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JORNAL-LABORATÓRIO DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL - VOLUME 34 - Nº 1 - OUTUBRO 2017


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Peççcas que nãao se encaixam... i

Olá! Seja bem-vindo ao nosso Unicom. Digo nosso, porque mesmo que ele já tenha passado por tantas mãos e ainda será de tantos outros acadêmicos, neste momento ele nos pertence. Logo mais, você vai conhecer o rosto de cada um de nós e já lhes adianto: certamente somos peças que muitas vezes – se não todas – não se encaixam. Afinal, como diz o velho ditado: ninguém é igual e cada louco tem as suas manias. O que é a mais pura verdade! É em meio a essa confusão de características que surgiu a primeira edição do nosso jornal-laboratorial do segundo semestre de 2017: o Unicom Conflitos que transformam. Sabe aqueles momentos que as peças do quebra-cabeça realmente não encontram sintonia? Pois então, é disso que estamos falando! As marcas verdes, nas reportagens, são para trazer ou despertar a esperança dentro de nós. A cor rosa, simboliza a inspiração que precisamos para superar ou mudar situações não tão bonitas das nossas vidas, e são as marcas presentes nos textos opinativos do nosso jornal. Nas próximas páginas lhe convidamos para conhecer as histórias de pessoas que já passaram ou ainda passam por algum tipo de conflito, seja ele externo ou interno, e que a partir deles foram transformados, marcados de alguma maneira. Que em meio às peças embaralhadas, tiveram e continuam tendo esperança para acreditarem na transformação. Que no fim deste trajeto você possa encontrar em algumas destas histórias a esperança e a inspiração para vencer as barreiras que surgirem no meio do caminho. Boa leitura! Equipe do Unicom

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...MAS SE COMPLETAM Taís Fortes Editora Repórter

Bruno de Azevedo Sub-editor Repórter

Naiara Silveira Editora Gráfica Diagramadora

Giovana Brasil Editora Fotográfica Repórter

Gabriela Etges Editora Multimídia

Taliana Hickmann Revisora Repórter

Letícia Santos Revisora Repórter

Andriele Batista Repórter

Jéssica Ferreira Repórter

Luiza Goulart Repórter

Matusalem Zago Repórter

Sarana Fonseca Repórter

Taísa de Franceschi Repórter

Demétrio de Azeredo Soster Professor orientador

Vagner Cerentini Repórter

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PÂNICO

A luta diária de quem sente medo de ter medo Taís Dörr Fortes

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ra 20 de setembro de 2016. João*, 25 anos, estava sozinho em casa, quando começou a sentir falta de ar, a boca seca e uma sensação de sufocamento. Esses sintomas eram seus velhos conhecidos, devido às crises de ansiedade que já havia sofrido. Porém, o que era corriqueiro evoluiu e deu origem a taquicardia, tonturas, tremores em todo corpo e dificuldade de enxergar. Devido à gravidade do quadro, João precisou avisar seus pais, que o acompanharam até o hospital, onde ele foi medicado – única forma encontrada para

acalmá-lo – e orientado a buscar atendimento psiquiátrico. Aquilo, que inicialmente parecia ser mais uma crise forte de ansiedade ou até mesmo algum problema cardíaco, foi diagnosticado como síndrome do pânico: transtorno que leva as pessoas a sentirem níveis extremos de ansiedade e terem um medo quase insuportável de morrer. De acordo com a psiquiatra Ivone Claudia Cimatti, os pacientes descrevem as crises de pânico como uma situação de pavor, na qual não é mais possível respirar. “É uma sensação de morte súbi-

ta”, observa a profissional. Para Pedro*, 41 anos, que também tem síndrome do pânico, o transtorno gera o sentimento de que algo pode ferir a sua integridade física a qualquer momento. “Muitas vezes não tem explicação lógica”, destaca. A psicóloga Gabriela Ballardin Geara explica que depois que as crises de pânico começam, é importante os pacientes lembrarem que o período inicial – de em média 15 minutos - é o pior, pois ele comporta o agravamento dos sintomas. E que os acessos duram, no máximo, 30 minutos, porque devido ao

estado de pânico ser tão exaustivo, o corpo não consegue suportar mais tempo. “Ela vai piorando durante 15 minutos e depois diminui a intensidade dos sintomas. Então, a pessoa que tem ataques de pânico precisa lembrar que passa. É só deixar o tempo passar. O corpo não suporta ficar nessa situação por muito tempo. Mesmo que esse período de duração da crise pareça uma eternidade para o paciente, ele precisa tentar lembrar disso”, frisa. * Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes

A síndrome do pânico é caracterizada pela sensação de morte súbita e por momentos de extremo desespero Ana Almeida

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Após a primeira crise é comum que outras aconteçam

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pós a primeira crise de pânico é comum que os pacientes sintam medo de passar pela mesma situação novamente, dando origem a uma reação em cadeia e um conflito interno de luta diária para vencer o pânico de ter pânico outra vez. “No meu caso, esse sentimento veio sobretudo após a crise mais forte que tive, no dia 20 de setembro do ano passado. Nos dias seguintes a ela foram comuns novas crises ou situações de desconforto que antecedem uma crise”, conta João. Com isso é possível que alguns pacientes comecem a sentir ‘bloqueios’ para desempenhar atividades simples e rotineiras. No caso de João surgiram dificuldades relacionadas ao trânsito, à rotina de trabalho e à vida social. “Houve dias em que tive

que sair do trabalho e voltar para casa devido à complexidade de encarar a realidade. Pequenas coisas, as mais simples, passaram a ser difíceis. É como se tudo passasse a se guiar pela síndrome e o temor de novas crises”, compartilha. Para João a síndrome do pânico é um conflito interno para ser vencido diariamente, em especial, porque, após o diagnóstico a doença proporciona uma perda na qualidade de vida. “É como se tudo se tornasse mais difícil devido ao medo de sofrer novas crises. Com isso, a pessoa passa a evitar determinadas situações, sobretudo relacionadas ao convívio social”, relata João, que hoje tem a doença controlada e trabalha normalmente. Entretanto, ele lembra que enfrentando essa realidade e buscando

ajuda é possível superar os percalços ocasionados pelo transtorno. “Não se colocando como vítima, mas enxergando esse momento como uma oportunidade de aprendizado, é possível deixar essa fase para trás e voltar à normalidade ou algo próximo disso”, incentiva.

Quando não tratada, a síndrome do pânico pode ser a causa de suicídio.” Ivone Claudia Cimatti

O jovem também afirma que é indispensável, em primeiro lugar, que a pessoa diagnosticada com síndrome do pânico procure ajuda médica e não desista de buscar uma melhora, caso os resultados demorem a chegar. “O mais importante é ser positivo em relação ao problema,

encarando-o como uma oportunidade para rever práticas, adotar hábitos de vida mais saudáveis, ser mais flexível consigo mesmo e, a partir de tudo isso, até se tornar um ser humano melhor”, menciona. A psiquiatra Ivone Claudia Cimatti acrescenta ainda que é importante que as pessoas saibam mais sobre a síndrome do pânico e busquem ajuda. “Quando não tratada, ela pode ser a causa de suicídio. Porque a sensação de pavor é tão grande e as pessoas às vezes têm muitas crises seguidas. Assim, elas preferem morrer a viver com o sofrimento”, destaca a profissional, ao comentar que não é necessário ter vergonha de sofrer com o transtorno, porque a pessoa não sente isso porque quer, é fraca ou não é capaz de dominar seus sentimentos.

Nem tudo depende da nossa vontade

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compreensão sobre a doença é outro desafio encontrado por quem tem síndrome do pânico e pelas pessoas em geral. Para João uma simples caminhada também gerava desconforto, porque ele tinha receio de sofrer uma crise e não encontrar a ajuda de alguém ou então precisar buscar auxílio de um estranho. “O que pode ser des-

gastante, uma vez que a maioria das pessoas não têm conhecimento sobre a doença e explicar pode soar incompreensível. Eu tive dificuldade de entender o que estava acontecendo, porque as crises desencadeiam reações físicas, mas que são fruto do psicológico”, revela. Ivone Claudia percebe que, com várias doenças psiquiátricas,

as quais envolvem alteração de pensamentos, sensações, sentimentos e comportamentos, muitas pessoas permanecem tendo algum preconceito, “porque ainda acham que tudo depende cem por cento da nossa vontade. Que basta a gente querer, que podemos comandar o nosso cérebro. E sabemos que isso não é verdade. Temos o co-

mando de grande parte do cérebro, entretanto, quando a doença se estabelece perdemos esse comando. Então, algo maior, que é biológico no funcionamento desse órgão não é mais controlado conforme a nossa vontade”, pondera a especialista.

