OS EXTREMOS DE UMA VIRGULA

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OS EXTREMOS E UMA VÍRGULA

Outono, 2015 [3]


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Vanderlan Freitas Santana

OS EXTREMOS DE UMA VĂ?RGULA

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Ficha catalográfica: Vanderlan Freitas Santana OS EXTREMOS DE UMA VÍRGULA Redenção – Pará Literatura Sul Paraense – Contos e Crônicas

Vanderlan Freitas Santana Os Extremos de uma Vírgula 166 p.; il. Redenção – Pará [6]


O hĂĄbito me leva a criar um ambiente, imaginar fatos a que atribuo realidade. Graciliano Ramos, INFĂ‚NCIA

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APRESENTAÇÃO Em 2013, quando imaginei a possibilidade de publicar um livro, acreditava que ele se chamaria Os Arbítrios da Razão e conteria quatro contos, criados especificamente para discutir os paradigmas da “loucura”. O mundo deu voltas, o meu primeiro livro não foi concluído e agora estou aqui apresentando tecnicamente meu segundo livro, visto que o primeiro ainda está por vir. Por conseguinte, meu segundo livro não tem a pretensão de apresentar uma prosa poética que arrebate os corações e mentes de quem por ventura vier a ler. Longe disso, pretende-se, tão somente discutir de forma simples, direta e, às vezes irônica, sobre três dimensões obscuras do homem: a política, a espiritual e a afetiva. OS EXTREMOS DE UMA VÍRGULA é composto de dezessete textos, dentre contos e crônicas: Os Políticos Vão Para o Céu, O Instigador da Morte, Do outro lado, Sófia, A mulher que só sabia amar, Lei de Murphy, Os percalços da cinderela, Ele e ela, A Trinca do Espelho, O sexagenário, O Guru dos Concursos, Dias há dias, Consumindo-se, Um dia de Trânsito em Redenção, A máquina do tempo e Amor à la carte. Por eles é perpassada a linha invisível e marcante da existência, cuja qual o homem se debruça desde a origem, procurando entendê-la, transformá-la ou simplesmente vivê-la. No conto OS POLÍTICOS VÃO PARA O CÉU se cria um Brasil ideal, onde os políticos corruptos são “arrebatados” misteriosamente, um por um, chegando ao ponto de eles começarem a desistir de serem políticos profissionais. Desse modo, o conto [9]


discute, com irreverência crítica, a conjuntura atual da política brasileira, evidenciando seu viés oligárquico e profissional, no qual o bom político é o que administra o direito de todos como se dele fosse. O INSTIGADOR DA MORTE é o primeiro conto de três que escreverei sobre os anjos decaídos e suas influências sobre os homens. Tem uma pitada de suspense e, como é baseado em fatos reais, acaba sendo em alguns aspectos relativamente assustador. Ele retrata a história de um homem que desde a infância é influenciado por forças desconhecidas e que por isso, busca a todo custo fugir e se refugiar na sombra do Altíssimo. DO OUTRO LADO é um texto curto tem pouco mais de uma página e retrata, por um viés psicológico, os sentimentos contrapostos e a atitude de nós brasileiros frente às anomalias advindas da desigualdade e indiferença político-social. SÓFIA, A MULHER QUE SÓ SABIA AMAR é um conto igualmente breve e discute os reflexos da “revolução sexual feminina” na contemporaneidade, bem como sobre a nefasta influência da ditadura da beleza no pensar o hoje. Do outro lado, há a personagem do DIAS HÁ DIAS, que é uma empregada que se esforça para trabalhar como doméstica, cuidar dos filhos e ainda se divertir em festas e churrascos, enquanto sua vida transcorre do mesmo modo. O SEXAGENÁRIO, A MÁQUINA DO TEMPO E A LEI DE MURPHY discutem sobre homens da terceira idade, no primeiro vislumbra a trajetória de um garimpeiro, saindo do Maranhão para o Pará, incluindo muita riqueza, prodigalidade e sonhos de possuir novamente o eldorado; no segundo há um homem acima de sessenta anos endinheirado [ 10 ]


que ainda quer continuar agir como se tivesse vinte, vendo-se a lançar mão de remédios perigosos a sua saúde para se manter “vivo”; no terceiro o dia de um idoso que tem que se dividir entre a esposa, netos, filhos e os percalços de ainda ter que batalhar para conquistar estabilidade profissional e financeira. CONSUMINDO-SE, O GURU DOS CONCURSOS, A TRINCA DO ESPELHO, A CELEBRAÇÃO, ELE e ELA tratam do mesmo tema que é a vaidade, o consumo e o egoísmo e exacerbado na relação homem-mercadoria. AMOR À LA CARTE, ao contrário dos anteriores, possuem núcleos nítidos e os eventos ocorrem de maneira espiral. É um conto que se discute a existência do querer, do não querer e do amar para além do perdão, da dúvida e da dependência. Ele retrata a vida de um jovem niilista que aos poucos vai descobrindo a importância dos laços sociais, bem como a necessidade de colaborar com o outro, ao mesmo tempo em que respeita sua condição de ser errante e volitivo. Por fim, esses contos são meus primeiros passos literários. Provavelmente, os escritores mais experientes me aconselhariam a escondê-los às sete chaves e continuar lendo e escrevendo, por longos anos até maturar um estilo mais conciso e regular. No entanto, na expectativa de meus escritos serem críticos e dinâmicos o bastante para despertar o interesse e a reflexão de quem os lê, lanço-os ao mundo. O autor

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ÍNDICE____________________________________ 1. Os políticos vão para o céu, 15 Pórtico, 15 II- Cruzeiro do Sul, 16 III- Indagações e medo, 19 IV- Teologia do arrebatamento, 21 V- Unidos contra o mal comum, 23 VI- Operação os políticos vão para o céu, 25 VII- O histórico dos arrebatados, 27 VIII- A beira do abismo, 29 IX – Intensifica o arrebatamento, 31 X – O presidente vai ao céu, 34 XI- Ninguém quer ser político, 36 2. Do outro lado, 39 3. Sofia, a mulher que só sabia amar, 40 4. Lei de Murphy, 44 5. Os percalços da cinderela, 49 6. O sexagenário, 53 7. O guru dos concursos, 57 8. Paradigma da loucura, 63 9. A trinca do espelho, 67 10. Ele & Ela, 69 11. Dia há dias, 71 12. Consumindo-se, 73 13. A celebração, 75 14. A maquina do tempo, 78 15. Um dia de domingo em Redenção, 81 16. Amor a La Carte, 83 I – Alvorada, 83 II- Reencontro, 86 III- Diálogo, 87 IV- Conquista, 90 V- Despedida, 91 VI- Chegada, 93 [ 13 ]


VII- Primeira aula, 95 VIII- Gira mundo, 98 IX – O mal do século, 100 X- Obsessão, 101 XI – Reputação de Pedro,103 XII – Suicídio, 105 XIII – Estreitando laços , 107 XIV – Envolvimento, 110 XV – Romance, 115 XVI – O adeus de Janaína, 116 XVII - Recomeço, 119 17. O instigador da morte, 123 I – Há um passo a frente, 123 II- O hálito da morte, 123 III – Ler, refletir, rezar e ouvir, 125 IV – Divagações e confetes , 127 V- Eles estão em todos os lugares, 129 VI – A luz que ofusca a visão, 131 VII- Vista da escuridão, 132 VIII – Aparição, 134 IX – Aproximação, 136 X – Velório , 137 XI – Ideia recorrente, 139 XII- Persistência, 140 XIII – Apego, 142 XIV – Apresentação, 144 XV – Maldição de Caim, 148 XVI – A verdade de Amadeus, 149 XVII – Um homem em meio a outros, 153 XVIII – Matéria frágil, vinda do pó, 155 XIX – Cheiro de morte, 157 XX – Pregações e tentações, 160 XXI – Depois da encruzilhada, 161

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OS POLÍTICOS VÃO PARA O CÉU I- PÓRTICO No ano eleitoral de 2020, começaram a aparecer rumores na internet, nos telejornais sensacionalistas e rodas de bate papo que políticos estavam desaparecendo misteriosamente. No nordeste, soube-se de sete nomes, entre eles, vereadores e um ex-prefeito. Havia notícias de desaparecimento no Centro-oeste, Sudeste e Norte, como também no Sul. As autoridades dessas localidades não sabiam precisar o que estava acontecendo, mas de tanto serem questionadas pelos familiares e amigos, instauravam procedimentos investigativos que logo eram arquivados, alegando falta de materialidade, visto que não era crime as pessoas sumirem da vista dos seus familiares e conhecidos. Para amenizar os rumores, o Estado veiculou nos jornais e internet notícias de que algumas pessoas supostamente desaparecidas foram vistas passeando tranquilamente em shoppings, praças e ruas de várias cidades no Brasil e no exterior: “JOÃO FEITOSA, VEREADOR DE JUAZEIRO, DESAPARECIDO HÁ SEIS MESES, FOI VISTO EM SHOPPING EM SÃO PAULO”. Ao contrário do esperado, as informações apenas oxigenaram as discussões acerca do dilema, surgindo especulações e teorias diversas para explicar o sumiço dos políticos: - Eles roubaram o bastante para uma vida e agora estão gastando o nosso dinheiro com mulheres [ 15 ]


longe de suas cidades. Aposto que se acabar, logo, logo eles aparecem. - Eles se arrependeram de seus pecados na política, agora, estão rezando e jejuando para pagarem seus pecados em algum canto do Templo de Salomão. - Foram abduzidos por extraterrestres que objetivam dissecar seus cérebros na expectativa de entender a fonte de tanta criatividade em matéria de desviar dinheiro público. - Eles não desaparecem. Isso tudo não passa de estratégia de marketing para ganhar a próxima eleição. Cada cidadão tinha uma causa para o fenômeno e quem não tinha de imediato escolhia uma e partia para a defesa e difusão da algazarra. O que não se sabia era que longe da mídia, nos bastidores do Estado, o Presidente, após consultar o Conselho da República, criara uma força especializada para resolver o mistério que assolava os interiores do país. Essa Força Especializada que agregava homens das forças armadas, da ABIN e da Polícia Federal montaram a operação intitulada Os Políticos vão para o Céu. Há mais de dois anos eles secretamente trabalhavam em regime de dedicação exclusiva para encontrar os políticos sumidos, bem como evitar que outros desaparecessem. II- CRUZEIRO DO SUL Em Cruzeiro do Sul, não havia alterações significativas. A dialética marxista estava afastada [ 16 ]


das redondezas, permitindo assim que a história transcorresse lenta e linear pela localidade. Naqueles idos, a política era a principal diversão, motivação e centro de sobrevivência da população. Sua notoriedade era tanta que numa cidade de pouco mais de 50 mil pessoas, os 250 partidos existentes no país tinham representação ali, pois apesar de nem todos saberem, quase a totalidade da população era filiada a partidos políticos. Os jovens eram os mais interessados na nobre arte de concorrem a eleições. Desse modo, os cidadãos eleitores da terceira idade, eram disputados pelos políticos profissionais. Essa disputa tornava-se frenética por ocasião das eleições. Assim, em ano eleitoral, eles tornavam-se celebridades. Eram elevados ao status de idosos eleitores. Nunca saiam à rua incólume, pois havia sempre um candidato a quem apertar a mão, a lhes darem um “dedinho” de prosa, abraços e tapinhas nas costas. - Bom dia, seu José! Sou seu candidato. Meu número é 315. Conto com o Senhor mais uma vez! Adeus! Em seguida, vinha outro: - Bom dia, seu José! Lembre-se que seu candidato sou eu. Vote certo, vote no número 345. O político que se prezava tinha ao alcance de suas mãos uma lista com nome, endereço, sexo e foto dos idosos alistados como eleitores. Nenhum poderia ser esquecido, para, volta e meia, memorizarem os nomes e lhes fazerem visitas. Acreditava-se que quem tinha o apoio da terceira idade, estava com meia vitória ganha. [ 17 ]


Para tanto, era comum os políticos estabelecerem hierarquia entre os idosos. Se o idoso era amado e possuísse liderança no seio familiar era tido como da mais alta importância. Digno de ser visitado de tempos em tempos, ouvido e conquistado com “presentes” e cartinha por ocasião de seus aniversários. O lema era: “conquistar para acumular”. Os mais perspicazes, costumavam visitar os idosos votantes o tempo todo, vendo se ainda tinham título de eleitor, se queriam carona para ir ao banco, se precisavam de remédios públicos e vacinas contra a gripe. Esse tipo tinha voto garantido entre a maioria deles. Do outro lado, cada “velhinho” vivenciava de maneira impar esse momento. Uns viam a oportunidade de zombar, tripudiar, xingar, ridicularizar o político que os conhecia apenas no período de eleição, evidenciando aquele que sempre esteve os apoiando em dias de infortúnio. Outros viam a oportunidade de ganho fácil. Então para cada candidato que aparecesse em suas vistas, era apresentada uma lista extensa de reivindicações. Suas necessidades variavam de remédios, viagem, calçados, seixos, tijolos a casas, carros e apartamentos. Todavia, nem tudo eram espinhos com esses eleitores. Existia um núcleo comum e nobre entre eles. Todos se sentiam vivos, contentes, festivos e, principalmente úteis à comunidade local. Acreditavam que além de se alegrarem com suas visibilidades, também faziam caridade, ao ajudarem um novato a obter a vitória e oportunidade de fazer um “pé-de-meia”. [ 18 ]


Inusitadamente, as mentes pensantes de Cruzeiro do Sul permaneciam voltadas para as conveniências locais, cogitando maneiras de continuar no poder ou conquistá-lo pelas vias essencialmente legais. Ninguém tinha dúvida ou interesse sobre os políticos desaparecidos. Aliás, houve um vereador que ao ver a notícia na TV, afirmou desinteressadamente: - antes eles do que eu. Retornando imediatamente a cogitar meios para corroborar com sua campanha gloriosa. III- INDAGAÇÕES E MEDO O primeiro semestre do ano eleitoral foi agitado no País. Na internet tornava-se frequente a propagação de informações relativas ao desaparecimento de políticos. Algumas vozes se levantavam na TV, pedindo explicações das autoridades sobre esses fatos. Mas, os holofotes estavam focados sobre a política dos aparecidos, dos vistos. Os jornais, revistas, a mídia em geral estavam a serviço dos senhores da política, veiculando as táticas pensadas pelos melhores publicitários para elegerem os candidatos mais aptos a manter o status quo. Acreditava-se que a qualquer momento o provável grupo terrorista seria desvelado e com sorte trariam à baila da política nacional os desaparecidos, desobstruindo, assim, os trilhos da parcimônia, do progresso e da democracia brasileira outra vez. Terminou o semestre, iniciou o segundo, passou as eleições e nenhum responsável foi capturado, nenhum político desaparecido foi encontrado. No entanto, periodicamente, [ 19 ]


correligionários iam à polícia dar queixa do sumiço inexplicável de seus líderes políticos-espirituais. Por essa ocasião, a mídia já intensificava indagações acerca do mistério. Um jornal sensacionalista perguntava diariamente se eles estavam fugindo do povo ou sendo capturados por eles e terminava a programação com a mesma mensagem: PARA ONDE ESTÃO INDO NOSSOS BONS POLÍTICOS? As indagações começavam a ecoar nos ouvidos das massas. No correr de dois meses a comunidade brasileira e internacional estavam ávidas por saber as respostas. Embora, na ocasião ocorressem apenas desaparecimentos entre vereadores, ex- prefeitos e candidatos sem expressão nacional, os políticos mais desconfiados passaram a andar menos pelas Ruas, sendo que raramente conversavam com seus eleitores e cabos eleitorais. Quando saiam estavam sempre armados e com dois ou três seguranças à tira colo. Para eles enquanto não se revelasse o mistério, qualquer cidadão era suspeito: pai, mãe, filho e espírito santo. Os Vereadores no Nordeste e Norte onde o número de desaparecidos era expressivo, a cada vítima tornavam-se mais temerosos de terem o mesmo fim. Eles não queriam passar de político influente para dado estatístico, por isso, pediam incessantemente às autoridades policiais maior proteção, guarda e vigilância 24h. Foi por esse período, precisamente no dia 28 de dezembro de 2020 os olhos do Mundo se voltaram para a pequena cidade de Cruzeiro do Sul. Foi encontrado à margem da rodovia o corpo de um jovem Vereador recém-eleito. Nele havia dezenas de [ 20 ]


perfurações de punhais e queimaduras na face, denunciando que havia sido torturado e brutalmente assassinado. Nesse período, a força Especial acreditou que os desparecimentos poderiam ser solucionados a partir daquelas evidências e assim, voltar a reinar a paz dos justos no País. Porém, no passar de dois dias, capturaram o assassino e soube-se que a morte deveuse por razões passionais, sem vinculo nenhum com o mistério que maculava a Inteligência Nacional. A angústia da dúvida ganhou mais robustez entre políticos de base, em especial, nos vereadores, fazendo com que muitos não saíssem de casa em finais de semanas e feriados, inclusive, fez com que outros largassem de vez a política e se refugiassem em seus lares dentro ou fora do País. IV- TEOLOGIA DO ARREBATAMENTO No ano seguinte às eleições municipais os desaparecimentos ficaram menos frequentes, mas continuaram a amedrontar políticos e a fomentar o jornalismo no mundo. Os jornais insistiam na pergunta: para onde vão os desaparecidos? Nunca uma matéria fez sucesso por tanto tempo. Ela estava prestes a aniversariar e os expectadores apenas aumentavam suas curiosidades. As pessoas queriam saber cada detalhe e novidade sobre o assunto. Diariamente, surgiam hipóteses novas e criativas acerca do destino dos desaparecidos. Em meados de 2021, difundiu-se pela internet a notícia de que mais de 80% dos políticos desaparecidos eram fieis de duas Igrejas protestantes [ 21 ]


brasileiras. A Reino Unidos em Cristo e a Reino Unidos em Deus. Imediatamente, todo o mundo questionou o porquê. Era inevitável a desconfiança acerca delas, principalmente de seus próprios fieis. Assim, os imensos rebanhos dessas igrejas começaram a se reduzir dia após dia, ovelha a ovelha. No passar de duas semanas, houve centenas de baixas. Com isso os pastores se isolaram num retiro espiritual organizado por ambas as igrejas, no afã de lhes serem revelada a resposta que o mundo queria ouvir. Passado duas semanas, eles retornaram para suas igrejas com a resposta dada pelo próprio Senhor. Segundo eles, ninguém deveria se preocupar com os que estavam desaparecendo, mas sim com os que permaneciam à vista, pois o dia do juízo final estava próximo e Cristo estava levando um a um dos que fizeram por onde está no paraíso. Disseram ainda: - Portanto, orem, jejuem e amem seu próximo como nunca antes para que amanhã possam ser vocês os arrebatados por Cristo. A resposta das igrejas causou um reboliço entre os fieis. Na hora ficaram felizes por pertencem às Igrejas eleitas e que logo poderiam ir parar no paraíso. Contudo, no dia seguinte, após uma noite de sono e sonhos, os fieis começaram a temer o arrebatamento. Ninguém queria abreviar a viagem ao céu dos cristãos. Desse modo, o que as Igrejas imaginaram que seria marketing positivo, tornou-se um pesadelo. Destarte, a cada culto, eles notavam a ausência de centenas de fieis. No passo de três meses essas igrejas reduziram-se a um quinto. [ 22 ]


Os pastores tentaram remediar o dano alegando outras tantas interpretações da voz de Deus, mas nessas alturas não teve teologia da prosperidade que desse jeito ao êxodo de religiosos às igrejas menos comprometidas com o arrebatamento e mais focadas na prosperidade mundana de seus fiéis. V- UNIDOS CONTRO O MAL COMUM No passo de dois anos a pressão dos políticos sobre o Estado se tornou intensa e constante. Queriam a todo custo se resguardarem do mal comum e viam a máquina estatal como o meio para se encontrar os responsáveis e puni-los rigorosamente. Os bons políticos não aceitavam o fato do Estado não encontrar os responsáveis pelos arrebatamentos de seus pares, já havia aqueles que especulavam nos bastidores a certeza do envolvimento de alguns setores do Estado nesse nebuloso mistério. Concomitante a isso, os “caciques” dos partidos e senhores de seus respectivos Estados se uniram e nos bastidores pagaram um grupo de mercenários para encontrarem os criminosos que sumiam com os afilhados políticos e os exterminarem do mapa, da forma mais dolorosa possível. Os mercenários eram excelentes em eliminarem pessoas. Aliás, comumente faziam esse tipo de serviço para seus patrões nos interiores e capitais dos Brasis. Para tanto, bastava apenas nome e foto para o cadáver ser irremediavelmente providenciado. No que pese serem, filósofos doutores quando o assunto era torturar homens por longo tempo e matá-los, o próximo trabalho era [ 23 ]


diferenciado, pois não havia nomes e muito menos fotos dos marcados para morrer. Portanto, passado alguns meses de busca árdua, preferiram aguardarem a resolução do enigma pela Operação Especial Os políticos Vão para o Céu, para fazerem suas partes com a eficiência de sempre. O governo não admitia o fato de eles ainda não terem solucionado o problema após tanto tempo e gastos. Diante disso, a pressão sobre o grupo especializado foi decisiva, substituindo dois terços dos membros da operação e dando um ultimato: encontravam os culpados ou eram excluídos sumariamente da operação mais importante do país de todos os tempos, com o rótulo de incompetentes e reduzindo 70% de suas rendas mensais. Tal pressão era compreensível, pois apesar da dedicação exclusiva e integral, só sabiam apenas que os políticos sumidos chegavam a 19, que o foco maior se concentrava no nordeste e que todos eram suspeitos de desvio de dinheiro público. Contudo, por mais que eles buscassem, não conseguiam explicar como dezenove pessoas notórias em suas cidades desapareceram sem deixar vestígios, sem corpos, sem informações, pedido de resgate, conta no exterior, sem absolutamente nada, como se tivessem evaporado no ar. Por isso, OPVC passou a mapear em diferentes regiões centenas de políticos e a vigiar os que mais batiam com o perfil dos sumidos na expectativa de autuar em flagrante delito os responsáveis ou pelo menos encontrar pistas contundentes.

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VI- OPERAÇÃO OS POLÍTICOS VÃO PARA O CÉU No ano seguinte às eleições municipais, numa cidadezinha no interior do Pará chamada Cruzeiro do Sul, foi localizado na margem de uma rodovia o cadáver do ex-prefeito da cidade e recémempossado vereador. O que foi encontrado do seu corpo estava mutilado e dentro de dois sacos. Apenas a cabeça estava reconhecível. Horas depois de ser noticiado esse fato nas redes sociais, cruzeiro do sul recebeu centenas de repórteres, policiais, mercenários e o grupo especializado. Todos acreditavam que o cadáver era o primeiro vestígio incisivo do provável grupo terrorista que estava assassinando os bons políticos do país. Vinte quatro horas depois, os holofotes do mundo miraram aquela cidade. Nas ruas o que se viam eram fleches, filmagens, entrevistas e interrogatórios. Ninguém podia sair da cidade sem autorização do grupo especializado. Para todos os efeitos cada munícipe ali era culpado até que se provassem o contrário. A comunidade encontrava-se em êxtase com a novidade. Sentiram-se especiais, superiores por ser a cidade mais conhecida do mundo. Não foram poucos os que aproveitaram a oportunidade para mostrarem seus talentos para a mídia, desfilando frente às câmeras, rindo, fazendo malabarismo ou simplesmente acenando para o sucesso. Os políticos locais, indiferentes aos sumiços dos seus colegas, viram uma perfeita oportunidade de alavancar suas carreiras e colocar no mapa nacional e mundial as belezas de Cruzeiro do Sul. Mas, como até aqueles dias os estadistas locais, somente se [ 25 ]


preocuparam com patrocínio, cestas básicas para os carentes, festas e brinquedos descartáveis para as crianças; na cidade havia apenas ruas repletas de buracos, com pouca pavimentação e sem um metro de saneamento básico. Definitivamente, na cidade não existia nada de especial para mostrar ao mundo, desse modo, pensaram várias ações incisivas, como por exemplo, em erguerem uma enorme estátua do político morto em meio aos seus famosos malfeitores, dando ênfase nesses últimos. O prefeito ficou radiante com a ideia, mas, um vereador jogou água na fogueira, afirmando que ainda não se sabia quem eram os algozes, logo se fosse fazer, só daria para fazer a do ex-prefeito. O prefeito de imediato disse não, pois não queria ver seu antigo rival sendo transformado a herói, antes eles. Com isso, a ideia foi suspensa, porém, ficou entendido que tão logo desvendassem a trama levantariam as estátuas na serra mais alta da cidade e mudaria o slogan da cidade de a Capital do Boi Gordo para a Capital Mundial do Bom Político. Para a tristeza dos estadistas locais, após uma semana longa e intensa de investigações e suposições, encontraram o criminoso e chegaram à conclusão de que o crime ocorrido em Cruzeiro do Sul, não tinha relação com os outros, tratava-se tão somente de avareza combinada com ambição lunática, pois o político havia sido assassinado por seu suplente que quando foi ultrapassado por sua vítima nas urnas, resolvera dar cabo do seu colega e tomar o que lhe era seu por usucapião. Assim que o mundo tomou ciência dessa informação, tirou seus olhos de Cruzeiro do sul e os anfitriões ficaram arrasados com o sumiço repentino das visitas. Contudo, alguns mantiveram a esperança [ 26 ]


que o curto tempo de exposição à mídia mundial fora suficiente para transformá-los em futuros astros globais, dentre em breve. VII- O HISTÓRICO DOS ARREBATADOS Meses depois à polêmica de Cruzeiro do Sul, passou a surgir, um a um, nas redes sociais dossiês de todos os políticos desaparecidos. Eram tão completos que estavam recheados de fotos, documentos, lista de empresário e servidores envolvidos em inúmeros esquemas de corrupção, lavagem de direito e caixa dois. O impacto foi imediato, num instante o mundo soube do histórico dos bons políticos defendidos pela mídia dominante, pela igreja e pelo Estado, a ferro e fogo, tinham uma prática política de fazer inveja ao próprio diabo. Inevitavelmente, as pessoas passaram a discutir e refletir sobre os últimos dados acerca do mistério do sumiço dos políticos. Unissonante, concluíram que havia alguém eliminando os maus políticos do Brasil, que havia pessoas cansadas de tanta corrupção que resolveram fazer a limpeza pela raiz e não somente pelas urnas. Dias depois, havia multidões nas ruas gritando, cantando, quebrando coisas e com várias faixas com os seguintes dizeres: NO CÉU AINDA CABE, ARREBATEMOS MAIS DOS BONS POLÍTICOS. Graças à mobilização das pessoas nas ruas, praças e rodovias, praticamente em todo canto do país, os políticos não desaparecidos ficaram temerosos de suceder um banho de sangue deles nas [ 27 ]


ruas, bem como ficarem inelegíveis nas próximas eleições. Com isso, não demorou a entrar em cena os melhores marqueteiros do país, objetivando única e exclusivamente, criar artimanhas psicológicas para serem veiculadas ininterruptamente na TV. Acreditava-se que poderiam brecar o ativismo político da população ou pelo menos dividir a opinião dos revoltosos. Desse modo, a Mídia Para o Consenso Geral trabalhou arduamente contra os dossiês veiculados nas redes sociais, alegando que tudo não passava de mentiras ditas com o único objetivo de desestabilizar a democracia, que isso não passava de um plano dos comunistas radicais do mundo em conluio com os do Brasil, para enfim, implantarem o Comunismo Chavista em mais um país da América Latina. Noutro momento, diziam em alto e bom som que os políticos desaparecidos foram na verdade assassinados pelo grupo terrorista da esquerda, pois eles haviam descoberto o plano destes e iriam os desmascarar antes do tempo e que, portanto, os políticos sumidos eram heróis da República Federativa do Brasil e não bandidos corruptos como estavam sendo caluniados por meio dos dossiês. Num piscar de olhos, surgiu uma entidade chamada Os Defensores da Pátria que reuniam toda a direita, ruralistas, evangélicos, católicos, burgueses, playboys cantores, atores e as gentes que absorviam tudo que ouvia pela televisão sem maiores reflexões. No passo de duas semanas de intensa propaganda ideológica na Mídia Para o Consenso Geral, a população estava dividida. Uns queriam parar com as mobilizações e voltarem a assistir suas novelas, outros queriam perseguir, capturar e matar os [ 28 ]


comunistas que estavam sumindo com os bons políticos e havia também muita gente que permanecia a protestar contra a corrupção generalizada. Com o intuito de engrossar o caldo dos Defensores da Pátria os intelectuais da antiga direita confirma cada ideologia vinculada na televisão, enquanto que a nobilíssima direita propaga, por aonde vão, com fervor e fúria as assertivas criadas pelos marqueteiros. Assim, os membros do grupo Os Defensores da Pátria quando viam pessoas barbudas, em tonalidades vermelhas ou em trajes de gente descomprometida com a pátria, xingavam, perseguiam e em alguns casos até mesmo espancavam os suspeitos. A situação chegou às raias de ninguém poder sair às ruas com cores vermelhas sem ser ofendido e ridicularizado com palavrões pelos Defensores da Pátria. O caos estava instalado no país, pois a todo instante se via discussões, intrigas e pancadaria. A situação estava tão insustentável que até mesmo dentro de igrejas havia brigas e desentendimentos. Ninguém estava tolerando o outro, cada qual queria apenas difundir a força a ideologia que professava. VIII- A BEIRA DO ABISMO A sociedade estava mais desordenada do que nunca. A burguesia se digladiava; os ruralistas queriam a todo custo instalar uma ditadura, caçar e exterminar os terroristas e qualquer um que ousasse criticar a nova ordem; por sua vez, os líderes evangélicos concordavam com a matança, mas discordavam do método dos ruralistas, pois queriam que eles fossem presos e só depois de alguns anos [ 29 ]


banidos do planeta Terra. Apenas os industriais e marqueteiros preocupava com as mortes, pois temiam enfraquecer o mercado consumidor. Do outro lado, o pessoal da esquerda acreditava que era a hora certa de suscitar uma guerra civil para tomar o poder. No entanto, não se decidiam acerca de qual tendência partidária estaria a frente do poder, nem sobre os mecanismos que se utilizaria para ganharem o gosto das massas. Enquanto todo e qualquer indivíduo que liderava alguém discutiam o futuro da nação, as massas se encontravam no meio do furacão das indiferenças: xingando, batendo e ofendendo uns aos outros. Os mais ofendidos eram os sujeitos que saiam as ruas de vermelho ou em trajes que lembravam hippies ou qualquer tipo de força de trabalho ociosa. A essas alturas a polícia não era suficiente e, na ocasião, deixou de ser imparcial e passaram a ser inusitadamente a longa mano dos donos do Brasil, executando as piores arbitrariedades contra qualquer um que parecesse insatisfeito com a ordem social. Nos grandes centros e em vários interiores a situação estava insustentável, roubos, furtos, quebradeiras, passeatas, pichações diversas, briga e morte. Qualquer um a qualquer hora poderia ser vítima. Ninguém sabia ao certo a razão de tanta rebeldia e violência, mas todos estavam sujeitos a sofrê-la ou praticá-la. Alguns bons políticos temerários de serem arrebatados pelos terroristas ou mesmo por um cidadão confuso deixaram o país de vez, passaram a residirem nos Estados Unidos da América e no Canadá, deixando a seus assessores a missão de reverter suas mudanças de domicilio em votos futuros. [ 30 ]


