilizei-o, e os meus netos?, afligi-me logo. - Não se preocupe, ficaram com a mãe, não há mal que lhes chegue. Só então me voltei a preceito para o meu filho, há quinze anos que não o via, quinze anos, santo Deus!, estava magro, com os seus grandes olhos castanhos húmidos talvez da emoção, o cabelo já lhe começava a fugir da testa mas não envelhecera muito, esperava encontrá-lo pior, só não gostei mesmo nada da maneira muito desleixada como se vestia, de calças do ganga muito coçadas e alpercatas, pouco faltou para lhe dar logo ali um raspanete. - Bem, agora vamos para casa, disse ele com os olhos a rirem, ainda é meia hora de carro, está com coragem? - Pensas que estás a falar com alguma senhora da cidade?, respondi-lhe à letra. Rimos os dois um bom bocado até que, por fim, o meu Luís pegou na minha mala. - Bom, vamos lá então. Eu peguei no saco de mão e segui-o para o parque do estacionamento. Dali a pouco já rolávamos na auto-estrada, estava um dia muito bonito, cheio do sol. - Mas não há neve nenhuma, exclamei ao ver tudo tão viçoso e as árvores verdes como nos postais.

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- Deixe estar que quando a altura chegar ainda se vai fartar dela até à ponta dos cabelos, respondeu o meu filho, está calor não está? perguntou, preocupado comigo. Eu já sentia os pés inchados nos sapatos e a boca cheia de securas mas não dei parte de fraca: - Não te preocupes comigo. - A nossa casa fica no coração do bairro português, explicava o meu filho. Mas eu quase não ligava às palavras dele, toda olhos para aquela cidade tão diferente das nossas, com as casas quadradas como caixotes de tijolo rodeadas de verdura, as ruas sem uma curva pareciam não ter fim. Naquele bocadinho eu já tinha visto gente de mais raças como nunca supus que Deus Nosso Senhor tivesse criado, a pé, de carro, então bicicletas era uma chusma, nos parques não cabia uma mosca, só se viam corpos meio-despidos como lagartos sobre a relva tão verde. - O deus desta gente é o sol, riu-se o Luís, é para se vingarem do frio que rapam no inverno. Quando entrámos numa rua enfeitada com bandeirolas de todas as cores o Luís pôs a sua mão sobre a minha: - Isto é uma surpresa para si, disse com ternura. Eu comecei a ver toda aquela gente vestida a preceito, as crianças penteadinhas e trajadas de anjos e desconfiei logo: - São portugueses? - Hoje é a festa do Senhor Santo Cristo dos Milagres, explicou-me, é a maior festa dos açorianos, vem cá gente de todo o lado, mesmo dos Estados Unidos, a procissão deve estar quase a sair da igreja. Não se enganava, íamos a passar diante da igreja tão airosa, linda como um brinquedo, quando o andor apareceu no alto da escadaria aos ombros de homens com opas vermelhas, deu-me um baque o coração. - Pára aí, ordenei.

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- Mas, mãe, afligiu-se o Luís, onde é que vou estacionar? Sem prestar atenção aos cuidados dele apeei-me do carro e, cotovelada à esquerda, cotovelada à direita, aproximei-me do andor. O Senhor Santo Cristo dos Milagres com a sua capa vermelha e a sua coroa de espinhos mal se via no no meio daquele mar de rosas e quando passou à minha beira fixei-lhe o olhar triste e falei-lhe, de igual para igual, com a força de quem nada deve: “Senhor Santo Cristo dos Milagres, até ao dia de hoje nem sabia da tua existência mas pela fé que vejo nos olhos de toda esta gente, deve ser grande o teu poder, ouve pois a súplica desta mãe que só te pede que ajudes o seu filho a sair do abismo em que tombou e a reencontrar o gosto de viver.” E foi tudo, a procissão já ia pela rua adiante, um desfile como eu nunca tinha visto, bandas de música, ranchos folclóricos, grupos disto, grupos daquilo, um altifalante sempre a berrar ordens, Deus Nosso Senhor me perdoe se estou a pecar dizendo isto, mas aquilo parecia tudo menos uma procissão. O que valeu para a paz do meu espírito foi ver os andores cheios de flores e na cauda da procissão aquele povo todo com a devoção marcada na cara e grandes velas da altura dum homem nas mãos. - Podemos ir, disse ao meu Luís que encostara à berma da estrada, vinte ou trinta metros mais abaixo. Não falei mais, ele também não me fez perguntas, e lá seguimos a caminho da casa que já não era muito longe, virou à esquerda, depois à direita, estávamos numa rua muito tranquila, parecia mesmo na aldeia, só faltavam as galinhas a esgravatar por ali. - A nossa casa é aquela, apontou o meu Luís e procurou-me os olhos à espera da minha reacção, gosta? Segui o dedo e vi uma casita de tijolo de porta e janelas azuis, encravada na correnteza de prédios, com uma árvore quase em frente da porta, não respondi mas o meu sorriso bastou ao meu filho. 137