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CRÔNICA

O sufoco silencioso e cruel Naiara Beatriz Silveira

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êm dias que não dá para aguentar. Têm dias em que eu acordo, como milhões de outros no mundo, querendo que o dia acabe ali mesmo, na cama da qual nem levantei ainda. Sabe aquela sensação de confiança, quando você tem certeza que tudo dará certo? Eu não. Nunca senti isso. Os meus dias são preenchidos pela agonia e pela insegurança. “Eu não sou boa o suficiente”, diz a voz na minha cabeça. E eu acredito. Acredito todos os dias, quando ela me diz que nada dará certo no trabalho, que aquela prova vai ser horrível e que eu vou, com certeza, pegar recuperação na disciplina toda. Que aquela pessoa no ônibus está me olhando e me

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julgando, que deve ter algo no meu rosto, ora bolas. Acredito quando me dizem que não sou boa - por causa dela, que me ensinou desde pequena a aceitar a minha inferioridade. Ela fez eu tomar para mim responsabilidades que não eram minhas para agradar os outros. Fez eu me esconder em piadas, brincadeiras e joguinhos que me machucaram, mas faziam os outros sorrirem e gostarem de mim. Mas não por muito tempo. Quem gostaria de uma aberração como eu? Ela me fez acreditar que era minha amiga, é claro. Me poupava de sofrer na frente dos outros e me fazia me fingir de forte. Até porque, isso que importa, não é mesmo? Não deixar que os outros saibam que, por dentro, estava quebrada em in-

contáveis pedaços pontudos, que me machucavam a cada respiro. Todos os dias são cheios de dor. Todos os dias ela se agarra, invisível, às minhas maiores inseguranças e medos - e se alimenta deles. Cada um ampliado até que a minha existência seja um tormento. E quando tudo parece bem, quando ela parece ter me dado uma trégua, tudo volta ao começo em um ciclo interminável de agonia. Eu me sinto inferior e me autossaboto em uma vã tentativa de confirmar tudo o que ela me ensina. Afinal, eu não sou digna de ser feliz. Todos os dias, ela me ganha um pouco mais. Leva um pouco mais da alegria, da

inocência, da coragem, da segurança que já me eram tão raras. Todos os dias ela me destrói mais um pouco, quebrando em pedaços ainda menores a minha dignidade. Pedaços que não podem ser unidos nunca mais. Assim, a vida se torna esse borrão de desejos não realizados, de sonhos esquecidos e de vagas memórias de felicidade. Assim, ela carrega consigo minha alma para a escuridão. Assim, ela me destrói, pouco a pouco, cada dia mais. Assim, a ansiedade faz de meus dias simples sopros de dor em um mundo de um sufoco invisível e cruel.


Ilustração projetada por Saragnzalez - Freepik.com

MEMÓRIAS

Se arrependimento matasse Matusalem Zago de Oliveira

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e arrependimento matasse, hoje eu não estaria contando minha história para você. Achei que era a melhor pessoa do mundo, como se eu fosse invencível. Usava drogas até que num certo dia, de um verão quente, acabei me perdendo. O “cara da boca” foi amigável e logo eu estava vendendo. Muitas pessoas me aconselharam a parar, até que numa festa a casa caiu. A casa não, eu cai. Foram horas de espanto. Entretanto, pelo efeito da droga não lembro bem como foram os procedimentos, apenas do que um guarda me disse: - Aí rapaz, tu deves escolher para qual facção vai entrar! Decidi meio que sem pensar e em poucos minutos estava na cela 4c com mais cinco apenados – pessoas gente boa para a situação. Logo ficamos amigos e eles me protegeram dos chefes lá dentro, através do pagamento de alguns reais que minha mãe depositava em créditos de celular. Depois do terror inicial de estar na prisão, logo me acostumei. No entanto, aquilo é uma anarquia. O barulho do abre a fecha de cadeados e fechaduras era como os do relógio. Era assim que eu contava o tempo lá dentro: imaginava que esses eram os ponteiros do velho relógio de parede pendurado na sala da casa da minha avó. Era assim que eu me distraía. Contudo, hoje esses sons ainda me perturbam em terríveis pesadelos. Perco noites de sono e, às vezes, prefiro nem dormir. Foram longos nove meses, dois dias e sete horas. Mas, para mim, com certeza, pareceram quase 15 anos. Aprendi muito, mas não quero isso nem para mim, nem para nenhum amigo. Achei que ia ser a melhor coisa do mundo estar livre novamente, como um pássaro, mas

quando senti o gosto doce do vento calmo tocar meu rosto, pude ver que nada seria como antes. Ao sair do regime prisional brasileiro, por lei, eu deveria estar integrado novamente à sociedade, mas não é bem assim que acontece. Sou só mais uma estatística. Um número. Alguém sem oportunidade de emprego ou expectativa de vida. Todos os dias quando eu saio na rua, ouço uma piada boba: “e aí como é o curso de canário?” Esse tipo de coisa deixa a gente para baixo. Muitas vezes acho que o melhor é ficar recolhido em casa. Não gosto mais de sair durante o dia, prefiro viver escondido, como se eu tivesse cometido um assassinato. Como sou forte, tenho bons amigos ao meu lado e ainda mantenho minha mente aberta com fé, procuro quase todos os dias um emprego e até já trabalhei informal, mas foram serviços rasos e braçais. Tenho experiência em corte de couro, e até chego na fase de entrevistas, mas a resposta sempre é a mesma: seu histórico é bom, vamos pensar e te ligamos. Mas nunca ouço o telefone tocar. A ligação nunca chega. Hoje, mesmo reabilitado e sem usar drogas, já se passou mais tempo do que fiquei lá dentro, e o emprego ainda não veio. Espero, com sorte, ao fim dessas últimas palavras, estar empregado. Lá dentro foi um caos, mas aqui estou numa tempestade que parece nunca chegar ao fim.

* Essa carta foi escrita por um jovem de 23 anos que esteve preso em regime fechado.

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MISSÕES DE PAZ

Realidade marcada na memória Taliana Hickmann

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Taliana Hickmann

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magine enfrentar todos os dias a fome e a sede, não ter as mínimas condições de saneamento básico e estar cercado pela violência e pela pobreza. Ao desembarcar no Haiti, em 2014, foi este o cenário encontrado em algumas regiões pelo 21º contingente da Missão das Nações Unidas para Estabilização (Minustah). Entre os militares, dez eram vera-cruzenses, do 7º Batalhão de Infantaria Blindado (BIB), de Santa Cruz do Sul. Após permanecerem seis meses no país, eles relatam a crise social e econômica enfrentada por algumas comunidades. “Imaginava que existia pobreza, mas era muito pior”, conta o cabo Richard Gabriel Klinger, 23 anos. Ele e os militares Daniel Anderson Frantz, 24 anos e, Gilnei

Ipê da Silva, 25, ficaram em uma base em Cité Soleil, comunidade violenta, com mais de 300 mil moradores. Do alto dos postos de vigilância eles puderam observar a dura realidade vivida pelo povo haitiano.

Em casos extremos, comiam bolachas de barro, feitas de argila e gordura e que secavam ao sol.” Daniel Anderson Frantz

Richard e Daniel mostram imagens e objetos do Haiti

Para o cabo Tiago Alexandre Silva, 23 anos, instalado na base General Bacellar, em Porto Príncipe, a fome e a falta de água potável eram problemas constantes. Por isso, uma das cenas mais frequentes vistas pelos militares era das pessoas pedindo por “dlo”, que significa água no créole, língua nativa. Além disso, eles viram de perto as dificuldades da população para alimentar-se e ter uma fonte de renda. “Havia

uma senhora que cozinhava sopa de aspecto horroroso. Ela colocava em uns potes e vendia. Outra descascava cana-de-açúcar e as comercializava em saquinhos. Em casos extremos, comiam bolachas de barro, feitas de argila e gordura e que secavam ao sol”, conta Daniel. As crianças também sofriam muito por não ter alimento. O cabo Daniel relata que era difícil ver os menores pedindo algo

para comer. “A gente via crianças passando fome. Elas diziam muito “pitit grangou”, que significa ‘criança com fome’”, em créole. Para o cabo Gilnei o mais doloroso era ver as pessoas comendo as sobras do lixo. Sobre esse aspecto, os vera-cruzenses contam que certo dia, um supermercado largou caixas com carne podre fora e, que ao perceberem, as pessoas brigaram pelos pedaços. Depois, lavaram


com água suja e comeram. O curioso, para eles, foi vê-los ingerir o alimento, mesmo sabendo que era carne podre e reclamarem mais tarde de dor de estômago. Se viver nestas circunstâncias já é difícil, as péssimas condições de higiene e a falta de saneamento básico só agravam a situação. Richard conta que alguns tomavam banho nas valetas e no meio do esgo-

to. “Eles tiravam o lixo para o lado, pegavam um potinho e se lavavam”, explica. A precariedade era de proporções tão altas que algumas mulheres se prostituíam com homens que tinham melhores condições de vida e, assim, podiam ter a chance de tomar um banho com água limpa. Apesar das recordações sobre as dificuldades passadas pelo povo haitiano, os militares também lembram da boa

relação entre a população e as tropas brasileiras, especialmente com as crianças. “Era bonito de ver. Durante as patrulhas, elas nos viam e gritavam: ‘Hey, ou’ (Ei, você) e, quando chegávamos perto, davam um ‘soquinho’ na nossa mão, como forma de cumprimento”, relembra Daniel. Além disso, Gilnei relata que a felicidade das crianças os contagiava. “Elas eram um incentivo para nos manter focados na missão”, conta.

Passados quase três anos da Missão de Paz que integraram no Haiti, os militares vera-cruzenses ainda carregam as lembranças da experiência e agradecem por desfrutarem de condições dignas para viver. “Amadureci muito por ver de perto as pessoas passando dificuldades e, hoje, valorizo mais as coisas”. Daniel completa: “é algo que está na nossa memória e jamais vamos esquecer”.

Entenda as Missões de Paz no Haiti Em 2004, uma sequência de protestos que culminaram na queda do presidente haitiano Jean Bertrand Aristide - acusado de corrupção - e sinais de que uma guerra civil poderia instalar-se no país, levaram o Conselho de Segurança da ONU (CSONU) a criar a Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (Minustah). Desde seu início, a operação foi comandada por um general do Brasil e em junho de 2004, os primeiros soldados chegaram ao território haitiano. A ação teve como objetivo lutar para res-

tabelecer a segurança, a proteção às comunidades, os direitos humanos e a dignidade da população haitiana. Após 13 anos de atuação, em 13 de abril de 2017, a CSONU comunicou a decisão de extinguir as Missões de Paz no Haiti. No total, 37 mil militares participaram das operações. A última patrulha foi realizada no dia 30 de agosto, na comunidade de Cité Soleil, em Porto Príncipe. Desde então, a responsabilidade pela segurança do Haiti é da Polícia Nacional Haitiana (PNH).

