Revista F | Ano 7 | 2021 | n. 11

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Editorial Fotografia em (r)existência Na capa desta edição trazemos um especial sobre a “Pequena África, região da capital do Rio de Janeiro que inclui os bairros da Zona Portuária - Saúde, Gamboa e Santo Cristo - e agrega, entre outros pontos, o Largo São Francisco da Prainha, a Pedra do Sal, o Morro da Conceição, o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos. Os retratos mostram elementos presentes no cotidiano dessa região que reverenciam e mantém viva a cultura afro-brasileira. Além disso, nesta edição temos a satisfação de contar um pouco de como foi o projeto “Mulheres em residência”, que teve objetivo de criar um espaço de diálogo e de fomentar os projetos de mulheres-fotógrafas por meio de oportunizar mentoria para outras jovens artistas.

Ilustra

Boa leitura!

Por Loyanne Reis



Mulheres em Residência, um projeto que ajuda jovens artitas ao redor do Brasil. (Página 18)


Brasil

DE TODOS OS CANTOS

Vapor Pery, monumento histórico da cidade de São Mateus do Sul

Ponto turístico que teve grande importância para a navegação paranaense no século passado Por Selma Santana (PR)

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O Vapor Pery, localizado na Praça do Iguaçu, hoje é um ponto turístico de São Mateus do Sul. No passado teve grande importância para a navegação no Rio Iguaçu e no comércio fluvial, ajudando no desenvolvimento da cidade. Extinto em 1953, ficou muito tempo abandonado e hoje é um monumento importante para a história municipal. Em maio de 2018 o Pery recebeu nova pintura, nas cores azul e branca, de acordo com Lei Municipal aprovada pela Câmara Municipal de Vereadores, que intitulou as

cores como padronizadas para os locais públicos. A finalidade de tal lei é baseada em adotar uma padronização oficial, seguindo a originalidade da Bandeira Municipal. Sobre a importância do vapor no desenvolvimento da cidade, o Sr. Luiz Fernando Riesemberg, jornalista, natural de São Mateus do Sul disse: “O Pery foi o único barco a vapor que restou da época da navegação do Iguaçu em São Mateus do Sul. A sua preservação nos faz lembrar que, até os anos 50, o rio era


o principal meio de locomoção e de transporte de cargas do município. Além de levar e trazer pessoas, o vapor movimentava a economia através do envio de erva-mate e madeira para outros centros urbanos”. São Mateus do Sul é uma pequena e pacata cidade no interior do Paraná fica situada ao sul do estado, distante 140 quilômetros da capital Curitiba, próximo à divisa com Santa Catarina. O município destaca-se na área industrial pela usina de xisto da Petrobrás. Quando a cidade foi colonizada, com a chegada dos poloneses, em 1890, a erva-mate e a madeira eram as principais riquezas da região, sua economia era baseada na agricultura e no extrativismo. Com a navegação a vapor no Rio Iguaçu, São Mateus do Sul transformou-se no mais importante porto e centro comercial da região. Em dezembro de 1882 teve início a navegação no Rio Iguaçu com o Coronel Amazonas Marcondes que teve o privilégio de explorar a navegação, através do decreto imperial n.º 7248. O primeiro vapor a ser lançado às águas do Rio Iguaçu foi o “Cruzeiro”, no dia 17 de dezembro de 1882. O Vapor Pery começou a navegar nas águas do Iguaçu em 1912 pela firma Guiblin & Cia, juntamente com duas lanchas de grande proporção: “Cila” e “Duda”. Suas máquinas tinham uma potência de 75 cavalos-vapor. Sua capacidade de carga, incluindo as lanchas, era de 1100 sacas de erva mate ou 400 dúzias de tábuas. Passou por três reformas que lhe deram, cada uma, aspectos diferentes, como a mudança do casco de madeira para ferro, o oferecimento de quatro cabines fechadas com beliches aos passageiros que, em sua última reforma em 1939, passaram para a tolda.

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No centro do Rio de Janeiro, há um carioca que tem esperança Símbolo da capital fluminense, o Largo da Carioca resiste ao tempo e sobrevive entre a vida urbana e as mazelas sociais. Por Genner Neves (RJ)

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O Largo da Carioca, no centro do Rio de Janeiro (RJ) é pano de fundo para trabalhadores, prédios e uma presença tão visível quanto invisível: a dos moradores de rua.

Leo Motta, foi morador de rua e viveu no largo, agora conta sua história em um livro e ajuda os moradores de rua.

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Léo Motta, 38, que já viveu no largo e saiu das ruas, superando também a dependência química, conseguiu um emprego e escreveu um livro pela tela de um celular velho que conta a sua história, o “Há vida depois das marquises”, que saiu pela Editora Autografia (2019). Para o autor, “É difícil receber ajuda na rua e vou usar a visibilidade que tive com meu livro, para que a sociedade enxergue os moradores de rua de verdade”. Léo Motta participou como destaque da Bienal do Livro em 2019. No espaço, pequenos grupos perambulam. Em sua maioria, são desempregados, dependentes químicos e pessoas com transtornos mentais, além

de famílias inteiras. Em um levantamento feito pela Fundação Leão XIII, em 2018, estima que a cidade do Rio possuía 4.628 moradores de rua.


Tiaruçu, um sustento para a família

Ao longo do tempo, o rio ajudou centenas de famílias a matar a fome. Por Gabryela Alves (MA)

“Minha fonte de renda, o sustento para minha família” é como Edinaldo Soares de 38 anos, morador de Santa Helena, pescador e pai de família definiu o rio Turiaçu e a pesca. O Rio Turiaçu, conhecido como o gigante da baixada maranhense, percorre várias cidades da região, entre elas Santa Helena e Turilândia-MA. Atualmente, a pesca é a principal atividade exercida no rio; a diversidade de peixes possibilita que as comunidades usufruam desse meio não

só para a alimentação, mas também para a venda. O gigante não é fundamental apenas para as famílias helenenses e turilandenses, mas também é um suporte para os grupos ribeirinhos. Esses moradores que vivem às margens do rio, quando precisam se deslocar, utilizam embarcações como meio de transporte pelo Rio Turiaçu. Podemos ver a importância deste rio em vários aspectos como a pesca, economia e transporte.