- Eu sabia que ia gostar, disse ele, a nossa casa é no primeiro andar, no rés-do-chão moram os senhorios. Algumas pessoas com quem nos cruzávamos davamnos as boas tardes em português e depois ficavam a cochichar nas nossas costas. O meu Luís meteu a chave à porta e apontou-me disfarçadamente as cabeças que espreitavam às janelas das casas em redor. - As pessoas são a mesma coisa em toda a parte, comentou bem-disposto ao empurrar a porta, entre, a casa é sua. Antes de entrar, olhei bem à minha volta, queria que aquilo me ficasse tudo gravado nos olhos e exclamei: É um bom sítio para tratar dos meus netos. A casa era pequena mas confortável, nas traseiras tinha uma varanda que dava para o quintal onde um homem se entretinha a plantar tomateiros - É o senhor Costa, o meu senhorio, segredou-me o Luís. - Boas-tardes, senhor Costa, apresento-lhe a minha mãe. O homem largou a enxada e limpou o suor do rosto a um grande lenço verde que tirou do bolso das calças. - Boas-tardes, minha senhora, muito prazer em conhecê-la. Parecia mesmo um camponês da minha terra, curto de palavras, com a cara honrada daqueles homens que ganham o pão de cada dia com o suor do rosto. A mulher dele apareceu logo, curiosa. - Boas-tardes, senhor Luís, então a senhora fez boa viagem? Era em tudo o contrário do marido, a falar pelos cotovelos, parecia que me conhecia desde sempre, mas o meu filho não estava para grandes conversas e voltámos para dentro de casa. - Deixa-me ver-te bem, murmurei. Quando pensava nele nos últimos quinze anos, via-o sempre como no dia em que regressara do França, agora, com mais atenção, é que

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começava a reparar nas rugas finas nos cantos dos olhos e nos fios de prata no bigode e nas têmporas. Ele pareceu adivinhar os meus pensamentos: - O tempo passa, não é, mãe? -A quem o dizes, filho, olha para mim, estou velha, não estou? - Qual velha qual carapuça, parece uma rapariga de dezoito anos, tenho que me pôr a pau quando não ainda algum canadiano ma rouba. Fez-me uma festa na cara e eu corei toda, deixa-te de parvoíces, resmunguei. - Estamos para aqui nestas coisas e a mãe deve estar cheia de fome. - O que eu preciso é dum banho, filho. - O seu quarto já está preparado há dois meses, desde que lhe escrevi, sabia que a mãe viria logo que pudesse. Aquele banho quentinho fez-me um bem que nem calculam, todo o cansaço me desapareceu como que por milagre e quando me sentei no sofá, o meu filho voltou-se para mim a rir: - Mãe, sabe o que gostava de comer, hoje?, era aquele bacalhau com molho à espanhola que a mãe fazia, às vezes até sonho com isso, mas desta vez não vai acontecer como quando regressei da França, riu, já tenho ali o bacalhau demolhado à sua espera. Estávamos os dois a rir como malucos quando o telefone começou a tocar, não precisei de mais nada para saber que eram os meus netos, o coração saltava-me no peito como um cavalo. - Daqui a uma hora estão cá, disse o meu filho olhando-me com os seus grandes olhos húmidos dos grandes acontecimentos. Ficámos os dois sentados no sofá, sem dizer palavra, cada qual perdido nas suas recordações, as minhas sei lá por onde é que andavam, parece-me ainda que foi ontem que o senhor Mário Carteiro me entregou a carta com a primeira 139


fotografia da minha neta, um amor de bebé loiro como os anjos, nisso tinha bem a quem sair, nas primeiras vezes, quando me punha a olhar para os cabelos da Marie até chegava a duvidar que fossem verdadeiros, tão dourados e brilhantes que eram. Entrei como um furacão na loja do senhor Augusto Francês. - Afonso, Afonso, gritava como uma maluquinha, olha que linda é a nossa netinha. O meu marido largou as cartas e as veias do pescoço começaram-lhe logo aos pulos. - É a cara chapada da estrangeira, não é?, foi só o que disse, e largou a fungar, era o costume dele com as emoções, vamos lá a casa encetar a minha água-pé, convidou logo os companheiros da jogatana. Nesse dia comeu-se e bebeu-se até chegar com o dedo. - Só é pena que eles não estejam aqui com a gente, desabafou o meu marido lá para o fim mas logo escondeu os sentimentos com rija saraivada de acusações, aquele maluco, gastei tanto dinheiro com ele para quê?, só tem feito asneiras na vida. Passados dois anos, quando nasceu o rapaz a alegria não foi mais pequena, o meu marido andou uns tempos meio desassossegado do espírito. - Por que é que eles não nos vêm cá visitar?, estava sempre a perguntar, será que vivem mal?, inquietava-se. - E se nós fôssemos lá vê-los?, propus-lhe num dia de maior coragem. Mas aquilo era de mais para ele por maior que fosse o amor que tivesse ao filho e aos netos, já nada o podia arrancar ao seu viver sem pressas. - Daqui já só saio para a grande viagem para o além, e lá vinha outra vez a enxurrada de acusações, ainda aquele maluco do Luís a esse eu compreendo, nunca foi muito pegado à família mas a estrangeira é que não percebo nada, tão 140