Diante disso, o governo marcou uma assembleia geral com todas as lideranças do país do Oiapoque ao Chuí, para discutir forma de enfrentar e controlar a crise brasileira. No período de uma semana, conseguiram estabelecer um plano de contensão dos conflitos, onde os diversos grupos deveriam ir à mídia levando mensagens de tolerância e respeito ao diferente. Os líderes mais conhecidos desfilariam com celebridades da televisão pedindo paz e anunciando que no ano seguinte, de forma extraordinária, o país sediaria a terceira copa do mundo e teria dois carnavais no ano, um em fevereiro e outro em setembro, sendo que o governo juntamente com os empresários iriam custear todos os gastos, inclusive com ingresso dos jogos da seleção brasileira para os jovens de baixa renda, idosos e mulheres de 15 a 30 anos. Passado sete dias de propaganda intensiva na televisão, as massas começaram a se acalmarem e a tolerarem seus conterrâneos de ideologia até então diferente. No final de duas semanas, até mesmo as forças de trabalho remanescentes discutiam formas de fazerem e acontecerem após a Terceira Grande Copa do Mundo no Brasil. IX – INTENSIFICA O ARREBATAMENTO Se por um lado as massas estavam ordeiras na expectativa da bola rolar; por outro, o Estado estava em alerta, buscando a todo custo capturar e punir exemplarmente os terroristas que atacavam de morte a democracia e a boa política brasileira. Inclusive, os deputados que foram residir nos Estados Unidos da América e Canadá, objetivando [ 31 ]


homenagear seus pares e amigos desaparecidos, levantaram a bandeira de uma nova constituinte onde fosse permitido ampliar a pena de morte para os casos de atentados terroristas contra políticos. Essa proposta suscitou muita discussão no Congresso Nacional, como também na mídia Para o Consenso Geral, seus oradores gastaram toda a saliva propagando as boas novas e a necessidade de punir rigorosamente os maus feitores da nação. Porém, muitos políticos influentes e líderes dos seguimentos dominantes do país acharam por bem não inventarem tal manobra naquele momento, pois temiam que a constituinte tornasse uma espécie de gatilho para mais manifestações e agressões entre civis ou classes. Depois dessa decisão coletiva, os deputados ativistas da pena de morte e a mídia passaram a discutir outros temas, menos polêmicos. Distante dali, à margem das massas, os políticos, sem condições de viver fora do país, continuavam a desaparecer. Nessas alturas, os desaparecidos passaram a ser de todos os partidos: de direita, de esquerda e de centro. Dando a impressão que a partir daquele momento poderia ser qualquer um que tivesse vida pregressa duvidosa. Como era de se esperar não tardou para a mídia anunciar o desaparecimento de três deputados federais, dois senadores e inúmeros deputados estaduais pelas diversas regiões do país, principalmente sudeste e norte, visto que os políticos mais imponentes do nordeste há tempos andavam fortemente resguardados por seguranças e policiais militares ou em outros países. Uma semana após o sumiço deles, seus cadáveres foram encontrados em lixões de diversas cidades. Alguns corpos estavam mutilados, [ 32 ]


denunciando provável tortura, outros perfurados por bala ou apenas degolados. Devido a isso, o governo imediatamente instalou o estado de sítio, alegando grave perturbação da ordem nacional, declarando guerra contra o terror. O congresso foi uníssono com o decreto presidencial. A primeira medida foi direcionar o exército para a guarda pessoal de todos os membros do Congresso Nacional, Ministros de Estado e Presidente da República, sugerindo que os Estados membros fizessem o mesmo e destituir os membros da Operação os Políticos vão para o Céu que até aquela ocasião não haviam descoberto nada. Em seguida, direcionou toda a força policial do País para encontrar e destruir o provável grupo terrorista que assolava a paz, a ordem e o progresso. Com pouco tempo, a nova inteligência policial chegou à conclusão que se no início dos sumiços eram apenas um grupo, naquelas alturas eram vários grupos ou indivíduos usando de diversos meios, como também objetivando inúmeros fins. Assim, concluíram que muitos cidadãos brasileiros começaram a matar. Essa tese ganhou força quando capturaram o correligionário de um Deputado Federal morto que confessou em rede social que havia matado seu patrão, porque não passava de um corrupto ladrão. Essa assertiva ecoou na velocidade da luz pela internet e pela mente do povo e principalmente dos políticos profissionais. A massa aprovou o ato do compatriota e os políticos ficaram apavorados com tamanha barbárie, discutindo entre seus pares a desproporção da medida do povo, pois eles apenas criavam um ou outro caixa dois, superfaturavam algumas obras e desviavam pouquíssimos recursos [ 33 ]


públicos, portanto, não era justo as perseguições e assassinatos brutais por um bando de psicopatas se achando a mão de Deus. X – O PRESIDENTE VAI AO CÉU Em meio ao caos do Estado de sítio, como também às pressões dos EUA e diversos órgãos internacionais no sentido de que o Governo Federal aniquilasse o grupo terrorista e salvasse os bons políticos, sob pena de ter outra intervenção estrangeira no país. O Governo endureceu ainda mais suas ações. Todo e qualquer indivíduo que fosse pego em ato suspeito seria preso, interrogado e torturado se preciso fosse até se encontrar os verdadeiros criminosos. Com uma semana da operação intitulada “salvem os bons políticos” foi aprisionado mais de mil suspeitos, com um mês dezenas de milhares e com três meses, o governo deixou de contabilizar a quantidade e a se preocupar com o fato de não ter encontrado ninguém ligado ao suposto grupo terrorista. Após um ano de operação, ocorreu o fenômeno nunca visto no Brasil, arrebataram o presidente em sua residência na Granja do Torto em Brasília. Ninguém soube explicar como os arrebatadores entraram e saíram com o presidente sem deixar qualquer vestígio. O arrebatamento do Presidente da República foi manchete no mundo, menos pela proeza dos arrebatadores e mais pelo porquê de se levar o arrebatado. Cada emissora tinha um palpite relatado exaustivamente. A emissora Para o Consenso Geral [ 34 ]


batia na tecla a exaustão de que o presidente arrebatado foi o melhor por ser o único íntegro e incorruptivo, clamando para que os EUA, ou a ONU intervisse, colocando ordem à balburdia chamada Brasil; as outras emissoras bem como nas redes sociais difundiam a certeza de que o presidente era mais um corrupto e de que logo teria notícia cabal disso na internet. Do seu lado, o povo a cada notícia de arrebatamento se regozijava com o bom trabalho dos compatriotas. Estes eram vistos pela maioria dos brasileiros como gênios ilusionistas e verdadeiros heróis sem rostos. Como era esperado da maioria, após 15 dias do arrebatamento, surgiu na internet o dossiê do presidente, cujo qual relatava os inúmeros crimes dele, sendo que o de improbidade era o menor. Concomitante, a emissora Para o Consenso Geral veiculou diversas mensagens tentando chamar à razão as massas sobre a barbárie instalada, onde pessoas eram executadas sem ao menos ter o seu direito de defesa resguardado. Contudo, após uma semana de comerciais intensos, a emissora havia perdido 80% de sua audiência, obrigando-a a veicular 06 novelas por dia na esperança de reconquistar parte de seus telespectadores. O arrebatamento do Presidente da República teve um impacto inesperado no mundo dos políticos, pois todos os que estavam no poder temiam serem flagrados pelos supostos terroristas, que por esse tempo já eram conhecidos como Os Arrebatadores fantasmas. Doravante, eles passaram ter muito cuidado com o orçamento governamental, destinando cada [ 35 ]


verba para o fim traçado nas leis orçamentárias dos diversos âmbitos do Estado. Ao passo de dois anos, as cidades pelo Brasil começaram a se modificar a olhos vistos. Como num passe de mágica, notavam-se pelas ruas redes de esgotos, água encanada e tratada, várias praças; nas praças crianças se divertindo em várias opções de lazer e esporte; nas escolas professores ganhando bem e com pouca carga horária, alunos fazendo inúmeras atividades transversais tanto culturais como desportivas; nos hospitais, além de médicos, equipamentos de última geração. Em síntese, nunca houve tão pouca promessa de políticos e tanta verba pública atendendo as necessidades básicas, culturais e intelectuais das massas. XI- NINGUÉM QUER SER POLÍTICO Ao passo que todos sentiam que o Brasil estava melhorando, a maioria esmagadora da população consagrou os arrebatadores fantasmas como o divisor de águas do país. Por isso, volta e meia, quando se faziam festas e passeatas pelas ruas das cidades, os manifestantes levantavam bandeiras com as supostas imagens dos arrebatadores fantasmas. Às vezes, as imagens eram criaturas aladas, com capas enormes verdes e amarelas; outras vezes, era apenas a imagem do próprio País que tomava forma animada e engolia os corruptos. No passo de dois anos, por volta de 2030, os bons políticos estavam totalmente desanimados em capturar os arrebatadores fantasmas ou pelo menos encontrar alguma pista de seus malfeitores, visto que nem a CIA e a INTERPOL conseguiram desvendar o [ 36 ]


mistério do arrebatamento. Com isso, eles se sentiam aprisionados a verdade e ao bom senso, pois todos temiam fazer mau uso do dinheiro público ou simplesmente mentir e ser punidos com a morte. Há muito, eles não viam a política como uma atividade prazerosa, lucrativa. Na verdade, começaram a encará-la como algo doloroso, arriscado e desnecessário para homens importantes como eles. Desse modo, as famílias que historicamente dominavam a política brasileira foram abandonando as fileiras partidárias e se reestruturando em outras frentes de trabalho e laser. Uns procuraram praticar futebol profissionalmente, outros montar uma dupla sertaneja, escrever livros, fundarem igrejas com novos ensinamentos cristãos. Os incontáveis partidos políticos de aluguéis foram sendo extintos ou fundidos em outros, como também partidos históricos deixaram de existir por não ter ninguém filiado a eles. Apesar de intensa propaganda acerca da importância de ser membro de partidos políticos, de disputarem eleições e representarem o povo na construção de um país continental, inevitavelmente, nas eleições de 2034 não houve ninguém querendo concorrer ou pelo menos representar o povo. Até os que estavam no poder já haviam dito em rede nacional que não mais disputariam as eleições e não viam a hora de entregarem seus cargos para os sucessores afortunados. Nesse ano, as eleições foram canceladas, ocorrendo uma grande discussão sobre a forma de fazer política no país, bem como os meios de representação e participação popular. Doravante, acertaram que não existiriam partidos, que política deixaria de ser profissão e [ 37 ]


passaria a ser tão somente uma expressão da democracia, onde os representantes teriam acima de 50 anos, sendo renovados a cada dez anos para nunca mais ocuparem cargos políticos; as eleições se resumiriam em exposição do que se queria fazer, para que e o porquê; a propaganda eleitoral se daria apenas pela internet e televisão com tempo igual para todos. Desde então, surgiram nomes de estadistas interessados, preocupados e capazes de representar seus compatriotas nas decisões tomadas por vários colegiados pelos quatro cantos do país. A partir disso, os representantes e o povo começaram a vislumbrar a nação como sua extensão e a política como o caminho para a prosperidade da humanidade. Ao fim de 30 anos, os arrebatadores fantasmas ainda estavam vivos na memória nacional. Sendo que as massas não paravam de tecer teorias ou mudar de ideia acerca de quem ou o que eram ele e, principalmente, o porquê de ninguém nunca ter chegado a desvendar o segredo por trás de seus feitos.

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DO OUTRO LADO Era noite de uma quinta-feira, passava das 21 horas, as cadeiras do barzinho local começavam a ser ocupadas por diversos grupos de amigos que depois de um dia de trabalho buscavam merecidamente comemorar suas vidas satisfatórias. Ali, não era apenas um lugar onde se comprava bebidas e ouvia música. O barzinho era muito mais, era mágico, podia purificar o eu, que se permitisse, das imperfeições e rudezas do dia a dia. No barzinho não tinha contas vencidas e por vencer; não tinha subordinação ou estresse; diferenças salariais ou mesmo de classe, no barzinho todo mundo era irmão de sangue nobre, ávidos para se confraternizar com o seu igual. Na mesma noite, já passada das 22h, quando o barzinho se encontrava repleto de camaradas, adentrou um garoto desavisado que nada via de especial no recinto, além da oportunidade de vender “inutensílios” para quem tinha condições de comprar. Sua aparição (como era de se esperar) causou desarmonia geral. Contudo, naquele dia, cada um dos presentes estava decidido a não estragar a consciência com frivolidades político-sociais. Enquanto isso, o garoto avançava de peito erguido pela noite, pelo bar, pelas gentes adentro. Indo de mesa a mesa. Dizendo “boa noite”, “olá”, “oi”, mesmo sem ninguém lhe retribui com pelo menos um “não obrigado”. Em sequência, sem se incomodar com a reciprocidade, passou a próxima fase do seu show, oferecendo os produtos para as pessoas à vista, porém, seus clientes, aliás, espectadores permaneciam aparentemente absortos, alhures. [ 39 ]


No entanto, ao contrário do que se queria passar, ele não estava despercebido, todos o viam sem olhar e o ouviam sem prestar lhe a atenção merecida e em uníssono, queriam-no fora dali. Uns porque não desejavam refletir o social, outros porque não suportavam se refletir no social. O inconsciente coletivo dominante do local indicava que ignorar era a única saída para preservar a idiossincrasia paradigmática do politicamente correto. Do outro lado, aquém das filosofias de inconsciente coletivo e verborragias de efeito, estava o garoto forçando os sentidos dos presentes para seus produtos e lábia aprimorada de vendedor que era. Nitidamente havia um impasse existencial no barzinho. Ao que tudo indicava alguém se esquecera de avisar num dado momento histórico alguma coisa importante para ambos os lados em duelo. O clima estava esquentando, alguns já deixavam escapar impaciência, mas não se davam o luxo de ceder. Por conseguinte, em meio ao desconforto generalizado, surgiu um filantropo decidido a resolver o impasse. Com apenas um grito: "hei!?" Sem meias palavras e sem pedir desconto, comprou todos os artesanatos e despediu com meio sorriso no rosto o pequeno vendedor. Destarte, o garoto retornou ao subúrbio, objetivando fabricar mais produtos; o filantropo vitorioso e bonachão jogou no lixo a sacola recheada de inutilidades e, em seguida, todos se voltaram para as belezas do barzinho encantador de seus corações e mentes.

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SOFIA, A MULHER QUE SÓ SABIA AMAR Chegou rápida e silenciosa ao mundo e no que pese ter chorado, algumas vezes, por razões de querência, não tardou para se acostumar com o sujo, o asco e o pouco. A primeira palavra pronunciada não foi mamãe, não foi papai, mas te amo. Por mais que os pais tentassem ensinar outras palavras, ela não podia ver um ser vivente que ia logo sonorizando tiamo! Este fenômeno incomodou seus pais por muito tempo, ao ponto de se convencerem de que a filha era portadora de alguma necessidade especial e que provavelmente, nunca aprenderia a ler e a escrever satisfatoriamente. No entanto, chegada a época de sua alfabetização, Sofia surpreendeu ao aprender a ler e escrever ainda no primeiro ano de pré-escola. Por essa ocasião, os pais já se encontravam crentes que a filha era um gênio e que por ela seriam “alguéns” na vida. A menina, realmente, parecia astuta, pois aprendia rapidamente tudo que lhe era ensinado pela professora e pelo mundo que o cercava. Diga-se de passagem, era comum vê-la imitando com perfeição infantil as falas e atitudes dos adultos. Desse jeito, ela permaneceu até por volta dos seus dez anos de idade, quando passou a compreender que sua vocação era dar amor ao mundo. Assim, se interessou apenas por coisas reais, concretas que dissessem algo palpável e, principalmente, de aplicabilidade social e imediata. Com isso, ignorou por completo a escola, professores, pais e qualquer coisa que lhe remetesse ao abstrato ou a uma simples reflexão do por vir, mergulhando de cabeça no mundo dos sentidos, visão, tato e paladar, respectivamente nessa ordem. Curiosamente, largou [ 41 ]


suas poucas bonecas e se apegou sobremaneira ao celular e às infindáveis e inquietas redes sociais, curtindo e sendo curtida, ousando e sendo usada a cada dia mais e mais. Aos 14 anos, quando atingiu o auge de sua maturidade, só queria saber de amar e ser amada. Quando era contrariada dizia umas duas ofensas e partia para nunca mais. Por esse tempo, quem quisesse ser amigo de Sofia, ou simplesmente desfrutar de seu amor, tinha que se consentir com ela, num nível de afinidade incomum para aquela idade. Aqui, acrescentou ao seu lazer, além das redes sociais, boates e bares da cidade. Na plenitude de seus 16 anos, ela vivia só numa kit net, longe de seus pais e de sua cidade natal; aos 18 anos não tinha terminado o ensino fundamental, mas em compensação já havia entregado suas duas primeiras proles às suas avós paternas e dado muito amor a muita gente de boa vontade. Quando fez 26, apesar de pouca beleza restante e de mais três proles entregues a deus dará, ainda tinha muito gás, amor e força de vontade de encher o mundo de alegria e graça. Não foi sem razão que ela, mesmo passada dos trinta e com o tempo impiedosamente a cada ano lhe tirando o brilho da juventude e lhe afastando os amigos e amantes (estes, já há muito eram minguados e de tipos asquerosos e tacanhos), ainda agia como se a primavera de sua vida acabara de surgir no horizonte. Quem a via falando ou apenas passando acreditava que no mundo só havia Sofia. Contudo, quando adentrou a caso dos quarenta sentiu o peso de ser gente, sentiu as rugas e enxergou a verdadeira face refletida no espelho, vislumbrando de relance o vazio de seu interior. [ 42 ]


Instintivamente, buscou se encontrar em ruas, festas e bares, mas não se via em ninguém e muito menos era vista por alguém. Sofia não tinha um plano B caso lhe faltassem condições de continuar sendo o que era. Então, pela primeira vez na vida, sentiu-se velha, sozinha, vazia e sem direção, buscando, irremediavelmente, refúgio no passado, onde acreditava que tinha sido alguém.

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LEI DE MURPHY Desde que me entendo por gente, e olha que já faz tempo, sigo a lei do menor esforço. Gosto de viver através dela, pois não precisa de atenção, não precisa de foco ou mesmo vontade exacerbada. Por meio dela nunca se é impelido a sair da zona de conforto. O erro, a falha são apenas consequências igualmente possíveis e aceitáveis como o acerto. Não se envereda para obsessão. Vê-se a vida pelo prisma da esperança e do agasalhável. Ademais, ao se adotar a lei do menor esforço, renuncia-se a réplicas, provocações e a respostas ou afirmações pautadas em ironia, raiva ou coisa parecida, tornando-se alguém avesso a toda e qualquer atitude emblemática. A partir do momento que se diz sim a ela, irremediavelmente, passa-se a ser a pessoa do “ok”; do “tudo bem”; do “entendi, senhor”; do “obrigado toda vida”; do “ficarei mais atento de agora em diante”. Essa descrição é fiel a minha pessoa. Antes de qualquer coisa primo pelo bom senso e pela convivência harmônica, pacífica. Para efeito de exemplo, sou casado há vinte e oito anos e nunca disse um ai para a minha esposa. Acredite, isso é possível! Vivo sem peso, respeitando meus limites e sempre apostando em um final feliz. Até porque coisas fantásticas acontecem o tempo todo, um dia poderá acontecer comigo também. Coisa fantástica seria passar em um concurso público na minha área de atuação, pois estou tentando há mais de vinte anos. Já fiz para mais de trinta concursos e até agora nada. Mas não perco a esperança, afinal também sou filho de Deus. [ 44 ]


No que pese eu ser o homem descrito acima, recentemente tive dias difíceis. Tudo que podia dar errado aconteceu, inclusive até o que não podia dar errado, deu. Carro quebrou, filho adoeceu, netos apareceram sem aviso, os chefes reclamaram do meu árduo trabalho. Só estava faltando eu discutir com minha esposa. A propósito isso quase aconteceu, em exatos sete dias atrás. Na ocasião estava eu chegando a casa pela tarde, após mais um dia de fiel cumprimento à lei que adotei como filosofia de vida, os músculos da minha face estavam todos doloridos, minha mente estava afadigada como nunca e para piorar, mais tarde teria que levar meus netos à casa de seus pais que ficava numa cidade a 85 quilômetros de Cruzeiro do Sul. A única coisa capaz de amenizar a tensão daquele dia era a esperança de passar na segunda fase do meu último concurso que, aliás, o resultado sairia naquela tarde. Quando adentrei o portão de casa no meu carro classic preto, ano 2010, à porta, avistei minha esposa. Estava usando uma cara de poucos amigos. Imediatamente mudei a minha para uma inversa a dela. Todavia, o disfarce não foi capaz de persuadir sua vivacidade. Antes de eu dizer uma palavra, ela lera todo o meu dia. Assim, sem ao menos esperar eu passar pela porta foi falando que eu devia mudar minha filosofia de vida, que eu precisava reagir, contrapor, replicar e, principalmente estudar muito, sair da minha zona de conforto. Que certamente eu não iria passar na segunda fase do concurso porque fui negligente, sem fazer maiores considerações havia terminado a prova faltando metade do tempo. Ela simplesmente não parava de metralharme com sermões de como viver, mas, eu a ouvia com [ 45 ]


um sorriso no canto da boca, denunciando satisfação com aquele monólogo. Então, ela percebendo que tudo aquilo entraria por um ouvido e sairia por outro, disse: - Carlos, você tem que parar com esse negócio do menor esforço. Faz mais de vinte anos que nos promete uma vida melhor por meio de concursos, mas nunca se esforça o bastante. Nada cai do céu. Se não mudar, tudo continuará dando errado para nós. Lembra-se da Lei de Murphy? Quando ela disse isso, prontamente tirei o riso e coloquei uma carranca na cara. Tive vontade de reagir, contrapor, replicar, gritar, xingar, mas nada fiz, além de olhá-la nos olhos e dizer: - ok. Tudo bem! Serei melhor de agora em diante. Mas no fundo, estava ávido para provar que as coisas iriam dar certo para mim em breve e que a Lei de Murphy não passava de paranoia de gente excêntrica. Se ela fosse tão eficiente assim, Murphy não teria morrido tão cedo. Nesse momento me agarrei com todo o foco que dispunha na esperança de ter passado na segunda fase do concurso. Entrei no quarto, tomei um banho e fui para a internet. Naveguei por diversos lugares, mas a cada minuto eu visitava o site da realizadora do concurso. Minha esposa ao ver meu frenesi, falou alto: - Pare com isso, Carlos! O resultado não irá mudar se você aguardar. Além do mais não tenha esperança, terá desempenho similar aos outros trinta e tantos concursos anteriores. Lembre-se se algo pode dar errado, dará. Ela insistia em me aborrecer, mas não cedi aos seus apelos. Ela retrucou: [ 46 ]


- Ah! Aproveita e leva nossos netos para suas casas, está passada da hora. - ok. Em seguida, coloquei meus netos no carro, entrei e parti. Mas o tempo todo rogava a Deus que me desse nota boa, provando para minha esposa que Ele era maior do que Murphy e mais infalível que seu agouro. Doravante, quis deixar de ruminar as reclamações de minha esposa e a minha expectativa pelo resultado da prova, então pensei em ouvir uma boa música, de preferência um blues. Liguei o som e de imediato meus ouvidos identificaram os Detonautas. Olhei para baixo e percebi que o pen drive que estava no aparelho era o do meu filho caçula e o meu não estava lá. Deu vontade de gritar, mas disse apenas ok. Comecei a passar uma música após outra, mas o resultado era sempre Detonautas. Fiquei surpreendido, pois não imaginava que essa banda tinha tanta música, porém continuei o ritual até chegar à cidade destino, deixar meus netos e retornar. Ao sair da cidade, constatei que a gasolina estava quase entrando na reserva. A chance de eu não chegar a casa por causa de sua falta era mínima, mas existia, ri e exclamei: - Agora testarei a lei de Murphy. Continuei o percurso de volta ainda insistindo em agradar meus ouvidos. Nessas alturas eu já estava concluindo que os Detonautas cantavam também em inglês, pois as músicas que se sucediam eram idênticas, mudando por vezes o idioma. Entretanto, para minha alegria, depois de alguns minutos, encostei o carro para atender um telefonema da minha esposa. Ela falou muito contente: [ 47 ]


- Amor você conseguiu. Você tirou 77.14 na segunda fase. Pouca gente tirou mais que você. Fiquei radiante. Tanto que apenas disse obrigado e desliguei o celular. O desabafo foi imediato e veio em forma imperativa: - Chupa essa Murphy!!! Fiquei extasiado por alguns minutos, parado ali com o carro ligado, entre uma cidade e outra. Ainda para brindar minha vitória, a banda anterior saiu do palco e entrou em cena Leonardo Cohen cantando Hallelujah. Foi muita emoção. Não aguentei, fui aos prantos. Quando enfim me recompus coloquei para repetir Hallelujah e segui viagem. Faltando menos de um quilômetro para chegar a Cruzeiro do Sul, recebo uma mensagem. Paro o carro outra vez e a vejo. A mensagem era da minha esposa avisando que havia me informado a nota da primeira fase e que na segunda eu tirei apenas 55 pontos percentuais e que, portanto, não tinha chance alguma de ser chamado. Para sacramentar, no final da mensagem tinha Obs. e a seguinte frase em caixa alta: EU TE AVISEI!!!! Fiquei arrasado, destruído com sua perversidade. Passei mais de vinte minutos parado remoendo tudo aquilo. Quando pensei em continuar a viagem, repentinamente, o carro apagou. Tentei ligálo várias vezes, mas nada. Com um sorriso de sarcasmo, lembrei-me da gasolina. Saí do carro, olhei as luzes da cidade à frente, então sem vontade de seguir, prostrei-me sem força à margem da Rodovia, sentindo-me o pior dos homens, subjulgado pelo detestável Murphy e tripudiado pela minha adorável mulher.

