Desenrola Aí

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Santa Cruz do Sul | Julho/2022 | Edição 01

Menstruada? Coleta a insegurança PÁG. 06

O Brasil da hiperinflação PÁG. 26

Racismo estrutural: da senzala às periferias PÁG. 32

Não pare! Siga até passar PÁG. 30


S U M Á R I O Para além da autoestima Por Martina Ferreira

Menstruada? Coleta a insegurança

Por Luana Schweikart

Vermelho é a cor mais quente Por Nícolas da Silva

Sem limite

Por Ana Clara Seberino

As marcas de um adeus Por Kássia Machado

Câncer aos 21

Por Guilherme Ubatuba

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IPTU e PVA pra quê? Por Bianca Schilling

O Brasil da hiperinflação Por Kimberly Lessing

Não pare! Siga até passar Por Milena Bender

Racismo estrutural: da senzala às periferias Por Bianca Silva Um crime e duas pessoas da mesma família Por Bruno Bica Metaverso além do buzz Por Carolina Appel


Caro(a) leitor(a)!

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e convido para embarcar em uma leitura em que a mente vai abrir novos olhares e percepções. Esse mesmo ritual foi executado por nós, alunos do curso de jornalismo da Unisc, na disciplina de Jornalismo de Revista II, quando nos foi proposto escolher um tema. Justo nós, jovens e cheios de pensamentos em mente, resolvemos então, DESENROLAR. Seja na área da estética, da saúde, de questões sociais, de crimes aos quais estamos expostos, bem como da economia e dos desafios que temos para vencer a fim de conquistar o que se quer. Abordamos, aqui, pautas que vão prendê-lo como leitor mas, em compensação, libertá-lo como pessoa, buscando sempre cumprir, com maestria, nossa missão: fazer a diferença! Boa leitura! Milena Bender - Coordenadora

t

Turma de Jornalismo de Revista II, 2022/01 - Professor Hélio Etges


PARA ALÉM DA AUTOESTIMA Seja na busca pela perfeição ou por um lábio delineado, o preenchimento labial é um dos procedimentos estéticos mais procurados

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m assunto que está cada vez mais em alta nas redes sociais são os procedimentos estéticos. Lipo LEAD, preenchimento labial, harmonização facial, microagulhamento, skinbooster, fios de PDO, uma infinidade de métodos que, muitas vezes, são realizados juntos. Essas intervenções surgiram com o objetivo de realizar algumas correções, melhorar a aparência da pele, reduzir aspectos que insatisfaziam o paciente ou apenas por fins estéticos. Porém, vê-se nas redes sociais um consumo exagerado desses procedimentos que, em alguns casos, chega ao ponto de modificar e deformar a própria imagem. Dados da Sociedade Brasileira de Cirurgias Plásticas (SBCP) apontam que o Brasil lidera o ranking de cirurgias plásticas em jovens. Em uma pesquisa feita em 2016, dos quase 1,5 milhão de procedimentos estéticos, 97 mil (6,6%) foram realizados em pessoas com até 18 anos de idade. Entre as justificativas apresentadas, a principal é em relação à insatisfação com a própria imagem. Considerando os anos de 2012 a 2022, houve um Fonte: Freepik

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aumento de 141% no número de procedimentos entre jovens de 13 a 18 anos, segundo a SBCP. Entre todos os procedimentos, os mais realizados são preenchimento labial e harmonização facial. Ambos são feitos a partir do ácido hialurônico, um biopolímero presente nas estruturas do corpo humano entre os espaços celulares, como explica a equipe de bioquímicos da Clínica de estética Royal Face, da franquia de Santa Cruz do Sul. No município, o público-alvo destes procedimentos são mulheres entre 30 e 55 anos, segundo Julia Garske, proprietária da franquia especializada em harmonização facial. Para a proprietária, o principal motivo da procura por preenchimento labial é ter volume natural e um lábio mais hidratado ou mesmo para repor o colágeno e o volume perdido ao longo dos anos. Um exemplo do uso do ácido hialurônico para correção é a terapeuta holística Júlia Klafke, de 23 anos, que reside em Vera Cruz. Ela realizou o preenchimento na região do nariz para correção do desnível e, também, nos lábios para dar mais ênfase. A jovem conta ter aprovado o resultado e acredita que quem tem a vontade e tem a oportunidade financeira de investir deve fazer. “Não vejo problema em você querer dar um up, te olhar no espelho e estar satisfeita com o que vê.” Outra jovem que realizou o procedimento de preenchimento labial é a estudante de jornalismo, Milena Bender. Natural de Santa Cruz do Sul, ela escolheu a estética Royal


Face. Como criadora de conteúdo, recebeu a proposta de realizar o procedimento e fazer a divulgação dos serviços da clínica. Antes mesmo de ser convidada pela Royal Face, Milena já tinha o desejo de fazer preenchimento labial, mas o receio de que ficasse artificial demais era maior. Na estética, passou por diversas etapas como avaliação, preparação, até a hora do procedimento em si. “Eu sabia que com ele minha boca iria dar um up, além de melhorar a minha autoestima. Essa oportunidade de parceria foi importante porque eu queria ser um case para mostrar que dá, sim, para fazer preenchimento labial e ter um resultado natural.” Porém, nem sempre esse resultado natural é o desejado por alguns. Em conversa com a CEO Julia Garske, quando o paciente deseja

Aponte a câmera do seu celular para o QR Code e assista o vídeo sobre o procedimento da Milena Bender

uma boca maior, ao utilizar mais que 1 ml de ácido hialurônico na região, ele é alertado pelo profissional se o rosto ficará harmônico ou não. Nos últimos meses, observou-se nas mídias diversas personalidades que realizaram a retirada do ácido hialurônico, como a digital influencer Flávia Pavanelli. Segundo Julia, isso ocorre pelo exagero, técnica utilizada que saiu de moda ou pela realidade não condizer com a expectativa. Usar dos procedimentos estéticos para realçar traços e melhorar aspectos é positivo, desde que seja realizado com profissionais qualificados, com reconhecimento e credibilidade. Atentar-se a preços baixos ou promoções vantajosas é primordial, além de não se deixar iludir com apenas os famosos “antes e depois” e, sim, realizar consultas e avaliações.

Martina Ferreira @martinafsturtm 05


MENSTRUADA? COLETA A INSEGURANÇA! Conheça melhor o coletor menstrual, que pode te ajudar naqueles dias mais doloridos e desconfortáveis do mês

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á quem use um objeto bem pequeno, que ajuda a tornar o momento da menstruação mais agradável e suportável. São os chamados coletores menstruais, uma alternativa que substitui o tradicional absorvente descartável para recolher o sangue do fluxo menstrual. A tecnóloga em Estética e Cosmética Tamara Wermuth, 30 anos, é uma destas pessoas. A venâncio-airense usa o coletor desde setembro de 2021 e o principal fator que a fez mudar, foi o incômodo causado pelos absorventes convencionais. “A virada de chave foi depois de uma caminhada, quando cheguei em casa toda assada do absorvente.” No entanto, há também quem ainda prefira o absorvente convencional, como Patrícia Becker, 38 anos. Para ela, é algo normal e usa o absorvente desde que começou a menstruar, quando tinha 12 anos. “Tenho consciência da geração de lixo e, algumas vezes, o absorvente acaba sendo desconfortável.” A coordenadora administrativa conta que até já pensou em mudar para o coletor, mas tem receio, já que possui fluxo intenso e se preocupa com a questão do tempo de troca e vazamentos. “Sei alguns detalhes, mas ainda não testei este método diferente”, comenta a moradora da Capital do Chimarrão. Se você é como Patrícia, que está com dúvidas sobre o coletor, acompanhe a leitura, pois é hora de esclarecê-las. Para Tamara, usar o coletor é quase como esquecer que está menstruada. Segundo ela, as idas ao banheiro são mais tranquilas, porque não precisa 06

trocar seguido de absorvente e a higienização é mais agradável. Mas o que a encantou foi poder se exercitar sem se preocupar com vazamentos. “No momento da academia, foi onde o coletor mais me ganhou.” Outra observação dela é que tinha uma impressão errada sobre seu fluxo de menstruação. “Quando utilizava absorvente sempre tive a impressão de ter fluxo intenso, porém com o coletor percebi que é normal.” Adriana Martins é ginecologista em Venâncio Aires. Ela explica e incentiva o método para muitas pessoas, que o consideram o ‘queridinho” do momento. Mesmo que para a maioria das pessoas o meio seja algo revolucionário e inovador, o copinho não é nada novo. Os coletores já eram produzidos nas indústrias desde 1930, porém é recente a popularidade do método, graças ao uso de materiais que os tornam mais confortáveis, hipoalérgicos e menos poluentes. O coletor é um copo pequeno e flexível em forma de funil feito de borracha ou silicone, que é inserido no

Crédito: Luana Schweikart


canal vaginal e fica posicionado próximo ao colo do útero para coletar o sangue menstrual. “A funcionalidade dele é a mesma de um absorvente interno, entretanto ao invés de absorver, o sangue é coletado”, explica a médica formada pela Universidade Federal do Rio Grande (Furg), em Rio Grande. O único aspecto negativo, mencionado por Tamara, é sobre os primeiros momentos de uso, como colocar e como retirar. “Achei isso um pouco mais incômodo. Mas depois de uns dias de prática, tudo de ajeita.”

