O homem que falava com as flores

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O homem que falava com as flores Título:

O homem que falava com as flores Autor:

Manuel Carvalho Capa:

Montesinhos no Parc Jarry

ISBN 978-2-9813189-0-9 Dépôt légal: Bibliothèque nacional du Québec – 2014 Bibliothèque nacional du Canada - 2014

Edição do autor Reservados todos os direitos de edição e tradução

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O homem que falava com as flores

MANUEL CARVALHO

O homem que falava com as flores

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O homem que falava com as flores Do autor:

Saga - Editora Peregrinação-Cacilhas - 1989 Um Poeta no Paraíso - Éditions Luso-Montreal - 1994 Parc du Portugal - Éditions Luso-Montreal - 1997 À beira-Main - Éditions Luso-Montreal – 2003 Rostos Olhares e Memória - UTL – 2012 Rostos Olhares e Identidade – A Voz de Portugal - 2013

Manuel Carvalho nasceu em Cicouro, Miranda do Douro. Colares e a Batalha foram lugares que o viram crescer. Viveu grande parte da juventude nos Outeiros da Gândara dos Olivais, nos arredores de Leiria. Fez a guerra colonial em Angola. Depois, correu muitas terras até chegar a Montreal, no Canadá, em 1980. Tem colaboração literária espalhada por diversos jornais e revistas em Portugal e na diáspora, É o coordenador da revista on-line "Satúrnia-Letras e Estudos Luso-Canadianos. 4


O homem que falava com as flores

A todos os mirandeses dispersos pelo mundo A todos ls mirandeses espargidos pul mundo À minha mirandesa de olhos azuis A la mia mirandesa de oulhos azules

Os meus agradecimentos ao Amadeu Ferreira e ao Alcides Meirinhos que, com o seu amor à língua mirandesa e a sua amizade, muito contribuíram para o nascimento desta obra. Ls mius agradecimientos a Amadeu Ferreira i a Alcides Meirinhos que, cul sou amor a la lhéngua mirandesa i la sue amisade, muito ajudórun a l nacimiento desta obra. 5


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O homem que falava com as flores Tengo dues lhénguas cumigo dues lhénguas que me fazírun i yá nun passo nien sou you sien dambas a dues. (Fracisco Niebro – in Cebadeiros)

Os textos em língua mirandesa foram traduzidos por Alcides Meirinhos, escritor natural de Cicouro. Los testos na lhéngua mirandesa furan traduzidos por Alcides Meirinhos, escritor natural de Cicuiro 7


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O homem que falava com as flores

A noite já vai adiantada. Estou na varanda do meu jardim, tranquilamente sentado na minha cadeira de baloiço. Agasalha-me delicado manto de sombras. O céu limpo está recamado de estrelas. Sopra uma brisa morna. A cerejeira, este ano coberta dum magnífico véu de flores brancas, côa a luz branda duma lua quase cheia, desenha arabescos preguiçosos sobre o tapete espesso da relva. Refugiados nas sombras mais densas, os grilos enchem a noite com a sua cantoria interminável. Ao redor, para além da vedação, os bungalows da vizinhança adormeceram, num repouso profundo. Só uma ou outra janela rebelde ainda permanece iluminada em vigília tardia. Subitamente, saído da escuridão, um esquilo corre agilmente sobre a vedação mas estaca surpreendido com a minha presença. Empina-se nas patas traseiras e imóvel, a cauda alçada, fica a vigiar-me com os olhos inquietos pregados no meu vulto. Sorrio divertido com a visita inesperada, e fecho os olhos. Embala-me farta maré de pensamentos que, sem pressas nem dores, me afluem à mente. Sinto-me um pouco como o espectador que, confortavelmente instalado na plateia, assiste, com uma ponta de 9


O homem que falava com as flores curiosidade, ao desfilar no ecrã das imagens refrescantes do filme da sua própria vida. É tão surpreendente este distanciamento que, à medida que as recordações galgam terreno e gradualmente se focam, límpidas e tangíveis, eu próprio chego a duvidar da sua veracidade. Fatigado por mais um dia de trabalho árduo no supermercado, terei adormecido no aconchego da minha cadeira? Teriam então os fantasmas que habitam as cavernas do meu ser aproveitado a oportunidade para saltar, assanhados, à tona do quotidiano, atirando-me, momentaneamente, para um limbo, entre a lucidez e a alucinação, onde tudo é verosímil?

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Sou um imigrante atípico. Não cheguei a estas terras por razões económicas. Tão-pouco por espírito de aventura. E ainda muito menos como refugiado religioso ou político. Vim cá parar pela mais bela e antiga das razões: por amor. Pura e simplesmente por amor. Por amor a um feiticeiro par de olhos azuis. É quase inacreditável como ainda há pouco mais de quatro anos, levava uma vida aprazível de professor de língua mirandesa na minha terra natal, a altaneira cidade de Miranda do Douro. Era um trabalho que eu desempenhava com paixão, com verdadeiro espírito missionário. A tarefa de divulgar a língua mirandesa era tão envolvente e apaixonante como a missão do principezinho do Saint Exuspery que amava e protegia a sua flor com um desvelo enorme, como se possuísse um tesouro único. Na escola, no decorrer das aulas, era famosa a minha tirada predilecta: debemos proteger la nuossa lhéngua, guapa i campechana, cul amor i l carinho cun que l princepico protegie la sue frol.

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O homem que falava com as flores Uma frase impressionante, com ressonâncias mágicas, que geralmente prendia as atenções juvenis. E que surtia o efeito desejado: despertar a curiosidade dos alunos pela aprendizagem de uma língua tão frágil e durante tanto tempo ostracizada, pela qual eles, no início, manifestavam geralmente o maior desinteresse e, por vezes, devo confessá-lo, evidente aversão. O Petit Prince transformara-se para mim numa espécie de bíblia a que recorria constantemente para decifrar os enigmas da existência e interpretar as mais diversas situações da minha vida simples e descuidada. Nos muitos tempos livres, entregava-me ao prazer da leitura, bebia uns copos, folgava com os amigos, observava o voo dos abutres sobre as arribas do Douro. Quando a natureza o reclamava, dava caça a uma ou outra atraente turista tresmalhada em busca de aventura, que facilmente enredava no exotismo do meu inspirado e fogoso linguarejar.

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O meu terreno de caça predilecto era a Praça, aquele belo quadrilátero de traçado medieval que é o regalo dos visitantes insaciáveis de máquina fotográfica sempre em riste. Nas horas de cio, qual predador implacável, aguardava pacientemente as minhas presas recostado na estátua de bronze que ali se ergue num grito telúrico de homenagem à nossa rija identidade forjada, século após século, pela ruralidade, pelo isolamento e pelo esquecimento a que o resto do mundo nos votara. Mas, inesperadamente, certa manhã luminosa de verão, por entre as duas cabeças da estátua, esbarrei com um par de olhos mais azuis do que o céu dos verões mirandeses. - Quien sós tu? - Sou Susana. - Los tous uolhos azules caírun de l cielo? - Nó, caírun dun abion que bieno de l Canadá.

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O homem que falava com as flores Mais uma vez, sob o cÊu azul a pingar filigranas douradas pelas paredes seculares, ali estava, preto no branco, a confirmação de que os acontecimentos importantes e decisivos que determinam a nossa vida são sempre simples, inesperados e contundentes.

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em remissão, os olhos azuis da filha de emigrantes cicuiranos deram-me volta à cabeça, transtornaram, para sempre, o correr tranquilo da minha existência. Passado um punhado de meses emocionalmente turbulentos, num impulso da minha natureza arrebatada, aí estava eu, de mala feita e coração sobressaltado, a largar a minha vida descuidada e a cruzar a largura do Atlântico ao encontro do amor, do novo mundo e do desconhecido. Foi numa tarde frígida de Março que o avião me largou, carregado de ilusões, em Montreal e que os olhos azuis da Susana me envolveram no conforto da sua luz serena. Sem essa luz, a minha primeira impressão de Montreal teria sido deplorável: uma cidade escura mergulhada no espesso lamaçal do último nevão, com os braços famélicos e despidos das árvores erguidos, em desespero, para o céu de chumbo. - Quien sós tu ? - Sou Manuel. - Los tous uolhos castanhos caírun de l cielo? - Nó, caírun dun abion que bino de Pertual. Seguiu, divertida, o voo do meu olhar ferido pela paisagem nua e frígida. - Quando la Primabera chegar todo será defrente serenaram-me os olhos azuis. - L amportante ye que los tous uolhos cuntinen azules.

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O

s pais da Susana são mirandeses rijos e alegres que, sem lamúrias, com a coragem nunca perdida de camponeses habituados a arrancar o pão-nosso-de-cada-dia das fragas, agarraram a dura vida de emigrantes pelos cornos e a vergaram ao seu jeito. Chegados a Montreal nos anos setenta, depois de muitos sacrifícios e labuta, conseguiram amealhar o pecúlio suficiente para comprar um obscuro depanneur que, pacientemente, com muita dedicação e ainda maior determinação e esforço, pedra a pedra, transformaram num supermercado florescente, especializado em produtos portugueses, que é o seu grande orgulho. - Ganho muito dinheiro, é certo - confessava-me o meu sogro. - Mas não há nada que me dê tanto prazer como descobrir a alegria nos olhos da gente portuguesa quando entram por aquela porta e descobrem todos estes tesouros acrescentava, com um gesto largo, apontando para as prateleiras repletas de vitualhas importadas de Portugal. - Se a cultura portuguesa começa pela barriga, como já ouvi dizer a gente mais sabida do que eu, o governo português deveria condecorar-me por tudo o que tenho feito pelo bem-estar da nossa gente. Soltava uma gargalhada gorda, do fundo do peito e, feliz, perdia-se no dédalo de corredores daquele universo fabuloso e catártico que lhe preenchia plenamente as exigências da existência.

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Este

plenamente é, no seu caso, um eufemismo, descobri-o mais tarde. Como todos os homens visionários, lá nos labirintos da alma, o meu sogro acalentava um sonho estranho, imenso, talhado ao correr da vida, que, após farto almoço propício às confidências, inesperadamente, me revelou, na varanda da sua casa, a contemplar amorosamente a cerejeira do quintal. - Stá guapa la buossa cerejeira - disse eu, amável. Parece las de Cicuiro. Uma labareda saltou-lhe ao olhar. Como sempre nos momentos de maior entusiasmo, desatou a falar o mirandês cerrado da raia: - Nien manginas l segnificado que esta cereijeira ten para mi. - Estendeu o braço como uma espada a rasgar caminho. - Stá eilhi para me fazer acordarr, para nun deixar morrer l miu grande suonho. A Susana riu dele, sem maldade. -Yá bebiu un cachico a más. Alhá bai a cuntar outra beç la sue stória.

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O homem que falava com as flores Intrigado, servi-lhe mais um cálice de porto e já nada podia deter a enxurrada das palavras: - Sinta-te ende, Manuel. Bou a cuntar ua cuonta mui antiga que oubi an nino i que me fizo cumpanha toda la bida. Ye la cuonta de Tiu Rá que yá nun coinci an bida mas que mesmo aspuis de muorto stá más bibo que muitos bibos. Tiu Rá era guarda an Miranda i cunta-se que un die biu, nua de las sues rondas, uas çreijeiras que dában çreijas brancas! Cume an Cicuiro las çreijeiras se dában bien, tratou lhougo de poner i anxertar a la sue puorta aqueilha culidade de tán gustoso fruito. Zde antón para cá, más ou menos maduras, cun más ou menos cocos, nun hai persona ou milpiendena que nun le guste la decendéncia de las puias de tiu Rá. Yé ua cuonta mui guapa, todos los cicuiranos ténem muita proua quando la cuntan. Mas se quieres saber, la cuonta nun bai a terminar eiqui. Oube Manuel, quando tornar a la aldé nun ye para morrer. L suonho de quaije todos ls eimigrantes ye fazer ua casa para passar férias, mercar propiedades, seren respeitados puls bienes que ténen i aspuis de bielhos regressar a la sue tierra para morrer an paç. Comigo ye zfrente. Iou quiero regressar inda cul bigor suberciente para cuntinar l suonho de Tiu Rá. Ye un suonho tán guapo que nun se puode morrer. Com o olhar incendiado pousado em mim, o sonho irrompia bravo, triunfal: - Oube bien l que te digo, Manuel. Bou a stranformar a Cicuiro na capital de la cereija branca. Se todo corrir bien, an brebe recebirás eiqui las purmeiras caixas de cereijas cicuiranas. Tenerás la honra de ser l purmeiro comerciante a bender cereijas brancas de Cicuiro. Tiu Rá lhebou las cereijas brancas para Cicuiro, calha-me a mi cuntinar l sou suonho i espargir-las por esse mundo d’alhá. Se Tiu Rá me stebir a oubir debe de sentir ua grande alegrie neste momen18


O homem que falava com as flores to. Esto ye ua grande respunsablidade que acarreio nos ombros. Sós capaç de cumprender l que iou sinto? Claro que eu compreendia. Com a preciosa ajuda de mais uns cálices de porto, a hora era propícia para continuar a soltar as asas da alma. - Pressinto que a hora está próxima - continuou, pousando a mão pesada de emoções no meu ombro. - A Susana é contabilista, tu és um sonhador, é a mistura certa para fazer progredir o negócio sem mim. Todo o negócio para ter êxito precisa de ter à sua frente gente com os pés na terra mas também que saiba sonhar, que saiba ver a parte invisível das coisas. Poucos têm esse dom indispensável. É por essa razão que tanto negócio vai por água abaixo. Posso confiar em ti? Com aquela mão imensa a esmagar-me o ombro, não havia escapatória possível.

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Abstraindo o projecto obstinado do meu sogro, ao qual sentia certa relutância em aderir, a verdade é que eu, passados largos meses após a minha chegada, ainda continuava sem rumo certo. Trabalhava, provisoriamente, no supermercado mas, à medida que o tempo avançava, apercebia-me, alarmado, que o provisório se estava, sorrateiramente, a transformar em situação definitiva. Sem perspectivas de encontrar um emprego mais gratificante, compatível com as minhas habilitações académicas, havia dias em que sentia uma falta insuportável das minhas aulas de mirandês e do voo dos abutres sobre as arribas. O meu sogro, farejando a minha indecisão, apertava o cerco: - Ouve, Manuel, não andes assim tão tristonho. Eu compreendo o que sentes, mas como já te disse, com a tua inteligência e sensibilidade, és a pessoa indicada para continuar o meu trabalho. Pouco a pouco, poderás começar a tomar as rédeas disto tudo. E não te sintas diminuído, olha que este estabelecimento é um grande livro de poesia que eu criei verso a verso. Sobretudo, com muito amor. E que tu, se tiveres garra, poderás continuar a escrever. Ainda tem muitas páginas em branco para dar largas à tua inspiração. Ri com alma, divertido com a inesperada tirada poética mas ao mesmo tempo enternecido com a sua delicadeza e com as duas lágrimas que lhe riscaram as faces graníticas. - O que você quer é ir plantar cerejeiras em Cicouro.

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O homem que falava com as flores Abraçámo-nos, para encobrir a emoção. Entre homens, quando toca a soltar os sentimentos, faltam geralmente as palavras, ou então saem toscas e desapropriadas. Foi assim que, quase sem me dar conta, me deixei enredar naquela estranha aventura de continuar a semear, à maneira peculiar do meu sogro, naquele recanto de Montreal, mais umas leiras de cultura portuguesa. Valia-me, para amenizar as horas de dúvida e desfalecimento que, de tempos a tempos, me continuavam a atormentar, que o meu idílio com os olhos azuis da Susana continuava mais ateado do que nunca capaz, assim o supunha, de resistir às mais exigentes provas.

