BH 120 - Paixões

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ESPECIAL

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ESTADO DE MINAS DOMINGO, 10 DE SETEMBRO DE 2017

PAIXÕES TORCER,VERBO COLETIVO ANA CLARA BRANT, LAURA VALENTE E RENAN DAMASCENO QUANDO O AMERICANO FERNANDO BRANT E O CRUZEIRENSE MILTON NASCIMENTO ESCREVERAM QUE “O BRASIL ESTÁ VAZIO NA TARDE DE DOMINGO, OLHA O SAMBÃO, AQUI É O PAÍS DO FUTEBOL”, EM 1970, ELES PODERIAM, MUITO BEM, ESTAR IMAGINANDO UM TÍPICO DOMINGO BELO-HORIZONTINO. SEJA NOS SEUS PRIMEIROS ANOS, NOS ESTÁDIOS DO BARRO PRETO, LOURDES OU ALAMEDA; NO INDEPENDÊNCIA E, SOBRETUDO, NOS ÚLTIMOS 52 ANOS, NO MINEIRÃO, O FUTEBOL SEMPRE DITOU A ROTINA DAS FAMÍLIAS DA CAPITAL MINEIRA.PARA CELEBRAR OS 120 ANOS DE BH, O ESTADO DE MINAS REUNIU TRÊS TORCEDORAS QUE TRANSFORMARAM AS CAMISAS DE AMÉRICA, ATLÉTICO E CRUZEIRO EM SEGUNDA PELE. ZULEINE EPIPHANIO GARCIA LEÃO, A DONA ZUZU, DE 82 ANOS, CRUZA O PAÍS DE ÔNIBUS E AVIÃO ONDE O COELHO ESTIVER. ANA CÂNDIDA DE OLIVEIRA MARQUES, DE 97, A VOVÓ DO GALO, SE TORNOU UM XODÓ E AMULETO DA TORCIDA ALVINEGRA. SALOMÉ SILVA, DE 83, GABA-SE DE TER FALTADO A POUCO MAIS DE 20 JOGOS DO CRUZEIRO EM TODA A HISTÓRIA DO MINEIRÃO.FUTEBOL É PAIXÃO E, NAS ARQUIBANCADAS MINEIRAS, ELAS CONJUGAM O VERBO TORCER COM DEVOÇÃO. ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS

“TUATORCIDA FEMININA É DEMAIS”

“UMAVEZ ATÉ MORRER”

“MORA DENTRO DO MEU CORAÇÃO”

Pode ser na Série A, B, C ou J, nas palavras da própria Zuzu. Segunda ou terça à noite, domingo de manhã ou à tarde, onde estiverem 11 americanos correndo atrás da bola Zuzu estará na arquibancada com uma de suas mais de 60 perucas verdes. Ela sabe todos os cantos da torcida. Durante os 90 minutos, gesticula contra os bandeirinhas, apoia o goleiro João Ricardo e corneta os ataques perdidos. “Acho que se o América morrer, eu morro junto”, conta Zuzu, nascida em Pitangui, no Centro-Oeste de Minas. “A minha paixão é o América. Tem horas que eu penso mais nele do que em meus filhos (risos)”, brinca. A paixão de Zuzu começou a tomar forma há 62 anos, quando conheceu Ayrton Garcia Leão, seu futuro marido, que chegou a ser médico do América por alguns meses. Eles se casaram em 1962. Nos anos seguintes, Zuzu se dedicou à família. Há 22 anos, em 1995, Ayrton faleceu e Zuzu descobriu no América o remédio para a ausência de seu grande amor. “Tinha que me apegar a alguma coisa, porque senti muito a morte dele. Então, o amor da minha vida começou a ser o América.” Passou a seguir o América pelo país, viajando até 13 horas de ônibus. No corpo, tatuagens do América mostram a paixão à flor da pele.