amigo que eu era dela, vá lá uma pessoa fiar-se nos outros, olha, mulher, nunca mais me fales nesses ingratos. Mas aquilo eram tudo desabafos, andava sempre com a boca cheia dos netos, mas às vezes os nomes enrolavamse-lhe na língua. - Ouve lá, como é que se chama o rapaz? - Richard, fartava-me eu de repetir. - E a rapariga? - Melanie. - Que raio de nomes, podiam-lhes ter posto uns nomes melhores de decorar. - O que tu estás é já a ficar velho, já não tens cabeça para nada. - Olha quem fala, defendia-se, olha que quando chegar a minha vez a ti já não te deve faltar muito.

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Naquela paz, parecia que ainda não tinha passado uma hora quando as crianças entraram pela casa dentro como um furacão. A minha neta atirou-se-me logo ao pescoço e cobria-me de beijos, o rapaz estacara a dois metros do mim patusco com o seu boné enterrado pelas orelhas abaixo e um pau comprido na mão. - Então Richard, não dás um beijo à avó?, perguntoulhe o meu filho. - Eu abri os braços para recebê-lo e exclamei banzada: - Mas o rapaz já quase tem barba na cara. Reparei também no peito de mulher feita da Melanie e então, sem saber bem por quê, os meus olhos secos há tantos anos abriram-se num ribeiro. - Ó mãe, disse o meu Luís, também com as lágrimas nos olhos, não precisa de chorar logo agora. - Lágrimas destas não fazem mal a ninguém, disse eu cada vez mais pasmada com as trocas e baldrocas da natureza. O meu neto se em vez daquele pau tivesse uma fisga ou um pião nas mãos era sem tirar nem pôr a imagem do tio, do Zé em pequeno, os mesmos olhos esquivos, o mesmo remoinho no cabelo que nenhum pente conseguia vencer. Mal o Zé imagina que as suas sementes vieram dar fruto em terras tão distantes. A minha neta, mesmo sendo muito parecida com a mãe, tem os meus olhos, aqueles olhos meio sonhadores de quando eu era criança, o que fazia as pessoas dizerem que eu era parecida com o meu avô Fortunato. - Tou abó Fertunato quando se ponie a mirar pa l cielo cumo tu, staba a androminar algua, tal i qual cumo tu. Mira que nun te sales a buona bisca.

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E lá vinha a história da sua fuga com a cigana, história que se Deus me der saúde e tempo hei-de contar à minha neta para ela ficar a saber onde é que foi buscar a luz dos seus olhos. O Richard embora percebesse mais ou menos o que se dizia não dava uma para a caixa no português e daí a pouco já estava plantado diante da televisão, desligado de tudo. Fico espantada como aquele rapaz pode passar tanto tempo a olhar para a televisão, mal chega a casa da escola só tem tempo de atirar a pasta para um canto e ala com ele, abre logo as goelas ao aparelho, parece uma estátua ali toda a santa tarde. Isto quando não lhe cheira a rapaziada na rua, nessas ocasiões agarra logo no pau de basebol e numa grande luva de cabedal que anda sempre pelos cantos da casa. Não abre um livro de estudo, vejam bem, se no físico se sai ao tio Zé nisso sai-se mais ao pai, esse também só queria bola e ninhos, se nesse tempo tivéssemos uma televisão lá em casa era capaz de ter sido como o filho. A Melanie é diferente, nessa tarde com aqueles pontapés no português que tanto me fazem rir, começou logo a fazer planos: - Amanhã vamos aqui, vamos ali, até com a minha roupa de viúva implicou, vamos já comprar roupa nova para ti, pareces um corvo. Eu ria toda babada, todos nós, mesmo depois de velhos, gostamos de ser apaparicados. - Chega de conversa e vamos mas é tratar do bacalhau, disse o meu Luís, que a Marie deve estar quase a chegar, que essa péla-se toda por bacalhau, é pior do que os portugueses. Eu quase não podia acreditar naquilo que os meus ouvidos ouviam. - O quê, mas vocês não estão divorciados?, lá consegui ganhar fôlego para perguntar. - E isso o que tem, mãe?, continuamos bons amigos. Além disso nunca fomos casados, só vivemos juntos alguns 143