Experiência na prática Adriana Martins destaca que os coletores cumprem um papel essencial para o autoconhecimento e quebra de crenças em relação à menstruação. “A mulher que decide começar a usá-lo vai precisar entrar em contato com a própria vagina e ter uma noção melhor de como funciona a sua anatomia e seu fluxo menstrual”. Para começar a usar, Tamara Wermuth acredita que é preciso querer. “Percebo algumas meninas muito inseguras em relação ao manuseio e acabam não inserindo corretamente ou machucando um pouquinho”. Para ela, é um momento de autoconhecimento, que exige disposição de se tocar e sentir seu próprio corpo. Sobre a adaptação, Tamara alega que foi muito tranquila. “Nos primeiros dias tive algumas dificuldades na retirada, mas depois de um período, deu tudo certo.” Ao se conhecer, é possível escolher o tamanho de coletor adequado. Considerando que existem várias marcas no mercado, a ginecologista aconselha ouvir e ler diferentes opiniões para decidir a melhor opção. Higienizados corretamente, os coletores têm vida útil de cinco a dez anos, além de que coletam muito mais (de 30 a 60 mililitros). Os absorventes dão conta de apenas um terço desse total.

Crédito: Luana Schweikart

Ainda ficou com dúvidas? Então assista uma explicação da ginecologista Adriana Martins sobre as dobras mais fáceis para inserir o coletor. Acesse https://bit.ly/3tGnxuG

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Crédito: Luana Schweikart

O meio ambiente agradece De acordo com a eCycle, durante a vida fértil, pode-se acumular toneladas de lixo só em absorventes descartáveis. Estima-se que se faça uso de cerca de 10 absorventes descartáveis em cada ciclo menstrual, e de 10 mil a 15 mil da puberdade até a menopausa. Pelo fato de no Brasil não existir reciclagem para esse tipo de resíduo, esses absorventes vão parar em lixões e aterros sanitários. Como não são biodegradáveis, causam um problema ambiental. O coletor menstrual dispensa o uso dos absorventes e reduz dezenas de toneladas depositadas em aterros sanitários. Apenas no Brasil são descartadas 12 mil toneladas de absorventes todos os meses e, cada um, leva cerca de 400 anos para se decompor, já que são fabricados sobretudo de plásticos, segundo informações do Movimento Recicla Sampa. Para se ter uma ideia, o primeiro absorvente do mundo ainda está entre nós.

A solução para os problemas? A pobreza menstrual, além de ser uma condição enfrentada por pessoas que não têm acesso ao básico para manter a higiene íntima durante o período de menstruação, também decorre na falta de acesso à informação, de apoio familiar, nos tabus sobre a menstruação e em como tudo isso se reflete na insegurança durante este período. Adriana Martins acredita que a distribuição de produtos de higiene como coletores menstruais, absorventes reutilizáveis, calcinhas menstruais, e etc., poderia contribuir muito no combate a essa pobreza. “Isoladamente não resolveria o problema, precisamos de mais medidas governamentais e 08


socioeducativas para lidar com essa situação para prover apoio e informações sobre o assunto, como investimentos em saneamento básico.” Em Venâncio Aires, durante a programação alusiva ao Dia Internacional da Mulher, em março deste ano, a vice-prefeita e presidente do Conselho Municipal do Direito da Mulher (Comdim), Izaura Landim, liderou a campanha Dignidade Feminina. Ao todo, foram quase 10 mil unidades de absorventes doados pela comunidade e repassados à Secretaria Municipal de Educação e ao Centro Materno Infantil para serem entregues a quem necessita. A campanha segue na Biblioteca Pública, ponto contínuo de coleta de absorventes. Além disso, o valor de multas pela devolução atrasada de livros é revertido para a compra dos itens de higiene. Os coletores menstruais podem ser a solução para muitas no período menstrual. Para outras, ainda não chega nem perto da realidade difícil. Cabe a todos conhecer, buscar, ajudar e, mais do que isso, se informar, porque menstruar não é um ato apenas feminino. Uma em cada quatro adolescentes brasileiras não têm acesso a produtos menstruais durante a menstruação. Mais de 1,5 milhão de mulheres vivem em residências que não têm banheiro ou acesso à água.

Crédito: Luana Schweikart

LUANA SCHWEIKART

De acordo com o levantamento realizado pela pesquisa “Impacto da pobreza menstrual no Brasil”, meninas estudantes perdem, em média, 45 dias de aula por ano pelo simples fato de menstruarem e não terem absorventes.

@luschweikart

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VERMELHO É A COR MAIS QUENTE Pequeno gesto voluntário pode ser determinante para salvar vidas

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oram mais de 65 pessoas que se deslocaram até Porto Alegre para doar sangue e contribuir para a saúde do sobradinhense Dionatan Castro dos Santos. Ele precisou passar por transfusão devido ao rompimento da veia aorta. Após 40 dias no hospital, sendo nove na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e 31 no quarto, retornou à sua cidade e reencontrou familiares e amigos. O primeiro encontro foi difícil por estar sem a perna, mas a adaptação foi necessária. “Na hora, você não sabe o que fazer, mas o apoio que recebi foi me fortalecendo dia após dia.” Em janeiro de 2017, Dionatan era um jovem sonhador cheio de planos. Próximo de completar 24 anos, sentiu o desenvolvimento de um caroço na região da virilha. Com o passar dos meses, teve de buscar auxílio médico. O caroço aumentara. Após um período de exames e apreensão, o diagnóstico de câncer foi recebido com alerta de urgência, pois a busca por um especialista demorou a acontecer. O tipo de câncer de Dionatan era raro, chamado condrossarcoma. Tratase de um tumor maligno em que há produção de células cartilaginosas cancerígenas nos ossos da região pélvica, quadril e ombros. Pelo estágio avançado em que se encontrava o caroço, a cirurgia foi a opção mais viável. “O tumor também começou a se alojar na bexiga. Cresceu muito rápido e quando vi não tinha outra opção senão a retirada imediata via cirurgia”, confessa Dionatan, com pesar. O procedimento cirúrgico precisava de autorização de familiares e dar a notícia foi um dos momentos mais dolorosos do processo. “A pior coisa foi chegar no meu pai e dizer que eu tinha câncer e 10

teria de passar por uma cirurgia. Eu ainda não havia contado a ninguém.” Em 21 de fevereiro de 2018, a cirurgia foi realizada no Hospital Santa Rita, em Porto Alegre. Durante o procedimento de oito horas, a veia aorta se rompeu. Com isso, muito sangue foi perdido. O risco de amputação da perna onde o caroço estava alojado era alto. Após mais algumas horas na tentativa de reviver a perna esquerda de Dionatan, a equipe médica não obteve êxito e precisou amputá-la.

Dionatan é grato pela nova oportunidade de vida Crédito: Arquivo pessoal

A importância da doação Para a recuperação de Dionatan, a transfusão foi essencial. O volume que apenas uma pessoa doa pode ajudar a


salvar quatro vidas. Os 450ml de sangue retirados são repostos em um único dia, mas as vidas que ele ajuda a salvar são para sempre. Além disso, a doação é um ato seguro e todos os materiais usados no procedimento são descartáveis. Desse modo, não há riscos de qualquer tipo de contaminação. O enfermeiro do Hemovida, Cezar Rodrigo Priebe, explica sobre as maiores necessidades. “Atualmente (maio de 2022), o estoque do banco conta com níveis elevados de sangue tipo A+, B+ e AB+. Dos tipos A-, O+, B- e AB- o estoque está em níveis regulares. A maior necessidade, no momento, é do sangue tipo O-.” A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) indica que é possível fazer a doação em casos de contato com o coronavírus. Quem recebeu o esquema vacinal completo pode doar, desde que seja sete dias após a aplicação do imunizante. Para os que tiveram a doença há dez dias ou menos, é preciso aguardar um mês desde o início dos sintomas. Após a doação de sangue, a pessoa precisa tomar alguns cuidados básicos. “Não fazer nenhum tipo de exercício físico mais acentuado nas 12 horas subsequentes à doação. Evitar pegar peso com o braço que foi utilizado. Também evitar fumar e dirigir nas duas horas subsequentes”, alerta o médicocirurgião Neori José Gusson. Segundo ele, o sangue é essencial para o pleno funcionamento do corpo humano. “Em alguns casos de tratamento, a transfusão de sangue é um processo inevitável. Para que o procedimento possa acontecer, é imprescindível que haja bolsas de sangue em estoque, que são obtidas exclusivamente pelas doações.” Contribuir para salvar vidas é um ato que aquece o coração. Além de saber que ajuda a salvar uma

vida, há também o sentimento de contribuir em um ato simples e rápido. O aposentado Luiz Dirceu Pereira, de 63 anos, comemora a vitalidade e a disposição de doar a cada dois meses para o Hemovida, em Santa Cruz do Sul: “É bom saber que estamos fazendo algo que pode ser útil para outro ser humano. Como passo com frequência próximo ao Hospital Santa Cruz, tomei a decisão de doar sangue sempre que possível. Faz bem para o coração.”

Para Dionatan, a salvação O jovem vai carregar para sempre a gratidão pelas pessoas que fizeram um esforço e doaram sangue para salvar a sua vida e de mais pessoas. “Não salvaram só a minha, mas a de muitos outros. O sentimento de gratidão que eu tenho é inexplicável. Pequenos gestos de cada um que hoje permitem eu viver momentos felizes ao lado de pessoas que eu amo”, diz Dionatan Castro dos Santos, hoje recuperado do câncer.

