BH120 - Ambientes

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ESPECIAL ESTADO DE MINAS DOMINGO, 27 DE AGOSTO DE 2017

AMBIENTES

GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS

Trecho do Ribeirão Arrudas no limite entre Belo Horizonte e Sabará: manancial foi o único dos 700 quilômetros de cursos d’água existentes na cidade incluídos no planejamento da nova capital, no fim do século 19

A CAPITAL, DA NASCENTE À FOZ RONEY GARCIA E SIMON NASCIMENTO* PercorrerahistóriadeBeloHorizonteemseus120 anos é como seguir o curso de suas águas: da jovem capital brotando tímida, em 1897, em meio às rochas e ao verde aos pés da Serra do Curral, à grande metrópole,correndocélereepoluídaporentretorresdeconcreto no século 21, rumo a um futuro que se deseja próspero, mas que na verdade é incerto. De fato, a vida da capital mineira nasce misturada a suas minas e bicas, seus riachos, córregos e ribeirões. E segue unida a eles nos dias atuais, para o bem e para o mal. Afinal, a riqueza hídrica foi um dos fatores que levaram à escolha do antigo arraial do Curral del-Rey como nova sede do poder político e econômico do estado. E hoje, o que era abundância transborda, em forma de problema,emcheiasealagamentosnacidadeimpermeabilizada por décadas de urbanização. Como um rio, a convivência da cidade com suas águas teve – e tem – trechos turbulentos e sumidouros por onde o que era um tesouro hídrico escoou ao longo de décadas e se transformou no que hoje se identifica como um tormento e um desafio para as próximas décadas. Nascida com quase 700 quilômetros de cursos vertendo águas cristalinas

por entre seus vales, desde a fundação Belo Horizonte, contraditoriamente, ignorou essa riqueza e hoje precisa repensar o curso de sua história. Prova dessa contradição é que na planta da nova capital que surgia, apenas o Ribeirão Arrudas foi considerado. Sobre os demais, os planejadores da comissão construtora lançaram um emaranhado de ruas e avenidas rasgadas a régua e esquadro, em retas e curvas de 90 graus que ignoravam os caminhos sinuosos das águas. Como resultado, seguiram-se anos de sepultamento e canalização de córregos sob o asfalto, fenômeno que começou dentro da área planejada da Avenida do Contorno e se estendeu cidade afora, à medida que BH crescia. Doze décadas depois, essa política se traduz em números reveladores: segundo a Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap), BH tem em sua malha urbana 208 quilômetros de cursos d’água canalizados ou revestidos, 79% deles em canal fechado. Outros 113 quilômetros não são canalizados, mas quem passa às margens de qualquer desses córregos e percebe a cor e o cheiro de suas águas sabe que isso não é boa notícia. Restam 350 quilômetros em leito natural, não cadastrados, em áreas de preservação do município, a grande maioria em pontos

LINHA DO TEMPO

Os córregos Leitão, Acaba Mundo e Serra, antes integrados à paisagem do antigo arraial, são ignorados conceitualmente no momento do projeto urbano da nova capital. Alguns respiros são preservados e integrados, como a cachoeira natural do Parque Municipal.

da Serra do Curral ou em remanescentes de áreas verdes na Região Norte. Nem essas águas, porém, estão livres da poluição, via contaminação por afluentes ou desaguando em leitos já imundos. E se na briga da correnteza natural com a urbanização quem leva a melhor é o asfalto, resta às nossas águas dois destinos. Ou teimam em brotar suavemente, em uma das cerca de 600 minas urbanas catalogadas na cidade, ou ressurgem com violência dos 165 quilômetros de galerias em que foram confinadas, em inundações em que carregam o que encontram pela frente a cada temporal. A tendência de canalizar riachos, córregos e ribeirões, diz a Sudecap, foi superada. Segundo o gerente de Gestão de Águas Urbanas, Ricardo de Miranda Aroeira, o Plano Diretor de Drenagens e o Drenurbs, consolidados no fim dos anos 1990, têm como diretriz a mínima intervenção nos cursos d’água em leito aberto. “Encaixotá-los não reduz o risco e só agrava as inundações”, constata Aroeira. Porém, a cobertura do leito do Arrudas iniciada em 2005 e extendida para a Copa de 2014 – para dar lugar a um bulevar que na verdade é território quase exclusivo de carros – mostra que essa não é uma política intocável. E não há grande esperança de que a cidade tenha

