Unicom, julho de 2019 | Volume 38, número 1

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VOLUME 38 | Nº 02 | SEGUNDA-FEIRA, 1º DE JULHO DE 2019

Cada pessoa tem a sua história. Porém, nem toda história é contada e ouvida. Entendemos como invisível algo que nos escapa à vista, de uma forma que é imperceptível. Para alguns personagens da ficção, a invisibilidade – seja através de um poder ou de uma ferramenta como uma capa - pode trazer vantagens, como um elemento que aprimora as suas aventuras.


EXPEDIENTE

O que é? O Unicom é o jornal-laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), desenvolvido na disciplina de Produção em Mídia Impressa, da habilitação de Jornalismo.

Quem fez? Edição Fernanda Nunes da Silveira Revisão Caroline Moreira e Fernanda Nunes da Silveira Editor de Multimídia Larissa de Oliveira Tomaz Diagramação Fernanda Nunes da Silveira Reportagem Ângela Letícia Mann, Caroline Moreira, Fernanda Nunes da Silveira, João Valter Passos, Julia Abich, Kelvin Azzi, Leonardo Pereira e Milena Konzen Coordenação Willian Fernandes Araújo RELATOS INVISÍVEIS “Escrevo sobre a extraordinária vida comum, sobre o cotidiano dos homens e das mulheres que tecem os dias e também o país, mas nem sempre são contados na história”, descreve a escritora e jornalista Eliane Brum na apresentação do seu livro A Menina Quebrada. O que ela chama de “desacontecimentos” pode ser considerado o norte desta edição do Jornal Unicom. Cada pessoa tem a sua história. Porém, nem toda história é contada e ouvida. Entendemos como invisível algo que nos escapa à vista, de uma forma que é imperceptível. Para alguns personagens da ficção, a invisibilidade – seja através de um poder ou de uma ferramenta como uma capa - pode trazer vantagens, como um elemento que aprimora as suas aventuras. Contudo, na vida real, isso nem sempre é positivo. Existem algumas histórias que podem ser consideradas relatos invisíveis 2

em uma sociedade cada vez mais acelerada e com menos tempo de parar e olhar para o outro. A ideia desta edição do Unicom é contar relatos e experiências de pessoas no contexto em que vivem, mostrando as conquistas, os desafios e os problemas enfrentados por elas em suas realidades. Histórias que vão da vivência de uma mulher negra em Santa Cruz do Sul, passando pelo casal que está junto há 66 anos e até a luta de uma mulher contra o câncer sem perder o sorriso no rosto. O OLHAR JORNALÍSTICO Esta segunda edição do Unicom em 2019, produzida por nós, alunos da disciplina de Produção em Mídia Impressa, do curso de Jornalismo da Unisc, foi elaborada para contar alguns relatos invisíveis em nossa sociedade. Escolhemos esse tema para dar visibilidade e voz para pessoas que nem sempre são vistas e ouvidas, mostrando suas

vivências e experiências. Para tanto, foi necessário um olhar jornalístico para determinados espaços e posições para os quais nem sempre concentramos a nossa atenção a fim de descobrir relatos que pudessem ser abordados de forma aprofundada, indo além da superfície e dos estereótipos. A partir dessas narrativas, podemos identificar e reconhecer pessoas, situações, assuntos e lugares do cotidiano que, muitas vezes, nos passam despercebidos e, assim, perceber e compreender particularidades e pensamentos específicos das histórias e da personalidade desses sujeitos. Mas, essas são apenas algumas. A nossa sociedade está repleta dessas histórias. Confira mais conteúdos relacionados às reportagens presentes nessa edição do Unicom no site: http://hipermidia. unisc.br/portal/. Boa leitura, da editora e dos repórteres.


CRÔNICA O VERDADEIRO DISFARCE DO SUPERMAN VITÓRIA C. ROCHO Uma das maiores piadas no universo de Super-Homem é o fato de Lois Lane, seu par romântico, não reconhecer Clark Kent por causa dos óculos. A alteração na aparência de Clark é mais elaborada do que isso, claro, mudando o personagem de várias maneiras - desde sua postura e a cor dos olhos até alteração na voz e modos gestuais -, mas detalhes técnicos não abordam o ponto mais básico de tudo. Não, o disfarce do Super-Homem não é apenas sobre pessoas sendo burras demais para reconhecê-lo através de um par de lentes ou qualquer um dos outros aspecto que foram citados. O verdadeiro disfarce do Super-Homem é ser ignorado. Os observadores não são idiotas, eles são cegos. Aqueles que são negligenciados podem sofrer uma dor que ninguém mais pode saber, pois o sofrimento, como parte da doença invisível, está fora das percepções de outras pessoas. E a exclusão social dói. Se você olhar todas as fotos de todas as pessoas com quem você estudou no ensino médio e as misturar com fotos de colegas de classe de outra pessoa, você realmente consegue identificar cada rosto? Se você olhar todas as fotos de seus companheiros de aula, realmente olhar e não analisar, quantos rostos fazem você coçar a cabeça porque são tão estranhos? Com que frequência você cruza com antigos colegas de classe ou de trabalho apenas para descobrir que você não lembra dela? Não podemos saber quantas pessoas ignoramos devido ao fato de que, de fato, as ignoramos. Quantas pessoas passam a vida se sentindo invisíveis, seja de modo geral ou em situações específicas? Quantas pessoas se sentem negligenciadas e ignoradas porque verdadeiramente são? Quantos desistem de tentar? Quantos persistem? Frustração e isolamento podem levar à depressão. Alguns lidam definindo outras prioridades enquanto outros continuam desejando serem vistos. Esses desejos podem variar do simples e realista ao complexo e fantástico. Nem todo mundo sonha em pular prédios altos em um salto, parar uma locomotiva ou voar alto e ganhar a adoração de todo o mundo. Alguns simplesmente desejam não ser mais invisíveis. Enquanto o Homem de Aço simboliza muitas coisas para muitas pessoas, seu alter ego gentil também simboliza esperança para aqueles que sabem que têm grandes qualidades que outras pessoas ainda precisam ver. FOTO: DANÚBIA MACHADO

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FOTOS: ALISON GELLER/ASPEDE

OBSTÁCULOS VENCIDOS

É necessário uma cadeira adaptada para a prática do esporte

MAIS QUE UM EXEMPLO DE SUPERAÇÃO Conheça a história de Alison Geller, tetraplégico após acidente de trânsito, diagnosticado com leucemia e atualmente jogador de basquete adaptado para cadeirantes LEONARDO PEREIRA leonardod.pp@hotmail.com

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que você entende como resiliência? Expressão que representa perfeitamente a história que vou contar a seguir. Palavra comum no vocabulário atual, segundo o dicionário significa superar as adversidades e aprender com elas. Definição perfeita para Alison Geller. Esse roteiro tem início em 11 de julho de 2007, o momento do acidente que tornou o nosso personagem tetraplégico. Ou como o próprio define, quando sua vida recomeçou. O local era o Bairro Senai, na cidade de Santa Cruz do Sul, o veículo uma motocicleta, a velocidade acima do permitido. “Passei reto na curva da Avenida Gaspar Bartholomay e fui de encontro ao muro da empresa Rosa Locações”, explica Geller. O resultado foi a fratura da coluna vertebral da C3 até a T1, quebrando assim cinco vértebras próximas a região cervical e tornando-o tetraplégico. O processo de recuperação foi lento. Alison passou oito dias no hospital e mais três dias em casa, período no qual não se lembra de absolutamente nada. A primeira