anos, disse o meu filho como se o que estivesse a dizer fosse a coisa mais natural deste mundo. Foi aí que eu compreendi como os anos tinham passado e como a ausência e o tempo afastam as pessoas, atirando-as para caminhos tão diferentes. Mas as minhas surpresas ainda mal tinham começado, quando a Marie chegou abraçada àquele rapaz alto e sorridente quase que me ia caindo o coração aos pés. Ainda tinha os mesmos cabelos loiros que tanto faziam lembrar os campos do trigo ao meu marido mas os olhos já estavam mais murchos pela passagem dos anos e da vida, quase que podia pôr as mãos no fogo em como já arrumara a viola nalgum canto, mas mesmo assim continuava com aquele sorriso que caía tão bem o quando se pôs a falar comigo fiquei banzada, falava o português com tanta desenvoltura, afinal foram bem empregues as lições quo o meu marido lhe dera. O companheiro dela também era muito simpático, eu não percebia uma palavra do que ele dizia mas nem só com palavras as pessoas se compreendem, quando provou o bacalhau, começou a dar estalos de apreço com a língua e fez-me uma grande vénia que me deixou toda embaraçada. Para falar verdade, eu estava mais confusa do que um pombo-correio sem norte, olhava para aquela trapalhada toda e não podia deixar de pensar na Rita do ti Zé dos Melões, lá nos Outeiros, uma moça toda desenxovalhada que largou o marido depois de pouco mais de um ano de casada, dizia que já não podia aturá-lo mais, com os copos malhava nela como em trigo maduro, o escândalo que não foi, até eu a critiquei sem dó nem piedade. Já viste que se por tudo e por nada as mulheres largassem os maridos, dizia eu para o meu, não havia casamento que se aguentasse mais do que uma semana, então quando ela começou a andar com um rapaz dos Marinheiros que regressara há pouco do Ultramar foi pior do que deitar pólvora na fogueira, não houve nome feio que não lhe chamassem, todos de puta para cima.

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- Então foi para isso que deixaste o teu marido, grande cabra, insultavam-na na cara. Não tiveram outro remédio senão fugir para Lisboa, o ti Zé dos Melões e a mulher de vez em quando lá metiam os pés ao caminho para visitá-los, sempre muito cabisbaixos e calados como se carregassem nos ombros todos os pecados do mundo. Quando me fui deitar com os nervos destrambelhados por tanta emoção e com os sonos trocados por aquela confusão dos fusos horários, nem consegui pregar olho toda a noite, os olhos mais arregalados do que faróis. E, vejam lá, deume para, ao fim de tantos anos, começar a pensar no ceifeiro António, a única e grande paixão da minha juventude. “Estás a ficar maluca ou quê?”, tentava varrê-lo da cabeça mas qual quê, parecia que ganhara grude e a sua voz rouca encheu o quarto de alto a baixo, tive que meter as mãos nas orelhas para deixar de ouvi-lo. “Tudo culpa dessa maldita estrangeira e do Luís”, resmunguei, uma pessoa tem que atirar sempre as culpas do que nos acontece para cima de alguém, não é? E o calor?, aquilo era um calor abafado de morrer, parecia um braseiro, nem mesmo o lençol conseguia aguentar em cima de mim, finalmente quando a luz do dia já entrava pela janela dentro e refrescou mais um pouco, lá consegui passar pelas brasas, se foi muito, se foi pouco tempo não sei dizer, o certo é que quando me levantei já não havia vivalma em casa, o meu Luís já tinha partido para o emprego e os garotos para a escola. Abri a porta do quintal e a humidade da manhã pegou-se-me logo à pele, até me custava respirar. Já não havia traços do dia bonito do dia anterior, o céu baixo da cor do chumbo. - Mas isto é pior do que a África, queixei-me à senhora Amélia, a senhoria, que no quintal estendia a roupa na corda. Foi o bastante para ela subir logo as escadas, meu Deus, que mulher esta, não é preciso dar-lhe muita corda pa145