de volta alguns dos tesouros que decidiu esconder sob ruas e avenidas ao longo de sua história. Com quase 90 pontos de inundação em sua malha urbana e cerca de 45 mil pessoas ainda vivendo em áreas de risco, BH não tem perspectiva de investir em reabertura e tratamento ambiental de cursos d’água hoje confinados. “Entendemos que BH está muito à frente de outras capitais, mas reconhecemos que ainda temos carências, temos população em vilas e favelas que precisam ser urbanizadas e precisamos melhorar o saneamento nessas áreas, além dos locais de inundações, que precisam ser tratados. Então, o investimento em descanalização de cursos d’água é algo que não podemos priorizar”, constata Aroeira. Assim, a cidade que nasceu entre fontes, riachos, córregos e ribeirões chega aos 120 anos com sede. A água que bebe depende em quase 100% de mananciais de municípios vizinhos. E mesmo esses já dão sinais de exaustão, como mostrou crise hídrica que castigou a Grande BH em 2014, com reflexos até hoje no sistema de abastecimento. Um aviso de que é preciso pensar no futuro e nos belohorizontinos dos próximos séculos. *Estagiário sob supervisão do subeditor Roney Garcia

Os primeiros anos da capital são marcados por poucas modificações nos cursos d’água, sendo que a maioria continua a correr em leito natural.

São realizadas as primeiras obras de cunho sanitário e construídos emissários paralelos aos cursos dos córregos para receber o esgoto que até então era jogado in natura nos córregos. Tais emissários despejam o esgoto ao término dos trechos canalizados.


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Vila Acaba Mundo, por onde passa o córrego de mesmo nome que nasce na Região Centro-Sul de BH: manancial foi um dos que tiveram a inclusão adiada no começo do século passado, por causa de dívidas públicas

PATRIMÔNIOS INVISÍVEIS

GASTOS COM A CONSTRUÇÃO DA NOVA CAPITAL ENTERRARAM PLANOS DE INTEGRAÇÃO DA CIDADE COM SEUS CÓRREGOS E RIBEIRÕES DESDE O INÍCIO DAS CANALIZAÇÕES, NA DÉCADA DE 1920 ELLEN CRISTIE Imagine descer a Avenida Afonso Pena margeando um riacho, com direito a quedas d’água, pedras, vegetação ribeirinha, garças e outras aves, aquáticas ou não, quem sabe uma pista de caminhada... Peixes, por que não? Não, não deveria se tratar da utopia de um urbanista sonhador. Afinal, quem faz esse trajeto está, sim, acompanhando o leito de um curso d’água. Metros abaixo da superfície por onde carros e pedestres passam apressados segue o Córrego Acaba Mundo em sua jornada rumo ao Ribeirão Arrudas. Antes, brotou aos pés da Serra do Curral, desceu pela Avenida Uruguai, entrou pela Avenida Nossa Senhora do Carmo e correu pela Rua Professor Moraes. Finalmente, virou à esquerda na Afonso Pena, por onde desce até chegar ao Parque Municipal e depois à sua foz. Mas, na superfície, quase ninguém sabe disso. Extensão de nossas agressões à natureza, os cursos d’água de BH e região metropolitana agonizam desde a conclusão da planta da nova capital de Minas, em 1893. Considerados oficialmente como um dos motivos que levaram governantes e urbanistas à escolha do Curral del-Rey como centro administrativo e financeiro do estado, os quase 700 quilômetros de cursos d’água existentes na capital, à exceção do Ribeirão Arrudas, não foram incluídos no projeto original da cidade que surgia. Segundo o geógrafo Alessandro Borsagli, pesquisador e autor do livro Rios invisíveis da metrópole mineira, a integração de cursos d’água como o Acaba Mundo, o Córrego da Serra e o do Leitão na paisagem urbana foi postergada na década de 1920 para outras administrações, e terminou nunca ocorrendo de fato. E nem no caso do Arrudas o planejamento surtiu efeito desejado. “Desde a primeira canalização, já em 1920, dentro da Avenida do Contorno, o leito do ribeirão transbordou no período chuvoso”, conta. “O Arrudas era um elemento de referência geográfica da paisagem urbana. Mas o Estado estava quebrado com a construção da capital, e a decisão que se tomou à época foi jogar o esgoto nos cursos d’água”, explica o pesquisador. De 1925 a 1975, pouco ou quase nada foi projetado envolvendo a despoluição dos cursos d’água da capital. “Há, inclusive, uma única nota publicada no jornal Estado de Minas, de 1966, em que um vereador fala da necessidade de se construir uma estação de tratamento de esgoto na cidade”, acrescenta Borsagli. Anos depois e as sucessivas administrações municipais acabaram por completar os planos de sa-