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memória após o acidente vem da por aqui, minha vida acabou. Você quarta-feira seguinte, acordando segue seu rumo, eu procuro o meu”, na cama da casa de seus pais e sem diz Geller, acreditando que nunca conseguir sentir do peito para baixo iria sair da cama. “Não, isso não do corpo e com extrema dificuldade importa, você levantando da cama para movimentar os braços, o ou não, voltando a andar ou não, não esquerdo sem nenhum movimento vou te deixar”, responde Michele. e o direito requisitava força imensa. Nesse diálogo estava o primeiro “Tentei chamar gatilho para a alguém e minha recuperação de mãe apareceu Alison. Com a “A primeira reação foi rapidamente para motivação da não acreditar, para explicar tudo namorada, Geller mim não havia acontecido, a u m e n t o u s e u que aconteceu. A a seguinte foi tentar primeira reação esforço e buscou me matar” foi não acreditar, a cada dia a para mim não independência, havia acontecido, principalmente ALISON GELLER a seguinte foi com a adaptação tentar me matar”, em relação à relata. O choque cadeira de rodas. de realidade veio no instante em Demorou cerca de um ano para que fracassou em sua tentativa de a última ferida cicatrizar na sua suicídio. “Nem isso conseguia fazer coluna. No mesmo período, estava sozinho”, conta. em andamento os processos de Entrando no processo de aceitação, fisioterapia. Durante esse tempo, Alison procurou encontrar sua Alison conheceu a professora namorada, Michele Geller, para Patrícia Roveda. “Praticamente uma conversar sobre o futuro. Na época, irmã para mim, me apoiou desde o ele e sua atual esposa namoravam há início” destaca. Uma das principais apenas seis meses. “Vamos terminar responsáveis pela recuperação,

auxiliando-o em todas as fases de adaptação. Evoluindo, Geller voltou a dar alguns passos e a sentar sem a ajuda de outras pessoas. Nem tudo eram rosas. No período de tratamento, Alison e seu pai, Edmundo, estavam sem se falar. “Ele falava sobre as loucuras que eu fazia no trânsito, como não o obedecia e acabei me acidentando”. Foi mais de um ano e meio morando na mesma casa, sem que ninguém pronunciasse uma única palavra na direção do outro. Não era uma situação confortável. Um ano e sete meses depois do acidente, Alison começa a ter febres, feridas no corpo e desânimo. A primeira opção foi o Sistema Único de Saúde (SUS), que apenas dava uma injeção para aliviar a dor, dizia que era consequência do acidente e mandava o paciente de volta para casa. Três semanas se passam, Alison vai ao Hospital de Reabilitação Sarah Kubitschek, em Brasília, na intenção de voltar a andar para poder comprar uma casa própria. Novamente, o resultado não é o esperado, tinha algo de errado nos exames e alguns dias depois ele estava internado.


O SEGUNDO BAQUE As plaquetas (estruturas sanguíneas importantes no processo de coagulação do sangue e manutenção do organismo) de Alison estavam em 60 mil, sendo que o valor normal varia entre 150 a 350 mil. Ou seja, bem abaixo no nível ideal. Exames repetidos no dia seguinte para descobrir o problema. “Olha, Gaúcho (maneira como o médico o chamava), deu tudo negativo”, explica. “Show de bola!”, reage Alison, sentado no saguão do hospital, dando uma risadinha de alívio. “Nem tanto, deixei de fora outro problema, a leucemia. Já liguei para sua família, tua esposa e irmão estão vindo te buscar”, complementa o médico. Na manhã seguinte, Alison acorda com sua esposa e pai no quarto. Após todo aquele período, as primeiras palavras do senhor Edmundo para seu filho foram: “Força, você vai passar por essa também”. O novo pontapé inicial para a animação e recuperação de Alison. Era a segunda grande luta, não podia desanimar. “Acabei de superar o

ENTENDA AS DIFERENÇAS DO ESPORTE Basicamente, as principais regras são as mesmas, tamanho da cesta e quadra iguais. As adaptações são em relação à formação dos times, os atletas são avaliados conforme o comprometimento físico-motor em uma escala de 1 a 4,5. Quanto maior a deficiência, menor a classe. A soma desses números na equipe de cinco pessoas não pode ultrapassar 14. São disputados quatro-quartos de 10 minutos cada. O jogador deve quicar, arremessar ou passar a bola a cada dois toques dados na cadeira. Além, obviamente, da cadeira de rodas que sofre mudanças, com rodas mais largas e inclinadas para facilitar a movimentação e estabilidade dos atletas.

problema da cadeira de rodas e agora vem isso”, conta. Voltando para o sul, o tratamento foi realizado no Hospital Bruno Born, em Lajeado. Nove meses preso a um quarto da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do hospital, com poucos momentos podendo sair daquela rotina. Novamente a esposa teve um papel essencial, abandonando seu emprego e voltando para ajudar e cuidar dele. O ESPORTE COMO RESPOSTA Os meses se passaram e o tratamento se deu por encerrado. Alison retornava para suas atividades físicas, inclusive o basquete praticado por apenas dois meses, pouco antes da descoberta da leucemia. O esporte adaptado para cadeirantes que no período era organizado pelo Centro Ocupacional de Deficientes de Santa Cruz do Sul (Codesc), projeto que foi abandonado por questões administrativas e financeiras. Eis que surge a oportunidade de se tornar presidente da Associação Santa Cruzense de Pessoas Portadoras de

Deficiência Física (Aspede) e com isso o basquete foi retomado para a associação. Alison está há seis anos como presidente. Anteriormente a instituição tinha como funções auxiliar deficientes, seja com empréstimos de cadeiras, com obtenção de remédios ou com locomoção para os tratamentos. “Contudo, achei que estava tudo parado demais, era necessário algo que movimentasse mais os pacientes”, relata. “O esporte é tudo, muda 200%, cria ânimo e faz você se sentir útil novamente”, explica. Inclusive elevando o nível de independência, a maioria dos jogadores, segundo Geller, trabalham, estudam e o basquete foi essencial para essa adaptação. Após passar do processo de ajudar aos pacientes, o objetivo agora é o de chegar no maior nível possível, talvez tentar jogar no próximo ano a Divisão de Acesso do Campeonato Brasileiro, equivalente a segunda divisão do torneio. Atualmente Alison está casado, tem sua casa própria há mais de oito anos, tirou carteira de habilitação

e possui um carro adaptado para facilitar sua locomoção e independência. Há dois anos nasce a filha do casal, Ágatha Geller. “Temos uma vida bem completa, não sinto falta de nada”, revela. Outro tema bastante ressaltado por ele é a questão de ouvir frequentemente expressões como “Que história de superação”, “Queria ter sua força” e outros exemplos e relembrar que não basta apenas isso. O Alison por Alison provavelmente não conseguiria a recuperação. Sua família e seus amigos foram essenciais. Sobre o esporte, Geller complementa: “Não precisamos de elogios por jogar, precisamos de incentivos para que mais pessoas com deficiência também joguem e conheçam o esporte”. Perguntado sobre o que ele diria para quem está sofrendo com alguma deficiência física e que pode estar descontente com sua vida, Alison encerra: “Levanta a cabeça, vá em frente e comece a buscar na família e no esporte uma ajuda. Tudo que você está passando não é nada, apenas um processo de adaptação”.

De diferenças curiosas podemos citar: Jogar a bola propositalmente em outro atleta faz a sua equipe perder a posse. Faltas técnicas são marcadas por conduta antidesportiva, e deverão ser aplicadas quando o jogador levanta da cadeira, retira os pés do apoio ou usa os membros inferiores para obter vantagem. O jogador não pode sair da quadra, com ou sem a bola, de maneira proposital, para levar alguma vantagem. Caso isso ocorra, a arbitragem marca primeiro uma advertência e depois uma falta.

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FOTO: ARQUIVO PESSOAL

FORÇA COLETIVA

Denaide Machado (ao centro) com seus colegas

ALÉM DO VOLUNTARIADO Conheça uma aluna de enfermagem que trabalha como Bombeira Voluntária em Butiá KELVIN AZZI kelvinalves61@gmail.com

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tema segurança sempre foi um dos assuntos mais discutidos e de suma importância para a sociedade. No caso mais recente, como a queda da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, centenas de Bombeiros Voluntários trabalharam dia e noite por semanas, tentando salvar as pessoas diante do mar de lama e no processo de abrigo para os sobreviventes. Dias depois, não nos lembramos ou como, na maioria das vezes, não somos apresentados a esses heróis. Segundo estudos do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), em parceria com o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), somente 14% dos 5.570 municípios brasileiros têm Bombeiros Militares. É essa deficiência que torna o trabalho dos Bombeiros Voluntários tão importante, já que atuam, principalmente, em regiões que não têm o mesmo suporte de segurança que as cidades maiores. Denaide Machado, 45 anos, estudante de enfermagem, trabalha há três anos como Bombeira Voluntária no Corpo de Bombeiros Voluntários de Butiá (CBVB), cidade localizada na região carbonífera e distante 78 quilômetros de Porto Alegre. O Corpo de Bombeiros Militares mais próximo da cidade fica em São Jerônimo, distante 40 quilômetros. Ela explica que a decisão em ser bombeira, apesar