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Como disse o pescador Salomão da Silva, o rio é o pai e a mãe dos moradores”.


Turismo ecológico: mantendo a aventura em tempos de pandemia Hotéis de Dourado, interior de São Paulo, adotam novos protocolos de segurança e conseguem manter turistas, mesmo com isolamento social Por Lilian Speranza Lutti (SP)

Tirolesa: uma das atividades mais procuradas.

A cidade de Dourado (SP), situada a 280 km da capital paulista, conta com um forte turismo ecológico e de aventura, com práticas como rapel, arvorismo e tirolesa, atraindo viajantes do Brasil inteiro em busca de aventuras em suas lindas cachoeiras, montanhas e rios. A rede hoteleira da cidade, porém, precisou se adaptar nos últimos meses a um novo hóspede: o coronavírus. Com a chegada da pandemia, os protocolos de segurança para essas atividades sofreram adaptações para que o turismo pudesse ser mantido sem prejuízos. “Implementamos o uso das máscaras, face shield, álcool em gel, limpeza e desinfecção dos equipamentos e, também, agendamento prévio das

atividades com um número limitado de pessoas. Dessa forma conseguimos manter a taxa de hospedagem em 82%, mesmo na pandemia”, conta Luis Antonio de Faria Braga, gerente comercial de um dos hotéis da cidade. A boa notícia é que apesar do momento ser incerto devido a pandemia, as aventuras ecológicas na cidade estão seguras e garantidas.


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O uso de máscara é obrigatório nas práticas de arvorismo.


Brasil

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É possível fazer turismo ecológico desde que obedecidas as normas de segurança.


ENTRE -VISTAS

(RE)XISTÊNCIA DA ARTE EM MEIO A PANDEMIA Artista plástico de Recife cria o projeto Casa-Ateliê para sobreviver da arte num isolamento social que já dura mais que um ano Por Jana Costa

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Já chegamos há um ano de pandemia e com certeza esse momento que estamos vivendo vai apresentar mudanças sociais e culturais. Para os que produzem arte, estes já estão sentindo mudanças, facilidades e dificuldades nesse período. Museus, eventos, feiras, shows e exposições fechados. Com essa nova realidade de isolamento social, tem-se a possibilidade de ter o espaço da casa como um espaço para as produções artísticas. No entanto, se as experiências coletivas são alimento para a criatividade, como os artistas têm tido seus processos de criação? Samuel de Freitas Persio, 38 anos, artista plástico, reside atualmente em Recife-PE e criou em sua casa um espaço que entrelaça afeto e criatividade. Cura, casa, ateliê, arte e acervo com seus sentidos e significados fazem parte de sua produção artística. Samuel desde pequeno já desenhava, mas foi a partir de 2012 que passou a pintar também. Em um bate papo com o artista, ele nos contou como tem sido seu processo criativo, como ele foi afetado pela pandemia e por fim, sobre seu projeto Casa-Ateliê.

Para conhecer mais o trabalho do artista, aponte a câmera do seu celular no qr code:

Revista F: Como era seu processo criativo antes da pandemia? Como é agora? Samuel: Meu processo criativo teve grandes mudanças. Uma das coisas que me traz muita inspiração é o contato com o outro, muita das vezes em movimentos sociais. Depois do isolamento sinto muita falta desse contato pessoal. Tenho me sentido isolado e muitas vezes mergulhado nas minhas necessidades primárias, como sobreviver a essa pandemia. Produzir para mim é uma forma de se relacionar com ou outro e desconstruir preconceitos, mas, sem o contato pessoal, só virtual, fica muito difícil.


Revista F: Como tem sido para você ser artista na pandemia? Samuel: Tem sido muito angustiante, pois a ideia de futuro está suspensa neste momento. Revista F: O que é uma casa-ateliê? Samuel: A casa ateliê é o espaço de vida e de produção, onde o artista, no caso eu, está há todo momento em contato com a possibilidade de produzir. É uma forma de organizar o trabalho e a vida e não descolar o artista de onde ele vive e onde ele produz. Revista F: Quando surgiu a ideia de transformar sua casa numa casa-ateliê? Samuel: Essa decisão foi quando eu decidi viver de arte e encarar o fazer artístico, além também de ser uma forma de não aumentar o custo de vida e de ter autonomia no tempo e espaço de produção.

Revista F: Por que a escolha do espaço da sua casa para esse projeto? Samuel: Essa decisão vem da decisão também de não desvincular o artista e a obra. E a possibilidade de montar a própria galeria e poder explorar algumas técnicas de fazer. Revista F: Como você analisa ou pensa o consumo da arte nesse período pandêmico? Samuel: Penso que estamos mudando e ainda é cedo para analisar se teve uma mudança. Eu gosto muito de teatro, tenho visto algumas peças online e tem sido uma nova experiência, às vezes com uma certa frustração por não estar na plateia. E quanto ao meu trabalho, ainda não consigo dimensionar a mudança. O meu trabalho, além das técnicas, tem a experiência do material. Fiz um vídeo da casa e das obras que estão em exposição e essa experiência de vídeo limita o contato com a obra.