NÍCOLAS DA SILVA @nicolasvsilva 11


Crédito: freepik

SEM LIMITE

Entenda a Síndrome de Burnout e suas implicações como doença ocupacional na vida de milhares de trabalhadores

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esânimo, dores de cabeça, insônia, exaustão e crises de choro. Esses foram alguns dos sintomas com os quais Luísa*, jornalista de 30 anos, de Santa Cruz do Sul, passou a conviver desde dezembro de 2021. Pode parecer um episódio de ansiedade generalizada ou de depressão, porém ao iniciar a psicoterapia, ela entendeu que o problema ia além da vida pessoal. Luísa já havia ouvido falar em Síndrome de Burnout. Artigos que ela já tinha lido em espaços on-line ajudaram a entender que precisava buscar ajuda profissional, pois para a jornalista o relato se assemelhava muito com o esgotamento em razão do trabalho. A Síndrome de Burnout pode ser descrita como síndrome do esgotamento profissional e apresenta os sinais relatados por Luísa. Porém, diferente da depressão, são causados pelo excesso de trabalho, competitividade e responsabilidade depositada no empregado. Letícia Aline Back, psicóloga clínica, organizacional e do trabalho de Santa Cruz do Sul, explica que o diagnóstico da Síndrome é difícil e depende do cenário em que o paciente está inserido. Para descobrir o Burnout, não basta apenas a descrição de indicativos clínicos 12

como a sensação de esgotamento físico e mental, mudanças de padrão no comportamento, sintomas gastrointestinais, falta ou excesso de apetite e insônia. É necessário, também, entender se o contexto de adoecimento vem ao encontro da alta demanda em ambiente profissional, sensação de incompetência e preocupação excessiva com questões de trabalho. Essa análise deve ser feita através de escuta clínica por psicólogos ou psiquiatras. O diagnóstico de Luísa foi determinado após consulta com psiquiatra. Os relatos de assédio moral no trabalho conjugados aos sintomas mencionados fizeram com que o profissional batesse o martelo: Síndrome de Burnout. Foram 14 meses de atividade em home office por conta da pandemia de Covid-19. O trabalho por meio de aplicativos de mensagens instantâneas como o WhatsApp, rotinas exaustivas e uma demanda excessiva no veículo de comunicação em que trabalhava levaram a jornalista ao extremo. Para a psicóloga Letícia, por vezes o emprego se estende para além do ambiente destinado e há a


o funcionário diagnosticado com Burnout tenha todo o respaldo legal para realizar o tratamento. No caso de Luísa, em nenhum momento houve apoio de seu superior. Após relatar para o chefe sobre o diagnóstico, os problemas com uma de suas superiores e os sintomas que sentia, ouviu que isso era apenas uma chateação, já que a jornalista não gostava de ouvir críticas relacionadas a suas demandas. “A psiquiatra me deu atestado de seis dias e pediu que eu me afastasse totalmente do trabalho e das redes sociais neste período para conseguir descansar, mas isso foi visto no trabalho como se eu estivesse colocando um atestado por nenhum motivo.” O maior apoio que a trabalhadora encontrou foi em seus colegas da empresa.

Dados divulgados em 2021 por pesquisa realizada pela empresa LHH, do Grupo Adeco, e pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

perda de barreiras, misturando vida profissional e pessoal. “O WhatsApp se torna uma ferramenta de trabalho e não se consegue colocar um limite. O empregado passa a ter a sensação de trabalhar o dia inteiro e isso é um fator de risco quando se fala em saúde mental.” No entanto, é importante ressaltar que a conversa sobre a Síndrome deve ser expandida para além da parte clínica sobre diagnóstico e tratamento. O papel das decisões do setor de Recursos Humanos de uma empresa é essencial para que

A Síndrome de Burnout é considerada uma doença ocupacional e está incluída na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso significa que trabalhadores com esgotamento profissional têm direito à licença médica remunerada pelo empregador por até 15 dias de afastamento. Caso seja necessário um tempo maior afastado do emprego, o colaborador tem direito ao benefício previdenciário pago pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Além disso, se o empregado receber o auxílio-doença acidentário, não pode ser demitido sem justa causa por um período de um ano. Julia Rohers Rauber, advogada atuante na defesa do trabalhador, de Santa Cruz do Sul, explica que a inclusão da Síndrome como doença ocupacional no início de 2022 tem mais um efeito simbólico do que prático. Ela esclarece que os tribunais já reconheciam a Síndrome de Burnout 13


como doença ocupacional quando demonstrado o nexo dela com as vivências e condições de trabalho. “O direito se dá através da interpretação conjunta das Leis, da Constituição Federal, princípios, julgamentos precedentes e outros elementos que possibilitavam esse reconhecimento.” A empresa em que o trabalhador é diagnosticado com a Síndrome tem obrigação de auxiliar nas despesas do tratamento indicado, segundo Julia. Porém, a maioria dos locais de trabalho se comportam como o de Luísa, de acordo com a advogada. Ela explica que existe uma relutância no reconhecimento das doenças ocupacionais de forma geral, mesmo quando o adoecimento dos funcionários é recorrente. “Por isso é muito importante buscar acompanhamento médico especializado que possa assistir a evolução do quadro e estabelecer um diagnóstico preciso e suas possíveis causas, concausas e fatores de agravamento”, esclarece Julia. Para a psicóloga Letícia Back, a forma de prevenir casos como o de Luísa devem ser pensados de maneira

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coletiva e começar no básico: salários justos e jornadas de trabalho que considerem as necessidades pessoais dos indivíduos. Investimentos em políticas públicas que pensem estratégias para a saúde mental do trabalhador são imprescindíveis para que o ambiente ocupacional seja saudável. O principal programa de prevenção que deve ser discutido em coletivos trabalhistas e sindicatos, para Letícia, é que se fale sobre saúde dentro dos espaços profissionais. Eliane Fiuza, gerente de Departamento Pessoal de uma empresa do ramo alimentício em Santa Cruz do Sul, explica que embora não exista protocolo definido para ser tomado num diagnóstico de Burnout, os trabalhadores têm acesso a espaços com meditações guiadas que também servem para troca de ideias entre profissionais. Além disso, entre os colaboradores de RH existe o foco na empatia e no lado humano de cada empregado para que se possa prevenir problemas como o esgotamento profissional. Embora não haja uma lei específica que responsabilize a


a

Crédito: freepik

empresa em casos como o de Luísa, Julia Rauber relata que a Lei Previdenciária, CLT, Normas Regulamentadoras e Internacionais preveem responsabilidade do empregador em manter a segurança, saúde e higiene do espaço ocupacional. A lógica do trabalho coloca um indivíduo que vende sua mão de obra para um empregador, pessoa física ou jurídica, e a partir desse raciocínio é necessário preservar os limites dessa relação formando as normas trabalhistas. “Assédio moral e organizacional, cobrança excessiva, exigência de conexão constante, jornadas longas ou sem intervalo, longos períodos sem folgas ou férias podem ser reconhecidas como causa de Síndrome de Burnout e outras doenças da mente.” A precarização dos ambientes profissionais adoece os trabalhadores brasileiros e nem todos possuem a estrutura financeira para buscar

ajuda necessária. Luísa, por exemplo, contou que até fez acompanhamento psicológico antes do episódio de Burnout, mas teve que parar devido aos altos custos. Como Letícia Back expôs, um trabalhador que não possui o mínimo de estrutura, não consegue se manter diante da conjuntura em que o país se encontra. Conversar e debater sobre o esgotamento profissional é tratar dos direitos básicos de acesso à saúde, alimentação, moradia e lazer para que então o tratamento da saúde mental do empregado seja valorizado. Luísa é um exemplo entre os milhares de brasileiros que, dentro do próprio emprego, sentiram insegurança num ambiente tóxico em que a saúde não era considerada. A jornalista explicou que o tratamento não é fácil. A profissional, que está fazendo seu acompanhamento, prescreveu medicamentos, realizou a escuta clínica e ajudou a encontrar formas de evitar a sensação de insegurança no ambiente de trabalho em que estava. Porém, Luísa decidiu que o melhor seria pedir demissão da empresa. Ela conseguiu outro emprego e fala sobre a importância de conhecer e debater a Síndrome de Burnout. “Saber os sintomas ajudou a identificar que poderia estar passando por isso quando a principal crise ocorreu. Toda forma de divulgação acerca do Burnout pode ajudar muitas pessoas que estão passando por esse esgotamento, antes que elas adoeçam.” *Nome fictício

Ana Clara Seberino @anaseberino 15


AS MARCAS DE UM ADEUS Traumas desenvolvidos na infância podem impactar na vida adulta

Ilustração: Banco de imagens/Freepik

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sol nasce. É mais um dia que começa. A rotina de Vitória Hagemann não é diferente. Assim como todas as crianças, é mais um momento de brinquedos espalhados pela casa. É hora de tirar o pijama e ir para a sala brincar. Porém, essa data reserva uma despedida. A menina, de 5 anos, é chamada para se dirigir até a frente de casa. No colo da mãe, descobre que é tempo de acenar as mãos para o pai, que está indo fazer uma especialização em outra cidade. “Ele disse que o curso duraria duas semanas e que logo estaria de volta. Mas, eu sabia que era uma despedida.” Passaram-se dias, minutos, segundos. Como um piscar de olhos, foi o tempo prometido. E nada. O silêncio é a única coisa que ecoa. Nem um barulho no portão. Só o que resta é a incerteza. A resposta, para tantas dúvidas, chega embalada em um pequeno retângulo para a jovem de 16

23 anos, natural de Santa Cruz do Sul. “Depois de mais de um mês, recebemos um cartão postal de Fortaleza do meu pai. Com um pedido de desculpas, informando que havia recebido uma grande oportunidade. Nesta carta, pedia para que encontrássemos ele.”

