O HOMEM, A MORADIA E AS ÁGUAS: A CONDIÇÃO DO “MORAR NAS ÁGUAS”

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O HOMEM, A MORADIA E AS ÁGUAS: A CONDIÇÃO DO “MORAR NAS ÁGUAS”

Moacir Vieira da Silva Josélia Carvalho de Araújo

1ª edição - 2013

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Moacir Vieira da Silva Josélia Carvalho de Araújo

O HOMEM, A MORADIA E AS ÁGUAS: A CONDIÇÃO DO “MORAR NAS ÁGUAS”

1ª edição

Duque de Caxias

2013


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2013, Espaço Científico Livre Projetos Editoriais

s Este conteúdo pode ser publicado livremente, no todo ou em parte, em qualquer mídia, eletrônica ou impressa, desde que:

b Atribuição. Você deve dar crédito, indicando o nome do autor e da Espaço Científico Projetos Editoriais, bem como, o endereço eletrônico em que o livro está disponível para download.

n Uso Não-Comercial. Você não pode utilizar esta obra com finalidades comerciais. _______________________________________________________________________ Ficha Catalográfica S5861

Silva, Moacir Vieira da; Araújo, Josélia Carvalho de.

aaaO Homem, a moradia e as águas: a condição do “morar nas águas”. / Moacir Vieira da Silva – Duque de Caxias, 2013. aaa4,00 MB; il.; PDF aaaISBN 978-85-66434-05-7 aaa1. Moradia. 2. Ocupações Insalubres. 3. Fatores Socioeconômicos. I. O Homem, a moradia e as águas: a condição do “morar nas águas”. II. Silva, Moacir Vieira da. III. Araújo, Josélia Carvalho de. CDU 900 _______________________________________________________________________ Autores: Moacir Vieira da Silva; Josélia Carvalho de Araújo Revisão: Verônica C. D. da Silva Capa: Verano Costa Dutra / Imagem: Moacir Vieira da Silva Coordenador: Verano Costa Dutra Editora: Monique Dias Rangel Dutra Espaço Científico Livre Projetos Editoriais é o nome fantasia da Empresa Individual MONIQUE DIAS RANGEL 11616254700, CNPJ 16.802.945/0001-67, Duque de Caxias, RJ espacocientificolivre@yahoo.com.br / http://issuu.com/espacocientificolivre


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sta obra foi originalmente publicada como Monografia apresentada ao Departamento de Geografia da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, como requisito para obtenção do grau de licenciado em Geografia sob a orientação da Profª Me. Josélia Carvalho de Araújo, em 11 de janeiro de 2011. Banca examinadora da monografia: Profª Me. Josélia Carvalho de Araújo (Presidente) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Profª Me. Maria José Costa Fernandes (Membro) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte Profº Me. Jamilson Soares de Azevedo (Membro) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

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DEDICATÓRIA

Aos “moradores das águas”: indivíduos relegados pelo sistema perverso, indivíduos que vivem e habitam as águas mais “profundas” e “escuras” da sociedade marcada pela desigualdade social.

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AGRADECIMENTOS

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oram momentos difíceis, nos quais os obstáculos pareciam insuperáveis. Momentos marcados por lágrimas, medo e receios do que não poderia se concretizar. Porém, a cada batalha vencida, um sorriso no rosto, o brilho da satisfação e do dever cumprido. Uma etapa de minha vida foi cumprida e uma nova fase se inicia. Realizações estão por vir. E ao final dessa pequena trajetória acadêmica, gostaria de agradecer primeiramente, a Deus, pela presença e ajuda durante toda essa jornada. Espero que possa retribuir-Lhe todas essas graças com a dignidade de meu trabalho e a firmeza de meu caráter. Obrigado Pai. Agradeço as minhas mães, Noemia e Alcidene, pois as devo tudo que hoje sou. Agradeço os passos apoiados na infância, os conselhos proferidos na juventude, os ensinamentos de toda a vida... À(s) senhora(s), não bastaria um muito obrigado, mas, a minha eterna gratidão. De maneira especial, agradeço à minha Orientadora e Professora Josélia Carvalho pelas orientações, conselhos e conversas proferidas durante toda a fase de orientação, bem como, aos momentos de apreensão cognitiva, de ensinamentos e acima de tudo, de partilhar ocorridos em sala de aula. Agradeço a minha prima Bruna, pelo apoio na pesquisa e pelo suporte a descoberta dos que “moram nas águas”; aos meus tios Lidia e Alcivan, pelo incentivo e o apoio durante toda essa jornada acadêmica; a minha sobrinha Maria Alice, pelos momentos de estresse e ao mesmo tempo de alegria; e aos meus familiares Aucivan, Anderson e Francinilda, pelo apoio durante todo esse trabalho. Agradeço a todos os colegas que trilharam essa intensa jornada comigo. Em especial agradeço a Tátia, Orieta, Lidiane, Francimeire, Vanicleide, Thales, Petrus, Aurécio, Diany, Luiz, Mara, Ronaldo, Raniele (colegas de sala), Jussara, Patrícia, Magália, Renata, Toinha, Vinicius, Gustavo, Heitor (colegas extra-sala) e as minhas amigas de toda vida, Kátia e Caionara (amigas-irmãs) por todos os momentos de alegria, de crescimento pessoal, simplesmente pela companhia. Foi (e espero que continue sendo) muito bom está com vocês. Muito obrigado. Agradeço a os professores do curso de geografia, Tarcísio, Amélia, Robson, Fábio, Everaldo, Benedito, Rerisson, Jionaldo, Otoniel, Chagas Silva e aos professores de outras faculdades (Luzia, Adriana) pelos ensinamentos proferidos durante toda essa jornada, pela dedicação, a palavra amiga, a teoria, a prática. De maneira mais que especial, agradeço aos ensinamentos, as conversas e as caronas da professora Maria José e aos momentos de descontração e alegria vividos com o professor Jamilson. Reconheço o mérito de vocês, que me fizeram acreditar que o conhecimento só é útil quando nos torna melhor. Não esquecerei de que preciso ser um eterno aprendiz. Agradeço a minha querida mãe adotiva Tia Zora, pelos momentos de conversas, de desabafo, de conselhos. A você, o meu sincero e caloroso agradecimento. Não bastaria agradecer a essa pessoa por todos os momentos de alegria, de companheirismo vivido. Você foi mais do que especial, você foi peça fundamental durante toda essa jornada. Apesar dos problemas enfrentados nesse longo caminho,

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agradeço por você deixar de ser desconhecida, por deixar de ser apenas colega e por se tornar simplesmente amiga. Muitos podem até não saber o quanto nós somos amigos, o que faríamos um pelo outro. Assim, de maneira mais que especial e carinhosa, gostaria de agradecer a você Juciely, pelo carinho, pelas conversas, pelos desabafos e pela sua amizade. Agradeço aos “moradores da águas”, pelo apoio, pelos relatos, pela viagem de descoberta realizada acerca dos que vivem em condições de vida precárias, mas que, acima de tudo, vivem com a esperança de dias melhores. Tudo valeu à pena. Foi uma aprendizagem, uma experiência maravilhosa, da qual jamais vou esquecer. E, em todos esses momentos, vocês se fizeram presentes, mantiveram-se sempre ao meu lado. A vocês, o meu muito obrigado por todo amor, carinho e dedicação. VOCÊS FAZEM PARTE DA MINHA HISTÓRIA.

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O rio não precisa ser nosso; a água não precisa ser nossa. A água anônima conhece todos os meus segredos. E a mesma lembrança jorra de cada fonte. Gaston Bachelard

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RESUMO

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ompreende um estudo que objetiva analisar as imposições socioeconômicas inerentes à condição do “morar” numa área susceptível a alagamentos, no bairro Costa e Silva, Mossoró/Rio Grande do Norte. Constata que a condição do “morar nas águas” é uma condição estabelecida desde os primórdios da humanidade, e que teve seu cerne interligado a “imposições naturais” sob as quais se estabelece a condição deste morar. O “morar nas águas” é reflexo das imposições capitalistas, das limitações socioeconômicas frente à possibilidade do morar. Revela que as condições de vida da população estudada se apresentam como fator impulsionante desta problemática. E ainda constata que o “morar nas águas” está afeito a uma série de problemas, que partem desde os alagamentos às condições de vida insalubres, sendo que tais condições são inerentes à realidade desta comunidade, bem como à falta de atuação dos governantes, especialmente os locais, cuja solução está pautada na possibilidade de mudanças estruturais, sociais e políticas na área em estudo. Nesse contexto, está calcado na ideia de possibilitar a explicitação de um problema encontrado na maioria das cidades brasileiras, a partir de um olhar geográfico “local”. Fundamenta estas constatações em leituras atinentes ao tema, em pesquisas de campo e levantamento de dados socioespaciais. De maneira sinóptica, o “morar nas águas” é um dos reflexos explícitos de uma sociedade marcada pela diferenciação social, o que reflete nos espaços habitados.

PALAVRAS-CHAVE: Moradia. Ocupações Insalubres. Fatores Socioeconômicos.

ABSTRACT

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omprehend a study that objectify to analyze the imposition inherent in the socioeconomic condition of "live" in an area susceptible to flooding in the neighborhood of Costa e Silva, Mossoró/Rio Grande Norte. Notice that the condition of "live in the waters" is a condition established since the ancient times of humanity, and that had your duramen interspersed "natural imposition" under which establishes the condition this live. The "live in the waters" is a reflection of the capitalist imposition, the socio-economic limitations front of possibility of live. Reveals that the living conditions of the studied population are presented as impulse factor to this problem. And still notice that the "live in the waters" is related with a series of problems, which begin from the flooding to unsanitary life conditions, being that such conditions are inherent to reality of this community, and the lack of action of governments, especially the place, whose solution is based on the possibility of structural changes, social and political in the study area. This context is based in the idea of enable an explanation the problem found in most Brazilian cities, from a geographic look "local ". Based these findings on the readings to the topic, in field research and data collection sociospace. One simply synoptic of the "live in the waters" is an explicit reflection of a society marked by social difference, which reflects the inhabited spaces.

KEY-WORDS: Residence. Unhealthy Occupations. Socioeconomic Factors.

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LISTA DE FIGURAS Figura 01: Planta da cidade de Babilônia (Mesopotâmia)

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Figura 02: Planta da cidade de Nipur (Mesopotâmia)

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Figura 03: Localização das primeiras civilizações

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Figura 04: O “morar nas águas” na Idade Média

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Figura 05: Processo de ocupação do território norte-rio-grandense

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Figura 06: Esboço da cidade de Mossoró no inicio de sua formação – 1772

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Figura 07: Esboço da cidade de Mossoró no ano de 1810

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Figura 08: Esboço da cidade de Mossoró na “década do expansionismo” – 1861/1870

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Figura 09: Esboço da cidade de Mossoró no “pós-emancipação” - 1870 a 1883

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Figura 10: Habitações localizadas no bairro Costa e Silva nas proximidades da Lagoa dos Pintos – Área de estudo

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Figura 11: Assentamento Wilson Rosado – Favela do Fio

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Figura 12: Favela da fumaça

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Figura 13: Enchente ocorrida na cidade de Mossoró no ano de 1961

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Figura 14: Enchente ocorrida na cidade de Mossoró no ano de 2008

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Figura 15: Desigualdades espaciais existentes no bairro Costa e Silva

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Figura 16: Localização da área de estudo (bairro Costa e Silva)

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Figura 17: Casas resultantes dos programas sociais na área de estudo

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Figura 18: Casa resultante do processo de autoconstrução

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Figura 19: Lixo depositado nas margens da Lagoa dos Pintos

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Figura 20: Rua sem asfalto encontrada na área de estudo, exemplo da atuação insuficiente do Estado

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Figura 21: Esgoto a “céu aberto” encontrado na área de estudo – Exemplo da falta de atuação do Estado no que se refere ao saneamento básico

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Figura 22: Representação da área estudada no período de estiagem – “vizinhos das águas”

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Figura 23: Representação da área estudada no período de alagamentos – “moradores das águas”

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Figura 24: Exemplo de “barreiras” construídas para proteção das casas durante os períodos de alagamentos

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Figura 25: Vivência em meio ao lixo na área estudada – Uma das fontes de poluição das águas da Lagoa dos Pintos

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Figura 26: Esgoto a “céu aberto” encontrado na área de estudo – Fonte de poluição das águas da Lagoa dos Pintos e exemplo da atuação ineficaz do Estado

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Figura 27: Bacia de estabilização situada próximo a comunidade estudada – Uma das fontes de poluição das águas da Lagoa dos Pintos

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Figura 28: Rua sem calçamento e zona limite dos alagamentos

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Figura 29: Casas dos “moradores das águas”

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Figura 30: “Morador das águas” utilizando as águas poluídas da Lagoa dos Pintos como fonte de vida

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LISTA DE SIGLAS CHESF: Companhia Hidroelétrica do São Francisco IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IRA: Infecções Respiratórias Agudas PDM: Plano Diretor de Mossoró SEDETEMA: Secretária de Desenvolvimento Territorial e Ambiental UBS: Unidade Básica de Saúde

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SUMÁRIO CAPÍTULO 1................................................................................................................16 1. ADENTRANDO O “MORAR NAS ÁGUAS”............................................................16 CAPÍTULO 2................................................................................................................19 2. PRIMEIRAS ÁGUAS, PRIMEIROS POVOS, PRIMEIRAS MORADIAS..................19 2.1. O “MORAR NAS ÁGUAS” EM TEMPOS E TERRAS PASSADAS.....................20 2.2. O “MORAR NAS ÁGUAS” EM TEMPOS E TERRAS BRASILEIRAS.................30 CAPÍTULO 3................................................................................................................42 3. A OUTRA “FACE” DO “MORAR NAS ÁGUAS”.....................................................42 3.1. O VALOR DA MORADIA E SEUS PROCESSOS EM MEIO AS “ÁGUAS”.........50 3.2. A SEGREGAÇÃO “DAS ÁGUAS” E O ESTADO NESSE PROCESSO..............57 CAPÍTULO 4.................................................................................................................64 4. REALIDADE E PROPOSIÇÕES PARA O “MORAR NAS ÁGUAS”.......................64 4.1. OS PROBLEMAS DO “MORAR NAS ÁGUAS”...................................................64 4.2. A REALIDADE DOS “MORADORES DAS ÁGUAS”...........................................76 4.3. POSSÍVEIS “SOLUÇÕES” PARA O “MORAR NAS ÁGUAS”............................80 CAPÍTULO 5...............................................................................................................83 5. RENOVAÇÕES E CONSTATAÇÕES À BAILA DO CICLO DAS ÁGUAS............83 REFERÊNCIAS...........................................................................................................85 APÊNDICES...............................................................................................................88 APÊNDICE A – ROTEIRO DE ENTREVISTA COM MORADORES ANTIGOS DO BAIRRO........................................................................................................................88 APÊNDICE B – FORMULÁRIO SOCIOECONÔMICO APLICADO A ÁREA DE ESTUDO........................................................................................................................89 APÊNDICE C – ROTEIRO DE ENTREVISTA COM O AGENTE DE SAÚDE DA ÁREA ESTUDADA...................................................................................................................91 ANEXOS....................................................................................................................92 ANEXO A – FICHA DE ACOMPANHAMENTO DOS MORADORES DA ÁREA DE ESTUDO (DADOS DA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE).............................................92 ANEXO A – FICHA DE ACOMPANHAMENTO DOS MORADORES DA ÁREA DE ESTUDO (DADOS DA UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE) – VERSO DA FICHA..........93

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CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 1

1. ADENTRANDO O “MORAR NAS ÁGUAS”

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moradia é um dos bens na sociedade hodierna cujo acesso é seletivo (CORRÊA, 2002). Os que podem pagar por esta mercadoria, vivem em condições dignas, em espaços bem equipados de arrimos urbanos. Em contrapartida, os que não têm a possibilidade de pagar por uma casa adequada, com as condições mínimas de habitabilidade, estão demasiadamente expostos a piores condições de vida, de vivência e aos mais precários espaços. Essa variabilidade do poder ou não morar, origina espaços desconformes nos centros urbanos, nos quais, saltam aos olhos de quem os observam, contrastes tanto espaciais (forma) como sociais (essência). A condição do morar nas áreas margeadas por águas, ao que denominamos neste trabalho de “morar nas águas”, apesar de constituir-se uma prática comum, desde os primórdios da humanidade, é um dos exemplos explícitos dessas disparidades espaciais e ao mesmo tempo das (im)possibilidades do morar nos dias atuais. Esta condição é sinônimo do mais claro processo de estratificação social, que rebate aos espaços ocupados, os seus reflexos. Mora sob tais condições quem não tem como pagar por um espaço digno, um espaço com infraestrutura adequada, ou seja, “habitam as águas” e os espaços impróprios à vida, os que não têm como “comprar” sua segurança habitacional, seu bem-estar. Assim, contextualizados a partir da ideia de espaços desiguais e díspares, e das (im)possibilidades do morar frente às “limitações” capitalista, o presente trabalho discute o processo de ocupação de áreas susceptíveis a alagamentos para a construção de moradias, enfocando o fator socioeconômico como um dos elementos que implica na configuração de tal processo, bem como as consequências dessa prática tão comum entre as camadas mais pobres. A área de estudo escolhida para esse trabalho situa-se no bairro Costa e Silva, Mossoró, Rio Grande do Norte, especificadamente uma porção do bairro que é “marcada” periodicamente pelas inundações provenientes do transbordamento da Lagoa dos Pintos. O objetivo desse trabalho é, de forma mais geral, analisar como as condições socioeconômicas de uma determinada parcela da população, formada essencialmente por indivíduos de classe social baixa (fragmento do bairro Costa e Silva estudado), fazem com a mesma seja “coagida” a ocupar os espaços urbanos mais vulneráveis e inabitáveis (morar em áreas susceptíveis a alagamentos), bem como, demonstrar os reflexos que esse processo desigual traz para esse estrato da sociedade. De maneira mais específica, os objetivos desse trabalho são: explicitar o quanto a condição do “morar nas águas” no passado tinha uma conotação mais interligada à sobrevivência, a “dependência” do homem em relação à natureza, isso porque, seu arsenal técnico era insuficiente e/ou pouco desenvolvido para que os mesmos ultrapassassem os limites impostos pelo meio, diferentemente do que ocorre nos dias atuais, nos quais, esta condição é uma “imposição” do capitalismo frente à possibilidade do morar; discutir o fator socioeconômico como um dos elementos fundamentadores desta condição nos dias atuais; e analisar os reflexos da condição do “morar nas águas” para os que vivem em tal situação, tomando como base de estudo, a realidade analisada, bem como, propor possíveis soluções aos problemas encontrados nesse espaço.

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Para que os objetivos desta pesquisa fossem alcançados, foram desenvolvidas posturas metodológicas que tiveram como ponto de convergência a construção desse trabalho. Para tanto, foram realizadas pesquisas bibliográficas das fontes que demonstrassem afinidades com a temática da investigação. Estas pesquisas foram realizadas nas bibliotecas do município, especificadamente na da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e na Fundação Vingt-Un Rosado (Coleção Mossoroense). As visitas a esses estabelecimentos tiveram por objetivo, o levantamento de literaturas que abordassem a questão habitacional, na qual foram enfocadas as diversas escalas espaciais, do global ao local, e temporais dessa questão. Foram realizadas entrevistas (Apêndice A) com moradores antigos do bairro em estudo para que compreendêssemos como era o morar nesta área antigamente, ou seja, que fatores estavam implícitos na condição “morar nas águas” em períodos mais remotos nesse espaço. Em consonância com as entrevistas realizadas e de forma a estabelecer uma análise comparativa do morar em áreas alagadas antes e hoje, foram aplicados formulários socioeconômicos (Apêndice B) na área de estudo. A partir dos mesmos, foi realizado um levantamento dos aspectos socioeconômicos da área, bem como, uma caracterização dos principais problemas diagnosticados nesse espaço. Dessa investigação, foi realizada uma interligação entre a condição de vida desses indivíduos e a forma de ocupação nesse espaço; e a partir disso, foi possível analisar as nuances que existem implícitas na condição habitacional desse local. Além das posturas metodológicas citadas acima, ainda foi realizado o levantamento de dados gerais (Anexo A) sobre a área na Unidade Básica de Saúde do bairro, para a constatação dos principais problemas encontrados nesse espaço; uma entrevista (Apêndice C) com o agente de saúde responsável por essa localidade; e constantes visitas a área de estudo. A partir dessas posturas, foi possível diagnosticar os problemas encontrados na área, bem como, compreender a dinâmica que é estabelecida nesse espaço e entre os agentes que o compõem. O desenvolvimento deste trabalho esteve calcado na ideia de possibilitar a explicitação de um problema encontrado na maioria das cidades brasileiras, a partir de um olhar geográfico “local”, isso porque, o mesmo expõe um problema social que atinge uma parcela da população desse bairro e que afeta a dinâmica espacial da área em estudo, que por sua vez, também são detectados em outras áreas da cidade de Mossoró, alertando que esse não é o objetivo dessa pesquisa, bem como em outros espaços (outras cidades, regiões, países). Além disso, a produção desse trabalho baseou-se na possibilidade de uma contribuição teórica, isso porque, os estudos sobre moradia em áreas alagadas apresentam-se, de certa maneira, escassos no meio científico, pois debate-se constantemente a questão das moradias nas favelas, nos cortiços, nas áreas de encostas e as áreas vulneráveis a alagamentos normalmente são apenas citadas como locais de riscos para a população ou interligadas as enchentes (aos fatores físicos). Este trabalho apresenta ainda uma utilidade prática, pois o mesmo poderá ser apresentado aos governantes locais como forma de conhecer a realidade enfrentada pela população a partir de uma “ótica diferenciada”, e como forma de “conscientizálos” a aplicarem não só políticas de apoio a população, mas de prevenção, planejamento e intervenção as áreas afetadas.

