BH 120 - Memórias

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ESTADO DE MINAS DOMINGO, 8 DE OUTUBRO DE 2017

MEMÓRIAS

GUARDIÕES DA HISTÓRIA RACHEL BOTELHO

A cidade mal amanhecia e seus traços, projetados por Aarão Reis (1853-1936), já se retorciam. Os números, cálculos, quarteirões matematicamente medidos e contornos definidos se misturavam às letras, frases e experimentações literárias, coexistindo em um mesmo território. Pelas mãos dos escritores que nela viveram e dela tiraram sua inspiração, a ainda hoje jovem Belo Horizonte já nasceu memória. “Os escritores se colocam nessa relação com a cidade de várias formas. Eles tanto vivem na cidade e convivem entre si quanto vão observando os transeuntes, moradores e, a partir daí, tendo ideias pra escrever”, analisa Fabrício Marques, autor do livro Uma cidade se inventa – Belo Horizonte na visão de seus escritores, para quem as sucessivas gerações de literatos teve um papel fundamental para a construção do legado da capital mineira. Para os leitores – ou não – dos sem-número de contos, crônicas, poemas, romances e memórias propriamente ditas lavrados em terras belo-horizontinas é impossível não tropeçar na geografia dessa literatura. “Tudo ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque”, recorda Pedro Nava (19031984), o grande memorialista da literatura brasileira, em Beira-mar, livro dedicado ao período em que estudou medicina na capital mineira, na década de 1920. No “tudo” desse perímetro, a zona boêmia da cidade, a mesma que décadas mais tarde seria o palco da socialite que escandaliza a sociedade mineira dos anos 1950 e 1960 ao se transformar em meretriz. Eternizada em Hilda Furacão, de Roberto Drummond (1933-2002), virou minissérie e entrou para o imaginário até de quem não folheou o livro. Homenageado em forma de estátua, o autor mora hoje na Savassi – “no doce embalo do bairro

que é um território livre, cada vez mais vasto, onde a liberdade é amante e musa”–, que explorou palmo a palmo, pertinho de Henriqueta Lisboa (1901-1985), a primeira escritora a ingressar na Academia Mineira de Letras. A homenagem a Nava ficou mesmo no reduto da boemia: um cumprimento de estátuas na Rua Goiás com Bahia, em encontro póstumo com o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Por ali, na Bahia, onde hoje é o Hotel Othon, ficava o famoso Bar do Ponto, frequentado por um e outro. Por essa mesma via se chega ao Viaduto Santa Tereza, ícone de O encontro marcado, a obra de Fernando Sabino (1923-2004) que alinhava duas gerações de escritores ao citar o poeta de outrora que, como os personagens do livro, escala seus arcos. Sabino e seu inquieto grupo também são homenageados em forma de estátuas. Ao lado dele, os também escritores e amigos retratados na obra Hélio Pellegrino (1924-1988), Paulo Mendes Campos

(1922-1991) e Otto Lara Resende (1922-1992) eternizam o encontro em frente à Biblioteca Pública. Na certa ainda reclamam do provincianismo da capital mineira e, contraditoriamente ou não, da contínua transformação de sua arquitetura. A eles se juntou este ano Murilo Rubião (19161991), o mais significativo representante do realismo fantástico no Brasil. Fundador, na Imprensa Ofi-

cial, do Suplemento Literário, Rubião tornou reais os sonhos de outros escritores, em uma das mais prestigiosas publicações do gênero no país, enquanto ele próprio povoava a cidade – ou todas elas – com seus personagens mágicos. Na Belo Horizonte dos escritores, a vida real ganha ares de ficção e o que não é até poderia dar um bom livro. “Tem muita história, né bem?”, diz Mário Viana Filho, de 67 anos, à sua mulher Edila Madureira Viana, de 68, que conheceu quando os dois passavam por tratamento contra a tuberculose, na década de 1970. O ambiente de relações furtivas do início do romance do casal, que Marinho sonha pôr no papel, remete – descontados os inestimáveis avanços da medicina – ao descrito por Nava em seu Beira-mar. Memória coletiva e individual também se misturam. No mesmo Parque Municipal que Roberto Drummond elege como a “praia de BH”, ou onde Cyro dos Anjos (1906-1994) flagra a cena em que “com pequenas do subúrbio, o estudante se ressarcia do carinho que lhe negavam as emproadas moças dos palacetes”, lambe-lambes, que começaram a chegar à cidade em 1920, insistem em manter algo do papel dos bons tempos de cronistas visuais da cidade. “Os clientes vêm, tiram as fotografias de que precisam e esperam 20 minutos. É o tempo de eu ir correndo à reveladora de fotos e imprimi-las”, conta João Pereira, de 54, que com uma câmera digital sob a carcaça da antiga máquina-caixote disfarça o fluxo incessante do tempo e suas mudanças.