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da admiração pela profissão, foi por coincidência. “Entrei para a corporação de bombeiros voluntários através de uma amiga que estava na equipe e eles faziam trabalhos sociais como gincana, campanha de agasalho, ajudando em enchentes e era uma das coisas que eu também fazia. Então, eu gostei do trabalho deles e entrei para a corporação, apesar de nunca ter tido vontade de ser bombeira”, conta. Quando falamos em Bombeiros, provavelmente você logo pensa em combate a incêndios, por exemplo. Mas, na verdade vai muito além disso. “Nosso trabalho solidário no natal, dia das crianças e campanha do agasalho, por exemplo, são projetos sociais que realizamos com a ajuda da população também. E para mim é uma realização imensa, principalmente quando a gente vê a carinha deles feliz”, relata. Ela conta que sua participação em trabalhos desse tipo começou bem antes de entrar para a corporação. A rotina de um Bombeiro voluntário depende da estrutura que a corporação possui. Existe o plantão, que ocorre quando os profissionais ficam em prontidão na sede e o chamado “sobreaviso”, que é quando a pessoa fica em casa, mas que a qualquer momento pode ser chamada. O Corpo de Bombeiros Voluntários de Butiá atualmente conta com 20 pessoas com disponibilidades va r i áve i s . D e s s e s v i n t e , o i t o trabalham frequentemente. Denaide

revela que em virtude da falta de estrutura da atual sede, o local serve basicamente para guardar materiais e equipamentos. “Na verdade lá está servindo como um depósito, porque não tem como fazer nossos plantões em um local tão pequeno”, explica. A NOVA SEDE E A PARTICIPAÇÃO EM UM PROGRAMA DE TELEVISÃO No dia 03 de junho de 2019, a prefeitura municipal de Butiá oficializou a concessão por dez anos do uso de um terreno de 632 metros quadrados, localizado no centro da cidade, para a instalação e construção da nova sede dos Bombeiros. Semanas antes, no dia 18 de maio, foi ao ar o programa Caldeirão do Huck, da TV Globo, em que Denaide e seu colega Adilson Lopes participaram. Ela conta que sequer houve um processo de inscrição por parte da Corporação de Bombeiros. “Ninguém se inscreveu e nem tivemos a ideia. Foi a própria produção do programa que entrou em contato conosco, acho que por conhecimento do nosso trabalho em algum site ou por um médico da SAMU de São Paulo que divulgou bastante nossa equipe e que veio dar treinamento para nós. Eles não revelaram como foi que nos encontraram”, relata. O contato da produção com Denaide e o Corpo de Bombeiros foi através de uma ligação, com a notícia de que estavam fazendo uma seleção e a procura de projetos solidários e que iriam realizar um teste com a equipe.

“No início não levamos a sério, pensamos que fosse trote”, destaca. Após alguns dias, o presidente da corporação foi investigar e confirmou a veracidade da informação. Dois dias depois, Denaide foi contatada que iria participar da seleção, sem qualquer certeza de que iria passar. “Nesse período tivemos que fazer um vídeo de três minutos junto com meu colega e contar a história do CBVB e mandamos para eles”, explica. Uma semana depois, Denaide recebeu a ligação de que ela e o CBVB de Butiá iriam participar do programa. “Foi uma surpresa, fiquei em estado de choque e nem acreditei. Dali, já comuniquei nosso comandante e em algumas semanas vieram aqui na nossa cidade”, ressalta. A gravação, que foi ao ar no dia 18 de junho, foi feita entre setembro e outubro do ano passado. A dupla de Bombeiros Voluntários recebeu 232 mil reais no prêmio do programa para investir na infraestrutura e equipamentos para o CBVB. Denaide conta que a vontade de estudar enfermagem veio da atividade como Bombeira. “Comecei a gostar de auxiliar as pessoas, de ser socorrista e então escolhi enfermagem. Sempre soube que isso iria me ajudar bem mais no meu trabalho voluntário de Bombeira. Pretendo me formar no final do ano que vem e seguir além da atividade voluntária, na área de enfermagem”, enfatiza.


FOTOS: FÁBIO GOUL/ARQUIVO PESSOAL

SAÚDE

ANJOS DA VIDA Um olhar de quem autorizou e de quem trabalha com a doação de órgãos MILENA KONZEN milenakonzen@gmail.com

O Thiago foi o primeiro a doar o coração no Hospital Santa Cruz. Então foi um gesto bonito ter partido ajudando outras pessoas”, se emociona a mãe, Solange Maria Henn. Dizem que mãe é tudo igual, só muda de endereço. Entre semelhanças e diferenças, cada uma sabe as dores e os prazeres de colocar e educar uma criança nesse mundo. Apenas elas sabem a alegria de ver os filhos crescerem. O sonho da maternidade é uma realidade na vida de muitas mulheres. Para Solange, de 47 anos, esse desejo não era diferente. O primeiro degrau para a construção d a f a m í l i a fo i o casamento com Gelson Bruno Henn, de 49 anos. Fruto dessa união, três anos depois ela engravidou de Thiago Henrique, que nasceu em 6 de julho de 1 9 9 7 . No s v i n t e anos seguintes, o convívio gerou momentos marcados pelo companheirismo, pela felicidade e, acima de tudo, pelo amor. Hoje, porém, restam lembranças e saudades. Era madrugada de sábado para domingo, véspera de Páscoa, quando o casal acordou com um alto barulho de moto em frente a sua residência. “Quando saímos pra rua um conhecido falou que uma coisa muito grave tinha acontecido: ‘o Thiago foi baleado’”, recorda a mãe. Assustados, os pais foram rapidamente a Unidade de Pronto Atendimento (UPA), local para onde o jovem havia sido encaminhado.

Devido a gravidade do caso, foi removido para o Hospital Santa Cruz (HSC) e foi internado na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI). A suspeita era de morte encefálica, que significa a ausência de todas as funções do cérebro. “Parecia surreal, aquilo não podia estar acontecendo”, relata Solange. Nos dias seguintes, foram feitos e refeitos diversos exames e procedimentos, mas em nenhum deles o jovem reagiu. “Quando a psicóloga sentou do meu lado, já fiquei apreensiva. Logo pensei, não deve ser notícia boa”, conta a mãe. Na segunda feira, dois de abril de 2018, 36 horas depois do momento em que foi baleado, o diagnóstico foi confirmado. “Nenhuma mãe e nenhum pai deve passar por isso”, se comove Solange. Em meio a dor da perda, a família é informada sobre a possibilidade da doação dos órgãos. “Esses casos envolvem um momento muito difícil, que não é esperado. As famílias estão tentando entender o que aconteceu e, ao mesmo tempo em que elas estão processando a perda, precisam tomar essa decisão, porque a captação não pode demorar muito tempo”, relata a enfermeira e coordenadora da Comissão Intra-Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT), Fernanda da Cunha Salvi. O instante é de incerteza. “Tu vê o teu filho ali, o coração dele ta batendo, será que tá certo o que nós estamos fazendo?”, questiona a mãe. “O fato de achar

que o coração é o órgão que controla a vida, dá um falso positivo para a família, que não percebe que o paciente está em óbito e crê na possibilidade de reversão do quadro. Mas depois que o cérebro morre, não tem como retornar”, explica a enfermeira. S ol i d a r i e d a d e e p e n s a r n o próximo foram os motivos que auxiliaram na decisão mais difícil. “É muito dolorido, o peito fica apertado, mas me ponho no lugar de uma mãe que está com o filho ali, esperando um órgão. Poderia ser o Thiago aguardando um coração”, conta emocionada Solange. “É um momento único, que vai de respeito a família, precisamos ter essa visão também. Mas, tem outras pessoas que estão aguardando esse órgão para dar continuidade a sua vida. Tem pessoas esperando a doação de córneas para poder enxergar, outras que vão receber um pulmão para não ficar ligadas a tubos de oxigênio. Esse lado é gratificante, de poder ver esse retorno”, afirma a enfermeira. Carinhoso, divertido, alegre e prestativo, são algumas das características que ficam marcadas do jovem. “O Thiago ajudou cinco pessoas. Ele partiu com a missão cumprida”, destaca a mãe. O CASO Thiago Henn estava no Autódromo Internacional de Santa Cruz do Sul quando foi atingido, em abril de 2018. O local é conhecido como ponto onde fãs de som automotivo se encontram nos fins de semana. De acordo com a investigação da 2ª Delegacia de Polícia, o fato teria começado com uma briga entre algumas mulheres. A desordem ocorreu perto do carro de Thiago, que tentou afastá-los. Após, um outro rapaz se desentendeu com

o jovem. Então surgiu o adolescente, que teria atirado na vítima. O QUE OS DADOS MOSTRAM? Dados da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, mostram que de janeiro a abril de 2019 foram realizados 11 transplantes de coração, enquanto no mesmo período, em 2018, o número era de 6. No estado, o órgão mais transplantado é o rim, com 154 procedimentos realizados, seguido do fígado, com 48, e do pulmão, com 21. Até abril deste ano, 989 pessoas aguardam por um rim; 189, por medula óssea; 124, por fígado, 107, por córnea; 78, por pulmão; 18, por coração; e 3, por pâncreas. QUERO SER DOADOR. O QUE DEVO FAZER? No Brasil, para ser doador é preciso comunicar a família, pois somente os parentes podem autorizar a doação. No caso de não familiares, o procedimento só acontece mediante autorização judicial. Segundo o Ministério da Saúde e com base na legislação brasileira, não há como garantir efetivamente a vontade do doador. No entanto, quando a família tem conhecimento do desejo do parente falecido, o desejo é respeitado. A informação e o diálogo são totalmente fundamentais, essenciais e necessários. Os órgãos doados vão para pacientes que necessitam de um transplante e estão aguardando em lista única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado e controlada pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT). 7