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Como forma de pensar esta condição e as dinâmicas estabelecidas as suas margens, este trabalho foi organizado em três capítulos. No primeiro elaboramos um breve resgate histórico-geográfico da condição do “morar nas águas”, destacando o quanto essa condição foi de suma importância para o desenvolvimento dos povos, civilizações, cidades, bairros. Para isso, partimos de uma análise global, na qual foi destacada a importância dessa condição para o surgimento das primeiras cidades e civilizações, e em seguida, destacamos a importância dessa condição para o processo de formação territorial do Brasil. Para tanto, analisamos o processo de ocupação do Brasil, Nordeste, Rio Grande do Norte, Mossoró e o bairro em estudo (Costa e Silva) sempre focando a interligação desses processos com a proximidade das águas, ou seja, a “dependência” dessas dinâmicas com as áreas margeadas por águas. No segundo capitulo apresentamos a outra face da qual se reveste a condição do “morar nas águas”, ou seja, abordamos esta condição como umas das “imposições” capitalistas, uma (im)possibilidade do sistema frente à questão do acesso a moradia. Inserido nessas proposições, discutimos o “morar nas águas” a partir do valor de troca que a moradia apresenta nos dias atuais e as suas dinâmicas estabelecidas; bem como, a questão da segregação espacial (residencial - imposta) dessa área e a atuação ineficaz do Estado sobre tal condição. No terceiro capitulo abordamos os problemas encontrados na área estudada, fazendo correlações entre as ações praticadas pela comunidade e a falta “destas” em relação ao Estado. Nesse capitulo buscamos compreender o “morar nas águas” a partir das falas do que sobrevivem em tais situações e propomos algumas medidas para amenizar os problemas encontrados nesse espaço, sendo que as mesmas são passíveis de mudanças e de colaborações (novas sugestões). Destarte, o “morar nas águas” é, assim como o morar nas favelas, nas áreas de encosta, nos cortiços, a forma encontrada por uma enorme parcela da sociedade para resolver o problema habitacional. Porém, apesar de apresenta-se como uma solução, esta condição só fere ainda mais os indivíduos relegados pelo sistema, indivíduos que habitam as “águas escuras” de uma sociedade “marcada” pelos contrastes sociais, por chagas que dificilmente saram.

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CAPÍTULO 2 CAPÍTULO 2

2. PRIMEIRAS ÁGUAS, PRIMEIROS POVOS, PRIMEIRAS MORADIAS

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o longo da história da humanidade são inúmeras as formas e os espaços destinados a moradia. Passando pelas cavernas habitadas pelos homens do período pré-histórico; pelas tendas e cabanas armadas no deserto pelos povos nômades; pelos castelos e fortalezas construídos no período medieval; e pelas mansões e barracos erguidos sobre o mesmo espaço nas atuais cidades; a condição “morar”, que nada mais é do que uma necessidade inerente aos indivíduos (RODRIGUES, 2003), vem sofrendo metamorfoses ao longo da história e dos espaços. Dentro desse contexto, a moradia deixou de ser apenas uma necessidade do homem, que as construíam para se proteger das intempéries do meio, e ganhou uma nova roupagem, que tem em seu cerne, ligação direta com o sistema capitalista vigente. A moradia passou a ser uma mercadoria, na qual é dada a mesma um valor-de-troca, sendo que o seu “uso” dependerá da possibilidade ou não que o sujeito terá de pagar por esse bem, ou seja, ela passa a ser um bem cujo acesso é seletivo (CORRÊA, 2002) e reflexo do status social de cada indivíduo. Este caráter alocado a moradia impossibilita a uma grande maioria da população mais pobre/carente - o acesso à habitação digna e adequada, sendo que as mesmas vêem-se sujeitas a ocuparem os lugares mais inapropriados e inabitáveis para se morar, tais como áreas de encostas, favelas, cortiços, áreas susceptíveis a alagamentos entre outros exemplos. Analisando o caso específico das moradias em áreas vulneráveis a alagamentos, sendo este o objeto de estudo central deste trabalho, percebe-se que esta problemática não é um fato recente, mas um episódio que vem sendo escrito desde o surgimento do homem. Mudaram-se as formas e os contextos da condição do “morar” durante o transcorrer do tempo, porém a moradia “nas” águas perdurou até os dias atuais, com as especificidades histórico-geográficas de cada momento. Um exemplo deste fato encontra-se no bairro Costa e Silva na cidade de Mossoró/Rio Grande do Norte (área de estudo), pois, o mesmo espaço as margens da Lagoa dos Pintos que possibilitou o “nascimento” e/ou ocupação desta comunidade no passado recente, atualmente, apresenta-se como reflexo da “imposição” do sistema capitalista sobre a sociedade, ou seja, de uma sociedade que vive marcada pela desigualdade social, que transpassa sua imagem aos espaços ocupados. Assim, antes de se debruçar diretamente sobre esta questão a partir dos elementos socioeconômicos que implicam atualmente na configuração desta problemática, cabe nesse primeiro capítulo, um breve resgate histórico-geográfico que possibilite à compreensão do processo evolutivo e das diferentes contextualizações que são ou que foram dadas à condição do “morar nas águas”.

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2.1. O “MORAR NAS ÁGUAS” EM TEMPOS E TERRAS PASSADAS

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om o transcorrer da história, os homens passaram a utilizar técnicas que foram facilitando o seu convívio com o meio natural. No período caracterizado como pré-histórico, especificadamente no período paleolítico, que se estendeu da origem da humanidade até cerca de 10 mil a.C., eles viviam apenas da coleta de frutos e da caça de animais para sua sobrevivência; não produziam excedentes; não possuíam um espaço específico; e suas moradias eram provisórias, pois os mesmos utilizavam as cavernas como forma de abrigo para se protegerem momentaneamente dos agentes do meio, como chuva, vento e sol, bem como para outras utilidades, como por exemplo, o acasalamento e rituais simbólicos (MUMFORD, 1982). Segundo Carlos (2001), a relação desses povos com a natureza era de “dependência” e de passividade, de forma que, recuando ainda mais na história, percebe-se que os indivíduos eram cada vez mais condicionados pelos elementos da natureza. No período neolítico, que se estendeu de 10 mil a.C. (fim do paleolítico) até cerca de 6 mil a.C., percebe-se que os povos apresentaram mudanças significativas no seu modo de vida. Eles deixaram de ser nômades, fixaram-se em determinadas regiões e passaram a viver na condição de ser ativo perante a natureza. Estas mudanças foram possíveis graças ao desenvolvimento e aprimoramento das técnicas, mesmo que primitivas, tais como o uso da cerâmica e de certos metais, que agregado principalmente ao desenvolvimento (início) da agricultura e da domesticação dos animais, proporcionaram mudanças significativas tanto do ponto de vista social como espacial, pois segundo Carlos (2001, p. 31) “[...] ao mesmo tempo em que através do processo produtivo a sociedade produz sua existência, ela produz o espaço”. Este período da história da humanidade, denominado por Santos (2004) e por outros autores de meio natural1, foi caracterizado pela utilização da natureza de maneira equilibrada e sem grandes transformações, ou seja, “[...] as técnicas e os trabalhos se casavam com as dádivas da natureza” (SANTOS, 2004, p. 235). Nesse contexto evolutivo, percebe-se a inserção da condição do “morar nas águas” desde os primórdios da humanidade, pois, analisando que, a agricultura atrelada a outros fatores influenciaram a fixação/ocupação do homem no espaço, esta só poderia ser desenvolvida naquele período, nas áreas que apresentassem disponibilidade de recursos hídricos. Assim, os primeiros espaços ocupados pelos povos primitivos que formariam adiante as primeiras civilizações, foram às margens das águas (rios, mares, oceanos), ou seja, foram exemplos concretos desta condição do “morar nas águas”. Ainda inserido nesse momento histórico de transformações sociais e espaciais, surgem às primeiras aglomerações humanas, as aldeias e as moradias primitivas, sendo que estas foram indispensáveis ao surgimento das primeiras cidades e 1

Santos (2004) ainda ressalta a existência de três outros períodos, a saber: o meio técnico caracterizado pela inserção e/ou construção de um espaço mecanizado (presença de máquinas no processo produtivo), sendo que esse processo ocorre espacialmente concentrado em determinadas áreas do globo e de maneira a intensificar a produção de mercadorias; o meio técnico-científico, ocorrendo nesse período o casamento entre desenvolvimento das técnicas e da ciência; e o meio técnico-científico-informacional, formado a partir da conjunção desses três elementos e caracterizado pela expansão/aumento do mercado/comércio, formando nesse caso, um espaço sem barreiras, no que se diz respeito as trocas de mercadorias, valores e ideias, estando esta dinâmica interrelacionada aos interesses do sistema capitalista vigente.

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civilizações. Sobre tais fatos e a relação entre o “morar” e as águas, Mumford (1982, p.23) enfatiza que “[...] a mais primitiva moradia que já se descobriu na Mesopotâmia, segundo Robert Braidwood, é um buraco cavado no solo e ressecado pelo sol até ganhar a consistência de tijolos”, sendo esta, uma prova do aprimoramento das técnicas (uso da cerâmica primitiva) desenvolvido por esses povos e um vestígio contundente do “morar nas águas”, pois, para o desenvolvimento da técnica da cerâmica é necessário a utilização de água para moldar a argila. Carlos (2001) também enfatiza esta evolução dos povos do neolítico e demonstra a interligação deles com “águas”, a partir do momento em que a mesma aponta a importância dos rios para o desenvolvimento da agricultura e por consequências dos povos. A referida autora destaca: Por volta de 8000 a.C. o homem aprofunda suas relações com o meio circundante aproveitando a terra para o plantio, iniciando um rudimentar principio de organização. Aproximadamente no ano de 6000 a.C., inovações técnicas, tais como o arado de relha, aliadas ao deslocamento para os vales fluviais [...] cuja inundação deixava – em extensas áreas alagadas um lodo bastante fértil, dão à agricultura um notável impulso (CARLOS, 2001, p. 60).

E ela ainda ressalta: Ao fixar-se num pedaço de terra o agricultor cria uma propriedade, surge a tribo sedentária, a qual deve manter-se unida para defendese dos nômades e camponeses sem terra. Do acampamento de barracos surge a aldeia onde muitos homens vivem num pequeno espaço, aproveitando a fertilidade da região (CARLOS, 2001, p. 61).

Outro vestígio expressivo dessa condição do “morar nas águas” é destacado por Mumford (1982, p. 25), quando o mesmo relata que, a maior parte do que se “[...] sabe da estrutura e do modo de vida das povoações e aldeias neolíticas vem dos restos rudes conservados em pântanos poloneses, no fundo de lagos suíços, na lama do delta egípcio [...]”. Assim, percebe-se que, desde o período mais antigo a ocupação de áreas alagadas já era uma prática eloquente entre os povos ditos não-civilizados, seja para o desenvolvimento de certas atividades ou simplesmente para morar. Esses homens primitivos continuaram com o processo de aprimoramento das técnicas, transformando o espaço no qual estava inserido. Estabeleceram novas relações sociais e uma divisão do trabalho mais expressiva; começaram a desenvolver a escrita, mesmo que rudimentar; e produziram excedentes alimentares, sendo que a partir deste excesso, foi iniciada a prática da troca de mercadorias, constituindo-se uma forma de mercado. Inseridos nesse leque de mudanças, surgem o que se pode chamar de primeiras civilizações – já que, segundo Burns; Lerner; Meacham (1997) a civilização é um estágio no processo de desenvolvimento humano em que a escrita se faz presente, bem como, há o progresso na arte e na ciência; e existe uma organização social solidificada, capaz de resolver problemas de cunho político, econômico e social – bem como outros aspectos peculiares, tais como, as primeiras cidades, a divisão de classes entre outros acontecimentos. Essas transformações citadas, específicas do período de passagem da Pré-História para a Idade Antiga, não ocorreram dispersas pelo globo, mas concentradas em certas áreas que se apresentaram dotadas de certas vantagens geográficas. Partindo-se dessa contextualização, desenvolver-se-á adiante, um resgate histórico sobre o surgimento dessas primeiras civilizações, enfocando o contexto geográfico na qual as

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mesmas estavam inseridas, sendo que no caso em estudo, a abordagem voltar-se-á especialmente para a compreensão do “morar nas águas”. Existem divergências quanto à certeza do surgimento da primeira civilização. Uns argumentam que, a primeira civilização apareceu nas margens do rio Nilo (Civilização Egípcia), e outros afirmam que, a primeira civilização surgiu nas áreas margeadas pelo rio Tigre e Eufrates (Civilização Mesopotâmica). Mas, apesar das controvérsias, uma idéia central converge a um só ponto: foi às margens de águas de rios que os povos primitivos deram seus primeiros passos rumo à cultura civilizada. Há uma explicação para o fato dessas civilizações terem surgidos às margens desses rios, e essa resposta está nas condições geográficas em que as mesmas estavam inseridas. Ambas as civilizações, tanto egípcia quanto mesopotâmica, estavam localizadas em áreas extremamente secas, de clima semiárido, e necessitavam das águas dos rios para o desenvolvimento da agricultura e para a domesticação dos animais. Desta forma, Spósito (2000, p. 18) aponta que as primeiras cidades e as primeiras civilizações “[...] tiveram suas localizações determinadas pelas condições naturais [...] em que o desenvolvimento técnico da humanidade ainda não permitia a superação destas imposições”. Partindo-se para uma análise mais detalhada dos fatos histórico-geográficos, a Civilização Mesopotâmica, considerada por muitos historiadores como a mais antiga da humanidade, surgiu às margens dos rios Tigre e Eufrates, tendo em seu próprio nome o reflexo de sua posição geográfica – Mesopotâmia significa em grego “terra entre rios” (meso = no meio, potamos = rio). A proximidade dessa civilização com os rios citados possibilitaram a produção de alimentos, bem como, o desenvolvimento do comércio (as águas desses rios eram utilizadas como “estradas”, rotas para o comércio de mercadorias), que em conjunto, constituíram-se a base da economia mesopotâmica. As mesmas águas que deram o alimento para a subsistência dos povos mesopotâmicos e os fizeram surgir como civilização, também permitiu o seu desenvolvimento socioeconômico, bem como avanços espaciais, isso porque, foi nessa região que surgiu a primeira cidade – Ur, (CARLOS, 2001; SPÓSITO, 2000), bem como outras de grande destaque, como por exemplo, a cidade da Babilônia. Ainda inserido nessa questão, vale salientar que, essa região foi um grande centro de difusão do fato urbano, refletindo seus aspectos para outras áreas do globo, como por exemplo, o Egito Antigo (Tebas e Mênfis), vale do rio Indo (Mohenjo-Daro), o interior da China (Pequin e Hang-Chu) entre outros pontos (SPÓSITO, 2000). As figuras adiante trazem uma representação expressiva dessa relação existente entre a origem da civilização mesopotâmica e de suas cidades com a “dependência” e importância das águas para o seu desenvolvimento. A figura 01 representa a cidade da Babilônia, estruturada as margens do rio Eufrates e com grande representatividade na região, já que era o maior centro comercial que ligava o Oriente e o Ocidente (CARLOS, 2001). Nela, pode-se observar as construções erguidas as margens do rio Eufrates, tais como templos e moradias, ou seja, evidencia-se que a condição do “morar nas águas” esteve presente no desenrolar da história dos homens e ao mesmo tempo, dos espaços. A figura 02 (página 24) representa a planta “urbana” da cidade de Nipur, cortada também pelo rio Eufrates e seus canais. Esta figura apresenta uma riqueza de detalhes, na qual são demonstradas certas atividades praticadas ao longo do rio, a

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exemplo da agricultura (colheita); a disponibilidade de alimentos (peixes) provenientes das águas desse rio; as moradias construídas próximas as margens desse rio (parte superior da figura). Em síntese, estas duas figuras mostram a valorosa contribuição que o “morar nas águas” trouxe para o desenhar da história do homem e dos espaços.

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Figura 01: Planta da cidade de Babil么nia (Mesopot芒mia) Fonte: (Sp贸sito, 2000, p. 20)


Figura 02: Planta da cidade de Nipur (Mesopotâmia) Fonte: (Mumford, 1982, p. 142)

De maneira análoga a área da Mesopotâmia, o povo egípcio nasceu para a cultura civilizada a partir das águas, dos fluidos que correm e cortam uma região de extrema aridez (desértica) e de temperaturas expressivas, eles “surgem” a partir do rio Nilo. São muitos os relatos sobre a importância desse rio para o povo egípcio, destacandose nesse caso, o pensamento do historiador grego Herótodo (VI a.C.), que refletindo sobre a condição dessa civilização em relação a esse rio, diz ser o Egito uma “dádiva do Nilo”. Os versos do Hino a Atom, do reinado do Faraó Ikhnaton (BURNS; LERNER; MEACHAM; 1997, p. 67), também demonstram essa imponência do Nilo. Nele percebe-se a “responsabilidade” que o rio Nilo teve para o surgimento da civilização egípcia, bem como, a conexão e a dependência desse povo em relação a esse recurso natural. O fragmento desse hino exposto a seguir, comprova as alusões feitas em relação ao Nilo e o quanto esse rio foi importante na formação do povo egípcio. Tu crias o Nilo no Mundo Inferior, Tu o trazes como desejas, Para manter vivo o povo do Egito. Pois tu os criaste para ti mesmo, És o senhor de todos eles, tu que fatigas por eles; Tu, o sol do dia, grandioso na glória.

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O rio Nilo proporcionou a civilização egípcia, terras férteis para o desenvolvimento da agricultura, sendo esta atividade, a base do sistema econômico dessa região (BURNS; LERNER; MEACHAM, 1997); rotas para o comércio dos excedentes produzidos, como por exemplo, o trigo; subsídios para o desenvolvimento da indústria, dentre elas as interligadas a construção naval e a manufatura de cerâmicas. Em síntese, ele deu a esse povo a possibilidade de escrever suas marcas na história da humanidade. É interessante destacar que, essas mesmas águas que deram o sopro da “vida” para a cultura civilizada nessas duas regiões, a partir da fertilidade dos solos provenientes da matéria orgânica (húmus) depositada as suas margens, também fizeram as mesmas sofrerem com as forças da natureza. As inundações periódicas assolavam estas civilizações colheita após colheita, devastando suas terras, lavouras e construções ribeirinhas. Porém, essas civilizações mostraram-se amplamente desenvolvida cientificamente para esse período, no sentido em que, utilizando sua criatividade, inteligência, cooperação, capacidade de organização e dinamismo, elas desenvolveram técnicas que permitiram o convívio “pacifico” entre os homens e a natureza. Dentre essas técnicas, destacam-se as hidráulicas, tais como as construções de diques e canais, que além de livrá-los das inundações, também permitiam a ampliação das áreas a serem cultivadas e armazenagem dessas águas para futuros períodos de estiagem. Os trechos abaixo representam de maneira expressiva essa relação mantida entre os povos civilizados e o meio natural, relação de dependência e ao mesmo tempo de sabedoria. Neles, Mumford (1982) enfatiza a ação da natureza, dos rios, sobre as civilizações egípcias e mesopotâmicas e como as mesmas se adaptavam a essas “imposições”: Se os habitantes, em verdade, não moldavam a terra de forma ordenada, a natureza o fazia à sua própria maneira, mais crua, pela inundação anual com formações sedimentares, no vale do rio Nilo, ou pela enchente e violenta destruição, vedando a passagem e mudando o curso de rios, no vale do lento Eufrates e do turbulento Tigre (p. 70).

O referido autor ainda aponta que: Para evitar os extremos do deserto e do charco, os habitantes da Mesopotâmia, começando provavelmente em aldeias isoladas, passaram a construir redes locais de valas de irrigação, canais e locais de moradia junto de represas, fazendo o uso de madeira e do betume do vale superior, no norte, como abrigo e proteção contra as águas. Esse domínio da água foi o preço da sobrevivência comunal; isso porque havia uma natural ameaça de escassez de água, no começo da estação de crescimento, e a probabilidade de tempestades e enchentes no tempo da colheita. A produtividade agrícola apoiava-se, ali, na incessante vigilância e no esforço coletivo (MUMFORD, 1982, p. 70).

Outras civilizações, ainda nesse período da Idade Antiga, “nasceram” interligadas a possibilidade de morar nas proximidades de águas, sejam elas de rios ou de certos mares. Pode-se destacar as seguintes civilizações e a relação direta delas com as “águas”: A civilização Fenícia surgiu entre as montanhas e o mar Mediterrâneo. Apesar de sua origem não está relacionada diretamente a agricultura, pois os solos dessa região não apresentavam expressivos índices de fertilidade (ausência de

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rios), esse povo teve nas águas a fonte para o seu desenvolvimento, pois, o mar Mediterrâneo serviu de base para o desenvolvimento da atividade pesqueira e do comércio (navegações), sendo esta, uma região de grande expressividade nas rotas comerciais práticas durante esse período. A civilização Persa também se desenvolveu as margens das águas, nas margens do Golfo Pérsico. Teve sua economia baseada no comércio, tanto marítimo como terrestre, e na agricultura, provenientes dos vales férteis do interior, responsáveis pela subsistência desse povo (BURNS; LERNER; MEACHAM, 1997). A expressividade desse povo foi tão significativa na história que, eles conquistaram a Babilônia, a Fenícia, o Egito entre outras regiões. A civilização Hebraica também teve a sua origem estabelecida a partir das influências das “águas”. Nascida nas proximidades do Mar Mediterrâneo e cortado pelo rio Jordão, esse povo teve sua base econômica solidificada a partir da prática da agricultura, proveniente das terras férteis a margem desse rio, e a criação de gado. Mais duas significativas civilizações surgem das águas: a civilização helenística (Grega) tendo sua origem nas águas do mar Egeu e nos mares Mediterrâneo e Jônico; e a civilização romana, localizada às margens do rio Tibre, originada a partir do encontro entre mercadores. Em ambos os casos, tinham-se como atividades econômicas embasadoras, a agricultura e o comércio, sendo que ambas as atividades estavam interligadas as “águas”. A partir da figura 03, observa-se e comprova-se espacialmente que as áreas de convergência das primeiras civilizações citadas tiveram, em sua real essência, profundas dependências com as águas, sejam elas de rios, como a egípcia e a mesopotâmica, ou de mares, como as civilizações persas e fenícias. Nesta figura são destacadas as regiões que serviram de berço para a cultura civilizada, sendo que, foi dada maior ênfase apenas as primeiras civilizações, Egípcia e Mesopotâmica, e localizadas algumas das outras que foram trabalhadas de forma subsequente.