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MEMÓRIAS

ESTADO DE MINAS DOMINGO, 8 DE OUTUBRO DE 2017

TIJOLOS DE LETRAS

A CONSTRUÇÃO CONCRETA DE BH CAMINHA EM PARALELO COM A DA MEMÓRIA DA CIDADE,TRAÇADA POR ESCRITORES QUE NELA VIVERAM, DELA TIRARAM SUA INSPIRAÇÃO, A REVELARAM E A REDESENHARAM ARQUIVO O CRUZEIRO/EM

GUILHERME PARANAIBA Desde 1897, literatura e memória andam lado a lado em Belo Horizonte. A construção e a evolução da cidade acompanham a produção literária de seus escritores, que deixam registradas as impressões ao longo da jornada pelos espaços de BH e também pelas relações vividas na capital. A conclusão é do jornalista e escritor Fabrício Marques, autor do livro Uma cidade se inventa – Belo Horizonte na visão de seus escritores, obra que busca construir um perfil de BH a partir de grande parte do que foi deixado pelos autores que viveram na cidade e a imortalizaram na literatura e na poesia. Ao analisar o que BH se tornou hoje, 120 anos depois de sua fundação, Fabrício destaca que esses escritores tiveram um papel fundamental para a construção do legado da cidade. Desde o primeiro ano, ainda no século 19, a capital foi palco para a vida de cronistas, romancistas, poetas e contistas, que participaram ativamente da vida social belo-horizontina. E essa foi a rotina também nos anos seguintes, até chegar aos tempos atuais, construindo uma forte identidade do que é Belo Horizonte. “É um legado que deixou para a cidade uma visão de uma cidade ambivalente. Ao mesmo tempo, uma cidade moderna e provinciana. É uma cidade provinciana, mas também é uma cidade com as características de uma grande metrópole, com todos os problemas que uma metrópole tem. É lenta e veloz, moderna e reacionária, rural e urbana, tudo isso ao mesmo tempo”, afirma Fabrício. O jornalista diz que a construção da memória de BH segue em paralelo à metáfora da construção civil, onde cada escrito é um tijolo e cada tijolo é parte de uma grande edificação, que serve para, aos poucos, cristalizar a memória. “Os escritores se colocam nessa relação com a cidade de várias formas. Eles tanto vivem na cidade e convivem entre si como vão observando os transeuntes, moradores e, a partir daí, vão tendo ideias pra escrever. Eles também fazem ficção e criam personagens sobre a cidade. É interessante porque são personagens baseados às vezes nas próprias histórias da cidade, mas como personagens de ficção”, acrescenta o jornalista. Cada romance, crônica, poesia ou conto produzidos destaca diferentes aspectos de Belo Horizonte e cristaliza pontos de maior destaque, ajudando, inclusive, a criar roteiros por BH que ficaram marcados de uma forma mais intensa na vida das pessoas ao longo dos 120 anos da capital mineira. Como exemplo, Fabrício cita uma rota vivida de forma intensa pelos escritores, começando pelo Viaduto Santa Tereza, alvo de peripécias de amigos da geração de Carlos Drummond de Andrade (anos 1920) e também de Fernando Sabino (anos 1940).