Grandes problemas e soluções distantes

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erguntamos aos militares vera-cruzenses qual foi a contribuição deixada por eles no Haiti e eles responderam que fizeram a manutenção do trabalho realizado desde 2004, mas que eram mínimas as chances de superação da crise. Diversos aspectos impedem um avanço social e econômico, tais como a violência, a acomodação das pessoas em relação à vida que

levam – acostumadas a receber muita ajuda - e a falta de incentivos do governo. Daniel lembra que em algumas regiões havia conflitos armados. “É como nos filmes, existiam gangues de bairros rivais que se enfrentavam”, explica. Contudo, desde a instalação das tropas brasileiras no país, a violência tem sido superada. “O povo nos agradecia por mantê-los seguros”, conta Gilnei.

Ao se voluntariarem para a missão, os militares estavam esperançosos em contribuir com o progresso do Haiti, mas chegando lá perceberam que o avanço também dependia de educação, cultura e infraestrutura. “Era comum vê-los jogando lixo no chão, aliás, nem lixeira existia”, relata Daniel. Para os brasileiros, eles se comportavam assim porque não

tinham perspectivas de mudanças. Richard diz que muitos haitianos pensavam em vir para o Brasil e tentar uma vida mais digna. “O problema é que só conseguiam juntar dinheiro para passagem e chegavam aqui sem nada”, acrescenta.

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O FIM

Quando uma vida acaba Giovana Garin Brasil

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ma sexta-feira, dia quente, 16 de dezembro. A tarde passou tranquila na Volta da Charqueada, em Cachoeira do Sul. Os hóspedes da Pousada da Margarete tomavam café da tarde quando tudo começou. Às 17h20, ouço pessoas relatando que alguém havia sido atropelado quase em frente à pousada, que também é minha casa. Primeiro instinto que tenho é o de socorrer, tentar ajudar. A cabeça de jornalista fica em segundo plano quando as mãos de técnica em enfermagem só querem salvar. Ao chegar no local, a primeira impressão é de choque. Uma menina de apenas nove anos marcava com o seu sangue o asfalto quente. Ela havia sido atropelada por uma carreta, carregada com farelo de soja. A morte foi instantânea. Priscila Flores Espíndola havia saído do último dia de aula, o clima era de alegria e início de férias. Por alguns segundos, não consigo

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pensar. Mas, como num clique, cubro o corpo da menina, não é necessária tamanha exposição. Depois de saber que nada mais eu poderia fazer por aquela criança, a jornalista entra em cena e quer descobrir o que aconteceu de verdade. Aí, nada melhor do que ir diretamente na fonte. O motorista da carreta, claramente em estado de choque e assustado, me conta tudo em detalhes. Ele relata ter visto as crianças enquanto passava pelo local, que havia desviado do pequeno grupo. Ao perceber que o pior havia acontecido, ele diz imaginar que Priscila tenha caído para o lado e, de alguma forma, as rodas traseiras passaram por cima da menina. No mesmo momento em que converso com o motorista, bem perto dali a irmã da menina grita desesperada por Priscila. Ela estava ao lado da irmã no momento do acidente, viu tudo acontecer. Nesse momento, meus olhos enchem de lágrimas, a saliva desce difícil, o coração acelera e as mãos tremem. É difícil ver de tão perto, quase que instantaneamente,

uma tragédia acontecer. Mas o pior choro ainda não havia sido derramado. Logo depois, quem chega é a mãe de Priscila. Desesperada, tenta se aproximar do corpo da filha, que está no asfalto, irreconhecível. O desespero de uma mãe que perde um filho é impactante, me atinge em cheio. Fico realmente constrangida e me sinto mal por fotografar a cena, mesmo que o faça da forma mais ética possível. Quando acredito que nada mais chocante poderia acontecer naquela tarde, que havia começado de forma tranquila, o pai da menina chega ao local. Ao entender o que está acontecendo, desmaia e vai ao chão. Um homem aparentemente forte, mais de 1,80 metros de altura, desaba como uma fruta madura que cai do pé. Uma sucessão de cenas tristes, uma família que jamais seria a mesma depois daquela fatídica tarde. Uma comunidade inteira abalada pela perda de uma criança, refletindo sobre como ela tinha uma vida inteira pela frente. Uma tragédia poucos dias antes do

Natal. E eu só conseguia pensar em como seria o fim de ano dessa família, com tanta tristeza nos corações daquelas pessoas. Naquela noite foi difícil dormir. A todo momento aquelas cenas tristes e desesperadas vinham na minha mente e me levavam a pensar: “e se fosse com a minha família?”. Impossível não pensar nos meus sobrinhos, nas minhas crianças, que estudaram na mesma escola e que faziam o mesmo trajeto todos os dias. A profissão tem muitos desafios e sabemos disso ao entrar na faculdade. Mas, às vezes, é mais difícil exercer a nossa profissão do que imaginávamos. Embora horrível, aquela situação me mostrou que ainda somos de carne e osso e que as coisas ainda nos chocam. A dor da perda de uma família, o luto de uma comunidade e aquele asfalto quente manchado de sangue me provaram que ainda não cedemos a nossa humanidade às garras da tristeza. * Texto premiado no 30º SET Universitário da PUC RS, na categoria Jornalismo Opinativo


Em busca de liberdade

Uma história contada nos pagos de Encruzilhada do Sul retrata um conflito que até hoje transforma quem a ouve. Uma narrativa marcada por preconceito e que serve como repúdio à prática da escravidão.

Andriele Batista Fotos cedidas por Nei Carvalho

E o canto de Maria chamou atenção de quem desejava seu mal; Reza a lenda que no tempo da escravatura se encontrava Maria, uma escrava rebelde e impetuosa;

Era livre na alma e odiava o cativeiro; mas passarinho preso também canta...

Arrancada de sua gente, Maria foi levada para o tronco; Os capitães do mato já haviam lhe prendido antes, mais uma vez não seria problema algum;

Um certo João bondoso, que não se sabe certo quem, libertou-a da pesada corrente e de seus piores pesadelos;

E no seu compasso os seus inimigos aguardavam a sua queda;

Como cães em busca da caça, foram buscar a escrava fujona;

Maria não era livre ainda, continuava sendo perseguida e mais uma vez foi encontrada;

Não havia saída. A escrava impetuosa cansada da perseguição despencou do penhasco no leito do arroio;

Buscando fugir subiu cerro acima; cada passo ia de encontro com as batidas aflitas de seu coração;

O drama da escrava comoveu a redondeza e ela foi canonizada pela crendice popular com o nome de Maria Santa. E o arroio que abraçou seu corpo em suas águas carrega seu nome por toda a eternidade.

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CIDADANIA

O eco de socorro que nunca se cala Taísa de Franceschi

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pedido de socorro vem das crianças, das famílias, de uma minoria de Organizações Não Governamentais (ONGs) que enxergam a gravidade relacionada ao tráfico de crianças. O problema é que ninguém escuta. Eu não vejo outra explicação a não ser dizer que a população do país se acostumou com isso e age

como se fosse normal. Todo ano são cerca de 40 mil crianças que desaparecem no país. Para se ter ideia, podemos comparar esse número com os habitantes de Rio Pardo, cidade vizinha de Santa Cruz do Sul, e localizada a 140 quilômetros de Porto Alegre. É como se uma vez por ano toda população do município simplesmente de-

saparecesse e ninguém fizesse nada. Para ser ainda mais assustador, esses são números estimados do governo federal, que se multiplicam se pensarmos que no nosso país, onde alguns têm tanto e outros vivem em condições tão precárias, existem pessoas que nem sabem onde buscar ajuda quando um filho desaparece.

Histórias que se repetem

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ense em um pequeno garotinho de apenas 7 anos: certo dia, quando brincava na frente de casa ele desapareceu, simplesmente sumiu. Ali os brinquedos ficaram, o olhar inocente ficou, e a infância se perdeu. Esse menino representa mais que uma ficção,

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ele é o relato de muitas histórias, é a lembrança de incontáveis lágrimas. Situações de desaparecimento assim, acontecem não só em frente às casas, mas em pracinhas, nos portões de escolas e tantos outros espaços. Não existe lugar, hora e tampouco classe social. Inocentes e frágeis, os pequenos se tornam alvo dos sequestradores. A partir do momento em que desapa-

recem, o pensamento do que pode estar acontecendo com essas crianças é capaz de torturar a vida de um ser humano. Imagine como é para um pai e uma mãe pensar que o filho pode estar sendo usado para trabalho escravo, que pode estar sofrendo abuso sexual, ou ainda que pode ser vítima do tráfico ilegal de órgãos terceiro maior mercado negro do mundo.

O tráfico de crianças é a maior violação dos direitos humanos que pode existir, mesmo assim movimenta um mercado bilionário no país de forma despercebida.


O tráfico não tem fronteiras

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uando se fala em tráfico de crianças, logo se pensa nas periferias das grades cidades e nas regiões mais subdesenvolvidas. Sim, nesses lugares também acontece. Entretanto, o tráfico não limita fronteiras e essa realidade está bem mais próxima de nós do que podemos imaginar. Uma pesquisa de 2002 demonstrou a gravidade da situação no país e evidenciou regiões ricas do Rio Grande do Sul com intenso fluxo de tráfico com países vizinhos, como a Argentina, o Paraguai e o Uruguai, onde os criminosos usam a grande movimentação

para se infiltrar. Parece que 2002 foi a tão pouco tempo, mas já se passaram 15 anos. Que coincidência ser exatamente esse o número. Quinze é a idade de debutar, é a euforia de entrar oficialmente na adolescência. Enquanto muitos vivem esse sonho, outros tentam suportar a angústia, o sofrimento e o medo que a separação de um filho pode trazer, e em pequenas memórias não deixam a esperança do reencontro acabar. Durante esses 15 anos o Ministério da Justiça vem tentando elaborar um site para cadastro

de crianças desaparecias. Começou em 2002, depois 2010, depois 2011, mais recentemente uma versão em 2014, mas tudo inútil. Hoje o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, criando pelo órgão público registra menos de 1% dos casos de desaparecimentos no Brasil. Quinze anos para desenvolver um site que não funciona. Quinze anos enrolando famílias. Quinze anos sem prestar ajuda. Quinze anos de sofrimento. Até onde isso vai, eis a questão. Todos os anos, no dia 25 de maio - Dia Internacional das Crian-

ças Desaparecidas -, existe uma conscientização mundial sobre o assunto. Lamentável é perceber que no dia 26 as pessoas já esqueceram essa que é a maior violação dos direitos humanos. Enquanto isso muitas crianças, não só no Brasil, mas no mundo todo, continuam sendo escolhidas para não ter mais escolha. Algo está errado, e precisa ser mudado. O tráfico de crianças é a maior violação dos direitos humanos que pode existir e mesmo assim movimenta um mercado bilionário no país de forma despercebida.