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Figura 03: Localização das primeiras civilizações Fonte: Adaptado de (Filgueira, 2008, p. 25)

Da Idade Antiga, que se estendeu da invenção da escrita até a queda do império romano, adentra-se no período conhecido por muitos pensadores como Idade das Trevas – Idade Média. Nesse momento, o mundo, principalmente “europeu”, viveu sobre o modo de vida feudal, caracterizado segundo Sodré (2002), por uma sociedade marcada pelos grandes senhores de terra, na qual o Estado estava aos seus serviços e o rei era apenas mais uma figura ilustrativa. Mas, qual era a relação desse período com a condição do “morar nas águas”? Segundo Leray (1982) apud Silva (1998), a Idade Média apesar de ser “taxada” como período das trevas (de atraso), a mesma também foi caracterizada com a Idade das Águas, isso porque, as águas serviram de ponto de reencontro entre as principais atividades deste período, ou seja, o transporte hídrico tornou-se essencial para a vida econômica nesse momento da história. Porém, a questão do “morar nas águas” nesse período não tem ligação somente com a possibilidade de transporte, pois, os cursos d’águas também foram essenciais para a fixação dos povos nesse momento histórico, pois, conforme (SILVA, 1998, p. 31) “[...] nos séculos X e XI, as cidades se formavam às margens dos cursos d’água e, posteriormente, os pântanos foram sendo drenados e aterrados, servindo para novas ocupações”. Dessa assertiva, percebe-se que da mesma forma em que, as águas colaboraram na antiguidade para o desenvolvimento dos primeiros povos, a mesma perdurou no tempo levando as diferentes contextualizações históricas, a possibilidade de desenvolvimento. Ainda cabe destacar, de maneira mais específica nesse período, a importância das águas para a economia, pois a mesma colaborou para o desenvolvimento de

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atividades industriais rudimentares já desenvolvidas nesta época, como se pode observar a partir dos trechos relatados por Silva (1998), no qual o mesmo destaca: A água foi se tornando, cada vez mais, elemento vital para o desenvolvimento econômico. Tal fato pode ser comprovado através da implantação dos moinhos, especialmente projetados para fornecer força motriz, impulsionando as atividades industriais de transformação, na época (p. 31).

O referido autor ainda enfatiza: A água era o ‘nervo’ econômico da urbanização pré-industrial e sem ela não seria possível o desenvolvimento de atividades como moagem, tecelagem, tinturaria, cortume, nem a existência das ‘comunas’. A economia desse período coincide com a concentração das habitações e a [infraestrutura] artesanal, onde o abastecimento era feito pela captação direta da água nos rios (SILVA, 1998, p. 32).

A partir da figura 04, de Giancarlo Costa Milão, pode-se observar a relação desse período com as águas, pois nela são expostas o desenvolvimento de atividades predominantes daquele momento e naquele espaço (Feudo) – a agricultura e a criação de gado - bem como a visualização, no canto direito superior da imagem, de moradias, ambos situados nas proximidades do curso d’água.

Figura 04: O “morar nas águas” na Idade Média Fonte: (Filgueira, 2008, p. 72)

Seja na pré-história, antiguidade ou na Idade Média, o “poder” das águas sempre esteve presente ao longo do transcorrer da história do homem, estabelecendo possibilidades de vida social, econômica, cultural e política aos povos de cada período. Dando continuidade a esse resgate histórico-geográfico do “morar nas águas”, o foco desse estudo centrar-se-á em outras escalas temporais e espaciais. No próximo subcapítulo deste trabalho, a abordagem retrospectiva dessa condição do morar terá uma ótica mais especifica, na qual o desenvolvimento desta temática ocorrerá a partir do contexto nacional, variando de forma decrescente essa análise, ou seja, partir-se-á

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do estudo da colonização do Brasil (primeiros povos, processo de colonização), que está ligada diretamente ao processo de ocupação do Nordeste; depois, a ocupação do Rio Grande do Norte e da cidade de Mossoró, e por fim, a área objeto de estudo dessa pesquisa – o bairro Costa e Silva, sempre interligando essas dinâmicas espaciais ao foco principal desta análise, ou seja, sobre a condição do “morar nas águas”.

2.2. O “MORAR NAS ÁGUAS” EM TEMPOS E TERRAS BRASILEIRAS

A

té meados do século XV, os povos europeus tinham sua concepção de mundo apenas centrada nas regiões habitadas pelos mesmos. Marcados por uma série de mutações, entre elas pode-se destacar a unificação do poder dos reis; criação de Estados modernos (monarquias nacionais); o surgimento do capitalismo mercantil e de um novo estrato social ligado a ele, a burguesia; e avanços na arte, nas técnicas e nas ciências, eles “passaram” da denominada Idade Média para a Idade Moderna. Foi inserido nesse contexto de mudanças, que os europeus “lançaram-se” ao mar, tendo como razões para tal ato, fatores econômicos, dentre eles, a expansão do comércio e a obtenção de metais preciosos. Nessa viagem em busca de novos “horizontes” econômicos, os europeus encontraram terras ainda não descobertas (na ótica europeia), povos ditos “não-civilizados” e riquezas naturais ainda não exploradas, estando o Brasil, por acaso ou não, na rota dessa odisseia. Dentro desse quadro histórico de expansão dos europeus, as terras brasileiras juntamente com o seu povo nativo (os indígenas), foram “descobertas”, (re)ocupadas e exploradas com a chegada desses povos, principalmente os portugueses. Suas riquezas naturais, tais como pau-brasil, ouro, pedras preciosas e alimentos tropicais, foram extraídas de suas terras para atender aos interesses externos, ou seja, para abastecer o mercado europeu (ANDRADE, 1981). Porém, essa onda de dominação das terras e riquezas brasileiras não foi iniciada de forma dispersa por esse território, pelo contrário, houve um processo de ocupação gradual e extremamente interligado ao desenvolvimento de certas atividades econômicas. A condição de “morar nas águas” teve, inserido nessa dinâmica, um papel primordial no desenvolvimento de todo esse processo, pois, os primeiros pontos (vilas, cidades e povoados) de desenvolvimento desse espaço surgiram em áreas com disponibilidade d’água, seja para os fins sociais (sobrevivência) e/ou econômicos, como se observará adiante. Inicialmente, a ocupação do Brasil começou pela zona litorânea (Região Nordeste litoral). As vantagens naturais dessa área, tais como a posição geográfica próxima aos grandes centros “dissipadores” da colonização e a presença de uma intensa floresta úmida, fizeram com que os colonizadores desenvolvessem a extração e a exportação de madeira, em especial o Pau-Brasil, dessa mata para a Europa. De maneira paralela a esta atividade, ocorreu neste mesmo espaço, à implantação da cultura canavieira, que conforme Becker e Egler (1993), teve seu desenvolvimento margeado por três fatores principais, a saber: primeiramente, o desmate da floresta existente nessa área fornecia madeira e lenha para a construção dos engenhos de açúcar; segundo, os povos nativos como fonte de trabalho, apesar de ter sido um prática frustrada com o tempo; e o terceiro fator, as várzeas úmidas litorâneas, que

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proporcionaram solos férteis (provenientes nas inundações periódicas) e garantiam a possibilidade de escoamento fluvial da produção açucareira. Na contextualização destes fatores, é perceptível que desde o inicio da ocupação do território brasileiro, especificadamente o litoral nordestino, a questão das “águas” já entra em destaque, fornecendo subsídios ao desenvolvimento da atividade canavieira e dos povos. Andrade (2005) enfatiza essa possibilidade de “morar” nas proximidades das águas e demonstrar como o desenvolvimento de certas atividades econômicas esteve naquele momento ligado a esse fator, podendo ser vista tal assertiva no seguinte trecho: Imitando a natureza e seguindo as imposições de suas forças, o homem ao colonizar a região derrubou a mata, drenou as várzeas encharcadas e construiu casas, engenhos e canaviais. [...] as lagoas marginais do principal rio do nordestino, que recebem as águas do mesmo no verão, durante a enchente, e que as vão devolvendo ao rio à proporção que o nível da enchente vai baixando, são áreas escolhidas pelos habitantes ribeirinhos para a cultura (p. 38-42).

Analisando a expressividade dessa região (litoral) atualmente; destacada por Andrade (2005) como sendo a área mais importante do Nordeste por causa da sua alta concentração populacional, econômica e industrial; percebe-se que, a mesma apresenta-se atualmente com essa configuração graças aos reflexos do processo iniciado com a ocupação territorial do Brasil, estando esse, correlacionado a atividade econômica desenvolvida na área, que, por conseguinte, teve relações diretas com as condições geográficas, entrando em destaque nesse caso, a condição do “morar nas águas”. A conquista das terras brasileiras pelos colonizadores portugueses não se restringiu somente ao litoral, pelo contrário, os mesmos avançaram nas terras interioranas e transformaram profundamente esses espaços, sendo que, a ocupação dessa região, o sertão em especial, teve como principal fator impulsionante, o desenvolvimento da pecuária. No inicio, essa atividade era desenvolvida nas vizinhanças das grandes culturas canavieiras, isso porque, ela era uma peça-chave ao desenvolvimento da produção de açúcar, pois, da mesma se obtinha a força de trabalho dos animais (essencial nos engenhos), couro e a carne (fonte de alimentação para os povos) (BECKER; EGLER, 1993). Entretanto, a atividade canavieira via-se em constante crescimento e necessitava ocupar novas terras para continuar seu processo de expansão. Diante dessa situação, a pecuária foi “empurrada” para as terras do interior, isso porque, o gado tinha como ser transportado até a zona mercantil (litoral). Inserindo-se nesse contexto, dos dois principais centros geradores e, por conseguinte, dissipadores da pecuária - Salvador e Olinda - saíram diversos rebanhos de gado para áreas do interior, que tinham como rumo principal, a terras do sertão e do agreste nordestino e o sul do Brasil, que posteriormente ficaria conhecida pelas famosas charqueadas (comércio de carne salgada). No sertão nordestino, região caracterizada como uma zona de clima semiárido, com poucas chuvas, escassez de água e temperaturas relativamente elevadas, existindo poucos rios permanentes, o desenvolvimento da pecuária esteve diretamente relacionado à condição do “morar nas águas”, isso porque, as primeiras fazendas de gado, conhecidas por ribeiras, tiveram suas origens, pelas “necessidades” geográficas

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da região, nas margens das águas de alguns rios, que posteriormente tornaram-se os primeiros povoados, vilas e cidades. Novamente, as águas que acarretam problemas atualmente, foram essenciais ao surgimento e ao povoamento de diversos espaços nas mais diferenciadas escalas espaciais. A ocupação dessa área do Nordeste foi marcada por muita violência, caracterizada principalmente por “guerras” disputadas em índios e colonizadores – Guerra dos Bárbaros. Essas batalhas tinham em sua essência, ligação direta com a disputa por terras férteis, geralmente localizadas nas margens de rios, sendo perceptível nesse contexto, a importância da questão das águas, ou seja, do morar entorno de áreas margeadas por águas. Sobre essa questão, Andrade (2005, p. 186) informa que “[...] os vários grupos de indígenas que dominavam as caatingas sertanejas não podiam ver com bons olhos a penetração do homem branco que chegava com o gado, escravos e agregados e se instalava nas ribeiras férteis [...]” e nesse processo de ocupação, o referido autor ainda expõe que, os colonizadores “[...] construíam suas casas, levantavam currais de pau-a-pique e soltavam o gado no pasto, afugentando os índios para as serras ou para as caatingas dos interflúvios, onde havia falta d’água durante quase todo o ano” (p. 186). Outras atividades econômicas desenvolvidas nessa região tiveram ligações com as águas, dentre elas cita-se, a atividade salineira, que agregada à pecuária, fez surgir às famosas oficinas de carne seca, responsáveis naquele momento, juntamente com outras atividades econômicas, pelo surgimento de várias cidades, como poderá ser observado mais adiante com o detalhamento da ocupação do Rio Grande do Norte e o surgimento da cidade de Mossoró. À porção do Nordeste localizada mais ao oeste do litoral, conhecida como a subregião do Meio-Norte, também apresentou em seu processo de ocupação, relações diretas com as “águas”, no sentido em que, nessa área foi desenvolvida a pecuária nas margens dos rios, bem como outras atividades agrícolas, tais como, a canavieira, fumo, frutas entre outros (ANDRADE, 2005). Em síntese, o processo de ocupação do Nordeste, que ocorreu em consonância com a colonização do Brasil, foi marcado por dinâmicas econômicas que impregnaram especificidades históricas e geográficas a cada área, estando à condição do “morar nas aguas”, presente de forma intensa no processo de configuração espacial desse território. Porém, a colonização do Brasil estendeu-se a outras áreas, podendo-se destacar outro pólo de ocupação ocorrida nesse território a partir do século XVIII, caracterizado essencialmente pela tomada das terras pela atividade mineradora. Essa atividade, desenvolvida significativamente nas terras do sul, assim como as outras citadas até o momento, também “brotou” nos lugares com disponibilidade d’água, sendo a mesma realizada nos aluviões e nas minas. Essa atividade promoveu a multiplicação de diversas cidades, todas situadas próximas as áreas de exploração, sendo que o fator impulsionante desse fato estava na possibilidade de exploração de tal atividade pelos diversos segmentos da sociedade daquela época, pois essa atividade tinha a possibilidade de ser desenvolvida tanto de forma artesanal como a partir de grandes unidades extrativistas (BECKER; EGLER, 1993). Como forma de exemplificar detalhadamente a dependência e a importância do “morar nas águas” no contexto da colonização e ocupação do Brasil em períodos pretéritos, desenvolver-se-á uma análise do processo de ocupação do território norte-riograndense, focando em específico, seus principais fatos histórico-geográficos e

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mantendo sempre o desenvolvimento desse resgate centrado na temática estabelecida como objeto de estudo. A ocupação do Rio Grande do Norte ocorreu inicialmente a partir do desenvolvimento de duas atividades econômicas já citadas anteriormente, a pecuária e a cultura canavieira. Cada uma dessas atividades surgiu em pontos específicos desse território, porém, em ambos os casos, observa-se a importância dos cursos d’águas para a constituição espacial dessas atividades, e consequentemente das aglomerações humanas. O povoamento desse território deu-se a partir do desenvolvimento da cultura canavieira na parte litorânea e pela pecuária na parte sertaneja (ANDRADE, 1981). Esta primeira atividade adentrou-se no território norte-rio-grandense a partir da expansão da mesma por novas terras, provenientes originalmente das terras pernambucanas. A figura 05 representa o processo de ocupação das terras potiguares, e nela é possível observar que, o processo de expansão da cultura canavieira teve como rota de dispersão principal, as margens dos rios, destacando-se entre eles, os rios Curimataú, Trairi, Potengi e Ceará-Mirim. O desenvolvimento de engenhos nessas áreas fluviais, trouxe carregado consigo, as fontes para o aparecimento de várias cidades ao longo dessa área, citando-se como exemplos, as cidades de Natal, Ceará-Mirim, Canguaretama entre outras. Percebe-se desta forma que, estes espaços tiveram como alicerce de sua configuração espacial, o desenvolvimento da cultura canavieira, que por sua vez, como já foi destacado anteriormente, esteve imbricada diretamente ao processo de ocupação das áreas próximas as margens de rios, ou seja, a condição do “morar nas águas”.

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Figura 05: Processo de ocupação do território norte-rio-grandense Fonte: Adaptado de (Carvalho; Felipe, 1999, p. 11)


Agregada a essa expansão da cultura canavieira ao longo do litoral, ocorreu no espaço norte-rio-grandense neste período, o processo de expansão para o oeste das atividades pastoris. Essa expansão ocorrida na área sertaneja teve como rota principal, os rios dessa região, entrando em destaque, os rios Apodi-Mossoró e Piranhas-Açu, como se observa na figura 05, página 35. Nessas áreas de desenvolvimento da pecuária apareceram as primeiras fazendas de gado, estando estas localizadas também as margens desses rios. Essas fazendas serviram de base para o surgimento de várias cidades do Rio Grande do Norte, como por exemplo, a cidade de Mossoró, que será detalhada mais adiante, entre outras, como por exemplo, Açu e Apodi. Sobre a importância dessas atividades citadas para a organização do Rio Grande do Norte, Felipe e Carvalho (1999) destacam: Assim, surgiram as primeiras vilas e povoados, no litoral sul, nas proximidades dos engenhos de açúcar, e, no sertão, nas imediações das fazendas de gado. Muitas cidades do nosso Estado se formaram a partir dessas vilas e povoados, locais de moradia das pessoas que trabalhavam nos engenhos de açúcar e nas fazendas de gado (p. 10, grifo nosso).

Outras atividades também tiveram grande expressividade na ocupação desse território, principalmente na área do sertão, citando-se como exemplos, a cultura algodoeira, a salinicultura, as oficinas de carne seca, a extração de cera de carnaúba (ANDRADE, 1981). Em face dessas atividades, merece destaque a salinicultura, pois a mesma deve papel bastante expressivo na configuração do espaço norte-rio-grandense, em especial nas áreas próximas ao litoral setentrional. O desenvolvimento dessa atividade nessa área deu-se principalmente pelo fato dessa região apresentar condições naturais satisfatória, dentre elas: temperaturas elevadas, alto índice de luminosidade, alta variação das marés, relevo relativamente plano (ANDRADE, 1995). Essas condições permitiram que essa atividade fosse desenvolvida, em sua essência, nas margens dos rios a partir da entrada da água salgada do mar, que formavam verdadeiras salinas naturais, permitindo desta forma, a exploração desse recurso (sal). Novamente, observa-se a interligação das atividades econômicas com as águas, que por consequências, também estavam conexas a condição do “morar nas águas”, pois, a exemplo do que nos fala Andrade (1995), existiam as margens dos rios do sertão norte-rio-grandense, pequenas salinas, nas quais o pequeno produtor vivia no seu entorno, ou seja, em “vivia” em meio ao “sal” e as “águas”. É perceptível ao longo desse resgate, o destaque expressivo que “morar nas águas” teve na configuração da cidade de Mossoró, principalmente no sentido em que, as várias atividades econômicas aqui mencionadas, que estão diretamente conectadas a questão das águas, estiveram presentes na dinâmica espacial dessa cidade. Assim, partindo-se desse contexto, o foco da problemática exposta até agora se centrará na compreensão do processo de formação do espaço mossoroense (processo de ocupação). Originada a partir da concentração da população entorno de uma capela, a cidade de Mossoró começou a se constitui em 1772, derivada de um povoado originado pela ocupação, às margens do Rio Mossoró, do Sitio Santa Luzia pelo Sargento-Mor Antonio de Souza Machado (ROCHA, 2005). Na figura 06 são perceptíveis as primeiras edificações da cidade de Mossoró próxima ao rio. Esse pequeno aglomerado

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de indivíduos é exemplo do processo de ocupação das margens dos rios para o desenvolvimento da pecuária ocorrido no Nordeste (Rio Grande do Norte).

Figura 06: Esboço da cidade de Mossoró no inicio de sua formação – 1772 Fonte: Adaptado de (Silva, 1983, p. 9)

Em 1810, ocorreram mudanças significativas e notáveis neste espaço. Segundo Silva (1983), o inglês Henry Koster – cronista e viajante estrangeiro – registrou em passagem pela ribeira de Mossoró, cerca de 200 a 300 habitantes, sendo esse espaço edificado em um quadrangulo, tendo uma igreja e certo número de casas. Estas mutações são verificadas a partir esboço adiante, figura 07, na qual é verificada presença mais acentuada de certas casas nas proximidades do rio Mossoró.

“NOVAS” MORADIAS

Figura 07: Esboço da cidade de Mossoró no ano de 1810 Fonte: Adaptado de (Silva, 1983, p. 15)

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A produção do espaço de Mossoró foi se configurando em consonância com questões políticas (relações de dependência - status de empório, ribeira, freguesias, vila – e de conflitos, a exemplo do já comentado a respeito da proibição do desenvolvimento das oficinas de carne seca) e econômicas (desenvolvimento da salinicultura e das oficinas de carne seca, derivadas da abundancia de sal e das atividades agropastoris desenvolvidas nesta área, da pecuária, da cultura algodoeira). Na medida em que o tempo passa, Mossoró foi adquirindo morfologias particulares para cada momento. Novas edificações foram construídas – casas, armazéns entre outros tipos de edificações - e Mossoró ganhou uma nova roupagem espacial. Entre 1860 e 1870, a ainda vila de Mossoró passa por um período de expansão, ocorrendo nessa época, um aumento significativo de casas, armazéns e estabelecimentos comerciais, como pode ser observado na figura 08. Essa década é chamada por Câmara Cascudo, com a “década do expansionismo” em decorrência dos processos inseridos nesse espaço durante esse período, caracterizado pelo aumento no comércio.