O caminho entre a confiança e a falta dela Na esperança de ver a família reunida de novo, a mãe de Vitória decidiu arrumar as malas e ir ao encontro do marido. Com as passagens nas mãos, as duas seguiram rumo à região Nordeste do país. Foram cerca de 3,2 mil quilômetros percorridos entre as nuvens. Em torno de quatro horas contemplando a paisagem e imaginando como seria viver em um lugar diferente. Porém, o destino já estava traçado.


Morar próximo à praia, com o sol batendo no rosto, viraria um pesadelo, deixando marcas difíceis de enfrentar. Com os pés em terra firme, uma descoberta dolorosa: a traição. “Moramos lá durante oito meses. Até minha mãe descobrir que ele estava com outra mulher. Ficamos sem ter onde morar, apenas com a roupa do corpo, foi muito complicado.” Após a revelação, o caminho de volta ao Rio Grande do Sul precisava ser projetado. Foi através de uma ligação, em um telefone público, que elas retornaram. No entanto, o que não voltou, na bagagem, foi a confiança que a filha tinha em relação a quem lhe gerou a vida.

Da infância ao trauma na vida adulta A partir dessas experiências, a santa-cruzense criou bloqueios e desencadeou gatilhos, que a fizeram não confiar nas pessoas, tanto em relações amorosas, quanto familiares e círculos de amizades. A segurança em relação ao outro, em especial na conexão paterna, ficou presa ao que foi vivido na infância. “Eu ficava totalmente desconfiada, meu pai me procurava para me ver e eu não queria, me escondia embaixo da cama. Não era só com ele, sempre quando via minha mãe com outro homem, ficava transtornada. Tentava bater na pessoa porque pensava que iria acontecer a mesma coisa novamente.” Ao relembrar, as lágrimas que descem em ritmo lento do rosto da jovem não escondem o quão impactante foram essas vivências para a vida dela. Conforme pesquisa publicada pela revista Saúde e Desenvolvimento Humano, evidências apontam que

os primeiros anos de vida são de extrema importância para o progresso biológico, cognitivo, emocional e social. Aprendizagens, neste período, têm efeitos favoráveis a curto e longo prazo. Circunstâncias traumáticas no período crucial da criança criam situações muito difíceis para a sua evolução. Para a especialista em Psicologia Infantil, Taiane Corrêa, esse é o período onde as relações são construídas e quando a criança começa entender em quem ela pode acreditar. “No momento em que você não cumpre com a sua palavra, está reforçando essa falta. A criança já vai conseguir compreender que não pode confiar. E, a partir disso, nascem as crenças, ou seja, a origem da falta de segurança.” A criança quando nasce é formada apenas por carne e osso, ainda não existe a formação de sujeito nela. Tudo o que a mãe vivencia, o lugar em que esse filho ou filha irá ocupar na família, já estará sendo falado e estabelecido. Desta forma, toda pré-concepção irá fazer parte da sua existência, conforme explica a psicanalista Tatiana Vargas. “O inconsciente do ser humano já está sendo escrito desde o nascimento. Quando o bebê vem ao mundo, ele depende 100% da sua mãe. O que eles vão vivenciar de experiências, escreverá a história dessa pessoa. Depois do laço materno, vem o pai que é uma pessoa fundamental, e que também vai depender da relação que ambos estabelecem.” Estudos apontam que experiências adversas na primeira infância estão associadas diretamente com o desenvolvimento de problemas psicológicos na vida adulta. O trauma se torna consequência do resultado da exposição do indivíduo a eventos negativos e estressantes. “Tudo o que a gente vive de experiência, toda 17


essa constituição vai ter interferência direta na vida dele. A gente conta com o conceito de neuroplasticidade, nós nascemos com neurônios, mas a forma com que vamos conectar vai depender das nossas experimentações de vida. Então, tudo o que fizermos na primeira infância é fundamental para a nossa vida”, explica Tatiana.

A superação Vitória contou com ajuda de especialistas, mas foi com o exnamorado e a busca de informações sobre o que estava acontecendo com ela que encontrou conforto

para seguir em frente. “Comecei a ler sobre energia, pensamento e física quântica, conteúdos que foram importantes nesse processo. Eu não podia carregar um peso que não era meu, por mais que a frustração fosse. Entendi que cada indivíduo é uma pessoa diferente.” Para o psiquiatra Felipe Götze, além do apoio de familiares e amigos, o auxílio de profissionais é fundamental. “O mais adequado para superar e restabelecer a confiança em si e nas outras pessoas é, em primeiro lugar, reconhecer que essa falta é um problema. Em segundo, é preciso procurar ajuda especializada. Um dos caminhos para essa resolução é a busca de autoconhecimento e terapia.”

Ilustração: Banco de imagens/Freepik

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Confiança

Estado psicológico e sensação subjetiva de segurança em relação ao comportamento do outro.

Ausência

Ajuda

Além de contar com profissionais, é preciso que seja realizado um trabalho em conjunto entre criança ou adulto e seus familiares.

O CAMINHO ATÉ O TRAUMA

Esse estado emocional faz com que o ser humano passe a duvidar de suas capacidades. A falta de se sentir seguro provoca, muitas vezes, baixa autoestima na criança. Gera, a partir disso, questões delicadas no período da infância.

Trauma

É uma memória traumática, onde são vivenciadas emoções desconfortáveis, associadas a lembranças do indivíduo a um determinado fato e época.

Como é estabelecida

A confiança vai se constituir onde a criança estiver inserida, através das relações, convívio com os pais e familiares.

Informações obtidas através da psicóloga Tatiane Corrêa e psiquiatra Felipe Götze. Imagem: Thiago Varoni

KÁSSIA MACHADO @machado_kah

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CÂNCER AOS 21 Jovem de Vale do Sol conta sua história e como venceu a doença

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ione Ferreira, nascido em 2 de novembro de 1999 em Vale do Sol, descobriu que tinha câncer de testículo em 29 de junho de 2021, com apenas 21 anos. “Eu vivia em Santa Cruz do Sul e trabalhava na Metalúrgica Mor. Em uma quarta-feira, dia 26 de maio daquele ano, senti dores abdominais intensas. Fui para a casa dos meus pais e elas só pioraram.” Na segunda-feira, 31, Ferreira quis voltar ao trabalho, mas quem disse “não” foi a dor. Foi com a família ao médico Valdir Borges Dutra Júnior, no Hospital Beneficente Vale do Sol (HBVS), a pouco mais de dois quilômetros de casa. Ganhou remédios, tomou-os e a dor permaneceu. Isso o fez repetir três noites seguidas no plantão. Dias depois, um exame radiológico contrastado mostrou algo. O médico Valdir Dutra examinou o testículo do jovem e percebeu que o tamanho era anormal. Mais um procedimento foi solicitado. Então entrou na fila do Sistema Único de Saúde (SUS) para o Hospital Ana Nery (HAN), referência na região. Pelo sofrimento, Ferreira ficava cada vez mais fraco. Para tentar parar a dor, diversas vezes a família teve de se deslocar até o HBVS para recorrer ao procedimento de pôr soro na veia. Passados oito dias do início dos sintomas, a internação no hospital de Vale do Sol. A estadia foi de 3 a 5 de junho, terminando em um sábado. Em 29 de junho, mais de 30 dias após as primeiras fisgadas, perda de peso e sem saber mais como suportar a situação, conseguiu a primeira 20

consulta com um especialista. O oncologista Alexandre Agra, do HAN, ouviu a história e constatou, depois de ver o testículo do jovem, que se tratava de um câncer e que seria preciso uma cirurgia.

A descoberta Até a constatação de que se tratava de câncer, a família de Dione Ferreira nutria a esperança de ser outra coisa. O jovem paciente mostrava-se confiante no tratamento. “Na hora foi um susto muito grande. Me abalei, achava que não tinha saída. O câncer tem um nome que, quando se fala, todos ficam com medo, mas não era o meu caso.” A cirurgia aconteceu uma semana depois da descoberta, em 6 de julho, no próprio hospital. Ele garante que esta foi a parte mais tranquila. De noite, ficou internado. Pela manhã, voltou para a cidade natal. A dor passou. Por duas semanas a recuperação foi em casa. Teve de voltar ao HAN em 15 dias para tirar os pontos. As temidas quatro sessões de quimioterapia, com 18 agulhadas ao todo, ocorreram em um intervalo de 21 dias, indo de Vale do Sol para Santa Cruz do Sul. Por conta do cansaço que traz ao paciente, a família ficava na Associação de Apoio a Pessoas Com Câncer (Aapecan), próximo ao hospital. Nesse período, como explica a nutricionista clínica e professora da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Fabiana Assmann, a alimentação precisou ser acompanhada.


“Conforme o tratamento da pessoa, a alimentação varia, tanto na temperatura, solidez e forma de preparo. É preciso ter um estilo de vida mais saudável depois do câncer, com exercícios físicos, não fumar, controle de bebidas alcoólicas, alimentos ultraprocessados, gordurosos e com muito açúcar.”

segundo panorama divulgado em 2017 pelo Inca e o Ministério da Saúde. Mesmo associado aos mais velhos, o câncer vem, ano a ano, vem vitimando os mais jovens. A biomédica e professora de enfermagem no Centro Educacional Dom Alberto, em Santa Cruz do Sul, Beatriz Dorr Caniceiro, mostra uma

O quê é câncer? Também chamado de tumor ou neoplasia, o câncer é uma doença causada por vários fatores, como o ambiente em que se vive, hábitos adotados, hormônios, condições imunológicas e mutações genéticas, que favorecem a alteração celular e o desenvolvimento de tumores. A oncologista do Hospital São Sebastião Mártir (HSSM), em Venâncio Aires e do Saint Gallen Instituto de Oncologia, em Santa Cruz do Sul, Sheila Calleari Marquetto, resume o câncer como um defeito na formação das células do corpo. O processo envolve uma célula malformada, que vem a se replicar de forma incorreta e se transformar em tumor. “Há, também, uma subdivisão conforme suas características: maligno, que é muito agressivo, tem mais de 100 tipos, capaz de migrar e contaminar outros órgãos, chamada metástase; e o benigno, não tão agressivo e semelhante às células originais.”