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Mulheres em Residência: projeto virtual abre espaço para fotógrafas Projeto criado em Curitiba e contemplado pela lei Aldir Blanc, fomenta a produção de fotógrafas emergentes de todo o Brasil. Por Amanda Zanluca

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“Mulheres em Residência” é o nome da residência online criado pela curadora, pesquisadora e artista visual Milena Costa, e pela produtora cultural Kamila Bach e que é destinada a fotógrafas emergentes de todo o Brasil. Durante a residência, cinco tutoras da cena da fotografia de Curitiba acompanharam os trabalhos das selecionadas. O projeto foi criado com o objetivo de criar um espaço de diálogo, fomentar os projetos de mulheres que atuam na área e possibilitar que artistas jovens tivessem a oportunidade de mentoria com outras mulheres. Milena Costa, 38 anos, trabalha com imagens fotográficas há mais de 15 anos, seja criando as mesmas ou mediando projetos fotográficos. Além do Mulheres em Residência, Costa também é coordenadora da Ponto de Fuga, uma galeria, espaço e escritório de arte na cidade de Curitiba. “Na Ponto de

Fuga produzimos uma série de projetos e criamos programação constante no campo das artes visuais. O projeto surgiu a partir de uma conversa entre eu e a Kamila Bach - que é a produtora da residência e que me acompanha em diversos projetos. Ela teve a ideia de fazermos uma residência on-line específica para mulheres. Como eu tenho muita afinidade com residências artísticas, tendo participado de várias delas e também mediado outras, achei sensacional criarmos um espaço desses no ambiente virtual. O campo da fotografia tem diversos problemas relacionados às relações de gênero desiguais. Infelizmente, ainda é comum vermos festivais, exposições e projetos em geral que não contemplam a presença de mulheres ou, quando o fazem, é de maneira tímida e coadjuvante”, explica.


possui uma longa trajetória na fotografia local, é pesquisadora, artista, já ganhou diversos prêmios e possui uma relação bastante conceitual com a fotografia; Lu Berlese tem uma vasta experiência no ensino e seus trabalhos tem um viés lúdico relacionado à fotografia expandida. A quinta tutora sou eu (Milena Costa), que possuo um espaço dedicado ao pensamento fotográfico e pesquiso questões de gênero e sexualidade no campo da arte”, conta a coordenadora do projeto.

Milena Costa, coordenadora do Mulheres em Residência, projeto online destinado a fotógrafas emergentes de todo o Brasil. (Créditos: Arquivo Pessoal)

Kamila Bach, 28 anos, trabalha desde 2019 com Milena Costa e explica a escolha do nome para o projeto. “Não tivemos uma grande busca pelo nome ideal, posso dizer que ele simplesmente surgiu. Acho que ele, ao mesmo tempo, deixa em evidência o que estamos fazendo e qual é o projeto, mas também evoca algumas outras questões sobre a Mulher, historicamente muito ligada ao espaço doméstico, é uma subversão dessa ideia, é uma residência que vem para abrir seus horizontes, um ato de resistência”, comenta. Com Curitiba sendo privilegiada como espaço irradiador do projeto e o mesmo tendo sido contemplado por um edital da lei Aldir Blanc - lei emergencial para apoiar artistas durante a pandemia, as tutoras foram escolhidas a partir de suas atuações no campo da fotografia na capital paranaense. “Pensamos em profissionais que representassem diferentes vertentes da produção fotográfica contemporânea local. Isa Lanave representa a geração mais jovem e o fotojornalismo; Pretícia Jerônimo pesquisa há anos processos históricos em fotografia; Milla Jung

Kamila Bach, produtora cultural do Mulheres em Residência que começou a se aproximar da fotografia ainda durante a graduação em Artes Visuais. (Créditos: Arquivo Pessoal)

As inscrições e seleção para o projeto foram feitas no mês de janeiro e fevereiro e a residência foi realizada durante o mês de março. Ainda no mês de abril houve outras atividades do projeto como o Ciclo de conversas com as tutoras e artistas, a exposição virtual e também o lançamento do e-book com os projetos desenvolvidos. Ao todo, o projeto recebeu 140 inscrições, com 29 fotógrafas brasileiras tendo sido selecionadas para terem seus projetos acompanhados pelas tutoras. Divididas em cinco grupos, onde cada tutora ficou responsável entre quatro a seis participantes. Costa comenta ainda da seleção das participantes: “Foi uma escolha muito difícil, pois recebemos

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dezenas de inscrições e com poucas exceções, a qualidade dos projetos era muito alta. Consideramos as regiões geográficas das artistas e principalmente a possibilidade dos projetos crescerem nesse processo de residência. Muitos projetos que foram enviados estavam redondinhos, bem feitos e profissionalizados. Em alguns casos, ainda que essa qualidade profissional fosse notória, entendemos que outras participantes poderiam se beneficiar mais da residência. Ou seja, pensamos também em quem “precisava” passar por esse processo de mentoria e qual seria o impacto dessa experiência na trajetória das artistas”. A produtora da residência, Kamila Bach, comenta que a recepção das participantes com o projeto foi excelente e que a avaliação até o momento é muito positiva. “A troca com as participantes foi bastante enriquecedora e todas se mostraram muito animadas em participar e crescer juntas, foi um mês intenso em que todos estiveram muito envolvidas com os processos. Já recebemos algumas sugestões para as próximas edições, queremos ampliá-lo e poder contemplar ainda um número maior de mulheres”, comenta. Bach também conta ter sido “muito gratificante e enriquecedor idealizar e concretizar um projeto tão impactante e com mulheres tão incríveis, um sopro de esperança e resistência em tempos tão conturbados”, finaliza. Todos os trabalhos desenvolvidos pelas participantes durante a tutoria do Mulheres em Residência, serão exibidos em uma exposição online no site do projeto. Além da exposição, o projeto ainda publicará um e-book e organizará uma roda de conversas com todas as participantes. A coordenadora do projeto, Milena Costa, garante que pretendem

realizar uma segunda edição do Mulheres em Residência e que para tanto já estão na busca de novos subsídios para realizá-lo.