Figura 08: Esboço da cidade de Mossoró na “década do expansionismo” – 1861/1870 Fonte: Adaptado de (Silva, 1983, p. 19)

Com a emancipação em 11 de Novembro de 1870 (SILVA, 1983), Mossoró passou a ter acesso às políticas públicas que, em conjunto com as iniciativas privadas, configuraram esse espaço como centro de expansão e ao mesmo tempo, um ponto de atração populacional, a exemplo do período de seca ocorrido entre 1877-1879, no qual Mossoró tornou-se um centro polarizador das populações afetadas por essa questão climática. A evolução de sua população foi bastante expressiva ao longo dos anos, sendo que, de 1772 (ano do surgimento do Sitio de Santa Luzia) a 1873, a população saltou de 50 habitantes para 7748 habitantes (PINHEIRO, 2007). Inseridos nesse contexto, foram visíveis às mudanças no espaço da cidade de Mossoró a partir de sua emancipação política, a começar pelo aumento no número de residências, sendo que estas, em sua

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maioria foram edificadas as margens do rio Mossoró. Essas transformações no espaço mossoroense podem ser observadas a partir da figura 09.

Figura 09: Esboço da cidade de Mossoró no “pós-emancipação” - 1870 a 1883 Fonte: Adaptado de (Silva, 1983, p. 27)

Ainda a respeito do esboço da cidade de Mossoró no período pós-emancipação, figura 09, é possível a visualização de uma série de mudanças na configuração de Mossoró, dentre elas: a presença de ruas nas margens do rio Mossoró; a presença de espaços que formaram futuramente bairros na cidade, como por exemplo, os Paredões; e a existência de “espaços públicos”, como por exemplo, o cemitério da cidade. A partir dos trechos a seguir, transcritos do livro Evolução Urbanística de Mossoró de Raimundo Nonato da Silva (1983), evidencia-se a questão das moradias localizadas as margens do rio Mossoró. Esses trechos demonstram a relação da população com as águas desse rio, configurando-se o mesmo como indispensável à sobrevivência desse povo, diferentemente do que ocorre nos dias atuais, pois as águas estão poluídas, sem possibilidades de uso humano; bem como, um dos sintomas do processo de urbanização brasileira: os problemas urbanos, e em específico, o problemas da moradia em áreas alagadas. O autor enfatiza: E então, como lugar, a vila, a cidade, tudo cresceu desproporcionalmente, de um dia para o outro, a vista do tempo, quando as coisas foram se desgarradas da ‘quebra tradicional e guerreira’ para se afundarem no mato, criando ajuntamentos novos e nucleando novos grupos em pontos mais distantes, levando os velhos ou novos moradores para moradias, casas, ranchos, ou palhoças que se enficavam (sic) preferentemente pela beira do rio, onde pudessem pegar água com a mão. [...] Ninguém morava longe das cacimbas, do bebedouro, do Rio! Pois não havia como lá na Terra Santa Profetas que fizessem jorrar água dos rochedos com simples pancada de cajado (SILVA, 1983, p. 23).

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O referido autor ainda cita exemplos de ruas que tiveram suas nomenclaturas interligadas a questão do “morar nas águas”, sendo que, as mesmas estão expostas no esboço da cidade no período de pós-emacipação, na figura 09, página 40. Sobre tais ruas, ele comenta: RUA DOS AFOGADOS: local onde Manoel Francisco do Nascimento solicitava a Câmara Municipal, licença para construir uma casa. Onde era essa rua meu Deus? Certo que devia das águas... [...] RUA DO RIO: esta bem mais antiga, pois nela se fala em documento anterior como a outra, não podia ficar distante da correnteza (SILVA, 1983, p. 23).

De Sitio de Santa Luzia a cidade de Mossoró, o espaço mossoroense, dentro do quadro histórico e geográfico exposto até agora, apresentou diferentes nuances urbanas ao longo dos tempos, sendo que, a configuração do seu espaço urbano foi constituindo-se como reflexos das dinâmicas econômicas estabelecidas nessa área. Porém, nesse contexto evolutivo, foi perceptível também o quanto a questão das águas foi importante na constituição desse espaço, pois nos primórdios desse processo, as mesmas eram responsáveis por dar vivacidade a essa área. Das águas do rio Mossoró surgiu o Sitio de Santa Luzia, o empório comercial, a ribeira, a freguesia, a vila, a cidade, ou simplesmente, a vida do povo mossoroense. Outros pontos da cidade, distanciados relativamente das margens do rio Mossoró, também apresentaram em seu processo evolutivo, uma enorme ligação com as águas. Um exemplo contundente disto foi o processo de ocupação do bairro Costa e Silva, ora reconhecido pelos estudiosos da cidade de Mossoró, como tendo sua origem a partir da construção dos conjuntos habitacionais “Ulrich Graff” e “30 de Setembro”, sendo o mesmo, resultado de políticas públicas (ROCHA, 2005). Contudo, segundo moradores mais antigos desse bairro (informação verbal), como as senhoras Dona Ana (74 anos) e Dona Francisca2 (69 anos), esse espaço que se constitui atualmente como sendo o bairro Costa e Silva, pertencia ao então denominado bairro Pintos. Analisando a descrição que o historiador Damião Sabino (199-?) faz sobre essa área, percebe-se que as assertivas ditas por essas senhoras convergem ao mesmo ponto, isso porque, o mesmo cita como ruas do bairro Pintos, espaços hoje pertencentes ao Costa e Silva, a exemplo das ruas Santa Cecília e Santana e a Avenida Francisco Mota. Porém, a análise aqui estabelecida não pretende discutir a espacialidade do bairro, mas, sua relação com a condição de “morar nas águas”. Sendo assim, os primeiros vestígios de habitações do bairro, segundo as moradoras entrevistas, estavam localizados próximo a Lagoa dos Pintos (SABINO, 199-?). Segundo Dona Francisca, eram das águas desse reservatório que os moradores “retiravam” a vida, pois delas eram retiradas o alimento (peixes), a água para se beber e utilizar nas tarefas domésticas (lavar, cozinhar, banho), bem como para o lazer (banhos nas águas dessa Lagoa). As casas dessa comunidade sempre estavam localizadas bem próximas a esse reservatório; era uma forma de melhor sobreviver naquela realidade. Sobre tal 2

A identificação dessas moradoras está sendo realizadas a partir de pseudonomes. Os relatos expostos nesse trabalho são resultantes da pesquisa e entrevista de campo realizada na área (bairro) e com os moradores (nesse caso, os mais antigos). O roteiro da entrevista está nos apêndices (A).

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realidade, Sabino (199-?, p. 18) aponta que “ [...] nos informa os mais antigos moradores, que outrora existiu um lagoa de água límpida e doce, que ajudava no abastecimento de água aos moradores do centro da cidade.” Ainda é ressaltado por essas moradoras que, as cheias desse lagoa não eram vista com maus olhos pela comunidade, pelo contrario, esse fato era sinônimo de prosperidade, de vida com águas. Hoje, essa área ainda encontra-se ocupada por uma parcela da comunidade desse bairro, como se observa na figura 10, porém, o que era considerado por muitos como sinais de prosperidade e vida em paz, atualmente é sinal de insegurança, motivo de preocupação. O “morar nas águas” apresenta-se no contexto atual, como forma da mera exclusão social e da desigualdade socioespacial. A parcela da população que habita essa área hodiernamente é a prova contundente dessa realidade, focalizado nesse trabalho, com objeto de estudo.

Figura 10: Habitações localizadas no bairro Costa e Silva nas proximidades da Lagoa dos Pintos – Área de estudo Fonte: Foto do autor (2010)

A partir dessa contextualização histórico-geográfica, percebe-se que a questão do “morar nas águas” não é uma prática exercida apenas nos tempos atuais, pelo contrário, essa condição vivenciada por muitos “povos” ao longo dos tempos e dos espaços, foi um fator primordial que colaborou para o desabrochar da cultura civilizada. Porém, diferentemente da dinâmica espacial que ocorre nos dias atuais, a habitabilidade em áreas alagadas ou próximas as águas desenvolvidas no passado, mesmo no passado mais recente como foi visto, estava relacionada à dependência com a natureza e a possibilidade de desenvolvimento espacial, econômico, social, cultural e político. Hoje, essa prática tão comum nas cidades é um dos muitos reflexos de um sistema perverso e cruel, que maltrata e castiga sem pena uma grande parcela da sociedade, que por falta de condições e/ou de possibilidade, não se adaptaram a esse “contexto”. O “morar nas águas” passou a ser uma imposição, um reflexo da sociedade desigual que foi se formando ao longo da historia da humanidade.

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Então, finalizado o resgate histórico-geográfico do “morar nas águas”, que perdurou até os dias atuais com as especificidades históricas de cada momento, será exposta a partir dos próximos capítulos, a outra face dessa condição, hodiernamente contextualizada pelo sistema capitalista e analisada a partir da realidade e do cotidiano vivido diariamente por muitos indivíduos.

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CAPÍTULO 3 CAPÍTULO 3

3. A OUTRA “FACE” DO “MORAR NAS ÁGUAS”

A

s cidades brasileiras apresentam uma série de problemas urbanos, nas quais, o que vai diferenciar a ocorrência desses problemas entre estes espaços, é o grau e a intensidade como eles aparecem (SANTOS, 2009). Assim, em todas estas cidades, sejam elas, de pequeno à grande porte, os problemas urbanos tais “[...] como os do desemprego, da habitação, dos transportes, do lazer, da água, dos esgotos, da educação e saúde são genéricos e revelam enormes carências” (SANTOS, 2009, p. 105). Inserido nesse contexto, a cidade de Mossoró-RN apresenta, assim como tantas outras cidades pertencentes ao território nacional, um número variado de problemas urbanos que afetam significativamente sua população e seu espaço. A cidade “sofre” com a violência urbana, com o processo de favelização, com a falta de saneamento básico, com o déficit habitacional e também com os problemas relacionados às chuvas irregulares que ocorrem na sua região, que acarretam uma série de alagamentos nas áreas próximas ao Rio Apodi-Mossoró, bem como em outras localidades devido à morfologia rebaixada das mesmas. Para exemplificar alguns destes problemas urbanos, ressalta-se que, segundo dados da Secretaria de Desenvolvimento Territorial e Ambiental (SEDETEMA), o valor atual do déficit habitacional da cidade de Mossoró é de aproximadamente 4.198 unidades habitacionais (LIMA, 2010). Como resposta a este problema, o que se observa na cidade é a presença de alguns assentamentos subnormais, áreas de favelas, no quais, a precariedade e a falta de infraestrutura se fazem presentes. As figuras adiante mostram alguns desses assentamentos subnormais existentes em Mossoró e a realidade que está “impregnada” nesses espaços. Na figura 11, destaca-se o assentamento Wilson Rosado (Favela do Fio), localizado no bairro Redenção e no entorno das redes de alta tensão da Companhia Hidroelétrica do São Francisco – CHESF. Esta área possui, segundo dados da SEDETEMA (OLIVEIRA, 2010), uma população de cerca de 480 indivíduos ocupando aproximadamente 120 habitações, em sua maioria de taipa. A população desta área sofre periodicamente com os riscos de desabamento de suas residências e de acidentes elétricos.

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Figura 11: Assentamento Wilson Rosado – Favela do Fio Fonte: Foto do autor (2010)

A figura 12 representa a favela da Fumaça, localizada no bairro Dix-Sept Rosado e nas proximidades da fábrica de cimento Nassau. Esta área apresenta, assim como na área descrita acima, características precárias de habitabilidade, estando sua população sujeita aos riscos de desabamento. Segundo dados da SEDETEMA (OLIVEIRA, 2010), a população deste espaço é composta de 175 indivíduos distribuídos em 35 casas.

Figura 12: Favela da fumaça Fonte: Foto do autor (2010)

Observando as duas favelas citadas, destaca-se que, as moradias nesses espaços não apresentam água encanada, coleta de lixo e saneamento básico (infraestrutura básicas), sendo que, a disponibilidade de energia elétrica nestas localidades dá-se, na maioria das vezes, através da captação ilegal desse recurso, ou seja, através de

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“gatos” ou “gambiarras”. Estes espaços representam e refletem em sua paisagem, exemplos das problemáticas urbanas e do desenvolvimento espacial diferenciado que as cidades brasileiras apresentam hodiernamente em sua configuração. Outro problema urbano característico da cidade de Mossoró refere-se aos alagamentos periódicos ocorridos neste espaço a partir das cheias do rio ApodiMossoró e de algumas lagoas e açudes dispersos pela cidade3. No entanto, esta problemática não é um fato recente na história desta cidade, pois, como a mesma teve sua origem interligada às águas desse rio, os alagamentos sempre estiveram presentes nesta cidade, “castigando” as comunidades ribeirinhas ao longo do tempo. Sobre este apontamento, Silva (1983) informa: Foi um ano [1894] de grande enchente do Rio Mossoró. As águas cresceram assustadoramente, invadindo as ruas da cidade e causando pânico à sua população. O volume da correnteza alargouse pela zona urbana derrubando casas, provocando soterramento e fazendo lagoas pelas partes menos elevadas (p. 41, grifo nosso).

As imagens posteriores possibilitam a observação e a constatação desse problema ocorrido na cidade de Mossoró ao longo da história. A figura 13 retrata a enchente ocorrida na cidade de Mossoró no ano de 1961, ou seja, num período mais remoto; e a figura 14 representa os alagamentos ocorridos no ano de 2008, que assolou e castigou profundamente as comunidades que moram as margens do rio ApodiMossoró, deixando-as desabrigadas e expostas as mais diversas mazelas sociais. O bairro representado na figura 13 é o antigo bairro Pereiros, e o da figura 14 é o bairro Alto da Conceição. Apesar de ser um problema comum em diferentes contextos históricos, cada uma dessas situações expostas nas figuras adiante tiveram especificações, ou seja, contextos ímpares para a configuração de tal momento. As comunidades que moravam nas áreas ribeirinhas no passado não foram produto direto de um sistema perverso, mas, de “imposições naturais”, ou seja, a moradia nas margens do rio era uma forma de conexão, de “dependência” e sobrevivência do homem em relação ao meio, diferentemente do que ocorre nos dias atuais, nos quais, a condição de morar nas áreas próximas as margens de rios, lagos, açudes está imbricada as “determinações” capitalistas.

3

Entre os principais bairros da cidade de Mossoró que “sofrem” com os alagamentos, destacam-se: Alto de São Manoel, Ilha de Santa Luzia, Pintos, Barrocas, Paredões e Centro.

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Figura 13: Enchente ocorrida na cidade de Mossoró no ano de 1961 Fonte: (Pereira, 1961)

Figura 14: Enchente ocorrida na cidade de Mossoró no ano de 2008 Fonte: (Weiner, 2008)

Destarte, o “morar nas águas” no passado tinha uma conotação mais interligada a questão da sobrevivência, do desenvolvimento social, econômico e espacial; em contrapartida, esta condição não apresenta a mesma essência nos dias hodiernos, pois, o “morar nas águas” passou a ser reflexo da condição, do status social de cada sujeito, ou seja, de uma sociedade desigual “marcada” pelas regras do sistema capitalista. Contextualizados a partir da compreensão do espaço urbano enquanto reflexo do status social (CORRÊA, 2005), a condição do “morar nas águas”, esboçado como objeto de estudo principal desse trabalho, terá seu foco voltado à apreensão de como os fatores socioeconômicos influenciam e/ou “determinam” o desenvolvimento desta condição tão comum nas cidades brasileiras e entre camadas da sociedade de renda

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mais baixa, ou seja, de como essa prática está imbricada diretamente ao jogo do sistema capitalista. Para tanto, a análise desta problemática teve como base de estudo, uma área específica do bairro Costa e Silva que sofre periodicamente com esta problemática. Porém, antes de iniciar uma apreciação de como os fatores socioeconômicos estão imbricados ao “morar nas águas” nessa localidade, cabe uma contextualização sinóptica da área de estudo, destacando os seus principais aspectos espaciais. O bairro Costa e Silva originou-se (pós-anos 1970) a partir da criação dos conjuntos habitacionais “Ulrich Graff” e “30 de Setembro”, sendo que, de acordo com pesquisas realizadas com moradores antigos dessa comunidade, constata-se que o seu “nascimento” teve ligação direta com a condição do “morar nas águas”, pois, assim como foi enfatizado no capitulo anterior, os primeiros vestígios de ocupação dessa área tiveram conexão direta com a Lagoa dos Pintos, ou seja, com a possibilidade do “morar nas águas”. Cabe ressaltar que, o conjunto “30 de Setembro” é denominado atualmente de conjunto Vingt Rosado, sendo que, esse conjunto habitacional não faz mais parte do bairro Costa e Silva, estando o mesmo vinculado atualmente ao bairro Rincão. Este bairro localiza-se na zona leste da cidade de Mossoró, sendo que o mesmo é o maior bairro em extensão desta cidade, apresentando uma área superior a 10.000.000 m², da qual, 74% encontra-se desocupada. Ele é composto por aproximadamente 5.000 habitantes, estando os mesmos distribuídos em cerca de 1215 domicílios particulares permanentes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) do ano de 2007 (IBGE, 2008). A área é caracterizada pela presença de alguns equipamentos urbanos como unidades de saúde, igreja, praças, escolas, universidades, entre outros, porém, no que se refere aos suportes urbanos (infraestruturas básicas), o mesmo é marcado por uma reprodução espacial diferenciada. No caderno especial de domingo do Jornal de Fato de 23 de Maio de 2010, há uma reportagem sobre o bairro em análise, na qual são destacados dados sobre a sua realidade e as contradições contidas nesse espaço. Nessa reportagem, destaca-se que “O bairro Costa e Silva é o maior da cidade em território e desperta o interesse imobiliário, no entanto é dividido ao meio: uma área que possui boa infraestrutura e outra que carece de atenção” (O MAIOR..., 2010, p. 6). A figura 15 evidencia a assertiva dessa reportagem e comprova a desigualdade espacial intrínseca nesse espaço, no qual, uma parcela do mesmo, área do bairro correspondente ao conjunto “Ulrich Graff”, é valorizada, constituída com todas as condições de habitabilidade necessária à população, com infraestrutura adequada saneamento, ruas bem equipadas (imagem à direita); em contrapartida de outra porção (área de estudo), desprovida de arrimos urbanos, caracterizada por núcleos de baixa renda e de moradias subnormais (imagem à esquerda).

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Figura 15: Desigualdades espaciais existentes no bairro Costa e Silva Fonte: Foto do autor (2010)

Há determinadas áreas nesse bairro onde os contrastes espaciais apresentam-se de forma mais intensa e como sinônimo da mais clara estratificação social. A exemplo destas áreas, destaca-se um fragmento deste espaço, no qual, os moradores estão sujeitos a alagamentos sazonais ocasionados pelas chuvas irregulares que caem na região. Esta área, representada a partir da figura 16, situa-se no entorno da Lagoa dos Pintos (área de estudo), localizado na divisa do bairro Costa e Silva com o conjunto Vingt Rosado, sendo que, nos períodos caracterizados com intensas taxas de precipitação, este reservatório transborda e “expulsa” seu excedente hídrico para as suas extremidades. Como estes extremos estão ocupados por uma parcela dessa comunidade carente, nos períodos de fortes chuvas, os moradores dessa área vêem-se obrigados a conviver com os alagamentos, com a incerteza da “segurança” habitacional e com as várias mazelas ocasionadas por esse fenômeno, tais como, uma série de doenças relacionadas às águas poluídas dessa Lagoa, que somadas aos outros problemas preexistentes, servem para majorar a “poça” de dificuldades e sofrimento enfrentados por essa população. Estes indivíduos foram e estão “coagidos” a “morar nas águas”, porém, os mesmos estão inseridos num contexto que ultrapassa as imposições naturais e estruturam-se atualmente a partir da perversidade do capitalismo. Eles, e o seu espaço são resultados do processo da diferenciação social, de uma sociedade marcada pela desigualdade entre os indivíduos, na qual, fica evidente que, a estratificação social rebate seus contrastes nos espaços ocupados. Assim, os próximos subcapítulos deste trabalho terão o centro de discussões voltado para a compreensão de como os fatores, condições socioeconômicos da comunidade do bairro Costa e Silva, área específica dos alagamentos, estão inseridos na

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configuração desse espaço, ou seja, demonstrando como estes elementos compõem a outra face desta condição.