Para cada brinquedo que fica no caminho, o sonho de uma vida se perde Taísa de Franceschi

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AO ANOITECER

Viver nas ruas: a Santa Cruz miserável Luiza Faleiro Goulart

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em que tomar quatro comprimidos por dia – o médico alcançou alguns remédios para a moradora de rua, que reclamava de dor no peito semanas após o parto. Era o último local que a equipe visitava em Santa Cruz do Sul, na noite fresquinha daquela quarta-feira, pouco antes das 21 horas. Era um cenário típico de família grande no momento da janta: alguns esperavam para se servir, outros já tinham comido e estavam em frente ao Albergue Municipal. A agitação foi pouca quando a equipe do Consultório da Rua chegou. Eles já estão acostumados a lidar com o grupo ligado à Secretaria de Saúde. Após receber os comprimidos, ela me olhou e questionou:

- Tu és nova? Tive que responder, mesmo com medo, que estava apenas acompanhando o grupo. Não usei o bloco de anotações naqueles momentos – acredito que eles carecem de sua privacidade. Respeitei, ainda que chocada, a vida na rua daquelas pessoas que, provavelmente, um dia chegaram a ter um lar. Uma família, como a interlocutora explicou. Uma aparência de menos de 30 anos e já no terceiro filho. O desconhecimento dela era assustador. Chegou a perguntar a uma integrante da equipe como os bebês respiravam dentro da barriga. As três crianças estão na Associação Comunitária Pró Amparo do Menor (Copame). É lá onde recebem atendimento e vivem, longe

da figura materna. Naquela noite, 23 pessoas estavam no albergue. O número é considerável e pode parecer até assustador. Em uma das voltas com a equipe, eles comentaram a dificuldade que os moradores de rua têm em se adaptar às regras da sociedade comum. Dentro do abrigo eles precisam se adaptar. Há hora para dormir, para acordar e para comer. Isso é tudo o que não existe quando se passa muito tempo na rua, especialmente comida. Duas refeições por dia são garantidas quando eles resolvem ir para o albergue. Ver um grupo inteiro se alimentando foi motivo de orgulho para a equipe do Consultório da Rua. Falaram inúmeras vezes sobre o quanto eles, em geral, estavam bem. Na sala de jan-


tar, a imagem clássica de um refeitório de escola: uma mesa longa com pessoas sentadas e algumas aguardando o momento de se servir. O cheiro da comida feita em grande escala também lembra o espaço: nem um pouco caseira e de torcer o nariz. Alguns, depois de comer, chegavam a passar a mão na barriga e a sair para relaxar em frente ao albergue. No local, não há necessidade de estar arrumado no entorno da mesa. O conforto era grande: andavam de pés descalços, não usavam camisa. As roupas não combinavam e isso pouco importava para as pessoas que estavam ali. Eles aceitam a forma como são. Mesmo com o vício; mesmo com a dificuldade diária. Depois da janta, o grupo, aos poucos, passa pela porta principal do albergue e pega uma pasta de dentes coletiva. Um dos cuidados que, possivelmente, eles adquirem quando resolvem se enturmar com as regras de um refúgio coletivo. A faixa etária de quem frequenta o local varia. O sofrimento de quem vive na invisibilidade transcorre pela pele. Uma barba por aparar pode envelhecer.

Ao chegar ao local, o médico apontou um dos únicos idosos que vivem na rua. O homem negro estava sentado, quieto e sozinho, em frente ao albergue em um dos bancos. Além dele, há outra idosa na mesma situação. Ela passa o dia defronte ao antigo prédio da Câmara de Vereadores. Tem família, mas gosta de estar na rua e não passa a noite no albergue. Todas as quartas-feiras o grupo se encontra às 19 horas em uma sala no segundo andar do Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (Caps AD III), localizado na Rua Marechal Floriano. Aos poucos, a equipe de cinco pessoas chega e começa a se organizar e, antes de chegar ao albergue, passa por outros pontos da cidade. Saíram do prédio por volta das 19h30, um médico, uma técnica de enfermagem, dois agentes redutores de danos e um assistente social carregando uma lanterna, álcool gel e outros utensílios necessários para as consultas como planilhas, remédios e folhas para recomendações médicas. O grupo trabalha além do horário normal no Consultório da Rua, projeto

que não tem materiais ou equipe própria. O número de pessoas que vivem nas ruas em Santa Cruz chega a 47. A cada semana, a estimativa varia. São muitos andarilhos que transitam pelo município em busca de emprego ou apenas ficam de passagem. Preferem andar sem os documentos. Alguns têm passagens pela polícia e por isso ficam sem a identificação. A maioria deles são homens. Ter depressão é comum. O primeiro atendimento que liga essas pessoas à saúde pública é feito através do Consultório da Rua. Eles trabalham para criar um vínculo e para que as pessoas saibam a quais serviços têm direito. Também ajudam àqueles em situação de rua no tratamento e na prevenção das doenças que podem contagiar a todos, como tuberculose, sífilis, AIDS e hepatite. Geralmente, os moradores também têm limitações motoras, especialmente de lesões que não foram curadas. Cegueira também é muito comum. O primeiro ponto que o grupo visitou naquela noite foi a ponte entre o Arroio Grande e o Distrito Industrial – de baixo da estrutura,

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um casal vive. O local é de difícil acesso. Tão escuro que é necessário levar uma lanterna para entrar em contato com os habitantes. É frio e um dos locais que nunca se imaginou que alguém viveria. Um abrigo pouco notado por alguém que passa pelo trecho todos os dias. O casal tem idades entre 30 e 35 anos. Ele chamou a atenção da equipe – estava arrumado. Mesmo com um braço sem movimento e um olho cego, decidiu que iria começar a procurar emprego. Ela estava indo ao atendimento de saúde por conta própria. Portadora do vírus HIV, mesmo com a conscientização feita pelos profissionais de saúde, ainda mantém relações sexuais sem o preservativo. O grupo segue em direção ao Bom Jesus. A abordagem foi rápida a uma mulher e

dois homens sentados na calçada em uma ruazinha sem movimento. Um deles tinha um cachimbo na boca e não sentia vergonha ao tragar a pedra de crack. Os três chegaram perto do carro e, com a janela baixa, conversaram com a equipe. A mulher olhou para o carro, estendeu a mão para o pessoal. Chegou a ouvir comentários sobre a calça nova – já é conhecida deles. Pediu a eles um pacote de camisinhas. Ao contrário do que pensei, os preservativos são usados unicamente para trocar uma transa por droga. Em outra ruazinha do bairro, os profissionais abordaram um grupo. Bebiam e usavam droga descaradamente. Na medida em que a Doblô chegou e a equipe descia, os que não queriam atendimento saíram e se sentaram em um muro.

Foi mais uma abordagem em que não pude descer do veículo. Um homem, de boné, tão magro que lembrava uma caveira, foi até o carro e cumprimentou o motorista. - E aí, grandão! O condutor respondeu com as mesmas palavras. Apertou a mão do homem. No fim de cada consulta, a equipe retornava e repassava, de mãos em mãos, um grande frasco de álcool gel. Por trás de uma catedral, uma grande festa alemã e conservadorismos que ainda não foram superados, há uma Santa Cruz do Sul que poucos conseguem ver. Essa Santa Cruz que, além de nojo, dá pena. Os piores sentimentos que um ser humano pode sentir. A pena e a culpa de ver a profunda deterioração do próximo. E, pior ainda, não poder fazer nada – além de sentir repulsa e pena.


O FIM

Brasil e o roubo a Milena Konzen*

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mbora com todas as falhas, a Operação Lava-Jato presta um grande serviço à sociedade brasileira, trazendo à tona a corrupção entre o público e o privado. Relação esta que atravessa vários governos, partidos e políticos.

M IL Enquanto grande parte da população passa por dificuldades financeiras, alguns políticos estão, literalmente, com os bolsos cheios. Ao mesmo tempo em que são encontrados 51 milhões de reais, escondidos em malas, frutos de uma trambicagem, dezenas de ajustes poderiam ser feitos, como investimentos na precária saúde pública, melhorias na educação e am-

pliação da segurança. Para se ter uma ideia, somente com o valor encontrado em um apartamento, que supostamente está vinculado ao político baiano Geddel Vieira Lima, daria para pagar quase metade da dívida do Rio Grande do Sul com a União. Situação que mexe no cotidiano de milhares de professores, que tiveram seus salários parcelados sob alegação de que o governo precisa respeitar esse compromisso com o ente federal. Mas, a falta de punição é certamente o principal fator a ser

apontado. Com mais de 650 mil presos, o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Apesar dos elevados números, muitas vezes, os envolvidos corruptos “não pagam” pelos crimes cometidos. E, quando pagam, vivem uma realidade bem diferente dos demais prisioneiros. Privilegiados, podem cumprir penas reduzidas e em regime semi-aberto, onde permanecem nas suas próprias casas, coberturas e condomínios de luxo. Longe dessas regalias, os presos comuns permanecem amontoados em cubículos superlotados. Infelizmente, a lei não é para todos. Nem a justiça. * Aluna da disciplina de Jornalismo Impresso II

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ACEITAÇÃO

O que fala mais alto: amor ou religião? Giovana Garin Brasil

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suas crenças são mais fortes do que o amor por seus familiares? É senso comum. É difícil que alguém queira um filho ou filha homossexual. Todos sabem o quão complicada é essa jornada, seja por problemas internos ou externos, como enfrentar o julgamento da sociedade e a não aceitação. A descoberta da sexualidade é um momento conturbado e de muitos conflitos, ainda mais quando não se segue um padrão

imposto pela sociedade, quando não se entende os sentimentos ou não se aceita a diferença. Jovens que se descobrem homossexuais podem sofrer muito, de forma ainda mais intensa quando vêm de uma família religiosa. A crença é de que se está cometendo um pecado. Mesmo assim, o amor pode quebrar barreiras. Assim foi para três famílias da região: fronteiras ultrapassadas, não com poucos desafios.