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espreocupados e confiantes, os meus sogros começaram a passar temporadas cada vez mais prolongadas em Portugal. Com a crescente prosperidade que o negócio do supermercado nos proporcionava, eu e a Susana acabámos por comprar em Laval, nos arredores de Montreal, um belo e confortável bungalow rodeado de árvores e de flores que no verão irrompiam, por toda a parte, num crepitar de vida vertiginoso. Um pequeno paraíso abrigado dos olhares indiscretos, propício à florescência do nosso idílio. Mais para dar prazer ao meu sogro do que por tendência para a arboricultura, também eu plantei no quintal uma cerejeira que crescia a olhos vistos, tão pujante de vida que logo no primeiro ano me presenteou com um punhado de cerejas gordas e açucaradas. - Estou à espera dessas caixas de cereijas cicuiranas que me prometeu - brincava eu nos regressos, cada vez mais espaçados, dos meu sogro a Montreal. - Já falei disso à clientela e qualquer dia vão começar a chamar-me aldrabão. - Stá más acerca de l que tu speras. Bai purparando l spácio a la anquemienda. Eu não estava muito certo se esse sonho alguma vez se iria concretizar mas a alegria de viver que ele transbordava por todos os poros era certeza de sobra de que continuava no bom caminho para pincelar o outono da vida com as cores garridas duma felicidade mais do que merecida.

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nredado na teia absorvente dos negócios, as saudades do praino mirandés começavam a esbater-se. A tal ponto de se tornarem suportáveis e, quando surgiam, eram até mesmo agradáveis e oportunas para temperar com umas pitadas de emoção pura o quotidiano por vezes demasiado prosaico. Também o facto de o nosso estabelecimento estar localizado em pleno coração do bairro português e da maioria da nossa clientela ser de origem portuguesa, foram factores determinantes para que gradualmente me fosse interessando pela história do percurso da nossa comunidade nestas terras. Quase sem me aperceber disso, ia-me deixando envolver, começava a criar inesperadas raízes, a desenvolver novas pertenças que, gradualmente, se iam entrelaçando, em subtil combinação, com os atavismos e as forças telúricas que me moldaram a alma em terras mirandesas. Como consequência lógica desta tranquila e insidiosa trajectória, instigado pela minha inclinação para as letras, comecei a colaborar esporadicamente com despretensiosos artigos nos modestos jornais da comunidade que, com muito esforço e carolice, lá ajudam a manter viva, por estas paragens, a língua e a cultura portuguesas. Não com tanto relevo e incidência, evidentemente, como o nosso comércio, continuava a vincar e a relembrar-me o meu sogro, cada vez mais firme na sua convicção de ser a gastronomia a componente mais importante e decisiva da identidade cultural dos povos errantes.

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O homem que falava com as flores Foi após breves férias em Portugal e a consequente publicação de um desses artigos que os ventos da loucura se levantaram. É um texto despretensioso e leve, com certos retoques de humor que, conseguiu arrancar alguns sorrisos complacentes aos lábios áridos de alguns dos meus leitores. Passadas semanas após a sua publicação, quando a tormenta ainda estava longe, algumas pessoas, em jeito de brincadeira, ainda me abordavam: - Os seus montesinhos ainda estão vivos? Ao que eu retorquia no mesmo tom galhofeiro: - Estão vivos e muito felizes por terem emigrado. Mal adivinhava, na minha despreocupada ignorância, a tempestade que vinha a caminho e as suas consequências imprevisíveis e devastadoras. Para ajudar a deslindar melhor o fio dos acontecimentos, rememoro, mais uma vez, o artigo em questão que, mais tarde, nas noites brancas, o pontiagudo cinzel da insónia me esculpiu indelevelmente, palavra por palavra, nos interstícios da alma.

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Este ano, lá para o meio de curtas férias em Portugal, encontrava-me com a família em Miranda do Douro e como tivéssemos a intenção de nos deslocar a Braga, para festejar o S. João num banho de multidões, decidimos ignorar as novas e tentadoras vias rápidas e aventurar-nos pelo acidentado e montanhoso percurso via Bragança-Chaves. Trajecto sem dúvida mais demorado mas que, em contrapartida, proporciona ao viajante o regalo de paisagens e panorâmicas deslumbrantes que talvez só quem habitualmente está ausente sabe apreciar de olhos abertos e usufruir em plenitude. Por volta do meio-dia, já em pleno parque natural de Montesinho, detivemo-nos para saborear o farnel bem mirandês à sombra de frondoso castanheiro. Estava um dia quente mas aprazível, do fundo da ravina chegava-nos o cantarolar duma ribeira de águas cris25


O homem que falava com as flores talinas e debruçados sobre a sinuosa estrada, braçados de florezitas brancas, parecidas com malmequeres, heroicamente agarradas às fragas e ao chão pobre, saudavam-nos gentilmente. - E se levássemos algumas para o Canadá? - alvitrou a minha mulher, de alma amolecida pela beleza envolvente. Dito e feito. Arrancámos alguns pés que, com mil cuidados, acomodámos num saco de plástico, juntamente com alguma terra humedecida que os sustentasse na longa viagem que os esperava. Desconhecendo o seu nome de baptismo, acordámos chamar-lhes montesinhos, em homenagem à terra que as viu nascer. Palavra com musicalidade que quanto mais vezes a pronunciávamos mais nos agradava, o que era de bom augúrio pois todos nós sabemos como é importante recomeçar vida no estrangeiro armado dum nome que caia nas boas graças gerais. À chegada a casa, aqui em Montreal, mesmo antes de desfazer as malas, o meu primeiro cuidado foi ir plantar os meus montesinhos no quintal. E, não obstante a aparente fragilidade, ou não sejam eles rijos transmontanos, resistiram corajosamente à transplantação e, mal passada uma semana, já começam a arrebitar as orelhas, espevitados pelos novos ares e pelo húmus gordo. Por vezes, sinto-me um pouco constrangido por os ter arrancado à sua liberdade selvagem e os ter aprisionado na prisão dourada do jardim mas se tiverem uma alma, como acredito que a têm todos os seres vivos, estou certo que compreenderão, tal como os leitores, as minhas pungentes e profundas razões. Para me redimir, prometo que se os montesinhos tiverem garra para resistir ao rigor do próximo inverno e proliferarem vigorosamente na primavera, irei utilizar todo o poder de persuasão ao meu alcance para conven26


O homem que falava com as flores cer a vizinhança a adoptá-los e acolhê-los, por sua vez, nos seus jardins. Se tudo correr bem e nenhum inesperado cataclismo ecológico vier impedir a sua natural proliferação, é muito possível que, perdida a memória da sua origem, daqui a algumas gerações, algum desprevenido turista lusocanadiano, de viagem a Portugal à procura das suas raízes, em pleno parque natural de Montesinho, exclame admirado: - Olha, aqui também há montesinhos, aquela flor canadiana! E eu, se essa história da vida eterna não for uma patranha, do lugar onde estiver, não poderei reter uma gargalhada, mais uma vez divertido e surpreendido com o fascinante e sempre remoçado espectáculo da vida.

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Aparentemente, repiso, em

circunstâncias normais, como todas as outras que publiquei, a história das aventuras e desventuras dos meus montesinhos poderia, quanto muito, continuar, durante mais algum tempo, a ser lenha para alimentar o lume da tagarelice mas acabaria por morrer de morte natural. Soaria assim a hora de voltar mais uma página sem relevo da minha apagada peregrinação por estas terras e de seguir em frente. Esporadicamente, quando a inspiração me visitasse, por desenfado, em jeito catártico, continuaria a rascunhar mais umas cronicazitas avulsas para os jornais. E como qualquer imigrante sem história relevante, nos meandros da luta pela vida em terras estranhas, continuaria a sonhar com os cíclicos e balsâmicos regressos, nas ansiadas férias, aos prados floridos das origens. Certo de que a lhéngua, as arribas e o voo eterno dos abutres lá estariam para me receber de braços abertos. Nas mais do que normais horas de desfalecimento e dúvida, aguilhoado pelas saudades, continuaria a procurar refúgio no porto seguro dos olhos azuis da Susana, sempre prontos para me agasalhar e embalar. Mas assim não o quis a sorte ou seja lá o que for que nos rege a caminhada atribulada neste mundo. Será que, por vezes, é preciso dar a volta à vida para encontrar o tesouro que está escondido à porta da nossa casa, à espera de ser desvendado, como já li não me recordo agora em que livro?

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O homem que falava com as flores Seremos pedras dum plano original traçado por um Ser superior, cuja finalidade não alcançamos? Dependerá o nosso destino principalmente de nós próprios, dos nossos pensamentos, das nossas acções e dos campos de energia que criamos à nossa volta? Ou será, afinal, o fluir dos acontecimentos obra do acaso, esse assustador e caprichoso agente que tudo pode devastar ou reconstruir, consoante lhe der na real gana, à sua passagem, indiferente aos nossos sonhos e projectos? Questões eternas e sem resposta evidente que nos continuarão a acompanhar e a atormentar até ao fim dos tempos. Seja lá como for, não se pode considerar que a enxurrada de acontecimentos que me atingiram seja das mais frequentes e explicáveis à luz crua da razão.

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udo começou numa noite cálida e húmida como só o podem ser as noites de verão em Montreal. Normalmente, tenho o sono pesado, um sono abençoado, de justo, como se ouve diz. Mas nessa noite, fui acordado abruptamente por um ruído estranho, tentacular, que crescia lá dos lados do quintal e invadiu o silêncio da casa. Alagado em suor, a respiração cortada, um inexplicável nó a esmagar-me o peito, fiquei de ouvido à escuta. Afinal, o ruído que me despertara, tangível, real, rotundo, era mais propriamente, uma onda crescente e soturna de gemidos ampliados pela escuridão. Intrigado, levantei-me pé-ante-pé para não acordar a Susana. Os gemidos eram cada vez mais audíveis e, arrepiado, cauteloso, abri, a porta da varanda. Perscrutei a escuridão tentando identificar o local da sua proveniência. Pareceu-me virem lá do fundo, do canteiro de flores onde eu plantara os montesinhos. Seria algum animal ferido? Mas aquele gemido era tão humano! E, subitamente, o gemido transformou-se em choro. Um choro profundo, dilacerante, convulsivo. Seria que alguém se refugiara no meu jardim? Cautelosamente, fui-me aproximando. Mas, por mais que me esforçasse, não conseguia vislumbrar qualquer vulto humano. Ali não havia ninguém, estava certo, mas o choro continuava nítido, pungente, como que saído das entranhas da terra.

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O homem que falava com as flores O coração batia-me mais atabalhoado no peito. As fontes da cabeça latejavam-me. As bagas de suor cegavamme. - Está ai alguém? - balbuciei, a medo. A minha voz, assim solta na imensidão da noite, tinha ressonâncias arrepiantes. - Vai-te embora, não te queremos ver. Arregalei os olhos de espanto. Os montesinhos tinham falado. Era impossível! As flores não falam, era a mais elementar das certezas. Seria um pesadelo? Estaria a enlouquecer? Recuei, assustado. - Vocês falam? - sentindo-me um pouco ridículo, afoitei-me a perguntar. - Será verdade? Alarmado, apavorado, voltei a aproximar-me. Ao nosso redor, tombara um silêncio sepulcral. Até os grilos se tinham calado para não perder pitada daquele diálogo tresloucado. - Vai-te embora. És o culpado de tudo. - Culpado de quê? Não percebo nada do que vocês estão para aí a dizer - balbuciei. Houve um rumorejar arrepiante. E logo de seguida: - Então, já que estás aqui, ouve de uma vez por todas. Ouve e arrepende-te, se ainda for possível. Insensíveis ao meu sofrimento, os montesinhos lamuriaram-se, falaram da desdita de eu, num gesto irreflectido, os ter arrancado ao seu mundo ancestral e de os ter trazido para esta terra estranha, para a solidão da prisão dourada do meu jardim. - Mas vocês aqui estão muito melhor instalados - lá consegui, por fim, defender-me. - A terra é muito melhor, não vos falta nada. Lá no parque de Montesinho, viviam agarrados às fragas, sujeitos às intempéries e à canícula. E a prova disso é que se têm desenvolvido, que estão muito mais mimosos. 31


O homem que falava com as flores - De que vale isso tudo se nos falta o essencial, a alegria de viver junto dos nossos? Aqui não compreendemos as outras flores e plantas, seremos sempre estrangeiros infelizes e desenraizados, talvez viçosos por fora mas cada vez mais murchos por dentro. Lá no nosso parque de Montesinho, até as aves e o vento eram nossos irmãos, todos de mãos dadas, unidos na imensa festa da natureza. És capaz de compreender a dimensão do teu crime? Já a madrugada raiava, a Susana foi encontrar-me enroscado, como um animal ferido, junto ao canteiro dos montesinhos. Aflita, temendo pela minha vida, sacudiu-me freneticamente. Acordei assarapantado e pus-me de pé num salto. Os meus olhos apavorados saltavam dos olhos azuis dela para os montesinhos em vertiginoso vaivém, tétrico, incapaz de balbuciar uma palavra. Indiferentes ao drama, agitados por uma aragem ligeira, os montesinhos espreguiçavam-se à luz branda do amanhecer. - O que fazes aqui? - afligiu-se a Susana. - Ó homem, o que te aconteceu? Estás todo sujo de terra. Fala, Manuel! Tiveste algum pesadelo? Que explicação credível poderia eu dar daquela noite alucinante? Talvez ela tivesse razão e não passasse tudo dum pesadelo, dum ataque de sonambulismo. Já ouvira contar histórias muito mais rocambolescas do que aquela. Sempre perseguido pelo olhar angustiado dela, tomei um duche de água fria e, quase sem meter nada na boca, parti para o supermercado numa fuga apressada.

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unca mais tive uma noite de tréguas. O meu dormir esfarrapado era apunhalado, noite após noite, pelos gritos cada vez mais insistentes e desesperados dos montesinhos. Arrastava-me penosamente até ao quintal e lá ficava, mais morto do que vivo, de olhar vidrado e boca entreaberta, a escutar o rosário interminável de acusações que, impiedosamente, me atiravam ao rosto. Através da vidraça da porta, adivinhava a presença dos olhos azuis da Susana que, numa vigília sem fim, fielmente esperavam a alvorada. Depauperado, à beira da loucura, deixei de comparecer no supermercado e, quase sem me alimentar, descuidado, completamente alheado de mim e do mundo, passava os dias em frenético deambular pelo jardim à espera que a noite tombasse para que o inexorável ritual se cumprisse mais uma vez, com o seu infindável cortejo de lamentos e recriminações. Pela primeira vez desde que os conhecia, os olhos azuis da Susana andavam alarmados, a transbordar de medos e interrogações sem respostas coerentes. - O melhor é tirar umas férias - sugeriu o meu sogro que, alertado pela filha, regressara precipitadamente a Montreal. - Eu encarrego-me do negócio, não se preocupem. Vão passar aí duas semanas de férias às Caraíbas, verão como é remédio santo. O sol e o mar curam todos os males.