VIADUTO SANTA TEREZA, 1954

ARQUIVO EM – 1959

“Era extraordinário que a brincadeira imprudente não terminasse em tragédia. E se repetia porque (rezava a tradição) um poeta (um grande poeta) havia feito aquilo antes, para se divertir. Anos mais tarde Eduardo lhe perguntaria se era verdade e o poeta haveria de confirmar: — Parece difícil, mas não é tanto, você não acha? No seu tempo, subia às três da tarde, depois de tomar apenas um copo de leite, pour épater les bourgeois. A nova geração procurava imitá-lo nos versos e nas proezas, mas precisavam beber para criar coragem.” ● FERNANDO SABINO, O encontro marcado (1956)

MÁRIO DE MORAES/ARQUIVO O CRUZEIRO/EM

AVENTURAS URBANAS

Em uma passagem de O encontro marcado, livro de autoria de Sabino em que ele retrata sua própria vida na pele do personagem Eduardo Marciano, ele confirma na ficção uma atividade que acontecia na realidade da cidade, de subir nos arcos do viaduto. “Era extraordinário que a brincadeira imprudente não terminasse em tragédia. E se repetia porque (rezava a tradição) um poeta (um grande poeta) havia feito aquilo anos antes, para se divertir. Anos mais tarde Eduardo lhe perguntaria se era verdade e o poeta haveria de confirmar”, diz trecho de O encontro marcado. Seguindo o roteiro iniciado pelo Viaduto Santa Tereza, Fabrício Marques destaca a parada obrigatória no Parque Municipal, que serviu de inspiração para escritores mineiros e de BH, passando pela tradicionalíssima Rua da Bahia, em seu trajeto que incluía o atual Othon Palace, onde na época era o Bar do Ponto, e outros bares que recebiam escritores como Carlos Drummond de Andrade. Drummond e Pedro Nava, inclusive, estão imortalizados em estátuas na esquina da Rua da Bahia com a Rua Goiás. Continuando na Rua da Bahia, o roteiro segue até a Praça da Liberdade, ponto de encontro de vários escritores de diferentes gerações. Um pouco mais abaixo está a região da Savassi, local muito presente na obra de Roberto Drummond, que virou estátua nessa região junto com a poetisa Henriqueta Lisboa, a primeira escritora a ser eleita integrante da Academia Mineira de Letras, em 1963.

NOVO SIGNIFICADO

Se por um lado a consolidação da memória de Belo Horizonte tem forte ligação com o que foi produzido no passado, ao olhar para o futuro, Fabrício Marques se anima com as possibilidades de construção literária, principalmente pelo fato de que a produção de hoje alcança diferentes segmentos da sociedade. Novos escritores, que cresceram especialmente com a influência da internet, estão muito ativos e representam um papel importante para ressignificar a cidade. “Hoje, a produção literária é muito diversificada. A presença da mulher na literatura, por exemplo, é muito maior. Temos também muito mais poetas negros. Então, essa memória vai se enriquecendo, porque ela passa a ter novos olhares, olhares diversos”, completa.

PARQUE MUNICIPAL, 1957

ARQUIVO EM

“Muitas vezes já fiquei pensando onde seria o mar de Belo Horizonte? Podia ser no Horto. Ou podia, por que não?, passar nas margens da Afonso Pena, ali onde fica o Parque Municipal. Já me imaginei batendo papo num bar à beira-mar de Belo Horizonte e depois indo dar um mergulho.” ● ROBERTO DRUMMOND, Melhores crônicas (2005)


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MEMÓRIAS

ESTADO DE MINAS

DOMINGO, 8 DE OUTUBRO DE 2017

ARQUIVO EM – 1978

JORGE GONTIJO/EM/D.A PRESS – 17/12/1976

Carlos Drummond de Andrade (E) e o amigo Pedro Nava (C) inspiraram aventuras de muitos escritores em BH