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Figura 16: Localização da área de estudo (bairro Costa e Silva) Fonte: Adaptado de Google Earth (2009)


3.1. O VALOR DA MORADIA E SEUS PROCESSOS EM MEIO AS “ÁGUAS”

C

omo já foi discutido anteriormente, desde os tempos mais remotos, período no qual os homens configuravam-se como indivíduos nômades, sempre existiu a necessidade de morar, mesmo que de forma momentânea. Porém, essa prática constituída como necessidade ao ser humano sofreu modificações ao longo dos tempos, no qual, a mesma deixou de ser apenas uma condição inevitável a vivência da sociedade, e ganhou uma nova roupagem, que ultrapassa os seus limites ideológicos e edifica-se na configuração de interesses práticos, de aspirações econômicas. Embora este caráter alocado à moradia esteja fortemente “edificado” nos dias atuais, o acesso a habitação ainda traz em sua concepção cognitiva, algumas perspectivas que vão além dessa utilidade mercantil/econômica, e inserem-se nas concepções subjetivas dos indivíduos em relação ao “poder” morar. Dentro desse contexto, a moradia, para além dos interesses capitalistas, pode ser compreendida como um fator de segurança para muitos sujeitos da sociedade, isso porque, no contexto em que se encontram um grande número da população brasileira, na precariedade, a certeza de onde morar vem a ser uma base sólida para esses indivíduos. Morar em uma favela, em um cortiço ou até mesmos em áreas de risco, como encostas ou terrenos alagados é para muitos indivíduos a única fonte segura que os “mantém de pé” nesse espaço desigual na qual se apresenta as atuais urbes. Sobre isso, Maricato (1987, p. 26) relata que “[...] mesmo quando se trata de um embrião de alvenaria sem revestimento, é motivo de grande segurança e sensação de progresso pessoal do trabalhador.” Outra compreensão de moradia refere-se à mesma como forma de solução encontrada pelo trabalhador (morador) nos momentos de crise. A “casa” é dentro desse contexto, sinônimo de redução de custo, de despesas, de um gasto a menos no fim do mês para um individuo que tem que alimentar a fome de sua prole. Ainda inserido nesse contexto, a moradia apresenta-se como significado de sucesso e/ou conquista de uma posição social mais elevada, pois “[...] subjetivamente, a aquisição de um imóvel se constitui na principal evidência de sucesso e da conquista de uma posição social mais elevada” (BOLAFFI, 1979, p. 42 apud TAVARES, 2006, p. 170). E, para além dos contextos subjetivos de cada indivíduo, a moradia ainda destaca-se, conforme Rodrigues (2003), como sendo uma necessidade básica a todos os indivíduos, na qual, independente das características da habitação, é sempre preciso ocupar um lugar no espaço. A referida autora ainda enfatiza que, da mesma forma que o individuo precisa de alimentação, vestimentas, ou seja, suprir suas necessidades básicas, o mesmo também necessita de um lugar, um espaço para ocupar, morar. Estas aspirações ideológicas em relação à moradia ainda estão presentes na configuração e dinamicidade do morar, porém, outras imagens são dadas a casa, passando a mesma, a ser estabelecida a partir de “valores” que ultrapassam as ambições básicas e necessárias dos indivíduos. Sobre tais mudanças, Portuguez (2001) aponta: Definitivamente a função social das casas passa atualmente por mudanças das mais diversas. Muito mais do que o refúgio seguro, mais do que o lugar de convivência familiar, a residência já não é somente aquele local pertencentes às pessoas que nela vivem.

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Assume hoje funções das mais distintas, consequências das novas formas de relações sociais, bem como da reformulação das antigas (p. 25).

As percepções do morar transpassam os elementos já citados. A nova exterioridade da qual se veste a moradia no seio da sociedade capitalista insere essa condição enquanto forma de mercadoria. Ela passa a fazer parte de um sistema, no qual, os valores e ideologias do sucesso, da segurança e da necessidade citados anteriormente apresentam-se de forma paralela e secundária, pois, antes que, os mesmos sejam alcançados, os valores “reais” instituem a suas (im)possibilidades. O “poder” morar está diretamente relacionada à ocupação de um espaço, de um pedaço de terra. A terra, apesar de não ser reproduzida, resultante de trabalho, a mesma apresenta um valor de troca, valor para ser comercializada no mercado. Conforme Harvey (1980), o valor de troca dado à moradia é estabelecido a partir da aplicação de dinheiro/capital, que irão criar melhores condições para a inserção da casa/terreno no mercado. Sobre isso, Rodrigues (2003) ainda reafirma: Ela [terra] é uma mercadoria sem valor, no sentido em que seu preço não é definido pelo trabalho em sua produção, mas pelo estatuto jurídico da propriedade da terra, pela capacidade de pagar dos seus possíveis compradores [...] cujo preço é definido pelas regras de valorização do capital em geral, pela produção social (p. 17-19).

Desta forma, a moradia, entendida como uma mercadoria e/ou produto, apresenta-se a partir do valor de troca, sendo que este, relaciona-se à possibilidade dos atores sociais pensarem a moradia para além de seu valor de uso, ou seja, pensá-la a partir de uma visão economicista, como promotores imobiliários, da casa enquanto elemento para obtenção de renda para uns e como “entrave” para outros. Nessa dinâmica mercantil na qual a moradia encontra-se inserida, o morar está circunscrito a condição social de cada sujeito, ou seja, a possibilidade do morar (ou não) estará condicionada a classe social de cada indivíduo. Esse limite imposto pela lógica capitalista impossibilita a uma grande maioria da população, caracterizadas por indivíduos “sem” condições econômicas, o acesso a habitação digna, apropriada e condizente a sobrevivência em sociedade. As formas e a localização das habitações nas cidades demonstram bem essa realidade, essa dinâmica do poder ou não morar, pois, as “funções básicas” para se estabelecer em um determinado espaço são “fáceis” para uns, para os que podem pagar, e de “difíceis” condições para outros que vivem em situações de insalubridade e jogados às chagas da dura realidade. Sobre essas diferenças habitacionais e sociais, Rodrigues (2003) destaca: Desde as mansões até os cortiços e favelas a diversidade é muito grande. Esta diversidade deve-se a uma produção diferenciada das cidades e refere-se à capacidade diferente de pagar dos possíveis compradores, tanto de casa/terreno, quanto pelos equipamentos e serviços coletivos. Somente os que desfrutam de determinada renda ou salário podem morar em áreas bem servidas de equipamentos coletivos, em casas com certo grau de conforto. Os que não podem pagar, vivem em arremedos de cidades, nas extensas e sujas ‘periferias’ ou áreas centrais ditas ‘deterioradas’ (p.12).

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Dimensionados pelo sistema capitalista, a população mais carente, com renda bem abaixo da classe dominante, vê-se “sujeita” a ocupar os lugares mais inapropriados para habitação, entrando em destaque, áreas de risco tais como encostas e áreas alagadiças, por exemplo. Ocorre em tais situações, um aumento na vulnerabilidade em relação aos impactos socioambientais, estando essa classe social, susceptível às ações do sistema natural. Sobre tal apontamento, Monteiro (2008, p.12) enfatiza que “[...] uma parte substantiva da população urbana, geralmente os de menor capacidade econômica, tem uma fraca tolerância econômica e social à impulsividade do sistema climático.” E a referida autora ainda destaca: “[...] por isso, estão expostos demasiadas vezes no sitio e no momento errado” (p.12). O “morar nas águas”, contextualizado a partir dessa ideia, apresenta-se a partir de um limite, de uma “imposição”, de uma (im)possibilidade do sistema. Essa prática tão comum a classe mais pobre nos dias de hoje, é a “solução” encontrada por estes indivíduos para resolver os problemas da habitação, a exemplo dos que vivem e sentem essa realidade no bairro Costa e Silva. As evidências do “morar nas águas” enquanto limite do sistema capitalista são inúmeras no bairro citado. Analisando os resultados da pesquisa realizada nesse espaço, área identificada na figura 16, página 51, percebe-se que, a grande maioria das pessoas que vivem nesta localidade são produtos da dinâmica desigual estabelecida pelo capitalismo frente ao acesso a moradia. Da amostragem das residências analisadas, observa-se que em mais de 80% das mesmas, o motivo pelo qual estas famílias moram nesse espaço, está nas condições financeiras dos mesmos. Em quase todas as casas visitadas, ecoavam pelas bocas dos moradores os mesmos argumentos em relação ao “morar nas águas”: moramos nessa área por falta de “condições financeiras”, por falta de “oportunidade” de comprar um terreno em uma área bem mais situada e servida. Essa situação descrita pelos moradores é reflexo do status social dos mesmos, que demonstram o quanto a sociedade e os espaços configuram-se a partir das condições econômicas. Dos dados coletados nas pesquisas de campo, percebe-se que as famílias dessa área vivem (inapropriadamente) com renda máxima de um salário, sendo que, em alguns casos, o valor dessa renda não chega nem ao “mínimo”. Nos casos em que se verificam renda acima de um salário, este valores não chegam a dois salários. Quando isso acontece, o acréscimo no valor do salário dá-se através de atividades complementares. Ainda cabe destacar que, a renda de muitas dessas famílias é proveniente da aposentadoria de algumas pessoas idosas e/ou pensionistas; os trabalhos da maioria das pessoas enquadram-se entre os informais, a exemplo de faxineiras e pedreiros; e a renda de muitas famílias é complementada com o auxílio do governo (programas sociais), a exemplo do programa bolsa-família. O gráfico 01 representa a caracterização econômica dessas famílias, ou seja, mostra os níveis econômicos em que sobrevivem esses indivíduos.

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Gráfico 01: Caracterização econômica da população em estudo Fonte: Pesquisa de campo (2010)

O valor da casa e/ou terrenos nessa área é inferior a de outras porções dessa cidade e até mesmo do bairro, sendo que, a moradia nesse espaço “edifica-se” a partir das baixas condições financeiras de seus moradores. Analisando os valores das casas e terrenos comprados nesse local, percebe-se que, os mesmos são baixos e mostram o quanto a área é desvalorizada. A exemplo disso, há residências que foram compradas no valor de R$ 630,00 e terrenos no valor de R$ 200,00, conforme dados obtidos a partir da pesquisa de campo. Essa dinâmica mercantil demonstra e comprova o baixo valor da terra-casamercadoria nessa área, resultante da dinâmica do desenvolvimento diferencial dos espaços intraurbanos; bem como, a (im)possibilidade e ao mesmo tempo, a “justificativa” de muitos moradores frente à condição do “morar nas águas” nessa localidade. A condição do “morar nas águas” é resultado atualmente de uma produção desigual do espaço, que apresenta em sua fisionomia, uma série de “dificuldades” não só visuais, mas em níveis sociais - de sobrevivência da população. Sobre essa forma de ocupação dos espaços e as desigualdades impregnadas em suas estruturas, Corrêa (2002, p.29) relata que “[...] na sociedade de classes verificam-se diferenças no que se refere ao acesso aos bens e serviços produzidos socialmente [...]”. E ainda destaca: “[...] a habitação é um desses bens cujo acesso é seletivo [...] é um dos mais significativos sintomas de exclusão” (p.29). Outro ponto interessante a ser destacado sobre a área em estudo em relação às moradias é que, a grande maioria das casas construídas nesse espaço é resultante de programas sociais (35%), a exemplo do programa “Minha Casa Minha Vida” estabelecido a partir de convênios entre os governos federal, estadual e municipal que visa erradicar moradias em estado “inadequado”, como por exemplo, casas de taipas; e do processo de autoconstrução (65%).

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Sobre o processo de construção desta casas através dos programas sociais, cabe enfatizar que, as residências construídas e/ou reconstruídas a partir desses programas representam uma “pseudoajuda”, pois, os governantes “dão” as casas “bem equipadas” no sentido de amenizar a “precariedade” dessa população, porém, a problemática central, na área de estudo, não é resolvida. As famílias sobrevivem em suas casas “novas”, porém, os problemas continuam enraizados na área, continuam castigando impiedosamente esses indivíduos, deixando-os viver na insalubridade, no risco e em meios as águas, que a qualquer momento podem tomar o seu rumo natural, ou seja, habitar as moradias desses indivíduos. A figura 17 é um exemplo explícito dessa realidade fantasiosa e contraditória na qual os indivíduos dessa comunidade estão inseridos. Nesta figura, observam-se duas casas construídas a partir de programas sociais já citados, ao lado do problema, da fonte do medo que os assolam nos períodos de chuva, ou seja, da “possibilidade de alagamentos”.

Figura 17: Casas resultantes dos programas sociais na área de estudo Fonte: Foto do autor (2010)

Pelos dados citados anteriormente a respeito das formas de construção das moradias, percebe-se que, a grande maioria das residências encontradas nessa área é resultante do processo de autoconstrução. Esse tipo de atividade é a forma encontrada por muitos indivíduos da sociedade, a exemplo dos moradores da área estudada, principalmente os mais carentes, para solucionar o problema da habitação, ou seja, “[...] é principalmente através da autoconstrução que a maioria da população brasileira resolve seu problema de moradia” (RODRIGUES, 2003, p. 30). Esta atividade caracteriza-se como uma tarefa extremamente massacrante ao trabalhador em dois sentidos, a saber: Primeiro, o operário, do pouco dinheiro que ganha através da venda de sua força de trabalho, irá dividir essa renda entre as necessidades básicas e o seu sonho, “concretizado” a partir da compra dos materiais de construção. Segundo, do pouco tempo livre que o trabalhador tem, o mesmo dedica esse ócio a construção de sua residência. Esse processo de autoconstrução da moradia é realizado pelos trabalhadores (futuros moradores) nos momentos que eram para ser de descanso, de recarregar as forças, é o período na qual o trabalhador, no dizer de Rodrigues (2003, p. 31) “[...] descansa-se trabalhando, carregando pedras.”

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Sobre tal prática, comum a grande classe da sociedade que vive as margens das condições de vida adequada, e sua dinâmica, Spósito (2001, p. 85) define como sendo “[...] processo de construção de moradias exercido por pessoas que utilizam seu tempo de descanso (finais de semana, feriados, férias).”. E Rodrigues (2003, p. 31) ainda enfatiza que “[...] o ritmo da construção depende do tempo livre, do dinheiro disponível para a compra do material de construção e da contratação eventual de um trabalhador especializado.” O processo de autoconstrução além de ser penoso, pois a tarefa envolve muito esforço físico do trabalhador e seu auxiliares (normalmente familiares), ele é também longo, um processo constante na qual, a sua realização concreta dificilmente é finalizada. Conforme aponta Kowarick (2009): Técnicas construtivas rudimentares e falta de planejamento da obra implicam constantes perdas de material, reparos ou reformas, redundando, depois de anos de trabalho coletivo, em moradias que apresentam defeitos de acabamento, circulação ou insolação, com baixa qualidade de conforto ambiental. Os cômodos vão sendo construídos um após o outro [...] em razão da imperiosa equação necessidade-disponibilidade financeira, sem que haja uma programação na continuidade da obra. (p. 167-169).

Essa característica da autoconstrução perdurar por longos e constantes anos se faz presente na área de estudo. De acordo com os dados obtidos a partir das pesquisas em locus e observações da área, evidencia-se que, das resistências provenientes da autoconstrução, a maioria não apresenta boas condições estruturais, sendo que, os cômodos encontram-se inacabados, a exemplo dos banheiros (foi um dos itens destacados nas entrevistas), e não apresentam segurança no que se refere às condições físicas. Estas informações podem ser observadas a partir do esquema representativo abaixo, quadro 01.

Das casas construídas no sistema de autoconstrução, mais de 80% apresentam infraestrutura regular. Dados obtidos a partir das entrevistas.

Informações em relação às moradias.

Mais de 80% das casas não possuem segurança, não foram construídas de maneira adequada.

Mais de 90% das residências pesquisadas não apresentam banheiros adequados, ou seja, os mesmos necessitam de melhorias/acabamentos, sinônimos do processo de autoconstrução.

Quadro 01: Esquema representativo das condições estruturais das residências da área estudada Fonte: Esquema elaborado a partir das pesquisas e observações realizadas na área (2010)

Na figura 18, pode-se visualizar residências edificadas a partir do sistema de autoconstrução. Caracterizado por esse modo de construção, a casa representada na imagem está inacabada, necessitando de complementos e reparos. Ela apresenta-se

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enquanto reflexo do sistema na qual a mesma foi construída, que por sua vez, está diretamente interligada as baixas condições de vida e habitabilidade dessa comunidade, da população carente de maneira geral.

Figura 18: Casa resultante do processo de autoconstrução Fonte: Foto do autor (2010)

O “morar nas águas” a partir da realidade focada como objeto de estudo configura-se enquanto locus da sobreposição de problemas, de reflexos de uma sociedade “marcada” pela distribuição desigual das riquezas, das oportunidades, das terras e das moradias, ou seja, de uma sociedade “marcada” pelo sistema capitalista, que tem seu progresso edificado a partir do acúmulo de riquezas nas mãos de uns poucos, e consequentemente, o aumento da pobreza nas mãos de outros (muitos) (VILLAÇA, 1986). Esta condição demonstra o quanto “[...] o mundo dos homens é cada vez mais o mundo da mercadoria e do que é possível comprar” (CARLOS, 2001, p. 19). O “morar nas águas”, imposto pelo sistema, reflete espaços “marcados” pela precariedade, pela desigualdade espacial, sendo que essa configuração tem seu cerne imbricado à desigualdade imposta na sociedade, ou seja, a desigualdade social, que divide sujeitos comuns em estratos, na qual, o que vai diferenciar uns dos outros, é o seu nível social, a possibilidade de pagar e de adequar-se ao sistema de (im)possibilidades capitalistas. Carlos (2001) aponta esse processo e enfatiza: É o processo de reprodução do capital que vai indicar os modos de ocupação do espaço pela sociedade, baseados nos mecanismos de apropriação privada, em que o uso do solo é produto da condição geral do processo de produção da humanidade, que impõem uma determinada configuração ao espaço urbano (p. 49).

Dentro desse contexto de (im)possibilidades, as moradias nas cidades apresentam-se a partir de formas variadas, como já foi exposto anteriormente, sendo que esta diversidade é explicada de acordo com a situação econômica e o contexto no qual o individuo está inserido. Santos (1982, p. 95) apud TAVARES (2006, p. 170) relata esse dinamismo das concepções e diversidades das moradias, afirmando que “[...] usos são inventados como uma prodigalidade impressionante entre os grupos onde as formalizações são, por força das circunstâncias da vida, muito pouco rígidas.”

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Essa diversidade de moradias mostra um espaço urbano “marcado” pela diversidade da paisagem e representado essencialmente pela heterogeneidade das formas, heterogeneidade esta, marcada por contrastes, por diferenças sociais, diferenças entre os que podem viver e os que sobrevivem, entre os que se autossegregam e os que são segregados.

3.2. A SEGREGAÇÃO “DAS ÁGUAS” E O ESTADO NESSE PROCESSO

A

s cidades, de uma maneira geral, apresentam-se marcadas por uma série de contrastes espaciais, marcados essencialmente pela diferença entre as paisagens urbanas, pelas heterogeneidades. É de práxis nos espaços urbanos, a presença, e ao mesmo a observação de áreas bem desenvolvidas, dotadas de infraestrutura e equipamentos urbanos adequados. Em contrapartida, outros apresentam pouca ou nenhuma expressividade, ou seja, são visíveis as desconformidades existentes entre os espaços intraurbanos. Esse processo de diferenciação espacial no interior das cidades é exemplo do processo que ocorre em outras escalas de análise, pois, observa-se essa mesma desigualdade de espaços entre os países ditos desenvolvidos e subdesenvolvidos, a exemplo dos países do norte e do sul (escala global); entre as regiões, a exemplo das sudeste e nordeste do Brasil (escala nacional); e entre determinadas cidades e/ou bairros de uma mesma cidade, a exemplo das diferenças encontradas em alguns bairros da cidade de Mossoró-RN, tais como o bairro Nova Betânia e o Bairro Pintos, ambos pertencentes à mesma cidade, porém, marcados pela desigualdade socioespacial (escala local). Essas desigualdades espaciais, principalmente no espaço intraurbano, têm como um dos elementos fundamentadores, a questão socioeconômica, que implica heterogeneidades e homogeneidades urbanas. Segundo Carlos (2001), essa diferenciação socioespacial nada mais é do que um processo de espacialização da própria diferenciação social, um processo que forma espaços contrários, diferentes (heterogêneos) entre si, e ao mesmo tempo, semelhantes internamente (homogêneos). Essa homogeneidade e heterogeneidade presente no espaço urbano é resultado do processo de segregação espacial, ou socioespacial, que de acordo Corrêa (2005) consiste em: Um processo que origina a tendência a uma organização espacial em áreas de forte homogeneidade social interna e de forte disparidade social entre elas. Estas áreas segregadas tendem apresentar estruturas sociais que podem ser marcadas pela uniformidade da população em termos de renda, status ocupacional [...] instrução, etnia, fase do ciclo da vida [...] e migração (p. 131).

A área estudada mostra-se perfeitamente como exemplo dessa dinâmica da reprodução desigual dos espaços. A mesma demonstra certa homogeneidade internamente, principalmente nas características socioeconômicas, bem como estruturais (tipos de moradia e sua infraestruturas). Entretanto, quando analisada de forma comparativa a outros espaços da cidade, ou do próprio bairro, apresenta-se marcada pela diversidade, pela falta de condições sociais e estruturais, pela falta de uniformidade espacial, ou como resultado do progresso do capitalismo.

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A segregação espacial é resultado, de maneira geral, do nível econômico de cada individuo, ou seja, existirá uma relação direta entre a condição do espaço habitado e a renda do sujeito. A área foco de estudo apresenta-se, de acordo com essa concepção, enquadrada nesse processo, isso porque, analisando os dados expostos anteriormente sobre as características econômicas dessa comunidade, percebe-se o quanto essa localidade, integrada aos seus sujeitos, é resultado do processo de segregação, da separação das classes em espaços diferenciados por seus valores. Sobre tal fato, Corrêa (2005) aponta que: As áreas uniformes refletem, de um lado, a distribuição da renda da população, e de outro, o tipo de residência e a localização da mesma em termos de acessibilidade e amenidades. Em realidade, a segregação parece constituir-se em uma projeção espacial do processo de estruturação e classes, sua reprodução, e a produção de resistência na sociedade capitalista (p. 131).