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O homem que falava com as flores - Nem pensar - alarmei-me, quase agressivo. - Neste momento, não posso ausentar-me, nem um só dia, de Montreal. O velho cicuirano trocou um olhar cheio de subentendidos com a filha e, por entre o pesado manto de névoa que me toldava o raciocínio, compreendi que já todos duvidavam da minha sanidade mental e que altas barreiras se começavam a erguer entre nós. - Então, o melhor é consultar um médico - insistiu, mais directo. - Há alturas da vida em que precisamos de ajuda. - Vocês não sabem do que estão a falar - enfureci-me. - Nem lhes passa pela cabeça qual é o meu problema. Deixem-me em paz. Tratem da vossa vida que eu trato da minha.

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situação não podia continuar a arrastar-se assim por muito mais tempo, urgia tomar uma decisão. Sentia-me responsável pelo que estava a acontecer e competia-me encontrar uma solução que minorasse o sofrimento dos montesinhos. O ideal seria devolvê-los à sua terra de origem, ao longínquo parque de Montesinho, mas nos quase dois anos passados em Montreal, tinham alastrado tanto que agora não havia retrocesso possível, era uma solução praticamente inviável. Foi então que começou a germinar no meu espírito a ideia de os transplantar para um local mais aprazível, talvez para um parque com mais amplos horizontes, onde lhes restituísse uma parcela da liberdade perdida e pudessem reencontrar, na medida do possível, o gosto de viver. Durante uma semana a fio, esquadrinhei afincadamente os parques da cidade à procura do local ideal. Por fim, decidi-me pelo parque Jarry. Tinha, a meus olhos, a vantagem de estar localizado no coração da cidade, com fáceis acessos, e de, entre outros atributos, possuir água em abundância, um vasto lago, resguardado por espessa muralha de árvores, que era confortável santuário para um bando de patos selvagens que todos os verões ali assentavam arraial e criavam tranquilamente as suas ninhadas. Estava decidido, seria, pois, para um lugar discreto, entre dois penedos graníticos, a lembrar as fragas natais, situado à borda da água, que iria transferir os meus montesinhos. Orgulhava-me da escolha criteriosa, seria um com-

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O homem que falava com as flores promisso honroso entre a liberdade absoluta do parque de Montesinho e a artificialidade do meu jardim. Contudo, logo no próprio dia da transplantação, levantou-se no meu espírito um problema que eu não tinha previsto. Como seria possível proteger os montesinhos de tantos perigos que os ameaçavam? Estariam para ali indefesos, à mercê da gula dos patos sempre a escarafunchar com os seus bicos insaciáveis. Também a crónica curiosidade dos passeantes, inevitavelmente predispostos a colhê-los para os amortalhar em estéreis jarras de flores ou até mesmo para adornar os cabelos de meninas amorosas, constituía uma sombra perversa e pouco fiável. As próprias crianças, sempre irrequietas, em tropelias inocentes mas devastadoras, eram uma ameaça constante. A minha presença permanente nas redondezas era, pois, imprescindível. Foi assim que, naturalmente, como um soldado fiel à minha missão, numa manhã sem despedidas dolorosas, tomei a resolução de me afastar temporariamente dos olhos azuis da Susana e de alugar um quarto escabroso na proximidade do parque, o que facilitaria imenso a tarefa de zelar pela segurança dos meus montesinhos. A operação apaziguou temporariamente os ânimos. Mesmo que os montesinhos não reconhecessem declaradamente o meu esforço para lhes melhorar as condições de vida, pelas poucas palavras que trocávamos era evidente a sua mudança de atitude. Estavam mais cordatos e serenos. Valera a pena o meu enorme sacrifício. Esta trégua deu-me a oportunidade de desfrutar a beleza do parque e de prestar mais atenção aos seus frequentadores mais assíduos.

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primeiro frequentador com quem me relacionei era português. Reconheci-o, facilmente, pelo boné de pala ornado com a bandeira portuguesa. Homem à beira dos sessenta anos, de rosto sulcado pelo trabalho árduo e pela tristeza. Os olhos acinzentados e sem luz que poisava em mim causavam uma compungente impressão de mal estar. - A minha mulher morreu há dois anos - confessou me. - Os filhos têm a vida deles, mal os vejo. - Mais do que uma recriminação, era a triste aceitação do inevitável Ao entardecer, ficava de cabeça levantada, horas sem fim, a observar o voo caprichoso da escassa meia dúzia de andorinhas sobre o lago. Quando as andorinhas se cansavam de caçar insectos e desapareciam, num passe de magia, na redoma do céu, despedia-se. - Então até amanhã, se Deus quiser. - Apontava com a cabeça para o alto. - Na minha terra eram às centenas a escurecer o céu. Quando anoitecia, numa chilreada infernal, recolhiam aos ninhos pendurados, em cacho, dos beirais dos telhados. Aqui nem sei para onde vão. Será que fazem os ninhos nos beirais? Eu nunca vi nenhum. E o senhor? 37


O homem que falava com as flores Pelo seu semblante lavrado pelo sofrimento via que aquele era um problema insolúvel. Um enorme problema que lhe atormentava a existência e lhe roía o sono nas intermináveis noites sem respostas.

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O poeta era um tipo de olhos castanhos, grandes e húmidos, alto e esguio como um vime. Não conseguia parar de escrever febrilmente no seu caderno. Numa caligrafia miudinha, as palavras encavalitavam-se umas nas outras, numa pressa desmedida de encher as folhas de papel. Intrigado, um dia sentei-me a seu lado, no seu banco habitual. - Nunca paras de escrever? Ergueu para mim a fronte lisa de deus grego. - A minha missão é eternizar o belo, como seria possível deter-me? - E qual é o teu assunto predilecto? Poisou em mim os olhos sonhadores. - Todos os meus poemas são hinos de louvor à beleza feminina. No meu caso particular, à beleza feminina que se oculta sob os véus das mulheres muçulmanas deste parque. Enlouqueço a tentar imaginar o que se esconde por baixo daqueles lenços. - Cabeleiras, umas belas, outras nem tanto - disse eu, sem disfarçar a ponta de ironia. -Aí é que está a enorme diferença. O comum dos mortais, prosaicamente, só concebe o lado material mas eu pressinto muito mais do que isso. Mergulho, ébrio de emoção, até à essência, vislumbro toda a riqueza das civilizações, milénios de história cobertos pela imponderável leveza daqueles véus. Se me fosse dado o supremo privilégio de um 39


O homem que falava com as flores dia retirar nem que só fosse um único véu da cabeça de uma dessas mulheres de olhar imenso, penso que morreria de prazer. As mãos tremiam-lhe, os olhos castanhos ficaram mais húmidos. - Enquanto os deuses não me concederem esse deleite, pobre mortal que sou, continuarei a escrever, para a posteridade, os meus hinos à beleza das guardiãs das civilizações ancestrais. Afastei-me discretamente para não perturbar com a minha rude presença aquele momento sublime de puro êxtase.

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ra uma presença que já fazia parte da paisagem. Com os seus ténis e o seu eterno fato de jogging, infatigável, dava voltas e mais voltas ao lago, numa passada certa e rápida. Loira, alta, seca, era uma mulher de meia-idade que, vista de costas, poderia passar por uma adolescente. Certo dia, pus-me a caminhar a seu lado. - Nunca te cansas? - perguntei-lhe Sem voltar a cabeça, a resposta veio peremptória. - Não me posso cansar. Não posso parar. - Porquê? - Preciso de queimar calorias. - Isso é assim tão importante? - Se não queimo as calorias começo a engordar. - E depois? - Se engordasse nunca mais me poderia olhar ao espelho. Teria vergonha da minha imagem. - Talvez ficasses mais bonita. Mesmo com a facada da provocação, nem sequer se dignou olhar-me. - Estás a chamar-me feia? - Desculpa, não te queria ofender. Finalmente, atirou-me uma olhadela mortífera e acelerou a passada. Esfalfado, fiquei logo para trás.

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hegava todos os dias, pontualmente, às três horas da tarde, como sempre de fato preto e gravata. Sentava-se no seu banco habitual a saborear um cigarro demorado. Cumprido o ritual, esmagava a beata com a biqueira do sapato esfolado e só então tirava o ensebado caderno de apontamentos do bolso interior do casaco puído. Encavalitava uns óculos enormes de lentes redondas no nariz e, com um coto de lápis, punha-se imediatamente a rabiscar colunas cerradas de algarismos. - Também é poeta, como aquele ali?- perguntei-lhe um dia, apontando o poeta que continuava a escrever, infatigável e determinado, dois bancos mais à frente. Erguei o nariz adunco para mim. A resposta foi ríspida. - Pensas que perco o meu tempo com ninharias? Eu sou contabilista. - E contabiliza o quê? Pousou o caderno nos joelhos e tirou os óculos. Ficou um vinco profundo e avermelhado no nariz protuberante a orlar os olhos pisados. Olhou-me, complacente. - Queres saber? A avaliar pelo teu ar, não te deve despertar o mínimo interesse mas, mesmo assim, vou-te explicar. Desde há vários anos que mantenho uma contabilidade rigorosa dos patos deste lago. Desde o primeiro dia em que cá chegam, na primavera, até ao dia em que partem para o sul, no outono. - Isso é importante? O homem ficou indignado. 42


O homem que falava com as flores - Então não havia de ser importante? Saber quantos patos nascem, quantos sobrevivem, a proporção de machos e fêmeas. Ano após ano, tenho tudo criteriosamente anotado neste caderno. Até ao mínimo detalhe. Fazer o controlo demográfico dum bando de patos é uma tarefa colossal. - Acariciou o livrinho como o mais precioso dos tesouros. - Isto vale uma fortuna. - E esse controlo é importante para os patos? O contabilista ficou desconcertado com a minha impertinência. Tornou a encavalitar os óculos no nariz e refez o nó da gravata no pescoço engelhado. As mãos lívidas, sulcadas por sinuosas veias azuis, agarraram, convulsivamente, o caderno. - Vai-te embora. Preciso de trabalhar. Este parque está a tornar-se pouco recomendável, cheio de vagabundos. Se assim continua, os meus patos acabarão por deixar de o frequentar. Será uma catástrofe ecológica e eu saberei a quem apontar o dedo - concluiu, com um olhar acusador cravado no meu rosto. Deixei-o entregue aos seus emaranhados cálculos e fui vigiar os meus montesinhos.

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devoradora de homens atacava ao anoitecer, quando o parque começava a adormecer. Surgia intempestivamente das sombras, investia pelo lado sul, com o cão bem seguro pela trela e avançava em passada marcial e determinada. Era alta, atlética, a juba dos cabelos encaracolados acobreada pela derradeira luz do sol poente. Quando chegavam à beira do lago, o cão, negro e esguio, estacava, sentava-se a seus pés, esperava disciplinadamente ordens. Nessas ocasiões, os seus olhos amarelados, tal como os da dona, incutiam, em quem os fixava, uma mescla de respeito e temor. Era uma espera atenta, demorada e paciente. Por fim, seleccionada a presa da noite, geralmente rapazes na força da idade que passeavam desprevenidamente os seus cães, avançavam sem mais delongas para mais uma operação de combate. A estratégia era sempre a mesma. O cão, numa manobra impecável, milimetricamente planeada, barrava abruptamente a carreira das presas. Enquanto os cães, num jogo lúdico prolongado, se cheiravam em toques cada vez mais afoitos, a devoradora de homens aproveitava para abordar o rapaz e entabular conversa que rapidamente se entremeava de gargalhadas em cascata que perturbavam a paz do lago e faziam os patos esticar os pescoços nervosos e procurar refúgio nos juncais mais afastados. Até mesmo os esquilos eriçavam a pelagem e, com guinchos estridentes,

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O homem que falava com as flores amarinhavam velozmente até ao cocuruto das árvores mais altas. Quando as sombras tombavam de vez sobre o parque e a luz dos lampiões salpicava de diamantes o negrume do lago, acabavam por partir os quatro juntos, em alegre confraternização, para mais uma noite que eu imaginava transbordante de orgia e rituais macabros em honra de qualquer deus sanguinário e insaciável.

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Era um homem novo e tranquilo,

no vigor dos trinta anos, com uma eterna boina negra enterrada na cabeça e uma barbicha rala a ornar-lhe o queixo. Todos os dias montava o tripé sempre no mesmo local e apontava a máquina fotográfica, com rigor matemático, ao mesmo ponto do lago. Depois, punha-se a disparar incansavelmente. - Estás sempre a fotografar a mesma paisagem. As tuas fotografias devem ser todas iguais - fiz-lhe notar. A princípio pareceu incomodado com o meu reparo mas depois sorriu-me. - Nisso é que tu te enganas. As minhas fotografias são todas diferentes. Não há dois instantes iguais. Por mais pequena que seja, há sempre uma diferença entre duas fotografias tiradas logo uma a seguir à outra. Uma diferença enorme e preciosa. É uma folha que tomba, é um pato que mudou de posição, é o ondular da água….estás a ver...não há dois instantes iguais, compreendes? Compreendes a importância do que estou a dizer? - Mas qual é o teu objectivo? - Queres mesmo saber? - O fotógrafo rodou a boina na cabeça. - Vou-te confessar uma coisa, mas não digas a ninguém. – Inclinou-se, em jeito de confidência, para mim. Procuro o segredo da vida. Divertido com a minha perplexidade, soltou uma gargalhada que mostrou as fileiras de dentes brancos e saudáveis. 46


O homem que falava com as flores - Pensas que sou louco? Pareço mas não sou. Eu sou um tipo extremamente organizado e tenho um objectivo bem determinado. Intriga-te o que ando a fazer? Pois lá vai, o meu fim é reunir um milhão de fotografias do mesmo ponto do lago que, depois de informatizadas, irei sobrepor umas sobre as outras. Quando conseguir isolar a matriz de todas elas, terei descoberto o segredo da vida. Eu estava cada vez mais perplexo. - Não consigo acompanhar o teu raciocínio - confessei. - É natural, pois não tens a preparação devida para compreender. Como a maioria das pessoas, és prisioneiro da tua formação racional que te impede de ver o essencial. Mas, como todas descobertas importantes, é duma grande simplicidade. É o mesmo princípio dos alquimistas. Passam a vida a trabalhar para conseguir isolar a partícula minúscula e preciosa que resta no fundo do cadinho e que o comum dos mortais nem imagina a existência. Eu sou um alquimista da era moderna. Também eu trabalho dia e noite encontrar a essência, para identificar a tal diferença que me irá desvendar o segredo da vida. E agora, por favor, deixa-me trabalhar. Não tenho tempo a perder. Sem demoras, a máquina fotográfica pôs-se a metralhar, incansavelmente, a placidez do lago.

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ão era uma frequentadora habitual do parque. Fiquei agradavelmente surpreendido por a encontrar sentada num dos bancos à borda do lago. - Por aqui? A surpresa dela também não foi menor. Logo desabrochou num sorriso luminoso. - Também não esperava encontrá-lo por estes lados. Continuava a bela rapariga de sempre. Loira, olhos verdes, rosto fresco, sorriso sem sombras. Aparecia, geralmente aos sábados, pelo supermercado, para comprar o habitual frasco de mel português. “O mel português tem outro sabor, outra luz – dissera-me um dia, para explicar a sua preferência. - Deve ser do sol.” - Ainda continua a preferir o mel português? - É a minha forma de continuar a amar Portugal. Já que não gosto de bacalhau... Sentei-me a seu lado. Estava uma tarde aprazível, convidativa a soltar as amarras das confidências. - Não o tenho visto no supermercado. - Presentemente, tenho uma tarefa mais importante para cumprir. E quase sem me aperceber, falei-lhe dos montesinhos, da minha missão. As minhas palavras rolavam como seixos polidos levados pelo correr tranquilo dum regato. Quando me calei, o lago dos seus olhos verdes era mais profundo.