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OS PERCALÇOS DA CINDERELA Maria Flor, apesar de ter nascido em meados da década perdida e vivido sua infância e adolescência ouvindo sertanejo “universitário” e “Pop Rock” dos calças justas, não assimilou o desvairo da busca da “Terra do Nunca” e muito menos a impressão de ser mais engenhosa do que era realmente. Para a alegria dos pais e surpresa dos amigos, raramente ia a baladas e festas, pois não gostava da ideia de se confraternizar com gente desconhecida, preferia o sossego do lar e das conversações dos programas de televisão dos finais de semana. Ela sonhava pouco, estudava pouco e dedicava parte significativa do seu dia às atividades domésticas, mas nada que pudesse denunciar demasia. Ainda na pré-adolescência já pensava em se casar com um sujeito equilibrado, estável economicamente; ter filhos e ser uma excelente mãe e esposa, limpando diariamente a casa, cuidando dos filhos e atendendo aos anseios do marido; na velhice, pensava convictamente que enterraria seu fantástico companheiro senil e viveria por meio da pensão da previdência social e pela bondade dos filhos criados, amorosos e bem educados que tivera. Contudo, sabia que no século XXI, casar-se não era uma tarefa fácil, ainda mais, se fosse com alguém sensato. Por isso, desde cedo treinou seus sentidos e raciocínio para identificar e eliminar os homens indesejados, bem como localizar e agarrar o marido que se encaixasse na sua moldura matrimonial. Foram vários os pretendentes ineptos que ela eliminou [ 49 ]


sumariamente através do seu intrépido não ou apenas pelo silêncio qualificado. Maria Flor, saída da adolescência, estava perita em refugar seus pretendentes, que, diga-se de passagem, ainda eram muitos. Razões eram sempre encontradas para dispensá-los. Porque falavam de mais ou de menos, porque eram baixos ou altos em desarmonia, porque trabalham o dia inteiro ou não trabalham dia nenhum. Sua capacidade em eliminar os homens que havia a disposição, em nada abalava a certeza em encontrar o marido da sua vida. Pelo contrário, estava convencida de que antes dos trinta o encontraria e saberia disso, bastando colocar os olhos sobre ele. Graças a sua presunção inabalável ou talvez a alguma vontade oculta dela mesma, num período, onde já havia no coração da mãe um grão de medo que a filha nunca alcançasse a casa almejada, Maria Flor conheceu um sujeito que abalou suas convicções ao ponto de duvidar de ele ser o marido ideal. O relacionamento durou e foi intenso, sob a perspectiva dela. Aliás, a família chegou a acreditar que Maria Flor enfim iria se desabrochar numa mulher casada. Porém, para desespero materno, o tempo e principalmente, a personalidade do jovem pretendente a fizeram xotá-lo de sua presença áurea. Depois disso, apareceram outros e que por insistência incansável da mãe, ela acabou se deixando levar por uns, como também ser beijada por outros para no fim se cansar do peso de suas individualidades e dispensar a todos. Nessas alturas a mãe dava sinal de impaciência, desesperança e até mesmo loucura, tentando jogar a filha nos braços de qualquer um que [ 50 ]


se reconhecesse como homem apto a constituir matrimônio. Destarte, quando a passeio pela cidade e via um transeunte garboso o imaginava casado e pai de seus netos e se algum sujeito conversasse com ela, na primeira oportunidade, falava das inúmeras qualidades da filha solteira, convidando-o a conhecêla. Foi numa dessas que Maria Flor (mais Maria do que flor) se viu obrigada a namorar um sujeito numa semana e se casar na outra. Ele não era nem tanto ao mar, nem tanto a terra, mas tinha o quê “capitaneador” das bênçãos da mãe de Maria Flor, que por sua vez, não era totalmente reprovado pela filha. A cerimônia foi um evento histórico na família, inclusive para Maria Flor que mesmo sendo a primogênita era a última de sua linhagem a constituir matrimônio. O recém-casado foi tratado a pão-de-ló pelos convidados. Houve muitos presentes, felicitações, alegrias e promessas de futuro próspero. O casamento em si foi um mar de espinhos. Tudo lhe causava dor e irritação. Não era só a presença do marido rindo, sério ou aborrecido; tinha a cor dos móveis; as louças sujas; a quentura do quarto, da sala e a distância sobre-humana de oito quadras do carinho dos pais. Assim, no passo de três meses(como temia a mãe), lá estava de volta a “boa samaritana” extramente decepcionada com o ex-marido que, segundo ela, nada fazia para agradá-la, sendo a todo tempo intransigente com o matrimônio como se não tivesse a menor ideia do que era viver a dois. A mãe relutou de todas as formas para que ela voltasse para os braços do marido e fosse unção [ 51 ]


de Deus na vida dele, inclusive ameaçando de expulsá-la, caso desobedecesse, mas contra isso, Maria Flor invocou a intervenção do pai que, sem pestanejar, garantiu que ela poderia ficar pelo resto da vida na sua casa, jogando uma pá de cal na ira da mãe e no medo da filha. Assim, ela foi ficando, ficando, ficando e deixando de pensar em fazer o que não fazia. Embora, volta e meia, em rompantes imaginativos, ainda criava o homem perfeito, numa realidade vindoura, para além do mundo vivido.

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O SEXAGENÁRIO Quem o vê ali, na frente de seu modesto abrigo, nem imagina o homem que ele foi num passado recente da maliciosa cidade de Redenção e de Lago da Pedra. Não é de agora que o impiedoso tempo apaga o lastro histórico dos esquecidos, dando a impressão de que eles surgiram do nada para o nada, mas minha pena há de se insurgir contra essa injustiça. No Bairro, muitos o conhecem como seu baxin e por ironia, os que o cumprimentam sem conhecê-lo também lhe atribui a mesma denominação. Parece que alguns apelidos são marcados com fogo na pele de nossa testa e mesmo depois de muita água ou plástica nunca desaparecem. Quando ele ainda era um adolescente na pacata e escondida cidade de Lago da Pedra no Maranhão, comumente alguém anunciava em prelúdio o que viria a ser seu nome de velhice. Na época, ele se irritava. Queria brigar e esfaquear com a peixeirinha, que levava sempre consigo, qualquer um que fizesse brincadeira sobre sua estatura, exigindo que o chamassem por seu nome de batismo: Aldroal Moreira, porém, como era de se esperar, quanto mais ele se irritava com os apelidos, mais a comunidade fazia questão de repeti-lo. Ao completar vinte anos de nascença e graças a variadas discussões entusiastas em prol do necessário respeito da sociedade, todos de Lago da Pedra o conheciam como “o baxin da peixeira”. Assim, para onde ia, havia alguém disposto a fazer a festa da rapaziada, convidando-o a duelar. Inegavelmente, ele tinha sangue nos olhos e muita vontade de ser tratado como gente. [ 53 ]


Para tanto, Aldroal Moreira, tão logo soube que nos garimpos paraenses se poderia enriquecer da noite para o dia, imediatamente se pôs para as bandas do Sul do Pará, mais precisamente ao garimpo conhecido como Maria Bonita. Ao longo de seis meses garimpando, ele passou de um mero peão “trecheiro” para dono de barranco, os peões diziam que Aldroal era um imã de ouro, onde ele estava o ouro ia. Um ano como dono de barranco o enriqueceu como muitos por lá e como a maioria, fez questão de demonstrar seu valor no garimpo, nas redondezas e principalmente, em sua cidade natal. Aldroal Moreira tornou-se um exímio gastador. Não havia nada em sua frente que não comprasse: prostitutas, carros, motocicletas, jet ski, dentes de ouro. Inclusive, ao adquirir uma carreta tipo cegonha com motorista e tudo, colocou todos os seus automóveis sobre ela e partiu para Lago da Pedra. Ao chegar, passeou por horas pelas ruas e avenidas da cidade, soltando foguetes e acenando para o público que parava para vê-lo passar. As pessoas custavam acreditar que o baxin da peixeira estava podre de rico, mas rapidamente compreendiam a equação e caminhavam para junto, com intuito explícito de bajulá-lo. Quem não sabia seu nome de batismo corria atrás de quem sabia e logo estava pronunciando para ele em alto e bom som: “Doutor Aldroal Moreira, o mais ilustre cidadão Lago-pedrense.” Passado um mês, não houve ali um só cidadão que não apertou e nem pronunciou seu nome de batismo. Definitivamente, o baxin da peixeira havia morrido para o Lago da Pedra. Aldroal Morreira só era alegria e vaidade. Bastava apenas [ 54 ]


alguém falar seu nome que ele sacava uma nota do bolso e entregava ao seu interlocutor ou a um transeunte sabedor do dinheiro fácil que o interpelasse. Há quem diga que Aldroal fez a festa na cidade. Não houve uma só mulher desimpedida que ele não se deitou, aliás, dizem que até Juliana, a filha do Prefeito não passou despercebida de sua visão e toque. Porém, foi com Maria da Felicidade, uma menina bonita e humilde do seu antigo Bairro, com quem se casou. O casamento foi o maior acontecimento de todos os tempos. A cidade inteira e região foram convidadas; vários bois foram sacrificados para o churrasco; o artista contratado para tocar não foi nada menos que Raul Seixas, repetindo, no mínimo, cinco vezes a música Maluco Beleza para deleite de Aldroal. Esse evento entrou para os anais da cidade, sendo lembrado até nos dias hoje, inclusive, nas escolas. Com seis meses de prodigalidade, seu dinheiro minguou, então, colocou seus carros, motocicletas, jet ski e a esposa dentro da cegonha e regressou para o Pará, domiciliando-se na cidade de Redenção e com o pouco de dinheiro que sobrou, comprou uma casa para Maria da Felicidade, indo, em seguida, para Maria Bonita. O imã de ouro, chegando ao garimpo, extraiu de seus barrancos meia tonelada de ouro que foram devidamente torradas com prostitutas, álcool e a sua caridade sem limites para com qualquer um que lhe chamasse por seu nome de batismo. Contudo, após cinco anos de fartura o garimpo secou. De Maria Bonita, Aldroal não conseguia retirar nem sequer um grama de ouro, todo [ 55 ]


barranco que comprava e derrubava lhe rendia apenas prejuízo. Às vezes, num barranco do lado do seu dava muito ouro, mas no dele nada. Sentia que o ouro lhe fugia, por isso, apelou em vão para todos os santos e pais de santos diversos. Ademais, ao longo de vinte anos, ainda buscou o metal amarelo em vários garimpos da região, chegando ao extremo de não ter dinheiro nem mesmo para pagar a passagem de ida ao garimpo. Destarte, Aldroal Moreira ficou relegado a viver em Redenção como homem sem emprego e com o tempo, sem passado, sendo obrigado a sobreviver de sonhos e do que os filhos e amigos lhe davam para comer. No início não foi fácil, esperneou bastante, por meio do álcool, das brigas com a família e fugas repentinas a garimpos cegos. Contudo, certo dia, caiu sobre si a idade e aquietou-se em frente a sua casa contentando-se a ver o passar do tempo e das gentes, bem como se acostumando a ouvir das pessoas o cumprimento de seu baxin. A bem da verdade, em algumas tardes de verão, é possível vê-lo sobre sua bicicleta Monark trafegando feliz da vida pelas ruas da cidade. Nessas ocasiões, ele se esquece do seu baxin e se imagina outra vez como o Dr. Aldroal Moreira, o rei do Lago da Pedra.

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O GURU DOS CONCURSOS Fábio há alguns anos vem estudando “pesado” para concursos. No início, ele era apenas um concurseiro comum, sem metas razoáveis, sem foco mínimo e sem nenhuma metodologia satisfatória. Era do tipo que estudava a esmo por aulinhas feitas em PDF ou por apostilhas feitas nas “coxas” por ocasião da publicação do edital. Nessa época, o importante era fazer concurso seja ele qual for, mesmo que não tivesse domínio algum da nobre arte dos concursos. Sim. Estudar para concurso é uma arte que, aliás, é dominada por poucos. Seguindo a trilha, ele sonhava muito e estudava pouco. Para piorar, acreditava que com o mínimo de esforço logo, logo seria escolhido por Deus para ocupar um cargo público e enfim, alcançar a vida “fácil” de servidor público. Pensava isso porque se achava especial. Sentimento este, típico dos concurseiros vulgares. Contudo, devido a insucessos recorrentes em vários concursos e após ter pago sua sexta promessa de fé. Fábio resolveu mudar radicalmente sua concepção religiosa e social. Partiu para o tudo ou nada: deixou de implorar a Deus por um milagre, esquivando-se de romarias, promessas e cultos infindáveis. Deixou de sair de casa; de dar ouvido aos seus pais que insistiam que trabalhasse ao invés de ficar trancado em casa estudando, ou aos amigos que sempre o convidava para festas e boates pelas noites afins. Doravante, seu convívio era apenas com livros de direito, de português, de raciocínio lógico e de autoajuda. Sendo que estes eram maioria. O seu [ 57 ]


livro de cabeceira passou a ser Como Passar em Provas e Concursos do renomado escritor William Douglas. Fábio simplesmente memorizou cada dica do badalado escritor, adotando praticamente todas suas orientações. Por conseguinte, deixou de fazer concursos diversos e mirou no que almejava para a vida. Assim, passou a estudar sete horas por dia religiosamente; com direito a cronograma, cronômetro, resumos e tudo mais. Quando era chegada a hora de estudo, Fabio se trancava no quarto. Ali, era apenas ele, seus livros e os riquíssimos ensinamentos de seu guru dos concursos. O silêncio era pleno, nem pernilongo ou qualquer ser vivo lhe fazia companhia. Ao longo de dois anos tinha nada menos que dez cadernos de estudo cheios de anotações riquíssimas e um último que explicava em detalhes sua saga vitoriosa de estudos, bem como vários recursos mnemônicos. Fábio estava voando nos livros. Não havia um conceito doutrinário não sabido por ele, nem princípio, nem lei. Passada essa fase, veio à próxima, que era resolução de questões. Assim, no silêncio de seu quarto, Fábio baixou centenas de provas de bancas distintas e resolvia a todas. Não havia questão que o parasse. Ao final de três meses, percebeu que o seu nível de acerto passava dos 90%. Então disse para si mesmo: - nesse concurso, ou vai ou racha! Sorrindo altivamente. Devido a isso, acreditou que estava preparado para gabaritar a prova do concurso de seus sonhos que, aliás, ocorreria dali a quinze dias. Outrossim, tirou esses dias para descansar, meditar e [ 58 ]


viajar com antecedência para a cidade de realização da prova. Chegado o dia esperado, às 06h30min, já se encontrava próximo ao portão de entrada onde ocorreria a prova. Quando os portões se abriram, Fábio entrou lento, sereno e sorridente. Queria desfrutar cada segundo do último degrau da escadaria do sucesso; queria ouvir e ver as pessoas, mas, principalmente, ser notado por elas. Naquele instante, desejou impulsivamente que alguém conversasse com ele e lhe perguntasse o nome. Diria repetidamente sem economia de tempo e letras: - o meu nome é Fá bio Fe rrei ra da Silva. Por isso, sentou-se próximo a um grupo de concurseiros tagarelas que brigavam entre si pela palavra. Os que conseguiam falar, diziam que mal estudaram porque não puderam, ou não quiseram; outros ainda diziam que não conseguiram dormir o bastante na noite anterior e estavam tombando de sono. O certo era que todos ali lutavam para ecoarem suas vozes de lamentações na esperança de que os seus conhecidos soubessem ser brandos quando avaliassem seus futuros desempenhos. Enquanto isso, Fábio aguardava alguém interagir com ele. Entretanto, ninguém se interessava no que o outro tinha a dizer, queriam apenas justificar aos quatro ventos suas falhas vindouras. Diante desse cenário deprimente e já cansado de ouvir o terço infindável dos concurseiros carolas, saiu um tanto quanto frustrado, mas ainda altivo e foi para sua sala aguardar a hora de gabaritar a prova. Depois de olhar o panorama da sala, sentouse no fundo, de modo que ninguém pudesse [ 59 ]


vislumbrar sua prova, pois não queria que nenhum espertinho se desse bem às suas custas. Quando já estava devidamente sentado e com a prova na mão, buscou se concentrar, imaginando estar no quarto em silêncio absoluto, prestes a resolver mais uma prova, igual a tantas outras de outrora. Desse modo, depois de tudo assinado, Fábio iniciou a resolução de questões, Lia o comando e rapidamente encontrava a resposta correspondente. Entre uma questão e outra, regozijava-se de sua aprovação certa naquele concurso, pensando ele que inevitavelmente ficaria na primeira colocação; após outra questão imaginava sendo assediado pela mídia e por muitas pessoas sobre a receita do sucesso; mais uma questão, imaginava o sorriso da menina de seus sonhos o convidando para sair depois do trabalho. No entanto, quando passava para sua nona questão e o seu décimo devaneio, um ruído lhe convidou a se desconcentrar. O ruído vinha de um sujeito sentando do seu lado esquerdo. Parecia que a cada dúvida, o sujeito sugava a tampa da caneta, provocando um som irritante. Fábio virou-se e o encarou de maneira ameaçadora, crente que o sujeito não repetiria o feito. Contudo, quando Fábio estava no ápice de outro devaneio, seu colega roubou sua atenção novamente. Nesse instante, Fábio se irritou, bateu discretamente na cadeira e o olhou repentinamente. O sujeito, por sua vez, estava totalmente compenetrado em responder questões e provocar ruídos que nem se deu conta da bravura e presença de espírito do colega ao lado. Fábio, apesar de não ter ficado contente com o resultado obtido, voltou-se para a prova na [ 60 ]


esperança de que talvez o sugador se apercebesse e parasse com o ruído. A esperança não foi o bastante para resolver o seu problema. Pelo contrário, o sugador reduziu a frequência com que fazia o som. Agora, o ruído ocorria tanto na hora em que ele lia o comando, bem como na hora em que respondia a questão. Nessas alturas Fábio estava totalmente desconcentrado, pensando no que fazer. Sua primeira ideia foi reclamar daquilo com o fiscal, porém, visualizou os outros colegas e percebeu que aparentemente era o único a se incomodar. Além do mais, acreditou que essa atitude acarretaria perda de tempo e tempo seria crucial na resolução e revisão da prova. Então, resolveu tão somente invocar seu guru para adquirir calma, sublimar o obstáculo e, de quebra, gabaritar a prova. Contra suas expectativas, o contrário ocorreu, pois no passo do próximo ruído, surgiu uma ira intensa em Fábio que o fez perder a cabeça, ao ponto de se levantar repentinamente e tirar satisfação com o colega. Este permaneceu quieto e passivo, afirmando que não estava fazendo barulho algum. O desentendimento dos dois foi o bastante para provocar uma confusão na sala: todos falavam ao mesmo tempo, exigindo que Fábio se calasse e sentasse, inclusive, teve um que o chamou de perdedor e o mandou se limitar a sua insignificância. Essas palavras, além de ferir o ego de Fábio, o fez sentar imediatamente, desejando a todo custo gabaritar a prova e lavar a alma. Inusitadamente, restando para Fábio ainda quarenta questões, o seu inconveniente colega se levantou, entregou a prova ao fiscal e partiu da sala. Ele acreditou que aquilo era sinal de bom sucesso, [ 61 ]


obra da Divina Providência. De imediato, recobrou suas fantasias e fez as pazes com Deus, agradecendoo pela graça atingida. Doravante, tentou voltar-se de corpo e alma para a resolução de questões, em vão. A prova que estava diante dele já há muito não era a mesma. Ainda que não houvesse ruídos, Fábio não entendia mais o que lia. As assertivas tornaram-se confusas e distorcidas, parecendo apenas um emaranhado de letras. Mesmo o óbvio lhe cuspindo a cara, ele ainda insistia bravamente contra os fatos, contra as horas e contra a sua ruína psicológica. Entretanto, depois de dez minutos de puro entusiasmo, o fiscal lhe tomou a prova e o cartão resposta, informando ironicamente que o tempo havia findando em silêncio. Destarte, enquanto o fiscal envelopava e levava seu passaporte para um futuro “glorioso”. Fábio, sem esboçar qualquer reação, ficou pasmado em sua cadeira, vendo mais uma vez seus sonhos ruírem. Mas, surpreendentemente, pouco depois da partida do fiscal, ele ainda foi capaz de relembrar dicas reconfortantes e otimistas de seu livro de cabeceira e assim, criar ânimo para se arrastar de volta ao seu templo e perseguir a tão almejada aprovação.

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PARADIGMA DA LOUCURA Hoje, há milhares de pessoas felizes no mundo. Umas por viajarem, outras por beberem na companhia de amigos e familiares; há ainda aqueles que estão felizes apenas por comprar, comer ou simplesmente refletir sua existência. Eduardo é um desses felizardos. Porém, a razão de sua felicidade não se deve a viagens, bebidas, compras ou coisa parecida. Não é nada disso. Eduardo está feliz por viver no seu estado natural, sem responsabilidades, sem sujeições e livre das amarras sociais. Vive um dia por vez, sem maiores considerações ou preocupações. Ele caminha por estradas e rodovias, visitando grandes e pequenas cidades pelo Brasil a fora; dormindo em qualquer lugar; alimentando-se apenas do que é dispensado pela sociedade e deixado no lixo em frente de restaurantes, supermercados, lanchonetes etc. Embora tal filosofia de vida possa indicar que ele é mendigo, não é o caso. Pelo menos, não propriamente, pois segundo ele, “mendigo é apenas um bicho que por instinto insiste em sobreviver. São apenas criaturas sem dignidade, sedentas para se alimentarem e alimentarem seus vícios que por comodidade intelectual ou por falta de opção estão na “indignância” constante, ávidas por um gesto de caridade ou pelo menos um olhar piedoso de quem é tido por eles como superior. Do outro lado, estou eu, homem digno que por opção escolhi a vida de andarilho. Vida sem casa, sem família, sem metas ou ambições. Vivendo apenas no presente, longe do passado e sem preocupação alguma com o futuro, sem nunca mendigar por alimento ou se entorpecer [ 63 ]


com qualquer droga. Apenas vivo segundo minhas convicções, conhecendo um lugar aqui outro ali”. O conheci, quando certa vez, ele mexia no tambor de lixo próximo a uma lanchonete onde estava, comovi-me com sua insistência em revirar o lixo de um lado para outro sem nada encontrar para comer, então comprei um lanche e tentei lhe entregar. Ele quando viu minha mão estendida, olhoume nos olhos impiedosamente e disse que não aceitava caridade ou esmolas, pois não era mendigo. No primeiro momento pensei se tratar de um louco, mas como ele começou a me explicar suas razões, fiquei na dúvida. Por isso, pedi desculpas e joguei o alimento no lixo. O lanche mal caiu, ele enfiou a mão no tambor de lixo e o apanhou como se nada houvesse acontecido, levando-o a boca avidamente. Talvez por ter assistindo essa cena e também por tê-lo ouvido, fiquei curioso sobre suas origens. Assim enquanto ele comia, encostado ao lixo, ia respondendo algumas perguntas que eu fazia e ignorando outras. Disse entre outras coisas que estava completando 44 anos de existência, mas apenas seus últimos sete foram plenos. Contou que viveu 37 anos numa pequena cidade no interior do Pará, chamada Redenção. Era homem respeitável, tinha família, amigos e até emprego. Lá ele fez de tudo um pouco. Foi mecânico, borracheiro, “roçador”, catador de latinha e agitador de bandeira de político nas ruas. No seu último emprego, trabalhou por três anos numa empresa que fazia móveis, chegando a ganhar mais de um salário mínimo. Afirmou ainda que lá nunca foi feliz, pois todo mundo com quem ele conviveu o insultava, o [ 64 ]


humilhava, o explorava ou tudo isso de uma só vez. Nessa hora, crente que tinha sua confiança e mansidão, retruquei dizendo que essas coisas são assim mesmo, fazem parte da vida. Ele imediatamente reagiu: - antes só e livre do que humilhado, explorado e amarrado!! Enquanto eu viver ninguém mais vai me insultar ou me explorar, comigo calado e pacífico. Xingo-lhe e vou embora. Desse modo, quando eu ainda tentava, sabese lá porque, chamar o sujeito “à razão”, afirmando que na vida não podemos ser sempre a ferro e fogo, ele me cuspiu uma palavra ou duas, fez um gesto constrangedor em minha direção e partiu. Fiquei olhando-o se distanciar, a continuar sua peregrinação na vida. Só de imaginar uma vida como a dele me dava medo e inquietação. Todavia, sentia-me contente por tê-lo conhecido, além do mais, não saía da cabeça a ideia de que seu comportamento tinha um quê de inspirador e libertador. Assim, minutos depois, chegando a minha confortável residência de há muitos anos, concluí, com sorriso de ironia no rosto, que no mundo dele, certamente o louco seria eu. Por fim, confesso que antes de conhecê-lo pensava impossível alguém ser feliz daquele modo, sem ao menos ter a companhia diária do álcool, ou senão da insanidade total. Mas não, Eduardo não bebia, era lúcido e possuía uma excelente ordenança de ideias, bem como uma retórica invejável. Depois disso o vi outras duas vezes, perambulando em Goiânia e Anápolis. Ele ainda transmitia satisfação com seu estilo de vida e muita convicção ao defendê-lo. Definitivamente, hoje estou [ 65 ]


convencido de que Eduardo ĂŠ daquele tipo de sujeito que atenua mais ainda a linha entre a loucura e a lucidez.

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A TRINCA DO ESPELHO Meu amigo será se estamos inevitavelmente fadados a sermos filhos de nossos defeitos? Ou pior, filhos da nossa vaidade? Nos últimos tempos, toda vez que converso contigo, tendo a acreditar que sim. Talvez, esteja pensando que sou um mero presunçoso especulando sua vida de mar de rosas. Ora, ora você sabe muito bem que não é de hoje que te conheço. Sei da fuga de tua mãe, da indiferença de teu pai, como também sei do amor dos que te acolheram. Meu amigo, não é para me gabar, mas tenho “know how” para o assunto. Lembro-me que no passado quando presenciava seus rompantes de pura arrogância, atribuía ao desejo irrefletido de se defender, mas agora, percebo meu engano, visto que após todos esses anos foi sua sensatez refletida que se tornou em rompantes ocasionais. Meu amigo, não me leva a mal, mas sua intolerância ao riso combinada com seus estrondos “aquilianos” recorrentes não lhe caem bem, até porque não precisamos de nos descobrir Einstein para sermos dignos ou apenas gentes. Não duvide, a vida é válida para todos os que dela se aproveita. Espero que não pense que estou falando sobre um pedestal. Não. Falo como um pária que insiste em seguir o caminho das pedras para o outro lado da montanha e que não se entrega às artimanhas do egocentrismo ou do mal do século. Perdão por chover no molhado, mas você, meu caro amigo, não precisa rosnar para ser respeitado, nem disfarçar, nem imitar, nem fingir e muito menos mentir para si mesmo. Não fuja de seus [ 67 ]


“demônios interiores”. Quer bem estar? Seja apenas você, sem maquiagens ou douradas pílulas. Meu amigo, você já parou para pensar qual a razão de tanta prepotência? Você realmente pensa que as pessoas para as quais você conta as estórias de sua superioridade ariana acreditam, ou pelo menos entendem? Afinal, há algum sentido nisso? Quando foi que você deixou de percorrer sua Cruzada existencial e mergulhou no lago de Narciso? Acredite! Não há propósito algum nessas águas. Não seja covarde, emerja, enxugue-se o mais rápido possível e retome o caminho, pois, a nossa amiga sabedoria está alguns passos à frente, aguardando por você.

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ELE & ELA Eles caminham altivos pela passarela, certos dos holofotes miram o horizonte. Ela usa uma pequena blusa branca, uma minissaia jeans e sapato preto de salto fino, evidenciando seios anti-gravidade, barriga tanquinho e pernas torneadas. Ele desfila usando blusa branca, calça jeans e tênis preto, combinando com os trajes da acompanhante. Enquanto percorrem a passarela, todos os olhares os seguem, do mais discreto ao mais espalhafatoso. O sentido condiciona a razão dos que contemplam, suscitando assim, um amálgama de ideias arredias e confusas. Próximo dali, uma menina abraçada ao namorado segue com os olhos o casal, encanta-se com o modelo ao ponto de cobiçá-lo, mas ligeiramente se escandaliza com a vulgaridade da hodierna rival, convencendo-se de sua superioridade. Por sua vez, o jovem abraçado pela menina, heroicamente se extasia com os contornos propositadamente demonstrados pela musa da beleza contemporânea, mas queda-se impotente ao ver de relance o homenzarrão que caminha ao par dela. Quando enfim o casal chega ao balcão com todos os olhares à tira colo, aguarda prazerosamente ser atendido. Ele ora cruza os braços e encolhe a barriga, ora põe as mãos no bolso, curvando os braços de modo a realçar seus bíceps e esconder a barriga. Ela apesar de paciente volta e meia move-se próxima a uma parede de espelho, entrevendo furtivamente seu corpo em frente e verso. A balconista ao vê-los esperando, prontamente vai atendê-los: - O que o senhor deseja? [ 69 ]


- Quero uma torta de chocolate e uma Coca Cola diet. - Ok. Ela quer o quê? - Ela quer o quê? - O que? - Ela, sua namorada que está se contemplando no espelho, quer o que? - Ela?! Deixa eu ver. - Você quer o quê? - Como? - A garçonete está perguntando se você vai querer alguma coisa para comer. - Ah, sim! Quero uma Coca diet e fritas. Depois de servidos, sentam-se em frente à parede de espelho e assistem detidamente suas respectivas imagens, seguidos dos olhares circundantes. Assim, entre deduções e satisfações de si mesmos, eles comem, bebem e ainda monologam autobiograficamente sobre o mundo encantado de suas roupas, de suas belezas e de suas festas. Os circundantes, surpreendentemente, também pensam sobre o mundo fantástico deles e o quão distantes estão de lá. Uma hora depois, a dupla se levanta, paga e retorna à passarela, mas sempre acompanhados dos olhares corriqueiros das gentes que param os vendo passar.