De acordo com a assertiva acima, percebe-se também que, a segregação espacial está diretamente relacionada às formas espaciais, precisamente as morfologias das moradias. Desta forma, a segregação espacial refere-se especialmente à questão das moradias enquanto reflexo da condição social de cada sujeito (CORRÊA, 2005). Temse nesse caso, integrado, ou como sinônimo ao processo de segregação, o desenvolvimento da segregação residencial, que é de acordo com Corrêa (2002, p. 59, grifo nosso) “[...] é uma concentração de tipos de população [e de moradias] dentro de um determinado território.” Ainda segundo o Corrêa (2002), a segregação residencial origina-se na formação das classes e da cidade, sendo ela uma expressão espacial das classes sociais. O onde morar está relacionado, segundo o referido autor, as condições dos indivíduos, sendo que, as áreas mais servidas de infraestruturas urbanas serão ocupadas pela classe social mais elevada, enquanto que, as áreas com problemas estruturais e subequipada estarão relacionadas à classe menos favorecida, a classe formada pelos excluídos (VILLAÇA, 2001). No objeto de estudo, é perceptível a segregação espacial/residencial por parte da população que vive nessa localidade, na qual, observa-se uma estrutura habitacional uniforme, caracterizada pelo baixo nível das casas lá erguidas (figuras 17 e 18, páginas 57 e 60), bem como a falta de arrimos urbanos tão característicos das áreas segregadas. De acordo com os dados da pesquisa de campo e as observações realizadas na área, percebe-se que, as únicas “assistências” urbanas presentes nesse espaço são a disponibilidade de água encanada e de luz. Neste espaço, não há saneamento básico e nem a coleta de lixo, sendo que, os moradores dessa área, destinam grande parte de seus resíduos sólidos a ruas adjacentes4 ou nas proximidades de suas casas, nas margens da Lagoa dos Pintos. Pode-se observar essa prática desenvolvida pela comunidade nesse espaço a partir da figura 19. Esta figura representa o meio insalubre em que vive essa comunidade, resultado tanto da falta de conscientização da população, bem como, da atuação “restrita” do Estado sob tal espaço e/ou condição. 4

Alguns moradores relataram que nos dias em que o carro da coleta de lixo passa nas ruas próximas, os mesmos transportam os seus resíduos para essas vias. Os moradores das ruas Maurício L. Assis e Niltou Sidou destinam seu lixo a Avenida Francisco Mota e os moradores das ruas Saturnino Pereira da Silva e Kleber Dantas Pessoas destinam o seu lixo a Rua José Mendes.

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Figura 19: Lixo depositado nas margens da Lagoa dos Pintos Fonte: Foto do autor (2010)

Ainda sobre a questão da segregação, cabe ressaltar que, esse processo espacial pode ser de dois tipos, a saber: O primeiro, ocorre por parte da classe mais favorecida, que se recolhem a espaços mais estruturados (condomínios, bairros com infraestruturas adequadas), ocorrendo em tal situação um processo de autossegregação. E o segundo, sendo caracterizado pela falta de opção (de possibilidade) de onde e como morar da maioria da população, ocorrendo nesse caso, o que Corrêa (2002) enfatiza como sendo uma segregação imposta. No caso em análise, a segregação encontra-se enquanto uma imposição do sistema capitalista, pelo fato de que a população dessa área não tem como habitar e/ou pagar por outros locais, encontrando como solução para o problema habitacional, a ocupação dessa área, ou seja, eles estão condicionados a “morar nas águas” e a viver a partir de uma falsa solução, que traz consigo uma série de outras dificuldades. É interessante enfatizar que, a ocupação dessa área aparece em primeira instância, a essa comunidade, como solução, como uma vantagem, devido o baixo preço da casaterra-mercadoria. Porém, a mesma é impregnada de problemas, que quando comparados as vantagens e as desvantagens da mesma, o peso maior recai sobre o sofrimento, sobre a difícil realidade vivida cotidianamente (VILLAÇA, 2001). Os problemas das moradias, da falta de condições de vida, de arrimos urbanos nessa área não estão associados somente as condições socioeconômicas dessa comunidade, isso porque, por trás dessas mazelas, desse conjunto de dificuldades esconde-se a atuação ineficaz do Estado. Segundo Corrêa (2002) o espaço urbano é um produto social, produto da atuação de diferentes agentes, que produzem e consomem o espaço de maneira específica. Os agentes responsáveis por essa produção seriam, de acordo com o referido autor, os proprietários dos meios de produção (grandes empresários); os proprietários fundiários; os promotores imobiliários; os grupos sociais excluídos e o Estado. O Estado, enquanto agente produtor do espaço, seria ou deveria ser, o ator espacial responsável pela organização do espaço urbano, pela regulação do uso do solo

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urbano, pela reprodução de espaços “uniformes”, dotados de infraestruturas adequadas. Porém, observa-se que, antes de atuar de forma efetiva na produção equilibrada dos espaços, esse ator espacial, inserido na sociedade capitalista, apresenta-se enquanto um “sujeito” desprovido de neutralidade, na qual, os princípios de equidade entre os espaços são deixados em segundo plano. O Estado atua em primeira instância de forma a atender de maneira específica a classe dominante, que de certa forma, é a que está no poder (CORRÊA, 2002). Ele investe maciçamente nas áreas nobres, construindo espaços adequados, com todos os suportes urbanos adequados. Sobre tal apontamento, Villaça (1986, p.45) enfatiza que “[...] o Estado, em primeiro lugar, faz nas regiões onde se concentram as camadas de mais alta renda, enormes investimentos em infraestrutura urbana” e nas áreas das camadas sociais excluídas, o mesmo ausenta-se, levando-as a segregação, a intensificação das desconformidades espaciais (CORRÊA, 2002). O Estado apresentase, inserido nesse contexto, enquanto agente especulador, pois, conforme aponta Assis (2010), esse ator espacial: Facilita a reprodução do capital e das suas contradições no espaço da cidade, privilegiando as áreas nobres (de maior interesse dos promotores) com melhores equipamentos (água, luz, saneamento, asfalto, coleta de lixo, praças, parques etc.), em detrimento das áreas pobres, cada vez mais relegadas, onde se concentra a maior parte da população (p. 170).

O bairro em análise e a área específica de estudo demonstram de forma eloquente esse tipo de prática exercida pelo Estado. São inúmeros os contrastes espaciais, a falta de suportes urbanos nessa área, em contrapartida das áreas circundantes a mesma, que se apresentam adequadamente, com todos os suportes de infraestrutura urbana. A área estudada mostra-se como exemplo da falta de compromisso e da efetivação das práticas políticas dos governantes, da falta de atuação e da “colocação” em prática de certas ideologias, leis e regras, bem como, do “desinteresse” dos mesmos pelas áreas desprovidas, de baixo status social. Basta analisar as concepções trazidas desde a Constituição Federal de 1988, escala nacional, ao Plano Diretor de Mossoró (PDM), escala local, que as contrições entre os discursos do Estado e a realidade mostram-se explícitas. Analisando a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 2002), percebe-se no primeiro artigo deste documento que, todo cidadão brasileiro tem o direito a condição de vida urbana digna e justiça social, sendo o Estado, o responsável pelo acesso à moradia, ao transporte público, ao saneamento básico, a saúde entre outros benefícios. Porém, o que se observa é a carência e/ou ausência de todas essas assistências, ou seja, a efetivação das contradições entre o “papel” e a realidade. De maneira semelhante à escala nacional, as contradições entre os deveres do Estado e a realidade também estão presentes na escala local. Analisando-se o PDM (MOSSORÓ, 2006, p. 02), verifica-se que, o Artigo 4 do mesmo descreve que, este documento rege-se a partir dos seguintes princípios, a saber: I – justiça social e redução das desigualdades sociais; II – inclusão social, compreendida como garantia de acesso a bens, serviços e políticas sociais a todos os municípios;

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III – direito à cidade para todos, compreendendo o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à energia elétrica, às vias e acessos públicos, saúde, educação, lazer, segurança, ao transporte público, aos serviços públicos, ao trabalho. E no tocante aos aspectos habitacionais, o PDM (MOSSORÓ, 2006, p. 12-13), no Capítulo III (do desenvolvimento urbano), na Seção I, no Artigo 37, ainda enfatiza que, “[...] para assegurar o direito à moradia, ficam estabelecidas as seguintes diretrizes”, a saber: I – urbanizar as áreas ocupadas por população de baixa renda; II – estabelecer programas direcionados á população de baixa renda; III – definir no zoneamento espacial da cidade as Áreas Especiais de Interesse Social destinadas à regularização fundiária e urbanística e à produção de habitação social. Todas as “concepções” expostas acima demonstram a pseudoatuação do Poder Público local enquanto ator regulamentador do espaço urbano, e ainda deixam lacunas para questionamentos como: Que práticas constitucionais são realmente desenvolvidas? Que condutas são efetivamente cumpridas? Até que ponto, esses códigos ultrapassam as folhas impressas e se concretizam na realidade? Estas indagações são de fáceis respostas, bastando apenas à observação da paisagem urbana da cidade de Mossoró, na qual, encontra-se um espaço marcado pela desigualdade, pelo choque de realidades, pelas condições de habitabilidade e pelo não-cumprimento dos direitos urbanos. Exemplos mais eloquentes desse choque de contraste e da atuação precária do Estado, pode ser observado nas imagens posteriores, nas quais, percebe-se a ausência e/ou a falta de interesse do mesmo pelas áreas relegadas. Na figura 20, observa-se a ausência de ruas pavimentadas, ou seja, de vias inadequadas, com a falta do mínimo de infraestrutura.

Figura 20: Rua sem asfalto encontrada na área de estudo, exemplo da atuação insuficiente do Estado Fonte: Foto do autor (2010)

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Na figura 21, observa-se a existência de esgotos a “céu aberto”, exemplos contundentes da falta de arrimos urbanos, da falta de saneamento, provenientes do Estado nessa área de estudo, ou seja, da atuação efetiva do Estado enquanto agente “(des)regulador” do espaço.

Figura 21: Esgoto a “céu aberto” encontrado na área de estudo – Exemplo da falta de atuação do Estado no que se refere ao saneamento básico Fonte: Foto do autor (2010)

Toda essa deficiência e/ou ausência de infraestruturas urbanas, que está diretamente interligada a “atuação” do Estado nessa localidade, evidencia o processo de espoliação urbana. Segundo Kowarick (1979), o processo de espoliação urbana é O somatório de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade de serviços de consumo coletivo que se apresentam como socialmente necessários em relação aos níveis de subsistência e que agudizam ainda mais a dilapidação que se realiza no âmbito das relações de trabalho (p. 59).

Esse processo, agregado aos tantos outros percalços já citados, majora ainda mais as chagas dessa comunidade e nega a possibilidade de vivência adequada a esses indivíduos, que, por falta de capacidade ou adequabilidade, se inseriram, de maneira periférica, na dinâmica do sistema capitalista, dinâmica excludente, segregadora e perversa. De maneira geral, evidencia-se que a condição do “morar nas águas” é nos dias hodiernos, uma condição, um reflexo, um conjunto de (im)possibilidades socioespaciais na qual estão inseridos a grande parte da sociedade, formada essencialmente por indivíduos excluídos e relegados. Destarte, finalizada essa análise do “morar nas águas” enquanto produto das (im)possibilidades socioeconômicas, o próximo capítulo deste trabalho abordará essa problemática a partir dos problemas encontrados na área analisada, ou seja, serão destacadas as dificuldades “vividas” pela comunidade estudada; bem como, as possíveis soluções (discussões) para amenizar os problemas encontrados na área; e

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por fim, o “morar nas águas” será exposto a partir da visão dos que vivem e sobrevivem diariamente a partir dessa condição.

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CAPÍTULO 4 CAPÍTULO 4

4. REALIDADE E PROPOSIÇÕES PARA O “MORAR NAS ÁGUAS” s problemas urbanos apresentam-se de maneira “globalizada” em todas as cidades brasileiras. Basta observar a pobreza das casas edificadas nas favelas dos grandes centros urbanos; os congestionamentos nas grandes avenidas; a falta de escolas e hospitais dignos nas cidades de grande ou pequeno porte; os alagamentos nas ruas; a violência entre elites dos crimes; problemas tipicamente urbanos saltam aos olhos de quem observa e vive nas cidades, sejam elas de grande ou pequeno porte.

O

Porém, esses problemas não são sentidos de maneira semelhante entre todos os sujeitos da sociedade, pois, conforme Souza (2008) cada indivíduo irá reagir de maneira diferente, de acordo com a classe social, frente às problemáticas urbanas. Exemplo destas “reações” está na forma como as diferentes camadas sociais se comportam em relação à violência urbana, pois, percebe-se que, as camadas sociais mais elevadas se isolam em verdadeiras “prisões” cercadas por sistemas modernos de segurança; em contrapartida, as camadas mais pobres vivem cotidianamente no meio dessa ferocidade urbana, ou seja, não encontram solução frente a essa problemática. Essas diferentes posturas tomadas por cada tipo de camada social são exemplos de contrastes, de diversidades sociais e espaciais que marcam as cidades brasileiras. A condição do “morar nas águas” é também um exemplo dessa forma de reação da sociedade frente aos problemas urbanos. Ela é uma das maneiras encontradas por muitos indivíduos para resolver, ou ao menos amenizar, o problema da falta de moradia. Porém, ao mesmo tempo em que essa condição apresenta-se como solução à problemática habitacional, ela traz também, uma verdadeira “enxurrada” de outras dificuldades, de problemas que maximizam as mazelas de uma parcela da sociedade marcada pelo abandono e pela precariedade de vida. A área em estudo é um exemplo contundente dessa forma de reação e ao mesmo tempo intensificação das problemáticas urbanas, pois, além de não ter condições de vida e habitabilidade adequadas, estando à mesma “forçada” a condição do “morar nas águas”, a população dessa comunidade está demasiadamente sujeita a uma gama diversificada de problemas, que se estendem desde os alagamentos, problemas de saúde, perdas materiais à interferência na vida cotidiana dessa comunidade. Desta forma, partindo-se da configuração problemática na qual está inserida a condição do “morar nas águas” e da realidade vivenciada pelos moradores da comunidade estudada, o próximo subcapítulo deste trabalho terá o centro de discussão voltado à compreensão dos problemas encontrados na área de estudo.

4.1. OS PROBLEMAS DO “MORAR NAS ÁGUAS” iz o ditado popular que “depois da tempestade vem sempre a bonança”, porém, esse jargão não se aplica aos indivíduos que sobrevivem em meio às águas. Basta ouvir as notícias sobre as cheias de algum rio ou o transbordamento de algum açude ou lagoa, que informações sobre pessoas desabrigadas, que perderam seus bens materiais, e que não encontraram a “calmaria” do pós-tempestade, também são lançadas em meio a essa enxurrada de problemas.

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Esses fatos são exemplos claros do quanto à condição do “morar nas águas” está conexo a uma diversidade de outros problemas, normalmente enfrentados pelas camadas sociais excluídas. A área de estudo é um exemplo “concreto” dessa situação problemática, pois, além dos problemas relacionados às precárias condições de vida e habitabilidade dessa comunidade, um série de outros entraves também estão imbricados a esse local e a essa condição. Dentre os problemas detectados nessa localidade e na própria condição do “morar nas águas”, destacam-se os periódicos alagamentos que ocorrem nesse espaço. Basta que as chuvas entre dezembro-março (chuvas de verão) caiam sobre a cidade de Mossoró, que os indivíduos dessa área já ficam receosos com as possíveis “catástrofes sociais”. Este temor da comunidade estudada está relacionado ao fato de que, no período destacado acima, a Lagoa dos Pintos normalmente enche além de sua capacidade e expulsa seu excedente hídrico para as suas extremidades. Como a área margeada por esse reservatório está ocupada por essa comunidade, os fluidos seguem sua dinâmica natural e invadem as residências das pessoas, alagando-as e deixando-as com marcas da violência “natural” sobre o “social”. Essa dinâmica natural e ao mesmo tempo “social” dos alagamentos nesse espaço pode ser visualizada a partir dos “esboços” adiante. O primeiro esboço, figura 22, representa a área estudada no período de estiagem, momento em que os indivíduos dessa comunidade vivem “sem” receio de perder seus bens e apenas como “vizinhos das águas”. Já o segundo esboço, figura 23, representa a área de estudo no período de chuvas intensas, quando as águas da lagoa transbordam e tomam seu rumo natural, passando a alagar as casas de seus “vizinhos”. Nesse sentido, as pessoas dessa comunidade deixam de ser apenas “vizinhos das águas” e tornam-se “moradores das águas”. Da pesquisa de campo realizada com os moradores dessa área, o problema dos alagamentos sempre foi o mais enfatizado. Segundo os moradores da área (informação verbal5), com a vinda dos alagamentos vem o medo de perder a casa, ou ainda, o receio que as águas devastem, ainda mais, as moradias inacabadas, ou que, as mesmas levem o pouco do que eles conseguiram com muito esforço. Eles ainda relataram que, durante os alagamentos o cotidiano muda completamente, pois, aparecem novos “hábitos” que são inseridos na correria do dia-a-dia. Dentre eles, destacam-se: os mesmos têm que “suspender” seus móveis; dormir em redes (as camas estão suspensas para não molharem); a saída e a chegada em casa tornam-se complicada, estando os mesmos obrigados a “andar entre as águas”; a atenção com as crianças é redobrada (riscos de afogamentos), entre outras mudanças. Essas novas posturas são as “soluções” encontradas por essa comunidade para esquivar-se dos alagamentos, ou seja, são formas de adaptação para a vivência nas águas. Cabe ressaltar que, os moradores desta área informaram durante a pesquisa de campo, que nos períodos dos alagamentos, eles não saem de suas casas por motivos de impossibilidades econômicas, ou seja, eles não têm como alugar uma casa

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Os relatos dos moradores contidos nesse trabalho foram resultados das pesquisas de campo realizadas na comunidade localizada as margens da Lagoa dos Pintos – área de estudo. Nessas pesquisas questionou-se a respeito das condições sociais e econômicas dessa comunidade, bem como, indagou-se a respeito do período de ocorrência dos alagamentos, enfatizando as principais consequências desse fenômeno e qual a postura tomada frente a essa dificuldade. O formulário da pesquisa está nos apêndices (APÊNDICE B).

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em outros locais. Esta situação demonstra o quanto as camadas mais pobres estão sujeitos e vulneráveis aos piores espaços e condições de vida.

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Lagoa

Figura 22: Representação da área estudada no período de estiagem – “vizinhos das águas Fonte: Autor (2010)


Figura 23: Representação da área estudada no período de alagamentos – “moradores das águas” Fonte: Autor (2010)


Ainda sobre a vivência nas águas, enfatiza-se que, para se protegerem dos efeitos dos alagamentos, alguns moradores dessa área construíram calçadas elevadas para barrar, ou pelos menos amenizar, a violência das águas da lagoa no período dos alagamentos. A figura 24 é exemplo dessa adaptação e/ou proteção frente aos possíveis alagamentos, na qual, observa-se a construção de barreiras artificiais.

Figura 24: Exemplo de “barreiras” construídas para proteção das casas durante os períodos de alagamentos Fonte: Foto do autor (2010)

Os fatos descritos acima expressam o quanto os indivíduos desse espaço estão sujeitos aos riscos naturais e sociais. Essa vulnerabilidade está associada diretamente as condições socioeconômicas da comunidade, bem como a atuação precária do Estado em relação à realidade vivenciada por esses indivíduos. Sobre tal apontamento, Monteiro (2008, p. 10) comenta que “[...] a vulnerabilidade das cidades aos riscos climáticos tem crescido na proporção direta da alienação do desenho urbano face ao sítio e à posição geográfica”. A referida autora ainda aponta que no processo de segregação de determinadas áreas, a parte da população mais carente e os espaços mais pobres (as/os segregadas/os por uma imposição) estão mais expostos aos efeitos danosos do clima. Desta forma, o risco natural em ambientes urbanos está relacionado às possíveis catástrofes naturais que as populações e as cidades estarão suscetíveis a enfrentar, sendo que as camadas sociais de baixo poder aquisitivo são as que mais sentem os efeitos desses fenômenos. Além dos riscos naturais, entra em destaque a questão dos riscos sociais. Sobre tal tipo de vulnerabilidade, Veyret (2007) define-o como sendo: [...] a possibilidade de um acontecimento catastrófico para a coletividade humana ou, mais exatamente, como a probabilidade de ocorrência de um acontecimento cujas consequências poderiam ser nefastas para a sociedade, essa considerada em sua totalidade ou somente em um de seus componentes (p. 276-277).

A referida autora ainda enfatiza, em relação à questão do risco social e a condição de vida da população, que:

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Geralmente, a fragmentação do espaço surge ao mesmo tempo como causa e resultante de desigualdades sociais, as quais são produtos de riscos que se manifestam em um prazo mais ou menos longo. A intensidade da vulnerabilidade social ante os riscos frequentemente varia em função dessas desigualdades. Em geral, quando a catástrofe sobrevém, as populações mais frágeis, as de menor mobilidade e cujo nível de vida está mais debilitado são as mais afetadas (VEYRET, 2007, p. 278).