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O homem que falava com as flores - Compreendo-o. Também eu, mesmo tendo nascido cá, tão longe, ainda sinto dentro de mim as vozes que povoam as serranias donde os meus pais vieram. - É por isso que continua a gostar do mel português? Agora estava séria. Uma pequena ruga, quase enternecedora, atravessou-lhe a fronte lisa. - Sabe, o que vou dizer pode parecer ridículo mas eu acredito que todas as coisas encerram uma memória na sua estrutura molecular. E também acredito que é o somatório de todas essas memórias vivas que criam as poderosas forças invisíveis, mas decisivas, que dirigem o mundo e os nossos destinos. - As forças telúricas? - Chame-lhe o que quiser. Não sei como explicar mas pressinto que esse véu de energia nos envolve e condiciona todo o nosso comportamento. - Como a energia do sol português condiciona o sabor do mel? - Não brinque. Eu brincava para não me deixar aprisionar pelo magnetismo daquele par de olhos verdes que me atraíam irresistivelmente. Estava tentado a pegar-lhe na mão, a avançar por trilhos perigosos. Valeu-me que a força do par de olhos azuis que sempre me acompanhava, como um anjo da guarda, estava, mais uma vez, vigilante. Subitamente, uma nuvem esfarrapada irrompeu do nada e um inesperado aguaceiro lavou, duma assentada, a perigosa atracção. - Vemo-nos no supermercado. - E já só vislumbrei uma sombra fugidia a esgueirar-se para a mais próxima paragem de autocarro. Deixei-me ficar de olhos cerrados, indiferente à bátega que me vergastava o rosto como um látego punitivo.

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Nem sei bem por quê, Avozinha era o nome que lhe colava melhor à pele. Imaginava-a, quando recolhia ao lar, a tratar amorosamente dos netos e a preparar-lhes a ceia frugal. Era uma mulher mirrada e curvada, de origem oriental, que andava por ali todas as tardes a vasculhar nos cestos de papéis, a recolher as latas e garrafas de bebidas com depósito. Pacientemente, o saco que trazia às costas ia-se enchendo e, lá para o fim da tarde, a Avozinha, cada vez mais curvada sob o peso da carga, sentava-se num dos bancos mais discretos a fazer o inventário do fruto do seu labor e a deitar contas à vida. Talvez a sonhar com o seu país longínquo, salpicado de pagodes e nenúfares. - Hoje foi boa a colheita? - perguntei-lhe, numa tarde mais tranquila. A velha pôs o saco de lado e soltou uma risadita cacarejada. O seu olhar, filtrado pela minúscula fenda das pálpebras, tinha um brilho travesso, quase infantil. - Merci. - E tornou a soltar a risadita cacarejada. Compreendi que não percebera a minha pergunta. Era até muito provável que nem falasse francês. Ficámos sentados, lado a lado, sem palavras. Mas quando eu menos esperava, a mulher desatou a falar num francês sincopado mas perfeitamente compreensível: - Já cheguei a Montreal há muitos anos. Ouviu falar do boat people? Tristes tempos. Eu e o meu marido fomos dos primeiros a partir do Vietnam. Nunca mais lá voltámos. 50


O homem que falava com as flores Gosto de cá viver, as pessoas são generosas, mas uma coisa que eu não consigo compreender é esta mentalidade de desperdício. Tirou do saco uma garrafa de cerveja e fê-la rodar nos dedos. - Esta garrafa vale dinheiro. Como é que as pessoas são capazes de atirar dinheiro para o lixo? A pele amarelada do rosto parecia ainda mais mirrada. A fenda das pálpebras era agora quase imperceptível.

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O homem que falava com as flores

Ficou para mim o Monge

logo desde o primeiro dia em que o vi. Com a sua túnica, as suas sandálias, os seus longos cabelos grisalhos atados em rabo-de-cavalo, as mãos atrás das costas, era uma figura inconfundível. Chegava ao parque por volta das cinco horas da tarde e, sem de perdigueiro atrás da sua peça de caça. - Procuras o quê? – perguntei-lhe um dia, intrigado. Olhou-me com os olhos esverdeados e tranquilos. - Não sei ainda. Só sei que devo continuar a procurar até encontrar. Apesar da sua resposta evasiva, não havia ponta de desilusão ou de desencorajamento na voz repousada, quase maviosa como o som de uma flauta. - Nunca te cansas de procurar? - Não, sei que um dia irei encontrar o que procuro. E tu? O que fazes todos os dias no parque? Foi talvez a voz melodiosa ou a limpidez do seu olhar que me levou a confessar o meu segredo. - Protejo as minhas flores. Trouxe-as de Portugal e ainda não se adaptaram à nova situação. São umas flores brancas e delicadas que falam comigo todos os dias. Só quando vi as labaredas a saltarem dos olhos do Monge é que compreendi o meu erro. - Agora, já sei o que procuro. Fiquei aterrorizado. - Não te atrevas a procurar as minhas flores - ameacei-o, de punho erguido. 52


O homem que falava com as flores - Todos os seres vivos têm o destino marcado. O meu é procurar as tuas flores, soube-o hoje. Ninguém pode impedir que eu cumpra o meu destino. - A sua voz continuava melodiosa como sempre. Só a luz dos olhos é que era diferente. - Adeus, meu amigo, obrigado por teres iluminado o meu caminho e guiado os meus passos. Afastou-se com o andar meio flutuante de sempre, as sandálias mal pareciam tocar o pó do chão. Eu fiquei a observá-lo, com o coração a bater descontrolado no peito.

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quele banco estava, invariavelmente, ocupado por uma velha, de cabelos brancos atados num puxo no alto da cabeça, que lia, incessantemente, em jeito de reza, uma volumosa bíblia de capas de coiro castanho puído pelos anos. - Não se cansa de ler tanto? - perguntei-lhe um dia. Poisou a bíblia no regaço e envolveu-me num olhar profundo. Tinha uns olhos enormes, quase pretos, que engoliam o rosto lívido e maltratado. - Estava à tua espera para te falar. Sabia que virias esta manhã ao meu encontro. Senta-te e ouve o que eu tenho para te dizer. Obedeci e, intrigado, fiquei à espera do que se iria seguir. - Olha ao teu redor, com os olhos bem abertos. Só verás desolação, pecado e injustiça. Abre os ouvidos, bem abertos. Só ouvirás gritos de dor e ranger de dentes. A ambição desmedida dos homens transformou o paraíso, que lhes foi dado por Deus, num inferno. O fim do mundo está próximo. Poucos serão os que se salvarão. Poucos serão os escolhidos. Reza, reza muito. - Não tenho muito tempo para rezar - quis brincar com ela. - Tenho as minhas flores para tratar e proteger. A velha abriu ainda mais os olhos enormes. - Tratar da criação de Deus também é rezar. Continua, como até aqui, a cuidar das tuas flores, com muito amor, e serás salvo. Das fragas nascerá a luz que iluminará o novo mundo.

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O homem que falava com as flores Estremeci, inquieto. Seria que a velha me andava a espiar? - Sabe das minhas flores? Os olhos da velha estavam cada vez maiores. Eram dois sóis negros que ensombravam o parque. - Eu conheço tudo o que se passa neste parque. Eu conheço tudo o que se passa no mundo. - Ergueu a mão descarnada e brandiu a bíblia como uma espada. - Eu sou a escolhida do Senhor, enviada para anunciar que o Juízo Final está próximo. Passei as mãos pelos olhos para me libertar daquela visão terrífica. O raio da velha estava chanfrada de todo. Resolvi afastar-me e nunca mais lhe falar. Talvez fosse impressão minha, mas, por vezes, sentia os olhos enormes dela a seguir-me os passos. Nessas ocasiões, por medida de precaução, dava uma grande volta de diversão, antes de me aproximar dos montesinhos.

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lhar gasto. Mãos gastas. Rosto gasto. Era uma mulher com um ar amarrotado pelas agruras da vida. Tanto podia ter trinta como cinquenta anos. Lembrava-me uma sombra fugidia e errante a deslizar sobre a imensidão dos relvados. Passava os dias a apanhar a papelada que conspurcava o parque. Era uma tarefa árdua que requeria grande persistência, principalmente nos fins-de-semana quando, após os piqueniques, os relvados ficavam juncados de detritos. Num dos seus raros momentos de descanso, abordei-a. - Muito trabalho, hoje? Para minha surpresa, a mulher tinha uma voz tranquila e fresca que me lembrava o correr dos regatos. - É verdade. As pessoas gostam de se divertir mas, infelizmente, esquecem-se que estão a sujar o parque. - Podiam ter mais cuidado – acrescentei eu. –Já lhe evitavam tanto trabalho. - Tem razão - continuou a voz fresca.- Mas os seres humanos são assim. Levará tempo mas um dia irão compreender que não poderão continuar a sujar o mundo desta forma tão inconsciente. Então, tudo será diferente. Mas como esse dia tarda em chegar, agora, se me dá licença, vou continuar o meu trabalho. Afastou-se com a leveza das sombras. Ainda tinha um longo dia de trabalho pela frente.

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hegava com a sua decidida bengala de invisual a rasgar caminho e depois de duas ou três tranquilas voltas ao lago, acomodava-se no seu banco habitual. Cabeça erguida, testa alta, cabelo curto e espesso, a dar para o grisalho. Sólidos óculos escuros encavalitados no nariz aquilino e altivo a condizer com a boca talhada a cinzel e com o queixo voluntarioso. Era homem que não despertava o habitual sentimento de comiseração geralmente associado à sua deficiência. Antes pelo contrário, o seu rosto liso irradiava uma serenidade limpa que causava admiração. - Olá - disse, quando me sentei ao seu lado. - Olá, amigo - foi a sua resposta, num francês bem modelado mas que denunciava raízes distantes que não consegui identificar. O sorriso aberto mostrou as fiadas de dentes brancos e fortes. Depois, fiquei a olhar o vogar dos patos no lago. Ele continuava de cabeça erguida a observar sabe-se lá o quê. Corria uma tarde serena com muita luz a derramar-se entre o azul do céu e o verde da relva. - Está um belo dia. - Se está - respondeu-me. - Esta abundância de sol faz-me recordar a minha ilha de Chipre. - É cipriota? - Cipriota turco. - Parece um homem feliz, mesmo longe da sua ilha. - Agora sou. Mas nem sempre foi assim. Desde que ceguei, sou muito mais feliz. - É estranho. Geralmente, acontece o contrário. 57


O homem que falava com as flores - Diz bem, mas no meu caso foi diferente. - Tirou os óculos e fixou-me com uns olhos castanhos e brilhantes que me pareciam ver claramente. - Eu era um homem amargo, cheio de rancor. Um ódio visceral, que bebi com o primeiro leite, contra os gregos da minha ilha, e que, pouco a pouco, foi alastrando, como lepra, até se transformar numa aversão patológica e já não poder suportar a presença do mais mísero ser humano. Chegou a tal ponto que já não era sangue mas sim veneno o que me corria nas veias. Uma lava calcinante, auto-destruidora. Fugi da minha ilha, exilei-me nestas terras, mas nem mesmo essa fuga desesperada conseguiu sarar o meu mal. E certa noite tresloucada de raiva irreprimível, supliquei ao Senhor que me cegasse e me livrasse de tamanho sofrimento. Na manhã seguinte acordei cego. Irremediavelmente cego. Como deve calcular, o mundo desmoronou-se à minha volta. Vivi dias, meses a fio, perdido na mais completa escuridão. Até que certo dia, inesperadamente, uma luz acendeu-se dentro de mim. A princípio era uma chama vacilante, muito frágil, mas que, gradualmente, foi ganhando forças até se transformar no archote que varreu as sombras e iluminou, finalmente, o meu caminho. Hoje vejo o mundo com os olhos do coração e, acredite, a minha visão é muito mais clara do que antigamente. - Já não tem raiva aos gregos da sua ilha? - Como poderia odiá-los? Nascemos todos no mesmo berço, bebemos a água das mesmas fontes, percorremos os mesmos caminhos, fomos beijados pelo mesmo sol e pela brisa do mesmo mar, acordámos embalados pelo trinar das mesmas aves. Só por não falarmos a mesma língua? Acredite, eu vivia mergulhado nas trevas mais profundas. Só agora, com os olhos do coração, é que consigo ver além das aparências e compreender que os homens são todos irmãos, filhos do mesmo Deus. Quando despertamos para esta revelação, não podemos deixar de ser felizes. 58


O homem que falava com as flores Calou-se. A bengala raspava, ao de leve, o chĂŁo. A mansidĂŁo da tarde escorria sem pressas. Era a hora propĂ­cia para eu ir conversar com os meus montesinhos.

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À primeira vista aparentava ser mais idoso mas reparando bem nos sinais meio encobertos pelo ar desleixado e pela barba e cabelos hirsutos, era fácil reconhecer um homem ainda vigoroso com pouco mais de cinquenta anos. Chegava encavalitado na sua reluzente bicicleta que encostava cuidadosamente às costas do banco onde se sentava a saborear demorada cigarrada. - Tem uma bela bicicleta – entabulei conversa. Antes de responder, mediu-me dos pés à cabeça com o seu olhar azulado e irónico. O tom de voz era amistoso. - É o que me resta dos tempos antigos. Qualquer dia desfaço-me dela. Queres comprá-la? Faço-te um bom preço. - Bem vejo o cuidado com que a trata. Além disso, faz-lhe falta. - Talvez, mas faz-me recordar o mundo que abandonei. E isso enerva-me. Agucei o ouvido para as confidências que vinham a caminho. O olhar irónico apagou-se por um instante. - Já tive um bom emprego, mulher, filhos, uma vida confortável. Mas certo dia compreendi que essa estabilidade assentava numa cada vez mais insuportável obediência aos ditames alheios. Submissão aos caprichos e exigências da mulher e dos filhos, à prepotência do patrão, às apertadas regras de conduta que a sociedade me impunha. Vivia acorrentado, num constante sufoco. Até que um dia tive a coragem de largar tudo e de partir. Sou como um soldado que atirado para a guerra compreendeu que aquela luta não lhe 60


O homem que falava com as flores dizia respeito e acabou por desertar para nunca mais ser visto. A princípio foi difícil mas com o tempo aprendi a movimentar-me com mais à-vontade e sem medos nas franjas da sociedade. Agora já conheço como ninguém todos os meandros das redes de apoio aos excluídos, desde os bancos alimentares aos dormitórios, acredita que não me falta nada. O importante é saber abdicar do supérfluo e aprender a viver só com o essencial. Olha que não precisamos de grande coisa. Calou-se. Afagou as barbas e tornou a poisar em mim os olhos irónicos. - Quando já não me puder arrastar, podem-me atirar para a lixeira - rematou a conversa. Desde esse dia ficou para mim o Desertor mas cá no fundo sempre desconfiei que enquanto ele mantivesse no olhar aquele brilho irónico e guardasse ciosamente a sua bicicleta ainda havia a esperança de o ver regressar ao combate no mundo real.