CULTURA POPULAR

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

TENÓRIO: O PALHAÇO QUE QUER MUDAR O MUNDO O fascínio por esse universo sempre fez parte da imaginação das pessoas, ainda que hoje isso esteja um pouco esquecido em meio a tantas alternativas JOÃO VALTER PASSOS jvspassos0208@hotmail.com

“Sentir a reação do público é algo quase que indescritível”

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uando ele chegava à cidade era um acontecimento. Algazarra de meninos e meninas. Os adultos, mesmo que disfarçando, deixavam o lado infantil aflorar. Curiosidade e expectativa. Durante o dia as crianças ficavam por perto admirando, querendo ver as atrações. À noite, tinha aqueles que davam uma espiadinha por debaixo da lona. Lá dentro, risos. Era o palhaço com suas brincadeiras, fazendo aquele momento inesquecível. Ele continua a ser a peça central do espetáculo. Provoca gargalhadas e até mesmo medo, acreditem. É emblemático. O circo está diferente, precisou se reinventar para sobreviver à nova realidade, mas o palhaço segue como a essência. Característico dos tempos áureos, ganha espaço nas novas plataformas e redes sociais, mas prefere o contato direto com a plateia. Ele faz graça e diverte. Não é bobo como se pode pensar. Quer que as pessoas percebam o quanto o sorriso é importante. De certo modo, quer mudar o mundo. Torná-lo mais simples. O reino da inocência. Esse mundo fantástico “pegou” o nosso entrevistado. Mesmo que nunca tenha morado efetivamente em um circo, desde muito cedo Augusto Cézar Flores de Barros ou Augusto Barros como ficou conhecido se encantou com esse espaço mágico e com tudo o que ele representa. O palhaço foi o que mais chamou a atenção dele. Então, decidiu criar o Tenório e fazer 10

parte desse universo. O objetivo: “manter viva essa magia no coração de crianças e adultos”, define. Augusto sempre foi extrovertido, falante. Ótima comunicação. Parecia ter nascido para o mundo artístico. A família, o rádio e o circo, foram os grandes motivos que o fizeram seguir em frente e com sua alegria espalhar a mensagem de amor e de um mundo melhor por onde passa. “Sentir a reação do público é algo quase que indescritível”, relata. Assim, Augusto Barros inicia a conversa. Contagiado pelo tema conta o porquê e como criou o palhaço Tenório. A MISSÃO DO TENÓRIO O ano era 2013. Então com 16 anos, Augusto Barros ingressa como operador de áudio em uma rádio na cidade de Rio Pardo. O talento, a iniciativa e a criatividade logo o conduzem para a equipe esportiva da emissora na função de repórter. A visibilidade, o comprometimento e a maneira alegre e descontraída com que se portava, chamou a atenção e passou a receber convites para ministrar palestras, especialmente para crianças e adolescentes. Foi assim que decidiu criar um personagem para facilitar o contato com o público. A ideia surgiu após um convite feito pela Brigada Militar de Rio Pardo para que ele fizesse uma palestra voluntária e educativa às crianças do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD). “A experiência foi sensacional”, destaca. O amor pela figura do

palhaço e de forma mais ampla para com o circo, foi quase instantânea. Passou então a aperfeiçoar o personagem e a estudar a respeito do humor, circo e teatro. Queria viajar com o Tenório pelo país, levando diversão ao público. Deu certo. Tenório já se apresentou em mais de 100 cidades nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Foram mais de 1200 espetáculos. “Um palhaço divertido que leva mensagens positivas. Simples, parecendo ingênuo, mas ao mesmo tempo perspicaz e rápido nas respostas”, conforme definição do criador. O personagem abriu muitas portas e possibilitou a Augusto conhecer muitos lugares e fazer muitas amizades pelo país. Hoje, ambos são muito requisitados para apresentações e divulgações de espetáculos. Em determinado momento a história dos dois parece se confundir, entrelaçar-se. “Tenório é puro, leve, não usa palavrões ou expressões de duplo sentido e tem por missão fazer os adultos voltarem a se sentirem crianças e as crianças permanecerem crianças e aprenderem a amar o circo”, relata. Augusto conta que ao final dos espetáculos muitas pessoas chegam a chorar com a maneira ingênua do palhaço e pedem para tirar fotos. “É emocionante”, frisa, deixando transparecer o carinho e o orgulho ao falar de sua criação. Mesmo nessa realidade tecnológica, na qual há muitos

espaços para divulgar o trabalho, a simplicidade e a inocência do palhaço são ainda as marcas principais e estar em contato direto é “fantástico e realizador”. Hoje trabalhando na coordenação de eventos de uma emissora de rádio da região do Vale do Rio Pardo, Augusto sente a falta de tempo para as viagens com Tenório, mas o personagem continua presente, emprestando a imagem e a voz para a divulgação de diversos circos pelo Brasil. Esse foi o meio encontrado para não sair totalmente desse mundo mágico. “Um lugar que é incrivelmente apaixonante”, define. Augusto projeta novo espetáculo para o segundo semestre. Começa pelo Vale do Rio Pardo e Taquari e depois segue pelo estado do Rio Grande do Sul. O evento será em parceria com uma empresa de bonecos e terá, além de Tenório, personagens infantis. “Um grande show de circo, com muita magia e humor”, finaliza Augusto. O brasileiro, sem dúvida, é um povo trabalhador, lutador e alegre. O palhaço, de certo modo, representa tudo isso, pois nem sempre está feliz, por vezes tem dificuldades e problemas, mas tem que passar alegria para os outros. Assim são as pessoas. Nem sempre tudo está bem, mas é necessário seguir firme. Por isso é que há essa identificação, essa aproximação e esse sentimento de carinho com o palhaço. Ele, de certa maneira, personifica os sentimentos percebidos no dia a dia.


FOTOS: FERNANDA NUNES DA SILVEIRA

RESISTÊNCIA

UMA VOZ DA NEGRITUDE Experiências da vida de uma mulher negra em Santa Cruz do Sul FERNANDA NUNES DA SILVEIRA fernandandsilveira@gmail.com

O pior do racismo é as pessoas brancas falarem que estão do teu lado e, quando acontece uma situação, elas se calam”, relata a publicitária Cíntia Mara da Luz, mulher negra, de 40 anos. Para ela, a identificação como pessoa negra é um processo de uma vida inteira. “É um apanhado de coisas que foram acontecendo, me sinalizando e me mostrando como é que eu deveria me comportar – como, por exemplo, os conselhos dos meus pais e os acontecimentos vivenciados na escola”, explica. EXPERIÊNCIAS E FAMÍLIA “Sou nascida e criada em Santa Cruz do Sul e moro há 40 anos no mesmo local”, diz Cíntia. Ela reside no centro da cidade. “Nós somos a única família de negros na minha rua”, destaca. Por isso, conta que as pessoas se surpreendem com o lugar onde mora. “A minha mãe sempre foi cuidadosa com o jardim dela e certa vez uma senhora passou e comentou: ‘Que bonito o seu jardim, pena que você cuida e é de outra pessoa’”, relata. Quando sua mãe explicou que a propriedade era dela, a senhora se espantou. “Isso porque não é comum na nossa cidade famílias de negros morarem em uma casa boa e no centro”, pondera. Cíntia frequentou uma escola estadual pública no centro da cidade, na qual a maioria era de estudantes brancos. “No jardim de infância, era eu e mais um colega negros de um total de quase 30 crianças”, recorda. Durante os ensinos fundamental e médio, ela era a única aluna negra da sua turma. Porém, no segundo grau, mudou para outro colégio em que haviam estudantes negros em outras salas. “Assim, eu não me sentia tão perdida quanto na escola que estava antes”, explica. Nas aulas em que se abordava a história dos negros no Brasil, Cíntia lembra que eles apareciam acorrentados, na senzala e em situações de subalternidade, crueldade e sofrimento. “A professora falava da questão da escravidão e do negro escravo, fujão, preguiçoso e relaxado. Depois, quando saímos do Brasil Colonial para o Brasil Pós-Moderno, nós negros sumimos da história. E eu como criança negra assimilava tudo isso para mim”, lembra. Ela pensava que os seus pais não representavam