“QUANDO SE IMPERMEABILIZAM OS CURSOS D’ÁGUA E A DRENAGEM É PRECÁRIA, A ÁGUA CORRE PARA OS VALES, CAUSANDO TRANSBORDAMENTOS, REGISTRADOS CONTINUAMENTE EM BH” ● ALESSANDRO

O CAMINHO DAS ÁGUAS Em leito natural Canalizado aberto Canalizado fechado Canalizado em seção tubular Não cadastrado

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BORSAGLI

Lagoa da Pampulha

Geógrafo e autor do livro Rios invisíveis da metrópole mineira

neamento de BH, da forma que o planejamento, os interesses político-econômicos e as verbas permitiam. Apenas nos anos 1990 surgiram as estações de tratamento de esgoto no Arrudas e no Onça, mas grande parte do esgoto continuou caindo in natura nos cursos d’água.

PRESSÃO URBANA

Mas o que precisa e o que pode ser feito? Na visão do especialista, cursos d’água deveriam ser vistos não como componentes alienígenas dentro da cidade. O que ocorre é que esses componentes naturais foram alijados do processo de urbanização, cobertos, encapados sob a justificativa da pressão urbana, da necessidade de se alargarem vias para melhorar a mobilidade urbana, como o que foi feito mais recentemente com o Bulevar Arrudas, cobertura do ribeirão iniciada em 2005 e com várias extensões subsequentes. “A verdade é que trocamos a água pela gasolina. Quando se impermeabilizam os cursos d’água e a drenagem é precária, a água corre para os fundos de vale, causando transbordamentos e inundações, registrados continuamente em vias importantes de BH, como as avenidas Prudente de Morais, Bernardo Vasconcelos, Silva Lobo, Vilarinho etc.”, afirma Borsagli. Entre as soluções, o geógrafo destaca a plena interceptação dos esgotos e o tratamento da água antes de chegar aos cursos d’água. Além disso, o envolvimento do poder público, mas também da população, que “muitas vezes acha que a questão do saneamento não é problema dela e que não é obrigação dos moradores saber qual é o destino dos resíduos que eles mesmos produzem”.

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Bacia do Ribeirão do Isidoro

Bacia do Ribeirão do Onça 1

Ribeirão Arrudas

Bacia do Ribeirão Arrudas

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Ribeirão do Onça

O apagamento dos rios segue paulatinamente em direção à sua desnaturalização. Cada vez mais os trechos são canalizados, retificados e têm seu curso alterado.

Década marcada pelas primeiras grandes transformações, com o início das canalizações, retificações e mudanças dos cursos d’agua, para adequação das ruas. Mesmo desviados de seus cursos naturais, os córregos permanecem como elementos definidores da paisagem e ainda ’socializam’ com a vida urbana.

Bacia do Rio das Velhas

É o início de uma época de crescimento vertiginoso da cidade. Apesar das intervenções de canalizações terem caráter higienista, revelando a preocupação do governo com questões sanitárias, os cursos d’água, que já se encontravam poluídos, e a cidade continuam padecendo com as violentas inundações. Devido ao colapso da coleta de lixo, os córregos tornam-se locais de despejo de lixo doméstico.