A vulnerabilidade apresentada na área analisada em relação aos alagamentos periódicos demonstra o quanto a segregação e a desigualdade espacial expõem as camadas sociais “excluídas” aos riscos naturais, bem como aos sociais. Esta exposição aos riscos é resultado da reprodução desigual da sociedade, que reflete nos espaços, as chagas sociais. É interessante destacar o que a Veyret (2007, p. 89) coloca em relação à concepção de risco entre a população mais carente, pois, segundo a mesma, “[...] a consciência do risco é medíocre nos citadinos pobres [...]. Segundo a referida autora, a consciência da classe “pobre” “[...] é substituída por preocupações advindas de outros riscos específicos, notadamente os dos conflitos sociais ligados ao modo de vida urbano” (p.89). Confirmando o que autora enfatiza, no caso em estudo, a maior importância é dada a possibilidade de morar. O medo, a insalubridade, os riscos estão em segundo plano, pois, o que importa essencialmente a essa comunidade é a “segurança” de ter onde morar. Segundo informações obtidas durante a pesquisa de campo, os moradores desta área informaram que, acima dos problemas enfrentados nesse espaço está a “felicidade” de onde poder morar, de ter um lar. Além do problema habitacional, dos alagamentos enfrentados sazonalmente, outros dificuldades também estão presentes na área de estudo. Alguns destes estão interligados aos alagamentos, enquanto que outros são resultantes do processo de configuração espacial dessa área, ou seja, estão imbricadas as condições de vida e a atuação ineficaz do Estado nessa comunidade. Dentre estes outros problemas cita-se a problemática das águas poluídas da Lagoa dos Pintos. A poluição das águas desse reservatório é resultante da sobreposição de três outros problemas “básicos” encontrados na área, sendo que ambos têm ligação direta com a população, bem como, com atuação precária do Estado. A poluição dessas águas dáse principalmente pelo lixo que é jogado pela comunidade as margens da lagoa, pelos esgotos que deságuam nesse reservatório, e pelo transbordamento, nos períodos de intensas chuvas, das águas da bacia de estabilização que se encontra nas proximidades dessa área. Cada um desses três pontos “colabora” com a poluição das águas desse reservatório, além de acarretarem uma série de outros problemas, como poderá ser visto adiante. Como já foi enfatizada anteriormente, a população da área estudada joga o lixo de suas residências nas margens da lagoa. A “justificativa” para tal ação está no fato de que o carro da coleta de lixo não passa em suas ruas6. Porém, em entrevista realizada com o agente de saúde responsável pela área, o mesmo destacou (informação

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As ruas analisadas nesse estudo são as ruas Mauricio L. de Assis, Newton Sidou, Saturnino Pereira da Silva e a Kleber Dantas Pessoa. Estas ruas estão representadas nas figuras 25 e 26, páginas 73 e 74.

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verbal7) que o carro não passa diretamente nessas ruas pelo fato delas serem estreitas e de não permitirem o tráfego de carros de grande porte. Porém, ele também informou que o veículo da coleta de lixo cruza as vias adjacentes (próximas) durante três vezes por semana. Ele ainda enfatizou que a justificativa da presença de lixo nessa área está no comodismo e na falta de conscientização da comunidade frente à problemática ambiental. Rebatendo a fala do agente de saúde, alguns moradores ressaltaram (informação verbal) que colocam o lixo nas ruas em que o carro da coleta passa. Porém, contrapondo-se a essas assertivas, o que se observa na área é que, além de viver em meio às águas, esta comunidade também vive em meio à insalubridade, no meio do lixo. A figura 25 retrata a pseudosolução encontrada pela população em relação aos resíduos produzidos, ou seja, a vivência em meio ao lixo. Destaca-se o lixo encontrado em frente as casas dessa comunidade e a vivência “normal” da população em meio à sujeira (lado direito da figura).

Figura 25: Vivência em meio ao lixo na área estudada – Uma das fontes de poluição das águas da Lagoa dos Pintos Fonte: Foto do autor (2010)

Outro fator que “influencia” na poluição das águas de lagoa refere-se aos esgotos a céu aberto encontrados na área, sendo que os mesmos são exemplos explícitos da atuação ineficaz do Estado (falta de saneamento básico na área). De acordo com a entrevista realizada com o agente de saúde, são inúmeras as casas que têm os esgotos domésticos ligados a lagoa. O mesmo relatou também que, há evidências de casas que lançam seus dejetos sólidos (fezes) nesse reservatório e de determinadas residências que possuem suas fossas sépticas ligadas através de canais clandestinos a esta lagoa. Novamente, entra em destaque a falta de conscientização, de colaboração da comunidade em relação à degradação do meio ambiente local.

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Entrevista realizada para o diagnostico das possíveis problemas e doenças encontradas na área. O roteiro de entrevista encontra-se nos apêndices (APÊNDICE C).

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No que se refere ao saneamento básico, ressalta-se que, a parte do bairro Costa e Silva correspondente ao conjunto Ulrick Graff e espaços adjacentes já foram saneados, sendo que, estas áreas estão ocupadas em grande parte, pela classe média alta da cidade de Mossoró. Em contrapartida, a área focalizada como objeto de estudo e seus espaços adjacentes, formada essencialmente em sua maioria por comunidades carentes, não foram saneadas. Este situação é um exemplo claro do quanto à atuação do Estado está interligada aos interesses das classes dominantes. A partir da figura 26 pode-se observar a existência de esgotos a céu aberto, sendo que os mesmos são exemplos explícitos da falta de atuação do governo local frente à ausência de saneamento básico na área. Cabe apontar que, alguns dos esgotos que “deságuam” nessa área não são da comunidade. Cita-se como exemplo uma galeria “natural” que traz os efluentes do conjunto Vingt Rosado para dentro da lagoa.

Figura 26: Esgoto a “céu aberto” encontrado na área de estudo – Fonte de poluição das águas da lagoa e exemplo da atuação ineficaz do Estado Fonte: Foto do autor (2010)

Outra fonte de poluição das águas da Lagoa dos Pintos refere-se ao transbordamento das águas da bacia de estabilização situada na proximidade desse espaço. A figura 27 permite a visualização desta bacia, sua proximidade com a comunidade estudada (com a lagoa) e sua dinâmica. Nos períodos de chuva intensa, este reservatório artificial de captação dos resíduos sólidos e líquidos (fezes e urina) enche além de sua capacidade e lança para seus extremos, o excedente de suas “águas poluídas”. Como no lado esquerdo desse reservatório está situado a Lagoa dos Pintos e a comunidade analisada, as águas deste reservatório, seguindo as a seguinte trajetória (A - B), representadas na figura 27, invadem a Lagoa dos Pintos, “colaborando” cada vez mais com sua poluição e dos espaços adjacentes.

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Figura 27: Bacia de estabilização situada próximo a comunidade estudada – Uma das fontes de poluição das águas da Lagoa dos Pintos Fonte: Google Earth (2009)


Na pesquisa de campo realizada, entre as reclamações mais pertinentes da população desta área, está o “mau-cheiro” proveniente deste reservatório. É interessante ressaltar que, essa bacia de estabilização de efluentes não é resultado do saneamento da área, pois a mesma serve para a drenagem dos resíduos do conjunto Vingt Rosado, conjunto habitacional de classe média, pertencente a outro bairro. Este fato causa um sentimento de revolta entre os moradores do bairro, em específico da área de estudo, pois, além dessa bacia trazer malefícios a comunidade, ela não têm “utilidade” para os mesmos. O desgaste das águas dessa fonte, as diversas formas de poluição encontradas as suas margens estão interligadas, de certa forma, ao próprio processo de segregação espacial e da pobreza verificada na área, que por sua vez intensificam o processo de degradação ambiental nessa área. Sobre a relação entre a degradação ambiental e a segregação espacial/pobreza urbana, Souza (2008) aponta: À pobreza urbana e à segregação residencial podem ser acrescentados outros problemas, não raro intimamente associados com elas duas. Um deles é o da degradação ambiental, em relação à qual, aliás, se percebe, em cidades como as brasileiras, uma interação entre os problemas sociais e impactos ambientais de tal maneira que vários problemas ambientais, irão causar tragédias sociais (como desmoronamentos e deslizamentos em encostas, enchentes e poluição atmosférica), têm origem em problemas sociais ou são, pelos menos agravados por eles (SOUZA, 2008, p. 84).

Porém, Souza (2008) explica que não se pode catapultar a degradação ambiental somente as classes menos favorecidas. Segundo o autor, deve-se analisar o contexto socioeconômico na qual a mesma está inserida e a partir disso, verificar quais razões estão imbricadas ao desenvolvimento de tal processo. Ele cita o exemplo das casas construídas nas áreas de encostas, sendo que o mesmo destaca “[...] não seria justo nem correto culpar simplesmente os pobres que desmatam e perturbam a drenagem natural em uma encosta para construir casas de favelas sem levar em conta o contexto econômico-social que os induz a isso” (SOUZA, 2008, p. 84). O que foi destacado acima insere-se perfeitamente na dinâmica estabelecida na área de estudo, pois a comunidade desse espaço tem sua parcela de culpa nesse processo de degradação da área e de intensificação dos problemas encontrados na mesma, porém, o contexto na qual a mesma está inserida, condições precárias de vida, e a ausência do Estado frente às problemáticas vivenciadas são, também, razões claras de toda essa dinâmica estabelecida nesse espaço. Agregado ao lixo, aos esgotos a céu aberto, a alagamentos e as condições precárias de vida dessa comunidade, de acordo com levantamento realizado na Unidade Básica de Saúde (UBS) do bairro e com a entrevista realizada com o agente de saúde da área, percebe-se a existência de uma série de doenças (outros problemas), sendo que as mesmas são resultado direto da insalubridade, da falta de higienização da área. Dentre as doenças diagnosticadas a partir do levantamento das fichas de acompanhamento dos moradores (ANEXO A) desse espaço, destacam-se: Escabioses: Doenças causadas pelo contato com a água poluída, urina e fezes de animais. Exemplos: coceiras; Verminoses: Resultante do contado com as fezes de animais. As margens da lagoa há a criação de certos animais, tais como porcos, cavalos, cabras;

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Diarreias: Resultante do contado de mosca, insetos com meios insalubres e depois com os alimentos e/ou águas que são consumidas/ingeridas; IRA – Infecções Respiratórias Agudas; E Dengue (há alguns casos na área). É interessante enfatizar que, como a área tem muito lixo, esgotos e também matagais, esses ambientes são locais essenciais para a proliferação de animais que transmitem tais doenças. Entre os animais proliferadores de doenças e/ou que trazem algum risco a comunidade da área, cita-se: baratas e muriçocas (insetos); cobras, ratos, escorpiões. Segundo os moradores dessa área, já faz parte do cotidiano e das dificuldades do dia-a-dia, a convivência com esses animais. Além dessa gama de problemas já citados, os moradores dessa área, em específico os das ruas Saturnino Pereira e Kleber Dantas Pessoa, reclamam da falta de calçamento na área. Eles relataram que as ruas além de serem estreitas e de não possuírem calçamento, no período de chuvas, alagamentos, a locomoção dos mesmos fica comprometida devido o lamaçal que as mesmas apresentam. A figura 28 representa a Rua Kleber Dantas Pessoa, caracterizada por não possuir pavimentação e de ser estreita. Nessa figura, destaca-se uma linha vermelha que representa o espaço-limite dos alagamentos, ou seja, até onde as águas da lagoa já foram (aproximadamente) no período das chuvas.

Figura 28: Rua sem calçamento e zona limite dos alagamentos Fonte: Foto do autor (2010)

O leque de problemas encontrados na área de estudo é extenso. São problemas de cunho natural, bem como social, produto da atuação insuficiente do governo local ou mesmo da conscientização da população. Entretanto, são problemas em sua maioria vivenciados cotidianamente, reflexo da mais clara exclusão social. Os problemas encontrados nesse espaço são reflexos das imposições do capitalismo, de um sistema que dita às ordens e “desenha” a paisagem urbana, obrigando o estrato populacional de baixa renda a viver nas condições que os cabem, ou seja, nos piores espaços.

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Discutidos os principais problemas que marcam o espaço estudado e as condições de vida (insalubres) da população dessa área, o próximo subcapítulo deste trabalho terá o centro de discussão voltado para a compreensão da condição do “morar nas águas” a partir da fala dos que vivem sobre esta condição, ou seja, esta imposição será exposta a partir da apreensão que os “moradores das águas” têm e fazem em relação a sua realidade. .

4.2. A REALIDADE DOS “MORADORES DAS ÁGUAS”

O

espaço urbano é marcado por uma diversidade de características sendo que, o mesmo apresenta-se fragmentado, articulado, como reflexo e condicionante social (CORRÊA, 2005). Além de apresenta tais aspectos, conforme Corrêa (2005) o espaço urbano é o “[...] lugar onde os diferentes grupos sociais vivem e se reproduzem [...]” e como um dos lócus da reprodução social, o mesmo “[...] envolve crenças, valores, mitos, utopias e conflitos criado no bojo da sociedade de classes e em parte projetados nas formas espaciais” (CORRÊA, 2005, p. 150), ou seja, ele constitui-se enquanto campo simbólico, “[...] que tem dimensões e significado variáveis segundo as diferentes classes e grupos etário, étnico” (p. 150). Desta forma, para se fazer um apreensão eficaz do espaço urbano e suas dinâmicas, é de fundamental importância a análise do mesmo a partir dos valores e concepções do que vivem e participam desse espaço, pois, de acordo com Carlos (2001): Hoje a cidade é a expressão mais contundente do processo de produção da humanidade sob a égide das relações desencadeadas pela formação econômica e capitalista. Na cidade, a separação homem-natureza, a atomização das relações e as desigualdades sociais se mostram de forma eloquente. Mas ao analisá-la, tornar-se importante o resgate das emoções e sentimentos; a reabilitação dos sentidos humanos que nos faz pensar a cidade para além das formas. Isso nos faz analisar a cidade para além do homem premido por necessidades vitais (comer, beber, vestir, ter um teto para morar), esmagado por preocupações imediatas. A cidade é um modo de viver, pensar, mas também sentir. O modo de vida urbano produz [ideias], comportamentos, valores, conhecimentos, formas de lazer, e também de cultura (p. 25-26).

Dentro desse contexto, a condição do “morar nas águas” da área focada como objeto de estudo será exposta a partir da apreensão da fala e dos sentimentos dos que sobrevivem em meio a esta imposição, ou seja, desenvolver-se-á uma construção etnográfica8 da comunidade estudada. Nessa abordagem, serão focadas as principais características sociais, espaciais, econômicas dos indivíduos, levando a compreensão do que já foi discutido ao longo desse trabalho a partir dos olhares dos que moram sobre tal condição. Seu Francisco, 85 anos, semianalfabeto, vive sozinho nesse espaço há mais 20 anos. Sua renda mensal é proveniente da “esmola do governo9”, um salário mínimo que no

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Essa construção etnográfica teve como base as pesquisas de campo realizadas na área, bem como, os diálogos estabelecidos com a comunidade. A identificação das pessoas dessa área será feita a partir de pseudonomes. 9 As partes da construção etnográfica que aparecem em destaque foram os termos utilizados pelos moradores durante a pesquisa de campo, ou seja, são trechos da fala dos moradores desse espaço.

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final do mês “não dá nem para cobrir as despesas e necessidades básicas”, a começar pelos remédios. Sua casa simples, mas acima de tudo “própria”, ainda é de taipa, apresentando apenas dois cômodos, a saber: uma sala, que também serve de quarto e uma cozinha. Seu banheiro rústico, sem equipamentos básicos, está localizado do lado de fora de sua casa, mais precisamente, no quintal. Como forma de se proteger dos alagamentos, Seu Francisco relatou que construiu “com muito esforço” uma calçada elevada para barrar ou pelos menos amenizar os efeitos dos alagamentos no período de chuva. Os aspectos da casa de Seu Francisco podem ser visualizados a partir da figura 29, item A. O terreno onde está construída a residência de seu Francisco foi doado por seu neto, sendo que a casa dele foi edificada a partir do processo de autoconstrução. Segundo o mesmo, sua casa não possui uma boa infraestrutura nem segurança, e ele ainda comentou que, apesar das águas não adentrarem em sua residência, por causa da barreira construída, no período de chuvas, o mesmo teme que com chuvas fortes, sua casa venha a desabar. As precárias condições de vida desse senhor são refletidas no interior de sua casa. Os bens materiais (móveis) de sua residência são apenas algumas cadeiras de madeira, sua rede de dormir, um baú para guardar suas roupas e um fogão velho, com panelas amassadas. O mesmo enfatizou que, o que “gasta” energia elétrica em sua casa é apenas “dois bicos de luz” e um rádio velho. Sobre os problemas da área em que ele mora, o mesmo enfatizou que, é triste uma pessoa como ele, idoso e doente, viver em tais condições. Ele relatou que, nos períodos de alagamento, o caminhar pela área fica comprometido; certos animais, tais como insetos e cobras, saem de seus “ninhos” e passam a viver em meio a comunidade. Ele ainda destacou que, apesar das águas dessa lagoa estarem poluídas, algumas pessoas da comunidade utilizam as águas desse reservatório. Ele citou o caso de crianças que brincam em meio a essas águas e de pessoas que pescam em tal ambiente. Inconformado com esta situação, ele finalizou a entrevista, pesquisa de campo, com os olhos cheios de lágrimas, afirmando que ainda tinha “esperança” de um dia sair dessa área. Outra entrevistada, Maria de 46 anos, mora nessa comunidade com seu marido e seu filho há mais de 20 anos. Ela cursou até a 6ª série e seu marido é analfabeto. Seu filho adolescente estuda em uma escola da comunidade e está cursando o 8° ano. Sua família sobrevive com a renda de um salário mínimo por mês, resultado de uma pensão que a mesma recebe. Seu marido encontra-se desempregado, porém, o mesmo faz alguns trabalhos “soltos” para complementar a renda da família, conhecidos popularmente por “bicos”. A renda dessa família também é complementada com o auxilio mensal do programa social Bolsa-Família, sendo que o valor mensal do mesmo é de R$90,00. De acordo com essa moradora, o acesso a essa moradia nesse espaço deu-se principalmente pelas condições financeiras da família. Ela relatou que comprou o terreno onde mora atualmente em 1990 por R$ 630,00. Sua casa inicialmente foi resultado do processo de autoconstrução, porém, há cerca de quatro anos atrás, a mesma foi reconstruída através de programa de erradicação das casas de taipas promovido pela prefeitura de Mossoró. Sua residência possui uma sala, uma cozinha,

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um banheiro “razoavelmente adequado” e dois quartos. Os aspectos da residência da entrevistada Maria podem ser visualizados a partir da figura 29, no item B. Sua casa apesar de ser resultado de programas sociais, não possui uma boa infraestrutura nem segurança em relação aos alagamentos. Segundo a mesma, no período de alagamentos, as águas da lagoa “invadem” sua residência pela porta da cozinha e saem pela da sala. Ela destacou que esses alagamentos mudam completamente a rotina de sua família, pois segundo a mesma, ela tem que suspender todos os seus móveis, para que as águas não os levem. Ela destacou também uma série de problemas encontrados na área, a começar pelos próprios alagamentos. A mesma citou o problema do lixo na comunidade, relatando que a culpa desta problemática está tanto na comunidade como nos governantes locais; dos insetos e ratos advindos dos matagais que se formam as margens da lagoa; dos esgotos presentes na área; da falta de calçamento, entre outros problemas. Indignada com a situação em que ela vive, a mesma enfatizou que, o sentimento que margeia essa comunidade é o de “indignação com a falta de compromisso do poder público” e o de frustração ao ver pessoas tirando das “águas sujas” dessa lagoa, a fonte de vida, pois segundo a mesma, muitas pessoas pescam nesse reservatório. O sentimento de indignação e ao mesmo a “dor” da realidade fez Maria dizer ao final da pesquisa que: “As pessoas que moram nessa área são pessoas pobres, pessoas que não tem muitas vezes nem dinheiro para se alimentar. E ela ainda complementa: Imagine se alguém por aqui teria condições de comprar uma casa em outro lugar? Em situação semelhante, ou pior das que já foram relatadas nesse trabalho, sobrevive à senhora Conceição nesse espaço. Com 35 anos de idade, ela vive juntamente com seu marido e sua filha nessa área há sete anos. Ambos com baixa escolaridade (ela cursou até a 7ª série e o seu esposo é analfabeto), a única renda fixa dessa família está relacionada ao auxílio mensal proveniente do programa social Bolsa-Família. O valor desse auxílio é de R$ 90,00, sendo este, resultado do processo de escolarização de sua filha (5° ano). De forma a complementar a renda dessa família, a senhora Conceição trabalha fazendo faxinas e seu companheiro realizando trabalhos extras (bicos). Ela relatou que, o valor máximo obtido com um faxina é de R$ 40,00, e que, no final do mês sua renda não chega nem a um salário mínimo. A “justificativa” do morar nesta condição está diretamente relacionado às condições financeiras dessa família. Segundo Conceição, o terreno em que ela mora atualmente foi comprado em 2003 por R$ 200,00. Ela ressaltou que, sua “casa era muito fraca”, com condições de infraestrutura inadequadas. Essa situação mudou com a vinda do programa de erradicação das casas de taipas, porém, ela enfatizou que, apesar de estar vivendo numa casa “melhor”, composta de 01 sala, 01 cozinha, 01 banheiro e 01 quarto (figura 29, item C), os problemas da área ainda perturbam a vivência nesse local. Ela reclamou principalmente dos alagamentos e dos insetos provenientes dos mesmos, citando como exemplo, a presença de muriçocas. Ela disse que durante os alagamentos os seus móveis têm que ficar “suspensos” para que as águas não os levem. A mesma ainda enfatizou que, no período de alagamentos os números de doenças nessa área aumentam, em decorrência do contato com as águas poluídas dessa lagoa. Conceição “finalizou” a entrevista perguntando se essa pesquisa estava relacionada a alguma ação do Estado ou a alguma melhoria na área. Estas indagações são reflexos

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do pouco de esperança que ainda existe em relação a uma vida melhor, a uma vida digna, em que pelo menos os direitos de cidadãos sejam efetivados. A figura 29, citada anteriormente, representa a condição de moradia desses três “atores sociais”, cada qual com suas especificidades, com seus sentimentos, porém, ambos unidos pela mesma condição socioeconômica e enraizados no mesmo espaço por imposições da “mão” capitalista que castiga cruelmente uma parcela da sociedade: a dos excluídos, a dos relegados, a dos “moradores das águas”.