essa imagem estereotipada. “Minha mãe cuidava bem do jardim, do pátio, de mim e trabalhava desde os 13 anos e meu pai com sete anos já foi ajudar descarregar caminhões de fumo, de pedra ou de areia”, conta. Por isso, questionava essa ideia a respeito dos negros. “Aquilo me dava uma sensação de raiva e de contrariedade, um sentimento que não sabia como demonstrar”, relata. Em relação à convivência com os colegas, Cíntia ressalta que, como era comunicativa e ligada aos esportes, sempre estava em um grupo de amigos, embora fosse a única negra entre eles. “Eu tenho amizades daquela época até hoje, mais de 20 anos depois”, diz. Contudo, teve casos em que vivenciou o racismo e seus colegas não notaram. “Foram momentos em que eu percebi que eles eram meus amigos, mas não entendiam a minha situação”, considera a respeito das provocações que sofria. Um deles aconteceu quando, no intervalo entre as aulas, um aluno fez piadas sobre negros. “Ele falou coisas como: ‘qual a semelhança entre mulher negra grávida e um pneu furado? É que ambos estão esperando um macaco’, e outras piadas esdrúxulas e aquilo me machucou”, exemplifica. O conflito entre eles acabou na diretoria. “A coordenadora pedagógica chamou a atenção dos dois e ficou por isso mesmo. Eu acho que só não tomei uma punição mais dura porque era uma aluna que nunca tive problemas de comportamento”, relata. Ela cita uma situação vivenciada no período escolar, na qual houve a preferência de alunos brancos para realizar atividades de destaque. “Eu gostava muito de ler e sempre queria declamar poemas nas semanas de arte da escola, mas escolhiam as meninas brancas e loiras, que também eram as que ganhavam os concursos como o de primeira prenda”, conta. Em um ano, ela insistiu muito em fazer a leitura dos poemas e as professoras deixaram. “Elas nunca diziam: ‘Vem Cíntia, vamos fazer tal coisa ou a Cíntia fala bem, então vamos eleger ela como representante da turma’, era sempre os outros e eu não entendia o porquê disso”, explica. Outro aspecto que destacou, era a falta de maquiagens para pele negra 11


na época da sua adolescência na década de 90. “Era terrível eu querer me produzir e colocarem base mais clara que o tom da minha pele. Ficava algo muito fora do normal”, recorda. Quando foi tirar as fotos para sua formatura, ela agiu diferente. “Eu chamei a maquiadora e falei: ‘aqui está o meu pó, minha base e meu batom’, para que não tivesse o problema de ela dizer que não tinha produtos para pele negra”, relata. Com relação ao cabelo, Cíntia conta uma experiência que vivenciou por causa dos cachos e suas características específicas. “Na infância, minha mãe sempre penteava com produtos para deixar brilhoso e bonito. Mas, quando inventava de passar o ferro quente para alisar, não conseguia o balanço das modelos que estavam na televisão”, lembra. Após essas experiências, ela decidiu usar tranças. “Aí, era o tal cabelo comprido que tanto queria ter”, ressalta. Depois de terminar o ensino médio, Cíntia procurou emprego como secretária. “Naquela época, eu tinha o segundo grau completo e um curso de datilografia em máquina elétrica e já estava fazendo o de informática. Então, eu tinha o que era pedido para ocupar esse cargo e eu nunca conseguia”, relata. Enquanto estava nesse processo de busca, chegou uma proposta para ser doméstica. “Eu aceitei porque precisava trabalhar e queria ter as minhas coisas. E dessa primeira, surgiu outra casa, e outra, e outra. Então, nesse meio eu tinha muitas oportunidades”, conta. Ela exerceu essa função por pouco mais de um ano

e decidiu que não queria continuar mãe dizia que tem que responder e sendo doméstica. “Não desmereço enfrentar. Havia um equilíbrio entre a profissão, já que minha mãe me os dois”, considera. Além do apoio criou e me sustentou realizando essa dos pais, também recebeu conselhos atividade, mas eu queria trabalhar em da tia. “Ela me orientava assim: ‘tem outra área porque tinha condições e que botar na cabeça que tu é mulher, competência para fazer e almejava negra e pobre. Então, tem que ultrapassar essas três barreiras para outras coisas”, considera. Após isso, conseguiu emprego poder querer ser alguém na vida”, de secretária em uma escola de lembra. A partir dessas vivências, patinação, na qual ficou durante Cíntia entendeu que teria que ser dois anos. No ano de 2002, tentou forte para passar pelas dificuldades e obstáculos ao uma vaga para longo de toda trabalhar no a sua história. escritório de “Tem uma frase uma fumageira, que meu pai no entanto lhe “Esse não é um problema mandaram só meu, da Cíntia que é negra sempre dizia: ‘tu não é mais para um cargo ou de outros negros, que ninguém, do setor de é um problema de um todo, recebimento. de uma sociedade brasileira” mas ninguém é mais que tu e “Ali, percebi não pode deixar que a maioria as pessoas das pessoas CÍNTIA MARA DA LUZ pisarem em ti, safristas era por ser negra negra, as ou ser pobre’ quais estavam e eu trouxe batendo fumo ou descarregando caminhão. Poucos essa ideia para minha vida de não negros estavam no mesmo cargo que querer ser mais e melhor do que eu”, relata. Após essas primeiras os outros, mas também cuido para vivências, Cíntia percebeu que que as pessoas não pisem em mim”, existiam dificuldades específicas pondera. A UNIVERSIDADE E O para ela. “Quando almejava outros MOVIMENTO NEGRO trabalhos, demorava e era custoso Em 2002, Cíntia iniciou a graduação ou não obtinha as vagas. Mas, quando ia para o lado em que estão em Comunicação Social na habilitação acostumados a darem empregos de Publicidade e Propaganda na para pessoas negras na cidade, eu Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), a qual concluiu em 2008. conseguia logo”, reflete. Para passar por essas experiências, Ao longo do curso, para ela, não ela tinha o apoio da família. “Meu pai era abordado questões relacionadas falava para não me importar porque à diversidade e a determinados eu sabia que eu não era assim e minha grupos sociais como, por exemplo,

Cíntia Mara da Luz, militante do Movimento Negro, conta suas experiências de vida 12

os negros e as pessoas LGBTs. Ela lembra que a temática de gênero e dos estereótipos do corpo da mulher estava começando a ser tratada nessa época. Além disso, conta que notou que os professores não estavam preparados para atender os alunos que chegam com essas demandas. “Dentro das disciplinas, eu percebia a falta de negros na publicidade – e quando apareciam era como empregados ou em segundo plano – e me incomodava não estudarem isso”, explica. Cíntia também observou que, na parte da psicologia do consumidor, não incluíam os negros como possíveis clientes. “Se estuda dentro da academia e se tem esse olhar branco, universal e europeu”, destaca. Para ela, falta um olhar mais criterioso e cuidadoso para quem está excluído. “Está no senso comum que todos que consomem e têm poder aquisitivo são brancos”, considera. E relata que era a única que buscava entender os motivos de não colocarem negros e mulheres nos trabalhos. “Eu acabava tensionando dentro de sala de aula e questionando os professores dos porquês disso”, pontua. Inclusive, a sua monografia abordou a invisibilidade do negro na publicidade de Santa Cruz do Sul. Ela buscou entender se havia influência dos clientes na escolha dos modelos das propagandas. “Todas as agências responderam que não e disseram que mandavam conforme o perfil do cliente. Por exemplo, se era uma empresa de sobrenome alemão, eles automaticamente mandavam materiais com pessoas de características alemãs; quando era