Crescimento entre jovens De 1997 até 2016, conforme o Instituto Nacional do Câncer (Inca), houve um aumento de 8,8% nos casos de jovens de 15 a 29 anos com câncer de tireoide, 5,2% de próstata e 3,4% de cólon e reto. O câncer foi, de 2009 a 2013, a doença que mais matou nessa faixa etária, com 17,5 mil vítimas, 21


preocupação com essa faixa etária, apesar de ser cedo para determinar que se trata de uma tendência. “Provavelmente isso está relacionado a novos métodos e diagnósticos, capazes de perceber com mais eficiência a incidência da doença, bem como a possibilidade de muitos destes casos não serem novos, mas que não foram identificados com o tempo.” Pedagoga e nutricionista clínica, com pós-graduação em nutrição funcional e pediatria, Daniele Reis, afirma, neste sentido, que o estilo de vida tem influenciado muito no descobrimento de tumores. “As pessoas estão tendo hábitos de vida piores: estresse, ansiedade, pouco tempo para a alimentação e, ainda por cima, não saudáveis, com o consumo de alimentos processados e não naturais.” Foto: Equipe HAN

cirurgia para remoção do tumor; radioterapia e quimioterapia para destruição das células tumorais e uso de imunoterapia para estimulação do sistema imune do paciente. A enfermeira com especialização em oncologia e professora de enfermagem no Centro Educacional Dom Alberto, Janaína Chiogna Padilha, frisa que cada caso é um caso, pois o surgimento do câncer entre os jovens, principalmente, pode ter diferentes razões como hereditariedade e maior procura por exames de rotina. “A chance de cura não está vinculada à idade do paciente, mas ao momento em que houve o diagnóstico, ao tipo de câncer e à condição física e psicológica da pessoa. A vantagem quanto à idade refere-se ao fato de os jovens, geralmente, suportarem melhor as elevadas doses de quimioterapia.”

Venci o câncer

Dione registrou para sempre a última sessão de quimioterapia junto do pai e da equipe técnica do HAN

Cada caso é um caso Existem várias formas de tratamento para o câncer, como 22

Dione Ferreira, recuperado do câncer de testículo, ainda precisa fazer acompanhamento no Hospital Ana Nery de três em três meses. Sua rotina mudou no período entre o descobrimento, em junho, e o fim das quimioterapias, em 22 outubro de 2021. Agora, em 2022, ele pode fazer tudo como antes da descoberta do tumor: jogar futebol, correr e andar de bicicleta. A vida hoje, depois desses desafios, voltou ao normal. “Foram momentos muito difíceis pelos quais sou grato. Para mim e para a minha família foi uma segunda chance. Conseguimos superar a dor e o cansaço. Hoje estou bem e posso dizer que venci o câncer.”

Guilherme Ubatuba @guilhermeubatuba15


IPTU E IPVA PARA QUÊ? Duas siglas muito faladas anualmente ainda são vistas como vilãs no orçamento dos brasileiros Grande do Sul. A Secretaria Municipal da Fazenda de Santa Cruz do Sul, por sua vez, aponta que a inadimplência do IPTU soma mais de 44% neste ano. De acordo com a professora de Ciências Jurídicas da Universidade de Santa Cruz do Sul, Suzete da Silva Reis, o desconhecimento é um dos fatores determinantes para o conceito social deles. Para ela, a população “entende que o retorno através dos serviços ofertados pela administração pública são insuficientes”. Cássio, por exemplo, consegue definir bem o conceito de IPTU, mas tem suas dúvidas quanto ao IPVA. Felipe ainda tem dúvidas sobre os dois.

Crédito: Freepik

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elipe*, 26 anos, está há três anos sem pagar o Imposto sobre Veículos Automotores (IPVA). Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU)? Espera fechar o tempo limite e verifica as possibilidades de negociação. Cássio Fruet, 28 anos, paga os dois tributos. Contudo, seus caminhos convergem em um ponto: ambos não os pagariam se fosse opcional. Apesar dessa opção ser inviável, uma vez que são obrigatórios por lei, muitos contribuintes deixam de quitar. Felipe faz parte dos mais de 10 mil santacruzenses que não saldaram o IPVA em 2022, de acordo com os dados da Secretaria Estadual da Fazenda do Rio

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IPVA

Cássio e Felipe têm definições parecidas sobre o IPTU. Para os dois, esse é um imposto pago por proprietários de imóveis residenciais e fica com a administração municipal, que deve investir em melhorias. O conceito é mesmo esse. Ele nasceu com a chegada da Coroa Portuguesa ao Brasil em 1808 e está previsto na Constituição Federal, além de ter regulamento próprio na esfera municipal. Suzete explica que “o cálculo é feito a partir do valor de venda, considerando a área de construção, tamanho do terreno, localização, tipo de uso - se comercial ou residencial, infraestrutura do local”. O secretário municipal da Fazenda de Santa Cruz do Sul, Álvaro Conrad, salienta a importância do IPTU, uma vez que é a fonte principal de arrecadação de recursos públicos ao tesouro municipal. É destinado para melhorias como construção de escolas, creches, postos de saúde, conservação de ruas, iluminação pública e áreas de lazer.

O IPVA incide sobre a propriedade de veículos. Sua criação remonta a 1985 e passou a vigorar no ano seguinte. Cada estado pode definir a alíquota que incide sobre o valor de venda do veículo. Antes, era pago nacionalmente a Taxa Rodoviária Única (TRU). É incluído na Constituição Federal e enfrenta um desafio: o entendimento do seu conceito. Felipe e Cássio concordam que deve ser utilizado na “melhoria das rodovias”. Por mais que fosse do desejo dos contribuintes, esse imposto é distribuído entre várias esferas, não só para as vias. A professora Suzete reforça que, “apesar de ser um imposto estadual, o valor não fica integralmente com o Estado, pois 50% fica com o município de emplacamento.” Ele, por exemplo, pode investir no desenvolvimento das cidades, sem obrigatoriamente destinar os recursos para as estradas. Parte do valor também é distribuído para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação (Fundeb).

Fonte: Prefeitura de Santa Cruz do Sul

IPTU

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Os desafios De acordo com a Secretaria da Fazenda de Santa Cruz do Sul, a média de inadimplência do IPTU nos últimos quatro anos, por exemplo, chega a 27%. Já o IPVA enfrenta uma resistência dos santa-cruzenses de 17,21% neste ano, conforme a Receita Estadual do Rio Grande do Sul. Suzete explica que um dos desafios na quitação desses impostos é a priorização nos orçamentos das famílias, que olham para questões básicas como alimentação, água, energia e aluguel. Além dos aspectos mencionados pela advogada, o secretário destaca dois outros pontos: a pandemia da Covid-19 e alta dos índices de inflação, em especial o utilizado pelo município como base para reajustes, chamado de Índice Geral de Produto - Mercado (IGP-M). Nos últimos anos, essa taxa tem se distanciado da correção nos rendimentos dos contribuintes, o que significa que a população está gastando mais, devido ao aumento nos preços e ganhando menos, pois os números não são proporcionais.

Pagar imposto não deve ser encarado como “sofrimento”, pontua o secretário. A visão mais apropriada é de uma responsabilidade coletiva para viabilizar o custeio dos serviços públicos. Para Cássio e Felipe, a ciência de sua obrigatoriedade é a semelhança deles. Para o primeiro, no entanto, os benefícios até podem ser vistos, se aplicados “corretamente”. Para Felipe, pouco retorno desses impostos é visto. O desconhecimento acerca do destino após a reversão desses valores para o cofre público é um estigma que pode ser desconstruído, como salienta Álvaro, através de campanhas promovidas pela Prefeitura, demonstrando a diferença da qualidade nos serviços públicos de acordo com a arrecadação de cada município. Quanto ao pagamento, a professora Suzete Reis dá a dica: resta ao contribuinte se organizar, uma vez que ambos são tributos anuais e com períodos de pagamento próximos. *Nome fictício

BIANCA SCHILLING @biancsxh

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O BRASIL DA HIPERINFLAÇÃO Saiba como era a vida no período em que a inflação anual no país foi superior a 2.000% Foto: Kimberly Lessing