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Era um rapaz enérgico, queixo quadrado, olhar acerado. Pela desenvoltura, adivinhava-o um jovem quadro ascendente nalguma empresa de tecnologia de ponta nos arranha-céus lá do centre-ville. Ajoelhado no espesso tapete de relva, abria a mochila e com uma rapidez aperfeiçoada pela longa prática, logo o papagaio ficava aparelhado para voar, mais uma vez, num desafio irreverente às leis do universo. Era um imenso papagaio multicolor, com um focinho agressivo de tigre com a dentuça arreganhada que, manejado pelo rapaz com uma destreza espantosa, subia, subia, quase a pique, com um silvo inquietante que perturbava a calmaria do parque. O fio com que o rapaz o controlava desenrolavase a uma velocidade vertiginosa. Sob a t-shirt, adivinhava os bíceps de aço retesados pelo esforço. Por fim, lá no alto, estabilizado, o papagaio flutuava com a majestade dos abutres da minha cidade natal. - Voa alto o seu papagaio - elogiei, certo dia, impressionado, após mais uma exibição. O rapaz olhou-me de rosto crispado. - Obrigado - agradeceu. - Tenho feito muito progressos mas ainda falta muito para atingir os meus objectivos. Boquiaberto, fiquei à espera do desenvolvimento. - Ainda não estou satisfeito com a minha perfomance - continuou enquanto, com gestos precisos, arrumava o papagaio na mochila. - Preciso de explorar melhor as enormes potencialidades desta máquina. Quando conseguir dominar

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O homem que falava com as flores melhor as técnicas do aeromodelismo, o meu papagaio conseguirá voar muito mais alto. - Até onde? - O meu objectivo é o infinito. Li-lhe uma ambição tão desmedida nos olhos inquietos que não tive mais palavras e afastei-me discretamente para ir tratar dos meus montesinhos.

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Encontrava-o, frequentemente, à beira do lago a atirar punhados de milho aos patos. Não enganava ninguém com aquele ar típico dos índios sul-americanos, atarracado, rosto esculpido em bronze. Os cabelos, negros e longos, trazia-os sempre atados em rabo-de-cavalo a descobrir a testa ampla e decidida de lutador na força da meia-idade. A t-shirt, que envergava com ostensiva vaidade, era invariavelmente a mesma, duma brancura imaculada, com a inconfundível figura do Che Guevara estampada no peito. - É o teu ídolo?- perguntei-lhe, quando o apanhei a jeito. - Tens razão, El Che é o meu ídolo - respondeu-me, batendo, energicamente, com o punho fechado no peito. O carão de bronze resplandecia como um sol. - É o ídolo de todos os oprimidos. - É perigoso transformar os homens em ídolos adverti-o. O homem soltou uma gargalhada amigável. - Não sejas tonto. Vê-se logo que levaste uma eficaz lavagem ao cérebro. Perigoso é deixar de acreditar que podemos ser os donos do nosso próprio destino. Perigoso é perder os ideais e viver escravos do dinheiro. Perigoso é pensar que tudo se pode comprar e vender, até mesmo as emoções e os sentimentos. Perigoso é transformar os homens em mercadorias. Acreditar num ideal que nos ultrapassa nunca foi perigoso. Enquanto os homens continuarem a so64


O homem que falava com as flores nhar, mesmo o impossível, haverá sempre esperança para a humanidade. Não obstante as palavras inflamadas, o seu rosto continuava a irradiar uma paz interior que era agradável contemplar. Deixei-o continuar a atirar, tranquilamente, milho aos patos. Diante do transcendente, não há reticências possíveis.

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O homem que falava com as flores

Chegavam discretamente, de mão dada, a sorrir uma para a outra. Tanto a mãe como a filha tinham os cabelos loiros e uns olhos azuis cheios de luz. Sentavam-se sempre no mesmo banco. Admirava a leveza de gestos com que tiravam as folhas de papel e os lápis de cor das pastas. Depois, ficavam horas esquecidas a desenhar. Os temas que lhes inspiravam os trabalhos eram muito diversificados. Tanto podia ser um arbusto, como um animal, muitas vezes flores, outras as aves em liberdade na imensidão do céu. Uma beleza etérea a pairar ao redor e a poisar, mariposa multicolor, sobre as folhas de papel. De tempos a tempos, trocavam impressões, sempre com aquela harmonia e prolongamento entre os gestos e as palavras que tanto me impressionava. - Gostam de desenhar - não me contive, certo dia. A criança foi a primeira a sorrir-me. Depois trocou um olhar cúmplice com a mãe. Era um olhar aberto, límpido, nascido nas fontes mais profundas da natureza. - É verdade - respondeu-me a mãe. - Desenhar, assim como todas as outras formas de expressão artística é a melhor forma de comunicar com o Criador. E de comunicar entre as duas. É também a maneira mais pura e acessível que encontrámos para expressar o nosso reconhecimento pela dádiva da vida. É neste encontro com a beleza que nos rodeia que está o caminho da felicidade. Não concorda?

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O homem que falava com as flores A pergunta era tão franca que não me causou o mais pequeno constrangimento. - Deve ter razão. Tornaram a sorrir uma para a outra, numa comunhão que me transcendia. - Não deixe secar a sua alma. É esse o segredo da harmonia com o universo. - Deve ter razão - tornei a concordar. Lá longe, do seu recanto, os montesinhos reclamavam os meus cuidados. - Vá tratar das suas flores - disse-me a criança, com uma risada traquina. - Não as faça esperar - acrescentou a mãe. Desta vez, não me espantou que elas estivessem a par do meu segredo. Mas o mais estranho foi que essa constatação não me alarmou, antes pelo contrário, transmitiu-me uma estranha sensação de serenidade.

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O homem que falava com as flores

O filho do Sol chegava manhã cedo ao parque. Despia a camisa e, de tronco nu, olhos semicerrados, voltava-se para o Sol e punha-se a tocar o seu tambor de pele gasta pelas longas batucadas. Depois, sempre de rosto erguido para o infinito, numa liturgia demorada, dançava em transe, por larga hora, em torno do velho salgueiro que estendia os braços flácidos para o lago. Era um homem de meia-idade, seco de carnes, rosto liso, cabelos castanhos e sedosos a caírem sobre os ombros bronzeados. - Isso é alguma cerimónia religiosa? - perguntei-lhe certo dia. - É verdade - confessou, com simplicidade. - É a dança do Sol. Venho aqui todas as manhãs dar alimento ao Sol que está dentro de mim. Sou um filho do Sol. Aquilo dito assim, com tanta franqueza, impressionava. - Descobri esta crença numa viagem que fiz ao Peru continuou logo de seguida, enquanto o tambor rufava suavemente para modelar as palavras. - Depois, interessei-me e investiguei o assunto. Descobri que o Deus Sol é adorado 68


O homem que falava com as flores desde os tempos mais antigos. Os egípcios chamavam-lhe Rá. Os gregos, Hélio. Os persas e os romanos, Mitra. Os incas conhecem-no por Inti. É, talvez, a mais antiga religião do mundo. - Em Cicuiro, uma aldeia portuguesa perdida no praino mirandés, viveu um homem chamado tiu Rá. - Dito isto, tão a despropósito, fiquei meio embasbacado. - Desculpa se te interrompi com esta parvoíce. Em vez de o contrariar, as minhas palavras aguçaram o apetite do filho do Sol. - Continua, continua, o que acabas de dizer é muito interessante. Encorajado pelos seus olhos cada vez mais abertos, contei-lhe, com os adornos poéticos de que fui capaz, a maravilhosa história do tiu Rá e das suas cerejas brancas. O tambor rufava mais forte. O rosto enxuto do filho do Sol resplandecia sob a luz solar. - Irmão, o teu tiu Rá foi, estou certo, uma incarnação do Deus Rá. E as cerejas brancas, de que me falas, são o disco solar que lhe orna a cabeça em todas gravuras que chegaram até nós. Devem ser os grãos de luz e energia de que se alimentam os deuses. Não tenho tempo a perder, vou partir imediatamente para esse lugar sagrado que me revelaste. Obrigado irmão, agora compreendo, és o enviado dos céus que me veio abrir as portas do conhecimento e alargar o chão da minha fé. E, num repente, prostrou-se a meus pés, com o fervor dum crente que, finalmente, encontrou o caminho da salvação.

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aquela tarde, travei conhecimento com mais um português. Ao contrário do observador das andorinhas, este era desportivo, vigoroso, na força da idade. No intervalo da animada partida de futebol que decorria num dos campos do parque, apartou-se do grupo e, depois de refrescar o rosto no jacto de água que esguichava dum fontanário ali à mão, encostou-se à vedação a descansar. Aquela camisola da selecção portuguesa de futebol, que envergava com garbo, não deixava margem para dúvidas. - És português? - meti conversa. Sacudiu a juba encharcada e sorriu-me. - Os meus pais são portugueses. Eu nasci no Canadá. - Apesar da sua resposta, falava um português escorreito, enfeitado com um subtil sotaque que só um ouvido mais atento poderia detectar. - Mas sentes orgulho da tua origem - continuei, apontando a camisola. O rapaz afagou o emblema das quinas. - Tem razão, quando jogo uso sempre esta camisola. É o meu talismã. - Confessa que no fundo, ainda te sentes português. - Pode ser, nunca fui muito agarrado a esses valores mas também, para ser franco, nunca reneguei as minhas raízes. Quando a selecção portuguesa vencia os jogos no campeonato do mundo, eu nunca faltava à festa que a malta fazia ali na St-Laurent, no bairro português. 70


O homem que falava com as flores - Se gostas tanto de futebol e da nossa selecção, podias organizar uma equipa portuguesa. - insisti. Desta vez, olhou-me admirado. - Para quê? Quando me apetece jogar, tenho estes amigos todos. - Apontava os companheiros que já se preparavam para recomeçar a partida. - São de todas as origens. Sul-americanos, africanos, chineses, até um esquimó cá temos. É muito mais divertido assim, não acha? E, sem me dar tempo para continuar a conversa, deu uma corrida para reocupar a sua posição no terreno. Ao longe, a camisola rubra das quinas sobressaia no cacho multicolor que já reatara o jogo em aceso alarido.

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Como todos os parques do mundo, o parque Jarry também tinha o seu imprescindível par de namorados. O rapaz era alto, elegante, belo como um deus de ébano. A rapariga, pequena, frágil, loira e branca como a neve. As cabeças voltavam-se surpreendidas com tão gritante contraste. Passeavam pelo parque a sua paixão como uma bandeira desfraldada. Quando se cruzavam, até mesmo a queimadora de calorias deixava tombar a máscara e sorria. Desconfio que se, por inadvertência, o rapaz colhesse um pé dos meus montesinhos para oferecer à sua bemamada, eu próprio fecharia os olhos, numa cumplicidade irreprimível. Contudo, certo dia, não resisti à vontade de fazer-lhes a pergunta inevitável que bailava na cabeça de todos os frequentadores do parque. - Como é possível que, sendo tão diferentes, se amem assim, com essa paixão? Apanhados de surpresa, levaram tempo a recomporse. Ele passou os dedos pela carapinha, embaraçado. Ela pousou as mãos nos joelhos, a alisar uma prega invisível da saia. Por fim, a rapariga ousou levantar os olhos e enfrentar-me. - Tão diferentes? - Tinha um fio de voz que escorria límpido, demorado. – Mas nós somos tão parecidos! - A mão direita levantou voo do joelho e foi pousar, numa carícia, no 72


O homem que falava com as flores rosto do namorado - Temos os mesmos interesses. Gostamos das mesmas coisas. Adivinhamos os pensamentos um do outro. Vemos as cores do mundo com os mesmos olhos. Ainda pensa que somos diferentes? E, mão branca, mão preta entrelaçadas, foram, mais uma vez, parque alÊm, continuar a sua sementeira de amor universal.

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O homem que falava com as flores

Simpatizei com ele mesmo antes de saber que era português. Não sei bem por quê, foi uma figura que me inspirou afeição logo desde o primeiro domingo que o lobriguei por entre os pinheiros a seguir, afincadamente, o voo da passarada. Contudo, reconheço que a nossa relação não começou da forma mais cordial, quando, levianamente, o abordei num momento crítico das suas observações. - Há por aqui bonitos pássaros. Ao som da minha voz, ouvi um rápido bater de asas e um relâmpago de fogo esgueirou-se por entre a ramaria dos pinheiros. - Viste o que fizeste? O homem que se encontrava acocorado, ergueu-se dum salto e pôs-se a invectivar-me num francês estropiado e recheado de insultos. Os olhitos no rosto de fuinha destilavam raiva. - Tabarnake! Osti de criss! Sabes o que era aquele pássaro? Um cardeal! Um cardeal, tás a ouvir, grande estúpido. - Desculpa. - Mange la marde. 74


O homem que falava com as flores Mal tive tempo de me esquivar do punho descarnado e raivoso que buscava esfomeado o meu rosto. Mesmo assim, num relance, quando me passou a rasar os olhos, reparei no anel com a bandeira portuguesa a relampejar. - Português? A minha pergunta inesperada teve o condão de amansar o rio de raiva. Surpreendido, ficou a arfar, o corpo delgado arqueado, os dedos crispados. - Desculpe lá, não foi por mal. A fúria deu lugar a uma enorme frustração que lhe lavrou o rosto onde já corriam profundas rugas de homem castigado por trabalhos pesados, talvez na construção a avaliar pelas mãos maltratadas. - Era um cardeal que ali andava. Nunca tinha visto nenhum por estes lados. Porra, você escolheu logo a pior altura para me falar. Agora caminhávamos, lado a lado, quase amistosos, por entre os pinheiros e o fresco da manhã. - Aos domingos de manhã, enquanto a minha senhora vai à missa, eu venho para aqui observar os pássaros. Quando quiser, posso-lhe mostrar para aí alguns ninhos. Ainda esta manhã, antes de ver o cardeal, descobri mais um de rola. Desde criança que adoro pássaros. Em Portugal, era capaz de imitar o canto de todos eles. Foi um dom que Deus me deu. Os meus preferidos eram os pintassilgos. Quer ouvi-los cantar? Estacou à minha frente. O corpo retesado descontraiu-se. A cara de fuinha quase ficou limpa de rugas. Os olhos ganharam nova vida. E daqueles lábios rudes e gretados soltou-se, mavioso, o trinar dum pintassilgo que fez emudecer de espanto as outras aves do parque.

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O homem que falava com as flores

Havia também o bando gralhador de velhos italianos. Mais do que lhes escutar, adivinhava os farrapos de recordações agridoces, tantas, tantas, a enfeitar as palavras assanhadas, como nuvens, ora diáfanas ora mais carregadas, a vogar nas tardes intemporais. Por vezes, estalavam rijas discussões, as cabeças encanecidas agitavam-se, as mãos descarnadas erguiam-se em fúria, as vozes gastas, num assomo de virilidade, rasgavam a mansidão da tarde. Só um velho, mais velho do que os outros, é que se mantinha à parte. Tinha um porte distinto, tronco direito, fronte erguida. E um olhos verdes e serenos de quem já deu a volta à vida e descobriu muita coisa. - Diga, Mestre, o que pensa disto? - tentavam envolvê-lo nas labaredas da discussão. Geralmente não respondia, limitava-se a sorrir. Mas quando falava, as suas palavras eram brandas, complacentes. - Todos têm uma parte de razão. O mundo real é o que existe na nossa mente. Tudo o resto é fantasia. Inconformados, os velhos continuavam a contenda em altos berros até que, saturado de tanta algazarra, um deles, um pouco mais novo do que os restantes, pegava no bandolim, sempre ali à mão, e soltava o jorro de seiva que lhe enchia a alma. Estancava a balbúrdia. A música, vibrante, cristalina, imensa, soltava-se parque além, deslizava sobre o lago como um barco de velas enfunadas, ganhava asas e evolava-se até 76


O homem que falava com as flores às alturas das nuvens. Regressava a rasgar regatos de reminiscências nos peitos dos velhos italianos que vergavam as cabeças encanecidas, rendidos ao apelo profundo. O velho português já conseguia acompanhar o voo mais tranquilo das andorinhas. O poeta suspendia o escrevinhar. O fotógrafo deixava de metralhar o lago. O contabilista enganava-se nas contas. A salvadora do mundo esquecia a bíblia no regaço. A queimadora de calorias abrandava a passada. A Avozinha endireitava as costas. O rosto do cego cipriota ficava ainda mais sereno. O Monge esquecia-se de procurar os meus montesinhos. O rapaz insaciável deixava o papagaio planar, por um instante, tranquilamente nos ares. O idólatra do Che esquecia-se de dar milho aos patos. O desertor já lá vinha empoleirado na sua reluzente bicicleta. A mãe e a filha paravam de captar a beleza do mundo. O ardor do jogo de futebol esmorecia. O tambor do filho do Sol cessava de rufar. O par de namorados sorria. A devoradora de homens tardava mais em surgir. O amante dos pássaros saía do bosque para espreitar. Eu próprio esquecia o meu drama. O parque parava de respirar. O Mestre abanava a cabeça, aprovador, quase feliz. - Tudo se passa na nossa mente - repetia, convicto. E, com a cabeça vergada para o peito descarnado, adormecia com um sorriso tranquilo nos lábios.