Cada pessoa segue uma religião diferente, tendo que entrar em conflito com suas crenças para seguir o amor pelos seus familiares homossexuais. Cada doutrina vê o tema de uma forma, assim como cada indivíduo. Uma avó católica desde que se conhece por gente, uma tia espírita há quinze anos e uma mãe evangélica desde 2000. Qual é a relação entre elas? O amor por suas consanguíneas que as fizeram rever princípios.

A palavra de Deus é para todos, sem distinção de sexo, idade ou gênero? Naiara Silveira

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omossexuais estão condenados a passar a eternidade no inferno.” É nisso que muitos católicos fervorosos acreditam, pois, de acordo com eles, a Bíblia dá a seguinte orientação em Levítico capítulo 18, versículo 22: “não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante.” Entretanto, está também neste mesmo Livro, em Mateus capítulo 5, versículos 27 e 28 que “qualquer homem que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”. Como qualquer outro texto, as pessoas interpretam como bem entendem. Mas, é claro, o objetivo não é o julgamento de princípios ou crenças alheias, e sim abordar um tema muito mais importante:


religião evangélica acredita que a homoafetividade não provém de Deus, pois Ele criou o homem e a mulher para se casarem e formarem uma família.

Maria dos Santos, católica de 61 anos, teve de enfrentar seus valores religiosos para aceitar a homoafetividade da neta. Mas isso não significa que tenha sido fácil. “Eu deixei nas mãos de Deus. Tenho rezado por

Respeito

se discutido muito essa questão, e é necessário desconstruir esses preconceitos e julgamentos. Até a própria igreja vem repensando isso, mas é uma mudança ainda muito lenta, e de forma resistente”, analisa. Para o pastor evangélico, André Taborda, um dos grandes contratempos da atualidade é a intolerância, o medo do desconhecido. “O problema da intolerância é que as pessoas não entendem e não concordam. Isso é o que traz a inflexibilidade e a imposição de dizer que isso está errado, que eu não aceito e que eu não quero conviver com isso”. Mas ele também acredita que cada ser hu-

mano é único e é responsável por suas atitudes. “Uma coisa importantíssima de se entender é que Deus nos deu o livre arbítrio”, destaca. Mesmo com dificuldades, se tem aprendido a lidar com diferentes sexualidades e orientações, sejam elas quais forem. Pais, mães, irmãos, tios, amigos e sociedade aprendem, aos poucos, a respeitar o diferente. E, mais do que isso, amar a essência e não o estereótipo. Amor esse que nos faz enfrentar coisas pelas quais nunca pensamos passar. Ele, que move montanhas, salva vidas e quebra barreiras inquebráveis. Afinal, o amor fala mais alto do que tudo.

A visão das religiões

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o contrário de algumas doutrinas, a psicologia tem estudado e auxiliado famílias durante as diferentes trajetórias sexuais. A psicóloga Alessandra Silva acredita que “as religiões são instituições normatizadoras que instituem certos padrões a serem seguidos e esperados socialmente.” Para ela, o preconceito integrado à essas crenças afasta as famílias. “Dentro desses padrões, encontra-se, em muitos casos, a aversão e o desconhecimento à população homossexual, gerando o preconceito e conseguinte o afastamento. Atualmente tem

O amor por minha filha sempre foi maior que tudo.” Margarete

Orações para Bobby Uma dica para quem passa por situação parecida ou gosta de histórias emocionantes é o filme “Orações para Bobby”. A obra aborda o conflito entre religião católica e a homossexualidade. O longa foi lançado em 2009 e relata a história real de Bobby, um jovem que se descobre homossexual na adolescência e passa por diversos conflitos até a aceitação. Entretanto, sua família não concorda com sua orientação sexual, principalmente a mãe, levando o jovem de 20 anos ao suicídio. Gerando uma dor imensa em toda sua família, a morte deixa a mãe inconformada. Assim, ela vai atrás de respostas e descobre que se fosse um pouco mais tolerante com seu filho, talvez não tivesse o perdido. Reprodução

ara o espiritismo, o espírito não tem sexo. Pode ser tanto masculino como feminino, dependendo da necessidade de cada reencarnação. A homoafetividade igualmente é uma condição necessária de aprendizado terreno para aquele que a manifesta e para todos os envolvidos - ou seja, para familiares e amigos mais próximos. Já a religião católica acredita que não se condena a pessoa, mas sim o pecado, não deixando de dar atenção, amor e carinho para quem é homossexual. De maneira parecida, a

ela, para que Ele faça o melhor na vida das duas [neta e namorada] e que ela seja feliz”, conta. Para Margarete, evangélica, 51 anos, a descoberta foi um misto de sentimentos, como angústia, tristeza, medo. “Mas o amor por minha filha sempre foi maior que tudo”, afirma. Já para a espírita Sônia, 55, não houve dilemas de aceitação. “Não tive problema algum para aceitar a orientação sexual da minha sobrinha, caso contrário, estaria dando atestado de que não acredito nos ensinamentos do espiritismo, que nos prega a valorização do ser humano acima de tudo e de todas as diferenças”, observa.

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PAÍS

Crise financeira? Kelvin Azzi*

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ense em bilhões de reais desviados do dinheiro público. Pense agora em centenas de malas de dinheiro roubadas do nosso país. A operação Lava-Jato é a maior investigação de corrupção da história do Brasil e, além disso, a cada dia que passa, novas informações e provas são descobertas. Em um país dito “quebrado” e com grave crise financeira, fica fácil descobrir quais são os motivos que levam o Brasil às ruínas. Bilhões e bilhões de reais roubados pelos políticos, sendo que eles, teoricamente, foram escolhidos para cuidar do nosso dinheiro. A hipocrisia de grande parte dos nossos representantes é algo que precisa ser estudado. Embora existam inúmeras provas, sendo elas

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documentos e áudios, o sujeito não reconhece o erro e não confessa o crime que fez. Pior que isso, quando vai se manifestar na imprensa, afirma que o Brasil não tem dinheiro, que é necessária a reforma da previdência e, ironicamente cria novos mecanismos para o cidadão pagar mais impostos. Falando em impostos, pagar imposto não é o problema. O cidadão deve pagar. Mas para onde vai esse dinheiro? É revertido no que? Bom, depois que surgiu essa operação em 2014, sabemos a resposta. Sabemos também que o Brasil tem dinheiro sim, e se fosse usado corretamente, viveríamos em um país razoavelmente bem estruturado e com serviços básicos de qualidade. Segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação,

IBPT, o brasileiro trabalha em média 150 dias por ano somente para pagar impostos. Em 2013, por exemplo, 41% da renda do trabalhador foi comprometida em impostos. Esses dados confirmam e escancaram o tamanho do rombo que essa organização criminosa deixa no nosso país e, sobretudo, desmente políticos que declaram crise financeira. Ora, se o nosso dinheiro não está sendo usado e a qualidade de serviços a qual temos direito está péssima, o óbvio seria que sobrasse dinheiro. O bolso desses elementos que roubam o dinheiro público parece um buraco sem fim. Não há limite! Por que esse processo ilícito está

longe do fim? A impunidade é figurinha carimbada no Brasil e assim não há o que fazer para puni-los. A investigação completará quatro anos no dia 17 de março do próximo ano e parece estar longe de um desfecho. Novos rumos deverão ser abertos para revelar com mais precisão o caminho oblíquo do nosso dinheiro. * Aluno da disciplina de Jornalismo Impresso II


ADOÇÃO

Do preconceito e do abandono à formação de uma família Jéssica Ferreira

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conceito de família nos últimos anos vem se transformando e marcando o mundo por meio de uma evolução natural dos costumes da sociedade. Hoje uma família não é formada apenas por um casal heterossexual, mas, também, por casais homoafetivos. E ela aumenta a partir do momento em que esses casais adotam uma criança. No Brasil não existem distinções para isso, pelo contrário, ca-

sais homoafetivos não somente podem adotar, como adotam. Conforme o Cadastro Nacional de Adoção (CNA), cerca de 7,9 mil crianças estão aptas para serem adotadas. A grande maioria delas tem permanecido em abrigos por anos até que sejam recebidas por uma nova família. Quando não ocorre a adoção, ao chegarem à maioridade, os adolescentes precisam procurar outro lugar para morar.

Ainda que, nos últimos anos o CNA tenha apresentado um crescimento expressivo, falar sobre adoção continua gerando conflitos por conta da discriminação existente na escolha por crianças acima de sete anos, grupo de irmãos, raças e deficiência. Em Santa Cruz do Sul, segundo a Assistente Social do Juizado da Criança e do Adolescente, Carla Silveira Fontoura, atualmente há 54 casais à espera de uma criança

para adoção, entretanto, existem 13 crianças aptas à espera de um novo lar. Carla salienta que a maioria está na fila por anos, em especial, por suas exigências de perfil. “A preferência é sempre por bebês ou até quatro anos de idade. Já tivemos casos de adoção de irmãos, adolescentes ou negros, mas infelizmente são a minoria, inclusive, houve casos de devolução de crianças”, comenta.