O SENHOR DOS TEMPOS RESGATADAS DOS ANOS 1920, RECORDAÇÕES DA JUVENTUDE DE PEDRO NAVA TRAÇAM O TABULEIRO ONDE GERAÇÕES VIVEM AS ANGÚSTIAS DE UMA CIDADE DIVIDIDA ENTRE A TRADIÇÃO E O MODERNO ÂNGELA FARIA Belo Horizonte foi a musa de Pedro Nava (19031984), o maior memorialista brasileiro. Os dois eram praticamente da mesma idade: ela tinha 6 anos quando ele nasceu, em Juiz de Fora. Dos 17 aos 24, Pedro morou em BH. Na cidade, ele e os amigos modernistas Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, Cyro dos Anjos e Ascânio Lopes, entre tantos discípulos de Mário de Andrade, puseram a literatura brasileira de ponta-cabeça. Aliás, essa turma virou a cabeça da jovem capital na década de 1920 – tudo devidamente confessado em Beira-mar, quarto dos sete volumes de suas monumentais memórias. Era a cidade dos moços, dos futuristas – como Pedro e os companheiros eram chamados (ou “xingados”) pela tradicional família mineira, a temida TFM. Aquela cidade do início do século 20 já se foi, mas as gerações “futuristas” sempre buscaram – e buscam até hoje – abrigo em seus marcos. O Viaduto de Santa Tereza, por exemplo. Em 1925, era ali que Nava, Drummond e cia. curtiam a “noite impossível de Belo Horizonte”. Vinte anos depois, Fernando Sabino, Helio Pellegrino, Paulo Mendes Campos, Murilo Rubião, Otto Lara Resende e Alphonsus de Guimaraens Filho puxavam angústia naqueles arcos. Neste 2017, centenas de jovens ali se reúnem nos fins de semana, puxando angústia à sua maneira, com rap e saraus de poesia. Quatro quarteirões acima, na esquina de Álvares Cabral com Bahia, Nava e amigos, abancados nos degraus da antiga Caixa Econômica, compartilhavam inquietações. “Como deveis ter feito também, moços de 1965. Como o fareis, meninos de hoje que tereis 20 anos em 1985. E assim para o sempre de todo o sempre. Amém”, escreve ele em Beira-mar, lançado em 1984. Dito e feito. Continuam por lá os estudantes – boa parte vinda de cursinhos pré-vestibulares nas imediações. Em frente à pequena arquibancada de cimento, vê-se o monumento em homenagem ao jornalista e compositor Rômulo Paes, autor da frase lema da geração modernista: “A minha vida é esta, subir Bahia e descer Floresta”. Vem de Nava a explicação – nada TFM – para o verso de Rômulo: “Aurélio, no seu dicionário, dá 28 acepções ao verbo descer. Não cita a vigésima nona, a que tinha curso em Belo Horizonte, a partir das dez e meia da noite. Dessa hora em diante, descer era fazê-lo para os cabarés, os lupanares – para a zona prostibular em suma”. Ensina ele que para chegar ao quadrilátero da esbórnia (“tudo que ficava entre Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque”), era preciso marchar rampas abaixo. “Daí o significado especial de descer dado pelos belo-horizontinos à ação de ir à zona, à patuscada, à farra, ao cabaré lá embaixo – e, por extensão, à de ter coito.”

BLACK BLOCS

Jovens “de família”, mas enfezados com o conservadorismo que se tentava impor à cidade adolescente, Nava e sua turma têm laços de sangue (literalmente) com os black blocs deste século 21. Os nefelibatas, como eram chamados – referência a literatos que vivem nas nuvens –, apanhavam da polícia. Certa vez, desacataram o líder do Partido Republicano Mineiro (PRM) em pleno comício: “Morra o dr. Afonso Pena Jr.!”. Gostavam de trocar placas de residências-escritórios para confundir a clientela e irritar