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Assaltado por forças subterrâneas, naquele dia aziago senti uma vontade irresistível de visitar o bairro dos portugueses. Era um estado de espírito estranho, uma mistura de atracção e repulsa que me impelia a avançar, que me atirava para a boca do lobo. Deambulei, vagarosamente, por aquelas ruas tão familiares com o deslumbre do desterrado que regressa à pátria. Tudo tinha um encanto novo e insuspeito. Delirava, como uma criança, com os símbolos da portugalidade com que deparava por todo o lado: as bandeiras verde-rubras, os cartazes, as montras numa profusão de nossas senhoras de Fátima, artigos desportivos, galos de Barcelos, loiça de barro berrante e tantas marcas e sinais mais que me emocionavam até às lágrimas. Das padarias e pastelarias chegava-me o cheiro a doçaria e a pão quente. Dos restaurantes evolavam-se aromas familiares, ricos de reminiscências.

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O homem que falava com as flores Evitei passar defronte do supermercado do meu sogro. Apesar de tudo, apercebia-me da minha fragilidade, compreendia que se deparasse com os olhos azuis da Susana não poderia resistir ao seu apelo. Seria dilacerante, naquela hora fraca de transe, ter de escolher entre ela e os montesinhos. Era uma eventualidade para a qual ainda não me sentia minimamente preparado. Após muitas hesitações, com o coração numa cavalgada louca, decidi-me a entrar no café português, ali na esquina da Duluth com a Saint-Dominique. Estava cheio e barulhento, todos os olhos pregado nos ecrãs das televisões onde decorria mais um jogo de futebol. Em tais circunstâncias, ninguém prestou a menor atenção à minha chegada. À cotovelada, furei até ao balcão onde me deliciei com a primeira bica que saboreava desde há muito tempo. Foi um breve reencontro com as agradáveis minudências da minha vida passada. Só então, com um aperto no coração, me dei conta de que, desde o dia em que me apartara dos olhos azuis da Susana, se escoara uma eternidade de renúncias e privações. Mas logo a realidade me lançou as garras ao pescoço. Uma ânsia irreprimível cortou-me a respiração. Espraiei o olhar aturdido pela sala e nem sei como, num impulso incontrolável avesso à minha natureza cordata, dei comigo a arengar em voz alta e enfurecida: - Cambada de hipócritas! Monte de carneiros. Aqui estão todos, a encher o bandulho de cerveja e a berrar como toiros raivosos enquanto, não muito longe daqui, os meus montesinhos choram e morrem de dor e solidão. - Cala-te, bêbado - apedrejou-me uma voz. - A mim ninguém me manda calar. Muito menos esta cambada de carneiros cegos. Num repente, senti-me agarrado pelos fundilhos e pela gola do casaco e empurrado porta fora. 79


O homem que falava com as flores Mal tive tempo de vislumbrar o matulão, de bigodes retorcidos no rosto rubicundo, que me manejava como a um boneco desarticulado. - Fora daqui, monte de merda. Se voltas a entrar, parto-te o pescoço. Tombei desamparado sobre um saco de lixo nauseabundo abandonado na borda do passeio. Ali fiquei uma eternidade, resfolegante, até que o pavor de que o Monge encontrasse os meus montesinhos me deu forças para me erguer e caminhar, cambaleante, St-Laurent acima.

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Mesmo se os montesinhos já não requeriam tão frequentemente a minha presença e os meus cuidados, havia contudo certos dias em que pareciam ter um prazer mórbido em me amarfanhar a alma. Mal me avistavam, agitavam as pétalas em lamentos dilacerantes. - Maldito sejas! Pensas que te redimes com tantos cuidados? O teu esforço é inútil. Nunca mais poderás remediar o mal que fizeste. Não compreendes que nunca seremos iguais a estas flores que nos rodeiam? Estaremos para sempre condenados a ser tratados como seres inferiores que não merecem a água que bebem. Foi esse o destino que nos traçaste com o teu acto tresloucado. Sentia as fontes da cabeça a rebentar com aquela torrente de acusações que começava a sentir excessivas e impertinentes. Mesmo através da neblina da minha perturbação, via-os cada vez mais rijos e pujantes, sem razão evidente para tantas lamúrias. A verdade nua e crua é que, estragados com mimos, os meus montesinhos estavam a tornar-se tão caprichosos como a flor do principezinho e, sub-repticiamente, a nossa relação degradava-se de dia para dia. Só um sentimento de culpa de que ainda não me conseguira libertar, me fazia continuar aquela vigilância. Até que certo dia de mau humor, saturado até à ponta dos cabelos, tomei a resolução de me afastar por algum tempo. Tal como o principezinho, também eu senti a necessida81


O homem que falava com as flores de premente de me distanciar das minhas flores e de refrescar ideias. Uma força vital que ainda tremeluzia no meu peito aconselhava-me a nadar para as margens da razão, indicavame o caminho da sobrevivência. Mas foi sol de pouca dura. Passados dois ou três intermináveis dias atolados em angústias e remorsos, estava de volta ao meu calvário, vergado, sequioso por continuar a beber até à última gota a cicuta que me envenenava a existência.

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O homem que falava com as flores

O meu desespero devia ser tão evidente que um dia o Mestre afastou-se do bando gralhador de italianos e veio sentar-se a meu lado, no banco onde eu me abatera como um destroço fustigado pelos ventos da insanidade. - Tudo se passa dentro da nossa cabeça. O dia em que não precisares mais das tuas flores elas deixarão de precisar de ti. Olhei-o, incrédulo. As suas palavras continuavam brandas e complacentes mas mesmo assim tiveram o condão de me sobressaltar. Mais outro que conhecia o meu segredo. - Mas como é que eu conseguirei libertar-me dessa dependência? - acabei por perguntar. O velho italiano pousou os olhos verdes e serenos em mim. - Por vezes, é preciso regressar às origens para reencontrar a parte de nós próprios que perdemos pelas escarpas da vida e voltar a reconciliar-nos com mundo que nos rodeia. Essa mutilação é a mãe de muita infelicidade. Os olhos dele continuavam tranquilamente poisados nos meus, inundavam-me de eflúvios que rasgavam caminhos à frente dos meus olhos aturdidos. Tudo se manifestava agora duma clareza surpreendente. Estava decidido, iria a Portugal, a Miranda, espairecer e rever o voo dos abutres sobre as arribas do Douro. De caminho, seria essa a parte crucial da minha viagem, deter-meia no parque de Montesinho, no lugar onde tudo começara, 83


O homem que falava com as flores para tentar reencontrar a ponta da meada emaranhada da minha vida. O instinto, aguçado pelas palavras do Mestre, segredava-me que seria lá, na solidão daqueles ermos, onde não existem barreiras entre os homens e o infinito, que o véu de trevas, em que me deixara espartilhar, se iria finalmente rasgar. O Mestre lia em mim como num livro aberto. - Vai. Não percas tempo. - Quando regressar, virei vê-lo. - Talvez já não me encontres aqui. - Irei procurá-lo. - Irás reencontrar-me onde menos esperas.

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o avião, calhou-me como companheiro de viagem, um velhote simpático e tagarela. A meio de agradável cavaqueira, quando eu menos esperava, encostou-me a boca ao ouvido. - Vou-lhe confessar um segredo, mas não me denuncie. - Num mar de rugas, os olhitos acinzentados brilhavam, quase divertidos. - Levo aqui comigo as cinzas da minha mulher, para enterrar lá na aldeia junto a um carvalho de que ela gostava muito. O meu ar de espanto arrancou-lhe um sorriso. Mas logo o seu rosto engelhado se retraiu, constrangido. - Antes de morrer, ela falava-me constantemente deste carvalho sob o qual se sentava à sombra, em criança, enquanto guardava as vacas no lameiro. É nesse lugar que ela gostaria de repousar para sempre. - O senhor é crente? - perguntei-lhe. - Acredita na vida extraterrena? - Não - respondeu-me -, mas prometi-lhe cumprir esta última vontade. Sabe, ela veio para o Canadá contrariada, fui eu que a forcei. Nunca mais foi feliz longe da sua aldeia. Dito isto, calámo-nos. As palavras, prosaicas e rudes, estariam de sobra neste momento de pura espiritualidade. Quando reatámos a conversa, falámos sobretudo de frivolidades. Era um conversador nato, alegre e inteligente, que me proporcionou um agradável resto de viagem. - Vai de férias? - perguntou-me, quando o avião estava prestes a aterrar, pousando em mim os seus olhos cinzentos repletos de franqueza. 85


O homem que falava com as flores Estive tentado a falar-lhe dos meus montesinhos. - Vou - acabei por mentir. Mas estou certo de que se lhe tivesse aberto o coração ele seria capaz de me compreender. A limpidez daqueles olhos não enganava. Contudo preferi calar-me. Sentia-me incumbido duma missão que não deveria revelar a ninguém, para que nem a mais bem-intencionada influência pudesse interferir na sua rigorosa execução. Após tão longa travessia do deserto, o reencontro comigo mesmo era a tarefa crucial da minha vida. O importante, a única coisa realmente importante, naquele momento, era alugar um carro e partir, o mais rapidamente possível, rumo ao norte e ao parque de Montesinho.

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soberba paisagem não mudara muito desde a minha última visita. Na curva da estrada, o castanheiro estava mais frondoso do que nunca, a ribeira ainda cantarolava lá no fundo da ravina e os braçados de montesinhos continuavam, heroicamente, agarrados às fragas e à vida. Estava um dia primaveril, quase estival, mas mal sai do carro, levantou-se forte ventania que soprou enfurecida pelos labirintos formados pelas enormes fragas. Logo de seguida, uma violenta tempestade, que rachava os montes de alto a baixo, rasgou o céu num imenso dilúvio. Para meu espanto, no meio do ribombar dos trovões e da explosão dos relâmpagos, cresceu até mim a voz dos montesinhos. - Amigo, bem-vindo sejas - saudaram-me exuberantemente, mal me reconheceram. - Estávamos ansiosos pela tua chegada. Sabíamos que virias, mais cedo ou mais tarde. Vais levar-nos também contigo? Encharcado até aos ossos, mas sobretudo surpreendido com a recepção inesperada, completamente diferente de tudo o que eu previra, quase sem me aperceber do que dizia, pus-me a fazer de advogado do diabo, a repetir a argumentação amarga que eu ouvira, vezes sem conta, da boca dos montesinhos, em Montreal. - Não digam isso, o vosso lugar é aqui, na terra onde nasceram. Os vossos irmãos são muito infelizes. Não há conforto material que possa compensar a dor do desenraizamento. De que vale uma terra gorda se nada pode matar a fome da alma? De que vale água com fartura se nada pode matar a sede do espírito? 87


O homem que falava com as flores - Isso não é verdade - replicaram os montesinhos. - A lei natural que rege os seres vivos incita-nos a partir à conquista do mundo. Quando as nossas sementes, tocadas pelo vento, voam para outros locais em busca de chão mais propício, estão a obedecer às leis da natureza que nos forçam, a todos, a buscar constantemente novos e mais rasgados horizontes. Eu continuei, afincadamente, a contradizê-lo: - Os vossos irmãos são muito infelizes, acreditem em mim. - Enganas-te mais uma vez - insistiram. - Não pode ser infeliz quem segue as leis da natureza. Nós os seres vivos, somos portadores duma inquietude crónica que nos rói as entranhas mas que é a chave da evolução e do progresso. E não obstante a angústia que toda a mudança acarreta, virá o dia em que todas as dúvidas se dissipam e se alcança uma harmonia que é já fermento de novas inquietudes, numa espiral sem fim. Leva-nos contigo à aventura pelos caminhos do mundo e liberta-nos desta vida sem esperança de melhores dias. - Quem sou eu para me arrogar o papel de Deus e interferir no vosso destino? Bem me basta acarretar com as terríveis consequências de ter levado para terra alheia os vossos irmãos. Vocês nem imaginam o sofrimento que o meu acto irreflectido me tem causado. Quase vergados até ao chão pela fúria da tempestade, os montesinhos estavam visivelmente decepcionados. - És um fraco, incapaz de assumir o protagonismo que te coube representar. Deixaste-te enlear nas tuas próprias dúvidas. As vozes que ouvias eram os teus próprios medos, as tuas angústias e incertezas. Os nossos irmãos só poderiam demonstrar gratidão por tudo o que fizeste por eles.Naquele momento, recordei as palavras sábias do Mestre: “O mundo real é o que existe na nossa mente. Tudo o resto é fantasia.” 88


O homem que falava com as flores - Se queres alcançar a serenidade, liberta-te dos teus fantasmas e leva-nos contigo - teimavam os montesinhos. Serás muito mais feliz se conseguires assumir as tuas responsabilidades na ordem natural do mundo. - Talvez tenham razão - acabei por reconhecer -, mas não posso fazer o me pedem. Lamento mas, neste momento, preciso de todas as minhas fracas forças para tentar reunir os fragmentos da minha vida. Não me posso dispersar com outras tarefas. Nem vos passa pela cabeça o que tem sido o meu calvário. Mas acreditem que esta conversa me fez um bem imenso e me ajudou a compreender muita coisa. Ficovos eternamente reconhecido pelo vosso acolhimento. Estava à espera duma recepção completamente diferente. Quando dali abalei, pressentia que não os tinha convencido mas pelo menos tinha conseguido desarmar a tensão que pairava no ar. Estavam mais conformados, embalados pela brisa ligeira que sucedera à ventania, mais predispostos a aceitar o destino que Deus lhes destinara no fabuloso palco da criação. No que me dizia respeito, sentia-me invadido por uma enorme paz de espírito. Fruto daquela conversa assombrosa mas tão útil e esclarecedora, começava a compreender que o meu acto de levar os montesinhos para o Canadá não tinha sido tão reprovável como à primeira vista aparentava, que eu não passara dum mero instrumento das forças insondáveis da natureza. Este raciocínio pode parecer à primeira vista muito rudimentar, mesmo primário, mas para mim tinha um enorme significado e ainda maior importância. O simples facto de deixar de me autoflagelar era um enorme passo em frente para passar à fase seguinte da minha penosa reabilitação e do reencontro comigo mesmo. Dissipada a tempestade com a mesma rapidez com que começara, avistei, para minha surpresa, um restaurante, até aí me passara desapercebido, encavalitado a meia encos89


O homem que falava com as flores ta. Um caminho íngreme que serpenteava por ali abaixo, ligava-o a uma aconchegada praia fluvial que a ribeira formava mais à frente quando, cansada de tanto cabriolar, se espreguiçava, indolente, pelo inesperado vale formado entre dois montes azulados pela neblina. Para lá me dirigi, reconfortado com a ideia de me regalar com uma chávena de café quente, sem suspeitar de que iria enfrentar mais uma prova rude e decisiva.