ra desatar a falar como uma metralhadora, naquela manhã fiquei a par da vida de metade dos portugueses de Montreal, coitada, no fundo não é má pessoa, mas anda muito enervada com os problemas da vida. - O Canadá já deu o que tinha a dar, minha senhora, desabafou. Olhe só para mim, trabalhava numa fábrica de cortinados que fechou, parece que agora vem tudo da China. Ainda assim tive muita sorte em arranjar trabalho três dias por semana nas limpezas em casa duns judeus, se não fosse assim não sei o que seria de nós, com a hipoteca da casa para pagar. O que nos vale é que o meu marido é carpinteiro e, mesmo sem emprego certo, com as mãos de oiro que tem, graças a Deus não lhe falta trabalho por aí. Já pensámos a regressar de trouxa às costas a Portugal, mas o que me custa, se isso acontecer, é deixar para aqui os filhos ao Deus dará, que esses nem se lhes fale em regressar. Eu estava de boca aberta com o que ela me dizia, para mim o Canadá, além de o imaginar com muita neve, era uma terra de abastança, o não era só eu a pensar assim, aos emigrantes da terra que andavam pelas franças, quando eu lhes falava do meu filho o do Canadá abriam logo os olhos de inveja: “Quem me dera a mim, isso sim é que é um grande país, do seu filho não tenho eu pena”, palavras que aliviavam bastante as minhas preocupações de mãe. Durante esses anos todos a única pessoa quo eu conheci emigrada no Canadá foi um rapaz de Constantim que há coisa de sete ou oito anos apareceu lá na terra com um carro enorme cheio de cromados, e como andava atrás da filha do senhor Augusto Francês, passava os dias a mostrá-lo, rua abaixo rua acima a levantar nuvens de poeira e a espantar as galinhas e os burros, já toda a gente andava furiosa com aquele desaforo, felizmente que um dia numa lomba traiçoeira, o monstro afocinhou quebrado dos rins, o rapaz bem roncava como uma fera enjaulada mas já só o reboque de Miranda conseguiram arrancar o bicho dali.

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- O que é que eu vou fazer agora?, arrepelava os cabelos o rapaz, tenho que mandar vim o amortecedor do Canadá e isso vai demorar uma vida. Toda a gente ria à socapa, talvez assim baixes a crista, lia-se em todos os olhos. Só a filha do senhor Augusto Francês é que se condoeu. - Foi tudo culpa minha, dizia. E, vejam lá, foi preciso aquilo ter acontecido para ela engraçar com o rapaz. Daí para a frente pegaram no namoro, casaram passado um ano, foi uma das maiores bodas que há memória nas redondezas, quanto ao carrão deu-lhe a sumiço, devia ter ficado a apodrecer nalguma garagem lá para Miranda à espera do amortecedor. Mas voltando atrás, eu estava cheia do pena da senhora Amélia, com aqueles olhos pisados das preocupações, fazia-me recordar a tia Aurora dos Outeiros que também andava sempre com a boca cheia de queixumes e não era para menos com a vida miserável que Deus lhe deu. O marido trabalhava nas obras lá para Leiria e era um carrasco com ela, o fidalgo não se contentava com uma merenda fria, obrigava-a todos os dias a levar-lhe o almoço. Lá ia a pobre com a cesta à cabeça pelos pinhais mas isso ainda era a menos que boas pernas para andar tinha ela, o mal era quando chegava às pontas da cidade, com aquela maldita lei para intrujar os turistas que proibia as pessoas de andar descalças, lá tinha ela que enfiar as patorras, fartas de palmilhar os pinhais à caruma, com uma pele grossa de dois dedos, na prisão dumas sandálias. - Antes queria mil vezes que me enchessem o lombo de porrada, gemia a pobre, mostrando a miséria dos pés ensanguentados e entrapados, qualquer dia apanho uma gangrena que me leva a diabo. Quando o meu filho chegou a casa, falei-lhe da aflição da senhora Amélia.

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- Pois é, mãe, nem tudo são rosas, o Canadá não é aquela árvore das patacas que muita gente pensa, disse ele, tranquilamente. Uma tranquilidade que me mexeu com os nervos, se fosse há vinte anos teria logo desatado a berrar contra as injustiças deste mundo e a largar às bordoadas, a torto e a direito, contra a malvadez dos ricaços, mas em vez disso começou a rir. - Quer ouvir uma anedota, mãe? Dois portugueses chegaram a Montreal pensando que tinham vindo parar a uma mina do ouro, no primeiro dia foram passear para a rua St-Laurent e viram uma nota de cinco dólares no chão, um deles baixou-se logo para apanhá-la, deixa lá isso, segurou-o pelo braço o outro, só começamos a trabalhar amanhã. Eu larguei a rir mas cá por dentro pus-me a chorar. Não sou parva nenhuma para não compreender que as pessoas são como os rios, estão sempre a mudar, mas custa-me a reconhecer neste homem grisalho com restos de vícios nos olhos o filho que eu deitei ao mundo. Para mim o meu verdadeiro filho Luís, que eu adorava, será sempre aquele rapazinho de cara penugenta e olhos estonteados mas cheio de vida, com o sangue a fervor nas veias que se despediu de mim na noite da fuga para França, que ia atrás dos seus sonhos. Uma pessoa mesmo com carradas de experiência, está sempre a enganar-se e a tropeçar nas suas certezas. Com o desenrolar dos dias, começava a compreender que afinal de contas, na carta que o meu filho me enviara não estava escrito nada daquilo que a minha preocupação do mãe lera. Tanto o meu filho como os meus netos não precisam de mim para nada, os nossos caminhos já mal se cruzam, às vezes até me sinto para aqui um estorvo. Então as crianças é uma santa reinação, não têm poiso certo, tanto dormem aqui como em casa da mãe, aquilo é como lhes dá na telha, é tal a minha confusão com isto tudo