Irradiações de Corpo Ausente Guadalupe Fernandez Presas, 42 anos, formada em História e em Comunicação Social - Jornalismo, a produtora e fotógrafa foi uma das participantes do Mulheres em Residência participando do grupo mentorado por Milena Costa. Atuando desde 2005 com estudos, pesquisa e atividades profissionais na área da fotografia e imagem, Presas encontrou no projeto a oportunidade de ampliar sua pesquisa. “Inscrevi no Mulheres em Residência uma pesquisa que comecei a produzir há mais de um ano, chamada “Irradiações de Corpo Ausente”. Faço colagens e costuras sobre as imagens de tomografias computadorizadas da coluna vertebral, tórax e quadril, realizadas no corpo do meu pai nos seus últimos anos de vida, em que sofreu com ossos partidos e um câncer de pulmão. Nelas busco elaborar questões sobre a ausência e sobre as imagens a partir desse lugar; trabalho a vida a partir do luto e viceversa; crio novas estruturas e significados para aquelas fotografias a partir do gesto de recortar, suturar e plantar árvores e mares onde antes havia dores. É um processo artesanal de manusear as imagens, transformar com as mãos aquele imaginário e evidenciar que elas são mais que depósitos de informações, mas também são aquilo que podemos delas fazer”, explica. Tendo conhecido o Mulheres em Residência a partir da indicação de uma amiga, a fotógrafa conta que antes do projeto havia três caminhos diferentes de conceitos dentro do que produziu e que


possuía muita vontade de compreender e elaborar melhor aquele processo e a pesquisa na qual estava imersa. “Na residência escolhemos um desses caminhos, aprofundando melhor algumas das questões que tinha quando iniciei. A partir das trocas com as mulheres do grupo e dos exercícios e reflexões propostas pela Milena foi possível ‘fechar’ e entregar a série COLUNAS, que integram a exposição e catálogo do Mulheres em Residência. São nove colagens, que têm como eixo as radiografias da coluna vertebral e que vão ‘crescendo’ ao longo do processo. Algumas delas foram inclusive produzidas durante o mês da residência. Foi bem intenso”, comenta Presas.

Para a fotógrafa, “participar do Mulheres em Residência foi uma experiência muito potente e acolhedora. Combinação fundamental para os trabalhos e para o desenvolvimento de todas que puderam participar, sendo transformador em muitas camadas”. Presas complementa ainda que: “foi um respiro nestes dias tão sombrios que o Brasil está enfrentando; uma rede de apoio para enfrentar tanto descaso e falta de incentivos. Nas salas de conversa, nos grupos e com as mulheres, penso que todas encontramos e entregamos nossas potências, poesias e afetos. E isso, além de nos ajudar em nosso fazer artístico e a enfrentar as perdas que vivemos, também nos fortalece enquanto coletivo, enquanto força sensível que somos”, finaliza. O trabalho da fotógrafa Guadalupe Fernandez Presas desenvolvido durante a Residência, foram colagens produzidas artesanalmente, sendo peças únicas com as imagens originais das radiografias, sobreposição de outras fotografias de arquivo pessoal e costuras em fio de algodão. Além do projeto “Irradiações de Corpo Ausente”, Presas também atua como fotógrafa e produtora na Prata Gelatina Fotografia & Filmes.

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Guadalupe Fernandez Presas Reprodução de colagem manual feita com originais de imagens de tomografias computadorizadas de coluna vertebral e com originais de fotografias impressas de arquivo pessoal. Costuras feitas com fio de algodão


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Guadalupe Fernandez Presas, umas das fotógrafas selecionadas para participar do Residência em Mulheres


Mulher dobrada Diane Sbardelotto, 32 anos, também conheceu o projeto pelo instagram através de uma amiga onde ambas se inscreveram e foram selecionadas. A artista visual, professora e pesquisadora de arte que reside em Porto Alegre - RS, explica sobre a produção que inscreveu. “Submeti uma série de fotoperfomances de meu corpo dobrado em ambientes diversos. Naquele momento, não conseguia estabelecer um crivo para essas imagens, e a narrativa enquanto sequência, trazia a repetição desse gesto como fio condutor, mas com muitos temas possíveis. A própria organização formal para a leitura era algo que eu não tinha me atentado o suficiente, porém optei por mostrar variações, para dar uma ideia ampla de caminhos já percorridos e desdobramentos a fazer. Refinar essas edições foi um dos objetivos que tracei, e também repensar os lugares e formas de socialização e circulação desses trabalhos até então pouco divulgados. As “fotodobragens”, como eu chamava o procedimento adotado, nessa seleção estavam nomeadas como “Mulher dobrada”, um título que eu já repensei. O texto estava mais focado na ideia de ductilidade e nas questões físicas do corpo, embora eu quisesse abarcar subjetividades”, conta. A artista visual comenta o que mudou ao participar do projeto. “A residência mudou muito a minha capacidade de falar sobre meu trabalho, foi uma tomada de consciência, e ao mesmo tempo uma perda de controle. Esse controle vinha no sentido de que eu estava retendo acessos importantes como o significado que os lugares que ali aparecem tinham para mim e como as intervenções nas paisagens se pareciam com a educação do meu corpo. Também, foi possível fazer uma retomada

Diane Sbardelotto, artista visual que desenvolveu o projeto com “fotodrobragens” durante o Mulheres em Residência. (Créditos: Arquivo Pessoal)

de começos e motivações iniciais, junto com algo muito anterior, de como meu corpo começou a se dobrar. Redescobrir a história desse gesto vinda lá do trabalho na roça com minha família foi muito especial para mim. Poder falar sobre isso foi possível graças ao ambiente favorável de escuta e presença que criamos em nosso grupo de mulheres artistas. A partir do olhar escavador de imagens de que fomos contagiadas pela nossa tutora Milena Costa, desenvolvemos um estado de atenção para os trabalhos que eu nunca tinha vivenciado