Consumidor só pôde voltar a encher o carrinho após o Plano Real

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a década de 1980 e início dos anos 1990, Alan era adolescente e residia em Santa Cruz do Sul. Acostumado a ir ao supermercado a pedido dos pais, ele sabia que fazer compras, naquela época, exigia algumas estratégias, já que o valor dos produtos poderia aumentar mais de uma vez em um único dia. Assim, na luta diária pela sobrevivência, a maior adversária era a etiquetadora e o barulho dos cliques funcionava como um sinal de alerta. “A gente tinha que cuidar com a maquininha. Se a menina ou o menino do supermercado vinha com ela de um lado, já tentava ir pelo outro que a maquininha não tinha passado ainda para pegar o preço um pouco abaixo, porque a gente 26

sabia que ia aumentar”, revela Alan Guilherme Silva do Nascimento, 44 anos, que hoje é vigilante bancário em Santa Cruz do Sul. Apesar de nenhum conflito armado ter assolado o Brasil naquele período, o cenário econômico assemelhava-se ao de uma guerra. A família do vigia e tantas outras tinham uma inimiga poderosa: a hiperinflação. No ano de 2022, com a guerra entre Rússia e Ucrânia, o aumento dos preços voltou a preocupar os brasileiros. Entretanto, o índice da inflação continua baixo, ao contrário daquilo que se vivenciou a partir de 1980. Em março de 1990, a inflação mensal foi de 82,39% e, em 1993, chegou a 2.477,15% ao ano, segundo


o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Enquanto os preços das mercadorias sofriam ajustes diários, o salário só aumentava uma vez por ano. Assim, o poder de compra dos trabalhadores foi corroído. “Se eu pudesse comprar 10 unidades de um produto no dia que recebi o salário, passariam 15 dias, não gastei nada, mas só conseguiria comprar oito ou sete unidades”, exemplifica o economista e coordenador do Programa de PósGraduação em Desenvolvimento Regional da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Sílvio Cezar Arend. Por isso, era comum as pessoas receberem o salário e correrem para o supermercado a fim de adquirir tudo que fosse possível antes de novos reajustes, o que provocava filas enormes. Para tentar se defender da alta geral dos preços, os pais de Alan costumavam estocar na despensa os mantimentos que se conservavam por mais tempo. Ainda assim, para o consumidor de classe média, era difícil contornar a situação. “Não tinha como escapar. Tinha que ter essa habilidade de

fazer compras aqui e ali e se organizar.” Como em toda batalha, se sobressaíram aqueles que possuíam mais recursos para lutar. Enquanto a maioria dos cidadãos era castigada pela inflação galopante, as pessoas com maior poder aquisitivo realizavam investimentos para proteger seu poder de compra por meio da correção monetária. As aplicações mais populares foram as cadernetas de poupança, nas quais, para haver ganhos, o dinheiro não podia ser movimentado antes de completar 30 dias. Existiam também os investimentos overnight - que rendiam juros de um dia para o outro, na virada da noite, como o próprio nome diz. Havia filas nos bancos para aplicar dinheiro, ainda que a realidade da maior parte da população fosse outra. “A pessoa teria que ter conta corrente para aplicar e, naquela época, poucos tinham”, salienta a bancária aposentada e comerciante santacruzense Lilli Swarovski. Segundo ela, os bancos lucraram muito naquela época e inauguraram agências em cidades menores.

Como o Brasil chegou à hiperinflação? De acordo com o economista e professor do Departamento de Gestão de Negócios e Comunicação da Unisc, Heron Sérgio Moreira Begnis, a hiperinflação é um fenômeno monetário que corresponde a elevadas taxas de inflação - superiores a 1.000% ao ano - que surgem em momentos nos quais a moeda perde sua função de reserva de valor. Begnis explica que a hiperinflação brasileira dos anos 1980 e 1990 teve origem a partir do “choque dos preços do petróleo”, que provocou um reajuste mundial na cotação da commodity. Somado a isso, a enorme dívida externa, acumulada durante os governos militares, influenciou de forma negativa a credibilidade da economia nacional e, por consequência, da moeda. Nessa mesma linha, o economista Sílvio Arend diz que, quando ocorre essa perda de confiança na moeda, as pessoas procuram gastá-la o quanto antes ou aplicá-la no mercado financeiro. As empresas, por sua vez, aumentam os preços das mercadorias. 27


A cura da doença monetária Durante a adolescência de Alan, entre 1985 e 1994, diversos planos econômicos entraram em vigor com vistas a controlar a hiperinflação. O primeiro deles foi o Plano Cruzado, que teve como medidas o estabelecimento de uma nova moeda, gatilhos salariais - os quais previam acréscimos nos salários caso a inflação subisse -, cortes de zeros e congelamento de preços. Desta forma, conforme Arend, algumas empresas não conseguiram repassar o aumento de custos para o consumidor. Isso resultou no desalinhamento dos valores a serem pagos por bens e serviços, bem como no desaparecimento de alguns produtos das prateleiras. O aposentado Rodolfo Kroth, 86 anos, era sócio-administrador de um supermercado em Vera Cruz e precisou lidar com a escassez de determinadas mercadorias. Ele lembra que costumavam pedir para um taxista buscar cerveja em um macroatacado de Porto Alegre, já que a bebida estava em falta na região. “Uma vez ele chegou a levar 15 caixas de garrafas e aproveitaram só uma ou duas caixas. O resto voltou vazia.” Depois de sucessivos planos que seguiram a lógica do congelamento de preços (ver linha do tempo) e não surtiram efeito, foi implantado, em 1994, um “remédio” para tratar a “doença” da moeda: a Unidade Real de Valor (URV), uma espécie de cotação do dólar. Com o Plano Real, a hiperinflação foi controlada e a população voltou a confiar na moeda brasileira. “Foi o tempo de fazer esse alinhamento que nos outros planos não era feito, transformar todos os preços em URV, que, na prática, era o dólar”, enfatiza Arend acerca do padrão econômico 28

que permitiu à família de Alan voltar a encher o carrinho no supermercado. “Depois do Plano Real, com R$ 0,50 tu ia no mercado e comprava um cacho de banana, uma caixa de leite ou dois pãezinhos, coisas que antes a gente não conseguia”, recorda o vigilante. Em 1995, um ano após o real entrar em circulação, a inflação caiu para 22,41% em um período de 12 meses (ver tabela).

Crédito: Banco Central do Brasil


Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)/Sistema Nacional de Índices de Preços ao Consumidor (SNIPC)

Índice da inflação Em 2022, o real completa 28 anos de circulação e a inflação - que nada mais é do que a elevação dos preços de produtos e serviços - do mês de abril foi de apenas 1,06%. Ainda assim, neste ano, com R$ 0,50 compra-se quase

nada de produtos em relação ao que Alan conseguiu adquirir com esse valor em 1994. De acordo com Arend, o cálculo da inflação não mudou. O que ocorre é que a renda das pessoas não aumentou na mesma proporção que o custo das mercadorias. O indicador oficial da inflação no Brasil é o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o qual mede a variação de preços de uma cesta de produtos e serviços e é obtido todo mês pelo IBGE. Esta cesta é definida pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), que verifica os itens consumidos pela população cuja renda varia entre um e 40 salários mínimos e quanto é gasto com cada um deles. O instituto público tem ainda outros índices de inflação, medidos também pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). No entanto, o índice de inflação de um indivíduo não é o mesmo dos demais, pois ele pode consumir produtos e serviços diferentes daqueles que compõem a cesta média da população brasileira. Em decorrência disso, seu índice pessoal de inflação pode ser maior ou menor do que o IPCA. “Um índice nacional é importante para referenciar a política econômica aplicada a todo o território. Porém, é inegável que existem diferenças regionais na inflação, decorrentes das particularidades locais”, diz Begnis. Em concordância, Arend afirma que obter a inflação individual é inviável, já que o custo seria alto.

Kimberly Lessing @kimberlylessing 29


Fonte: Macrovector/Freepik

NÃO PARE! SIGA ATÉ PASSAR Conquista da primeira habilitação pode ser árdua, mas desistir não deve ser uma opção

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ensação de frio na barriga. Mãos suando, tremedeira e coração acelerado. Sem noção alguma do tempo, apenas o desejo de uma rápida solução. É como esperar o sinal verde no trânsito, mas neste caso, sem paciência alguma. Isso é a ansiedade. Até porque ela está – ou ao menos já esteve – presente nos momentos mais decisivos da trajetória de cada pessoa. E um deles tem relação com a vida adulta, quando acontece a virada de chave para a busca da liberdade e independência, simbolizada em um pequeno pedaço de papel: a sonhada Carteira Nacional de Habilitação (CNH). O trajeto nunca é em linha reta. Há balizas, piscas, aclives e muitos outros obstáculos que podem fazer parar ou mesmo estacionar. Às vezes é preciso. Um desses casos é do gastrólogo santacruzense, Claudir Ismael Hansen. Ao completar 18 anos, ele decidiu procurar um dos Centro de Formação de Condutores (CFC) de Santa Cruz do Sul para sair habilitado nas categorias A/B, motocicleta e carro. Sobre duas rodas, 30

aprovação de primeira. Já no veículo de quatro rodas, o sinal vermelho indicou a reprovação por uma, duas, três, quatro, cinco vezes. “Nas duas primeiras vezes rodei na baliza, depois tive erros no percurso, mas eu sabia fazer tudo. Tenho certeza que rodei pelo nervosismo e por me sentir pressionado pelos examinadores.” Assim como Claudir, muitos têm na ansiedade um dos principais fatores para reprovação nos exames práticos de autoescola. Isso acontece porque, em geral, quando o sujeito é avaliado se sente, de certa forma, pressionado e com medo, o que pode influenciar no resultado e desempenho, como explica a psicóloga e proprietária do CFC Intelligence, Thartiéri Assmann. “É aquilo que muitos comentam: eu sei fazer, mas estou com medo de esquecer tudo pelo nervosismo. Estar no local de prova e diante do examinador não desencadeariam as mesmas sensações se o candidato não estivesse sob avaliação. A ansiedade faz com que os indivíduos


respondam de forma incorreta e imprecisa aos perigos percebidos. Isso é gerado pela atenção seletiva a detalhes negativos no ambiente, por distorções no processamento de informações e por uma visão global pessimista sobre a própria capacidade de enfrentar os problemas.” Segundo a psicóloga, fatores como cobrança de pais e amigos, alta competitividade, perfeccionismo e outros podem agravar a ansiedade. Sem ligar para as cobranças, Claudir decidiu ‘estacionar’ o carro e seguir apenas com a motocicleta. Foram quatro anos andando sobre duas rodas até que retomou as aulas de carro. No entanto, pela sexta vez encontrou a placa de pare. Até que o sinal verde apareceu. “Acabei rodando novamente no trajeto, mas também porque eu já tinha algumas manias da direção com a moto. Só que eu não desisti e, na sétima, consegui passar. Hoje consigo ver que cada pessoa tem o seu tempo. Para quem está passando por isso, eu

diria para não se cobrar tanto e nem se comparar com as outras pessoas, porque tirar carteira de primeira não tem nada a ver com potencial e, sim, com controle emocional e mental. Ter foco total no momento da prova e estar calmo ajuda muito.” Reprovação na categoria B no Vale do Rio Pardo Dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran/RS) de abril de 2022 apontam que, das 3,9 mil provas práticas de habilitação aplicadas neste ano no Vale do Rio Pardo, na categoria B, apenas 42,19% dos candidatos foram aprovados. Comparado com 2021, o número apresenta queda, já que foram 11,9 mil e 46,46% aprovados. O levantamento muda em relação às provas da categoria A, em que 69,44% dos alunos passaram nas 1.080 provas aplicadas neste ano. Já em 2021, foram 3,4 mil exames e 74,55% saíram habilitados.