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DIA HÁ DIAS Francisca dormiu tarde, acordou tarde. Aprontou-se, ralhou com os meninos, montou em sua bike e saiu às pressas, sem café da manhã pra ninguém. Ao longe avistou a patroa à porta: - bom dia, dona Margarida! Ouviu um grave e aborrecedor: - Outra vez chegando atrasada! Ela abaixou a cabeça e foi às louças da manhã, às roupas de ontem, aos meninos da outra, ao almoço, ao banheiro e enfim, ao chão. Quando já era tarde de sexta-feira, com o dever diário cumprido, ela ergueu a cabeça e disse: Tudo feito, dona Margarida. Olha, estou precisando comprar umas coisas pra casa, a senhora poderia me adiantar 50 real? Do outro lado, ressoa um relâmpago não. Sem tremer, retrucou:- Mas meus filhos não tem o que comer. Então pelo menos 30, dona Margarida. A patroa do alto a encarou por alguns segundos e então reclamou: - Essa é a terceira vez em menos de 15 dias que você me pede adiantamento. No vigésimo dia, já não terá o que adiantar. Além do mais, chega sempre atrasada e tudo que faz é mal feito. Quer saber, darei o que te cabe e não precisa voltar mais. Você está demitida. Imediatamente, sacou da carteira que estava na mão 150 reais e os entregou a empregada. Francisca calmamente recebeu o dinheiro, o conferiu, o enfiou no sutiã, disse boa tarde dona Margarida, montou na sua condução e partiu para o mercado. Depois de comprar arroz, feijão, óleo e costela, enviou mensagens para as amigas informando que precisava de emprego. [ 71 ]


No final da semana, Francisca seguiu sua rotina de anos. Acordou cedo, limpou a casa, ralhou com os meninos, fez almoço e partiu das chateações para o sábado de alegria com “cervejinha”, “tira gosto”, amigos, amantes e amores. No domingo, acordou tarde, mas leve e radiante. Destarte, limpou a casa, ralhou com os meninos, fez o almoço, confirmou o novo emprego, assistiu televisão e partiu para o domingo de alegria... Na segunda acordou tarde. Sem banhar, aprontou-se, ralhou com os meninos, montou em sua bike e saiu às pressas, sem café da manhã pra ninguém. Ao longe avistou a patroa à porta: - bom dia, dona Juliana! Sou a Francisca, sua nova empregada. Ouviu um formal e seco: - Olha, se quiser trabalhar na minha casa tem que chegar no horário, ser asseada e, principalmente trabalhadeira. Disposta a mostrar serviço, Francisca abaixou a cabeça e foi às louças da manhã, às roupas de ontem, aos meninos da outra, ao almoço, ao banheiro e enfim ao chão, outra vez.

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CONSUMINDO-SE A noite foi mal dormida, ao amanhecer ainda sentia um vazio no peito e uma aflição intensa na alma ao ponto de doer. Estava só há vários meses, sem marido, sem filhos e sem poder aquisitivo. Sentia-se inquieta por um lado e melancólica por outro. Por isso, levantou-se cedo, foi ao banheiro, passeou pela sala e cozinha, várias vezes, para enfim retornar ao quarto. Parou diante de seu guarda roupas, revendo algumas peças esquecidas, experimentando outras. Mirou seus 600 pares de calçados, contemplando-os detidamente sem encontrar nenhum que lhe agradasse. Imediatamente desejou ir às compras, mas, lembrou-se que seus cartões estavam todos no vermelho e que seu marido havia se cansando dos gastos, dos mimos e dela; além do que, dali a três horas deveria estar vendendo roupas no seu novo emprego, sem poder comprar nenhuma. Quis voltar no tempo, fixando-se na vida boa de outrora e de lá nunca mais sair. Acreditou que se fosse possível cometeria menos erros, seria menos impulsiva, quiçá ate amasse seus filhos e marido tanto quanto a fazer compras. Contudo, repentinamente irritou-se com a ideia, falando baixinho: - Que mal há em fazer compras?! Isso não é uma doença. Pelo contrário, é uma terapia. Sinto-me tão leve, tão feliz e imune de todos os males da alma. Quando se deu conta do tempo, viu que o ponteiro do relógio dera um salto, não havendo, portanto, espaço para lamentações ou viagens ao passado, então buscou forças para ir ao [ 73 ]


trabalho, contrabalanceando seu pesar com a satisfação de ter chegado viva a sexta-feira. No trabalho, quando não estava atendendo a mulheres afortunadas como ela foi num passado recente, ficava vislumbrando as peças de roupas que compraria tão logo pagasse as infindáveis parcelas das compras anteriores. Mais tarde, terminado seu expediente, foi convidada por uma colega a ir à outra loja próxima dali, onde estava ocorrendo uma liquidação. No primeiro momento ela exclamou com desdém: liquidação?! Dando vontade de “soltar os cachorros” na desavisada, mas depois que lhe foi informada das roupas de grife e, principalmente, de que lá vendia na nota promissória, ela se esquecera da ofensa e a acompanhou alegremente. Daí a poucos minutos, ela já estava experimentando várias roupas e calçados. Esquecerase das dívidas, da falta de dinheiro, do ex-marido e filhos. Ela sentiu-se no paraíso do crediário em liquidação. Quatro horas à frente, saindo da loja, dispensou o outro convite de sua colega que estava ávida por desfilar com as novas roupas pelas passarelas noturnas da cidade e se dirigiu diretamente para a casa. Ao chegar, encaminhou-se para o quarto, dando início à sessão de experimentação. Ali só existia ela, suas roupas, seus calçados, seus acessórios. Ninguém para contrariá-la. Tudo dizia sim a seus anseios e desígnios. As horas não corriam para frente, nem para traz. Estava ela reinando, extasiada, plena e feliz. Longe da realidade, mas absoluta no seu mundo atemporal.

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A CELEBRAÇÃO O dia 15 de novembro, tão aguardado por Bonfim, acabara de iniciar-se. O patriarca acordou cedo, juntamente com os demais membros da família, objetivavam organizar todos os preparativos para receber o mais novo membro do grupo. Compraram balões, festins, fitas, balas e doces variados; tinham em mente convidar o maior número de amigos possível, principalmente os mais antigos que há tempo não viam, para celebrar com eles a graça alcançada. Um verdadeiro presente de Deus. Contudo, já se aproximava do meio dia e eles não tinham convidado ninguém ainda, por isso Bonfim decide ligar para um antigo amigo: - Alô Douglas! Estou ligando, depois de tanto tempo, para te convidar para uma festa em minha casa hoje, às 18 horas. Comemoraremos a chegada de mais um membro da minha família, o caçulinha. Hoje realizarei meu sonho de adolescência, lembra? O amigo feliz da conta, por ser lembrando, disse: - Tá bom! Aí estarei às 17h30min em ponto. O senhor Bonfim antes de desligar, alegando altíssimo grau de ansiedade, pede ao amigo que ligue para os outros conhecidos seus, convidando-os para a celebração. Em seguida, diz os nomes e pergunta se Douglas ainda mantinha contato com eles. Douglas afirma que sim. Duas horas depois, Douglas liga para todas as pessoas indicadas pelo Bonfim e sugere que levem presentes para o recém-nascido. Em seguida, vai à casa paroquial convidar o padre para abençoar aquela família. O padre, apesar dos infindáveis compromissos clericais comove-se com os apelos do [ 75 ]


fiel e concorda em ir também à celebração no horário marcado. Às 17h30min, Douglas já estava à porta da casa da família Bonfim. Como ele imaginava lá só se encontrava as duas filhas do casal, ansiosas pelo acontecimento. Ele então diz: - O seu pai está muito ocupado, né? Não é para menos. Por essa razão que me dispus a ajudá-lo, convidando amigos e o padre para a celebração. As meninas tão envolvidas com a novidade que nem deu atenção ao que o convidado dizia, afirmaram: - tá bom! Fique a vontade. Ademais, mal fecharam a boca, foram abrir o portão para os outros convidados entrarem, inclusive o padre. Bateram 18 horas, 19 horas e nada dos felizardos chegarem. Com exceção de Douglas que permanecia radiando contentamento pelo amigo, havia muita inquietação entre os convidados. O padre já começava a dar sinais de que logo, logo teria que partir. Chegou uma hora que o silêncio imperou. Ninguém conversava. As pessoas ali, mal se mexiam. Entretanto, o padre, já cansado de meditar acerca das palavras que ungiria aquela família das bênçãos de Deus, interrompe o silêncio: - Estou preocupado, eles marcaram para as 18 horas, mas até agora não aparecerem e nem deram sinal de vida. Será se não aconteceu alguma coisa?! Não é melhor ligar para eles?! As meninas, de imediato, acalmaram os ânimos do padre, dizendo: - Não se preocupem essas coisas são demoradas; é comum se passar um tempo apenas contemplando, para só depois levarem para [ 76 ]


casa. Em seguida, informaram que eles ligaram confirmando que estavam chegando. Após a declaração das meninas as conversas paralelas iniciaram. Uns diziam: - Faz tempo que não vinha aqui. Outros exclamavam: - Nossa, deve ser muito arriscado ter filhos depois dos quarenta. Muita cosia pode dar errado! Eles são vencedores. O padre que antes estava nervoso com a demora recobra a paciência cristã, voltando a meditar sobre as palavras que usaria para abençoar o recémnascido. Por conseguinte, quando bateram 20 horas o casal adentra o quintal, repletos de alegria, dentro de um carro novíssimo. Salvo as meninas, todos ficaram aflitos quando viram o casal saindo de dentro de um carro vermelho com faixas verdes e amarelas, sem nenhum acompanhante. O padre foi logo exclamando: adoeceu?! Douglas também indagou: o que ocorreu, problemas nos pulmões?! Um dos amigos asseverou: Lamentável! Mas, no final dará tudo certo!. O Bonfim e sua família não entendendo nada do que acabaram de ouvir aproximaram-se do carro e o abraçaram gritando a uma só voz: - Viva ao mais novo membro da família! Viva! Viva! Viva!! Ê, ê, ê.....

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A MÁQUINA DO TEMPO Ele tirou a roupa e se dirigiu ao banheiro. Ligou o chuveiro. Contemplou a água que caia, tocou nela e entrou. Ficou ali por alguns minutos, sentindo a água bater em sua cabeça e escorrer pelo seu corpo. Relembrou o sabor da vida, imaginando como a noite daquele dia seria animada. Regozijou-se por ainda desfrutá-la. Essa sensação de vida, porém, foi cortada pela lembrança da sentença médica: “muda ou morre”. Por essa razão, desligou o chuveiro. Foi ao espelho e o encarou. Vislumbrou sua cabeça calva com seus poucos cabelos brancos. Olhou para sua face enrugada e escorrida. Então, na esperança de se animar, buscou com os olhos outra parte de seu corpo - em vão - pois apenas enxergou sua barriga enorme, pesada e dura. Contudo, ainda esboçou um riso ao fantasiar a expressão de ironia do tempo. Pensado isso, quis urgentemente esquecer-se da imagem no espelho e, sobretudo recobrar a altivez. Consequentemente, saiu do banheiro, a passos largos e foi ao guarda-roupa, escolheu a sua melhor roupa, vestiu-se. Dirigiu-se a cozinha, colocou uma dose de uísque no copo. Depois, pegou uma cartela de comprimidos azuis que havia posto no bolso. Sacou o último comprimido da cartela, o jogou na boca e, em ato contínuo, o uísque. Assim, após tê-los engolido de uma só vez, convenceu-se que a virilidade voltaria a lhe sorrir, uma vez mais. Dessa maneira, continuou com o seu ritual recorrente: foi à sala, sentou-se em sua poltrona. Fumou alguns cigarros e aguardou a “santa ceia”, na certeza de reviver o seu apetite voraz e em seguida saciá-lo. [ 78 ]


Por conseguinte, quando o relógio apontou 22 horas, o homem saltou da poltrona, apagou as luzes, fechou a porta, entrou em sua camionete e galopou em seus 190 cavalos rumo às luzes do firmamento. Dez minutos depois, ele chegou à outra casa. Abriu a porta e passou pela sala apressado. Ao chegar ao quarto, avistou o que tanto desejava: uma jovem mulher, seminua, estendida sobre a cama. Ela ao vêlo perguntou: Trouxe? Ele sem perder tempo, acenou afirmativamente com a cabeça. Então, o enigma do firmamento foi desvelado em sua frente. Todavia, mesmo estando preparado para aquele momento, sentiu-se trêmulo e com leves formigamentos em sua mão esquerda, no entanto, tais sensações foram rapidamente sufocadas e esquecidas, graças ao som das batidas de seu coração e, principalmente, pela força de sua vontade inquebrantável. Desse modo, o homem não contou conversa. Foi ao encontro da mulher e rompeu, a passos largos, em direção à sua razão existencial. Enquanto rompia, em meio à tamanha satisfação, sentiu que seu coração estava mais acelerado do que nunca. Devido isso, pensou, vangloriosamente, que se as batidas não fossem tão fortes, seu coração seria igual ao de uma criança, batendo 100, 110, 120 vezes por minuto, ou mais. Doravante, encheu-se da convicção de que seu corpo começava a sentir a força da própria providência divina, energizando-o e rejuvenescendoo. Entretanto, contrariando suas expectativas, o coração começou dar sinais de que não suportaria o toque iluminado da divina providência. As batidas, ora ficavam aceleradas, ora lentas e doloridas. O [ 79 ]


homem já inspirava com força, como se houvesse pouco oxigênio no ar. Desse modo, pouco depois de ele pensar: agora não! O coração deixou de bater, jazendo no silêncio. Consequentemente, seu opulento corpo desabou sobre a frágil moça e, igualmente ao seu coração, ficou em silêncio, inerte, sem luzes, sem contentamento, morto na escuridão, entre seus desejos e o firmamento.

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UM DIA DE DOMINGO EM REDENÇÃO Era um dia de domingo, por volta das 17h, no semáforo da Thompson Filho com a Avenida Brasil. O sinal estava fechado, por isso havia vários carros parados e algumas motocicletas também. Assim, do lado direito da fileira dos carros, criou-se espontaneamente uma espécie de ciclovia, por meio da qual alguns motociclistas passavam em direção à Avenida Brasil. Em meio a esses motociclistas, havia uma senhora de vestido longo, cabelos compridos e idade avançada pedalando sua bicicleta em direção ao semáforo e a lugares alhures. Ela se dirigia à frente lenta e serenamente. O barulho dos carros e motos não a incomodava, parecia que estava subindo, sozinha e de bicicleta, as escadas que levam ao céu. Antes disso, em algum lugar da cidade, um homem inquieto e levemente aborrecido, provavelmente por não encontrar prazer em casa e nem na televisão, pega o capacete, o coloca no cotovelo, vai até a motocicleta, liga, acelera e sai em direção ao centro de Redenção, a toda velocidade. Ele, ao chegar à Avenida Brasil, aparentou ser outro homem, estava alegre e satisfeito, então passou a dar voltas contínuas pela Avenida, juntamente com dezenas de outras pessoas em motocicletas e carros. Mesmo não as conhecendo, ele se sentia íntimo, sentia-se pertencente àquele grupo, que assim como ele, passava várias horas do dia de domingo dando voltas por aquela Avenida. Talvez por isso, na volta de número sete, ele quis “radicalizar” em sua motocicleta CG 125, passando pelos semáforos em sinal vermelho, a toda velocidade. Passou por um, por dois e no terceiro avistou em sua frente uma senhora [ 81 ]


de vestido longo e cabelos compridos. Ela parecia não entender o perigo de cruzar a Avenida Brasil, em pleno domingo, lentamente e de bicicleta, quando o sinal acabara de ficar verde para ela. Não deu outra, o homem a acertou em cheio. Bicicleta, homem, mulher, todos foram arremessados para lugares diversos, devido ao impacto. Nesse momento, antes dos envolvidos chegarem ao chão, como num passe de mágica, o público havia se aglomerado e já discutia sobre a imprudência do motociclista, mas também daquela senhora desavisada. O homem quando recobrou sua “consciência”, entendera o ocorrido, então se levantou, foi até sua motocicleta, levantou-a, ligou-a, acelerou-a e partiu dali. No entanto, em outra parte da Avenida, a senhora continuava estatelada no chão, praticamente inerte, sem dar um gemido. Em seguida, chegou a ambulância e a levou dali. Sua bicicleta e demais pertences desapareceram como em outro “passe de mágica”, porém, isso não tinha mais nenhuma importância para aquela senhora, pois ela continuava a subir as escadas que levam ao céu, só que agora, a toda velocidade. Em seguida, o inusitado se inusitou, visto que minutos depois da ambulância ter saído dali, tudo voltou ao normal: pessoas diversas correndo, caminhando, brincando, discutindo sobre programas de televisão e coisas de internet; motociclistas sem capacetes, motoristas sem cinto de segurança circulando incessantemente pela Avenida, passando pelos semáforos em sinal vermelho. Afinal, foi só mais um dia de trânsito em Redenção.

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AMOR À LA CARTE I- ALVORADA Quando o acidente ocorreu Mariana estava fazendo compras em Goiás para abastecer sua loja, mas ao saber das condições de seu filho único, largou tudo e retornou a Redenção, a tempo de ser a primeira pessoa a visitá-lo, após a cirurgia. Ao avistá-lo engoliu o choro e lhe deu um forte abraço. - Meu filho amado! Não faça isso de novo! Nunca mais o deixarei andar de moto por essa cidade maluca! Quero saber quem foi o irresponsável que fez isso. Ele pagará caro. Pedro, apesar do amparo materno, permaneceu frio e desolado. Não respondeu aos questionamentos da mãe, mas pediu que o levasse para casa. Mariana de imediato procurou o médico e exigiu que seu filho recebesse alta. Na residência, Pedro insistiu com a mãe que o levasse para seu quarto no andar de cima. Mariana tentou persuadi-lo a dormir no quarto de hóspede durante o período de convalescência, alegando que seria perigoso subir as escadas, mas ele continuou firme com seus desígnios, forçando-a a procurar alguém que o levasse nos braços. Alcançado o intento e já sentado em sua antiga poltrona, ele, pela primeira vez, reparou detidamente a bagunça que era a sua caverna: livros de filosofia amontoados pelos cantos; roupas sujas sobre a cama; restos de alimentos apodrecidos sobre a escrivaninha e teias de aranha envelhecidas decorando o teto. Esses elementos reunidos davam ao ambiente um aspecto de lugar inabitável. [ 83 ]


O panorama usual, ao contrário de antes, lhe suscitou lembranças diversas. Recordou que na infância e parte da adolescência, vivia rodeado de amigos; frequentava assiduamente a igreja, festejos e às vezes viajava para atividades missionárias. Relembrou ainda que naquela época não tinha certeza se queria tornar-se um padre ou um advogado, mas sabia que enquanto vivesse, indubitavelmente, defenderia as causas dos oprimidos. Na divagação ao passado, chegou às memórias de seus 16 anos, quando suas indagações de menino lhe transformaram em outro homem, deixando a igreja, afastando-se dos amigos e enclausurando-se com seus livros de filosofia. Época em que saía de seu quarto apenas para alimentar-se, reclamar com os correios pela demora da chegada de livros novos e também para ouvir os clamores da mãe, por sua ausência. A partir desse ponto, aprofundou sua retrospectiva existencial, buscando as causas que o levaram a ser o homem que era. Assim, após horas refletindo, acusou Freud por sua desilusão com a humanidade; culpou Schopenhauer por se apaixonar pelo niilismo e, principalmente, por ter se enveredado pela filosofia de encanto e desencanto de Nietzsche, atribuindo às leituras assíduas de Zaratustra a sua crença na morte de Deus, bem como na absoluta certeza de que era um palhaço vivendo na corda bamba, servindo apenas de atração para outros igualmente palhaços. Concluiu, enfim, que decorrido cinco anos de clausura na companhia de seus livros, encontravase inteiramente entediado com a vida e ansioso pela morte breve e rápida, porém não queria ser tido como [ 84 ]


um covarde que foi ao mundo e diante do primeiro obstáculo quis voltar a todo custo. Em seguida, sorrateiramente, emergiu na sua consciência fleches do acidente. Lembrou-se de tudo, do carro avançando sua preferência, de não frear sua motocicleta quando podia e, sobretudo da vontade incontrolável de sair da vida o mais breve possível. Imediatamente, ficou perplexo com sua covardia momentânea e se regozijou de ter sido, por sorte ou pelas mãos de Deus, sacado da motocicleta, enquanto ela era esmagada e empurrada pelo carro para outra direção. Depois de horas refletindo toda a sua vida, mas principalmente os últimos acontecimentos, Pedro decidiu mudar. A partir dali evitaria reflexões acerca de sua finitude, não mais encararia sua vida como algo sem propósito existencial e extirparia de si sentimentos de auto piedade. Ademais decidiu que enquanto não chegasse a hora natural de abraçar a morte, iria estudar para o vestibular, procurar emprego, fazer alguns amigos e ter uma existência sociável. Começaria a mudança naquele dia, pelo seu habitat. Desse modo, chamou a empregada e pediu que ela desse um jeito no seu quarto, autorizando-a a limpá-lo todos os dias. Assim, transparecendo uma satisfação incomum, pegou sua muleta e saiu em direção à varanda. Sentou-se na cadeira e lá ficou em silêncio contemplando o verde azulado das serras ao sul da cidade onde nascera e vivera até aqueles dias. Sentiu-se maravilhado com a paisagem, esboçando um riso de infância ao se imaginar subindo ao cume delas, num futuro próximo.

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II- REENCONTRO Passados 60 dias, Pedro cumprira sua promessa de mudança. Detinha-se por algum tempo na companhia de sua mãe; aproximara-se de amigos antigos, fizera outros e subira duas vezes a serra que admirou por toda infância da varanda de sua casa. Pedro estava estudando conhecimentos úteis ao vestibular e propedêutico aos seus planos profissionais. Objetivava dentro de oito anos formarse em direito e ocupar um cargo proeminente no funcionalismo público. Preferencialmente, um que lhe desse férias duas vezes ao ano e mais recesso, visto que pretendia viajar pelo mundo frequentemente, bem como ter estabilidade financeira sem depender da renda de sua mãe. Mariana estava satisfeita com a versão atenciosa do filho. Antes, não imaginava que ele um dia a ouviria, faria piadas dela e, sobretudo a aconselharia acerca de sua vida amorosa. Ela sentiase tão agradecida a Deus pelo milagre alcançado que se esquecera de procurar o sujeito que quase o matou atropelado. Aos olhos de Mariana, seu filho havia se recolocado no mundo. No que pese Pedro ter mudado sua atitude frente ao mundo e a si mesmo, diariamente ao levantar tinha que lutar contra o vazio de dentro; o desejo de continuar na cama, no quarto e de lá nunca mais sair; contra a ânsia do nada que o assolava todo o tempo, seja em vigília, seja em sonhos terríveis. Assim, ao anoitecer, quando se isolava na solidão de seu quarto, no mais íntimo de seu ser, maldizia-se por ter que sair, conversar com os outros, dar atenção a sua mãe e repetir sua rotina de estudos úteis para o mundo. [ 86 ]


Naqueles tempos, comumente, sua mente transformava-se num campo de guerra de sentimentos, onde era seu único algoz. Desse modo, quando o cérebro dizia chega de estudar, ele o obrigava a continuar; a cada vez que se sentava na cômoda cadeira do niilismo, de pronto, levantava-se, a cada vez que parava diante da fuligem do pessimismo, obrigava-se a dar passadas adiante, adiante e adiante até vislumbrar o céu da sensibilidade. O acidente lhe decepcionou de tal maneira que Pedro se convenceu a viver sua existência a todo custo, porém sabia que sonhar, para ele era impossível devido à chaga de Schopenhauer, por isso, estabeleceu metas a serem cumpridas por toda a vida. Por conseguinte, procurava-se manter firme e seguro do caminho a ser trilhado por ele enquanto a morte não lhe sorrisse. Transcorrido 10 meses, a rotina de atividades já era feita com espontaneidade, ao ponto de desejar repeti-la no dia seguinte. Encontrava, inclusive, alguma satisfação durante sua jornada de estudos úteis a sociedade, ou ainda durante seus diálogos com sua mãe, amigos e pessoas desconhecidas. III- DIÁLOGO As 18h, como de costume, Pedro estava na varanda de sua casa contemplando o por do sol sobre as serras. Sua mãe sabedora disso foi lá, ansiosa para ter uma conversa preocupante acerca do que as pessoas, insinuavam sobre ele. - Pedro, lembro-me que quando você era católico, há uns cinco anos, essa casa vivia cheia de mulheres a sua procura. Aliás, temia de ser avó antes [ 87 ]


do tempo. Contudo, do nada, você se trancou do mundo, vivendo apenas para ler, comer e dormir; depois veio o acidente te libertando do quarto, onde passou a caminhar, fazer aventuras e conviver mais com seus amigos, mas depois disso, em nenhum momento te vi namorando mais. Mal recordo a fisionomia da sua última namorada. As pessoas estão falando que você é gay. Você é? - Mãe, isso não me surpreende, mas me diga sua opinião. Você acredita que sou?- disse Pedro visivelmente decepcionado com a dúvida da mãe. - Pedro, eu não sei o que pensar. Você anda muito estranho nos últimos anos e todo mundo vem dizendo que você é gay. Estou muito preocupada com isso. Como ficará nossa descendência, afinal você é meu filho único. – Disse Mariana preocupada com o nome da família na boca do povo. - Mãe, em primeiro lugar, por mais que eu goste da senhora e te respeite, a vida é minha, em segundo lugar, a humanidade permanecerá sua evolução caso eu não possa suscitar uma descendência. Contudo, te asseguro que até hoje nunca tive interesse sexual em outro homem e sinceramente, acredito que nunca terei. Agora em relação a não ter namorada deve-se ao fato de eu não encontrar alguém que me interesse. - Filho, não queria te ofender, mas fico muito feliz em saber disso. Mas, vem cá, como assim, não encontrou ninguém que te interesse? Há tantas mulheres bonitas em Redenção, eu mesmo conheço várias, se quiser, posso te apresentá-las. - Você não me ofendeu, aliás, porque me ofenderia? Não vejo nada de mais em ter orientação sexual x ou y. Todos têm direito de viver de acordo com suas convicções, desde que isso não inviabilize [ 88 ]


as convicções dos outros. Em relação ao meu interesse, estou cansado de namorar pessoas que não tenho afinidade. Quero alguém que eu consiga travar um diálogo saudável, que possa me entender e eu, do mesmo modo entendê-la e, principalmente, sentir interesse no que ela tem para me oferecer no sentido cognitivo, filosófico. - Pedro, tem horas que não entendo muito bem o que você diz e fico sem capacidade para aceitar sua visão de mundo, mas em todo caso não quero que meu filho seja difamado por todos. Dê um jeito de arranjar uma mulher. - Minha amada mãe, as pessoas dizem o que gostam segundo suas crenças e visões de mundo. Falar sobre os outros é uma forma de tirar o foco de si mesmos, como também uma maneira de ser especial, de olhar de cima as ditas inconsistências alheias. Veja pelo lado bom, pelo menos não me chamaram de promíscuo, insensato, enfim um doidivanas. Em outras palavras, não deixe que o sentimento das pessoas sobre mim, sobre você ou sobre o mundo ofusque sua visão boa das coisas e obstaculize seu amor pela vida e pelas pessoas. Pedro quando encerrou a fala, levantou-se da cadeira e dirigiu-se para o parapeito da varanda, contemplando serenamente os últimos raios do sol que se escondia por detrás das serras. Naquela tarde Pedro ainda assim manteve seu contentamento, não apenas pelo por do sol, mas também por saber que suas metas estavam sendo atingidas uma a uma: havia estudado muito, passado no vestibular e logo, logo seria capaz de se sustentar financeiramente. Mariana, o abraçou e partiu dali, mais desapontada do que entrara, buscando forças para [ 89 ]


continuar amando-o como um filho. Naquela tarde, ela se encontrava alheia de suas obrigações maternais, procurando aqui e ali, motivação para continuar vivenciando os sabores e dissabores da vida. Por esse tempo, ao toque da menor brisa, ela mergulhava no mundo mágico proporcionado pelos remédios de depressão. IV- CONQUISTA Quando Janaína passou no vestibular, sua mãe, Dona Maria comemorou como se ela própria tivesse passado. Sentiu-se vitoriosa. Gritou, cantarolou, sorriu. Correu pelas ruas a divulgar as boas novas aos conhecidos, amigos e familiares. Sua filha seria a primeira mulher da família a cursar uma faculdade, faria Direito. Lembrou que seu pai nunca a deixou estudar, alegando que estudo era para homens. Desejou que ele ainda estivesse vivo, para esfregar a conquista da filha em sua cara. No instante seguinte, dona Maria sacudiu a poeira do ressentimento e tratou de encomendar algumas faixas comemorativas. Divulgaria a conquista pela cidade de Barra do Corda. Todos ali que soubessem ler saberiam que sua filha havia passado no vestibular. Se de um lado Dona Maria divulgava sua satisfação pela cidade, do outro, Janaína encontravase trancada no quarto, recolhida sob a cama, temendo por seu futuro e mal dizendo a própria sorte. Custava acreditar que foi obrigada a concorrer a uma bolsa pelo pró - uni longe de sua cidade natal e em breve partiria para outro Estado. Pensou em desistir, mas sabia que a mãe não permitiria. [ 90 ]