A cada nova partida do Atlético, Ana Cândida de Oliveira Marques escolhe uma entre as muitas camisas autografadas que coleciona. Antes de se vestir para o programa de gala, repete a concentração dos jogadores, “com alimentação reforçada e um tempo de cochilo a mais”. Nestes anos todos, comemorou títulos e sofreu, como é praxe na rotina do torcedor apaixonado. Nascida e criada em Rio Espera, na Zona da Mata, Ana Cândida de Oliveira Marques veio para BH em 1949, acompanhando o marido, João Marques de Oliveira, atleta amador e torcedor fanático. Já chegou como torcedora do Atlético. “Sempre tive carinho pelo clube, e hoje ainda mais, pois o Galo trouxe essa energia pra mim, as pessoas me abraçam, beijam a minha mão. E olha que nem sou padre, para você ver”, brinca. Não por acaso, ficou famosa entre a torcida depois de um rapaz publicar vídeo dela na internet, durante a campanha da Libertadores. “Tenho amigos até na Alemanha”, gaba-se a Vovó, que tem 47 mil seguidores no Facebook e 31,6 mil no Instagram. Grata pela graça divina da longevidade, a Vovó afirma: “Meu cardiologista aprova, pois o Galo é uma terapia! Provoca o sorriso, que faz bem para a própria pessoa e para os outros.”

Não há um metro quadrado da casa de Salomé Silva, no Bairro Inconfidentes, em Contagem, que não lembre sua maior paixão, o Cruzeiro. Bandeirões enfeitam o lado de fora, um pedaço de grama sintética serve de tapete na sala, uma raposa empalhada decora a sala e fotos com ex-jogadores e dirigentes estão afixadas no armário da cozinha. Na área de lavar vivem seus papagaios, Adilson Batista e Marcelo Moreno. Salomé nasceu na zona rural de Bom Despacho e mudou-se para BH em 1958, para trabalhar como doméstica. A paixão pelo Cruzeiro veio com o marido, que jogava em um time amador em Bom Despacho, cujas cores eram azul e branco. Ao longo das décadas, o laço com o Cruzeiro foi ficando mais forte. “Em dia de jogo eu nem consigo comer direito, perco a fome, perco o sono. Sofro por causa do time, mas ele só me dá alegria.” Hoje, gabando-se de ter faltado a apenas 22 jogos no Mineirão, um no Independência e um em Sete Lagoas. Desde a década de 1990, Salomé é funcionária do Cruzeiro, trabalhando como faxineira. Em dia de jogos, sai do trabalho direto para o Mineirão e encara dois ônibus de volta para casa. “Sou apaixonada pelo Cruzeiro e é o time que me mantém firme.”


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PAIXÕES

ESTADO DE MINAS

DOMINGO, 10 DE SETEMBRO DE 2017

NO CORAÇÃO

FOTOS: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS

DA CAPITAL

Todo mundo praticamente se conhece. É uma família. Aqui une duas coisas que o belo-horizontino ama: futebol e cerveja” ● SALOMÃO JORGE FILHO,

46 anos, dono de bar

ANA CLARA BRANT

Futebol e boemia certamente são as duas maiores paixões do belo-horizontino. Imagina então um lugar que reúne as duas. Torcedores do América, Atlético e Cruzeiro têm as mais diversas opções de bares e botecos para apoiar seus times do coração. No entanto, alguns deles são considerados especiais por quem une o amor pelo esporte e pelo copo. Inicialmente funcionando como uma mercearia, fundada há mais de 70 anos, o Bar do Salomão, na Rua do Ouro, na Serra, é o principal reduto de atleticanos em BH. “Se você fala em bar e Galo, a associação com o Salomão é imediata”, afirma o dono do estabelecimento e filho do fundador, Salomão Jorge Filho, de 46 anos. Ele conta que desde que assumiu o local decidiu transformá-lo no point dos alvinegros. A decoração com pôsteres e troféus ajuda a dar um clima único ao boteco. “Nosso recorde foi na final da Taça Libertadores de 2013, quando fomos campeões. Tivemos cerca de 4 mil pessoas”, comenta. Salomão conta que muitos clientes são frequentadores do bar há anos e se sentem muito mais à vontade em torcer pelo time ali do que na própria casa. “Todo mundo praticamente se conhece. É uma família. Aqui une duas coisas que o belo-horizontino ama: futebol e cerveja”, frisa. Se os atleticanos têm o seu refúgio, o mesmo ocorre com os americanos. Na Rua