MILENA BENDER @milenaa_bender 31


RACISMO ESTRUTURAL: DA SENZALA ÀS PERIFERIAS O preconceito histórico permanece nos dias atuais e retrata que a sociedade não aprendeu com a escravidão

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á pouco mais de 130 anos, o Brasil aboliu a escravatura. Mais recentemente, discute sobre racismo estrutural. Mas afinal, o que é o racismo? De maneira geral é a discriminação entre os seres humanos pela diferença da cor da pele. Essa diferença manifesta superioridade ou inferioridade de determinado grupo em relação ao outro. Isso significa que o racismo hierarquiza a população por raças, pois são levadas em consideração características como o formato e a cor dos olhos, o cabelo e a cor da pele. Ao longo dos anos, o sistema escravocrata contribuiu para uma herança racista na sociedade atual. Isso porque a maioria das relações construídas durante anos evidenciou o conceito de inferioridade das pessoas escravizadas, através dos costumes, valores e comportamentos. Nos Estados Unidos, esta herança foi tão evidente que o país manteve um sistema legal de segregação racial durante boa parte do século XX. Nesse período os negros foram marginalizados social e legalmente e não possuíam direitos civis reconhecidos. Mesmo com apontamentos, dados e estudos que demonstram o preconceito, e como isso prejudica potencialmente a ascensão de negros nos diversos âmbitos da sociedade, cerca de 14% da população brasileira afirma veementemente que o racismo não existe, conforme dados de pesquisa da Poder Data, de 2021. Segundo o professor da Universidade de Santa 32

Cruz do Sul e coordenador do grupo de pesquisa Identidade e Diferença na Educação e do Observatório de Educação e Biopolítica, Mozart Linhares, na história, entre os anos de 1920 e 1930, o Brasil incorporou a “política do branqueamento”, isto é, buscava branquear o país a partir da mistura de raças. O país construiu a narrativa de que com a miscigenação a população iria branquear. Na época, houve um cálculo que previa em 100 anos o Brasil 100% branco. A partir dali, o mestiço ou pardo seria o símbolo do país, a capoeira e o samba viraram ícones nacionais. Ao mesmo tempo que a miscigenação buscava clarear o país, a ideia imbuída por trás disso evidenciou não haver racismo. Após a abolição da escravatura, com a promulgação da Lei Áurea, em 1888, a população negra sofreu com a falta de políticas inclusivas que a integrasse na sociedade. A libertação não tinha garantias fundamentais aos negros como trabalho, educação, saúde ou moradia. Por esse motivo a discriminação se mantém presente nas relações sociais e econômicas. O racismo estrutural não diz respeito ao ato de xingar alguém de maneira pejorativa por conta da cor da pele. Ele representa um processo histórico de condições de desvantagens e privilégios determinados a grupos étnico-raciais, que são reproduzidos nos âmbitos políticos, econômicos, culturais e nas


relações cotidianas. “É o que impede a entrada de negros na universidade, sem que tenha uma placa dizendo que negros não podem estudar. Racismo estrutural é aquele que mostra que, durante a pandemia, 14% dos negros não conseguem emprego, enquanto 9% dos brancos ficam desempregados”, explica Linhares. Na prática, diversos casos podem ser citados. Levando em consideração que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 56,10% da população brasileira é negra, a superioridade desse número não reflete, por exemplo, a posição de liderança no mercado de trabalho ou dos representantes do Congresso Nacional. Entre aqueles que não têm emprego ou estão subocupados, os negros ainda são a maioria. Também são a maior parte das vítimas de

homicídio (Gráfico) e da população carcerária do país. A chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,5 vezes maior do que um jovem branco. Jornalista, especialista em história e cultura Afro-brasileira e mestre em Ciências Sociais, Thais Silveira, literalmente sentiu na pele a discriminação. Entretanto, viu na indiferença, uma maneira de potencializar a comunidade negra. Nascida em Santa Cruz do Sul, junto com os pais, fazia parte da Sociedade Beneficente União, um reduto da cultura negra na cidade. Neste círculo social, vivenciou experiências que foram importantes para entender sua identidade como mulher negra no município. Desde a infância, Thais estudou em colégio particular, sendo a única negra na turma.

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Foto: Reprodução/Instagram

Em visita à Africa: “Voltei ainda mais inspirada em promover essa mensagem de empoderamento”

Essa falta de representação estimulou-a a buscar maneiras de encontrar sua identidade e valorizar mais pessoas que se pareciam com ela e com a família. Foi no jornalismo que viu a oportunidade de contar novas histórias. Ela iniciou o curso na Universidade de Santa Cruz do Sul, mas um episódio de racismo a fez alterar os planos de se manter na cidade. Rumo à capital do Estado, Thais entendeu que o ato racista não podia e não deveria fazê-la estagnar. Logo percebeu que teria mais oportunidades profissionais na região metropolitana. E não foi 34

diferente do esperado. Conseguiu se estabelecer profissionalmente no Grupo RBS e ficou ainda mais próxima de ativistas, referências do movimento negro no Rio Grande do Sul e do país. “Desde 2013, atuo em projetos de consultoria, assessoria de comunicação e de imprensa, ministrando palestras e organizando eventos especialmente voltados para o empoderamento da mulher negra brasileira.” Inspirada nesse contexto enriquecedor, fundei a revista Pretas (2017-2019), que teve o objetivo de ampliar a representação positiva das


mulheres negras, suas histórias de vida e evitar estereótipos influenciados por racismo inconsciente ou mesmo intencional”, explica a jornalista. Segundo Thais, através dessas ações, conseguiu construir de forma prática o que realmente fazia sentido para ela: Potencializar atitudes que tragam benefícios às pessoas negras, promover oportunidades e manter a causa viva para as futuras gerações. Outra experiência que agregou na carreira e na vida dela foi uma viagem à África do Sul. Lá ela se sentiu em casa e a experiência tornava difícil explicar o sentimento de pertencimento em palavras. “Desde ver pessoas negras em diversos espaços, trabalhando nos locais, mas também consumindo, se divertindo, liderando negócios, órgãos políticos, sem barreiras. Também tive a oportunidade de conhecer a história de outras mulheres negras empreendedoras e de perceber que nossos desafios são muito similares. Ainda mais impactante foi conhecer mais sobre a história de Nelson Mandela, a casa em que ele morou e hoje é atração turística, o Museu do Apartheid, além do legado que o país ainda carrega em diferentes perspectivas. Voltei ainda mais inspirada em promover essa mensagem de empoderamento a toda comunidade negra do Brasil.” A história da santa-cruzense se confunde com outros movimentos que, cada vez mais, levam práticas e vivências sobre a cultura negra para a comunidade, escola e população em geral. Abrir espaços para debates, falas, discussões acerca do tema, faz as pessoas refletirem sobre o movimento pela igualdade racial e a importância dele. Em Venâncio Aires, a ONG Alphorria busca, através de ações no âmbito educacional e cultural, fortalecer a luta da

comunidade negra do município e da região. A organização mantém um grupo de estudos aberto à comunidade, que se reúne a cada mês para estudar e discutir a temática racial e suas interfaces. Além disso, a Banda Alphorria leva a arte negra em suas apresentações, proporcionando reflexões ao público. Conforme a pesquisadora e integrante do grupo, Camila da Rosa, é importante intensificar perante a comunidade o discurso antirracista, falar sobre o trabalho dos grupos, dos movimentos sociais e culturais, além de debater pesquisas do campo acadêmico. “Precisamos reivindicar a história, a cultura e as experiências de negritude na região, para que sejam mensuradas, pensadas e ocupem pautas no debate público, político e educacional.”