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que às vezes chego a pensar que a criança sou eu, no fundo é assim que todos me tratam. A Melanie pega em mim e leva-me a ver lojas ou a passear pela montanha. Os dias, passada aquela onda de humidade, continuam muito bonitos e fartamo-nos de rir a correr, a correr atrás dos esquilos, quando nos cansamos sentamo-nos à sombra duma árvore e a minha neta fala-me entusiasmada dos seus sonhos. Agora anda numa escola de circo a aprender malabarismo ou coisa que o valha. - Qualquer dia vamos as duas ver o Circo do Soleil, promete-me, gostas de circo, avó? Ficou admirada quando eu lhe confessei nunca ter posto os pés num circo a sério. Todos os anos o circo montava a tenda na feira de Março em Leiria, e as ruas da cidade enchiam-se com os berros dos altifalantes a anunciar o maior espectáculo do mundo, os trapezistas, os palhaços, as feras, um mundo maravilhoso onde os pobres como nós não entravam, contentávamo-nos em admirar os cartazes ou ouvir o rugido dos leões cá de fora. Certo verão, apareceram lá nos Outeiros uns saltimbancos sem eira nem beira, montaram a tenda no largo da fonte à sombra dos pinheiros e ergueram um trapézio enquanto o diabo esfrega um olho, com o altifalante meio rouco a anunciar o espectáculo já para essa noite, durante uns dias aquilo foi uma festa pegada, toda a gente andava feliz, andavam as mulheres porque os homens não se embebedavam tanto no café ou na taberna, andavam os donos das quintas libertos da praga dos garotos sem tempo para ir roubar fruta, os saltimbancos sentiam-se como peixe na água, era sempre o último espectáculo mas iam ficando, iam ficando, até que um dia rebentou a bomba, aquele rapaz de cabelos grandes como uma mulher que vomitava fogo como um dragão fugira com a filha do ti João da Nora. O povo em fúria queria pegar fogo à barraca. - A gente tratou-os como reis e eles em paga roubamnos as filhas, berrava a mãe da rapariga. 149


Os saltimbancos tiveram que fugir com a rabo entre as pernas antes que aquilo desse para o torto, mas quem apanhou o maior desgosto com aquilo tudo foi o namorado da rapariga que estava na tropa na Guiné, quando regressou andou mais de um ano meio avariado da cabeça e o pior de tudo é que tinha uma tatuagem num braço com um coração e o nome dela lá dentro, a Rosa estava-lhe sempre diante dos olhos, como é que podia esquecê-la? Um dia pegou num ferro em brasa e não esteve com meias medidas, disse a mãe que a casa andou a cheirar a carne queimada mais de uma semana, o pobre rapaz esteve às portas da morte com uma infecção que apanhou, o hospital só conseguiram salvá-lo a toque de injecções. Mas Deus às vezes escreve direito por linhas tortos, depois que saiu do hospital, um rapaz com a quarta classe mal acabada como ele tinha, servente de pedreiro, agarrou-se aos estudos, foi para Lisboa, e sempre a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo, passados uma dúzia de anos acabou por se formar em medicina. - Abençoado o dia em que aquele demónio fugiu com a rapariga, ria, feliz, a mãe.

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De tudo o que tenho visto, o que me deixa de boca aberta são estas velhas gaiteiras daqui, algumas já com os pés para a cova, agarram-se à vida como lapas, arrebitadas como andorinhas, sempre a saltitar dum lado para o outro, vestidas de cores garridas e com ricos penteados. - Assim é que tens de te vestir, diz-me a Melanie. Eu olho as minhas roupas negras de luto e sinto uma onda de tristeza invadir-me. Há dias, não resisti à tentação e ensaiei numa loja uma blusa branca. Mal me vi ao espelho tirei-a logo, arrepiada, até parecia que me queimava a pele. - Ficava-te bem, ria, divertida, a Melanie. Esta minha neta é um poço de surpresas para mim, há dias fiquei sem uma pinga de sangue com a saída dela: - Esta noite não contes comigo para o jantar. - Vais para casa da tua mãe?, perguntei-lhe. - Vou ver o fogo do artifício à ilha Saint-Héléne, com o meu amigo. Aquilo saído assim tão naturalmente da boca duma criança de catorze anos foi demais para as minhas forças. Deixei escapar um suspiro tão alto que ela abraçou-se logo a mim, sem compreender patavina da confusão que me ia na alma. - Deixa lá que para a semana vamos as duas juntas, não fiques com inveja. - Então tu deixas a tua filha sair assim à noite, sozinha com um rapaz?, saltei logo em cima do meu Luís, mal ele chegou a casa. - A mãe quer que a prenda com uma corrente? foi a resposta dele, fique descansada que não fica com nenhum bocado a menos. - Também tu?, e saí para o quintal sem saber o que fazer à vida. 151