Quem pode adotar - Homem ou mulher maior de idade, qualquer que seja o seu estado civil, desde que tenha 16 anos a mais do que o adotando; - Cônjuges ou concubinos, em conjunto, desde que estejam casados no civil ou mantenham união estável comprovada; - Divorciados ou separados judicialmente, em conjunto, desde que acordem sobre a guarda e regime de visitas; - Tutor ou curador, desde que encerrada e quitada a administração dos bens do pupilo ou curatelado;

- Requerente da adoção falecido no curso do processo, antes de prolatada a sentença e desde que tenha manifestado sua vontade em vida; - Família estrangeira residente ou domiciliada fora do Brasil; - Todas as pessoas que tiverem sua habilitação deferida, e inscritas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA). * Fonte: Portal da Adoção

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Jéssica Ferreira

Bruna e sua companheira Júlia têm sua sobrinha como filha

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homossexualidade sempre foi um tema polêmico. Isso porque, praticamente não se dissocia do preconceito existente na sociedade. E quando se juntam ambos os assuntos, a abordagem passa a ser um desafio maior. Começando pelo Juizado da Criança e do Adolescente em Santa Cruz do Sul.

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Nos últimos cinco anos, apenas um casal homoafetivo adotou uma criança. Infelizmente, por conta da restrição de liberação de informações durante a entrevista, bem como o contato com esse casal, não é possível informar se há outros casais homoafetivos na espera ou que querem adotar. Conforme Carla, não é necessário falar sobre isso.

No entanto, mesmo sem informações da fonte oficial, encontramos nas ruas casais héteros e homoafetivos que falaram sobre esse tema. Um exemplo é a Bruna* e a Júlia*, que estão juntas há nove anos. Segundo o casal, a bagagem com os conflitos gerados por suas escolhas são grandes e pesadas, mas nada que as impedissem de viverem juntas. Hoje elas têm

a guarda provisória de uma sobrinha, de seis anos. Bruna conta que perdeu sua irmã há dois anos em um acidente fatal, mas a dor da perda trouxe esperança através do brilho nos olhos de uma criança que tem as mais ricas lembranças de sua irmã. “Não havia mais ninguém para ficar com a criança e eu jamais deixaria que ela fosse encaminhada para um abrigo de menores. Tomei a decisão e a Júlia me apoiou. Hoje somos sim, duas mães. Muitos nos olham torto quando levamos de mãos dadas ela na escolinha. Já ouvimos piadas, mas nada que nos abale. Somos uma família e não nos falta nada”, conta. Eloiza Balparda e Fernando Bohn tiveram suas vidas reconstruídas a partir da chegada da pequena Emanuele. O casal conta que o processo de adoção foi difícil e demorado. A espera por um filho adotivo levou muito mais do que nove meses. Conforme eles, é incondicional o amor que sentem pela filha, e defendem qualquer pessoa que está disposta a amar também, independentemente da escolha sexual. “O importante é que os pais deem o amor que a criança nunca teve e precisa. Sabemos de casos tristes de abandono, e enquanto a sociedade se preocupa com o que para ela é certo ou errado, essas crianças estão sozinhas”, observa Eloiza.


Carla Pfaffenseller e Cristiane Pfaffenseller se uniram em união estável e realizaram o sonhado casamento. Segundo elas, o próximo passo é serem mães. Para Carla, existe em ambas o desejo de gerar um filho, mas ainda assim, gerando ou não, elas já se preparam para uma adoção. “Obviamente que não teríamos como ter um filho gerado por nós duas, então optamos pela inseminação, mas ainda assim, queremos adotar, inclusive uma criança grande”, relata. A sociedade desde sua origem passa por evoluções através dos costumes das pessoas. Conforme o psicólogo

Luis Fernando Veiga, atualmente uma família não é apenas formada através de um casamento entre um homem e uma mulher. Existem novas construções familiares embasadas em teorias de funções maternas e paternas, onde há uma rede de

O importante é que os pais deem o amor que a criança nunca teve e precisa. Sabemos de casos tristes de abandono, e enquanto a sociedade se preocupa com o que para ela é certo ou errado, essas crianças estão sozinhas.” Eloiza Balbarda

Mitos e verdades

relações afetivas, que são construídas a partir de laços baseados nas identidades pessoais de cada um dos seus componentes e na interação entre seus membros. O CNA não detalha exatamente a quantidade de casais homoafetivos cadastrados para fila de adoção. Entretanto, conforme dados da Vara da Infância e Juventude no estado do Rio Grande do Sul, o número representa 1% do total de candidatos. Além disso, há uma vantagem na agilidade do processo de adoção por parte de casais homoafetivos - a grande maioria são bem mais flexíveis em questão da

Pais heterossexuais podem gerar filhos homossexuais, pais bissexuais podem gerar filhos heterossexuais. Não há regra e nem deveria.” Luis Fernando Veiga psicólogo

escolha por idade, raça ou grupo de irmãos. Para mais informações sobre adoção acesse: www.adocaobrasil.com.br/passo -passo-da-adocao. *Os nomes são fictícios para preservar a identidade das fontes que não quiseram se identificar.

- Crianças enfrentarão problemas psicológicos por conta do sofrimento?

É um risco que, infelizmente, toda a família homoparental corre. Essas crianças podem viver situaAlém de a homossexualidade em si ser um ções de sofrimento e estigma pela configuração da tabu, existem vários mitos criados pela so- sua família, mas ressalto que esses preconceitos ciedade sobre a adoção de criança por ca- são provenientes da sociedade que vivemos. sais homoafetivos. Portanto, o psicólogo Luis Fernando Veiga esclarece algumas dú- -Homossexuais podem ser curados da sua orientação sexual? vidas sob o olhar da psicologia: - A orientação sexual dos pais pode influenciar Não se cura o que não é doença. É vedado ao psicólogo fazer qualquer terapia de (re) orientação na orientação sexual dos filhos? sexual ou reversão (a chamada cura gay veio com Não. Primeiramente que desse modo simpli- outros nomes que maquiaram o perigo dessa deficamos uma questão complexa e culpabiliza- cisão). A liminar concedida, por exemplo, é desmos crianças e pais por uma característica que cabida e dá margem para interpretações perigonão é aprendida. Pais heterossexuais podem sas, que permite a desonestidade intelectual e gerar filhos homossexuais, pais bissexuais po- ética, que dá voz a pessoas e instituições que não dem gerar filhos heterossexuais. Não há regra deveriam pautar suas questões nessa ciência e e nem deveria. Como dizer que pais homosse- nega os direitos vitais de grupos gigantes, porém xuais inf luenciarão na sexualidade dos filhos? marginalizados, da nossa população. Esses filhos poderão ter toda e qualquer orien- É dever de o psicólogo lutar por uma tação sexual que pessoas filhas de pessoas he- psicologia laica e contrária a todos os preconceitos. terossexuais. 23


PRÉ-GUERRA

A batalha invisível

e da s a i rd uc Vagner Flores Cerentini elho o é me m o ã ir gou o que n s para e h o C s , ,14: mingo liberad vamo a r i e o e “ exército pode passar cem anos sem ser usado, mas s dia stão ta-f no d refa Sex do ou ados e hia em elas ta a m não pode passar um minuto sem estar preparado”, r d n a sáb os sol compa alhão p pronta i disse o estudioso Ruy Barbosa. Fato é que, hoje, o u t a s dis eza da ia o ba ra de star aq milhares de jovens se alistam para o exército brasileiro aos o e p lim ou elog ós, é h que 18 anos e muitos deles servem contra sua vontade. Sorte m p u l e ma ima. A eu, t do q e nossa é que vivemos em um país onde guerras não ocoro g x ru on pró os com ro l o desf rem, mas os conflitos, esses sim, existem. É o que conta o o r t s m s s ou Não nda po r uma jovem recruta Teilor Ailson Dias. : e r e i e liv o, a beb a-é Tard o temp ora de de nad h it mu ois, é gosto p . ar e Porto Alegre, quarta-feira, 13 de setembro de 2017: Acordo cedo, às e d tel, tem sabor roveit o o p r 5h30, pois preciso fazer a maldita barba todos os dias, caso contrário, qua trocou á vou a mal. C i s l posso ser punido pelo tenente. Eles são muito rigorosos em relação a isso. que Até rmimo , fiz do s o a d ra Depois de colocar a farda, vou para o rancho do batalhão tomar café. A ém 20 ho balhar b m ta Já são ra tra amen refeição é simples. As opções são café preto ou com leite. O sanduíche a dia. rnos p l, ultim também não é grande coisa: pão cacetinho com mortadela e queijo, mas a u cot s, afin dá para matar a fome. dia eo l á-lo j r o Agora é hora de entrar em forma nos fundos da companhia, aqui são 15: H dos so , o separados os pelotões: os soldados mais altos sempre ficam na frente, dizem ad e ão Sáb inspeç em de que é para parecer mais imponente e que nas guerras era assim que funcionat da a arba e bém sã va. Em caso de troca de tiros, os mais baixos ficam protegidos, pois estão mais b e a da tam corre r o atrás. Acho que isso é conversa fiada, mas é o que contam. gua Tud o te O capitão da companhia fica voltado para os soldados, tenentes e sarerá ra s 0 hor o h gentos e são passadas as tarefas do dia e da semana. Como de costume, o que de 8 às 2 ora 1 resta é limpar a companhia, varrer as calçadas, juntar as folhas, limpar os lixos das às 8 h q r 6 - não imaginava nada disso quando entrei para o quartel. Na das ora, po d h propaganda da televisão há soldados correndo com fuzis e de sortea é ele ha vez saltando de helicóptero. Só ilusão. min s de p a hor a no Quinta-feira, 13: São 13h30, nenhuma novidade no front. O sargento vêm ro e nos levou para limpar um bueiro entupido lá nos fundos do batalhão. Fiquei t den pa todo sujo de lama e agora vou ter de permanecer assim até a hora da prática de com a exercícios, pois no quartel temos que praticá-los ao menos duas vezes por seg che mana. Isso inclui alongamento, corrida, flexão, abdominal e barra. Com o tempo me acostumei, mas no começo era bem complicado, pois só jogava futebol. Hoje, também é o dia em que são expostas as escalas de serviço do fim de semana. Todos torcem para estar de folga. Como já imaginava, vou trabalhar sábado. É um saco! Pelo menos vou trabalhar na companhia e não terei de ficar nas guaritas, segurando um fuzil. O serviço de plantão é bem melhor, é só permanecer de pé, vigiando a companhia e atender ao telefone caso alguém ligue.