Pium-í, no Anchieta, Paulo César da Cunha, o Paulinho, de 63, criou em 1988 um bar que leva o seu nome e é uma referência para os torcedores do Coelho. “Somos o único bar oficial do América. Pode estar rolando a final da Copa do Mundo, mas se tiver jogo do América no mesmo horário, a prioridade é o Coelhão”, salienta. Quando o bar abriu, os frequentadores acompanhavam as partidas pelo rádio. Hoje, há muitas facilidades, como os pacotes de pay-per-view. “O interessante é que mesmo os atleticanos e os cruzeirenses costumam aparecer aqui de vez em quando porque nutrem uma simpatia pelo nosso time. Todo muito é bem-vindo. Quando o América vence é uma festa. Ano passado, na conquista do Campeonato Mineiro, a euforia foi tanta que teve gente que saiu pela rua com a bandeira e quase foi atropelado”, divertese. Paulinho, natural de Ponte Nova, na Zona da Mata, mora em BH há vários anos, acredita que o sucesso dos botecos da capital é explicado pelo famoso lema: não tem mar, vai pro bar. “É o que todo mundo gosta mesmo. Tomar uma cervejinha, comer um tira-gosto e se tiver um futebolzinho então, aí é perfeito”, defende. Compartilhando o mesmo bairro e o mesmo nome do americano, Paulo Henrique Vilela, o Paulinho, de 43 anos, é paulista, mas se mudou para Minas bem criança.

Ao contrário do xará e de Salomão, ele não é muito fã de futebol e até se surpreendeu quando viu seu bar, o Entre nós, na Rua Passatempo, no Anchieta, se transformar em um reduto de cruzeirenses. “Abrimos há 9 anos e quando instalei a televisão em 2010 tudo mudou. Os clientes que gostavam de futebol começaram a vir para assistir aos jogos, seja do Atlético, seja do Cruzeiro. Mas não surgimos como uma proposta de bar temático”, explica. Como a maior parte dos frequentadores e amigos de Paulinho eram torcedores da Raposa, o estabelecimento acabou se tornando uma referência celeste. No começo, o comerciante diz que o clima era bem familiar, mas admite que hoje em dia começou a ter estresse. “O bar ganhou fama de bar do Cruzeiro. Muita gente que não era frequentadora começou a vir por conta dessa ligação com o time. Teve algumas confusões, vizinhos reclamando, e aí muitos clientes iniciais até estão evitando”, lamenta. Paulinho não quer afastar a clientela, mas sim educar. Caso contrário, acredita que vai se tornar algo inviável. “Aqui não é Mineirão. As pessoas estão se comportando como se estivessem numa arquibancada. Não é para ser fanático. Bar não é pra isso. Temos que manter o bom convívio porque isso sim combina com boemia, futebol e alegria”, destaca.