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quanto à minha produção artística. Sinto que essa falta de atenção como um sintoma do mundo, e parece que a arte às vezes exige esse esforço maior, mas, nos circuitos mais centrais vejo uma desproporção entre o empenho em aprofundar-se para conhecer nossas práticas e a rapidez em defini-las. O espaço que criamos enquanto residentes foi de um trabalho emocionante e por vezes me ocasionou crises e insights que precisavam acontecer para me mobilizar a ir adiante”. Além do trabalho de fotodobragens, a artista também desenvolveu outros trabalhos durante a residência. Com o estímulo que recebeu de buscar nos arquivos imagens que poderiam entrar na curadoria e também a desapegar de imagens que já tinha como certas e essenciais, Sbardelotto conta que reencontrar imagens que já havia produzido a ensinou um descondicionamento do olhar e uma inteligência dos processos de edição que levará consigo muito adiante. “Foram vários aprendizados, condensados em pouco tempo, num espaço virtual, mas muito concreto, que demonstram o quanto todas nós tínhamos essa carência de interlocução. Entre tudo que eu aprendi acho que as melhores coisas foram sobre a importância de se deixar afetar sinceramente pelas imagens e que isso demanda um tempo e um estado de atenção e treino do olhar que não são os mesmos daquela banalidade e assimilação rápida com que olhamos as imagens no dia-a-dia. Conheci um repertório de possibilidades para interligar narrativas numa edição de imagens. Compreendi melhor a importância do discurso, do gesto, do ato da artista diante de seu trabalho. Percebi o quanto o texto de artista

é fundamental para elaboração e compreensão do que criamos, e como as palavras certas nos ajudam a ativar as obras. Aprendi sobretudo o quanto o compartilhamento de poéticas é fortalecedor, gera mundos, nos profissionaliza e nos nutre. A residência foi difícil pela intensidade com que nos aprofundamos nas obras e vidas umas das outras, mas também esse foi o maior presente. Sentia que precisava fazer arte e voltei a conseguir fazer”, finaliza.

Dança a dois A paranaense e artista visual Betina Dal Molin Juglair, 26 anos, estudante de mestrado na Universidade do Porto, também fez parte do Mulheres em Residência sendo mentorada por Milena Costa. Juglair conheceu o projeto através do perfil de algumas das tutoras que já acompanhava no instagram e inscreveu com o trabalho “Pas de deux”, projeto no qual trabalha desde 2018. “É uma expressão do ballet clássico que literalmente se traduz como “dança a dois”, e geralmente é performada em um par romântico, mas nesse caso eu subverto o termo e o par somos eu e minha mãe. Ela foi bailarina muitos anos, dançou enquanto estava grávida de mim, e iniciei muito cedo na dança, não por pressão ou desejo dela, mas por essa influência muito intensa. Então a dança é algo que relaciono à minha infância, para mim é algo indissociável, foi meu primeiro contato com o mundo da arte e moldou minha vida, então foi natural que eu trabalhasse este tema em um projeto fotográfico”, explica. Juglair comenta ainda que o projeto se iniciou com um evento traumático, que foi o incêndio do teatro Naura Rigon em Pato Branco, lugar onde a artista e sua mãe


dançavam. “Saber do que ocorreu fez surgir em mim a vontade de fotografar aquele lugar tão importante, mas não fazer só um mero registro documental, porque eu sempre senti necessidade de manipular a imagem, performá-la. Fiz essas fotos e depois fui em busca de imagens das apresentações da época (em fotografia e vídeo), e continuei a fotografar. Desenvolvi o projeto em dois grupos de estudos diferentes, mas sentia a necessidade de partilhá-lo em um contexto de mulheres, pela temática e sensibilidade, e quando vi o Mulheres em Residência sabia que poderia ser a oportunidade que eu esperava”, comenta a artista.

Autorretrato da paranaense e artista visual Betina Dal Molin Juglair, 26 anos, que também faz parte do projeto desenvolvido durante o Mulheres em Residência. (Créditos: Arquivo Pessoal).

Antes da residência, a paranaense conta que seu projeto estava muito aberto e com muitas possibilidades, a fazendo se sentir perdida, embora soubesse que ali havia algo importante que queria comunicar, ainda que não soubesse tão bem o quê e como. “A residência foi importante para mim em vários aspectos. Sinto que o trabalho se desenvolveu de uma maneira inédita, de um jeito que eu não tinha sentido ainda. O que a residência fez foi proporcionar um espaço de diálogo entre artistas com produções que se comunicavam em algum ou vários pontos, artistas com vontade de partilhar seus trabalhos e desenvolvêlos, e com muita generosidade em ouvir e receber os trabalhos das outras. Criouse ali, no microespaço de um mês com dois encontros semanais, quase que um oásis na nossa rotina, cada encontro adentrávamos um universo imagético diferente”, conta. “Essa experiência me permitiu ver meu trabalho a partir dos olhares delas, essas outras artistas, e então enxergar coisas que já estavam ali nas imagens e nas minhas falas mas que eu não via com clareza. Pude entender que embora meu trabalho falasse, sim, sobre minha mãe e sobre minha relação com a dança, sobretudo o projeto era sobre minha relação com a própria câmera, a própria fotografia. Porque me dei conta que um dos efeitos de se estar no palco sendo tão nova é que meu primeiro contato com a câmera foi o de ser imagem, não de produzi-la, e que isso teve impactos bem importantes na construção da minha identidade. Perceber isto foi um ponto de virada no meu projeto, na minha trajetória enquanto artista e mesmo enquanto pessoa. Talvez eu tivesse chegado a essa percepção de outro jeito, mas certamente demoraria

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mais e não teria tanto impacto. Além de entender mais profundamente sobre o quê eu estava falando, consegui também conceber uma espinha dorsal do meu trabalho, uma pequena sequência de imagens que resumisse com clareza o que se trata o projeto. Consegui organizar as imagens em uma história que faz sentido para mim e para quem as vê, e era algo que eu buscava há muito tempo”, completa Juglair. A artista visual finaliza comentando sobre como foi participar da residência. “Eu já sabia que a fotografia era uma experiência coletiva, mas tive esta sensação ainda mais forte e evidente. Se não fosse a vivência de partilhar com as outras artistas, expor minha produção e estar sob o olhar delas, eu não teria chegado onde cheguei. outras artistas, expor minha produção e estar sob o olhar delas, eu não teria chegado onde cheguei. E foi fundamental também que essas pessoas estivessem abertas e dispostas a olhar, realmente olhar. Apesar de ter sido online, eu realmente senti a presença e força das mulheres, acredito que não só eu mas todas ali demos um salto imenso nas nossas produções. Foi uma experiência inesquecível que vou levar com muito carinho”.