uma empresa mais jovem e aberta, colocavam jovens com o cabelo um pouco mais crespo, mas não negros”, explica. Segundo Cíntia, até hoje, a visão de que o negro é pobre e periférico é representada predominantemente na mídia. “Então, há a consciência de que o negro não tem condições de comprar um carro, de estudar em uma universidade e de adquirir alguns produtos”, pensa. Porém, ela cita um exemplo de mudança no pensamento de algumas empresas, a qual também foi resultado do tensionamento do Movimento Negro e da sociedade. “Hoje, é uma beleza entrar em uma farmácia e ver um estande cheinho de produtos específicos para cabelos crespos de todos os tipos. Eu passei uma vida inteira indo lá e só tinha para cabelos lisos sedosos”, relata. Devido a todas as inquietações da sua vida, em 2003, Cíntia se tornou uma militante do Movimento Negro. “Eu comecei a ser engajada dentro da Unisc, que tinha o Grupo de Trabalho pela Promoção da Comunidade Negra em Santa Cruz do Sul (GT-Afro) e nós fazíamos as leituras sobre a questão do negro”, conta. Nesse espaço, teve contato com muitos estudos feitos dentro da universidade, especialmente da área da História, que abordavam o negro em Santa Cruz do Sul e na região. “Com isso, eu pude perceber como é que se dava o racismo e fui entendendo que existem expressões racistas que colocam certo comportamento e biótipo como sendo apenas do negro. Mas, isso só relacionado ao esporte e ao entretenimento, porque, na parte intelectual, não se tem referência de pessoas negras”, considera. Outro ponto destacado pela publicitária para a sua militância no Movimento Negro, foi quando compreendeu a importância da Sociedade Cultural Beneficente União (S.C.B. União). “Eu sempre tive contato com o União e, quando sai do Rio Grande do Sul e vi que tinham outros clubes negros resistentes, que se autoproclamavam quilombos urbanos, fui entendendo todo o porquê da existência dessa entidade e o significado dela”, relata. A instituição foi fundada em 1923 e é um clube social negro de resistência e luta antirracista em Santa Cruz do Sul. Com o tempo, passou a ter alguns cargos dentro do S.C.B. União. Também, fez parte do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial (Compir) nos biênios 2005/06 e 2010/11. “Ali, comecei a perceber o u t r a s t r a n s ve r s a l i d a d e s q u e nós precisávamos abordar como educação, segurança, trabalho, saúde e cultura para a população negra”, ressalta sobre as ações necessárias na cidade. Segundo Cíntia, a criação do Dia da Consciência Negra foi uma das pautas que o Movimento Negro do Rio Grande do Sul levou para âmbito nacional. E, para ela, esse grupo também realiza atividades representativas em Santa Cruz do Sul. “Por fazermos a resistência que

fazemos na nossa cidade e região, o movimento é forte só pelo fato de conseguir se manter”, pondera. Para auxiliar no pagamento da mensalidade da Unisc, Cíntia decidiu procurar algum emprego dentro da instituição. “Passei por cinco processos seletivos na universidade. Em todos, eu era aprovada nas dinâmicas de grupo e pela psicóloga, mas não passava pelos diretores ou pela pessoa responsável pelo setor”, conta. Na quinta vez, conseguiu um trabalho de auxiliar administrativo na biblioteca, onde ficou por quase seis anos. “É um setor de atendimento ao público que tem uma diversidade maior em comparação a outros da universidade. Tem pessoas mais velhas, jovens, negras, gordas, brancas e magras”, pondera. Quanto ao preconceito dentro da universidade, a publicitária diz que sempre foi de forma velada. “Até os professores quando eu questionava, eles, muitas vezes, não tinham respostas. E sempre fui muito direta e quando largava assim: ‘Só porque eu sou a única preta’, eles ficavam assustados”, relata. Ela convivia com uma pequena turma de amigos do curso que eram os mesmos que trabalhavam com ela na biblioteca. “Por eu ter esse relacionamento e ser muito bem posicionada, diretamente as pessoas não falavam nada para mim, porque sabiam que iria dar o retorno e não ia baixar a cabeça”, explica. Em conversas, diante de todos os tensionamentos que fazia, Cíntia notou uma reação comum. “Diziam: ‘Mas não é assim, tu vê racismo em tudo’. Naquela época, eu ficava pensando se estava mesmo paranoica, porque ficava uma turma inteira me olhando, porém percebi que era uma turma inteira de pessoas brancas, professor branco e não tinha uma literatura que questionasse isso”, conta. “Nunca tive professora negra na escola, na universidade muito menos. Então, qual a referência que nós negros temos para estarmos dentro da academia estudando?”, pergunta. Ela explica que foi somente no mestrado em Desenvolvimento Regional na Unisc, o qual iniciou em 2017, que começou a ter acesso aos conhecimentos para problematizar esses pontos. “Agora mudo a minha frase de por que não tem negros na publicidade para por que só têm brancos, para questionar a branquitude também”, pontua a respeito do tema da sua dissertação. A publicitária também destaca um comentário comum ao saberem que estava na universidade. “Falavam para a mãe: ‘Ai, que bom que ela está lá, uma negra inteligente’. Parece que eu sou uma coisa fora do normal, ainda mais sendo questionadora do jeito que sou”, relata. Ela diz que os seus pais sempre tiveram emprego estável para que tivesse a oportunidade de estudar. “Minha mãe ficou 30 anos numa mesma casa e o meu pai se aposentou numa mesma empresa depois de 25 anos.

Nunca passamos por uma situação de desemprego ou de sobreviver só de safra”, conta. Para Cíntia, há pessoas que a consideram fora do eixo da normalidade do que é ser negro por fugir dos estereótipos. “Isso é uma das manifestações do racismo e é uma das violências simbólicas mais cruéis”, pondera. Além disso, cita o caso de racismo no banheiro do bloco 13 da Unisc em 2018. “A universidade não soube agir e tratou como sendo um assunto que não precisava se tomar posição”, pensa. Para a publicitária, alguns não se veem como racistas, porque consideram ter uma boa convivência com familiares ou amigos negros. “Porém, quando acontece uma situação dessas em que a nossa vida foi posta em jogo e fomos ameaçados - porque dizia morte aos negros - eles não se pronunciam. Aí tu vê que está sozinha”, explica. E complementa: “Mas, esse não é um problema só meu, da Cíntia que é negra ou de outros negros, é problema de um todo, de uma sociedade brasileira”. TRABALHO E PROJETOS SOCIAIS Após concluir a graduação, Cíntia trabalhou em uma agência de marketing digital por dois anos. Depois, essa empresa fechou e ela começou a busca por outro emprego, já com experiência na sua área. “Mandei currículo para todo o estado e até para fora. Passava no processo seletivo que, muitas vezes, era virtual, no qual era preciso elaborar materiais. Mas, não conseguia a vaga”, relata. A publicitária fez outras tentativas, porém o resultado era o mesmo. “Eu percebi que não era por incompetência

minha, mas sim por algum entrave que não estava me deixando acessar o mercado de trabalho”, considera. Nesse momento, ela decidiu focar apenas na área de projetos culturais. Em 2009, Cíntia começou a participar do projeto Águia Agito: Resgate e Valorização da Cultura Afro-Brasileira através do Carnaval realizado no S.C.B. União, no qual dava aulas de percussão e oficinas sobre a história do Carnaval, a cultura negra e o empoderamento feminino para as crianças da periferia, dos abrigos municipais e das que estavam em medida socioeducativa. “Abordávamos esses assuntos sobre outra ótica, diferente da que normalmente se tem dentro da sala de aula”, explica. Também, realizaram viagens ao Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), ao Estádio Beira-Rio, ao Museu Treze de Maio em Santa Maria, que é um clube social negro. “Mostramos as outras possibilidades que as pessoas negras têm, porque não é só ser uma faxineira ou um necessitado”, destaca. Segundo a publicitária, o projeto funcionou de 2009 a 2017, porque, desde então, com a crise política do Brasil, houve redução dos editais com verbas para essas iniciativas, mas vão tentar retomá-lo em 2020. “Foi um período de aprendizagem tanto para mim quanto para as crianças. É muito enriquecedor e gratificante poder proporcionar para as pessoas uma nova visão e apontar outras oportunidades. O Águia Agito foi um momento de crescimento e foi ali que aprendi tudo o que sei hoje sobre projetos culturais”, reflete Cíntia. 13


FOTOS: CAROLINE MOREIRA/ARQUIVO PESSOAL

EXEMPLO DE LUTA

HÁ VIDA APÓS O CÂNCER

Lisandra Karine Wink é sinônimo de força e determinação

A história de uma mulher que enfrentou e venceu a doença duas vezes de uma forma extraordinária CAROLINE MOREIRA caroldorneles94@gmail.com