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O

que vai tomar? Era um homem à beira dos cinquenta anos, calvo como uma bola de bilhar e com uns olhos negros como carvões enterrados no rosto comprido e cadavérico mal barbeado. - Um café a escaldar – pedi, esfregando as mãos enregeladas. - Com um tempo destes bem precisa. Está todo encharcado. Anda perdido? – Os olhos negros percorreram-me de alto a baixo, inquisidores. Não respondi. Não sabia o que responder. Bebi o café encostado ao balcão. - Não deve ter muitos clientes em dias assim - comentei, para quebrar o silêncio. - É verdade. Nesta época do ano ainda não pára aqui quase ninguém. Mas com a chegada do verão, a praia fluvial enche-se de gente e a freguesia aparece. - Podia encerrar nesta época. O sangue afluiu em cachão ao rosto do homem. As mãos possantes esmagaram o mármore do balcão. - Nem pensar. Sou o guardião deste lugar. Sabe como é conhecido o meu estabelecimento? A Toca do São Pedro. Evidentemente que o São Pedro sou eu. Sou eu que guardo as chaves deste paraíso.

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O homem que falava com as flores Estremeci com a gargalhada metálica que rastejou pelo lajedo e subiu pelas paredes nuas até ao travejamento de madeira grossa e rústico do tecto. Reflecti que para São Pedro lhe faltavam as barbas venerandas e um ar mais bonacheirão. - Por vezes não se sente só? - Nunca! – Saiu de trás do balcão e dirigiu-me para a porta . - Chegue aqui. - Abria os braços como asas tenebrosas. Sentia-o pronto a elevar-se no ar e a largar voo. - Admire esta paisagem. Abra os olhos para esta beleza. Eu faço parte desta paisagem. Sou tão importante como uma pedra, como uma ave, como um animal bravio, como uma árvore, como uma flor. O mal dos homens é que, atingidos pelo horrível mal da inquietação, cortaram as raízes com a natureza. Por isso, a espécie humana está irremediavelmente condenada à extinção. Veja estas flores. - Estremeci. A mão do homem, como um punhal, apontava um tufo de montesinhos agarrados às fragas. - Já as imaginou transplantadas noutro lugar? Não sobreviveriam nem um só dia, morreriam de dor e solidão. - Os olhos negros e sinistros perfuravam-me. Concorda comigo? O homem estava louco ou então tinha o dom de ler no meu rosto o drama que me dilacerava a alma. No meio daquelas serranias, aquela criatura grotesca, aterradora, era a personificação das minhas alucinações. Talvez a última tentação. Uma mão de ferro estrangulava-me, queria arrastar - me de novo para o negrume dos meus delírios. Era um momento crítico, decisivo. Apesar de estar todo molhado e enregelado, transpirava copiosamente. - Estou certo ou errado? - tornou a insistir aquele demónio transfigurado em pessoa. Sentindo-me fraquejar, antes que tudo recomeçasse e que a harmonia, que começava penosamente a reconstruir se

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O homem que falava com as flores desmoronasse fragorosamente, atirei um punhado de moedas sobre o balcão e fugi atabalhoadamente porta fora. Uma insuportável cascata de gargalhadas satânicas perseguiu-me, como o silvar de víboras, até ao carro onde cheguei com os pulmões a rebentar pelo esforço da carreira cega monte acima. Só quando o carro engatou e arrancou aos solavancos, num guinchar de pneus queimados é que respirei aliviado. No retrovisor, os meus olhos dançavam estonteados.

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O homem que falava com as flores

O dia já ia avançado quando cheguei a Miranda. Depois das circunstâncias tão estranhas nas quais se desenrolara a minha visita ao parque de Montesinho, chegar à minha terra natal era como regressar ao aconchego do ventre materno, resguardado das grandes interrogações da vida. Sentia-me como uma ave que, de asas vergadas pela fadiga, regressa ao refúgio do ninho após longa e perigosa jornada por céus inclementes. Num enlevamento, ao percorrer as vielas da cidade, em cada esquina, em cada calçada, em cada pedra, aspirava, sôfrego, o odor inexplicável da pureza matricial que me moldara o ser. Em cada abraço amigo, na musicalidade da lhéngua, na paisagem imutável de arribas e penhascos, no voo majestoso dos abutres no céu alto e limpo, reencontrava, intactos, as emoções e os afectos dispersos durante a ausência prolongada. Sempre apossado por uma euforia que perdurou dias a fio, mergulhado numa orgia de sabores, odores e cores estonteantes, acabei por varrer completamente da mente os sacrifícios por que passara nos últimos meses de privações e servidão. Sentia-me solto, renascido, cheio de força e alegria nova. Até ao dia em que na Praça, com as mãos espalmadas no calor da estátua vibrante de reminiscências, ali onde tudo começara a germinar, numa revelação súbita que subiu das entranhas, compreendi que a minha jornada ainda não terminara e que era imperioso prosseguir a caminhada. 94


O homem que falava com as flores Havia, lá longe, num mundo concêntrico, numa outra esfera, num lugar a que eu também já pertencia, um par de olhos mais azuis do que o céu dos verões mirandeses que reclamavam a minha presença, estava certo disso, e que eu não poderia defraudar mais uma vez. Homem de poucas crenças, orei ali, sem pressas, sem palavras, com o rosto encostado ao metal cálido da estátua, a um deus desconhecido cuja presença pressentia a rondar, vigilante, exigente, protector, à minha volta. Num sopro, ordenava-me que, retemperado, pletórico de seiva fresca, era tempo de resistir ao canto das sereias da renúncia e de agarrar o bordão de peregrino e partir, com coragem, de peito aberto, mais uma vez, ao encontro do futuro e dos amanhãs incertos.

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O homem que falava com as flores

Mal desci do avião em Dorval, o meu primeiro passo foi meter-se num táxi e dirigir-me para o parque Jarry. Não obstante tudo o que acontecera e todas as peripécias por que passara, estava ansioso por reencontrar os meus montesinhos. Um pressentimento que me punha o coração a batalhar no peito segredava-me que precisava de empreender aquela derradeira peregrinação ao local do meu calvário para consumar definitivamente a minha libertação e regressar em paz ao aconchego dos olhos azuis da minha cicuirana. - Olá, voltei. - disse, mal os avistei. Não me responderam. A princípio ainda supus que estivessem irritados com a minha ausência prolongada e o abandono a que os votara. - Não estejam amuados. Mesmo longe, estavam sempre presentes no meu pensamento, não os esquecia um único instante. O silêncio dos montesinhos eternizava-se. Observando-os melhor, verifiquei, estupefacto, que as pétalas deles apresentavam agora uma coloração vagamente amarelada que lhes roubava aquela fragilidade que tanto me encantara. Só com muita boa vontade poderia reconhecer naquelas flores os meus montesinhos. Que alteração genética ou inesperada miscigenação com outras espécies aparentadas tinham operado tamanha transformação e dado origem àquela espécie híbrida e grosseira?

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O homem que falava com as flores Perfeitamente integrados na moldura do parque, começavam a alastrar a olhos vistos. A meia-dúzia de pés que eu transplantara já era agora um espesso tufo, exultante de força e vitalidade ansioso por conquistar um lugar ao sol. Adivinhava-os empenhados em feroz batalha com um canteiro de cravelinas que lhes barravam o caminho pela posse de uma nesga de terreno ainda virgem que descia suavemente para o lago. Brevemente, seriam os triunfantes senhores daquele espaço. - Não me respondem? –ainda insisti, por descargo de consciência. Compreendi que a ruptura se consumara definitivamente e que deixara de exercer qualquer influência no seu destino. Que, doravante libertos da minha tutela, o rumo das suas vidas nunca mais se cruzaria com o meu. Como disse l princepico e, por outras palavras, também o Mestre, as coisas só nos pertencem enquanto lhes somos úteis. Quando as minhas flores deixaram de precisar dos meus carinhos, deixaram de me pertencer, confirmei-o naquele momento. Paradoxalmente, esta constatação deixou-me ligeiramente entristecido e trouxe-me um travo de solidão à garganta. Mas, e só agora me apercebia deste pormenor capital, a liberdade deles era o preço da minha própria liberdade. Sem aquela preocupação, a minha vida poderia seguir rumo diferente, como se um enorme e pesado fardo me tivesse saído dos ombros. Salvaguardando as devidas proporções, e sem querer blasfemar, acredito que também Deus teria experimentado essa agradável sensação de liberdade no momento em que nos presenteou com o livre arbítrio. Mas teria também Deus sentido o mesmo travo de solidão?

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O homem que falava com as flores

P

assados dias, fui visitar os montesinhos uma derradeira vez, para me assegurar que nenhum percalço viera barrar o curso normal dos acontecimentos. Tal como previra, já tinham derrotado as cravelinas pela posse da nesga de terreno até ao lago e agora preparavam-se para nova e decisiva batalha contra um canteiro de aterrorizadas sécias. As suas pétalas, de dia para dia cada vez mais amareladas e coriáceas, reluziam agressivas e marciais à luz crua do dia. Pobre Monge, jamais os poderia reconhecer. As flores que eu lhe descrevera eram delicadas e frágeis, duma brancura imaculada, enquanto estas estavam transbordantes de seiva, vigorosas, prontas para enfrentar o mundo e lutar por um lugar-ao-sol no grande campo de batalha da sobrevivência. Embora visse confirmada a minha convicção, por mais que o rebatesse, aquele ligeiro sufoco que me afligia, desde há dias, ainda persistia. Será sempre esta mágoa da renúncia o tributo da liberdade? Quando, cabisbaixo, regressei ao meu quarto, a dona da pensão esperava-me de braços cruzados e ar severo. - Manuel, já deves dois meses de renda. Quando é que tencionas pagar? Sorri, compungido. A madame Geneviève, por detrás daquele ar severo de matrona com que se defendia dos ardis dos vadios que albergava, era uma mulher bondosa e compreensiva das misérias humanas. 98


O homem que falava com as flores - Tem toda a razão, madame Geneviève. Por agora, estou sem dinheiro mas pode ter a certeza de que, brevemente, virei acertar contas. Fique descansada. A mulher deitou-me um olhar suspeitoso mas poucas alternativas lhe restavam. A evidência, sem subterfúgios, é que estava falido, todas as minhas economias se tinham volatizado naqueles meses alucinados e desregrados. Só me restava agarrar nos meus parcos haveres e partir, o que, digase a verdade, não me afligia por aí além. Pressentia que estava eminente uma alteração radical do curso da minha vida e que deveria aguardar, pacientemente, os sinais dum tempo novo que não tardaria a chegar.

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O homem que falava com as flores

A

noitecia. Finalmente, o parque começava a ficar deserto. Preparava-me para passar a minha primeira noite ao relento. Ainda tinha no bolso o dinheiro suficiente para alugar, por uma noite, um quarto rasca de motel em qualquer parte, mas faltava-me a energia necessária para empreender a busca. Sentia-me exaurido, os neurónios electrocutados, incapaz de raciocinar, à espera do eminente sinal redentor que viria sabe-se lá donde e em que circunstâncias. Procurei com o olhar um lugar relativamente confortável onde me instalar. Ali, na ilhota, sob o salgueiro que estendia os braços flácidos para a água, pareceu-me um local suficientemente recatado e tranquilo. Sentei-me na relva e recostei-me no tronco da árvore. A aragem leve acariciavame os cabelos. No lago, os patos já dormiam com a cabeça debaixo da asa. Subitamente, saída das sombras, a devoradora de homens aproximou-se de mim, na habitual passada elástica e descontraída. Fingi ignorá-la. O cão cheirou-me os pés. Apetecia-me escorraçá-lo com uma biqueirada mas refreei o iimpulso. A mulher fingia-se alheada da minha presença. Ficou, por momentos, a observar o lago e depois, com um sorriso irónico no olhar, voltou-se. - Bonsoir. Está uma bonita noite. Não respondi. Sem se importar com o meu silêncio, continuou a falar. Trivialidades. Do tempo instável. Dos patos. Da lua cheia que prateava o lago.

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O homem que falava com as flores Parecia ter um conhecimento profundo do parque e dos seus frequentadores. Mas ignorava a existência dos montesinhos, apercebi-me logo, o que me tranquilizou e deu forças para enfrentá-la. Ela detectou o sorriso dissimulado que me retorceu os lábios. Compreendeu-o como um incentivo para continuar a conversa. - Gostas de passar as noites no parque? Eu também, principalmente agora que o verão chegou - mentiu. Do que ela gostava sabia-o eu perfeitamente. Sentou-se ao meu lado. O cão, com a trela larga, enervado pelo rumo inesperado dos acontecimentos, continuava a vasculhar as sombras da noite. Estávamos tão próximos um do outro que o cheiro discreto dum perfume com reminiscências a feno me penetrou nas narinas. Perturbou-me. Há meses que não tocava numa mulher, só agora me dava conta disso. A devoradora de homens continuou o monólogo. - O meu cão chama-se Lúcifer. Vivemos no bloco de apartamentos ali em frente, do outro lado da rua - informoume. - Lucifer, cumprimenta este nosso amigo. O cão, talvez pela primeira vez na vida, não lhe obedeceu. Via-se que estava vexado, relegado para um papel secundário. Rosnava-me, ameaçador. Trespassava-me com a espada dos seus olhos amarelados e frios. Ainda pensei em cativá-lo com uma carícia mas logo compreendi que era tarefa impossível. À mais pequena tentativa de aproximação arqueava-se, mostrava a dentuça como se visse o demónio. Eu era o inimigo que lhe roubara a coisa mais importante da sua vida: as caçadas do entardecer. E em tais circunstâncias, não há reconciliação possível. - Quel est ton pays d’origine? - Sou português - respondi, finalmente.

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O homem que falava com as flores - Portugais? Gosto muito de sardinhas assadas. Um português como tu ensinou-me a comê-las à mão. Imaginei-a, de lábios besuntados, a tirar a pele às sardinhas com a mesma lascívia com que despia os homens. Levados pela brisa, os cabelos da mulher roçaramme o rosto. O cheiro a feno perfumado ficou mais intenso, irresistível. Depois, aconteceu o inevitável. Fui eu, foi ela quem deu o primeiro passo? Que importância tem esse detalhe? Abraçámo-nos, com fúria. Rebolámos sobre a relva. Ao redor, a noite cálida desdobrava-se num imenso leito de lascívia. Inesperadamente, os olhos azuis da Susana interpuseram-se entre nós. Arredei-me do fogo daquele corpo que me calcinava até às entranhas. - Vai-te embora. - Colei a palma da mão aos lábios ardentes que continuavam a procurar, ávidos, inconformados, a minha boca. - Vai. A mulher ficou desconcertada. Primeiro, li-lhe uma nuvem de solidão profunda no rosto mas logo uma raiva imensa varreu tudo o resto. Ergueu-se dum salto e alisou as roupas em desalinho. - Maudit immigrant - atirou-me à cara, antes que a noite a sorvesse. O cão rosnou uma última ameaça e seguiulhe no encalço. Ficou a lua cheia num namoro demorado com o lago. Fiquei eu, encostado à árvore, a beijar ternamente os olhos azuis que me sorriam suspensos sobre as águas prateadas onde os patos continuavam, imóveis, com a cabeça debaixo da asa.