Amar o futebol e a mesa de bar faz parte da vida do belo-horizontino, nascido ou adotado por BH, uma paixão construída desde a formação da cidade

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2,5

Número aproximado de botecos, bares e restaurantes em BH, capital com maior quantidade de estabelecimentos desse tipo por habitantes

População atual da capital dos bares. Pesquisa da CDL-BH mostra que bares e restaurantes são os comércios dos quais os moradores mais sentem falta em três regionais

mil

milhões

PATRIMÔNIOS DOS BOTECOS Bater ponto nem sempre significa algo ruim ou burocrático. A expressão pode se referir também quando alguém é frequentador assíduo de um determinado lugar, mas por livre e espontânea vontade. É assim com quem não abre mão do seu bar, boteco ou restaurante favorito. A tradicional Cantina do Lucas, que existe desde 1962 no Edifício Malleta, no Centro, e há 20 anos foi tombada como Patrimônio Histórico e Cultural de Belo Horizonte, é reduto desde os seus primórdios de intelectuais, artistas e formadores de opiniões. É nesse ambiente que o pernambucano Fernando Limoeiro, de 66, acabou se tornando ainda mais belo-horizontino de coração. Diretor e professor do Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais, ele se mudou há quatro décadas para Minas. “Todos os meus colegas escritores, autores, a classe teatral; todo mundo ia no Lucas. A primeira vez que estive lá foi em 1980. Desde então, nunca deixei de frequentá-lo. Cheguei a ter mesa cativa durante um tempo e até a escrever alguns textos naquelas mesas. É um local inspirador”, revela. A cerveja gelada, os pratos e petiscos e, sobretudo, a boa prosa, sempre foram os atrativos do estabelecimento. Limoeiro lembra com carinho das conversas com o saudoso garçom Olympio Peres Munhoz, que morreu em 2003, aos 84 anos. “Ele era uma figura. A gente falava de tudo. O seu Olympio adorava contar seus causos de militante comunista”, pontua. O emblemático garçom foi apenas um dos amigos que

o diretor teatral fez no bar e restaurante. Justamente por ter uma clientela fiel, Fernando Limoeiro diz que é praticamente raro chegar lá e não encontrar um conhecido. “Ainda almoço muito na Cantina do Lucas. Adoro o peixe à pomodoro, o parmegiana, o paillard com fettuccine, e pelo menos duas vezes por semana ainda vou no happy hour. O Lucas é uma atração turística de BH, tanto é que sempre que chega algum pernambucano por aqui eu faço questão de levá-lo à cantina”, ressalta. Outro ponto clássico da boemia na capital mineira é o Tip Top. Considerado um dos bares mais antigos da cidade, ele foi fundado em 1929 pela tcheca Paula Huven e seu marido, o romeno Adolfo Huven. Inicialmente, funcionava como mercearia, no Centro (Rua Espírito Santo, quase esquina com Avenida Afonso Pena), vendendo de tudo um pouco. Depois de passar 42 anos naquele endereço, mudou-se para a Rua Rio de Janeiro, entre a Avenida Bias Fortes e a Rua Gonçalves Dias, em Lourdes. Atualmente, é administrado pelas sócias Cleusa Silva e Ludmila Carneiro. Mercedes Recoder, de 72, se considera praticamente uma embaixadora do Tip Top. Há pelo menos 15 anos ela transformou o local em uma extensão de sua casa. “Devo ir lá umas quatro, cinco vezes por semana, principalmente aos sábados, quando tem música. É uma animação só. Como sou de Diamantina, sempre gostei de uma festa. Costumo ser a última a ir embora”, diverte-se. Mesmo sem beber há 12 anos, por conta de sequelas de uma radioterapia, Mercedes assegura que não deixa de aproveitar. “Para quem está sóbrio, às vezes, as conversas ficam meio chatas. Mas eu não vou dei-