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Amanheceu e agor a o próximo grup o de soldados assume a guarnição do qu ar tel. Enfim, vou poder ir para casa novam ente e ter o domingo todo para aproveit ar. Agora essa guerra não é mais minha , vou tirar a farda e rela xar. Amanhã é se gunda e a rotina volta. N ão é nenhuma gu erra, mas também não estamos em paz. Divulgação

o ar n h l a ab ois á tr a, dep r i não eio-di os a m e m a a qu até o m e deixa nel fal a r p i s t o eno ente va camen o Cor os para m á i o i já l s is L , pe exped hã, ba ntral. uns av uns... a n ema . Hoje o la man átio ce dá alg e, para e p e d caso casa. P ura no mana iberda e l at à ra as o r pa a form rante , rumo end gos t u a a o r d s i pa adas o nã us am o a ca cedo. r m a z i s e e n real la e ir p anhã a, m l com m a toda cer s i m a a h c e , c ara futebo seman ra par mo mente p r a ii a o pa nov solv s tenh e bebo da dia e r ia e o u a ra g s c q r o s i a e o h m r c e a en sono e s , po r. Às 17 ele su ferent t l i e u t o m eu uar o laze a daqu cor di uga ar com strar m gnos t a d s s r st no oi lu uta jas. Ba ar e um rtel eciso e o que o poss e c a v ú u r q pr aç nh ce Nã ua, o. O rviço, inda te rmão. casa. g c á u se só A po m ui zaum star de rvejas. e e me o que e eali r r i é ã e rm ce ue ld ond s a do nhã vo várias inha m quarte , r l a a a p tr m a os o cen sas fard o o am tomam ar com mpo n i t m o s e os pá ls e onver mais t a o adas n o de o r a g c p s i o ou verific serviç hã e assad v n o a ouc o. São tirar o os. am nho p p a e t qui serviç ue vão rificad a nte D q e b . ngo ntrar d queles os e lu rto o l e r e a p e qua ão is ras lim is d a va s que v Os fuz estar a. Meu s 14 ho à o . hi do ldad udo ok deven mpan eio-dia ncerro o co s, rt ee rt m esta ificado tou na gio do horas iro qua ente 2 er m es ce Vi ão v m e já elhor! oite às elo ter s, geral e a p , -n eu b o. É o m a meia isputa hor. M horas uas l 8 d 1 e ir id ,d erce epois la uma rmir m ço. São , ficare ideias i D i o o e s ras. mpre r para d de serv ia-noit muita os aqu , e á e m a á o as. S o que d ue est . Já é m períod á passa tante d q a é e i o es ej que lo Cab mpanh a. Ness o o qu do o r ntos, e e d d to o do p giar a c ra o na s de tu flexão, pensam o i a e de v ando p mbram to de r e meus le lh en eu pé o abeça, mom ou só s c m , ossa ora. É u mindo r f e lá está do o. fic ia anh r filosó e aas

ilustração projetada por Freepik

Soldado Ail “Não é n son: enhuma guer ra,mas também não estamo s em paz”.

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INSPIRADORAS

Empreender: forma de obter renda com talento próprio Letícia Santos

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ocê sabe o que é empoderar? Segundo o dicionário é o ato de dar ou conceder poder para si próprio ou para os outros. Uma palavra, um propósito. No universo feminino, empoderar é como um “grito de guerra” e significa que se pode e se deve fazer mais por si mesma e descobrir de forma conjunta o seu potencial

para ir além da zona de conforto. Quem sabe muito bem o que é colocar essa ação em prática é a empresária Carine Andrade, a coach e empresária Daiane Nascimento, a administradora Gilvana Brescovit e a cirurgiã-dentista Luiza Dias Baumhardt. A partir da união destas quatro mulheres surgiu a vontade de fazer a di-

ferença e criar um grupo para dar mais força ao público feminino que deseja empreender. Tudo começou no dia 2 março de 2017, quando elas promoveram uma ação para celebrar o Dia Internacional da Mulher, em Santa Cruz do Sul. O evento foi um sucesso e reuniu cerca de 80 pessoas. A partir daí, elas perceberam a importância de

dar continuidade ao projeto, pois tudo era grande demais para ficar somente em um encontro. Assim, além de exporem seus próprios trabalhos, elas poderiam inspirar, motivar e instrumentalizar as empreendedoras iniciantes a aperfeiçoarem seus negócios. Foi desta forma que nasceu o grupo Empodere.

É possível empreender sem sair de casa?

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casa. Mas ela não é a única empreendedora da família: a mãe, Ruthi Schneider, que produz uma variedade de bolachas e produtos caseiros, é sua fonte de inspiração e uma companheira para trocas de experiências. Juntas, elas somam esforços para manter o sucesso sem sair de casa. E você, já pensou em empreender também? Marcelo da Silva/Divulgação

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árbara Elize Baierle provou que sim. Ela, que sempre ajudava a família e os amigos nas festas de aniversário, resolveu, em 2013, começar a fazer diversos produtos personalizados, como convites, lembranças e brindes e a atividade foi dando certo. O ofício foi ficando conhecido e começou a gerar lucro, até que ela resolveu criar uma página no Facebook para divulgar e ampliar o negócio. Desta forma, Bárbara buscou estudar, se aperfeiçoar no que tinha de melhor, procurou orientação no Sebrae e legalizou o próprio negócio na prefeitura. Assim, ela fundou a Mimo Art’s Lembranças e Brindes Personalizados. No ateliê, que fica na sua casa, Babi trabalha com muito amor pelo que faz e tem a liberdade para administrar a própria agenda. Outra vantagem é ficar mais perto do marido Marcelo e do filho Benjamin, de apenas um ano. Com o próprio negócio Bárbara consegue se sustentar e ajudar na renda de

Bárbara se consolidou no empreendedorismo feminino


Atividades

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os eventos do Empodere, além de aprender e trocar dicas sobre empreendedorismo, também se discute sobre beleza, saúde e bem-estar. As palestras, workshops e encontros de networking contam com uma personalidade feminina para acrescentar e dividir experiên-

cias. “Se alguma pessoa que frequenta nossos encontros tem uma expertise, domina um assunto e acha que vai ser relevante para a vida de outras mulheres, pode nos procurar e divulgar”, observa Daiane. E essa troca é justamente um dos objetivos dos grupos, pois às vezes, o problema de uma, é o de outra também, mas, juntas elas

podem encontrar soluções. Carine, que também é cofundadora do grupo, acrescenta que as mulheres estão cada vez se organizando mais para fomentarem os negócios próprios. E para aquelas mulheres que também querem empreender elas deixam a dica: é preciso ter um propósito e muita força de vontade. “Empreender é tu conseguir

remunerar a tua paixão. Se tu empreendes naquilo que te dá brilho no olho, tu vai ser bem-sucedida”, comenta Daiane. Para estar atualizado sobre as atividades desenvolvidas pelo Empodere, você pode acessar a página do Facebook (facebook.com/ empoderescs/) e o perfil no Instagram (empoderescs).

Empreendedorismo feminino

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onde as mulheres se reúnem e se ajudam”, conta Daiane, uma das cofundadoras do Empodere. Segundo o site G1, uma pesquisa realizada em 2013 pelo Sebrae demonstrou que, no Brasil existem mais de 7 milhões de mulheres à frente de negócios. Já o

blog Top English aponta que hoje, o público feminino representa 51,62% dos novos empreendedores no país. Aqui no Rio Grande do Sul existem diversos grupos de empreendedorismo feminino como Mulheres Empreendedoras do Sul,

Confraria do Batom e Jogo de Damas. O Empodere é outro exemplo destes grupos que promovem a troca de experiências e a união entre as empreendedoras.

Cofundadoras do grupo Empodere movimentam os negócios em Santa Cruz do Sul e região

Letícia Santos

m alta na sociedade, esse movimento tem despertado cada vez mais o interesse do público. “A gente já vinha acompanhando a existência de grupos voltados ao empreendedorismo feminino, que é o nosso foco, em vários lugares. Na verdade em todo o Brasil, nos grandes centros, há grupos

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BATALHA NA ARTE

Pelo sim e pelo não Sarana Fonseca

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crifique fins de semana, as pessoas nem sempre reconhecem o esforço e o trabalho. “E cada vez que isso acontece, dói um pouco. Morre um pouco. Até chegar na crise.” Já o dançarino Plinio Viana, morador de Cachoeirinha, não conhece Digo, mas divide com ele o fazer artístico e viveu essa mesma guerra interna, optando por outro caminho. Nascido e criado no meio de dançarinos, Plinio aos 14 anos mergulhou de cabeça na cultura Hip Hop e nunca mais saiu, participando, inclusive, do grupo Troup Urbana. A vida de viagens, aulas de danças, participações em companhias foram deixadas de lado com a chegada dos três filhos. A partir desse momento, ele começou a trabalhar na área da logística de uma multinacional. No entanto, o amor pela dança ainda é muito grande e se transformou num conflito a ser vencido. A história desses dois artistas vai ao encontro com a do Hugo e a do músico Drurys.