Você está com câncer”. Quem já ouviu a frase fatídica sabe o quanto é aterrorizante. Embora ele pareça ser algo distante, bem distante na verdade, o câncer é tão assustador que talvez você não imagine o quão difícil deve ser travar uma batalha contra a doença, mas ele é real e não escolhe classe social, etnia e nem religião. Só em 2018, essa tornou-se uma realidade de cerca de 18 milhões de pessoas em todo o mundo, sendo que destas, 9,6 milhões já perderam a vida em decorrência do tumor. De acordo com a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC), até 2030, esta deve ser a principal causa de morte da população. O diagnóstico da doença introduz uma realidade brutal e dramática, que também pode transformar pessoas comuns em grandes lutadoras. E não falo daquelas que brigam por um troféu, a luta delas é pela vida. Lisandra Karine Wink, de 40 anos, moradora de Vera Cruz, é uma dessas grandes lutadoras e tem uma história de superação que vou lhe contar agora. Ka, como é carinhosamente chamada pelos amigos, recebeu o diagnóstico há dez anos. Emocionada, ela relembra como foi quando abriu o exame e leu o laudo médico onde constava: carcinoma ductal infiltrativo positivo para células malignas. Um câncer de mama. “Observei o nódulo me apalpando durante o banho e

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após alguns exames constatou-se que eu tinha câncer de mama. Até então, você não sabe direito o que é a doença”, lembra. Karine perdeu sua mãe em 2005 decorrente de um câncer de esôfago, por isso decifrou que positivo para células malignas se tratava de um tumor maligno. Ela conta que sentiu um frio na barriga ao imaginar o que iria enfrentar pela frente e sabia o quanto seria fundamental manter os pés no chão, ter equilíbrio emocional e tranquilidade. Isso porque, a sua batalha pela vida já havia começado bem antes de receber o diagnóstico. No dia 11 de setembro de 2007, praticamente um ano antes de descobrir o câncer de mama, Ka perdeu o noivo, com quem estava junto há 15 anos, em um acidente de moto. Ele voltava do trabalho, quando sofreu uma tentativa de assalto, acelerou a moto e colidiu contra um poste de alta tensão, falecendo no local. “Minha mãe faleceu em 2005, já havia perdido meu pai há alguns anos e ele em 2007. Meu chão havia caído, a vida não tinha mais graça e eu não queria mais viver”, lembra. Karine precisou de ajuda médica, de remédios para dormir e de antidepressivos. “Com o passar dos meses eu fui cada vez piorando mais, até perder a vontade de viver. Eu não queria tirar minha própria vida, mas pedia todos os dias para Deus para que me levasse também, pois queria

morrer”. Aqui, Karine já encarava uma árdua realidade, que, apesar do diagnóstico em 2008, não sentenciou o fim. Com o sonho de conhecer as incríveis praias do Nordeste ainda não concretizado, a irmã de Karine a presenteou com uma viagem de uma semana, para que o passeio servisse também de terapia e a ajudasse a sorrir novamente. “Eu queria viajar primeiro para que quando voltasse, fizesse tudo que teria que fazer, inclusive, já até tinha deixado minha cirurgia marcada, estava tudo certo”, conta. Karine fez a viagem e se encantou com o lugar, o mar e as paisagens. “Era tudo maravilhoso e aí eu pensei: meu Deus, não quero mais morrer, quero viver, eu vou lutar e vou vencer, essa doença não me pertence e vou conseguir passar por isso”, enfatiza. Ka voltou do passeio e reuniu a família para dar a notícia sobre a doença e disse: eu estou com câncer de mama. No momento, os familiares ficaram em choque, mas todos a apoiaram nessa luta. Karine então fez a cirurgia para a retirada do nódulo e logo após iniciaram as sessões de quimioterapia. “Eu fiz seis sessões de quimio e depois 34 de radioterapia. Posso dizer que naquela época o tratamento foi tranquilo, com poucos efeitos colaterais”, salienta. Vencido a etapa do tratamento, era hora de Karine enfrentar a outra parte da história, de dar

continuidade aos sonhos e projetos que havia construído com o noivo, era chegada a hora de morar na casa própria. “Nós havíamos construído uma casa juntos, mas eu nunca cheguei a morar nela, então este era o momento de eu recomeçar, nesse lugar, onde havia uma história”, ressalta. As narrativas, tanto do recomeço de Karine quanto da vida após o câncer se entrelaçam. Juntas, a fizeram uma mulher mais forte. Ela prosseguiu com o tratamento contra a doença – com o uso do medicamento Tamoxifeno, que, segundo a bula, inibe o crescimento do câncer de mama – por cinco anos, e desde então, tem feito exames de rotina anualmente. A LUTA CONTINUA Passados exatamente 10 anos desde o diagnóstico de câncer de mama, Karine seguia normalmente a sua vida, com novas motivações e com um novo amor. Estava prestes a comemorar um ano de namoro. No início de 2018, durante os exames que faz costumeiramente, foi descoberto um pequeno cisto no ovário esquerdo, que, segundo a sua médica, é normal aparecer. “Ela me disse que não precisava me preocupar, pois existem pessoas que têm há anos e que apenas fazem um acompanhamento. E ainda me questionou: você não pensa em ter filhos? E eu respondi que sim, que era um grande sonho, mas como tive que tomar uma medicação por cinco


anos, a vontade de ser mãe acabou se adiando”, relata. Após três meses, no dia 4 de junho, Karine refez o exame. “Lembro que o médico me perguntou o porquê de eu estar fazendo e respondi que era de rotina e ele disse: olha, tem algo muito estranho aqui”, recorda. O médico a explicou que os ovários podem ter no máximo entre 15 a 20 milímetros cúbicos e pontuou: o seu está em 700, você vai precisar passar por uma cirurgia. “Eu fiquei muito assustada na hora, ainda mais pela diferença de tamanho”, frisa. Karine precisou ir a um novo médico. Até entender o que estava acontecendo e receber um diagnóstico, foram mais quatro horas de espera e de ansiedade. Já durante a consulta, o médico comunicou que ela precisaria fazer uma cirurgia, ou uma mais agressiva ou uma menos agressiva. “E aí eu perguntei: ‘Doutor, o que seria menos agressiva?’ E ele respondeu que seria a retirada de útero e ovários. Eu não tive nem coragem de perguntar o que seria a mais agressiva”, diz. Desde essa data, Karine percebeu que a sua luta continuava. E que ela precisaria ser forte, mais uma vez. Ao retornar para casa e encontrar o marido, Vagner, desabou, e ali, na porta de casa, chorou. “Precisava colocar tudo para fora, tudo o que eu estava sentindo”, recorda. Ao longo daquela semana, ela conta que estava cada vez mais pensativa e inquieta, pois não sabia o que estava acontecendo. Cerca de cinco dias após a ida ao médico, alguns sintomas surgiram. “Começou a me dar falta de ar e parecia que estava crescendo algo dentro de mim. Lembro que o Vagner dizia: Ka, não está crescendo nada dentro de ti, fica calma. Mas a falta de ar aumentava”, conta. Nos dias seguintes a esse episódio, Karine piorou. A falta de ar, o inchaço e as dores nas costas se multiplicavam. “Foi assustador”, diz. Novamente, com resultado em mãos, Karine repetiu a história de 10 anos atrás. “Existe um exame, o CA 125, que mostra

se há risco de câncer ou não, se Karine se recuperou e estava prestes ultrapassar de 35 U/mL, há um a passar novamente por mais um grande risco. O meu estava em 803 desafio. “Coloquei o cateter e dei U/mL”, ressalta. Ela conta ainda início às quimioterapias em Porto que ao ler o laudo de outros exames, Alegre, foram mais seis sessões com constavam anormalidades também um intervalo de 21 dias”, salienta. no útero e nos pulmões. O tumor Com o início das quimios, Karine que emergia em Karine, liberava um começou a perder o cabelo, o que líquido que se espalhava por todo pode parecer muito insignificante o corpo, por isso, as fortes dores para alguns, no entanto, balança a nas costas. Durante um período, a autoestima para quem passa por isso. única posição que podia dormir era “Eu pensei, já perdi há 10 anos e tirei sentada em uma poltrona. E essa foi de letra, vou fazer o mesmo, vou usar a sua realidade por alguns dias. Ela lenços e turbantes com amarrações travava novamente um cruel duelo diferentes”, frisa. contra o câncer. D u r a n t e o p e r í o d o , Ka r i n e Após dias de sofrimento e angústia, vivenciou experiências que, quem Karine parou no hospital, no dia 12 tem câncer, muitas vezes desconhece. de junho, Dia dos Namorados. A Ela construiu novas amizades, data comemorativa seria a primeira comemorou o aniversário com os de Karine e Vagner. Ela precisou profissionais da clínica e participou drenar a água dos pulmões para de um evento comemorativo ao voltar a respirar. “Foi Outubro Rosa, retirado mais de um caminhando no litro de água, porém, campo em dia de “ É p r e c i s o t e r jogo no estádio do iria cada vez formar m a i s e p r e c i s a r i a vo n t a d e d e v i ve r Internacional, com para vencer” passar pelo mesmo mais de 400 mulheres procedimento todos ve s t i n d o a c a m i s a o s d i a s . Fo i u m a LISANDRA WINK “Entre de peito nessa notícia ruim num dia luta”. “Estar naquele que deveria ser muito momento, junto feliz”, destaca. Após com todas aquelas a drenagem, Vagner fez uma bela e mulheres, juntas na mesma causa, foi simples surpresa, para não deixar a incrível”, destaca. Foram momentos data passar em branco. “Seria nosso marcantes de uma história que primeiro Dia dos Namorados juntos, Karine escreveu e prevaleceu. nós sonhamos com um dia perfeito, O RECOMEÇO sair para jantar, fazer algo legal, e 19 de janeiro deste ano foi a eu estava no hospital, estava triste. última sessão de quimioterapia de Ele chegou no quarto e tirou de Karine, e o exame CA 125 que antes dentro do casaco um botão de rosa estava muito acima do normal, se e disse: ‘eu sei que não é o que você encontrava em 18 U/mL. Ou seja, ela tinha planejado, mas estou aqui com havia vencido a luta contra o câncer. você’”, conta sorridente ao lembrar A força extraordinária dela cessou do momento. a doença. Karine agora necessita Karine sempre confiou e acreditou de um remédio quimioterápico via em Deus e sabia que Ele tinha um oral específico para a sua genética. propósito para ela. Naquela mesma Apesar da Agência Nacional de semana, no dia 14 de junho, Ka Vigilância Sanitária (ANVISA) ter passou pela cirurgia de retirada do liberado o medicamento no Brasil, o útero, ovários, trompas e apêndice. casal precisou entrar na justiça para Quando acordou, estava no Centro conseguir, devido ao valor que varia de Tratamento e Terapia Intensiva entre 29 mil e 31 mil reais cada caixa. (CTI). Após a recuperação, com E essa é uma realidade vivida por toda a ajuda e auxílio de Vagner, muitos pacientes, que, em muitos