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FONTES DE DÚVIDAS

TRADIÇÃO DE USAR ÁGUA DE BICAS ABASTECE UMA POLÊMICA. COM NÚMERO INCERTO DE MINAS, A POPULAÇÃO E O PODER PÚBLICO NÃO SE ENTENDEM SOBRE A QUALIDADE DESSAS NASCENTES FOTOS: GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS

J ULIANA CIPRIANI E LUIZ OTHÁVIO GIMENEZ Apesar de 120 anos de agressões, poluição, impermeabilização e descaso, a esperança ainda brota, sob a forma de água cristalina, do solo de BH. E ela teima em renascer em locais totalmente inusitados – principalmente para a maioria da população, que não chegou a conhecer o passado de extrema riqueza hídrica da capital. Tem bica, como são conhecidas popularmente as minas, em bar, rua, terreno particular e locais públicos. Tem nascente até em parque que nunca foi parque. E também muita polêmica às margens da qualidade da água dessas fontes. Elas são algumas das cerca de 900 nascentes existentes em BH, segundo dados da Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Mas até o número é controverso. O Comitê da Bacia do Rio das Velhas, em cuja área de influência está a capital, estima em 1,4 mil o número de olhos d’água na cidade, 600 deles conhecidos, a metade demandando cuidado e recuperação. Indiferente ao desconhecimento oficial sobre o patrimônio hídrico da cidade, Romero Pedro da Silva, de 53 anos, tornou-se popular pela nascente que tem dentro de casa, no Bairro Vila Santa Branca, em Venda Nova. Graças a ela, foi parar até nas páginas do livro Guia do morador Belo Horizonte. É de sua bica que vem a água que abastece a família, formada pela mulher, Cirlene, de 54, e os filhos Vitória, de 17, Giovanna, de 23, e Júlio, de 20. Ele também mantém um bar com a caixa de 8 mil litros que construiu para direcionar o que a natureza lhe dá de graça. Ao poder público, paga apenas taxa de esgoto. “É coisa que Deus mandou para a gente, então, conservo muito bem. Já foi feita análise da água e é muito potável”, orgulha-se Romero. O comerciante já teve proposta bem vantajosa para vender a casa com o lote, mas, por causa da mina diz que não há preço que pague. Há 25 anos, o morador descobriu o tesouro líquido que tinha nas mãos quando começou a construir o alicerce no lote que adquiriu. “Fomos construir e começou a minar água, aí vimos que tinha uma fonte”, conta. Hoje, ele se dá ao luxo de oferecer água aos vizinhos, que fazem fila na porta quando o abastecimento da Copasa falha. “Essa crise hídrica que falam aí não acontece comigo. E, se acontecer com a vizinhança, estamos prontos para servi-los”, afirma. Na Zona Leste da cidade, a Biquinha do Noventa é fonte de discussão entre a população e o poder público, que não se entendem sobre a qualidade da água. A bica fica em um dos bairros mais tradicionais da capital, o Horto, e o nome é uma referência à comunidade Noventa Lojas, localizada na região. Às margens da linha do trem, a mina serve desde pessoas que passam pelo local a alguns moradores. Mas tem gente que não confia nela. A confeiteira Lídice Emanuele Silva e Souza, de 23, mora em frente à bica, mas tem

A artista plástica Isabela Prado gravou sons de córregos no subsolo de ruas da capital

VIDA SOB O CONCRETO MARIANA PEIXOTO Bica no Parque do Brejinho, na Pampulha, sofre com sujeira e invasões. Moradores cobram ações para salvar manancial pavor da água. “Moro aqui desde 1 mês de idade e tomava banho na bica. Até que tive hepatite A e princípio de hepatite B. O médico disse que foi por causa da água”, explica. Ela considera um desperdício ver tanta água jorrando em sua porta, e acha que deveria haver uma parceria com a Copasa para tratar o manancial. Morador há 30 anos da Rua Felipe Camarão, Carlos Barbosa relata que nunca teve problemas de saúde por consumir a água da bica. “Essa água é sagrada”, considera ele, que passa pela Bica do Noventa ao menos uma vez ao dia para se refrescar. Em nota, a Vigilância Sanitária de BH informou que faz coleta semestralmente e realiza exame laboratorial para avaliar a qua-

lidade da água em algumas bicas da cidade. No caso da Bica do Noventa, o último teste foi feito há seis meses e o resultado foi que a água não deve ser usada para consumo humano.