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Perfil

As histórias de um dono de bar que fez da criatividade seu prato principal Raphael Vidal é filósofo, escritor e grande agitador cultural e encontrou na Zona Portuária do Rio de Janeiro, um porto seguro para chamar de seu. Por Patricia Gaudencio

Raphael Vidal na Casa Porto, onde, além de servir boa comida e cerveja gelada, mantém uma biblioteca livre

Dono de um currículo repleto de realizações, Vidal, 38 anos, tem formação técnica em Publicidade e Propaganda e graduação em Filosofia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) – diploma que até hoje não retirou. O típico carioca da boemia, sonhava mesmo era em se tornar escritor e editor de livros. Hoje, é dono do bar Casa Porto, que, na verdade, é muito mais que um bar. A infância de Vidal, que nasceu em Madureira, Zona Norte do Rio, foi marcada por atritos familiares e muitas mudanças de endereço. “A rua era meu

lugar de paz”, relata Vidal, “Decidi sair de casa aos 13 anos. Um taxista me ajudou a encontrar a casa dos meus tios, onde fui acolhido”. Para ter seu próprio dinheiro, Raphael prestou serviços de design gráfico e montou um jornal de bairro com amigos. De sobra, tinha criatividade e ousadia. Aos 16 anos, entrou na faculdade e isso ampliou sua visão de mundo. Foi quando, por exemplo, fez sua primeira viagem. Limite era um termo em que Vidal não pensava. Escreveu um trabalho para ser apresentado em um congresso, sem

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atender aos requisitos de inscrição (e conseguiu). Participou de um processo de seleção para estágio na Fiocruz, também sem atender às condições (e conseguiu). Ainda muito jovem, Vidal criou as Cartas da Existência, uma série de textos de motivação, do tipo “para ler ao acordar”, “para ler no ônibus”, “para ler antes de dormir”, e as vendia na rua, em frente ao Paço Imperial, edifício histórico localizado no centro do Rio. As cartas chamaram a atenção de um gerente da Livraria Travessa, que passou a vendê-las em sua loja. Em 2008, a história de Vidal ganhou um novo enredo, quando se mudou para o Morro da Conceição, na Zona Portuária, e lá encontrou o real espírito de comunidade. Pendurava as contas no bar da Dona Eva, que lhe servia refeições. Recebia apoio dos vizinhos que até lhe emprestaram roupas para ir a uma entrevista de emprego, o que lhe rendera, além do emprego, um cordel escrito por Leo Salo. “Parecia cena de filme, era óbvio que as roupas não eram minhas, mas o pessoal deu a maior força”, conta aos risos Vidal que, tão logo pôde, retribuiu a todos, agitando eventos na região, revivendo festas tradicionais e o bom carnaval da Banda da Conceição. De livreiro a escritor e coordenador editorial, Vidal, entre muitos feitos, criou um Clube de Leituras, “a ideia era se reunir para um bate-papo, tomar uma cerveja e conhecer os bastidores da vida dos heróis da literatura”, explica. Seu primeiro convidado foi Sergio Sant’Anna. Em 2012, lançou a revista de contos Bagatelas, publicando autores de países de língua portuguesa; escreveu ensaios sobre o mercado editorial; editou livros de Nei Lopes, Conceição Evaristo, Marcelo Moutinho, entre outros; realizou o festival

Cordel escrito por Leo Salo, Mestre em Ciências, Bibliotecário e Fotógrafo

Fim de Semana do Livro; e foi produtor cultural do Museu de Arte do Rio. Um ano depois, fundou a Casa Porto, como Centro Cultural, ao pé do Morro da Conceição. Em 2014, lançou seu primeiro livro, o infantil Livro do pai chato, pela editora Memória Visual. Com a crise no Rio, a partir de 2016, a Casa Porto se tornou bar, manteve um acervo literário e se afirmou como espaço de boa comida, cerveja gelada, resistência política e compromisso social, tudo isso embalado com as inacabáveis tiradas criativas de seus anúncios. Raphael Vidal pensa, faz, existe (ou insiste) e se reinventa sempre que necessário, como agora em tempos de pandemia. O dono de bar, como se define, fez da Casa Porto a extensão de seu lar e de amigos, sua grande família. Com o sonho de fazer da região um polo de gastronomia e cultura, segue na luta, acumulando mais histórias para contar.