xar de frequentar o meio boêmio porque não bebo mais. Conheço todo mundo e tem gente que até acha que sou a dona, tamanha a intimidade que tenho com os funcionários”, brinca. Viúva e com três netos, Mercedes conta que desde bem mocinha já gostava de sair. Mesmo casada, nunca teve problemas com relação a isso. “O meu marido gostava muito de bar e frequentava um perto de casa. Se eu quisesse ir para outro canto ele não se importava. Sempre tivemos muita confiança um no outro. Eu sou muito agregadora. Gosto de fazer amizades, de conhecer pessoas e vou ser sempre assim”, celebra. Outro cliente assíduo do Tip Top é Bruno Silva, de 47. O bar e restaurante é literalmente a cozinha de sua casa, já que é vizinho do estabelecimento e almoça e janta lá praticamente todos os dias. “Comecei a frequentá-lo há uns 30 anos, com meu pai. Aí dele parou de ir, mas eu continuei. Quando me separei, me mudei para aqui perto, na mesma rua, e aí só faltou a carteirinha (risos). Tenho até garrafa com meu nome”, informa. Bruno, que trabalha na área de imóveis, diz que costuma ir a outros bares e botecos da cidade, mas não esconde sua predileção pelo Tip Top. Não só pelo fato de já conhecer boa parte dos frequentadores e garçons, mas pela atmosfera ali presente. “Ele tem essa coisa bem de BH, tradicional, já que tem mais de 80 anos, carrega a coisa da boemia mesmo. Sem contar que vou a pé e não tenho nenhum problema com a Lei Seca. Não tem como enjoar porque é uma coisa que está na alma do belo-horizontino. O bar faz parte da nossa cultura”, ressalta.

Cheguei a ter mesa cativa durante um tempo e até a escrever alguns textos naquelas mesas. É um local inspirador” ● FERNANDO LIMOEIRO, 66 anos, diretor e professor do Teatro Universitário da UFMG


ESPECIAL

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PAIXÕES

ESTADO DE MINAS DOMINGO, 10 DE SETEMBRO DE 2017 TÚLIO SANTOS/EM/D.A PRESS

ENTREVISTA /FELIPE ABRANTES

‘TORCER EM BH É VIVER DUAS PAIXÕES’ ANA CLARA BRANT Como é torcer em uma cidade como Belo Horizonte? Foi esse o mote da pesquisa que Felipe Vinicius de Paula Abrantes, formado em educação física, desenvolveu para o mestrado no Programa Interdisciplinar em Estudos do Lazer na Escola de Educação Física da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sob a orientação do professor Sílvio Ricardo da Silva, a tese “O futebol nos bares de Belo Horizonte: o torcer em uma cidade boêmia” entendeu o ato como importante manifestação de lazer da população belo-horizontina, assim como a frequência aos inúmeros bares da capital mineira. O estudo mostrou também que o encontro e a sociabilização com outros torcedores, a formação de vínculo com os proprietários e o consumo de bebida alcoólica são os principais fatores que levam as pessoas a torcer nos bares. “O torcer em BH é a oportunidade de viver essas duas paixões e dividir esse momento com os seus. É também uma forma de conhecer e reconhecer a sua cidade como um espaço de lazer, ocupar as ruas da cidade expressando a paixão clubística”, resume o pesquisador, que conversou sobre o assunto com o Estado de Minas. A cerveja e o futebol são uma paixão do brasileiro. E como elas se manifestam entre os belo-horizontinos? Pela nossa pesquisa não conseguimos afirmar que a paixão do belo-horizontino pelo futebol é mais exacerbada do que em outras cidades. A ideia foi mostrar como acontece o torcer neste espaço. Que o torcer ali tem particularidades e conta com torcedores apaixonados e bastante vinculados a seus clubes como em outros locais, como o estádio por exemplo. O fato de termos a polarização entre dois times pode fazer com que a rivalidade e, ao mesmo tempo, a paixão clubística se torne mais explícita, como também é em Porto Alegre, por exemplo. Em relação aos bares e a cerveja, uma tradição neste sentido foi sendo construída em BH desde os seus primeiros anos de fundação. Não podemos nos esquecer de que BH foi pensada e construída para ser a capital do estado. Dessa forma, ela deveria trazer todas as características esperadas de uma grande capital, a modernidade, o progresso. E isso foi pensado. Contudo, as pessoas que vieram para a nova capital eram interioranas, carregavam hábitos que não condiziam com o esperado de uma grande cidade. Um exemplo é que os habitantes eram muito caseiros, dificilmente viviam o espaço público. Assim, foi necessário um grande incentivo para que as pessoas fossem para a rua, vivessem a cidade. É neste contexto que os bares ganharam um importante papel para a cidade. Eles acabaram sendo um dos primeiros locais que propiciaram essa experiência de viver a rua, viver a capital. Nos primeiros anos de BH, o polo boêmio foi os arredores da Praça da Estação, ponto de chegada de várias pessoas na cidade, e a Rua da Bahia. Com o passar dos anos, outras áreas foram se constituindo, até chegarmos hoje no pa-

GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS

Quando começou a ligação de BH com o futebol e a boemia? Acho que se deve muito ao histórico de BH em relação aos bares. Os bares tiveram uma importância grande para a cidade, principalmente para a mudança de comportamento das pessoas que vieram para a nova capital. Dessa forma, os bares passaram a ser um dos símbolos da cidade. O futebol e torcer no futebol carregam esse aspecto de festividade e celebração, e, como um dos locais preferidos do belo-horizontino para se encontrar, sociabilizar e celebrar é o bar, acabou acontecendo esse casamento. Vemos em outras cidades bares que recebem também torcedores, contudo, por todo esse histórico e característica de BH, o torcer nos bares aqui me parece ser uma atividade mais corriqueira e relevante para grande parte da população. Temos na cidade muitos bares que são temáticos, lançando mão do futebol para isso. Outros colocam a transmissão dos jogos como um dos principais itens do cardápio, com a colocação de faixas nas proximidades do estabelecimento.

tamar de cidade com o maior número de bares por habitante no Brasil. Essa característica se tornou um orgulho e uma atração turística de BH. Qual foi o critério para a escolha dos bares que vocês analisaram? Procuramos atender a três critérios de forma mais incisiva. O primeiro foi, obviamente, escolher bares onde o futebol fosse algo relevante; onde as pessoas reconhecessem isso e fossem para este ambiente para ver os jogos. O segundo foi tentar abarcar diferentes regionais da cidade. O terceiro foi escolher bares onde, apesar de reconhecidamente “bares de torcedores”, ainda fosse anônimo, desconhecido para a “mídia”. Por isso, bares famosos como o Salomão e Orlando não entraram.

Por que alguns lugares específicos se tornaram polos boêmios? Com as leituras que fiz de outros trabalhos e com um pequeno levantamento de trabalhos que abordaram a história de BH, pude ver que nos primeiros anos da cidade esses bares (e cafés como eram bastante conhecidos na época) se concentravam na região da Rua da Bahia, sendo o primeiro polo boêmio da cidade. Contudo, esse espaço era pouco acessível para grande parte da população que morava fora dos limites da Contorno, mas que também tinham o desejo e se encontravam neste tipo de espaço. Foi assim que surgiram vários bares no Bairro Lagoinha, e, posteriormente, em Santa Tereza. Esses bairros concentravam muita gente da classe trabalhadora. Com a expansão da cidade, deixaram de ser bairros periféricos, ganhando uma centralidade. Mais recentemente, vemos muitos outros polos boêmios como a Savassi, a Avenida Fleming, o Coração Eucarístico. Pelo que posso ver, cada região da cidade vai acabar tendo um polo desse com mais ou menos intensidade.