Quem acabou por me acalmar foi a senhora Amélia que me levou para a cozinha dela e me fez um chá de cidreira para os nervos. - Isto é uma podridão, disse ela adoçando o chá, os meus filhos também ninguém tem mão neles, saiem com umas e com outras, apanharam-se nesta vida e não querem outra, nem querem ouvir falar em regressar a Portugal. Quando se perde a vergonha não há nada a fazer, é por estas e por outras que este mundo está a ir por água abaixo sem norte nem ninguém que lhe valha. Eu acenava a cabeça de acordo só para não a contrariar. Mas por mais estranho que pareça, não estava de acordo com ela. O mundo está sempre a mudar, e não é por não compreendermos essa transformação que tudo vai parar só para nos contentar. Tive um bom exemplo lá em casa, o pobre do meu marido nunca se soube adaptar às transformações e o que ele sofreu com as suas casmurrices. Também desta vez as coisas saíram-me todas ao contrário do que pensara. Recordo-me que ainda estava no avião e já me via resmungona a pôr ordem na livralhada do meu filho, até já tinha a missa bem estudada para lhas cantar bem cantadas: - Já é tempo que ganhes juízo, rapaz, ainda vais dar em maluco de tanto ler. Como estava enganada, afinal, o meu filho, descontado um ou outro jornal, já pouco lê, agora as suas leituras são outras. Às vezes telefona-me do trabalho a avisar-me que vai passar a noite fora. Pelo cheiro das roupas vejo que há ali mulheres pelo meio. Eu até devia ficar contente, um homem na idade e na situação dele precisa de aproveitar a vida. - Ouve cá, perguntei-lhe ontem, não sentes vontade de ir a Portugal? Ele encolheu os ombros. - Não tem calhado, respondeu-me, há por aí tantos países para conhecer.

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Quando eu e o meu marido falávamos no caso, estávamos sempre com medo que fosse falta de dinheiro mas agora é que vejo o nosso engano. O meu filho trabalha numa agência de viagens e, segundo me diz, tem aproveitado a situação, já conhece meio mundo quase sem gastar um tostão. - Mas não sentes saudades de Portugal?, insisti, tentando ler-lhe a alma nos olhos. - Talvez lá dê uma saltada um dia para beber uns copos com o Zé. E para ver como aquilo vai. Mesmo que ande bem informado, as distâncias já não existem. Mas ainda não estava convencida. - Não sentes a falta daqueles tempos antigos, da política, das discussões, das manifestações, daquela agitação toda? O Luís olhava-me, com um sorriso esquisito nos lábios. Acendeu um cigarro e pousou-me a mão no ombro. - Sabe, mãe. Eu naquele tempo era muito novo, tinha o sangue na guelra e via o mundo a preto e branco. Depois, com a experiência, fui descobrindo que há muitas mais cores à nossa volta. É uma estupidez queimar a vida prisioneiros de ideias rígidas e quase sempre ultrapassadas. - E és feliz assim? - Mas o que é a felicidade, mãe?- Uma nuvem escura atravessou-lhe o olhar.- As leis da vida e da natureza estão muito além do nosso conhecimento tão limitado. O melhor, para ter paz de espírito, é viver o dia-a-dia sem grandes pressas e sem fazer perguntas para as quais nunca teremos resposta. Reconheço agora, foram escusadas as lágrimas de medo que chorara à sua partida. Todo o túnel, por mais escuro que seja, acaba por ter uma saída, só que quase nunca é aquela que estamos à espera. Mas, para ser franca, também não acredito que tanto desprendimento seja o melhor caminho. O meu instinto diz-me ao ouvido, muito baixinho, que é importante encontrar um sentido para a vida, acreditar, com toda a força, nalguma coisa, numa força superior que nos 153