Carolina Maria de Jesus Dia 14 de março de 2021 Carolina Maria de Jesus completaria 107 anos. Foi uma das primeiras escritoras negras brasileira a ter um livro publicado e atualmente é reconhecida como uma das escritoras mais relevantes do país. Por Jana Costa

“Quarto de Despejo”, seu livro mais conhecido, publicado em 1960, retrata o cotidiano da comunidade do Canindé, zona norte de São Paulo, onde Carolina viveu por um tempo. Nascida em Sacramento, Minas Gerais, migra para São Paulo depois da morte de sua mãe. Sempre gostou de escrever, mas foi como catadora de papel que recolhia suporte para sua arte: papel e livros. Carolina sustentava seus três filhos e sua casa através do trabalho de catadora de papel. Quando chegava em casa, nas horas vagas, escrevia. Conseguia

transformar em palavras seu cotidiano com tamanho encantamento e potência, narrando sua visão de Brasil a partir da perspectiva de uma mulher negra, portanto, ocupando o lugar mais frágil dentro da sociedade. Na década de 1960 seu primeiro livro é publicado e Carolina se torna um fenômeno literário, traduzida em 40 países. De acordo com Raquel, doutoranda em Estudos da Tradução, “o sucesso de vendas de “Quarto de Despejo” e seu grande alcance internacional fizeram da autora um fenômeno literário único. Ela

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Perfil

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foi bestseller no Brasil e em vários outros países (voltou a ser em 2020) e está na lista das autoras mais traduzidas do Brasil. Sua literatura influenciou e influencia gerações e gerações de autoras negras, além de ser farol para inúmeras iniciativas artísticas e sociais.” O nome do livro é uma analogia em que Carolina Maria considerava o centro da cidade de São Paulo como a sala de visita, e as comunidades da periferia, como a Comunidade do Canindé, como o quarto de despejo. Em sua imensa produção encontramos diversos gêneros: poesias, canções, provérbios, romances, contos e dramaturgia. Raquel afirma que Carolina era uma “multiartista. Ela não se impunha barreiras para a criação. Tenho a impressão de que a cada momento há alguém ou alguma área do conhecimento sendo impactados pela grandiosidade múltipla de Carolina.” Singela e dura, Carolina trata em suas obras sobre sua comunidade, suas impressões, fatos históricos e política. Mas também em “Diário de Bitita” traz suas memórias de infância e adolescência. Fica claro que ela sente na pele as dificuldades de ser mulher, pobre e negra. Para Jô Gomes, jornalista, mestranda em Dança na UFBA, pesquisadora de danças africanas, do continente e da diáspora, tradicionais e urbanas, “Carolina Maria de Jesus é uma mulher preta, favelada, catadora de papel, escritora traduzida em muitos países e que não tem o reconhecimento que ela merece, como toda pessoa preta produtora de algum material cultural intelectual no Brasil. Carolina é uma ancestral que inspira muito a gente e que falou sobre coisas muito dolorosas com muito poesia e muita simplicidade.”

Depois do sucesso de “Quarto de Despejo”, Carolina participou da cena literária do Brasil, realizou viagens internacionais, ganhou homenagens e títulos, como por exemplo, o de “cidadã Paulistana”. Entretanto, as obras posteriores de Carolina não são recebidas pelo público da mesma forma e, em 1977 ela falece esquecida pelo mundo literário. Carolina foi silenciada como muitas mulheres pretas. “Uma mulher negra confiante e contra as injustiças sociais, incomoda. Não é por acaso que muitas mulheres negras representados do meio político, ou fora dele, vêm sendo ameaçadas, sem mencionar o triste e revoltante caso de Marielle Franco”, comenta Raquel. Mas apesar desse silenciamento, Carolina deixou um grande legado de


presente para gerações futuras e que vem sendo reconhecido nos últimos anos, recebendo diversas homenagens póstumas. Em fevereiro deste ano, Carolina Maria de Jesus se tornou Doutora. Ganhou o título de Doutora honoris causa, concedido pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, que vem para dar reconhecimento à Carolina e destacar a importância de sua contribuição à cultura e educação no Brasil. Doutora Carolina está sendo estudada nas universidades. Suas obras estão sendo analisadas com a profundidade que seu projeto artístico e literário merece, e sendo assim, podemos recuperarmos essa memória escrita que nos propõe a pensar o Brasil na sua estrutura racista e excludente. A indústria cultural, pautada pelo racismo estrutural da sociedade brasileira, não permitiu que Carolina fosse lida para além de “Quarto de Despejo”. “À Carolina determinaram a fome e a favela como sua matéria de literatura e se furtaram a conhecer sua amplitude. Me parece que a sede por conhecer essa “amplitude literária” de Carolina está sendo fortemente sentida atualmente. Ainda bem, ela já estava a nossa espera a As ilustrações foram feitas pelo artista muito tempo”, nos emociona Raquel. Batata Sem Umbigo. Para conhecer “Nossa luta contra a ‘escravatura mais o seu trabalho, acesse o QR Code: atual’ permanece vívida e Carolina estaria ultrajada com os fascismos de nossos tempos. Pra além de seus textos, genuínos, sagazes e vibrantes, sua história nos ensina a não esmorecer jamais”, nos emociona Pilar Guimarães, Educadora Popular, ao nos contar como se sentiu ao ler a obra de Carolina. Carolina, referência ancestral, completaria 107 anos. Nos deixou de presente algo que lhe era importante: suas palavras.

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A herança africana que sobrevive na cidade do Rio de Janeiro Por Patricia Gaudencio

Pequena África é uma região da capital do Rio de Janeiro que inclui os bairros da Zona Portuária - Saúde, Gamboa e Santo Cristo - e agrega, entre outros pontos, o Largo São Francisco da Prainha, a Pedra do Sal, o Morro da Conceição, o Cais do Valongo e o Cemitério dos Pretos Novos. O título, dado pelo compositor Heitor dos Prazeres, remete à forte presença de africanos e seus descendentes em

diáspora na região. A história encoberta especialmente a partir de 1902, com a reforma urbanística, ressurgiu mais de cem anos depois com o projeto de revitalização Porto Maravilha. Apresentamos em uma sequência de frames os elementos presentes no diaa-dia dessa região que reverenciam e mantém viva a cultura afro-brasileira.