Identificaram alguma parcela da população que é mais apaixonada por futebol e cerveja? Conseguimos ver que a maioria dos torcedores presentes nos bares são homens. Em relação à faixa etária, isso já ficou bastante difuso. Alguns bares têm uma característica de ter um público mais velho, outros mais jovens e em alguns isso é bastante misturado. Em relação à paixão clubística, não vimos diferença. Talvez o que de fato aconteça entre esses torcedores é a diferença nas maneiras de expressar esse sentimento. As mulheres também são apaixonados por futebol e cerveja? Essa questão é interessante. As mulheres estão menos presentes nos bares para acompanhar seus clubes, assim como estão presentes em menor número nos estádios. Infelizmente, o futebol ainda carrega um ranço machista muito grande no Brasil. Contudo, das mulheres que estavam presentes nos bares e que participaram respondendo ao questionário, vimos que a cerveja também é importante para esse momento de lazer e sociabilidade para elas. Buscamos salientar isso, pois nos trabalhos que levantamos que tratavam da questão do torcer nos bares, associava-se muito o consumo da cerveja a uma sociabilidade masculina apenas. O que vimos com a pesquisa não se repete aqui em BH. E, sem dúvida, as mulheres também são apaixonadas e torcem muito para seus clubes.

Torcer no bar é bem diferente de torcer em outro lugar? Quais são as particularidades? É bastante diferente. E existem diferenças entre os bares também. Com a pesquisa foi possível ver que nos bares onde os proprietários se colocam enquanto torcedores a relação com os clientes que vão para torcer se torna muito mais próxima. Passa a ser criado um vínculo, um círculo de amizades mesmo. As pessoas acabam se identificando e indo com frequência ao estabelecimento. Por diversas vezes observei os próprios torcedores pegando a sua cerveja no freezer ou ajudando a atender outras pessoas. Em outros bares já existe uma aproximação maior entre os torcedores e menor com o proprietário, já que ele não se mostra como um torcedor. Em outros parece haver uma emulação do torcer que acontece dentro dos estádios, então é um universo bastante amplo e com muitas situações interessantes que pudemos ver.

Futebol e boemia conseguem conviver harmonicamente? Sim. Na verdade, há uma grande relação no imaginário dos torcedores entre o torcer e o consumo da cerveja. A cultura torcedora é intimamente ligada com a questão da festa, da celebração, da sociabilidade. Desta forma, o consumo de bebida alcoólica acaba entrando neste contexto. É interessante relembrar, por exemplo, que a venda e o consumo de bebidas ficaram proibidas no interior dos estádios por muito tempo no Brasil. E, na época da Copa do Mundo, uma das primeiras medidas foi suspender essa proibição. Após o Mundial, começaram as reivindicações e pressões para que houvesse o retorno da cerveja aos estádios.

CONFIRA NO EM.COM.BR Paixões, a quinta das 12 partes da série de reportagens multimídias do especial BH120 do Estado de Minas, traz conteúdo exclusivo de vídeos, entrevistas, fotografias e infografias. No site você confere ainda as datas de divulgação dos próximos temas.

Afinal, o que é o torcer em uma cidade boêmia? Parece-me ser bastante apropriado dizer que é a união de duas paixões de muitos belo-horizontinos. O torcer para o seu clube do coração e a sociabilidade, o encontro, a festa nos bares da cidade. É a oportunidade de viver essas duas paixões e dividir esse momento com os seus. É também um forma de conhecer e reconhecer a sua cidade como um espaço de lazer, ocupar as ruas da cidade expressando a paixão clubística.

REPORTAGENS: Ana Clara Brant, Álvaro Duarte, Bruno Furtado, Laura Valente, Renan Damasceno e Sidney Lopes EDIÇÃO DETEXTOS: Rafael Alves

FOTOS: Gladyston Rodrigues Edésio Ferreira Túlio Santos PROJETO GRÁFICO: Júlio Moreira ARTES: Quinho e Soraia Piva

REVISÃO: Ademar Fulgêncio COORD. MULTIMÍDIA: Fred Bottrel, Rafael Alves e Renan Damasceno DIRETOR DE REDAÇÃO: Carlos Marcelo Carvalho

EDIÇÃO ANTERIOR Ambientes, a quarta das 12 partes da série, publicada em 27 de agosto, está disponível no site em.com.br/BH120.


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