gente respeitável – médicos, advogados e dentistas. Chegaram a empilhar 40 delas no jardim de um delegado de polícia. Mas também viravam bondes. Conta ele que, em dias de “barricada e guerrilhas”, a rapaziada quebrava cinemas para protestar contra o aumento dos ingressos. BH, pacata cidade-jardim? “Nas noites mais graves de descarrilhamento de bondes, sua virada de borco e queima, a polícia à paisana era reforçada pela Guarda Civil e a bordoada comia a valer”, rememora Nava. Onde? Na Rua Goiás, nos “dois lados da Afonso Pena”, nos “baixos de Bahia”. Mais de 90 anos depois, o cassetete continua em ação por ali. “Sem querer estávamos fazendo uma revolução. Essa mesmo. Essa que ainda está aí”, anotou ele há 39 anos... Se descer ganhou ares de metáfora, subir era físico, árduo, mas também poético. Pedro Nava morou no início da Rua Caraça, no sopé da Serra do Curral. Estudante de medicina, funcionário público sem dinheiro, ia e voltava a pé de casa para o Bar do Ponto (na esquina de Afonso Pena com Bahia), a faculdade (no Santa Efigênia), a repartição (na Praça da Liberdade) e, claro, a zona boêmia nos confins da Oiapoque. Diariamente, percorria quilômetros. Até hoje aqueles caminhos guardam um quê da BH “naviana”, com o vento zunindo serra abaixo, o crepúsculo visto das imediações da atual Praça Milton Campos – aliás, apreciado pelo Milton em pessoa. Ninguém descreveu o anoitecer belo-horizontino como Nava, frequentador do morro da caixa d’água, onde hoje fica o Parque Professor Amilcar Vianna Martins, no Cruzeiro, e das então barrancas da Álvares Cabral com Espírito Santo, no Centro. “Longe, para lá do Calafate era a chegada maricéu do pôrdossol. Havia reentrâncias de continentes de rubi, mares de aço singrados por galeras doiro. Eu olhava o Sol que pulsava e tremia para descer, tirava os olhos, olhava de novo, fechava os olhos e de cada vez, dentro de minha pálpebra, era uma nova estrela azul.” “Todos os caminhos iam à Rua da Bahia”, dizia ele. Lá ficava o QG dos rapazes, o Bar do Ponto. Ali ficava o Grande Hotel, onde os jovens mineiros, em 1924, conheceram Oswald de Andrade e Mário de Andrade. No mesmo local está o Edifício Maletta, onde a moçada de hoje trama protestos e revoluções, especialmente nestes últimos tempos conturbados...

O escritor e memorialista Pedro Nava na casa onde morou o poeta Carlos Drummond, no Bairro Floresta

MATRIZ

Fato é que o Bar do Ponto foi abaixo, o Café Estrela, celeiro dos modernistas, idem, assim como o Grande Hotel. Nava, o incendiário, não deixou barato o bota-abaixo da antiga Matriz da Boa Viagem, a linda igreja do século 18, resquício do arraial destruído para abrigar a capital planejada. Em Beira-mar, ele deixa o relato doído, contundente e indignado, implacável “com o monstrengo que está lá hoje”. Ela mesma, a Igreja da Boa Viagem “neogótica”, erguida nos anos 1920, que a Arquidiocese pretende transformar em marco zero de Belo Horizonte. “Vi com meus olhos, esses meus olhos que a terra há de comer, o velho templo já sem telhado e seus arquivos postos fora na sacristia meio derrubada onde o sol e a chuva acabavam com aquela papelada testemunho de casamentos, batizados e mortes dos curralenses. Passou por minha cabeça resguardar aquilo tudo pura e simplesmente levando para casa (...). Até hoje me arrependo de não ter feito essa obra de benemerência”, penitenciou-se o memorialista.

LEMBRANÇAS NA CALÇADA Muito da alma encantadora das ruas da BH contemporânea nos é revelado por Pedro Nava. Rua Doutor David Rabelo, no Alípio de Melo? Era o médico que cuidou de nosso jovem memorialista, curando-lhe com ipeca em pó a garganta severamente infeccionada. O moço vomitou feito doido, mas ficou bom em duas horas. Hospital Borges da Costa? Pioneiro da cirurgia em BH, o professor Eduardo Ribeiro Borges da Costa clinicava em casa, na Rua da Bahia, 1.466, o palacete onde atualmente funciona a Academia Mineira de Letras. No lombo do piquira Velhaco, o famoso doutor também atendia seus doentes in loco em Venda Nova, Contagem e Sabará. Ensinou ao jovem Nava o profundo sentido dramático da medicina – ofício entre a vida e a morte. Praça Hugo Werneck? Outro pioneiro da medicina de BH, Hugo Furquim Werneck, inicialmente mestre do estudante Pedro Nava, tornou-se algoz do pupilo. O rapaz acobertara um colega vítima de bullying, que quase matara um estudante. Werneck não perdoou o desrespeito à hierarquia: demitiu o residente, que, sem dinheiro, pendurou-se “nas unhas de todos os agiotas de Belo Horizonte”. A rusga se perpetuou, mas ele jamais se esqueceu das lições de dignidade profissional aprendidas com o professor.Rua Pedro Nava? Está lá no Bairro Tupi, na Zona Norte de BH. Pequena, tem casas humildes. Por ironia do destino – ou praga da TFM –, começa justamente na Rua Furquim Werneck...