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O homem que falava com as flores

Já o sol ia alto quando acordei. Era domingo e estava um dia magnífico. O repuxo, flor multicolor em irisado desabrochar, atingia alturas nunca vistas. As gaivotas grasnavam, eufóricas, no céu azul. Os patos, sempre esbeltos, deslizavam no espelho do lago. O parque sacudira a preguiça da manhã e já rebentava de vida por todo o lado. O local onde pernoitara ainda cheirava ao perfume da devoradora de homens. Sorri ao evocar as peripécias da noite passada. O meu primeiro sorriso desde há muito tempo. Embrulhei o saco de dormir e, sentado, encostei-me ao tronco do salgueiro. Envolvido por uma paz apaziguante. Apercebia-me que os fragmentos do meu ser, durante tanto tempo dispersos, se tinham reagrupado ordenadamente, tocados por um sopro desconhecido. Embora não me alimentasse desde a véspera, não tinha fome. Nem sede. Sentia que se me levantasse, e se assim o quisesse, poderia flutuar. Mas deixei-me ficar tranquilamente sentado. Sem querer forçar as leis da natureza que me envolvia no seu abraço protector. A harmonia habitual do parque mantinha-se intacta. O Monge continuava, infatigável, a vasculhar o parque à 103


O homem que falava com as flores procura dos meus montesinhos. O poeta lá estava, fiel à sua missão, a rabiscar no seu caderno. O contabilista de patos mantinha-se vigilante. A mulher deambulante continuava a marchar e a queimar calorias. A velha da bíblia rezava, pronta para Juízo Final. O português das andorinhas lá estaria, como sempre, ao entardecer. A bengala do cipriota rasgava caminho às voltas ao lago. A mãe e a filha ocupavam o seu poiso, sempre a desenhar a beleza do mundo. A Avozinha já lá ia derreada com o peso da carga farta. O desertor apearase da bicicleta e deliciava-se com a sua cigarrada. Os jogadores de futebol chegariam mais tarde. O rapaz do papagaio não tardaria a aparecer. Seria logo seguido pelo fiel apóstolo do Che. O par de namorados já por ali andava a espalhar às mãos-cheias a sua mensagem de amor. Como todos os domingos, também o amante dos pássaros não iria faltar ao encontro. A devoradora de homens talvez, desta vez, não surgisse ao anoitecer, refugiada na sua toca a digerir a humilhação sofrida. O filho do Sol já teria chegado a Cicouro, a terra prometida? Os italianos revezavam-se, palradores, na cavaqueira interminável. Para completar o quadro habitual, só faltava o Mestre. Por onde andaria? O sopro desconhecido que me atingira ao acordar, voltou a acariciar-me o rosto. Sem pressa, levantei-me e deixei o parque. Nunca mais ali voltaria, pelo menos naquelas circunstâncias, segredava-me uma voz amiga que me impelia a partir e a sacudir os últimos enleios da ruptura. Empurrado, guiado, pela aragem, caminhei, com passo firme, Saint-Laurent abaixo.

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O homem que falava com as flores

Quando cheguei ao engalanado bairro português, a procissão saía do adro da igreja Santa Cruz. Uma procissão enorme, a transbordar de fé. A transbordar de fome de infinito. A transbordar de muitas outras fomes. Aos ombros de quarto homens paramentados com sóbrias opas vermelhas, o andor do Senhor Santo Cristo flutuava sobre as cabeças. O Ecce Homo acercou-se de mim. Procurei-lhe o olhar. Um olhar sofrido que encerrava toda a sabedoria do universo. Ficámos assim uma eternidade, olhos nos olhos, sós no meio da gente, a falar de homem para homem, sem que a multidão se apercebesse. De chofre, numa aparição, o clarão duns olhos azuis como o céu dos verões mirandeses envolveu-me na sua luminosidade. Com uma grande vela na mão trémula, a Susana sorria para mim. Ainda guardava aquele sorriso doirado e imenso como os trigais ancestrais do nosso praino. Sem palavras, lado a lado, incorporámo-nos na procissão. 105


O homem que falava com as flores Naquele instante, só por um instante imenso como a eternidade, o Senhor Santo Cristo sorriu e, atónito, reconheci no seu rosto macerado os traços nobres e serenos do Mestre do parque Jarry. Depois de lentamente percorrer o quarteirão, ao ritmo das árias das filarmónicas, a procissão regressou tranquilamente ao adro da igreja. Quando a multidão se dispersou, atraída pelos odores intensos que subiam, irresistíveis, das barracas de petiscos, a Susana deu-me a mão e regressámos naturalmente a casa.

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O homem que falava com as flores

A noite escoa-se, sem pressas, ao compasso do encarreirar das minhas recordações que convergem, tranquilamente, para um epílogo sereno. O esquilo lá continua de sentinela, empoleirado na vedação, mais acomodado à minha presença. Os grilos também não se cansaram de louvar a paz da noite, num berreiro talvez ainda mais desenfreado. Só a lua é que parece um pouco fatigada, reclinada no leito de um alvo dossel de nuvens que se erguera por detrás dos telhados dos bungalows. Arrumada a loiça do jantar, a Susana veio sentar-se nos meus joelhos. - Quien sós tu? - Sou Susana. - Los tous uolhos azules caírun de l cielo? - Nó, caírun dun abion que bino hai mui tiempo de Pertual. Encostou a cabeça à minha. O seu perfume cheira, irresistivelmente, a mulher matura. - Quiero tener un filho - murmurou-me ao ouvido. No escuro, sinto-a desabrochar, pronta para receber a semente da vida. Agora sei por que razão imperativa e inadiável o deus desconhecido, lá junto à telúrica estátua de bronze, me or107


O homem que falava com as flores denara o regresso a estas terras. Agora sei por que razão o sopro misterioso, lá no parque Jarry, me empurrara StLaurent abaixo. Silêncio. Até os grilos se calaram, de ouvido à escuta. A noite, maravilhada, abriu os olhos para assistir à celebração do mistério da vida. - Se fur nina gustarie que se chamasse Branca Flor, cumo la nina dua stória que a mie abó me cuntaba - acrescentou a mulher. - Pressinto que este nome te fazerá feliç. Haberemos de la ansinar a falar mirandés. Como é espantosa a vida e as surpresas que ela nos reserva. Afinal, não será só na mente febril do Monge que os meus montesinhos, de flor branca e imaculada, continuarão vivos. Afinal, não será só na solidão do Praino que a lhéngua continuará a amadurecer. Insondáveis e imensos são os caminhos do destino. A lua, aconchegada no alvo leito, sorriu e acabou por adormecer. O esquilo fartou-se de nos espiar, deu um pinote e desapareceu nas sombras mais profundas. Só os grilos é que retomaram fôlego e, heróicos, teimavam na sua cantilena. A aragem embravecera e já corria um pouco mais fresca. - Bamos para drento?- sugeriu a Susana. Mesmo no escuro, eu adivinhava o rasto de luz que lhe incendiava os olhos azuis e lhe esbraseava o ventre.

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O homem que falava com as flores

Alucinação ou realidade, está, felizmente, voltada a página e, mais uma vez, reconstruída a frágil teia da minha vida. Aparentemente sarada a leve pena da separação que me afligia, só uma dúvida persiste: será que no mais profundo do seu ser, os descendentes dos meus montesinhos ainda guardam alguns restos da memória da sua origem? E será essa chama suficientemente forte para algum dia se manifestar e alastrar pelos espaços infinitos do reencontro com o passado sempre presente no fabrico incansável do futuro? No que me diz respeito, ainda é muito prematuro avançar com qualquer vaticínio. Continuarei por cá, no supermercado, à espera das primeiras caixas de cereijas cicuiranas e a vender migalhas de pátria aos meus clientes roídos de saudades? Ou então, rico de tudo o que ganhei pelos caminhos tortuosos desta aventura, regressarei ao torrão natal para continuar o humilde sacerdócio de divulgar a bela lhéngua mirandesa? Talvez o mais provável, como geralmente acontece, será que os meus passos rasguem novos e inesperados atalhos que me conduzam até novas e surpreendentes paragens. Sinto-me, agora, maduro para aceitar todas as eventualidades. Com a sua imensa sabedoria, vinda do fundo dos tempos, aquelas florezitas duma brancura imaculada, agarradas heroicamente às fragas lá no parque de Montesinho, desvendaram-me uma das mais primordiais regras da criação: “Quando as nossas sementes, tocadas pelos ventos da vida, 109


O homem que falava com as flores voam para outros locais em busca de chão mais propício, estão a obedecer às leis da natureza que nos obrigam, a todos, a buscar constantemente novos e mais rasgados horizontes.” A minha insólita experiência, de sofrimento tecida, manda-me acrescentar: “Também, quanto mais caminhamos mais nos transformamos, entrelaçamos e caldeamos com as multidões peregrinas que, vindas por outros trilhos, afluem de outros mundos e de outras vidas. Sempre assim foi, sempre assim será. É sabedoria velha ciclicamente esquecida e relembrada.” Aconteceu com os meus montesinhos. Acontece com todos nós, constantemente a esbracejar num mar de fragmentações, ao sabor das altas vagas das múltiplas pertenças, tantas vezes aparentemente antagónicas e conflituosas que, ao longo da existência, nos moldam e fundem, eternos, na densa substância do porvir. São leis inexoráveis a que nenhum ser vivo se pode esquivar e a que devemos respeito, mesmo se de incompreensível finalidade. Também só agora abranjo o quanto a minha alma, a parte mais profunda e considerável do meu ser, se alterou e enriqueceu no cruzamento com as vidas fascinantes dos frequentadores do parque Jarry, braços tão diferentes do mesmo mar imenso e insondável. No remanso deste interlúdio, na lenta fermentação de tanta experiência, é, mais uma vez, reconfortante, a luz branda do farol dos olhos azuis da Susana que me continua a guiar os passos, ainda titubeantes, em busca de chão mais firme e seguro. É ainda esta luz inextinguível e vital, alimentada pelas fontes primordiais do amor absoluto, que, em paciente incubação, aquece agora o precioso grão de vida que a noite passada semeei ternamente no solo úbere da eternidade e que logo, fulgurante, pródigo de humanidade, se pôs a germinar promessas, sonhos, incertezas, alegrias, dores, enigmas, esperanças e novos desafios.

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O homem que falava com as flores Aguardarei, pois, vigilante, com os olhos do coração despertos, os sinais premonitórios anunciadores dos novos combates que chegarão, inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde. Confiante que, desta vez, os saberei decifrar com mais discernimento e clareza e que assumirei, com mais frontalidade e coragem, peça humilde mas tão única que sou, a missão que me couber desempenhar no imenso terreiro do magma cósmico. Pelo menos assim o creio. É sina e esperança dos seres humanos acreditar que o correr dos anos nos torna mais sábios e iluminados e que o amanhã será sempre mais promissor e radioso.

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O homem que falava com as flores

Nota do autor: Tal como no princípio desta narrativa, interrogo mais uma vez: até que ponto esta história é verídica? Onde acaba a realidade e começa a ficção? Confesso, nem eu próprio o sei discernir. Os leitores mais curiosos, apostados em deslindar este arremedo de intriga, poderão, nesta altura do ano, quando o verão já vai avançado, deslocar-se ao parque Jarry onde encontrarão os heróis desta história, esses rijos e valentes montesinhos, em pujante floração. É uma boa pista para encetar as investigações.

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O homem que falava com as flores

Adenda inesperada: Passaram dois anos sobre a conclusão desta história que, não obstante todas as peripécias mais ou menos rocambolescas que envolveram a personagem principal, teve, devo reconhecê-lo, um desfecho feliz. Mas a vida está sempre a envolver-nos na sua surpreendente capa de magia e fabulação. Há dias, no meu habitual passeio depois do jantar, que desta vez me encaminhara os passos despreocupados até à rua Casgrain, nas vizinhanças do Parc Jarry, deparei com um bem cuidado jardinzito salpicado por vigorosos tufos de flores brancas. O anoitecer já espalhava as suas sombras densas pela cidade mas logo reconheci naquelas flores os montesinhos da minha história. Num sobressalto, fiquei de fôlego cortado tal foi a minha surpresa. - Sont belles? Estremeci ao som daquela voz inesperada saída dum recanto do jardim. A mulher, já idosa, pesadona, avançava para mim. Apoiou os braços robustos no gradeamento, pronta para a tagarelice. O brilho dos olhos, o rosto bonacheirão de camponesa, o medalhão de oiro no peito opulento e mais um não sei quê tão familiar não desmentiam as suas raízes. - É portuguesa? – Era uma pergunta desnecessária. - Também é português? - O brilho dos olhos acentuou-se. - Bem me parecia que já o conhecia de qualquer lado. Talvez aí das festas portuguesas. - Agora já nada podia deter a enxurrada que galgava da boca escancarada. Acomodou melhor os cotovelos no gradeamento, pronta para a conversa demorada. 113


O homem que falava com as flores - Essas flores têm uma grande história. Apanhei-as vai para dois anos, ali no Parc Jarry. Quando as descobri, quase que desatei a chorar tão comovida que fiquei. Eu nasci numa aldeia do parque de Montesinho, em Trás-os-Montes, já ouviu falar?, e estas flores crescem lá por todos os cantos onde haja um pedaço de terra. O senhor pode não acreditar mas até parece bruxedo, desde esse dia mal conseguia dormir, só a pensar no raio das flores. Acordava de noite, numa grande espertina, parecia que as ouvia chamar por mim. Levou-me mais de uma semana até conseguir colhê-las. Andava a guardá-las um português meio maluco que não as largava de vista dia e noite. Dizia-se pelo parque que as trouxera de Portugal e mal me aproximava saltava logo, como um cão raivoso, a barrar-me o caminho. Até que um dia, apanhei-o desprevenido, de costas a conversar com outro maluco que por lá anda sempre de túnica como um monge e consegui arrancar alguns pés que corri logo a plantar aqui no meu jardim. Estão bonitas, não acha? Até parece que lhes dei vida nova. Largaram a crescer com uma força como eu nunca vi. Isto já começa a ser pequeno para tanto rebento. - E ainda chamam pela senhora? A mulher arregalou os olhos, surpreendida com a minha pergunta. Mas logo o sorriso lhe regressou ao rosto pacífico. - Agora quem fala com elas sou eu. Quando me dão as saudades da nossa terra e estou triste, venho para aqui falar com as minhas flores. A vizinhança até já ri de mim. Devem pensar que estou a ficar meio taralhouca. Pode não acreditar mas tenho a certeza que elas me compreendem quando me ponho para aqui a desabafar o que me vai na alma. Eu gosto muito de plantas e flores mas nunca me aconteceu uma coisa assim. Será por serem portuguesas? Até desconfio que o maluco as apanhou no parque de Montesinho, nunca se sabe, por isso nos compreendemos tão bem. 114


O homem que falava com as flores Há quem diga que as plantas também têm sentimentos e memória. Parece estranho, não acha? Sabe que nome lhes dei? Foi a minha vez de a impressionar. - Montesinhos. A mulher ficou boquiaberta. - Como sabe? - Mistérios da vida... E sem lhe dar tempo para se recompor, continuei o meu passeio rua abaixo.

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