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Memória de dor e sofrimento da imensa população de afrodescendentes Em visita ao Cais do Valongo, o músico Renato Jamaica descreve sua emoção: “É tocante estar aqui e sentir a força dos meus ancestrais. Essa história não pode ser apagada”. Pelo cais, hoje Patrimônio Histórico da Humanidade, chegaram mais de um milhão de escravos entre os anos de 1774 e 1831, de acordo com o Instituto Pretos Novos (IPN), que mantém o acervo histórico e promove atividades educativas sobre a escravidão e suas sequelas.


Frame

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Um circuito de resgate histórico e cultural Luana Ferreira, historiadora e guia de turismo, adotou em 2018 a prática do circuito afro-referenciado, remetendo a uma dimensão da vida dos africanos e seus descendentes na Pequena África, contando a história por tantos anos distorcida. “Fazer esse circuito é trabalhar o resgate e fortalecimento da nossa identidade cultural. Mas apesar da revitalização, o que se viu nos anos subsequentes foi um novo abandono por parte do governo”, afirma Luana.


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A força do aquilombamento urbano Fernando Luiz conheceu a Pedra do Sal em 1997, onde foi morar um tempo depois, levando o hábito de reunir o povo preto. “A Casa do Nando” se tornou em 2014 um quilombo cultural. Resistente, após um incêndio em 2020, o quilombo mudou de endereço e mantém, além de um restaurante, atividades de cunho político, social e religioso. “É um trabalho reto e, por isso, muito criticado. Não estamos livres de ataques racistas. O protagonismo preto incomoda”, afirma Nando.


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Integrando teatro e vida através da arte A Grande Cia Brasileira de Mystérios e Novidades, dirigida por Lígia Veiga, instalou-se no bairro Gamboa em 2007. “Tendo essa região como grande fonte de inspiração, criamos espetáculos que impulsionam a arte pelas ruas”, relata a coordenadora Marília Felippe. Com o programa Gigantes Pela Própria Natureza – orquestra itinerante sobre pernas de pau – a Cia promove oficinas de corpo, voz e percussão. Entre os espetáculos, destacam-se: “Procissão de Todos os Santos” e “A Saga de Jorge”.


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Disseminando a cultura da Umbanda O Centro Cultural Única se instalou nas proximidades da Pedra do Sal em 2019, adendo ao centro de umbanda de mesmo nome. “Comercializamos peças produzidas pelos filhos da casa: artesanato, roupas, artes plásticas, bijuteria, entre outras. Ao longo do ano, acontecem diversos projetos sociais, oficinas, cursos e eventos”, conta Bel Netto, administradora do espaço. O centro mantém ações de doação para instituições e para a comunidade local.


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Referências que inspiram negócios na região O Largo São Francisco da Prainha, cercado por bares e restaurantes, é palco de celebrações da cultura ancestral e exibe a estátua de Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal do Rio, militante pela integração de atores e dançarinos negros no cenário cultural. Neste registro, Marcia Ferreira modela para a marca Tramas do Porto. “Através dos bordados, busco eternizar a cultura local”, relata Silvania da Fonseca, idealizadora da marca.


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O ponto central de resistência, celebração e encontro Famosa pelas rodas de samba das segundas-feiras, a Pedra do Sal foi território de uma grande comunidade negra. Formaram-se em seu entorno casas coletivas, movimento que se intensificou com a diáspora baiana, a partir de 1817. A região se tornou um ponto de encontro, celebração religiosa e de resistência, impulsionando o samba, precursor do carnaval carioca. Ali surgiram figuras que se tornaram destaques na música popular, como João da Baiana, Pixinguinha e Heitor dos Prazeres.


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Representação histórica através da arte do mosaico Em 2016, John Souza e Natalia Reyes, do ateliê Cosmonauta Mosaicos, e mais 130 voluntários, renovaram a escadaria de acesso ao Morro da Conceição. “Retratamos a história por meio de verdadeiros ícones de nossas raízes culturais”, explica o historiador Souza. Entre os destaques, está a célebre Tia Lúcia, trazida da Bahia para o Rio ainda na infância, e que se engajou em inúmeros projetos sociais e artísticos. “Intervenções como esta, permitem ressignificar pontos da cidade”, aponta Reyes.


Um recorte literário que dialoga com a cultura afro-brasileira A livraria Casa da Árvore foi inaugurada em 2020, como adendo à Casa Omolokum, na Pedra do Sal. Administrada por Eduardo Ribeiro, Fábio Brito e Ivan Costa, a livraria trouxe um recorte literário que remete à cultura afro-brasileira, além de títulos que destacam pautas do debate social. “Para ocupar um espaço aqui da Casa, especializada na comida de dendê, pensamos nesse recorte conceitual, predominante na região. O público da Casa, busca essa identidade”, explica Ribeiro.


Um bom samba para acompanhamento de pratos típicos Georgia Gomes, é sambista desde a infância e na gastronomia encontrou outra grande paixão: “Através de um projeto social, me profissionalizei. Comecei botando banca em eventos e meu Bobó de Camarão ficou famoso.” Em 2020, Georgia fundou o GG Gourmet, um antiquário e restaurante especializado nas referências africanas, localizado no Morro da Conceição. No espaço, acontecem eventos culturais, como a Roda de Samba e de Conversa, em que músicos cantam e contam a história por trás das canções.


Expediente A Revista F é uma produção laboratorial do curso de Jornalismo do Centro Universitário Internacional Uninter. Chanceler Prof. Wilson Picler Reitor Dr. Benhur Gaio Coordenador do curso de Jornalismo Dr. Guilherme Carvalho Professora responsável Ma. Marcia Boroski (MTB: 10737/PR) Projeto gráfico Núcleo de Imagem Ponto Zero Diagramação e layout Jennifer Eduarda Capa Patricia Gaudencio Edição e tratamento de imagem Jennifer Eduarda Estudantes de Jornalismo Amanda Zanluca, Jana Costa, Jennifer Eduarda e Patricia Gaudencio Endereço Rua Saldanha Marinho, 113, Centro, Curitiba (PR) Contato nucleopontozero@gmail.com

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