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MEMÓRIAS

ESTADO DE MINAS

DOMINGO, 8 DE OUTUBRO DE 2017

CRÔNICAS URBANAS

A CAPITAL DE ONTEM E DE HOJE AINDA GUARDA HISTÓRIAS NÃO REVELADAS NEM MESMO PELOS FAMOSOS ESCRITORES QUE NASCERAM OU VIVERAM EM BH. SÃO CONTOS DE PERSEVERANÇA, PAIXÃO E DEDICAÇÃO LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS

LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS

JAIR AMARAL/EM/D.A PRESS

Cronista visual da cidade, João Pereira viu a profissão se transformar

Edila e Mário se apaixonaram no hospital onde se tratavam de tuberculose

Matheus perpetua trabalho com jazigos no primeiro cemitério de BH

O FOTÓGRAFO DO MUNICIPAL

O AMOR É PACIENTE

UM PASSADO PRESERVADO

PAULO PIANETTI

IRACEMA AMARAL

IVAN DRUMMOND

Eles começaram a chegar na década de 1920, atraídos pelo crescimento econômico que a jovem capital experimentava. Com técnicas de fotografia ao ar livre trazidas da Europa, elegeram como primeiro destino o Parque Municipal, onde, com seus tripés e máquinas-caixotes, logo ganharam a confiança dos clientes: casais de namorados, crianças, famílias inteiras em passeio pela cidade, ávidas por registrar o momento no parque, que na época ainda nem grades tinha. João Pereira, de 54 anos, chegou no parque há duas décadas e meia. Naquela época, além eternizar os passeios no local, os visitantes também procuravam os lambe-lambes para fazer fotos 3X4, que até ofereciam roupas aos clientes para eles ficarem bem nos documentos. João deixou Abaeté, na Região Central de Minas, e chegou à capital quando ela apenas ensaiava para incessantes revoluções tecnológicas em sua profissão. Como os colegas que o antecederam, transformou-se numa espécie de cronista visual da cidade e guardião de recortes de sua memória coletiva, exercendo o ofício que viria a ser considerado bem imaterial – aliás, o primeiro na categoria na cidade – pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio de Belo Horizonte em 2012. Através de suas lentes, João Pereira viu também a transformação tecnológica, que mudou não somente seu ofício, mas toda a relação dos que passam pelo parque com o ato de eternizar o momento. Ser fotografado era um ritual de paciência, cercado de cerimônia. “Tenho saudades daquele tempo em que os casais apaixonados faziam fila para ser fotografados. Também não dá para esquecer das crianças, empolgadas com a diversão, que só queriam saber de uma foto em cima do tradicional cavalinho de madeira”, relembra. E hoje? “Já não querem saber do nosso trabalho, afinal, é muito prático e mais em conta simplesmente sacar o telefone e tirar uma selfie. Às vezes, chego ao parque de manhã e saio no fim da tarde sem ter feito nem sequer uma fotografia. A dificuldade para me sustentar só com o trabalho de lambelambe é imensa”, lamenta João.

BH já foi referência para tratamentos de doenças pulmonares, em especial a tuberculose. O clima ameno o ano inteiro proporcionou a instalação dos sanatórios de excelência. Entretanto, antes da descoberta da penicilina, em 1941, a enfermidade era cercada principalmente pelo medo, por significar, na maioria dos casos, morte iminente. O escritor Pedro Nava contou essa vocação da capital em Beiramar, no qual descreve um dos pavilhões da Santa Casa de Misericórdia, no Bairro Santa Efigênia. Era o cenário de tratamento de tuberculosos daquela época: “Nos leitos figuras esquálidas, nas mesas de cabeceira o vidrão do óleo de fígado de bacalhau creosotado, as caixas de papelão com os papéis da mistura dos três cálcios, o conta-gotas da água de lourocereja com a codeína.” Cinquenta anos depois, já com o amplo uso da penicilina para curar a tuberculose, que também marginalizava suas vítimas, uma história de amor uniu dois jovens infectados pelo bacilo de Koch, bactéria responsável pela maioria dos casos da doença. Internados em 1971 no Hospital Alberto Cavalcanti, no Bairro Padre Eustáquio, Região Noroeste de Belo Horizonte, a professora aposentada Edila Madureira Viana, hoje aos 68 anos, e o químico aposentado Mário Viana Filho, de 67, ali se conheceram. Embora em tratamento em andares separados, se encontravam na hora das refeições e à tarde, no horário de recreação dos pacientes. “O Alberto Cavalcanti tinha um jardim muito bonito. Um dia convidei Edila para passear. Quando estávamos voltando, coloquei a mão no ombro dela. Ela me xingou, disse-me para ir fazer isso com a minha mãe”, relembra e se diverte Marinho, apelido da época de atleta como jogador de vôlei. “Ainda assim, a atitude dela não me fez desistir, mas refletir sobre as minhas intenções. Foi aí que percebi que queria namorar e até me casar com ela”, afirma. Edila, por sua vez, revela: “Minha mãe dizia que o melhor presente que recebi na minha vida foi a doença, porque ela me apresentou ao Marinho, à vida e à autoestima”, comenta.