ENTRE LIXO E MATO

Entre os bairros São Francisco e Indaiá, na Região da Pampulha, outra mina da cidadevirouumexemplodedescaso.A nascente do Parque do Brejinho, como ficou conhecida depois das promessas de se criar um parque ecológico para preservação do local, brota em meio a um amontoado de mato e lixo. Recentemente, a área foi contemplada em umprojetodevalorizaçãodenascentes urbanasdoRibeirãodoOnça,masainda falta o braço do poder público. Quem

Romero tem mina dentro de casa: água é usada em seu bar e doada a vizinhos

Se firma como a conclusão do apagamento dos córregos como elementos urbanos. O córrego Acaba Mundo é coberto em seu trecho da Rua Professor Moraes, impossibilitando seu último respiro.

A década de 1980 se caracteriza por alargamentos das seções dos rios em uma tentativa de conter as grandes enchentes na cidade, deflagradas desde sua construção. A década de 1990 é lembrada por violentas inundações. A água corre rapidamente nos cursos impermeabilizados e retificados, provocando assim enchentes que afloram nas ruas pelos bueiros e ao longo de diversos trechos do curso do Ribeirão Arrudas.

conduziuainiciativafoioComitêdaBacia do Rio das Velhas, por meio do subcomitê do Onça e parceiros. A líder comunitária Lindaura Rosa dos Santos diz que as cobranças à prefeitura para consolidar o lugar como parquesãoconstantes.Segundoela,depois da melhoria feita pelo comitê de bacia, dois invasores foram retirados, mas nada mais foi feito para cuidar da área. “Continua tendo morador de rua lá e está havendo inclusive ameaça aos vizinhos”, afirma. Para a Secretaria de Obras da PBH, o Parque Ecológico do Brejinho “já foi implantado” em maio de 2011, com a construção de guarita, instalações sanitárias, copa, vestiários, depósito e cercamento da área conforme definido no OP Digital. Os principais órgãos públicos da capital demonstraram não ter controle sobre a quantidade de bicas existentes e menos ainda sobre a qualidade da água. O Estado de Minas procurou a Secretaria de Meio Ambiente, que atribuiu ao Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e depois à Vigilância Sanitária a responsabilidade pela gerência de recursos hídricos. O Igam disse que a Secretaria Municipal de Meio Ambiente seria a detentora das informações. A Vigilância Sanitária disse fazer o controle das águas de parques da capital dentro do programa Vigiágua, mas não passou informação sobre as bicas, que diz fiscalizar somente quando é demandada. Também procuradas, a Sudecap e a Copasa informaram não fazer controle da qualidade de água das bicas.

“Lembro-me dele, de minhas andanças nas suas ribas. Quando suas águas passavam sobre o dorso Bahia-Januária, parecia um riacho de roça. Para os lados da estação ele aparecia canalizado, suas margens ligadas por pontes de cimento.” Estivesse vivo, Pedro Nava (1903/1984), o grande memorialista mineiro, veria com os próprios olhos que suas lembranças sobre o Arrudas desapareçam sob o concreto. E foi o concreto que cobriu o ribeirão, transformando-o em bulevar, que levou a artista visual Isabela Prado, de 44 anos, a criar o projeto Entre rios e ruas, que trata das relações entre a cidade, o meio ambiente e o cidadão. Em 2006, depois de cinco anos fora do Brasil, ela retornou a BH. “Naquele momento, o Bulevar Arrudas estava sendo construído. Quando tive a percepção do apagamento da memória da cidade, aflorou, num primeiro momento, a Isabela cidadã, que acabou deixando a Isabela artista inquieta”, comenta. A inquietação deu início a um projeto, no qual Isabela fez, por conta própria, uma pesquisa sobre os córregos da cidade. Passou a sair à noite, quando BH está mais silenciosa, para escutar a água que passava escondida embaixo do asfalto. Registrou tudo em áudio. Em 2009, a performance foi apresentada no Museu de Arte da Pampulha. O mais recente trabalho da artista para a série Entre rios e ruas foi Lição: Se essa rua fosse um rio (2011/2016), que deu origem a um livro. Para a obra, Isabela escolheu oito áreas em que correm trechos dos córregos de BH. Acompanhada do professor de violino Paulo Thomáz, a artista teve aulas para aprender a executar a canção Se essa rua fosse minha. “A performance trabalhou com o público espontâneo, aquele que convive com o espaço. E ele acabou fazendo com que tomassem consciência de que ali existia um córrego.”