casos, acabam morrendo sem receber o tratamento, que é seu por direito. “São 12 comprimidos por dia, todo mês, então esse seria o nosso custo mensal”, enfatiza. Karine ganhou a causa e agora segue com o tratamento, que, a princípio, deve durar por dois anos. Com mais uma etapa vencida, agora, Ka voltou à ativa com aulas de pilates, o próprio marido é o seu professor, com exercícios na academia e se diverte em casa na companhia de Scooby, um cãozinho da raça Shih Tzu que brinca e corre pelos cantos da casa. “Em toda a minha vida, foi o meu primeiro cachorro. Hoje sou mãe de pet, ele é como um filho para mim”, ressalta. O Scooby foi um presente dado à ela por Vagner, justamente para se tornar um amigão, para ser seu companheiro e, também, para completar a vida do casal, que devido à cirurgia, Karine não pode mais engravidar. “É muito difícil para mim ainda, pois era um sonho poder gerar uma vida, poder gestar. Ainda não aprendi a lidar, mas resignifico isso todos os dias”, frisa. Apesar das circunstâncias e das “feridas” fixadas à história de Karine, o mais surpreendente é o seu sorriso, que mesmo em momentos tão assustadores, ela não deixou de sorrir e de lutar pela vida. Como uma lutadora, Karine constrói dia após dia seu futuro ao lado das pessoas que ama. “Não é fácil quando você recebe o diagnóstico, mas o importante é ter fé e esperança. O apoio da família e dos amigos é essencial, pois estamos tão frágeis que precisamos da ajuda e do carinho das pessoas. E acreditar que tudo passa, é preciso ter vontade de viver para vencer”, reforça. É como diz a música “Trem-bala” de Ana Vilela: “Não é sobre chegar no topo do mundo e saber que venceu. É sobre escalar e sentir que o caminho te fortaleceu. É sobre ser abrigo e também ter morada em outros corações. E assim ter amigos contigo em todas as situações”. É preciso olhar para o que realmente importa em nossas vidas. É essencial viver antes de chegar o final.

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FOTO: ÂNGELA LETÍCIA MANN

TRANSPORTE

TRANSPORTANDO VIDAS PARA UM FUTURO MELHOR Irnês Margarida Class, muito feliz e realizada com seu compromisso com os estudantes

Motorista conduz os estudantes com carinho e pretende seguir esta profissão por muitos anos ÂNGELA LETÍCIA MANN angelaleticia@hotmail.com

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maginem como seria difícil ir para a faculdade sem os motoristas de ônibus. Eles carregam consigo uma grande responsabilidade, pois estão levando vidas, e isso não é uma tarefa fácil. Trago aqui a história de uma motorista de ônibus, com pulso firme, que está sempre na estrada buscando e levando estudantes para a faculdade. Trata-se de Irnês Margarida Class de 59 anos de idade, a única motorista mulher, entre tantos homens que fazem o transporte para Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Irnês começou a dirigir aos 40 anos de idade. Dois anos depois tirou sua carteira D, para ônibus. Durante o dia, ela dirige uma van, buscando e levando crianças para as Escolas Municipais de Educação Infantil (Emeis), em Vera Cruz. A iniciativa de levar as crianças para as Emeis começou há 37 anos, quando ela e seu marido tinham um táxi, e ali fizeram muitas amizades. “As famílias que nós carregávamos em nosso táxi depositavam muita confiança na gente e nos pediram que começássemos a levar seus filhos para as escolas, em Vera Cruz. Em seguida começamos a trabalhar 16

levando desde bebês até crianças maiorzinhas. Eu comecei a ajudar meu marido a levá-los e com isso surgiu a vontade de ser motorista”, conta. Irnês diz que é uma pessoa amigável e que sempre gostou muito de sair, conversar e estar com pessoas. Transportando alunos para a Unisc há 20 anos, ela inicia sua rota para universidade às 18h em Vera Cruz, passando por diversos bairros desta cidade e de Santa Cruz do Sul. A motorista considera seus passageiros como se fossem da família. “Eu sempre gostei de brincar, de dar risada, conversar, pois aqui é um ambiente familiar. Eu faço chimarrão para meu povo às 21h30, nós estamos sempre juntos e essa amizade quero levar para a vida toda” relata. Ela explica que tem passageiros desde as Emeis até a faculdade por terem uma confiança maior depositada nela e por se sentirem mais seguros. “Têm muitos que já se formaram e fomos convidados para formatura, em que ganhamos homenagem, presentes e fizeram um vídeo desde o tempo da escolinha com nós, no qual meu marido dirigia e eu os levava no colo. Isso

tudo é muito gratificante”, conta emocionada. Irnês ama o que faz e sente muito orgulho de sua profissão. Ela não se incomoda com a questão de ir a noite para a Unisc. “Eu não acho ruim, não é difícil. Gosto muito do verão, pois podemos pegar a cadeira e sentar do lado de fora e aproveitamos bem mais, e no inverno ficamos aqui dentro. Eu acredito que meu marido e meus filhos tiram o chapéu para mim”, ressalta orgulhosa. Class considera sua turma muito tranquila e conta que, no momento, vem poucos junto com ela, porque a maioria trabalha em Santa Cruz do Sul. “Meu grande sonho agora, quero ver se eu conquisto até o ano que vem, é comprar um micro-ônibus maior e mais novo para mim”, frisa. A motorista explica que sempre vê seu trabalho como uma grande responsabilidade. “Independentemente da idade dos passageiros que eu carrego, sempre são vidas que estou transportando e elas são meu maior tesouro que tenho em minhas mãos. O mais importante de tudo é que precisamos estar cientes do que estamos fazendo”, relata. Irnês salienta o quanto tem fé

em Deus e na sua vida. “Enquanto a minha saúde me permitir, eu não vou deixar de fazer este serviço e todas as noites quando eu entrego meu último passageiro e vou para casa sozinha eu agradeço a Deus pelo meu ótimo dia e pelo meu trabalho que eu amo”, ressalta. Para a motorista, seu microônibus nunca lhe deixou empenhada na estrada e sempre chegou no horário com seus passageiros, porque ela percebe que tem ônibus chegando às 19h15, situação complicada em que o aluno chega atrasado e perde alguma coisa da aula. Por ser a única mulher, Irnês relata que já aconteceram algumas desavenças com motoristas homens, a qual não entrou muito em detalhes. “Eu tive problema com alguns que não estavam me aceitando. Eles pensavam que eu estava tirando o lugar de outros motoristas. Um deles chegou e disse para mim: ‘Porque você não pecha no meu ônibus’. Eu revidei dizendo que não capotei nenhum micro-ônibus, não arranquei nenhum espelho de caminhão e que o caminhoneiro não veio aqui na Unisc me cobrar, como aconteceu com ele. Deixei-o sem reação”, comenta.


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