Um local de histórias e de arte. Planejado com a cidade, o Cemitério do Bonfim teve de ser inaugurado sete meses antes da fundação oficial de BH. A morte prematura da filha de uma lavadeira e de um operário que trabalhava na construção da futura capital mineira demandou a liberação do terreno para o sepultamento. O registro da morte da pequena Bertha está numa placa feita pelos Irmãos Natali, a primeira marmoraria de Belo Horizonte e responsável pela construção de inúmeros jazigos nas décadas seguintes. Originalmente em funcionamento na Rua Tupis, 1.030, no Centro, a marmoraria atualmente está na Rua Bonfim, em frente ao cemitério. O serviço mudou de mãos, sendo adquirido nos anos 1980 por Reinaldo Fiuza, que hoje dirige a empresa com a ajuda do filho, Matheus, de 38 anos. “Além de seguir construindo jazigos, perpétuos e mausoléus, damos manutenção em túmulos e nas inscrições de cada um deles”, comenta Matheus. No Bonfim, está grande parte da memória de Belo Horizonte. Em primeiro lugar, era um bairro mais afastado do Centro e das zonas Sul e Leste, as mais populosas. Por causa disso, algumas cúpulas, as chamadas orientais, se tornaram ponto de referência da região. A maioria dos grandes mausoléus com cúpulas eram das famílias de origem árabe, como os Curi, Aziz Abras, Mansur Saliba, Jorge Nassif, Salomão Abras e Haddad. O Bonfim é ainda local de descanso de figuras ligadas a momentos marcantes da história brasileira, como o Capitão Bragança, um dos principais integrantes da Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, ocorrida em 1922, e de muitas personalidades religiosas. No cemitério estão também os túmulos de Padre Eustáquio, holandês batizado Humberto van Lieshout e beatificado em 15 de junho de 2005. Desde então, seu túmulo é local de peregrinação. Além dele, a Irmã Benigna, cujos restos mortais foram trazidos para BH, também é ponto de grande visitação de fiéis.

ARTE DE SORAIVA PIVA

CONFIRA NO EM.COM.BR Memórias, a sétima das 12 partes da série de reportagens multimídias do especial BH120 do Estado de Minas traz conteúdo exclusivo de vídeos, entrevistas, fotografias e infografias. No site você poderá conferir ainda as datas de divulgação dos próximos temas.

REVISÃO: Ademar Fulgêncio

REPORTAGENS: Rachel Botelho, Guilherme Paranaiba, Iracema Amaral, Ivan Drummond e Paulo Pianetti* *estagiário sob supervisão

FOTOS: Leandro Couri, Jorge Gontijo e Jair Amaral PROJETO GRÁFICO: Júlio Moreira

COORD. MULTIMÍDIA: Fred Bottrel, Rafael Alves e Renan Damasceno

EDIÇÃO DE TEXTOS: Rafael Alves

ARTES: Quinho e Janey Costa

DIRETOR DE REDAÇÃO: Carlos Marcelo Carvalho

EDIÇÃO ANTERIOR Gerações, a sexta das 12 partes da série em homenagem a BH, publicada em 24/09, está disponível no site Em.com.br/BH120.


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