Recentemente, contra todas as discussões realizadas de como se tratar rios urbanos no contexto atual, Belo Horizonte, mais uma vez, apaga sua história dando continuidade ao tapamento do Ribeirão Arrudas. O saldo da linha do tempo é não só a invisibilidade dos córregos, como também a extinção de outros vários por aterramento de nascentes em detrimento da mobilidade urbana e do transporte particular.

FONTE: ALESSANDRO BORSAGLI, GEÓGRAFO E PESQUISADOR ARTE: SORAIA PIVA ILUSTRAÇÃO: LELIS


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Presidente do Comitê do Rio das Velhas, Marcus Vinícius Polignano se refresca na nascente do Córrego Acaba Mundo, aos pés da Serra do Curral, recuperada: ‘A perda da água significa a perda das possibilidades de tudo’

RIQUEZA ESQUECIDA

DESCASO AO LONGO DE DÉCADAS COM A DIVERSIDADE HÍDRICA QUE AJUDOU A CIDADE A SETORNAR CAPITAL FEZ COM QUE BH DEPENDA HOJE QUASE 100% DA ÁGUA QUE VEM DE CIDADES VIZINHAS MARIANA PEIXOTO A decisão para que o arraial de Curral del-Rey se tornasse a nova capital de Minas Gerais não foi fácil. Envolveu interesses político-econômicos e também uma disputa com outras quatro localidades: Barbacena, Juiz de Fora, Várzea do Marçal e Paraúna (nas proximidades de Curvelo). BH saiu vencedora por mais de uma razão. Uma delas estava em uma riqueza fundamental, que brotava em forma líquida de seu subsolo: a abundância da região em cursos d’água, sendo o principal o Rio das Velhas. Pesaram ainda a favor do local escolhido a localização estratégica, na Região Central do estado e distante apenas 100 quilômetros de Ouro Preto, o que facilitaria a mudança. Com uma altitude de 800 metros, contava com clima ameno e, mesmo circundada por montanhas, era acessível por todos os lados. Cento e vinte anos mais tarde, a diversidade de recursos hídricos parece ter ido por água abaixo. A cidade antes rica em mananciais hoje depende quase totalmente de água que vem de suas vizinhas. E a principal fonte, que nasce na Cachoeira das Andorinhas, em Ouro Preto, tem dificuldade em matar a sede de uma capital que ao longo dos anos enterrou e poluiu a maioria de seus riachos, córregos e ribeirões. “Quarenta e cinco por cento da água que abastece a Região Metropolitana de BH vem do Rio das Velhas. Só que hoje depositamos (via afluentes, os ribeirões Arrudas e do Onça, que atravessam BH) diariamente nele 5,5 metros cúbicos por segundo de esgoto. Pensando que o rio passa com uma vazão de 10, 11 metros cúbicos por segundo na época da estiagem, quase que a metade do que corre pelo leito é esgoto”, afirma Marcus Vinícius Polignano, presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas). A situação é grave, ainda mais considerando que 4,8

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milhões de pessoas (70% delas da Grande BH) dependem dessas águas para sobreviver. “A situação atual é absolutamente inadmissível. Hoje, lutamos para que o rio sobreviva em qualidade e quantidade de água, pois ela não é vital só para a biodiversidade, para o abastecimento, mas para a própria economia. A perda de água significa a perda das possibilidades de tudo. E se não tivermos rios, não vamos ter água nas cidades”, adverte Polignano. A capital mineira conta com dois sistemas de abastecimento, ambos gerenciados pela Copasa: um vem do Rio das Velhas e outro da Bacia do Rio Paraopeba. “Do primeiro são retirados, na Estação de Tratamento de Água de Bela Fama, 6,5 metros cúbicos por segundo de água. Já no Rio Paraopeba, o volume de retirada chega a 7 metros cúbicos por segundo”, continua Polignano. A estimativa do CBH Rio das Velhas é de um “desperdício de 30% desse total, podendo chegar a 40%”. Como resultado do que a capital fez ao longo da história com um de seus recursos mais preciosos, a crise hídrica bateu às portas da cidade entre 2014 e 2015, deixando todos – poder público e população – alarmados. Em 2016, a Copasa descartou o racionamento de água na região metropolitana. Garantiu que, graças a uma captação diretamente no Rio Paraopeba, inaugurada no fim de 2015, a capital tem garantidas pelo menos mais duas décadas de água, sem racionamento. Porém, essa condição foi alcançada graças à exploração de mais um recurso, sem medidas de preservação e recuperação de fontes hoje degradadas. Para Polignano, a autonomia anunciada pela estatal de saneamento é verdade, mas em parte. “Nosso abastecimento é fruto de duas áreas diferentes. Uma coisa é a Bacia do Paraopeba, e outra a do Velhas. Não há como um sistema substituir o outro. Como no caso do Velhas não temos reservatório, dependemos da cap-