Acreditou que se o seu pai estivesse vivo, ele intercederia por ela e nunca sairia de Barra do Corda. Constituiria família, teria filhos, netos e bisnetos. Teria uma vida longa, tranquila e feliz sem nunca ter saído de sua comunidade tal qual ao pai. Lamentou por ter uma mãe tão egoísta e materialista que só pensava em seu próprio bem estar, fazendo da vontade de suas filhas apenas uma extensão da sua. Sentiu-se sozinha como nunca antes, nem a memória dos dizeres de seu pai evitou as lágrimas. Pensou em morrer, em fugir, em se casar com o primeiro desmiolado que visse na rua, mas depois de alguns minutos, lembrou-se do sonho de infância de ser advogada, decidindo-se assim cursar a faculdade distante dali e não voltar a ver a mãe tão cedo. Com isso, levantou-se da cama, enxugou as lágrimas e foi a estante apanhou o livro que seu pai havia lhe dado quando ainda era uma criança, pegou suas roupas e pronto. Estava preparada para ir até a Lua se preciso fosse. V- DESPEDIDA Era crepúsculo de uma sexta-feira. A família estava reunida na rodoviária de Barra do Corda, no Maranhão. Terezinha discursava espalhafatosamente para tios, avós, primos e conhecidos sobre a satisfação de ser mãe de uma doutora, a primeira da família Ananias. Mercedes, a filha caçula, não escondia seu contentamento com a conquista de Janaína, principalmente porque a partir daquele dia teria um quarto só para ela e não mais ouviria o “faz silêncio” de sua irmã. [ 91 ]


Próximo dali, suando frio e com o coração acelerado, sentada num banco de concreto, com olhar fugidio, encontrava-se a pequena e tristonha Janaína. Estava apavorada com a viagem. Nunca saíra de Barra do Corda, agora teria que morar sozinha em um lugar distante e má afamado. Temia sua sina de doravante tanto quanto temia a autoridade da mãe. Quando o ônibus estacionou, todos pararam suas conversas e foram abraçar a futura advogada. Terezinha foi a última a despedir-se da filha. Ao fazer, entregou-lhe duzentos reais e a advertiu: - Não se esqueça de onde vem esse dinheiro e o quanto é difícil consegui-lo. Janaína, enchendo os olhos de lágrimas, olhou fixamente para a mãe, abraçou-a e entrou no ônibus sem balbuciar uma palavra sequer. A mãe imaginou que a filha estava emocionada com a partida e regozijou-se. No ônibus, devidamente acomodada na poltrona, Janaina sacou de sua mochila o livro Pequeno Príncipe dado por seu pai ainda em sua infância, abraçou-o forte e então abriu as portas dos olhos, cedendo passagem às lágrimas. Depois de algumas horas, já percorrendo o Estado do Tocantins, dentro do silêncio noturno do ônibus divagou pelo carinho do pai em sua infância, lembrou-se da segurança que lhe transmitia, ouviu sua voz suave e roca lendo e relendo o Pequeno Príncipe, afirmando que igualmente a ele em relação a sua flor, era eternamente responsável por ela, pois havia sido cativado por seu amor. O sono pesou e Janaína adentrou no reino dos sonhos. Foi remetida para o futuro, onde estava formada em direito e prestes a se casar. Seu pai estava vivo e alegre, conduzindo-a ao altar. Seu futuro [ 92 ]


marido era um Príncipe de olhos azuis, cabelos loiros, sábio e muito sensível. Ali, os melhores anos de sua vida estavam por vir, na companhia do marido e sob o olhar vigilante do pai. Contudo, antes que o padre os declarasse marido e mulher, Janaina foi acordada pelo cobrador do ônibus, perguntando para onde iria. Assustada, respondeu que iria para Redenção no Sul do Pará. Dessa feita, foi informada que deveria descer ali, aguardar por quatro horas e pegar outro ônibus para chegar ao seu destino. Fora do ônibus, mas ainda sonolenta, percebe que era passada da meia noite e que estava na Rodoviária da Cidade de Guaraí no Tocantins. Era um ambiente seco, sujo, sombrio e superficial. As pessoas que se encontravam ali eram indiferentes umas com as outras, pareciam desprovidas de humanidade. Imaginou que se lhe abatesse algum infortúnio sofreria até a morte, sem ninguém por ela. Depois dessa constatação, entristeceu-se ainda mais, sentindo-se insignificante aos olhos do mundo, sem vínculo efetivo algum com as pessoas que a conheciam, ligada apenas ao fio duvidoso e tênue da própria sorte. VI- CHEGADA Às 03h do seu primeiro domingo fora de Barra do Corda, chegou à rodoviária de Guaraí o ônibus com itinerário Goiânia Redenção. Ao abrir suas portas descera uma multidão que imediatamente afogou o som da pequena televisão que permanecia ligada àquelas horas. Eram crianças chorando, conhecidos dialogando, jovens ouvindo músicas diversas nos seus celulares de última geração. [ 93 ]


Janaína estava deitada sobre o banco da rodoviária, num lugar entre o sonho e a atalaia, entre a obrigação e a irresponsabilidade, entre o medo e o cansaço, num lugar isolado e entregue aos seus demônios interiores, onde os sons e o dióxido de carbono não conseguiam despertá-la para a nova realidade que se abria. Então, outra vez, foi interrompida pelo bilheteiro, informando que o seu ônibus acabara de estacionar e que se ela quisesse ir, teria que fazer a viagem em pé no corredor, pois todas as 46 poltronas estavam ocupadas. Janaína, sem ao menos pensar no sofrimento de viajar nessas condições comprou a passagem e ingressou na condução aguardada. O interior do ônibus refletia a sujeira de seu exterior, havia restos de alimentos no piso e suspensos nas poltronas, o banheiro exalava um cheiro fétido que imediatamente foi notado por Janaína que, ainda sonolenta, tratou-se de segurar na poltrona e respirar pela boca. Todavia, o ônibus mal saiu da cidade e ela já começou a embrulhar o estômago. Assim, além de ter de se manter em pé, ainda precisava segurar na poltrona e bloquear o vômito a cada freada, a cada buraco pela longa estrada até Redenção. Após 60 minutos de vai e vem, de segurar com força e bloquear a passagem do vômito, sentia que aquele momento demorava mais que toda a sua existência em Barra do Corda. Ali, só existia ela, o ônibus e a vertigem. Sendo que após horas de luta, ela rendeu-se ao estômago, ingressando no banheiro e cedendo passagem ao inevitável. Depois alguns de ter colaborado sobremaneira com a intensificação do odor do ambiente, Janaína saiu do banheiro em meio a muitas [ 94 ]


reclamações e se sentou no piso, próximo ao banheiro, vindo a dormir em seguida. Ficou encolhida, sem sonhos, mas com sono contínuo. Ao acordar, dolorida do vômito e do repouso no piso do ônibus, levantou e com dificuldade avistou pela janela o nome REDENÇÃO. - Graças a Deus, disse ela, permanecendo em pé, ansiosa para sair dali. Quando o ônibus estacionou no seu destino, ela foi a primeira a sair. De relance, contemplou o cinza da rodoviária e a apatia das pessoas que por ali passavam ou trabalhavam. - Tranquilize-se Janaína são apenas cinco anos. Foi o que ela disse para si mesmo. - Cinco anos passará rápido, Janaína, além do mais, essa rodoviária suja, fedendo a crack, nem de longe representa essa cidade. Redenção não é um lugar tão ruim assim. Aliás, meu nome é Brenda sua colega de quarto, provavelmente, durante cinco curtos anos. Janaína se assustou por ouvir depois de vinte quatro horas alguém conversando com ela e a chamando pelo nome, mas, alegrou com as ironias contidas em cada palavra dita por sua nova colega. Dali a duas horas, ela estava dormindo profundamente sobre um colchão aconchegante, enquanto que Brenda se divertia em algum balneário nas redondezas da cidade. VII- PRIMEIRA AULA Era meio dia da segunda feira quando Janaína acordou. No primeiro momento, ficou atordoada sem saber ao certo onde estava, mas rapidamente recobrou a lembrança e se resignou com [ 95 ]


sua nova realidade, concomitante sua barriga clamou por alimento. Foi à cozinha e lá estava Brenda preparando o seu tradicional miojo para o almoço. - Bom dia Janaina! Espero que esteja com fome, pois fiz um banquete de macarrão instantâneo para nós. - Bom dia Brenda! Sim, estou faminta. Obrigada. Amanhã, deixa que eu compro o macarrão e preparo a nossa refeição. - Ok. Olha, sua mãe me disse que vocês também têm pouquíssimos recursos mensais, então prometi para ela que te ensinaria a sobreviver com pouco dinheiro. Para nossa sorte Redenção não é uma cidade cara. - Que bom, pois só tenho duzentos reais para sobreviver o mês inteiro. - Não se desespere, pois em breve você arrumará um namorado por aqui e então gastará menos ou se for esperta não gastará um centavo do seu. - Credo em Cruz - disse Janaína perplexa com a assertiva da colega, não quero ter um namorado nessas condições. Quando eu encontrar alguém será porque o amo e não por questões de economia ou de sobrevivência. - Vixe! Mais uma romântica e tola no mundo. Ok. Esqueça o que eu disse. Aliás, hoje começará nossas aulas. Você irá, no primeiro dia? - Sim. E em todos os outros. Nunca gostei de faltar à aula, pois a gente nunca sabe o que pode perder, afinal quero ser uma advogada muito bem sucedida. - Romântica, tola e sonhadora. Eis que eu te digo: se você não mudar essa filosofia de vida, irá sofrer muito ao longo desses cinco anos. Olha, eu vou [ 96 ]


logo te avisando, aqui existem vários príncipes encantados, cada um mais safado que o outro. Eu mesma já conheci vários deles. Aliás, praticamente, em toda esquina tem um. Janaína nada disse, mas outra vez, ficou perplexa com a fala da colega, pensando que ouviria muita bobagem ao longo dos cinco anos que passariam sob o mesmo teto. Mais tarde, Janaína após ler algumas páginas surradas de seu livro de cabeceira, para amenizar a tensão do primeiro dia de aula, foi explorar a cidade. Caminhou pela Avenida Brasil, rumo ao centro, sentou-se numa praça frente uma escola e ali ficou por várias horas, vendo o passar de pessoas e o transcurso silencioso da vida. Ela, ao contrário de antes, estava radiante de felicidade, saboreando o contato com o desconhecido. Dado 18 horas, Janaína retornou a sua residência, pegou sua mochila e partiu para a primeira aula como estudante universitária. Daí a poucos instantes, ela estava dentro da sala prestando atenção em tudo e todos. Pouquíssimos alunos foram naquele dia, mas, o professor fez questão de conhecer os presentes, perguntando nome, origem, expectativas de vida e principalmente o que o fizeram ir ao primeiro dia de aula. Os alunos diziam que estavam satisfeitos por terem passado no vestibular e não viam a hora de estudar e ingressar em cargos públicos. A maioria sonhava em ser juiz, promotor e delegado federal. Quando foi a vez de Janaína falar começou dizendo que estava ali no primeiro dia porque não gostava de faltar à aula e que no futuro seria uma advogada muito bem sucedida. O professor que também era [ 97 ]


advogado ficou satisfeito de pelo menos um aluno seu querer seguir sua carreira. Nisso, Pedro chegou apressado. Mal sentou foi obrigado a se apresentar. Disse que não gostava de faltar aula e que desejava uma vida boa e em tom de ironia, disse que pretendia ser Procurador da República. Nesse ponto todos riram. Do seu lado, Janaína ao ouvir Pedro sentiu uma estranha vontade de conhecê-lo. Assim, depois que o professor os dispensou, já fora da sala de aula, Janaína o acompanhou com os olhos ao ponto de Pedro perceber, ir até ela e cumprimentá-la. - Prazer, como falei anteriormente, meu nome é Pedro. Como se chama? Janaína sentindo um misto de vergonha e atordoamento, falou seu nome e partiu da presença dele confusa em meio a um amálgama de sentimentos recém-descobertos. Ao chegar a kit net foi direto para a cama. Sem sono, passou a rever os últimos acontecimentos e forçar a refletir sobre o curso, sua importância e seus sonhos de advogar, mas para onde ia sua mente, ela se deparava com a fisionomia viva de Pedro. VIII- GIRA MUNDO No dia seguinte, Janaína levantou cedo e disposta como nunca, limpou a casa, fez café, comprou pães e começou a estudar um livro de direito constitucional deixado sobre a mesa por Brenda. Chegada às dez da manhã, Brenda se levantou e tomou um susto ao ver pela primeira vez a kit net limpa e com café e pães à mesa. - Bom dia, colega! Vejo que você acordou animada, hein? Não imaginava que as maranhenses [ 98 ]


fossem tão dedicas assim. Você está quase conseguindo fazer com que eu lamente ter nascido goiana. – Brenda riu com satisfação ao dizer isso. - Bom dia, eu comecei a ler sem sua permissão o livro do José Afonso da Silva. Estou decidida a dominar vários ramos do direito até o final desse curso. - Fique a vontade Janaína, eu o ganhei de um conhecido, mas francamente ainda nem o abri. Afinal, diferente de você, minha meta é de apenas terminar esse curso em tempo hábil, sem que para isso eu deixe minha juventude escapar pelas entrelinhas do ordenamento jurídico. – disse ela rindo de si. Janaína riu dos comentários da colega, em seguida voltou a ler e mais tarde, para espairecer foi caminhar no calçadão da Avenida Brasil. Com alguns minutos caminhando, para sua surpresa, avistou Pedro, que passava correndo por ela. Sentiu uma pontada no coração. Imediatamente olhou as horas e decidiu que caminharia por ali, todos os dias, por aquele horário. Às 18h45min, Janaína já estava sentada em uma das primeiras cadeiras da sala de aula, ansiosa para o início das atividades curriculares e, principalmente, para rever seu colega. Nesse dia, Pedro foi o último a entrar. Quando passou por ela, Janaína ficou rubra ao imaginar que talvez ele sentasse ao lado, mas ele se sentou no fundo da sala, impossibilitando que ela o visse. No dia seguinte, Janaína passou a se sentar no fundo da sala o mais próxima possível de Pedro. No passo de duas semanas, Janaína havia estabelecido sua rotina, de segunda a sexta acordava cedo; limpava a kit net; fazia café e comprava pães, estudava, ouvia as aventuras de Brenda; voltava a [ 99 ]


estudar; saía para caminhar pela Avenida Brasil, no horário que Pedro corria por lá; voltava e ia para a faculdade. Não foram poucas as vezes que Brenda a convidou para sair para festas e bares da cidade, para servir de companhia para os inúmeros príncipes cafajestes que a amiga insistia em elencar, mas Janaína apenas ria e voltava-se para os estudos e de vez em quando, divagava por sua imaginação apaixonada. IX- O MAL DO SÉCULO Se antes, Mariana gostava de festas, bebidas e muita gente em sua casa, já há algum tempo deixara esses caprichos. Ela tornou-se uma mulher desconfiada, triste e mal humorada. Qualquer coisa que acontecesse era razão para tomar remédio e se esquecer das dores do mundo. Passava ela por um período muito difícil, sua loja vendia pouco e tinha muitas dívidas em atraso sem a mínima possibilidade de quitá-las. Para completar sua vida afetiva era simplesmente nula. Ela estava convencida de que naquela idade e com seu aspecto não atrairia ninguém. Comumente, trancada no quarto, chorava com pena de si, lamentando-se de ter que resolver todos os seus problemas sozinha, sem um ombro confiável para se encostar. Pedro vinha notando que ela estava se comportando de maneira mecânica, agindo como se tudo que fizesse fosse por obrigação moral, sem sentimento algum. Devido a isso, mesmo tendo que trilhar sua própria cruzada existencial, ele buscou aproximação, estando sempre que podia em sua companhia, conversando, brincando e ouvindo-a. [ 100 ]


X- OBSESSÃO No segundo semestre de 2008, Janaína conseguiu um emprego de meio período como estagiária no escritório de advocacia do seu professor de Direito Processual Civil, o que a deixava em uma rotina intensa. Apesar disso, seu interesse por Pedro não diminuiu, pelo contrário, aumentou, tanto que no período de férias de 2007, quando retornou à Barra do Corda, enclausurou-se, dedicando seu tempo somente a reler o Pequeno Príncipe, estudar leis e vasculhar o Orkut de seus colegas na vã esperança de encontrar alguma notícia sobre Pedro. Quando de volta às aulas, alegrou-se sobremaneira ao avistar ainda dentro do ônibus o nome Redenção na entrada da cidade. Nesse tempo, ela, vez por outra, suscitava fantasias de morar ali por toda a sua vida na companhia de Pedro, como também, estava decidida a se aproximar dele, nem que fosse como companheira de estudos e trabalhos acadêmicos. Assim, tão logo regressou às aulas, passou a frequentar os mesmos ambientes que ele: indo a saraus, caminhando por serras e trilhas de bicicleta pelos serrados da região, sempre que tinha certeza da presença dele. Inclusive, ela chegou ao absurdo de se inscrever num torneio de xadrez sem ter a menor ideia do movimento das peças. No que pese ter perdido todas as partidas, regozijou-se por ter jogado contra ele. - Bom dia, Janaína! Parece que hoje não é o seu dia de sorte. Perdeu todas as partidas, aliás, estou surpreso com sua presença por aqui, pois nunca imaginei você jogando xadrez. Sempre a vejo como alguém que estuda direito durante o dia, durante a [ 101 ]


noite, nos finais de semana, feriados e dias santos – disse Pedro rindo à vontade. - Bom dia, Pedro! Pois é! Hoje não é meu dia de sorte, mas sinceramente, só me meti nessa porque ouvi dizer que xadrez é muito bom para a memória e concentração - disse ela, controlando a vergonha. - Não se iluda. Se fosse bom assim, hoje eu teria memória fotográfica e a concentração do Buda. Mas se você quiser saber por si mesma, estou disposto a te ensinar o básico do jogo. - Sim, disse Janaína ainda rindo de Pedro. - Ok. Mas não hoje, pois não duvido nada de você aprender tudo e ainda me dar um xeque mate – disse Pedro ironicamente. Janaína riu como nunca das piadas e idiotices de Pedro ao longo do jogo. Depois do torneio, permaneceram juntos e conversaram sobre diversas coisas como música, política, filosofia, sobre o livro Pequeno Príncipe, cujo qual foi designado por Pedro como o livro de cabeceira das modelos do mundo inteiro - argumentação esta devidamente rebatida por Janaina, afirmando que independente de quem lê é excelente, pois tem uma mensagem de amor e experimentação do mundo única. Quando enfim, Janaína se despediu de Pedro, voltou para sua casa radiante, pois se convenceu de que ele era o seu Pequeno Príncipe, o homem de toda a vida. Na segunda-feira seguinte, contrariando a expectativa de Janaína, tudo continuou como antes, seu relacionamento fora resumido outra vez em apenas “olás”, “boa noites” e acenos de cabeça. Por um instante, ficou desapontada com a frieza de seu colega, mas rapidamente o desapontamento foi [ 102 ]


engolido pelo oceano de sentimentos afirmativos que ela nutria por ele. XI - REPUTAÇÃO DE PEDRO Em dezembro de 2008, na véspera do término do 2º período escolar, Janaína se encontrava muito feliz, uma vez que ficaria todo o período de férias em Redenção, há alguns passos de Pedro. Por isso, encontrava-se nitidamente inquieta, tanto que Brenda percebera a desatenção, perquirindo-a acerca da causa. Desse modo, Janaína pela primeira vez dividiu seus sentimentos sobre Pedro. Relatou pormenorizadamente o que vinha passando ao longo do ano e suas tentativas de sempre estar na companhia dele, bem como sua relutância em sair de Redenção por ocasião do fim do ano. Brenda mal conseguiu conter o riso enquanto Janaína falava, mas tão logo se fez a pausa de uma vírgula, Brenda começou a rir e por mais que tentasse explicar sua falta de sensibilidade, não conseguia conter suas gargalhadas. - Então o primeiro amor de Janaína é o Pedro Pará?! – disse Brenda em tom de sarcasmo e ainda controlando o riso. - Não só o primeiro como também será o único - disse Janaína combatendo o sarcasmo da colega. - Janaína - disse Brenda deixando a ironia de lado - você nem sequer beijou alguém na vida além do seu pai, portanto, ainda é cedo para tanta convicção sobre o assunto. Quer saber?! Você deveria sair comigo para eu te apresentar meus amigos. Há muito homem interessante aqui. Acredite! [ 103 ]


- Você não entende o que é amar, o que é vivenciar o outro, preocupar-se com o bem estar dele ou simplesmente alegrar-se quando, numa fração de segundos, recorda que ele existe em algum lugar próximo do seu coração e que poderá vê-lo, contemplá-lo e observar seus trejeitos, sua fisionomia, ouvir suas convicções. Brenda, para você, homem é apenas prazer sexual e facilidades financeiras, enquanto que para mim, é sintonia, afinidade, companheirismo, crescimento mútuo rumo à perfeição humana. - Madre Tereza de Calcutá! Posso resumir toda a balela que você disse numa só palavra: hipocrisia - continuou Brenda mais sarcástica do que nunca - quando nós nos interessamos pelo outro certamente estamos almejando a realização de uma gama de interesses materiais por meio disso: sexo bom, bem estar, conforto, segurança etc., que diga-se de passagem não conseguirá realizar nenhum desses interesses com Pedro, porque o seu primeiro e único amor de toda a vida é gay – mal concluíra seu raciocínio voltou a sorrir debochadamente. Janaína, imediatamente, tirou a serenidade da face e pediu que a colega explicasse melhor a assertiva. Brenda, satisfeitíssima com resultado obtido, repetiu, contando em detalhes tudo que seus conhecidos diziam dele, como também criando algumas histórias e fatos necessários para dar credibilidade e coerência ao que afirmava. Janaína ouvia a enxurrada de histórias sobre Pedro sem esboçar reação alguma. Não se sabia se ela estava chocada, cética ou desiludida com o mundo e o universo masculino, porém, depois que Brenda secou toda a sua saliva, ela saiu para o quarto. Minutos depois, descartou cada palavra mal dita pela amiga, [ 104 ]


acreditando piamente que existiam dois Pedros, o dela e o que a comunidade criou a partir do dela, por não acreditar que pessoas daquele jeito existissem por ali. Nesse instante, desejou como nunca abraçá-lo, acolhê-lo junto aos seios e acariciar seus cabelos como uma mãe reconfortando sua cria das dores do mundo. No dia seguinte, a partir das 17h, lá estava Janaína caminhando pelo calçadão da Brasil, na esperança de avistá-lo e receber de volta um olhar amistoso daquele que ela conhecia como ninguém. Para sua tristeza, nesse dia, Pedro não fora correr. XII - SUICÍDIO Na noite do dia 16 de dezembro de 2008, Pedro aguardou Mariana assistir sua novela predileta e depois puxou uma conversação sobre a dádiva da vida, o respeito que se deve ter em relação à própria existência e principalmente das suas falhas enquanto filho. - Mãe, saiba que a amo, que sou muito grato por tudo que tem feito por mim e que estou procurando ser um filho tão bom como a senhora é uma mãe. Sou consciente que falta muito, mas já estou fazendo o meu melhor para estreitar nossos laços de maneira que você possa contar comigo para conversar e se desabafar. Além do mais, com o tempo poderei também ajudar financeiramente a senhora, pois estou fazendo direito e daqui a quatro anos, provavelmente, terei uma renda mensal de pelo menos dez mil por mês. Prometo. Talvez a senhora pense que está sozinha no mundo que não tem ninguém por você. Saiba que estou por ti e que estou ciente das dificuldades [ 105 ]


financeiras que vem passando. Atualmente, não posso ajudar dando dinheiro, mas posso controlar nossos gastos, acredito que poderemos reduzir bastante nossas despesas mensais. - Pedro, saiba que também estou orgulhosa por tê-lo como filho. Nos últimos dois anos você mudou muito e vem conseguindo seu lugar no mundo real. Com seu futuro não me preocupo mais. Agora vou dormir, sua mãe anda muito cansada. Mariana se levantou deu um forte abraço nele e foi para o quarto. Pedro quis insistir na conversa, pois ainda tinha tanto a dizer, mas quedou diante do seu olhar vazio e distante. No dia seguinte, já por volta do meio dia, Mariana ainda não havia saído do quarto, Pedro sabedor de que ela comumente gostava de dormir até mais tarde, não quis incomodá-la. Todavia, ao chegar às 14h, ele bateu na porta várias vezes, chamando-a, então, como não obteve resposta, foi de encontro a porta, rebentando-a. Em seguida, notou que Mariana encontrava-se imóvel sobre a cama, tentou acordá-la insistentemente; checou seu pulso, constatando o que sua intuição havia lhe antecipado na noite anterior, sua mãe se desprendera dos vínculos do mundo e abrira mão da vida. No primeiro momento sentiu raiva da covardia dela frente ao mundo, mas em seguida, lamentou-se por não ter sido capaz de ajudála a encontrar sentido existencial na velhice. O velório foi realizado em sua própria casa, Pedro avisou alguns familiares e amigos, comparecendo muito mais gente no velório de Mariana do que o previsto. Uns para serem lembrados, outros para lembrarem e consolarem a Pedro. [ 106 ]