Sarana fonseca

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odos os dias pessoas ricas, pobres, rosas ou azuis têm de acordar e lutar pelos seus objetivos. Pessoas com nomes tão diversos como Digo, Plinio, Hugo e Drurys. Entretanto, às vezes, aquilo que uma pessoa quer de noite não é a mesma coisa que ela deseja pela manhã. O detalhe é saber lidar com as escolhas feitas. O Rodrigo, mais conhecido como Digo, foi incentivado desde pequeno a gostar de arte. E, antes de conhecer o grattiti buscava algo mais “libertador”. O Digo Almeida, nome que adota agora, é artista plástico, um dos pioneiros no graffiti em Santa Cruz do Sul, e fundador do Ateliê Vivências Urbanas (AVU). Apesar de ter ido atrás do sonho, a vida de artista vivida por Digo nem sempre é cheia de cores. Às vezes, pensa que por mais que trabalhe, se esforce e sa-

Por meio das revistas que Digo começou a estudar o graffiti

Hugo Braz tinha um pai que era ourives e um irmão que gostava muito de desenhar e pintar. Durante a adolescência, o que ele queria mesmo era ser artista plástico. A opção por um emprego “tradicional” se impôs pela necessidade de estabilidade financeira. “O ‘conflito’ arte x sobrevivência se tornou muito claro para mim. Faço minha arte buscando não sei exatamente o quê, mais sei que não é o dinheiro”, conta. O luthier Drurys Pedroso fez um concurso para topógrafo da Corsan em 1995 e foi aprovado. Ele sempre foi um amante da música e alguns anos depois de ingressar no serviço

público decidiu tomar a maior e mais complicada decisão de sua vida: abriu uma luthieria, lugar onde se conserta instrumentos musicais. “Minha mulher chorou por 45 dias.” Diz também que a profissão é difícil; que trabalhar com música e músicos é complicado. “O que não me deixa desistir é que o show não pode parar”, relata com empolgação. Pelo sim e pelo não, para o Digo, Plinio, Hugo, Drurys e muitos outros amantes da arte é preciso aprender com suas escolhas, transformando-as em possibilidades, seja elas quais forem. E pagar o preço que a escolha impõe.


Divulgação

EDUARDO BUENO

“Sou retardado para essas coisas de computador” Bruno de Azevedo

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m pouco mais de três meses, Eduardo Bueno já conquistou cerca de 116 mil seguidores no Facebook e mais de 30 mil inscritos no YouTube. Mesmo “mal sabendo ligar um computador”, em seu canal ‘Buenas Ideias’, o jornalista publica vídeos da série ‘Não Vai Cair no Enem’, na qual conta episódios que marcaram a

Reprodução

história do Brasil de forma irônica, bem humorada e muito diferente da maneira didática. Nascido em Porto Alegre, Peninha, como é conhecido, é formado em jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Trabalhou em diversas redações no Brasil (Rede Globo, O Estado de São Paulo, Revista Veja) e foi

editor de livros nas editoras Brasiliense e LP&M. Além de vender mais de um milhão de exemplares com os cinco livros da série Terra Brasilis, que aborda os primeiros dois séculos de história do Brasil, o escritor também escreveu o livro Brasil, onde compila mais de 500 anos da história do país. Ele também publicou cerca

de 15 outras obras. Como tradutor foi o responsável por trazer a literatura beatnick para o Brasil. O Unicom conversou com Peninha por telefone e ele nos comentou sobre seu interesse por história e outros assuntos. Você acompanha nas próximas páginas os melhores momentos desta conversa. A serie Não Vai Cair no Enem é publicada todas as quartas-feiras no canal Buenas Ideias e traz relatos bem-humorados da história do Brasil

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Reprodução

Como é ser um Youtuber?

E como está sendo esta experiência?

Eu sempre soube do poder da internet, mas sempre relutei em me envolver com essa coisa chamada de rede social. Ela virou algo bem personalista, ligada à opinião pessoal das pessoas. Por exemplo, o YouTube é uma coisa que descobri bem tardiamente. Fique sabendo que lá tinham coisas do Bob Dylan e descobri não só os vídeos, mas os comentários que também eram muito imbecis, tão idiotas. Para mim foi uma descoberta maravilhosa. Mas tinha um monte de gente que odiava o cara e ficava ali comentando do jeito mais imbecil possível, que não gostava, que isso e aquilo. O que foi me irritando de uma forma monumental. Eu aprendi a menosprezar as pessoas que fazem comentários em redes sociais. Na verdade, eu adoro que tenham surgido o Facebook e o Twitter, porque eles revelam este tipo de gentalha que se expressa através destes meios.

Qualquer pessoa que me conhece sabe: eu falo sem parar, seja com a câmera ligada ou desligada. Então, basta liga-las, para eu sair falando. E sobre o que eu falo muito? Óbvio! Sobre futebol, Bob Dylan e história do Brasil. Sem nenhuma arrogância ou prepotência, mas também sem falsa modéstia, eu sei muito sobre a história do Brasil e as pessoas sempre me param na rua. Mas nunca, nunca na minha vida eu fui parado por tanta gente na rua como agora. Diz ali que tem 100 mil, 120 mil seguidores no Facebook, mas eu acho que é mais. Esses números me surpreendem porque para mim é algo novo. Eu já fiz muita coisa de sucesso na minha vida, mas não tanto como agora com o ‘Não vai cair no Enem.’

Mas, conte mais sobre a história da criação da série Não Vai Cair no Enem? Então, o Marcelo Madureira um dia me disse: “Tu tens que ter um quadro sobre história do Brasil.” Eu te juro, pode deixar registrado para a história, eu gosto muito deste quadro, estou muito feliz com ele, mas eu aceitei para me livrar dos pedidos do cara. De tanto ele encher o meu saco, eu perguntei quanto ele me pagava, por que além de tudo sou um dinheirista.

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Você acha que o brasileiro aumentou o interesse pela história, já que dizem que quando não há uma grande expectativa de futuro as pessoas se agarram ao passado? Eu não acho que seja verdade. Acredito que o brasileiro está em um momento de perplexidade total, mas o cerne do povo brasileiro sequer sabe ler. É semiletrado, semianalfabeto. Os diversos livros de história que surgiram pegaram sempre o mesmo público, mas este tem um abismo gigantesco em relação ao Brasil real, que é o único que leu e que tenta saber para onde este país vai.


É que virei meio hippie uma época e fui para as praias virginais de Santa Catarina. Quando descobri estas praias pela primeira vez, em 1974, me perguntava: mas vem cá, que índios viviam aqui? Então a minha primeira ligação com o Brasil foi estudar a pré-história. Comecei a estudar isso[os índios]. Para você estuda-los, primeiro tem que pesquisar sobre os caras que os estudaram. E os primeiros relatos vieram dos brancos que chegaram no Brasil. Tive um grande impacto sobre o primeiro encontro entre brancos e índios e entrei numa de estudar esse trágico momento. Neste contexto descobri que não sabia nada de história do Brasil. Sempre fui muito ligado a livros e já tinha lido alguns sobre história do Brasil e a época do descobrimento. Então comecei a comprar tudo que via para um dia escrever sobre isso [sobre a história do Brasil].

Tu também és especialista em Bob Dylan. Como é esta sua paixão pelo músico? É uma história bastante engraçada. Achava minha vida horrível, vazia, inútil e despropositada até o dia em que ouvi Bob Dylan. E era verdade, eu achava isso mesmo! Mas eu tinha 16 anos. Senti na urgência, achava que já tinha perdido muito tempo e que eu era um bundão, era bem submisso, bem certinho, me sentia dominado pelos pais e pelo colégio. O fato é que ouvi o Dylan pela primeira vez em 8 de março de 1974 e isso mudou a minha vida! Jurei que iria ser um rebelde como ele e que ninguém iria me deter.

Você lançou o primeiro livro [da série] Terra Brasilis em 1998, próximo aos 500 anos do descobrimento do Brasil. O sucesso desta obra se deve ao interesse do brasileiro sobre esse acontecimento histórico, que aumenta nas proximidades do marco de 500 anos? Sim e foi planejado para ser assim. Eu acredito no mercado, no produto e o livro tem que vender. Só creio em produto bom. Como trabalhei muito tempo na editora LP&M, eu conhecia os caminhos do mercado brasileiro. Eu trabalhei como editor nos 100 anos da República Brasileira, em 1989, nos 100 anos da Abolição da Escravatura, nos 200 anos da Revolução Francesa e nos 500 anos da descoberta da América. E todas essas datas proporcionaram uma série de lançamentos no ano em que se completava a data cheia e foram um fracasso. Isto porque a imprensa fez tanta matéria e as pessoas já estavam cheias daquele assunto. Então lancei o meu livro sobre o descobrimento do Brasil propositadamente quase dois anos antes de abril de 2000, em julho de 1998, para pegar a onda antes da onda. Para provocar a onda dos 500 anos e deu certíssimo. Óbvio que esse não foi o único tempero que propiciou a explosão da obra. Meu livro teve uma abordagem bem diferente da didática de caso pensado e foi esta explosão por causa disso e pela forma certa. Divulgação

De onde surgiu teu interesse pela história do Brasil?

Você chegou a ter um projeto para lançar uma biografia sobre o Bob Dylan? Eu ia escrever. E é muito maluco porque era uma biografia oficial. Eu cheguei a ter um envolvimento com ele pessoalmente e com sua equipe, mas houve uma desavença grande e acabou não rolando. Nos vimos várias vezes até que eu tive um desentendimento com ele quando o seu profissional manager, que era muito meu amigo, foi demitido pelo Bob e eu fiquei do lado do cara.

A história do Descobrimento deverá ser relançado no ano que vêm para comemorar os 20 anos de seu lançamento e já vendeu mais de 320 mil exemplares

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