CONFIRA NO EM.COM.BR Ambientes, a quarta das 12 partes da série de reportagens multimídias do especial BH120 do Estado de Minas, traz conteúdo exclusivo de vídeos, entrevistas, fotografias e infografias. No site você confere ainda as datas de divulgação dos próximos temas.

70%

DA ÁGUA CONSUMIDA EM BH NESTE ANOVEIO DO RIO DASVELHAS (CAPTAÇÃO EM NOVA LIMA)

20%

DO CONSUMOVEIO DO SISTEMA PARAOPEBA (CAPTAÇÃO NO RIO, EM BRUMADINHO, E RESERVATÓRIOS DE RIO MANSO,VARGEM DAS FLORES E SERRA AZUL)

10%

DA ÁGUA CONSUMIDA EM BH VEIO DOS SISTEMAS CATARINA, CERCADINHO, MORRO REDONDO E IBIRITÉ

REVISÃO: Ademar Fulgêncio

REPORTAGENS: Juliana Cipriani Luiz Othavio Gimenez Ellen Cristie Mariana Peixoto Simon Nascimento

EDIÇÃO DETEXTOS: Rafael Alves Roney Garcia PROJETO GRÁFICO: Júlio Moreira

COORD. MULTIMÍDIA: Fred Bottrel, Rafael Alves e Renan Damasceno

FOTOS: Gladyston Rodrigues

ARTES: Quinho, Lélis e Soraia Piva

DIRETOR DE REDAÇÃO: Carlos Marcelo Carvalho

tação da água que tem no rio naquele momento. Se não houver água em determinado momento, potencialmente há risco de escassez.” Apesar de toda a dificuldade, a vila escolhida para se tornar capital 120 anos atrás ainda tem muitas nascentes urbanas. O Comitê de Bacia do Rio das Velhas estima esse número em 1,4 mil – 600 já catalogados pela entidade. Mas pelo menos 300 delas estão degradadas, convivendo com contaminação por esgoto. “Só vamos ter um rio limpo se as nascentes assim existirem e levarem água limpa em seu trajeto. A calha é a representação do que estamos fazendo no entorno. Não adianta querer ter um rio limpo se não o preservarmos desde a nascente”, diz Polignano. Para isso, há iniciativas em curso, mesmo que o processo de recuperação seja muito mais lento e complicado do que o de destruição. Há dois anos o CBH Rio das Velhas começou um projeto de resgate das nascentes urbanas. Quinze delas foram recuperadas. A má notícia é que, nesse ritmo, sem apoio de outras entidades, a recuperação total dos olhos d’água da capital levaria nada menos que 40 anos – isso sem considerar a imensa maioria das nascentes ainda não catalogada e estudada. A boa notícia é que cada nascente recuperada se traduz em água limpa, que brota da terra, gratuitamente. O Estado de Minas foi até uma delas, na Vila Acaba Mundo, comunidade no Bairro Sion, Região Centro-Sul de BH. A área, antes degradada, foi recuperada e está aberta à população. Água pronta para consumo, aos pés da Serra do Curral. “É água que brota do solo por uma ação absolutamente natural. Aqui não tem Copasa, não tem empresa que abre e fecha torneiras. É um sistema natural que permite que a vida permaneça neste território”, comemora Polignano, antes de se refrescar, ele mesmo, com um pouco do trabalho do comitê.

EDIÇÃO ANTERIOR Entornos, a terceira das 12 partes da série, publicada em 13 de agosto, está disponível no site em.com.br/BH120.


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