A morte de Mariana, as dívidas deixadas e a solidão de estar sozinho no mundo sem ninguém esperando por ele, ou preocupando-se com seus passos presentes e futuros, deixou Pedro desolado, suspenso no tempo e espaço, perdido nas ideias, entre o fazer e o porquê. XIII - ESTREITANDO LAÇOS Quase um mês após a morte de Mariana, por volta da 17h, Pedro encontrava-se sentado na varanda de sua casa apreciando o infinito sobre as serras, quando ouviu alguém o chamando, ao olhar de cima, avistou Janaína: - Você sumiu do calçadão, então resolvi te fazer uma visita. Posso entrar? – disse ela nervosa. Pedro pediu que esperasse um instante, enquanto descia para recepcioná-la na porta, surpreso e feliz por vê-la. - Oi Janaína, seja bem vinda! Vamos subir para a varanda? Lá a gente senta e conversa mais a vontade, além do mais, mostrarei para você as minhas serras - disse ele rindo de si e ela de pronto consentiu, retribuindo com o seu melhor riso. Ficaram sentados na varanda em silêncio por vários minutos, quando enfim, Janaína rompeu o silêncio dizendo que sentia muito pelo falecimento da mãe dele e que poderia contar com ela se precisasse. Pedro abre mão do silêncio dizendo que lamentava não pela covardia dela frente à vida, mas por ter se omitido como filho. - Não a ajudei em nada. Eu era um desconhecido. Conversamos pouco, brincamos pouco e nos permitimos menos ainda. Sempre houve o obstáculo de ser mãe que manda, ensina e filho que [ 107 ]


obedece e aprende. Acredito que se fôssemos amigos, ela teria ampliado seus horizontes para a grandiosidade do existir diante das miudezas do cotidiano. Infelizmente, ela costumava se preocupar demais com sua imagem perante a sociedade. Dizia que tinha um status a zelar. Janaína o interrompeu para dar sua opinião acerca do suicida ser um covarde. Nesse instante, ela se mostrava com os olhos vibrantes e fixos, coluna ereta e nariz empinado como se estivesse pronta para duelar com Sócrates acerca do que é a verdade universal: - Não vejo o suicídio como um ato de covardia, mas sim como um ato de desapego, no máximo, de desistência da vida. Afinal, se a pessoa se cansou de viver, ela deve ter o direito de atravessar o portão que leva ao vale da morte, na hora que bem entender. Quem somos nós para nomeá-los de covardes? Pedro não pôde conter o riso diante da defesa intransigente dos “réus” suicidas condenados por ele e quis intensificar a discussão para saber até onde pararia os argumentos de sua contraopositora: - Veja bem, eles são sim covardes, pois quando estão diante de um problema físico ou social, ponderam sobre o peso deles e o peso da morte, decidindo-se por esta, por não terem coragem de enfrentar uma dor demorada, visto que a dor do suicídio é rápida e se extingue com a morte. Janaína, diante da argumentação de Pedro, percebeu que não poderia vencer a discussão pelo método “oito ou oitenta”, assim, cedeu em parte para obter êxito na outra: - Ok. Admito que haja suicidas covardes, mas nem todos são assim, alguns apenas se cansam da [ 108 ]


vida, não encontram nada de interessante para fazer aqui e outras por um ato de libertação preferem a morte ao julgo da dominação – ela terminou convencida de que o poria numa situação de desconforto. - Entendo que em regra o suicida é covarde, mas também admito que haja casos em que eles não o são, como nos de eutanásia, onde não se tem condições de viver com autonomia, digo por conta própria sem precisar de pessoas os limpando, os alimentando etc. Todavia a regra é a covardia. Mas também pode ser por idiotice extrema, como, por exemplo, da adolescente que deu tiro no próprio peito porque seus pais não queriam que ela namorasse aos treze anos de idade. Acredito que ela fez isso como forma de punir os pais. Vê se pode?! Depois disso, eles não falaram uma só palavra, o olhar de Pedro voltou-se para a serra e Janaína ficou ali arrependida da discussão sobre suicídio. Pensou em ir embora, mas não sabia o que falar, se pedia desculpas, se se despedia simplesmente e solicitava para abrir o portão, ou ainda se saía de fininho e pulava o muro para nunca mais olhar para ele. Enquanto, pensava isso, o tempo foi passando, foi passando, para no fim, Pedro romper o silêncio mais uma vez: - Janaína você é muito interessante. Sempre que tenho oportunidade de conversar contigo, sou surpreendido com suas ideais e posicionamentos, aliás, muito obrigado por sua visita, apesar de eu gostar da solidão, às vezes sinto muita falta de uma companhia agradável como a sua. Espero que possamos nos encontrar mais vezes, caminhar juntos, de repente até mesmo subir minhas serras - disse ele esperançoso de que ela passasse mais tempo com ele. [ 109 ]


Janaína sentiu-se muito feliz, mas disse apenas obrigado e pediu para abrir o portão, sendo que ao se despedir deu-lhe um forte abraço. Pedro retribuiu e em seguida, ela partiu emocionada das vivências adquiridas por meio da sua expedição. Brenda quando viu a alegria estampada na face da amiga adentrando a kit net, após as 20h, não segurou suas convicções e as ressoou: - Há aqueles que vivem de enganar os tolos, como também há tolos que apenas vivem a se enganarem. Janaína riu da máxima elaborada de improviso pela amiga, parabenizando-a pela criatividade e reflexão, atribuindo tal façanha ao mesmo fenômeno que a fez concluir com êxito o primeiro ano de faculdade, indo pouquíssimas vezes à sala de aula. XIV – ENVOLVIMENTO No dia seguinte, Janaína acordou cedo, mas dessa vez, ficou na cama pensando nos acontecimentos do dia anterior, nas emoções, nas falas, nos excessos seus e principalmente, nas convicções flexíveis de Pedro - ela regozijou-se ao perceber que alguém podia ser convincente, brando e adorável ao mesmo tempo. Não tardou para passar por sua espinha a seta gélida do medo de ser vista como uma desconhecida por ele no próximo encontro. Todavia, instante seguinte, lá estava ela dando gargalhada do termo “encontro”, como se eles estivessem namorando ou coisa parecida. Do outro quarto veio o som agudo: - tem gente que gosta de se enganar mesmo!!! Nisso [ 110 ]


Janaína despertou das divagações, saltou da cama e iniciou suas tarefas diárias. Pela tarde, estudou, caminhou, encheu-se de perfume e partiu para a aula, sendo a primeira a chegar. Enquanto ela se acomodava na carteira, Pedro chegou, sentando-se próximo dela e puxa assunto como se fosse seu amigo de longa data. Janaína ficou mais alegre do que surpresa. Munindo-se da sua melhor voz, passou a interagir com ele como nunca, respondendo indagações, fazendo observações e indagando-o acerca do direito, visto que ela possuía amplo domínio desse assunto e dificilmente seria surpreendida. Nos dias que se seguiram, cada vez mais eles se aproximavam e gostavam da companhia um do outro. A presença de Pedro era combustível para ela estudar como nunca, tanto para a faculdade como para não ficar perdida nas viagens filosóficas dele, que sempre ocorriam recheadas de ironia e provocações. Destarte, numa tarde, Pedro ao vê-la caminhar, passou ao lado dela até o banco onde comumente ele se sentava após a corrida. Janaína, durante a caminhada, notou que realmente seu acompanhante era alegre, leve, divertido e muito atencioso. Nesse se imaginou no planeta B 612 ao lado do regente do lugar, sem a sua ciumenta flor. Onde ela podia ter toda a atenção dele. Minutos depois, lá estavam sentados, conversando sobre seus livros de cabeceira. Janaína falou novamente sobre o Pequeno Príncipe, porém, mal fechou a boca, Pedro, sorrindo, teceu seus comentários maliciosos: - Respeito seu gosto pueril, mas prefiro ler as obras de Nietzsche. Ele me inspira bastante, [ 111 ]


principalmente com o livro Assim Falou Zaratustra – disse ele encarando-a na expectativa de ouvi-la revidar, pois pelo pouco tempo que passou em sua companhia já entendera que ela não deixava nenhum tipo de agressão passar em branco. - Engraçado, para um homem que gosta da vida ao ponto de acreditar que os suicidas são covardes, você está se saindo um grande apreciador do niilismo – Pedro gargalhou com a réplica instantânea dela, contra-argumentando imediatamente. - Não entenda mal Janaína, no que pese Nietzsche gostar da solidão, não acreditar em deuses e gostar como você de uma boa discussão, ele não era niilista, pelo contrário ele adorava a vida, ao ponto de criar a lei do eterno retorno. Caso você não saiba esta lei incentiva a pessoa a fazer somente aquilo que a motiva a romper na vida, a desejar viver do mesmo modo uma vez mais. Há essas horas Janaína estava possessa, pois detestava se passar por tola. Então, sem pensar duas vezes, saltou de pé, argumentando que estava atrasada para os estudos e partiu, contrariada. Nesse dia, ela não foi à faculdade, pedindo emprestado o notebook de Brenda, onde passou a navegar por vários sítios na internet, lendo e relendo artigos sobre niilismo e Nietzsche, certa de que no próximo embate, deixaria seu interlocutor sem palavras também. Do outro lado, Pedro ficou satisfeitíssimo com o desfecho da conversa, passou todo o trajeto até sua casa rindo da expressão de aborrecimento de Janaína. Foi a primeira vez que ele a viu ficar calada diante de uma argumentação. Chegando a casa, não contou conversa, tomou banho e partiu apressado para [ 112 ]


a faculdade na certeza de apreciar um pouco mais o semblante lindo de aborrecimento dela. Contudo, não a viu e pela primeira vez sentiu uma vontade incontrolável de estar ao lado dela, de ouvi-la e depois, a depender da situação pedir desculpas, mostrando arrependimento cristão e perene – não que estivesse arrependido de ser o que era, sujeito irônico e irreverente, mas porque estava apaixonado por ela. Dessa forma, antes mesmo que acabasse a aula, saiu como entrara: ávido para vê-la sorrir e embravecer-se com ele. Minutos depois estava ele batendo feito um louco no portão que dava acesso ao kit net de Janaína. O senhor que o atendera não quis dizer onde era a residência de Janaína e o convidou para se retirar, mas ele insistiu em ficar e explicar que tinha que falar com ela urgentemente. Próximo dali, já um tanto quanto entediada com os artigos que lia, Janaína ouviu a discussão e acreditou no impossível, de que Pedro estava àquelas horas lutando contra o vizinho para vê-la – seu coração disparou, suou frio e a adrenalina subiu para sua cabeça na velocidade da luz. E nessa mesma velocidade foi ao encontro dos dois que discutiam, explicando ao vizinho que Pedro podia entrar. Quando se viram, abraçaram-se, ficando por alguns segundos ouvindo as batidas frenéticas de seus corações. Ambos queriam permanecer grudados ao outro, mas sabiam que aquela conduta poderia denunciá-los. Dentro do Kit net, Janaína rompeu o silêncio, argumentando que lá não tinha nenhuma serra para contemplar, por isso era necessário conversar o tempo todo. Pedro riu da piada e se admirou do senso de humor dela, visto que a julgava sem tal atributo. [ 113 ]


- Janaína, você deve estar se perguntando o que me fez vir a sua casa pela primeira vez e principalmente nessa hora – disse Pedro sorrindo e observando se ela também fazia o mesmo. - Sim. Estou curiosíssima para saber sua motivação. – disse ela, retribuindo o riso, mas no fundo estava nervosa, pois acreditava que ele a pediria em namoro. - Pois é! Sempre acompanho seu desempenho na faculdade e também sei de seu esforço diário para aprender direito, por isso estive pensando que a gente poderia estudar junto nos finais de semana. Isso seria uma forma de eu me motivar mais – disse Pedro desconsertado, sem saber ao certo o que o motivara a estar ali. Ela ficou visivelmente desapontada com a proposta, pois acreditava ser outra, mas no fundo sabia que aquilo era um sinal de que ele também sentia interesse nela, então assentiu, que começassem no dia seguinte. Pedro ficou contente com o sim e principalmente com a brevidade. Nos dias que se seguiram, eles ajustaram suas rotinas de modo a encaixar o outro nelas, em seguida passaram a fazer muitas coisas juntos, como ficar sentados na praça pela tarde; subir as serras da região acompanhados dos amigos do Pedro; estudar direito, filosofia e fazer críticas dos textos literários que ele volta e meia ousava fazer despretensiosamente, cujos quais eram alvejados pela crítica ferrenha de Janaína que sempre afirmava categoricamente que ele não levava o menor jeito para a criação literária e que, portanto deveria estudar mais o universo jurídico, para que assim, não passasse fome no futuro. [ 114 ]


Dessa maneira, no fim do ano de 2009, eles já passavam todos os dias da semana juntos, sendo que Pedro vivenciava aqueles dias com toda sua plenitude e leveza, um dia após o outro, sem pedir nada de si, dela ou de Deus. XV - ROMANCE - Janaína, eu nunca te perguntei, mas agora estou curioso, qual sua meta profissional, digo, onde você deseja chegar por meio do bacharelado em direito?- disse Pedro, após duas horas de estudos em sua casa. - Minha meta é ser uma advogada bem sucedida. E você o que pretende com o direito? – disse Janaína curiosa. - Minha ambição é passar num concurso público aqui mesmo em Redenção, cujo qual me dê uma remuneração suficiente para eu não precisar comprar fiado e viver sossegado. A propósito, saiu o edital do concurso do TJDF, o farei como forma de me aquecer para os outros daqui da região e também para conhecer Brasília. Vamos? Janaína não pensou duas vezes em dizer sim, pois não queria ficar nenhum final de semana longe dele. Assim, acertaram tudo e foram para a cozinha preparar café, enquanto descansavam dos estudos. - Janaína, eu nunca experimentei do seu café, acho que você poderia me dar essa honra, não é?disse com um braço sobre os ombros dela e o olhar fixo na sua reação. -Ok, mas quero sua presença ao meu lado, de repente, você conseguirá fazer um bom café. – disse ela sorrindo e o olhando, face a face. [ 115 ]


Ele riu, concordando com o óbvio. Tentaram fazer o café em conjunto, mas a todo tempo, um ficava impedindo ou ensinando o outro como fazer, para no final, esquecerem-se do café, dos estudos e do mundo e se concentrarem no tato, no gosto, no beijo do outro. Naquela noite, ninguém estudou, mas quando os ânimos se elevaram, Janaína sabedora da fraqueza feminina, tratou de se despedir e partir, rapidamente da presença de Pedro. Na rua caminhava ela, sem medo, ora se equilibrando no meio fio, ora rodopiando de braços abertos e em ziguezague, ora rindo e gritando em alegria. Tão logo Janaína saiu à rua, Pedro, preocupado com sua segurança, acompanhou-a de longe por todo o seu percurso. Riu de suas peraltices e regozijou-se ao deduzir que ambos haviam gostado da noite. Daquele momento à frente, os dois mantiveram suas rotinas, seus beijos, abraços, caminhadas, estudos e contatos com a natureza. Viajaram para Brasília, fizeram à prova, Janaína foi excelente, Pedro nada bem. Não durou muito para Janaína nomear Redenção de Planeta B 612 e planejar seu futuro dentro dos limites territoriais daquele Município, mas ainda sendo uma advogada de sucesso. XVI - O ADEUS DE JANAÍNA - Você acredita em amor eterno e à primeira vista? Disse Janaína, sentada num banco da praça na companhia de Pedro, após um ano de namoro. - Acredito que o amor é eterno, aliás, contrariando o poeta, dura para sempre, pois quando [ 116 ]


você ama, mesmo distante de quem se ama, torcerá por ele e se alegrará de tê-lo conhecido, ou de saber de sua existência em outro lugar. O amor para mim é o auge da existência. Digo, quando você olha para o mundo e se alegra em fazer parte, quando você olha para o outro desejando aprender mais e mais, bem como ajudá-lo de alguma maneira a se libertar do próprio egoísmo e abraçar a eternidade, acredito que isso é o ápice do ato de amar. Ademais, não acredito em amor à primeira vista, pois para se amar alguém é necessário conhecê-lo, aceitá-lo, bem como criar um ambiente onde se possa ensinar e aprender, de modo a se complementarem. Em outras palavras, quando você conhece uma pessoa você pode se encantar por ela, mas, à medida que você vai conhecendo, poderá se apaixonar, amar ou se distanciar também. – nessa hora Pedro riu, lembrando a quantidade de pessoas que fugiram dele ao longo dos seus 26 anos. - No que pese a lucidez de sua argumentação, devo discordar de ti, pois estou convencida que desde o primeiro momento que te vi, te amei ao ponto de pensar com o coração. Posso te garantir que costumava ser muito, muito racional, antes de te conhecer. – disse Janaína, enquanto que Pedro ria à vontade daquela argumentação séria e compenetrada. Era meados de abril de 2010, eles estavam contentes por cursarem o quinto período de direito e estudarem num ritmo acelerado há muito tempo, mas no fundo não escondiam suas preocupações com o futuro próximo, visto que Janaína fora nomeada no concurso para técnico judiciário do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e iria partir ainda naquela semana. [ 117 ]


No início ela quis desistir e nem contar para ele da nomeação, mas Brenda conversou com ele explicando toda a problemática e o propósito insano da amiga de desistir do cargo pelo relacionamento, tendo uma mãe doente e carente no Maranhão. Pedro imediatamente se comprometeu em fazer com que Janaína mudasse de ideia. - Sei que você está preocupada com o futuro do nosso relacionamento, mas posso te garantir que da minha parte esperarei o tempo que for necessário para estarmos juntos novamente. Além do mais, você já está cravada na minha mente, na minha história e estórias, como também no meu coração. - Ok.- disse Janaína, se precipitando sobre ele e o abraçando forte. Doravante no início de maio de 2010, Janaína já se encontrava em Brasília, trabalhando no Tribunal de Justiça, continuando o curso e maravilhada com as novidades da Capital Federal, prédios enormes, muita gente, muitos cursinhos preparativos para concurso e um lago lindo, cujo qual via frequentemente. No entanto, ainda sentia falta de Pedro. Do outro lado, Pedro mudou sua rotina. Passou a ir menos à faculdade, deixou de correr, fazer trilhas ou mesmo conversar com amigos, vivendo todo o tempo enclausurado em seu quarto como nos velhos tempos. Às vezes, quando ela ligava, ficava muito feliz, alinhado para estudar e voltar a sua rotina, mas pouco depois, vinha o desânimo e a monotonia. No final do ano, Janaína aproveitou o recesso e foi a Redenção, exclusivamente para estar com Pedro, hospedando-se em sua casa. Na virada do ano, deixaram a varanda e assuntos correlatos e foram [ 118 ]


diretamente para a cama, onde, sem rodeios, Janaína deixou seus desejos contidos aflorarem e se ligarem ao instinto primitivo de Pedro, ao ponto de, num instante, tornarem-se uma só criatura, mas que buscava interesses opostos. No dia seguinte, continuaram sobre a cama e lá ficaram praticamente o dia inteiro e a noite. Repetindo-se nos dias seguintes. Contudo, no dia 02 de janeiro de 2011 ainda no recesso, Janaína, sem se despedir, partiu de Redenção. Depois disso, ela não ligou para ele, deixando-o sem saber a razão de seu retorno repentino a Brasília e muito menos de sua ausência duradoura. Pedro, nos primeiros dias, aguardou impaciente uma ligação; depois, ele ligou uma, duas, três, muitas vezes, mas ela não o atendeu; por fim, concluíra que aquilo foi o adeus de Janaína. XVII - RECOMEÇO No dia 10 de janeiro de 2015, às 17h, como de costume, Pedro foi a Avenida Brasil, alongou-se e começou sua corrida, após alguns minutos, avistou a frente uma mulher pequena, branca, magra que corria num ritmo acelerado e constante que lhe fez lembrarse de Janaína. Instintivamente, apressou os passos, forçando o que podia para alcançá-la. Quando estavam lado a lado, eles se olharam. Pedro tomou um susto ao ver que era Janaína quem corria ali; ela, por seu turno, apenas sorriu, dizendo: - Boa tarde, Pedro! Você está fora de forma, hein?! Pedro só teve fôlego para dizer “olá, Janaína”, passando a caminhar em seguida. Ela, imediatamente, deu volta e meia e o acompanhou. [ 119 ]


Trocaram abraços e seguiram caminhando. Ambos ficaram um tanto sem graça no primeiro momento, mas logo ela começou a avacalhá-lo por não ter conseguido acompanhar o seu ritmo, com isso, Pedro se descontraiu, dando várias desculpas para seu cansaço. - O que você está fazendo com o seu bacharelado? Conseguiu atingir suas metas? - Disse ela, em tom de ironia. - Nada disso! Fiz vários concursos, mas não consegui ser classificado, depois fiz a prova da OAB e hoje sou advogado popular, trabalho na Comissão Pastoral da Terra e também estou lecionando na nossa antiga faculdade. E você é uma advogada bem sucedida?- Disse ele curioso. - Nada disso! Com seis meses vivendo em Brasília desisti de ser advogada e continuei a fazer concurso público. Não se ganha muito, mas se tem mais tranquilidade, segurança e estabilidade financeira. Sendo que recentemente, passei no concurso para Procuradora da República e assumirei a de Redenção a partir da semana que vem. – disse ela vaidosa de suas conquistas. Pedro no primeiro momento ficou envergonhado de não ter conseguido nada e desistido cedo, mas depois, lembrou-se de que gostava muito do que fazia e regozijou-se de saber que ambos estavam realizados em suas respectivas profissões. - Mais tarde, vamos tomar um café? Temos muita coisa para conversar, afinal foram mais ou menos quatro anos sem sequer uma mensagem. – disse Janaína o encarando com um olhar mais vivaz do que nunca, mas com o mesmo sorriso de outrora. - Sim, disse ele sisudo. [ 120 ]


- Dessa vez, espero que você me deixe fazer o café – disse ela bem humorada. Sabe de uma coisa, nesses quatro anos distante daqui, pensei sobre seu conceito sobre o amor e se você permitir, tenho algumas considerações a fazer. Na verdade, acredito eu, que é apenas um complemento do seu conceito anterior. Pois bem! Estou convencida de que o amor é a força invisível e silenciosa que nos liga ao mundo e ao outro, que nos faz estabelecer vínculos, criar raízes ou desprendê-las em prol da existência. Sendo que o mais interessante é que cada qual tem uma forma diferente de se encontrar com ela, ou seja, para cada um há sempre um caminho que leva a ela. Enquanto Janaína falava, passavam mil coisas pela cabeça de Pedro e dez mil emoções distintas pelo seu coração. Ele não sabia se dava ouvidos ao que ela dizia, ou se a deixava ali, conversando ao vento, ou ainda se lhe abraçava e a enchia de beijos. Para no fim, sacar um riso sem graça e se manter quieto. - Pedro, você está me ouvindo? – disse Janaína antes de continuar sua divagação sobre o amor. No entanto, nem todos conseguem encontrar o caminho ou motivação para percorrê-lo, como a sua mãe por exemplo. Sim, o suicídio não é em regra (tirando os casos de eutanásia etc.), apenas um ato de covardia, mas principalmente de falta de amor ao mundo, aos outros e a si mesma. A pessoa se torna oca, vazia. Assim, podemos deduzir que nossas atitudes superficiais que não criam vínculos e nem raízes com o existencial, seriam o mesmo que criar uma barreira emocional entre nós e o amor, pois... – Janaína disparou suas argumentações no ouvido de Pedro, por horas, até perceber que ele ainda [ 121 ]


se encontrava travado e sem a menor motivação para discorrer sobre amor ou suicídio naquele momento. - Você não está nem um pouco interessado nas minhas argumentações filosóficas, né? Poxa! Eu estava tão ansiosa para discutir isso com você, mas tudo bem. Outra hora a gente retoma o assunto. Voltemos ao café, mas antes saiba que você é o meu caminho leva ao amor. Ela voltou a conversar sobre seus estudos e aventuras em Brasília. Do lado, Pedro caminhava, ouvindo, sentindo e gostando de tê-la próxima, mas mantendo sua guarda armada. Chegada a noite, eles saíram, conversaram, voltaram e na varanda, apreciaram um café feito por Janaína. No passo de poucos meses, gostaram-se como antes da companhia do outro. Daí em diante, não tardou para Janaína ir morar com Pedro, compartilhando o presente e muitas discussões juntos. Por todo o tempo de convivência, ele não se importou em perguntar sobre a razão do seu sumiço e ela nunca se interessou em dizer.

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O INSTIGADOR DA MORTE I – HÁ UM PASSO A FRENTE Refleti por vários anos se eu devia ou não entrar em contato contigo; estabelecer uma via de comunicação e assim, ter-lhe por perto. O meu medo consistia na dúvida de, ao estabelecer contato, ele se aproveitasse dessa via e a partir disso te encontrasse. Apesar de não ouvi-lo mais, não duvido de ele estar me espreitando agora mesmo. Tenho a impressão de que está sempre há um passo a frente, pois se trata, afinal, de uma criatura esperta e traiçoeira. Contudo, se eu não te informar, não te orientar acerca dele, quando tu fores encontrado, ele fará mal a ti como fez a mim, visto que estarás totalmente alheio a sua existência. Ele é extremamente persuasivo e, seguramente, tem interesse em ti. Se ele te alcançar antes de mim, tu estarás perdido, pois onde há certeza, ele lança dúvidas, onde há dúvidas, ele instiga desejo de autodestruição, com o fino propósito de nos reabilitar em suas trincheiras de batalha. O melhor a fazer, apesar dos riscos, é relatar minha história e dessa forma demonstrar para ti os artifícios e ardis do demônio chamado Amadeus. II- O HÁLITO DA MORTE Lembro-me que minha infância foi muito conturbada. Nasci numa cidade chamada Rio Maria no Sul do Pará. Lá comumente se matava por dinheiro, poder ou simplesmente capricho de quem vivia à sombra do mal. [ 123 ]


Nesse tempo, vi o meu pai desistindo da vida e abraçando-se com a morte; vi a luta de minha mãe contra o câncer e, consequentemente, sua derrota e frequentemente sentia o hálito da morte lacrimejando meus olhos. Os mais velhos Diziam que fechara os olhos para aquela região. Lembro-me que minha mãe rebatia essa ideia afirmando que nada acontece no mundo se não for da vontade de Deus. Sua firmeza ao dizer me consolava, sentia-me solto no mundo, conformando-me com qualquer desgraça, inclusive, com o fato de ser órfão aos sete anos de idade. Afinal se era da vontade de Deus, quem eu pensava ser para contestar ou me entristecer. Nesses tempos, quando não tinha ninguém por mim, foi a Igreja que me acolheu e me guiou pela adolescência afora até me tornar um jovem religioso e um promissor padre. Confesso que não foi por causa da Igreja ter me acolhido e nem tampouco por querer servir aos oprimidos que me levou a ser um padre. Nada disso! Decidi ser padre por medo das trevas, das noites diárias e dos consequentes pesadelos envolvendo demônios que tinha desde minha infância. Tais pesadelos começaram logo após a morte de meu pai. Era sempre a mesma coisa. Quando eu adormecia, sonhava que um demônio aparecia e procurava formas de tirar minha consciência ou então abrir passagem pelo meu peito. Quando acordava estava arrepiado de medo e com calafrios. O meu pé esquerdo ficava gelado e seco, enquanto o resto do corpo permanecia quente e molhado de suor. Assim todo vez que caía à noite, vinha na mente à certeza da existência do mal e a minha impotência diante dele. Naquela época eu acreditava que os homens eram uma segunda espécie de criatura [ 124 ]


e, necessariamente, a mais fraca. Portanto, o mais prudente era ficar próximo de Deus e, assim, neutralizar a influência da escuridão na minha vida. Graças à Deus o Pároco da minha igreja não tardou para me encaminhar para as veredas do sacramento da Ordem. Desse modo, aos vinte anos eu já estava no Seminário em Conceição do Araguaia. Cidade esta que eu voltaria anos mais tarde e ali mudaria minha concepção sobre o mundo. Passados 08 meses fui enviado ao Seminário em Belém, onde permanece até me tornar Padre, ampliando meus horizontes, aumentando meus conhecimentos e amadurecendo na fé. III – LER, REFLETIR, REZAR E OUVIR Ao chegar a Belém, o silêncio, os cantos, as orações diárias me fizeram muito bem. Sentia-me feliz e seguro naquele lugar. Lá pude me aperfeiçoar na árdua missão de ajudar ao próximo, bem como na tarefa de extrair de livros conhecimento, força e fé para servir mais e mais a Deus. A minha vida se resumia a ler, refletir, rezar e ouvir. Porém, não era apenas um mar de rosas. Vez ou outra, eu tinha pesadelos terríveis sobre meu pai e, infelizmente, sobre mim mesmo. Quando os tinha, passava dias preocupado, inseguro e com medo de tudo e de todos, inclusive a fé e a capacidade de discernimento ficavam abaladas. Quando isso ocorria, eu comumente procurava o Padre Domingos. Homem baixo, magro e amarelo, porém, dono de uma voz doce e fraterna. Ele era o responsável pela orientação espiritual dos seminaristas. Ademais, sempre estava pronto para me ouvir e dar sábios conselhos sobre coisas diversas. [ 125 ]


Recordo-me de vários diálogos nossos, como no dia em que ele conversou sobre minha mudança de comportamento de tempos em tempos: - Olá Luís, quero conversar um pouco contigo. - Pois não, Padre Domingos, em que posso servi-lo? - Notei que há épocas em que você fica muito calado e distante de todos. Sua fé está abalada com alguma coisa? Está duvidando de sua vocação? Sendo isso não se preocupe, acontece com todos inclusive comigo. Quando tinha sua idade, pensei várias vezes se eu deveria ou não continuar no caminho do sacerdócio, mas hoje sei que fiz a melhor escolha e posso te garantir que não há nada no mundo que se compara a servir ao Senhor. - Não é isso, Padre Domingos. Eu decidi servir a Igreja há muito tempo e quero continuar assim. O meu problema é outro. Desde criança venho tendo pesadelos. Há épocas em que eles me deixam conturbado. Sonho que demônios procuram exercer domínio sobre mim e só param quando rezo “o pai nosso”. - Interessante... Até mesmo nos seus sonhos você se lembra de Deus?! Você se tornará um excelente padre. - A propósito, recentemente, sonhei que estava na presença de uma criatura maligna e tentava rezar, mas não conseguia me lembrar das palavras da oração. A sensação foi desesperadora. Acordei transtornado. - Nunca temas. O senhor está conosco e nada nos possuirá. Afinal se o demônio tem um propósito para você, lembre-se que Deus também tem. Não desanime. [ 126 ]