guie, nem que seja uma ilusão, pois tudo se passa na nossa cabeça e no modo como imaginamos o mundo que nos rodeia. Eu olhava para ele aliviada mas triste ao mesmo tempo. Ainda estive para lhe perguntar por onde andavam os seus sonhos tão lindos da juventude, em que ele acreditava cegamente, mas isso seria remexer em feridas que eu adivinhava mal saradas, o que é um mal que eu não quero fazer, por nada deste mundo, ao meu filho. Quem sou eu para o vir desinquietar com as minhas dúvidas de velha tonta? Em todo o caso, qualquer dia tenho de passar pela igreja portuguesa para dizer ao Senhor Santo Cristo que pode dormir descansado e esquecer o milagre que lhe pedi, pois já não tenho bem a certeza qual é a espécie de milagre que espero, ou mesmo se espero algum. Um dos meus prazeres por cá é passear pelo bairro português e admirar os jardinzitos bem tratados onde as alfaces e os tomateiros crescem que é um regalo. Abençoadas mãos que os tratam com tanto amor e desvelo. Quando me canso, também gosto muito de entrar nas lojas portuguesas. Não calculam a minha alegria quando descubro nas prateleiras os nossos produtos. Agarro nas garrafas de azeite, nas latas de conserva, em tudo o que cheire a português e pareceme que estou a acariciar um filho. Aqui há dias, depois de mais um passeio de carro pela cidade, o meu filho levou-me a um restaurante português e lambi-me toda com o prato de bacalhau cozido que me apresentaram. Acho que nunca comi nada que me soubesse tão bem. Então, ouvir os empregados, todos sorridentes, a falar português, aquilo parecia-me música dos anjos. Que coisa estranha, foi preciso estar tão longe para sentir no peito o orgulho de ser portuguesa e compreender como me faz falta debaixo dos pés o calor do chão da nossa terra. Não sei muito bem explicar esta sensação mas, à primeira impressão, os habitantes desta cidade parecem-me 154


tristes, muito sós, desprendidos, como se vivessem de costas voltadas uns para os outros e tivessem perdido o prazer das coisas simples da vida que são as mais importantes. - Os invernos são muito longos e isso reflete-se no modo de ser das pessoas, explica o meu Luís. - Nos países com um clima mais clemente, a alegria é mais espontânea e salta mais depressa aos rostos. Mesmo estando mais encoberta, a generosidade das pessoas daqui também é grande, acredite. Confesso que ainda não estou convencida e não acredito muito no que ele diz. Quando o meu filho ou a minha neta me levam lá para o centro da cidade, no meio daqueles arranha-céus que parecem furar o céu, e vejo aqueles vagabundos, perdidos, deitados por todos os cantos, toda eu me arrepio. - Mas aqui também há esta miséria? - A miséria existe em todo o mundo, mãe, responde o meu filho. - Eles é que escolheram esta vida, acrescenta a minha neta, indiferente, sem mostrar ponta de compaixão no seu rosto de anjo, o que me deixa muito assustada, devo confessar. Talvez com o tempo me pudesse adaptar a este modo de viver mas uma certeza já tenho, não é aqui, neste mundo, tão diferente do meu que quero acabar os meus dias. Sinto um arrepio pela espinha abaixo quando imagino o castigo que seria morrer, aos poucos, de solidão nestas terras. A minha decisão de regressar a Cicouro está tomada, não há nada que me faça voltar atrás. Não sei se será algum dia possível, mas gostaria muito que os meus netos fossem passar uma temporada prolongada a Cicouro, enquanto são jovens e abertos de espírito. Seria uma grande alegria ajudá-los a descobrir os pequenos segredos da natureza, ensinar-lhes o prazer da vida simples do campo, mostrar-lhes que existem outros mundos para além daquele onde vivem. Enfim, coisas de velha tonta que, 155


apesar de tudo, ainda continua a acreditar que tudo poderia ser melhor se os homens não esquecessem os seus sonhos de criança e continuassem, pela vida fora, a ver o mundo com olhos mais compadecidos.

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Hoje, a senhora Amélia ficou muito triste quando lhe dei a notícia do meu regresso a Portugal. - Que pena, vou sentir muito a falta da senhora. Ficámos para ali, olhos nos olhos, comovidas. Mas também ela tinha notícias frescas para me dar: - Sabe, senhora, segredou-me, com os olhos brilhantes, penso que agora a nossa vida vai dar uma volta em pouco tempo. Eu e o meu marido começámos ontem um tratamento com um vidente muito respeitado na comunidade portuguesa. Diz ele que o importante é desenvolver as forças positivas que há dentro de nós e expulsar as forças negativas que causam as desgraças. Nas sessões as pessoas dão as mãos umas às outras e fazem força todas ao mesmo tempo para vomitar as forças negativas. Ontem, quando de lá saímos, até parecia que mal punhamos os pés no chão de tão aliviados que estávamos. Fiquei contente por a pobre mulher ter encontrado remédio para alívio das suas dores. Mas, para dizer a verdade, já mal escutava o seu tagarelar, entregue os meus próprios pensamentos que não eram tão poucos nem tão simples quanto isso. Quando regressar a Portugal, vou mandar à fava as profecias do Lérias e se o senhor Mário Carteiro ainda me continuar a fazer olhos de carneiro mal morto, olhem, seja o que Deus quiser, o meu marido, com a sabedoria do Além, há-de compreender e perdoar-me. Pelo menos uma lição aprendi com o exemplo das velhas espevitadas daqui, uma pessoa só deve morrer quando fechar os olhos para sempre. Afinal, para alguma coisa serviu esta viagem, boa ou má, só o tempo o dirá, foi mais uma lição na vida. Aprendemos até morrer, lá diz o ditado.

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