Figura 29: Casas dos “moradores das águas” Fonte: Foto do autor (2010)

Os três casos expostos acima são exemplos explícitos do quanto esta comunidade vive em condições que ultrapassam os limites da dignidade humana. A realidade desses indivíduos é uma das muitas imagens refletidas por uma sociedade “marcada” pela diferenciação social, que transpassa sua essência aos espaços habitado. A figura 30 expõe um pouco dessa dinâmica perversa na qual está “assentada” a sociedade, e de maneira específica, a área estudada. Nessa imagem, observa-se um individuo retirando das águas poluídas da Lagoa dos Pintos, o alimento para matar sua fome. Ele retira do meio insalubre, das águas escuras dessa lagoa, sua fonte de vida. Essa imagem representa à dura e cruel dinâmica do capital, altamente excludente e massacrante aos indivíduos relegados. Ela também deixa claro a veracidade das falas dos “moradores das águas”. Nesta figura também é possível observar a presença, na parte inferior da imagem, de aguapés, tipo de vegetação presentes em águas poluídas.

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Figura 30: “Morador das águas” utilizando as águas poluídas da Lagoa dos Pintos como fonte de vida Fonte: Foto do autor (2010)

Diante dessa imagem, de toda a realidade exposta, das vivências de cada “morador das águas” retratadas nesse trabalho, ficam as seguintes indagações: O que fazer diante de uma situação como essa? Que atitudes devem ser tomadas para solucionar ou ao menos, amenizar esta situação? Que posturas devem ser tomadas para que, com as chuvas, não venha uma enxurrada de receios, de desespero, de medo, de indignação? O que é necessário para viver de maneira adequada nesse espaço? O próximo subcapítulo trará algumas respostas para estas indagações, no sentido em que, desenvolver-se-á algumas proposições que poderão solucionar ou amenizar os problemas enfrentados por esta população.

4.3. POSSÍVEIS “SOLUÇÕES” PARA O “MORAR NAS ÁGUAS”

A

s respostas em relação às indagações feitas anteriormente são diversas e não partem apenas de um segmento da sociedade. Não há uma resposta única ou uma solução direta para os problemas dessa área, porém, o que existe são possibilidades de mudanças de cunho social, econômico, político e estrutural, que amenizaram os efeitos do processo de desenvolvimento desigual das cidades, em especifico na área de estudo. Uma das primeiras propostas para amenização dos problemas da área estudada está na atuação eficaz do governo local. O Estado deve atuar de maneira a modificar estruturalmente essa área, fazendo mudanças significativas no que diz respeito às condições de vida e habitabilidade dessa comunidade. Entretanto, não cabem apenas mudanças de cunho estrutural, pelo contrário, mais mudanças que transformem tanto o espaço físico como social, mudanças que desenraizem os problemas desse espaço. Deste modo, o Estado, especificadamente o local, deve sanear essa área e os espaços adjacentes, evitando dessa forma, a poluição da lagoa localizada na área;

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calçar as ruas que ainda não possuem asfalto, melhorando a movimentação nessas vias; fazer uma coleta de lixo mais efetiva, fazendo com que o lixo das ruas estudadas seja coletado diretamente nesses espaços. Os governantes locais devem agir de acordo com os ideais “fundamentadores” do Estado enquanto agente de produção do espaço, ou seja, eles devem atuar de forma a manter o espaço urbano dotado de infraestruturas urbanas distribuídas espacialmente de maneira equilibrada. Essa concepção cabe as mais diversas instâncias governamentais, seja ela, municipal, estadual e federal. Ressalta-se que, essas propostas em sua maioria fazem parte dos documentos que normalizam as cidades, a exemplo do PDM. Porém, o que falta realmente é a efetivação dos mesmos, ou seja, que os governantes locais efetivem as ações que estão no “papel”. O Estado deve pôr em prática ações de planejamento urbano adequado, que ultrapassem os limites da “irrealidade”. No que se refere aos alagamentos e aos efeitos danosos do sistema climático sobre esta área, o Estado deve atuar de maneira a “amenizar” os danos desses acontecimentos. Para tanto, o mesmo deve fazer mudanças estruturais na área, a começar por uma drenagem efetiva das águas pluviais. O agente de saúde da área, na entrevista de campo realizado com o mesmo, ressaltou a necessidade, como forma de solucionar o problema dos alagamentos, da construção de um “muro de arrimo” às margens da lagoa. Segundo o mesmo, este tipo de proteção tão comum nas zonas litorâneas serve para barrar a força das ondas em relação à costa. A construção desse muro seria ideal para a área, pois não haveria necessidade de remoção dos moradores da área, e, além disso, eles estariam protegidos dos alagamentos nos períodos de chuvas. Sobre essas mudanças estruturais na cidade, e de maneira específica na área de estudo, em relação ao sistema climático, seus efeitos e o papel do Estado, Monteiro (2008) destaca: A redução da vulnerabilidade da população urbana ao comportamento do sistema climático exige mudanças estruturais na sociedade que promovam um relacionamento mais atento e mais humilde. De pouco serve culpabilizar o clima pelos danos e perdas durante os episódios inesperados, ou melhor, indesejados. Catapultar para o divino ou atribuir a responsabilidade ao sistema climático pode aliviar temporariamente a tensão, mas, não auxilia aos fazedores urbanos a reduzir a exposição aos perigos (p. 12).

Além das propostas já citadas, destaca-se a necessidade de um trabalho educativo na comunidade. Deve-se fazer um trabalho de conscientização ambiental com os moradores dessa área, sendo que, devem ser enfatizados os principais riscos encontrados no ambiente natural e social desta área, ressaltando que os mesmos são resultados diretos das práticas cotidianas, como por exemplo, os relacionados ao lixo e aos esgotos, e que eles causam doenças e uma série de outros entraves. Porém, ressalta-se que, este trabalho de conscientização deve ser estabelecido em parceria como o desenvolvimento das práticas estruturais provenientes do Estado, pois, a partir da efetivação das mesmas, os moradores dessa área não terão “desculpas” para justificarem a degradação desse meio. Esse trabalho de conscientização pode ser desenvolvido a partir de projetos de educação ambiental, a partir de ações educativas que demonstrem o quanto o desgaste do meio natural traz

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consigo problemas a sociedade, citando como exemplo, a própria realidade vivenciada por essa comunidade. Para que todas essas práticas sejam desenvolvidas efetivamente, é necessário também que os moradores dessa comunidade unam-se em torno de uma causa comum, melhorias de vida, e reivindiquem melhorias urbanas adequadas e condizentes com as condições de vida “adequada”. Sobre a importância de tais organizações comunitárias, Kowarick (2009) aponta: [...] em buscar a ajuda mútua no esforço de melhorar o bairro e levar adiante e edificação da moradia, a cooperação é necessária para obter melhorias já que o loteamento precisa do ‘esforço conjunto’ para se desenvolver [...] a obtenção de serviços públicos e privados, está, em boa medida, na dependência em demonstrar que não se trata de mais um ‘morro de piolhos’, mas de um grupo de famílias que batalha para obter feitorias. Daí a necessidade de fazer valer o ‘direito de cidadania’ que se inicia com a regularização da propriedade do solo. Depois é preciso conquistar a água, a pavimentação, e para tanto é necessário ‘juntar a turma’. Formar uma associação, pois, ‘nada cai do céu’: e desenvolver uma solidariedade em torno de interesses comuns [...] (p. 284, grifo do autor).

O referido autor ainda enfatiza: [...] o melhoramento dos bairros, do qual decorre boa parte da qualidade habitacional dos moradores da periferia, reside em parte na ação coletiva de seus próprios habitantes. [...] necessitam produzir uma identidade social, uma associação que os represente e que mobilize seus habitantes em torno de reivindicações coletivas que se organizam em torno dos problemas do loteamento (KOWARICK, 2009, p. 284).

As sugestões que foram expostas nesse trabalho não são únicas, pelo contrário, são sugestões que podem ser acrescidas de colaborações, bem como, adequadas a outras proposições. Destarte, outras propostas podem ser vinculadas a esse espaço, bastando que, os principais objetivos das mesmas estejam em estabelecer melhorias de vida e habitabilidade a essa comunidade. Enfatiza-se que, as mudanças sugeridas nesse trabalho não resolvem a problemática principal desta área - a desigualdade social – pois a mesma, não é característica apenas desse espaço, mas, da sociedade como toda. As mudanças expostas apenas amenizam os problemas encontrados na área, porém, as raízes não são extraídas.

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CAPÍTULO 5 CAPÍTULO 5

5. RENOVAÇÕES E CONSTATAÇÕES À BAILA DO CICLO DAS ÁGUAS condição do “morar nas águas” não é um fato recente na história da humanidade, pois, como foi exposto neste trabalho, desde o surgimento dos primeiros povoados e civilizações ao “nascer” das primeiras cidades, esta condição sempre esteve presente no “desenhar” dos acontecimentos históricos.

A

O “morar nas águas” aparece essencialmente na história como uma limitação do homem frente à natureza, como forma de “dependência” em relação ao meio natural, isto porque, o nível de desenvolvimento técnico dos mesmos não era tão expressivo a ponto de “romper” todos os limites e imposições naturais. Ao mesmo tempo, esta condição também se apresentou como sinônimo de “sobrevivência”, pois foi a partir da proximidade com as águas que os povos edificaram suas moradias, suas cidades, sua cultura, seu espaço e retiraram desta fonte, os elementos basilares para o seu desenvolvimento. Exemplos contundentes destes fatos estão escritos na história das sociedades, a começar pela formação das civilizações egípcias e mesopotâmicas, pois, estes processos ocorreram às margens do rio Nilo e dos rios Tigre e Eufrates, respectivamente, sendo que, as águas estes rios deram o “sopro” da vida a estas civilizações, ou seja, foram exemplos “concretos” da importância e da existência da condição do “morar nas águas” na antiguidade. Essa “dependência” e conexão dos povos com as águas também estiveram presentes em tempos e terras brasileiras. Foi trilhando os cursos d’água que os europeus conquistaram o território brasileiro, desenvolveram seus engenhos (cultura canavieira), construíram suas fazendas (pecuária), exploraram metais preciosos (atividade mineradora) e ao mesmo tempo, edificaram suas moradias. Desta condição, foram “edificados” alguns dos primeiros povoados, vilas, cidades, bairros e comunidades na história dos homens e dos espaços brasileiros, a exemplo da cidade de Mossoró, originada as margens do rio que lhe cedeu o nome, e do bairro Costa, formado a partir das águas do Açude dos Pintos. Entretanto, o que era uma imposição “natural”, uma condição do homem frente à natureza no passado, mesmo que recente e uma forma de sobrevivência, reveste-se atualmente com outra face. A condição do “morar nas águas” passou a ser sinônimo do mais claro processo de desigualdade socioespacial, da dinâmica mercantil que foi estabelecida acerca da moradia. O “morar nas águas” constitui-se atualmente em uma condição imposta pela lógica capitalista, na qual, sobrevivem sob tais condições, quem não têm como pagar por um espaço adequado, digno a vida humana, ou seja, os “moradores das águas” são indivíduos relegados pelo sistema, sujeitos que são “obrigados”, a partir de suas limitações econômicas, a habitarem espaços insalubres, sem arrimos urbanos, ou simplesmente espaços segregados. Além da precariedade de vida dos indivíduos que sobrevivem sob tal condição, o “morar nas águas” têm imbricado em sua configuração, uma série de outros problemas, tais como alagamentos, as condições de vida insalubre, as doenças conexas a esta condição, que só majoram ainda mais as chagas desses sujeitos. A realidade de quem vive em tais condições é marcada pelas dificuldades, pelas impossibilidades de uma vida melhor e mais condigna a condições humanas, e pela

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falta de atuação do Estado, que deveria está compromissado com os ideais que os regem, de igualdade e regulação entre espaços e povos. A solução para a problemática do “morar nas águas” estaria em mudanças tanto estruturais, políticas e sociais nas áreas em que esta condição se faz presente, a exemplo do caso de estudo. Porém, a efetivação dessas mudanças só será capaz a partir de transformações da sociedade como um todo, ou seja, de mudanças na sociedade desigual, marcada pela estratificação socioespacial. Não adiantaria sanar as feridas superficialmente, se as enfermidades ainda continuarem encravadas na sociedade. O momento de encerrar este trabalho chegou, porém, acredita-se que, assim como o ciclo da água, que não tem inicio nem fim, mas que apenas se renova constantemente, o processo de pensar a condição do “morar nas águas” não está esgotado. Espera-se que este trabalho tenha contribuído com as discussões acerca das (im)possibilidades do morar, para o entendimento da lógica capitalista frente ao acesso da moradia, bem como, para a reflexão sobre os que vivem e habitam as “águas escuras” da sociedade atual; e que, os espaços não ocupados durante as discussões realizadas ao longo deste trabalho, sejam ocupados por “águas” límpidas e claras, cheias de conhecimento, que venham a colaborar cada vez mais com as reflexões aqui estabelecidas.

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APÊNDICES APÊNDICES

Apêndice A – Roteiro de entrevista com moradores antigos do bairro UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE-UERN FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS-FAFIC DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA ROTEIRO DE ENTREVISTA COM MORADORES ANTIGOS DO BAIRRO PESQUISADOR: MOACIR VIEIRA DA SILVA ORIENTADORA: JOSÉLIA CARVALHO DE ARAÚJO Nome: Idade:

Sexo:

Quanto tempo mora no bairro: Localização de sua primeira moradia nesse bairro: Localização das primeiras casas do bairro: Qual era a relação mantida entre a comunidade e o Açude dos Pintos? Como as águas desse reservatório eram utilizadas em períodos passados? Qual a importância desse reservatório para a comunidade do bairro em períodos passados. Qual a sua opinião em relação aos alagamentos ocorridos a partir do transbordamento das águas do açude em períodos passados? Como estes alagamentos eram “vistos” naquele momento? O que era feito durante esses alagamentos? Qual a concepção atual do morar próximo ao açude? Quais as diferenças entre o morar nesse espaço antes e nos dias atuais?

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Apêndice B – Formulário socioeconômico aplicado a área de estudo UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE-UERN FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS-FAFIC DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA PESQUISA DE CAMPO PESQUISADOR: MOACIR VIEIRA DA SILVA ORIENTADORA: JOSÉLIA CARVALHO DE ARAÚJO FORMULÁRIO SÓCIOECONOMICO RUA QUESTÕES SOCIAIS 1- NOME:_____________________________________________________ 2- IDADE:______ 3- N° DE PESSOAS QUE MORAM NA RESIDÊNCIA:_____ 4- HOMENS:_____ MULHERES:_____ 5- CRIANÇAS:____ JOVENS:____ ADULTOS:____ IDOSOS:____ 6- ESCOLARIDADE (ARMAZENAGEM PELO N° DE PESSOAS): ( ) ANALFABETO ( ) SEMI-ANALFABETO ( ) E. FUNDAMENTAL I ( ) COMPLETO ( ) INCOMPLETO ( ) E. FUNDAMENTAL II ( ) COMPLETO ( ) INCOMPLETO ( ) E. MÉDIO ( ) COMPLETO ( ) INCOMPLETO ( ) SUPERIOR ( ) COMPLETO ( ) INCOMPLETO 7- TEMPO DE ESCOLARIDADE DO RESPONSÁVEL (EIS) PELA RENDA DA RESIDÊNCIA: ________________________________________________________________________ ________________________________________________________________________ ___________________________________________________ QUESTÕES ECONÔMICAS 1- QUAL O VALOR TOTAL DA RENDA DA FAMÍLIA:____________________ 2- TIPO: ( ) APOSENTADORIA ( ) ASSALARIADO ( ) OUTRO QUAL:________________________________________________________ 3- QUANTAS PESSOAS TRABANHAM:________ 4- QUANTAS COLABORAM NA RENDA:_________ 5- OUTROS MEIOS DE COMPLEMENTO DA RENDA: _________ 6- PARTICIPA (M) DE PROGRAMAS SOCIAIS: ______ QUAIS:________ QUANTAS PESSOAS:________ QUAL O VALOR TOTAL: _________

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QUESTÕES RELACIONADAS A “CASA/TERRENO” 1- HÁ QUANTO TEMPO RESIDE NESSA ÁREA (CASA): _________ 2- A CASA É: ( ) PRÓPRIA ( ) ALUGADA ( ) OUTRO, QUAL: ________________________________________________________________ 3- SE A CASA É PRÓPRIA, RESPONDA: *O TERRENO FOI ( ) COMPRADO ( ) OCUPADO *VALOR DA COMPRA:________ *COMO FOI CONSTRUIDA: ( ) AUTOCONSTRUÇÃO ( ) PROGRAMAS SOCIAIS ( ) MULTIRÃO ( ) OUTRA FORMA, QUAL: _______________ 4- SE A CASA É ALUGADA, QUAL O VALOR DO ALUGUEL: ________ 5N° DE CÔMODOS QUE A CASA POSSUI: ________ QUAIS:__________________________________________________________________ _________________________________________________________ 6- POSSUI BANHEIRO ADEQUADO: ( ) SIM ( ) NÃO 7- INFRAESTRUTURA DA CASA: ( ) OTIMA ( ) BOA ( ) REGULAR ( )RUIM 8- A CASA POSSUI SEGURANÇA: ( ) SIM ( ) NÃO 9- A CASA POSSUI ALGUMA FORMA DE DEFESA EM RELAÇÃO AOS ALAGAMENTOS: ( ) SIM ( ) NÃO QUAL: ___________________________ 10- SE VOCÊ FOSSE VENDER SUA CASA, QUAL O VALOR PEDIDO? ________________________________________________________________ QUESTÕES EXTRAS 1- NA SUA CASA E/OU RUA HÁ: ( ) ÁGUA ( ) LUZ ( ) TELEFONE ( ) SANEAMENTO ( ) COLETA DE LIXO ( )INTENET ( ) TV PAGA ( ) VEICULO 2- QUE MEIO (S) DE TRANSPORTE VOCÊ USA FREQUENTEMENTE: _________________________________________________________________ 3- NA SUA CASA TEM (COLOCAR O N°): ( ) TV ( ) MAQ. DE LAVAR ( ) GELADEIRA ( )COMPUTADOR ( )DVD QUESTÕES RELACIONADAS AOS ALAGAMENTOS E SEUS REFLEXOS QUAIS OS PROBLEMAS ENFRENTADOS POR SE MORAR NESSA ÁREA?

POR QUE VOCÊ(S) MORA(M) NESSA ÁREA? E QUAL O SENTIMENTO DE MORAR NESSE TIPO DE ESPAÇO?

O QUE VOCÊ(S) FAZEM NO PERIODO DE ALAGAMENTOS?

AS ÁGUAS DESSA LAGOA SÃO UTILIZADAS PELA COMUNIDADE? COMO?

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ENTREVISTA REALIZADA NO DIA ______ DE ________________________DE 2010

Apêndice C – Roteiro de entrevista com o agente de saúde da área estudada UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE-UERN FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS-FAFIC DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA ROTEIRO DE ENTREVISTA COM O AGENTE DE SAÚDE DA ÁREA PESQUISADOR: MOACIR VIEIRA DA SILVA ORIENTADORA: JOSÉLIA CARVALHO DE ARAÚJO Nome: Quanto tempo é responsável pelo acompanhamento/monitoramento da área? Quais os principais problemas encontrados nessa localidade? Quais desses problemas estão diretamente relacionados à condição de vida dessa comunidade? Quais os problemas de saúde (doenças) mais diagnosticados nesta área? Fale um pouco sobre cada uma? Que tipos de doenças estão diretamente relacionados às águas do açude? Comente sobre a conduta da comunidade frente às problemas diagnosticados nesse espaço? Quais as possíveis soluções para essa comunidade?

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ANEXOS ANEXOS

Anexo A – Ficha de acompanhamento dos moradores da área de estudo (Dados da Unidade básica de Saúde)

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Anexo A – Ficha de acompanhamento dos moradores da área de estudo (Dados da Unidade básica de Saúde) – Verso da ficha


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O HOMEM, A MORADIA E AS ÁGUAS: A CONDIÇÃO DO “MORAR NAS ÁGUAS”

MOACIR VIEIRA DA SILVA JOSÉLIA CARVALHO DE ARAÚJO RESUMO Compreende um estudo que objetiva analisar as imposições socioeconômicas inerentes à condição do “morar” numa área susceptível a alagamentos, no bairro Costa e Silva, Mossoró/Rio Grande do Norte. Constata que a condição do “morar nas águas” é uma condição estabelecida desde os primórdios da humanidade, e que teve seu cerne interligado a “imposições naturais” sob as quais se estabelece a condição deste morar. O “morar nas águas” é reflexo das imposições capitalistas, das limitações socioeconômicas frente à possibilidade do morar. Revela que as condições de vida da população estudada se apresentam como fator impulsionante desta problemática. E ainda constata que o “morar nas águas” está afeito a uma série de problemas, que partem desde os alagamentos às condições de vida insalubres, sendo que tais condições são inerentes à realidade desta comunidade, bem como à falta de atuação dos governantes, especialmente os locais, cuja solução está pautada na possibilidade de mudanças estruturais, sociais e políticas na área em estudo. Nesse contexto, está calcado na ideia de possibilitar a explicitação de um problema encontrado na maioria das cidades brasileiras, a partir de um olhar geográfico “local”. Fundamenta estas constatações em leituras atinentes ao tema, em pesquisas de campo e levantamento de dados socioespaciais. De maneira sinóptica, o “morar nas águas” é um dos reflexos explícitos de uma sociedade marcada pela diferenciação social, o que reflete nos espaços habitados.

SILVA, M.V. da; ARAÚJO, J.C. de. O Homem, a moradia e as águas: a condição do “morar nas águas”. 1ª edição: Duque de Caxias: Espaço Científico Livre Projetos Editoriais, 2013.


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