IV – DIVAGAÇÕES E CONFETES Nos dias de lazer, saíamos pela cidade de Belém e nos divertíamos bastante. Sempre era algo novo: música, teatro, passeio de barco etc. No entanto, na maioria das vezes eu preferia ficar no seminário orando e refletindo sobre a Bíblia. Pedro, meu colega de quarto, insistia para que saísse também, dizia: -Luís, faz três anos que nós chegamos aqui e você só pensa em estudar e rezar. Às vezes é preciso sair da clausura para enxergar Deus nos olhos das pessoas e na beleza dessa cidade. Há vários lugares fantásticos para se conhecer aqui. Aliás, hoje terá um espetáculo no Teatro da Paz, vamos? - Não, estou finalizado a leitura do livro Totem e Tabu. Terminando-o, refletirei acerca dos efeitos da psicanálise sobre a fé do homem e logo após irei rezar. Mas, obrigado pelo convite. O Teatro da Paz, por si só, já é um espetáculo. Nesse mesmo dia, fui à sala de estudos, onde se encontrava o Padre Domingos. Apesar de ser um homem muito simples, detinha conhecimento para discutir sobre diversas coisas: - Padre Domingos? Padre Domingos? Posso entrar?! - É você, Luís?! Entre, ué?! Não quis ir com os outros ao espetáculo no Teatro da Paz?! - Boa noite, Padre Domingos! Pois é! Eu não quis ir. Estava lendo um livro e também queria conversar com o senhor. - Não venha me dizer que você teve novamente aqueles pesadelos! - Sim, sonhei que um demônio tentava penetrar no meu peito, só que dessa vez, por mais que [ 127 ]


eu rezasse o Pai Nosso, ele não parava. Acordei desesperado. Para piorar, mesmo acordado, a dor no peito permaneceu, como se alguém estivesse querendo abri-lo. - Isso está se tornando sintomático. Estive pensando que esses pesadelos recorrentes não têm haver com a sua espiritualidade, mas tão somente com sua existência física. Algo que talvez possa ter ocorrido na sua infância. - Confesso que isso me deixará muito feliz. Prefiro ter sido abusado na infância ou coisa parecida do que estar sendo constantemente assediado por demônios. - Meu filho, o demônio não tem poderes na casa de Deus e muito menos contra um de seus mensageiros. Aqui o seu livre arbítrio é respeitado e resguardado pelos anjos. O que você pensa, sente ou sonha, talvez seja apenas fruto de seu medo e angustia interiores. Pode ser que você esteja sufocando algum sentimento, vontade ou fato de sua infância que está querendo vir à tona. Vou marcar uma consulta num excelente psiquiatra para você. - Obrigado, Padre Domingos! Vou voltar para o meu quarto. Boa noite! - Não há de quê. Vá e durma com Deus. - Luís! Espere. Vamos conversar mais um pouco. Vendo você sair, lembrei-me do tempo em que chegou aqui. Era apenas um rapaz assustado. Mas, logo, começou a estudar diversos livros, a discutir diversas teses abstratas de São Thomaz de Aquino e mergulhar na dialética escolástica. Lembro-me também que você leu alguns filósofos ateus. Nessa época tive medo de você largar o seminário e viver os prazeres que o mundo oferece. Mas, não! Você apenas fortaleceu seu caráter e suas convicções em [ 128 ]


Deus e mesmo tendo limitações no universo das palavras é excelente com as ideias. Conseguiu ser igualmente, religioso e crítico. Hoje, estou para ver um homem para te persuadir. Quem pretender orquestrar essa proeza, deverá fundamentar brilhantemente sua argumentação, pois caso contrário você o desvelará. Aliás, acredito que nem o diabo conseguiria. Pense nisso! E não tema. Tu és um homem raro. Ah! Não se esqueça de que a palavra tem poder e é ela nossa principal ferramenta contra o mal. Por meio dela, propaga a força da fé em Deus. Na semana seguinte, passei a me consultar. O Psiquiatra, depois de me ouvir várias vezes, levantou a tese de eu ter sido abusado sexualmente na infância e por isso os pesadelos com os demônios. Tranquilizei-me com a tese levantada pelo psiquiatra. Não eram demônios, apenas fatos de minha infância retornando inconscientemente. Assim, quando acorda de um pesadelo, já não ficava tão assustado, pois imediatamente imaginava que era apenas fruto do minha mente. V- ELES ESTÃO EM TODOS OS LUGARES O dia 22 de janeiro de 1993 foi um dia memorável. Nessa data celebramos o nosso sacramento da ordem. Apesar de saudoso por deixar o seminário e os conselhos do Padre Domingos, sentiame muito empolgado, pois dentro de alguns dias estaria em Conceição do Araguaia colaborando com a comunidade como um Padre vocacionado ao Senhor. Nessa ocasião, o Padre Domingos fez um discurso estranho, porém, forte. Ele alertou dos perigos que eu enfrentaria no futuro próximo: [ 129 ]


- Hoje é um grande dia para todos. Acredito que a Igreja está ganhando excelentes padres. Sei que, por meio de vocês, muitos fiéis encontrarão as portas do paraíso e verão luz onde os demônios lançam as trevas. Sei que os anjos no céu estão em festa pela chegada dos novos soldados do Senhor ao campo de batalha. Do outro lado, os demônios estão temendo a força que se posta frente a eles. Estes, seja por meio da promiscuidade, seja por meio da vaidade ou por meio de tantos outros subterfúgios tentarão persuadir vocês, tentarão enfraquecê-los. Por essa razão, devo alertá-los do perigo dos sentidos. Não sejam visuais de mais! Nunca baixe a guarda contra o inimigo. Eles estão em todos os lugares e atuarão com veemência contra vocês. Não deixem de acreditar nas palavras de Deus, pois ela tem mesmo poder. Pela mesma razão, tomem cuidado com as palavras e ações das trevas. Por fim, sejam bem vindos e idos para as diversas cidades do nosso Estado querido. Amém. A maioria dos ordenados ao ouvir as palavras do Padre Domingos pensaram que ele exagerou e muito com essa história de luta contra as trevas. Outros ficaram apreensivos e tocados acreditando que o Próprio Deus havia falado a eles por meio do Padre. Do meu lado, senti-me encorajado por suas palavras e imediatamente, fui até ele e o parabenizei. - Obrigado, Luís. Mas eu fui apenas um mensageiro das palavras do Senhor. - Nossa Senhora! Fiquei todo arrepiado. Terei em mente suas palavras Padre Domingos. Como eu já disse, Luís, as palavras não foram minhas, mas sim, do Senhor. Aliás, enquanto eu as dizia, meu coração bateu muito forte e em seguida olhei fixamente para ti. Não deixe sua guarda [ 130 ]


baixa. Faça jejum e reze diariamente para Deus ouvir suas súplicas e mandar seus anjos guardá-lo. - Luís, deixe o Padre Domingos receber congratulação dos demais pelas palavras e venha aqui tirar fotos conosco – disse Pedro, o pegando pelo pescoço. - Obrigado por tudo Padre Domingos. O Senhor foi como um pai para mim. Os anos que passei aqui no seminário me deixaram mais seguro de mim e forte em Deus. Enfim, o senhor foi fundamental para eu me tornar o homem que sou hoje. -Sou apenas um escravo de Deus. Ele, sim, fez de ti homem forte, sensato e perspicaz. Que Deus continue abençoando a Igreja com Padres como você. Felicidades, meu filho. VI – A LUZ QUE OFUSCA A VISÃO Na noite que antecedeu o meu último dia no seminário, tive um sonho diferente e quando acordei passei horas refletindo sobre seu significado. Logo que amanheceu fui procurar o Padre Domingos: - Padre Domingos!? O senhor está aí?! - Pode entrar Padre Luís. Seja bem-vindo pela primeira vez, como padre, em meu recanto. Mas, advirto-te se for para falar do seu id que se disfarça de demônio e te assombra a noite, procurou o profissional errado. - Padre Domingos, Bom Dia! Gostaria de contar-lhe sobre outro sonho que tive. Dessa vez, nada tem a ver com demônios. - Ok. Bom Dia, Luís! Prossiga e veremos o que seus sonhos têm para nós dessa vez. [ 131 ]


- Eu estava em uma cidade pequena e desconhecida. Era manhã de um dia ensolarado e eu descia uma escadaria apressadamente em direção à luz. Quando a alcancei, ela ofuscou minha visão. Por mais que eu tentasse, não conseguia enxergar. Lembro-me que meus olhos começaram a doer, então amedrontado corri de volta a escuridão. De lá, contemplei a luz, mas sem coragem de ir ao seu encontro novamente. - Não se preocupe Luís! Definitivamente, você não é o José do Egito, logo seus sonhos nada têm haver com o futuro ou os desígnios de Deus, são apenas fruto de suas impressões diárias ou de seus traumas de infância. Não foi isso que seu psiquiatra disse? Pois bem! Esse sonho no máximo é consequência de reflexões sobre seu medo de não conseguir ser um bom padre. Entretanto, eu tenho certeza, que você será um excelente padre. Mesmo que não o veja, Deus está contigo. Verdade! Talvez tenha ficado impressionado com o seu discurso de anteontem. Pensando bem, acho que estou dando muita atenção às trevas e menos à luz. Vou arrumar minhas coisas para partir amanhã. Adeus! - Venha cá, meu filho! Deixa eu te dar um forte abraço e te desejar toda a fé do mundo em Conceição do Araguaia. Não fique triste, lá é um lugar calmo, tranquilo e cheio de fieis dignos de um padre como você. VII- VISTA DA ESCURIDÃO Saí de Belém no ônibus das 22h, numa quarta-feira qualquer do mês de janeiro do ano de 1993 em direção à Conceição do Araguaia, no [ 132 ]


extremo do Pará. O padre Domingos foi me deixar na rodoviária. Depois de me despedir, entrei no ônibus e antes que saísse do perímetro urbano, eu já estava dormindo. Nessa noite sonhei outra vez com a luz. Eu estava sentado no banco de uma praça sob uma sombra muito escura. Parecia uma mancha na claridade que havia ao redor. Esta, além de intensa era quente ao ponto de me induzir a permanecer quieto na pequena mancha de sombra. No dia seguinte, por volta das 14h cheguei à Conceição do Araguaia. Permanecia uma cidade pequena, calma e quente. O Sol de lá estava mais forte, próximo e claro do que o de Belém. Gostei muito dessa constatação. Ao descer do ônibus fui recepcionado pelo Padre Francisco. Homem alto, branco e sorridente; possuía voz mansa e pausada. Por meio de seu sotaque, percebi que se tratava de um Padre italiano e suas expressões denunciavam pelo menos 50 anos de existência. O Padre Francisco me levou para a casa paroquial, apresentando meus aposentos. Tomei banho, deitei sobre a cama, ficando alguns minutos refletindo sobre o sonho. Desconfiei que talvez eles não fossem apenas frutos de traumas na infância. Nesse momento pensei em Deus e na possibilidade de não ser digno de sua bondade, pois nem sua luz meus olhos foram capazes de suportar. No dia seguinte, apresentaram-me a muitas pessoas e também pude revisitar alguns lugares da cidade de Conceição do Araguaia e as propriedades da Igreja. Percebi que nos fundos da casa paroquial havia uma pequena casa desabitada. Era de alvenaria e muito simples. De pronto, decidi morar ali. No [ 133 ]


início o Padre Francisco não concordou com a ideia, mas de tanto eu insistir, ele concordou. Uma hora depois, peguei minhas poucas coisas e fui organizar minha nova morada. Lá já havia uma cama, eu apenas coloquei um colchão sobre ela e então, já cansado pela lida, dormi. O que era para ser apenas um cochilo acabou se tornando em angustia sem fim. Sonhei que eu era outro homem e que vivia na casa com minha esposa e um filho. Acreditava que havia sido esquecido por ela devido ao filho e por isso o odiava. O ódio era tanto que desejava matá-lo, mas não queria atrair maior desprezo da esposa. Aquela sensação foi intensa, terrível e muito dolorosa. Não entendi o porquê do sonho. Senti asco de mim e muito medo de meus instintos. Imediatamente busquei consolo e refúgio em Deus: - O senhor é meu pastor, nada me faltará, deitar-me faz em pastos verdejantes (...) refrigera minha alma (...) mesmo que eu andasse pelo vale da sombra da morte não temeria mal algum porque Tu estas comigo! Tua vara e teu cajado me consolam... Unges minha cabeça com óleo, o meu cálice transborda... VIII – APARIÇÃO O Padre Francisco estabeleceu algumas atribuições paroquiais para mim, sendo que ouvir as confissões dos fieis, era uma. Aliás, ele disse que essa seria minha atribuição mais importante e que, portanto, eu deveria me dedicar a ouvir muito e falar pouco. Assim eu fiz, passei a dedicar o meu dia a ouvir os fieis. Tanto que rapidamente, conclui que ali, [ 134 ]


em Conceição do Araguaia havia mais remorsos do que pecados. O fieis preocupavam-se por demais com suas atitudes para com os outros. Isso me enchia de alegria e fé no próximo. Passado alguns meses, eu já me sentia em casa e via a comunidade católica como uma família. Todos demonstravam gostar de mim. O padre Francisco comumente afirmava que a comunidade gostava de ouvir meus conselhos e sermões. Seguramente, aqueles seis meses iniciais foram os dias mais tranquilos de minha vida. Eu estava muito satisfeito, os pesadelos raramente me visitavam. No entanto, após a bonança veio a tormenta, fazendo com que eu desconfiasse que os pesadelos não se tratavam de manifestação do inconsciente, mas sim, manifestação do próprio mal. Recordo-me que, na quinta-feira, por ocasião da Semana Santa de 1994, por volta das 17h, quando meus ouvidos pediam silêncio, apareceu na Igreja uma jovem por nome de Adriana. Tinha uns 18 anos, magra, baixa e com uma expressão fechada. Sua fala era rápida. Usava frases curtas e diretas, dando a impressão de que não desejava se revelar. Porém, nesse dia, ela quis a todo custo confessar-se comigo. Quando a avistei senti um calafrio que perpassou todo o corpo, os meus cabelos se arrepiaram. O medo, antes sentido apenas nos sonhos pela calada da noite, fez-se presente naquela tarde. Senti-me impotente, preso a uma camisa e força. Quando ela se aproximou de mim, não consegui esboçar nenhum tipo de reação. Para piorar minha impressão sobre, se me cumprimentar, apenas dizendo seu nome, iniciou um relato erotizado sobre seus desejos e atitudes frentes ao tio. Enquanto a ouvia, sentia que não estávamos [ 135 ]


sozinhos. Havia alguém, praticamente, tocando em minhas costas. Então a todo instante me virada, mas não via nada. Antes de encerrada a confissão, minha nuca já se encontrava dormente de tanto medo. Adriana passou pelo menos 30 minutos discorrendo sobre seus desejos proibidos pelo tio. Quando enfim terminou, disse para ela que a missão do cristão é justamente vencer o desejo do corpo e abraçar a força que vem de Deus e, assim, se tornar homens justos e morais. Passado algum tempo da partida de Adriana, a sensação de que havia a presença de uma criatura maligna na Igreja desapareceu, bem como o medo. Em razão do ocorrido, dispensei a janta e antes do relógio chegar às 20h, eu já estava recolhido nos meus aposentos. Não conseguia entender porque a presença daquela menina me fazia tão mal. IX – APROXIMAÇÃO No dia seguinte, acordei cedo e, antes do café, fui à igreja fazer minha reza matutina. Ao chegar à Igreja senti novamente um calafrio. Tive a impressão de que alguém me observava. Veio à mente a imagem de Adriana. Olhei para os lados, na certeza de vê-la, porém, não havia ninguém ali. Então me ajoelhei diante do santíssimo e no exato momento que eu fechava os olhos, senti um vento frio passando pelas minhas faces e tive a impressão que as luzes se apagaram, mas fechei outra vez os olhos e roguei a Deus que me desse força para superar os delírios daqueles dias. Nesse instante imaginei ouvir um sussurro, próximo a minha orelha direita, dizendo “AMITIEL”. O meu espanto foi tão grande que, ao fugir, cai e bati [ 136 ]


a cabeça no piso. Vi e senti como se alguém estivesse pesando sobre meu peito. Fiquei horrorizado, tentava me mover, em vão, pois estava completamente imobilizado, então quis gritar, mas a voz não vinha. O horror aumentou drasticamente, parecia uma agulha gélida, passando de um ponto a outro da minha cabeça, vindo a perder a consciência imediatamente. Só voltei a consciência horas depois quando o zelador me vendo desacordado no altar me socorreu do mal estar. Quando já me encontrava nos meus aposentos, procurei relaxar e não pensar naquilo. Tomei um banho frio, vesti-me e sentei-me numa cadeira de balanço, procurando pensar apenas no ir e vir da cadeira. Entretanto, mal sentei, já ouvi batidas na porta. Era Adriana informando que seu tio havia se matado e o Padre Francisco não deixou o corpo ser velado no salão paroquial. Expliquei que no caso de suicídio a Igreja não autoriza velar o corpo em suas dependências, visto que tal ato era imperdoável, no entanto, eu iria vê-lo. Terminada a conversa, Adriana partiu aparentemente satisfeita e eu voltei a sentar pesaroso, pois teria que ir a casa daquela menina à noite e, ainda por cima, num velório. X – VELÓRIO Ainda era dia quando parti para o velório. Lá chegando vi Adriana, à porta, olhando em minha direção. Cumprimentei-a e em seguida fui falar com sua tia, Maria das Dores. Ela era vultosa, alta e de cor branca. Notei que lhe faltava um dente entre as presas. Esses [ 137 ]


elementos somados dava lhe uma aparência de mais idade do que realmente tinha. Ela estava muito abalada com a morte do marido, mas, ainda assim ela conversou comigo por algum tempo. Disse várias coisas boas sobre o falecido e, por tudo, não acreditava que ele dera um tiro em sua própria cabeça, sem ao menos deixar uma carta explicando a razão. Passado alguns minutos, ela saiu e Adriana se aproximou de mim. Esta falou alegremente sobre várias coisas sobre sua vida e perguntou muitas outras sobre a minha. Apesar de ficar incomodado com a tranquilidade e descontração da menina, relatei algumas vivências. Enquanto discorria sobre as experiências no seminário em Belém, ouvi alguém dizendo: “boa noite, Padre Luís!” Sem olhar para o lado respondi: “boa noite!” Adriana se surpreendeu com aquilo, dizendo que não havia ninguém ali. Arrepiei-me ao constatar que ela estava certa. Para disfarçar o engano e aliviar o medo disse que havia falado tanto boa noite nos últimos dias que acabei me condicionando a pronunciar a mesma coisa. Ela riu ainda mais. Para piorar, comecei a sentir como se alguém estivesse respirando próximo a minha nuca e então ouvi: - Esse imprestável estava atrapalhando. Agora ela será sua. Lembro-me que minhas pernas ficaram bambas, comecei a tremer e a suar frio. Adriana percebeu que eu estava prestes a cair, então me segurou, encostando seu corpo ao meu. Senti um misto de medo e desejo que nunca antes havia ocorrido. Afastei-me imediatamente dela e parti dali. [ 138 ]


Apressei os passos rumo a minha morada, mas parecia que estava andando em círculo, inclusive, tive a sensação de ter passado pelo menos duas vezes próximo a uma árvore na beira do rio, conhecida como “o pau da pinga”. XI – IDEIA RECORRENTE No dia seguinte, iniciei cedo minhas tarefas matutinas e pela tarde fui à igreja aguardar os fieis que por ventura quisessem confessar. Quando deu 18h apareceu em minha frente uma pessoa já conhecida minha. Era o senhor Manoel, homem pequeno, magro e dono de uma face maltratada e de um semblante fechado e triste. Manoel ao me avistar ao longe, foi logo dizendo que queria confessar. Quando se aproximou o convidei a sentar. Ele, permanecendo em pé, disse que, a todo o momento, chegavam a sua mente ideias suicidas e que quando elas surgiam lhe dava um frio enorme na barriga e medo, pois gostava muito de viver e que jamais antes havia pensado em algo tão absurdo. Confessou ainda que às vezes tinha a impressão que alguém estava soprando essas coisas no seu ouvido e que a ideia vinha pronta: dia, hora, local e como aconteceria. Ele, já desesperado, asseverou que a data seria no próximo domingo, no horário da missa das 19h e se enforcaria no lugar conhecido como “o pau da pinga”. Quando ouvi sobre o local imediatamente lembrei-me que foi justamente nesse lugar que jurei passar pelo menos duas vezes na noite anterior. Na ocasião, pedi que toda vez que a ideia surgisse, sacasse a bíblia e lesse o salmo 23. Mas, ele [ 139 ]


não sabia ler. Diante disso pedi que rezasse o pai nosso e se possível a Ave Maria. Passaram-se os dias, mas não consegui tirar a confissão de Manoel de minha mente. Estava receoso de ele atentar contra sua vida. Pensei em falar com o Padre Francisco ou com os seus familiares, mas me contive, pois havia sido uma confissão. No domingo, quando o sino tocou anunciando a hora da missa noturna, meu coração acelerou. Tive medo de acontecer o pior, então fiquei na porta da igreja recebendo os fieis de um a um, na esperança de enxergar Manoel. Porém, para o meu desespero, ele não foi à igreja. Passei a missa inteira preocupado com essa situação, aliás, sentia-me culpado por não ter sido enérgico com Manoel. Quando a missa terminou saí apressado em direção à árvore, quando percorria a praça, ouvi alguém dizer: - Ele morreu! Corra que ainda verá sua alma saindo do corpo. Olhei para os lados e vi apenas os fiéis retornando para suas casas. Sem pensar, corri por entre eles e fui ao “pau da pinga”. Ao longe, avistei o corpo de Manoel suspenso na árvore, sustentado por uma corda. Senti-me desolado, sabia que poderia ter ajudado aquele homem, mas preferi deixá-lo à própria sorte. Imediatamente, soube que Deus estava desapontado comigo. XII- PERSISTÊNCIA Após algumas semanas ruminando sobre minha atitude como padre, resolvi mudar, mergulhar de cabeça na vida missionária; a partir daquele dia, deixaria de encarar a igreja como refúgio, para vê-la como escudo e lança contra o mal. Para tanto, a [ 140 ]


primeira coisa a fazer seria ignorar meus problemas e focar nos problemas dos outros. Munido da certeza que minha missão na Terra era iluminar e sensibilizar, com a palavra de Deus, os corações indiferentes ao amor e à vida em Cristo, reafirmando meus afazeres na comunidade e passando a visitar todos os católicos naquela cidade, de casa em casa, senti-me proativo e fervoroso. Talvez graças a minha confiança renovada, passei vários dias sem sentir ou ouvir qualquer coisa que eu não pudesse enxergar. Vivenciei bons dias. Isso foi minha plenitude existencial enquanto sacerdote. A tia de Adriana foi uma das últimas fieis que eu visitei, pois temia não ter força suficiente para confortá-la, mas como não a via na missa ou em qualquer outro evento da igreja, desde o falecimento do marido, não tive escolha. Chegando a sua casa, outra vez Adriana foi a primeira pessoa que avistei e estava à porta, como se soubesse da minha chegada. Cumprimentei-a e perguntei sobre sua tia. Ela não disse nada apenas indicou com o dedo que Maria estava no fundo do quintal. Maria das Dores estava sentada num banco de madeira, próximo à cerca. Quando a cumprimentei, ela apenas me olhou e fez um gesto afirmativo com a cabeça, indicando que a visita não era bem vinda. Entretanto, não fiquei intimidado com a sua indiferença. Por isso, tratei de me sentar e puxar assunto. Após alguns minutos de conversa, perguntei como estava se reerguendo na ausência do marido. Ao ouvir a pergunta, ela fechou o semblante e disse [ 141 ]


em tom baixo, como se tivesse dito apenas para si mesma: -Maldita seja a mulher que o matou! Assustei-me com sua declaração, por isso, pedi que repetisse. Ela olhou para mim e disse que estava melhor e que havia superado a morte do marido. Achei estranha sua mudança de humor, por isso decidi que a visitaria frequentemente. Antes de sair, levantei-me e lhe dei um abraço, foi quando senti a presença da velha criatura, próximo a mim. Tive medo, mas não quis demonstrar para Maria das Dores. Foi quando ouvi: -Ela encontrou uma carta do marido e sabe que Adriana foi sua amante, desde criança. Fiz de conta que nada sentia ou ouvia e saí dali apressado. XIII – APEGO Quando saí de lá já era noite. Então apressei os passos, não queria me atrasar para a oração noturna. Enquanto isso refletia sobre o que ouvi. Por mais que me causasse medo, eu não descartava a possibilidade de eu estar louco. E se esse fosse o caso, eu deveria procurar um médico psiquiatra rapidamente. Contudo, isso implicaria deixar meu trabalho por um tempo e ir à Belém, uma vez que em Conceição não havia tal médico. Essa assertiva me incomodava. Não desejava abandonar meu trabalho, principalmente porque era minha primeira experiência como padre, além do mais, não gostava nem um pouco da ideia de ser louco. Quando estava chegando à praça da igreja, ouvi a voz praticamente dentro do meu ouvido: [ 142 ]


-Você não é louco. Eu sou real e estou colaborando para que muitos homens façam o que têm vontade nessa cidade. Essa é minha década em Conceição. O senhor irá presenciar muitas mortes antes que ela acabe. Inclusive a sua. Quando ouvi, entrei em estado de choque. Não consegui andar, nem ficar em pé e nem pensar coerentemente. Sentei num meio fio, sem força, sem vontade, sem fé. Entregue ao nada. A voz continuou: -Não se preocupe. Eu não irei matá-lo ou a outro homem, apenas demonstrarei o porquê de, e como fazer. Assim, você viverá até o dia que resistir aos meus apelos. Entretanto, vou logo antecipando, costumo ser muito persuasivo. Nesse momento, eu quase podia sentir o hálito frio e fétido da provável criatura. Acreditei que ela estava de cócoras na minha frente. Quis me levantar e fugir dali, porém, não consegui, então tentei rezar, mas não me lembrava de como fazer. As palavras simplesmente não vinham. Apenas conseguia ouvir: - Eu me simpatizo contigo. Há muito tempo que não encontro alguém do seu jaez, somente consigo fazer essa proeza quando o outro é muito forte e antigo. A propósito, temos uma ligação de épocas remotas, há muito esquecidas por ti. Quanto mais eu ouvia, mais atormentado tornava-me. Cheguei ao ponto de não conseguir mexer nem uma parte do meu corpo, senti-me como se estivesse num pesadelo. Para piorar tive a impressão de que ele tocava no meu corpo. Nesse momento, apaguei. No dia seguinte, eu ainda estava adormecido no centro da praça como se fosse um cadáver. [ 143 ]


Quando o Sol surgiu no horizonte, despertei e sai rapidamente. Esse acontecimento me fez crer pelo menos duas coisas: que minha força vinda da fé estava minúscula e que, portanto, deveria jejuar e rezar ainda mais, a fim de que Deus lançasse suas mãos sobre mim. Assim, durante o dia eu mantive a rotinha de trabalho na comunidade e durante a noite intensifiquei as orações. Isso me manteve ativo, porém, sempre suspeitando de que a qualquer momento poderia ser traído pela mente ou ser tentando pelo demônio ou ainda as duas coisas. XIV – APRESENTAÇÃO Passado os dias, o mal, irremediavelmente, retornou e dessa vez chegou a cavalo e fincou suas raízes em minha mente, lançando a certeza da qual minha alma desejava omitir. Numa noite quente, enquanto rezava e me nutria das palavras do Senhor, eis que ouço o demônio: - Padre, enquanto você finge que ora, vou te contar um pouco da minha história e como contribuí para mudar a ordem natural da sociedade brasileira. Afinal é raro encontrar alguém com quem possa conversar. Acredito que assim como eu, você sabe que nada é por acaso, atrás dos fatos há sempre uma força oculta conduzindo-o. Quando há um assassinato, um estupro, um parricídio, alguém dos nossos está instigando um tolo homem a cometê-lo. Aliás, uma das coisas mais belas e prazerosas que alguns de nós fazemos, sem dúvida, é influenciar os homens. Como são frágeis e tolos! [ 144 ]


Com apenas algumas sugestões, cometem, sem refletir do contrário, atos atrozes contra seus companheiros de existência. Depois quando caem em si, quando se percebem do que fizeram, alguns ficam desolados, traídos e nós ficamos animados, revigorados, vaidosos de nossa proeza, principalmente quando o homem sugestionado se acha forte e coerente. Engraçado Padre Luís, ao mesmo tempo em que você procura rezar a Deus, teme o diabo. Fique tranquilo, não sou nenhum nem outro. Quando ele fez esse comentário, percebi que estava dando mais atenção ao que ouvia e menos a minhas orações, então procurei retomar meu monólogo com Deus, rogando que me livrasse daquele mal. Ele continuou: -Tudo bem! Permaneça com seu fingimento e medo que eu darei seguimento a história. Ah! Desde já agradeço pelos seus ouvidos. Mesmo nessa sua condição é muito bom dialogar com você outra vez. Confesso que sempre gostei de sua companhia. Sintome vivo e vigoroso outra vez. Entretanto, o que você fez foi lamentável. Se não fosse Miguel e você, teríamos conseguido derrubar o ditador e revolucionar os Céus. Mas deixe estar, essa é outra conversa. Continuando, no inicio do século até 21 de abril de 1985, eu me divertia de outra maneira. Eu aguardava um homem sensitivo me chamar, dizer o que queria que eu fizesse e me conectar a pessoa fadada a morrer. Saiba que tais coisas não eram fáceis, pois é necessário fazer com que a vítima vibre dentro de minha frequência. A propósito, há muitos anos, houve um caso intrigante. Precisamente, no início da década de 50 do [ 145 ]


século XX, um sensitivo poderoso me invocou para matar Getúlio Vargas. Assim, quando alcancei Getúlio, ele estava no quarto lendo documentos oficiais sobre os complôs contra ele. Por ironia, havia muita gente influente desejando sua destruição. Mas, a morte estava ao lado e viria pela bala de seu próprio revólver. Sugestionar aquele homem, ao ponto de ele tirar a própria vida, negando por completo seus instintos de preservação foi algo muito prazeroso, sensação experimentada poucas vezes em minha longa jornada pela Terra. É bem verdade que no início não tive interesse por ele, pensei em suscitar sua morte por meio de um acidente qualquer ou por meio de outro homem ou coisa parecida. No entanto, quando passei a conhecê-lo melhor, fiquei extremamente interessado por ele. Assim, não queria mais matá-lo simplesmente. Desejei a partir daquele momento que ele morresse por suas próprias mãos. Destarte, passei a procurar brechas em suas convicções e então explorá-las. Foi quando percebi sua devoção pelo Estado. Com isso, comecei a instigá-lo a ideias de grandeza, de ele ser o maior político de todos os tempos e simultaneamente intensifiquei suas reflexões sobre possíveis conspirações que, aliás, eram verdadeiras. Por meio dessa estratégia, não tardaram os frutos. Em 20 de janeiro de 1954 ele esboçou os primeiros sintomas de mania de perseguição. Saía menos, aumentou sua guarda pessoal e ficava mais tempo trancado em seu quarto. Percebendo isso, comecei a instigar a ideia de que as forças militares tramavam um golpe e que [ 146 ]


mais uma vez, ele nada poderia fazer para manter-se no poder e muito menos, no país. Então essa ideia começou a ricochetar em sua cabeça. Ele não sabia o que fazer para parar o avanço das forças armadas contra ele. Por essa ocasião comecei com a terceira fase do plano. Suscitei a ideia de que só haveria uma forma dele impedir os militares de assumir controle do país, qual seja, cometer suicídio. Lembrei-lhe que se isso ocorresse haveria um grande pesar ou mesmo revolta por parte da nação e então os militares não se atreveriam a dar o golpe. Ele gostou da dedução, mas ficou apreensivo com o método de solução do problema e aí sugeri que fizesse uma carta à nação explicando tudo. Enquanto eu ditava a carta, ele a escrevia e se comovia com tanta emoção exposta em cada linha e palavra da carta. Ela foi uma verdadeira oração de um homem vocacionado para o Estado. Quando ele a terminou e percebeu o quanto havia ficado boa, esqueceu-se do medo da morte, do instinto de preservação e decidiu-se. Na verdade, ele ficou ansioso por fazer. Pensou que se igualaria ao Cristo. Imaginou a comoção geral: o choro, a revolta e o desespero do povo. Depois disso, veio o tiro e o imenso prazer que tive em presenciar aquilo. Algo, realmente, indescritível, até mesmo para mim. Ah! Voltando para você. Lembre-se que para cada suicídio há sempre uma argumentação plausível. Assim, preocupe-se! Pois sei que não será um texto imortal que te convencerá. Conheço bem sua fraqueza, Padre Luís...

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XV – MALDIÇÃO DE CAIM A partir daquele momento, a criatura permaneceu ao meu lado. A todo tempo estava relatando suas proezas, afirmando que eu morreria, juntar-me-ia a eles e, como se não bastasse, faríamos crueldades pela eternidade adentro. Na certeza de minha insanidade, decidi procurar o padre Francisco e relatar o que estava ocorrendo e informá-lo que retornaria imediatamente a Belém, objetivando tratamento. Contudo, antes de eu estar com o padre Francisco, a voz disse que ele realmente existia e que, inclusive, há dois anos de minha chegada em Conceição, ele havia instigado à morte um homem que morava com sua família onde eu moro hoje. Mencionou vários detalhes. Disse ainda que o espírito do homem permanecia naquela casa e que eles a impregnaram com a maldição de Cain para que assim facilitasse a nossa interação. Ao ouvir isso, pensei que se fosse verdade, então eu não era louco, porém, estava, definitivamente, sendo assediado pelo demônio ou coisa parecida. Para ter certeza de uma coisa ou doutra, fui estar com o padre Francisco. Para meu desespero, ele confirmou tudo e ficou surpreso de eu saber, pois apenas ele, duas freiras que não viviam mais ali e a esposa do suicida sabiam disso. Disse que a mulher do falecido levou o cadáver para ser enterrado em Redenção, uma cidade próxima a Conceição do Araguaia, e nunca mais voltou ali. Afirmou ainda que ficou sabendo que ela inventou uma história de ele ter caído de um cavalo e quebrado o pescoço. [ 148 ]


Ao deixar o padre, convenci-me de que não havia outra forma de eu saber daquilo se não fosse por meio da voz. Portanto, o abismo tinha interesse em mim e há anos me contempla, mas por qual motivo? De posse dessa informação, entendi que, mais do que nunca, deveria refletir várias vezes antes de qualquer comportamento e não deixar a menor margem possível, para o medo, a raiva, a vaidade ou qualquer outro sentimento que me pudesse levar às asas da morte e da dor eterna. XVI – A VERDADE DE AMADEUS Como era de se esperar, pouco depois da conversa com o padre Francisco, quando caminhava eu rumo a indagações de toda a vida, senti a presença da criatura ao meu lado. Ele não se manifestou, mas eu sabia que estava ali, espreitando-me. Confesso que sua presença continuava a me dar calafrios e arrepiar a nuca, contudo levava comigo um tantinho de fé e coragem para enfrentá-lo de frente. Quando estava diante do Rio Araguaia, contemplando minha história de fé e sofrimento, compreendi que desde meu nascimento fui tentado por ele, calafrios, impressões de aparições tudo provavelmente tenha sido por ele. Pensei outra vez, por que eu? Qual a razão de tamanha obsessão por mim ? Então pela primeira vez, dirigi-me a ele: - Sei que você é real e está aqui. Sei que desde meu nascimento você me espreita. Acredito que estou nessa cidade por um capricho seu. Agora, digame, por quê? Ele então se manifestou: [ 149 ]


- Lamentável seu esquecimento. Você se sujeitou até a isso para ganhar o perdão de Deus? Que humilhante! - Chamo-me aqui de Amadeus e você foi nomeado nos céus como Amitiel. Nós nos conhecemos há muito tempo. Muito antes de sua existência humana. Estivemos próximos por muitos e muitos anos. Mas, por razões que desconheço, você decidiu tomar outro caminho. Rendeu-se ao inimigo. No entanto, ainda acreditamos que podemos resgatálo e por isso estou aqui. Entendi praticamente nada, então fiz outra pergunta: - Como me descobriram? Ele foi enfático: - Compartilhamos do mesmo estigma. Quando foste concebido humano, você soou na nossa frequência e num instante seguinte eu estava ao seu lado, atormentando os sonhos de tua mãe e a mente fraca de teu pai. Enquanto o ouvia, lembrei-me dos transtornos de meu pai e de vê-lo suspenso por uma corda na área de nossa casa. Senti ódio de Amadeus, quis matá-lo, destruí-lo. Mas, como?! Ele percebeu meus sentimentos e regozijouse, dizendo: -Muito bem, Amitiel. Esse é o sentimento que gera as revoluções. Continuou: - você é muito importante para nós. Tu és uma criatura muito forte e bem mais persuasiva do que eu. Sua persuasão é comparada com a de Lúcifer e sua força, provavelmente seja superior. Tu és o segundo em ordem de importância para a nossa revolução. Se você estivesse no meu lugar já teria [ 150 ]


feito toda essa cidade vibrar na mesma frequência que você, assim como Lúcifer fez com Gomorra e Sodoma. Sua força é tanta que bastaria alguém pensar em alguma coisa que leva a você que instantaneamente, estaria ao lado dela, influenciandoa para perdição. Amadeus, aparentemente contrariando suas divagações de dias atrás, afirmou que eu era uma espécie de demônio. Fiquei perplexo, mas quis saber até onde iria sua imaginação: -Se isso for verdade. Diga-me o que fizemos e onde nos separamos? - Você é uma das primeiras criaturas de Deus, assim como Miguel, Gabriel e Lúcifer. Porém, não foi criado para ser mensageiro, nem para o louvor ou para a guerra, mas, aparentemente para a liberdade da reflexão. - Talvez tenha sido criado para a dúvida. Penso que por isso, não desempenhou nenhuma atribuição imediata. Apenas observava e refletia sobre tudo e todos, sem tomar partido em nada. Ninguém sabia, ao certo, o propósito de Deus ao criá-lo. No entanto, uma coisa nós sabíamos: você era livre. Você foi o primeiro a desfrutar do livre arbítrio. Talvez por isso, Lúcifer costumava passar muito tempo ao seu lado e talvez a decisão que ele tomou, em parte, devesse a você. Ele mesclava coisas da bíblia com suas fantasias. Interroguei-o outra vez: - Por que na Bíblia não há nada sobre minha existência?! Por que nós nos separamos? Ele insistiu na argumentação: - Por que você se juntou a eles, como um tolo implorando a por perdão. Em outras palavras os homens existem em função do que nós fizemos. [ 151 ]


Houve um tempo em que nós discordamos de Deus e nos levantamos contra Ele. Almejávamos seu trono e poder. Sabíamos que mesmo sendo a minoria venceríamos, pois éramos os mais fortes. - No entanto, quando Miguel apareceu com seus anjos, alguns dos nossos quedaram diante deles. Ficaram catatônicos. Você foi um deles. Então Miguel venceu facilmente e nós fomos banidos dos céus e legados a uma região sombria, a Terra. Você e muitos outros não foram banidos conosco. Após milhões de anos, Deus criou adão: terra que purifica, para remover a mácula que Lúcifer deixara em vocês. Assim, foram condenados a se encarnar e reencarnar como homens e evoluir/sofrer até que o estigma do mal fosse extinto e desse modo tornassem a serem criaturas dignas dos céus, outra vez. Entretanto, ao sabermos disso, decidimos que faríamos de tudo para que os desertores permanecessem sob a influência de Lúcifer e arrebatados para a nossa causa. Por essa razão, instigamos os homens para o mal, desde o início de suas existências. - Então, trata-se apenas de vingança contra nós? Vocês querem que passemos pelo que vocês passam? - Sim, mas não somente. Queremos reabilitar alguns para a última batalha. Acreditamos que se estivermos juntos e lutarmos, poderemos vencer o déspota e dessa feita, laçar mãos dos céus. Por almejar isso, há milhares de anos estamos espreitando todos os que nascem e renascem nesse mundo, à sua espera e dos outros dois, bem como da maioria do terço do terço celeste. Dos três que aguardamos, você [ 152 ]


foi o primeiro a ser encontrado. Mal acreditei, quando senti suas vibrações. Ele percebeu que eu estava muito interessado em sua argumentação, então continuou a dizer várias coisas sobre os céus e também de muitos horrores que ele havia feito na Terra. Lembro-me com clareza da sua afirmação de que os homens eram apenas uma espécie de casulo dos anjos que desistiram de lutar contra Miguel. Suas palavras me seduziram. Pela primeira vez em minha vida acreditei de maneira absoluta, pois havia algo em sua argumentação e também dentro de mim que me impedia de duvidar. A verdade inevitável é que colaborei com a criação do vale da sombra da morte e estava ali como homem para me purificar, igualmente a toda a humanidade. Fiquei tão absorvido com essas ideias que nem percebi o sol se pondo, à noite se retirando e o sol surgindo e se pondo, outra vez. XVII – UM HOMEM EM MEIO A OUTROS Um transeunte, ao ver-me por horas conversando sozinho, correu ao padre Francisco. Este por sua vez, foi até mim e só então recobrei a consciência e me notei como homem em meio a outros. O padre Francisco me levou aos meus aposentos, enquanto isso fez várias perguntas e afirmou que me levaria ao médico. Porém, eu descartei essa ideia e disse que estava apenas jejuando e orando ao ar livre. Naquela época parte de mim estava maravilhado com a história de Amadeus. Suas afirmações explicavam muitas coisas em minha vida. [ 153 ]


Estava tão curioso em saber quem eu realmente era, bem como empolgado com a ideia de ser uma espécie de arcanjo tão poderoso como Lúcifer, que havia me esquecido do antagonismo entre bem e mal e do próprio Deus. Deixei de temer as aparições de Amadeus, inclusive, estava desejoso por tê-lo em companhia. Ele, porém, não apareceu. Passei dias, talvez semanas esperando por ele, mas nada. Ele havia sumido outra vez. Nesse período, a maior parte do tempo, passei trancado em meu quarto, aguardando mais informações sobre meu outro eu. Tiveram dias que eu até mesmo chamava por ele. Passada algumas noites e dias acordado na expectativa de vê-lo, dormi. Então veio a mim um sonho: estava sozinho em uma casa. Quando saí à porta, vi sobre as serras uma imensa onda vinda cair sobre a cidade. Depois, eu já estava na rua onde havia muita lama e à margem centenas ou milhares de corpos. Caminhava pelas ruas rumo ao nada. Sentiame desolado e carregando o peso do mundo sobre as costas. Ao acordar, soube que esse sonho representava o golpe mal sucedido de Lúcifer contra Deus. A onda era o exército celestial liderado por Miguel contra nós. Os mortos simbolizavam os anjos maculados e o caminhar solitário indicava a minha culpa. Instantes depois, veio a mente a certeza de que a onda, além de ser a ostentação da força de Deus, também era a manifestação do seu amor purificador por nós. Só aí pude sentir o quão grande é a misericórdia de Deus. Mesmo depois de nossa traição, Ele nos perdoou, ao ponto de criar o homem [ 154 ]


como uma forma de nos purificar da influência do mal e assim, alcançar outra vez o Paraíso. Imediatamente, lágrimas encheram meus olhos e os soluços soaram nos meus ouvidos. XVIII – MATÉRIA FRÁGIL, VINDA DO PÓ. Ao amanhecer retomei meu trabalho na comunidade. O padre Francisco quis me persuadir do contrário, mas insisti em trabalhar. Disse que estava ótimo e queria a todo custo colaborar com a causa de Deus. A partir de então vi as pessoas de outro ângulo. Enxergava-as como criaturas que lutavam contra o mal sendo prisioneiras de uma matéria frágil vinda do pó. Devia mais do que nunca ajudar meus irmãos e a mim na redenção de nossos pecados para a ascensão aos céus. Nesse período rezava como nunca. Estava, realmente, cheio de fé e certeza da minha missão, bem como certo de que Amadeus e os outros continuariam a promover o mal. Amadeus tardou por semanas, mas irremediavelmente veio a mim. Disse que eu estava fazendo tudo errado. Que minhas ações apenas me distanciavam da memória perdida no passado. Afirmei que elas não me interessavam. Que eu almejava a redenção dos eleitos. Ele contra-argumentou: -Padre, retome a memória e força do passado e só então decida sobre o seu presente e futuro. Ele foi convincente e soube disso, então insistiu: -Padre você deve experimentar de suas lembranças de outrora. Sentir e pensar como antes [ 155 ]


para depois se decidir para uma coisa ou outra. Nessa forma atual, você não passa de um fantoche. No calor do momento, não pude contrapor adequadamente. Perguntei o que eu deveria fazer para recuperar apenas a minha memória. Ele respondeu num tom natural: - Aniquile-se. O suicídio é a única maneira de resolver definitivamente o pacto com o Déspota, desistindo de sua “misericórdia” e posicionando-se, doravante, contra Ele. Continuou: - Não é um absurdo. A condição humana é humilhação demais para ganharem tão pouco. Além do mais, todos vocês, em essência, não suportam a obrigação imposta para obterem o perdão Dele. A minha negativa foi imediata. O suicídio não era uma opção. Não teria o destino de meu pai. Preferiria ser perseguido e martirizado por todas as vidas vindouras, mas nunca me mataria. Ao encontrar a razão, eu disse: - Amadeus você não é tão persuasivo, afinal. Seu discurso apenas me fortalece. Ele riu e ironicamente afirmou: - De um lado, o frasco humano deixou seu discernimento limitado demais; do outro lado, lhe transbordou de vaidade. Ao recobrar seu tom sério e fatalista, terminou: - Contudo, nada mudará o fato de que inevitavelmente você morrerá por suas mãos. Não me deixei abater: - Amadeus! Se estou aqui nessa condição humana é porque já há muitos anos abri mão dessas memórias pelo amor de Deus. Portanto estou disposto [ 156 ]


a lutar o quanto for necessário para vencer a dor e me purificar do pecado original, instigado por Lúcifer. Ele nada mais disse e sua presença desapareceu. Soube então que o pior viria. No entanto, estava certo que tudo aquilo seria necessário para a nossa redenção e ascensão. XIX – CHEIRO DE MORTE Ao amanhecer retomei minhas caminhadas a residência dos fieis. Passava o dia inteiro caminhando de casa em casa. Não me importava se era ou não católico. Conversava sobre a bíblia e dizia sobre a importância do amor, da fé em Deus e principalmente, da reflexão antes de qualquer atitude impensada. Discorria exaustivamente acerca do pecado do suicídio. Advertia que o Apocalipse anunciava que no futuro ocorrerá uma guerra entre o bem o mal e que por meio do suicídio o homem dizia não a Deus e sim ao Diabo; dizia ainda que Deus não faria nada para resgatar o suicida porque Ele respeitava nossas decisões e escolhas. Lembro-me que houve uma ocasião em que cheguei a uma casa onde estava ocorrendo o velório de um jovem que havia se matado ao tomar veneno juntamente com outro, mas apenas ele havia morrido. O outro foi socorrido a tempo. Sabia que era obra de Amadeus e seus comparsas. Quando adentrei avistei um ancião. Ele estava aparentemente bêbado que ao ver-me gritou: “- Padre você não é bem vindo. Saia de minha casa”. No primeiro momento, assustei-me com sua atitude, mas em seguida entendi que o velho era uma [ 157 ]


marionete nas mãos dos espíritos que ali estavam presentes. Então, olhei para ele e disse: - saia dessa casa, desapareça em nome de Cristo! Ele riu e retrucou: - Padre, saia agora, antes que eu lhe ponha para fora, a pontapés. As pessoas presentes ficaram assustadas com minha atitude. Não entenderam porque estava discutindo com um velho bêbado, pedindo que eu saísse. Eu insisti em ficar, em rezar e exortar, porém, dois homens me levaram a força até a Rua. Ao ser deixado, ouvi um sussurro de um deles: - o padre Domingos acaba de se juntar a nós e Adriana também está conosco. Temi pela vida deles. Por isso, segurei forte a bíblia e corri até a casa paroquial para ligar para o Padre Domingos e depois ir à busca de Adriana. Ao chegar, liguei para o seminário, mas ninguém sabia onde estava o padre Domingos. Passei algumas horas aguardando por notícias dele. Então, Pedro, meu antigo colega de quarto, ligou-me, relatando que o padre Domingos foi encontrado em seu quarto com a garganta cortada. Disse também que havia talhado no seu braço o seguinte dizer: L. ACEITE. De imediato, soube que aquilo era para mim. Fiquei aterrorizado. Demorei acreditar que até o padre Domingos havia sido alvo de Amadeus e que agora não haveria mais salvação para ele. Em seguida, fui informado pelo Padre Francisco que a Igreja certamente encobertaria o suicídio dele, disse também que, nos últimos anos, alguns padres estavam se matando e a Igreja não sabia o que fazer sobre isso. [ 158 ]


Enquanto tomava um chá, ouvia atentamente, o que o padre Francisco dizia. Quando ele e eu terminamos, rapidamente corri para a casa de Maria das Dores, pois imaginava que Adriana poderia estar por lá. Mais uma vez, lá estava eu segurando minha bíblia e correndo desesperadamente pelas ruas de Conceição do Araguaia. Quem me via dizia: - lá vai o padre doido! Ao chegar a casa notei que estava fechada. Chamei várias vezes, mas ninguém me atendeu, então perguntei a um vizinho se ele sabia onde estava Adriana ou Maria das dores. Fui informado que a casa estava fechada, já alguns dias. Notei que exalava um odor fétido e forte de dentro. Olhei pela fresta, mas não vi nada, por conseguinte, comecei a bater com força na porta, objetivando quebrá-la. A porta era frágil, por isso rapidamente rompeu. O cheiro se intensificou, mas, adentrei. De imediato avistei o corpo de Maria das Dores suspenso por uma corda. Passei por ela, vasculhando a casa, na esperança de encontrar Adriana com vida. Quando cheguei ao quarto vi seu corpo sobre a cama. Ao me aproximar percebi que ela estava com a garganta cortada. Procurei por uma faca ou coisa parecida próximo dela, mas não havia nada. A faca estava sobre uma cadeira, próximo ao corpo de Maria das Dores. Notei que suas mãos estavam cheias de sangue. Então entendi que Maria das Dores havia matado Adriana e em seguida se matado. Regozijei-me por saber que Adriana teria outra chance.

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XX – PREGAÇÕES E TENTAÇÕES Não me deixei abater com esses acontecimentos. Pelo contrário, deu-me mais força e coragem de sair pelas ruas, aconselhando a todos que eu via, a não se matarem, a não cederem à instigação de Amadeus. Nessa altura, eu já havia deixado para trás a doutrina católica, bem como os apelos do padre Francisco para que eu retomasse minhas atividades na Igreja ou fosse a Belém me tratar. Não tardou para eu deixar de dormir em casa e passar todo o tempo nas ruas, casas e bares, conversando com qualquer um que avistava e dizendo toda a verdade que me foi revelada. Após alguns meses nesse labor, houve um dia que, já bastante desgastado e cansado, parei sob a sombra de uma árvore e avaliei os frutos de minha “atividade missionária”. Percebi que havia me perdido no caminho. Ninguém na comunidade me levava a sério. Até as crianças quando me avistavam faziam chacota da minha luta e insistência em pregar. Notei ainda que havia dias que nem me alimentava e raramente me hidratava. Acreditei que se eu continuasse naquele ritmo, em breve poderia enlouquecer de vez e pouco a pouco ir morrendo pelas minhas próprias mãos. Lembrei-me que Amadeus me fez acreditar em sua existência; depois disse vários feitos seus, objetivando, provavelmente desestruturar minha fé; em seguida revelou minha condição de anjo maculado e por fim afirmou que eu inevitavelmente me destruiria. Diante disso, deduzi que o plano de Amadeus era justamente fazer com que eu me [ 160 ]


definhasse até a morte no afã de ajudar o próximo. Temi por minha existência. O que eu não almejava em hipótese alguma era autodestruição. Quando cheguei a essa conclusão, sentei-me no banco de uma praça, pois estava atordoado com a possibilidade e, principalmente, com a astúcia de Amadeus. Refleti por mais algum tempo sobre a constatação, para no fim, aceitar que indubitavelmente as maneiras de cometer suicídio eram bem mais amplas do que eu pensava. Doravante, eu procuraria evitar tudo que se parecesse ou levasse ao suicídio. Nesse instante, senti a presença de Amadeus ao meu lado, eu não tinha interesse em ouvir ou conversar com ele. Fiquei quieto, apenas apreciando as coisas que meus sentidos conseguiam capturar. Regozijei-me com a vida e senti-me extremamente grato a Deus pela oportunidade de redenção. Passada algumas horas, levantei-me e parti dali. Amadeus não rompeu o silêncio. Quando já estava na Rua ouvi alguém dizendo: Padre, o caminhão! Acredito que era a voz de Amadeus. O caminhão apareceu inusitadamente, nem pude me esquivar dele. XXI – DEPOIS DA ENCRUZILHADA Quando acordei após o acidente tive certeza de três coisas. A primeira era que eu havia morrido; a segunda era que Amadeus continuaria a instigar nas pessoas o desejo de morte e a terceira era que alguém deveria por um fim naquilo. Por algum tempo fiquei sentando, próximo a praça da bíblia, observando as pessoas se divertindo e aguardando as boas vindas de Amadeus. Tinha como [ 161 ]


certa sua companhia, haja vista que não acordei no paraíso e ninguém havia me procurado para me levar até lá. Desse modo, o tempo passou; as pessoas que lá estavam foram embora e outras chegaram. A noite se fez dia e novamente se fez noite por diversas vezes e nada de Amadeus aparecer. Então entendi que alguma razão ele não viria. Pensei que talvez tudo que ele havia dito fosse mentira, ou que eu não tinha mais interesse para ele ou ainda que ele, por alguma razão celestial, não podia me localizar, não podia vibrar na mesma frequência que eu. Enfim, pensei muito e tudo várias vezes. Fiquei sem saber o que fazer, nem para onde ir. Por isso continuei na praça e proximidades, por dias, meses, talvez anos, vendo pessoas diversas com sentimentos diversos. Percebi nesse período que conseguia ver e sentir qualquer pessoa, independente de suas vibrações desde que eu estivesse próximo a elas. Assim, com tempo passei a observá-las e acompanhá-las pelas ruas até suas casas, com isso fui desenvolvendo habilidade de ler suas expressões faciais, seus trejeitos, praticamente ler suas falas, vontade e expectativas de vida. A todo instante lembrava-me de tudo que Amadeus falou sobre a fragilidade do livre arbítrio, a ambiguidade da vontade humana, de como o homem era influenciável, sugestionável por todos, encarnados e espíritos. A essa altura, já cansado de tanto esperar alguma coisa acontecer e eu encontrar-me com alguém que soubesse indicar um norte, tomei uma decisão. Iria usar os mesmos mecanismos de [ 162 ]


persuasão de Amadeus para livrar o mundo de sua influência e da influência de todos outros seres malignos que por ventura existissem. A partir daquela data, toda pessoa que passava pela praça eu a acompanhava e sempre suscitava em sua mente ideias reconfortantes de paz e amor ao próximo. Todavia, não me olvidava de Amadeus. Para onde ia buscava vestígios dele ou de qualquer um de seus comparsas. Naquela época, não vi nada suspeito, pelo contrário, as pessoas, em Conceição do Araguaia, pararam de se suicidar. Convenci-me de que ele não estava mais lá. Mas sabia que onde ele estivesse estaria fazendo o mal e que eu deveria tentar impedi-lo, só não sabia como. As pessoas que eu protegia eram apenas as que eu via na praça numa pequena cidade do interior do Pará. Não estava satisfeito em ajudar tão pouco, então me convenci que eu deveria usar de outros meios para estabelecer contato com um número maior de pessoas e a partir disso, ajudá-las a se tornarem fortes e imunes ao demônio. Foi aí que me recordei de um comentário de Amadeus: “bastava alguém vibrar na mesma frequência, que eu seria capaz de encontrálo”. Dessa forma, acreditei que apenas uma palavra ou sentimento seria o suficiente para estabelecer uma linha de contato e então poder num instante estar ao lado dela. Ao que tudo indicava, havia encontrado uma solução para alcançar várias pessoas pelo Brasil, quiçá pelo mundo. Eu deveria apenas acompanhar e influenciar pessoas que escrevessem livros, novelas, filmes, ou que fizessem jogos de computador etc., pois chegando nessas pessoas eu também chegaria a muitas outras. [ 163 ]


Contudo, não faria como Amadeus, eu não inculcaria ideias nas pessoas. Não pesaria o livrearbítrio delas, mas somente as acompanharia e faria de tudo para que tivessem tranquilidade e calma ao fazer uma escolha, dando uma oportunidade de refletir sem a influência nefasta do mal. Assim eu fiz, comecei a acompanhar escritores e a instigar ideias de estórias fantasiosas de que algum modo estimulasse a quem lesse emanar a mesma frequência que eu. Agora mesmo, aqui estou instigando esta pessoa a escrever o que eu preciso para chegar até você. Portanto, se você está lendo, esteja certo de que estou contigo nesse instante. Não me temas. Amadeus e os outros é quem você deve temer, pois não sei o que foi feito deles, não sei onde ele está agora e o que ele pretende no final. Para mim, seus desígnios é um mistério. A propósito, hoje tive uma sensação familiar e por isso, desconfiei que Amadeus estivesse me espreitando. Não descarto a possibilidade de ele também ter influenciado esse texto. Por isso, ao terminar essa leitura, não pense nele. Não vibre numa frequência deletéria, pois pode ser a dele. No entanto, caso surja um desejo inexplicável de fazer o mal, RESISTA! Do contrário, poderá ser o seu fim ou o início de dias de desespero, dor e loucura. Siga atentamente o que eu disse. Não ouça seus impulsos imediatos. Mas sua razão e fé em Deus. Sei que poderemos nos purificar da mácula do mal e, outra vez habitar os céus.

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