BIANCA DA SILVA @BIANCA_DASILVA__ 35


UM CRIME E DUAS PESSOAS DA MESMA FAMÍLIA Mãe e filho foram enganados por falso sequestro e golpe do nudes em Cachoeira do Sul

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do Sul, nos dois primeiros meses do ano. Segundo a titular da 1ª Delegacia de Polícia de Santa Cruz do Sul, Ana Luisa Aita Pippi, a cada dia acontecem de quatro a cinco ocorrências e todos são golpes. Em Cachoeira do Sul, um caso envolveu duas pessoas da mesma família em golpes diferentes. Uma foi vítima de falso sequestro e a outra, do golpe dos nudes. Por pedido delas seus nomes e identidades não serão revelados na reportagem. A primeira vítima, uma senhora aposentada de 82 anos, relata que estava em sua casa descansando, quando de repente recebeu uma ligação de um número desconhecido. Ela resolveu atender e foi o começo de um prejuízo ocorrido no ano de 2018. “Quando eu atendi o

Crédito: Freepik

“E

u entrei em estado de choque. Eles fazem parecer que é algo tão real .” A declaração é de uma moradora de Cachoeira do Sul, mas caberia a outras tantas pessoas que, em todo o Brasil, são vítimas desse tipo de crime que cresce a cada dia: o estelionato. De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDTT), para configurarse crime de estelionato são exigidos quatro requisitos: obter vantagem ilícita, provocar prejuízo a alguém, uso de meio ardil ou artimanha; ou quando enganar uma pessoa ou uma empresa, levando-a para o erro. Em reportagem do Portal Gaz, publicada no dia 23 de fevereiro, foi divulgado que 132 casos estavam sendo investigados em Santa Cruz


telefone, uma mulher que parecia estar muito nervosa falava que era minha filha. Ela me disse que estava sendo sequestrada e que se eu não depositasse R$ 5 mil, a matariam. Na hora foi desesperador.” Ela também contou sobre em qual momento percebeu que estava sendo vítima de um golpe. “Eu fiz um depósito de R$ 2,5 mil, e nesse meio tempo em que eu fui no banco buscar mais dinheiro, decidi ligar para a minha filha que, aparentemente, estava sendo vítima desse ‘sequestro’. Foi aí que percebi tudo que tinha acabado de acontecer. Fui enganada.” A delegada Ana Luisa alerta sobre a frequência destes casos e como acontecem os golpes dentro das prisões. “O golpe dos nudes, a maioria dos presos estão praticando de dentro dos presídios. Eles precisam sustentar a família e se aventuram nesse novo crime. Golpe do familiar sequestrado, golpe da clonagem do WhatsApp, e inúmeros outros. De dentro da cadeia eles comandam e a família, em liberdade, auxilia na prática. Os golpes mais aplicados são a clonagem do WhatsApp e Instagram, nudes e o conto do bilhete.”

A outra vítima Já o segundo caso aconteceu meses depois, com o filho da idosa, um homem de 58 anos. Mais comum entre indivíduos do sexo masculino e de meia idade, o golpe dos nudes acontece através da internet. É uma situação que parece fácil ser notada como golpe, porém uma geração que não cresceu muito ambientada com a tecnologia e com as redes sociais, é propensa a ser manipulada pelos criminosos. E quando iniciaram as conversas? “Foi em agosto de 2021,

quando uma moça desconhecida me chamou, trocamos fotos entre a gente. Começou pelo Facebook Messenger, mas logo depois foi para o WhatsApp.” O depósito foi feito depois da vítima ser intimidada pelo “pai” ao alegar que a jovem teria apenas 15 anos e sofria com doenças psicológicas. Foi pedido o valor de R$ 5,5 mil para custeio de tratamentos médicos, que, caso não fosse pago, teria uma denúncia como resultado e até uma prisão. Ele lamenta não ter desconfiado de algo. “Foi tudo muito bem planejado. Ele até passou o telefone para um homem que fingia ser delegado de polícia, me mandando foto da sala da polícia muito bem feita. Era igual a uma delegacia.” A vítima descobriu o golpe dois dias depois de ter depositado R$ 200. “Minha namorada achou o recibo na minha carteira, descobriu e avisou a minha família. Então, fomos até a delegacia registrar a ocorrência. Lá foi confirmado o golpe.”

Especialização A delegada Ana Luísa Aita Pippi destacou ainda que há uma organização interna da Polícia Civil para coibir esses crimes. “A Polícia Civil está buscando se especializar nesses golpes. É difícil porque não tem efetivo, mas estão criando cartórios, como já tem em algumas cidades do Estado, e nas delegacias especializadas para podermos dar uma atenção especial para essa demanda. Isso é uma nova realidade no quesito criminalidade para a polícia, investigação longa e demorada, um trabalho árduo.”

Bruno Bica @brunoosilveira_ 37


Um mundo interconectado com traços de ficção científica e realidade: você está preparado para o metaverso?

S

eis pessoas em torno de uma mesa redonda conversam com outras sete por meio de videoconferência projetada em uma TV suspensa. Atrás da tela, na qual a reunião on-line é transmitida, uma parede de vidro deixa à mostra a vista da sala para o que parece ser um moderno e arborizado centro urbano. A julgar pela descrição do espaço e pela formalidade da ocasião, essa poderia ser apenas mais uma reunião rotineira em um prédio corporativo qualquer. No entanto, o fundador e CMO da plataforma de gestão de mídias sociais mLabs, Rafael Kiso, – um dos profissionais sentados à mesa – na verdade, não está presente na sala. Pelo menos, não em sua forma física. A cena detalhada trata-se, na realidade, de um encontro virtual realizado na plataforma Horizon Workrooms, o metaverso do Facebook. “Há uma sensação de que você foi teletransportado para outro lugar, então, isso é real: você perde a noção do espaço físico onde está e, de fato, pensa que está em outro espaço, mas dentro de um ambiente virtual.” Para interagir com os demais colegas, o especialista em marketing digital utilizou o headset Oculus Quest, um óculos de realidade 38


Crédito: Captura de Tela feita por Rafael Kiso Crédito: Helen Ross

Metaverso do Facebook permite criar uma reunião virtual dentro da outra, em camadas digitais

virtual (RV) que permite vivenciar experiências imersivas. O termo metaverso ganhou popularidade nos últimos meses, após a transformação do nome e da marca Facebook na empresa de tecnologia Meta, em outubro de 2021. O conceito, porém, não é novo. Pelo contrário, remonta ao ano de 1992, quando surgiu no romance de ficção científica, Snow Crash, de Neal Stephenson. Trinta anos depois de seu lançamento, os traços ficcionais da obra – que narra uma existência híbrida entre espaços físicos e digitais – aproximam-se cada vez mais da realidade. Em junho passado, gigantes da tecnologia mundial fundaram o Metaverse Standards Forum – ou Fórum de Padrões do Metaverso, em tradução literal. Adobe, Meta, Epic Games, IKEA, Microsoft, NVIDIA, Sony Interactive Entertainment, World Wide Web Consortium e outras 28 companhias líderes do setor uniramse para impulsionar a construção de um metaverso interoperável. Mas, o que isso significa? Em comunicado oficial no site do

Khronos Group – responsável pela hospedagem do Fórum –, o presidente da organização, Neil Trevett, explicou que pensar em interoperabilidade nada mais é que definir “uma base de padrões abertos, inclusivos e escaláveis para que esse novo ecossistema possa se desenvolver com responsabilidade e eficiência tecnológica”. Kiso, por sua vez, busca simplificar a ideia de um metaverso interoperável dando como exemplo as várias camadas digitais incorporadas, naturalmente, à vida cotidiana das pessoas. “Um assistente de voz, como a Alexa, um Google, o próprio acesso através dos nossos smartphones são camadas, aí temos coisas conectadas e, de repente, o carro, o nosso relógio e o óculos estão conectados. A gente vai adicionando camadas e todas elas são interoperáveis, ou seja, integradas entre si, para que a gente possa ter um maior nível de produtividade, de inteligência ou de comodidade.” Na prática, as diretrizes do Fórum de Padrões para um metaverso interoperável têm o mesmo propósito destacado por Rafael. “A gente para 39


Crédito: Volodymyr Shtun

de ter a nítida sensação de estar online ou de estar off-line, a gente está always-on.

Experiências no metaverso dependem de dispositivos de realidade virtual

Entre camadas digitais, o metaverso Sob o olhar do doutor em Comunicação e Informação, Willian Fernandes Araújo, o metaverso – da maneira como têm sido explorado após o anúncio do Facebook/Meta – pode ser compreendido como uma proposta comercial. “A Netflix não foi a primeira empresa que lançou um streaming, mas teve o maior alcance e acabou popularizando o formato.” 40

Para Araújo, a exemplo do que ocorreu com a plataforma de séries e filmes, o metaverso ocupa o lugar de ferramenta de realidade virtual (RV), um novo formato capaz de provocar um efeito de popularização semelhante. Já o fundador da mLabs defende que o metaverso, em si, é muito mais do que um ambiente virtual tridimensional e, tampouco, pertence ao Facebook/Meta. Ao mesmo tempo, concorda com Araújo quanto às motivações de Mark Zuckerberg para o buzz em torno da ideia. “Tem a ver com a compra da marca Oculus há alguns anos e com a proliferação dessa tecnologia no mercado, incluindo a criação do RayBan Stories, que é o óculos do Facebook mais Urban, principalmente pensando em realidade aumentada e como tudo isso é integrado à plataforma de mídias sociais.” Ao contrário do headset Oculus Quest, usado por Kiso para interagir na plataforma Horizon Workrooms, o Ray-Ban Stories é um óculos inteligente de visual discreto e muito parecido com um óculos normal. Por trás das lentes, porém, há câmera, microfone e saídas de áudio de alta qualidade. Funcionalidades que sobrepõem experiências on-line e off-line, numa demonstração da fina camada que separa o real do virtual. Por ora, as definições conceituais para o metaverso permanecem confusas mesmo entre especialistas, mas em seu nível mais básico, oscilam entre expectativas sobre o que deveria ser e o que pode se tornar em uma próxima fase na internet como a conhecemos. Em seu relatório mais recente, New Realities: Into the Metaverse and Beyond 2022, a agência Wunderman Thompson Intelligence demonstrou que o número de pessoas que já ouviram falar sobre o termo saltou de 32%, em julho de 2021, para 74%, em


março de 2022. Entretanto, apenas 15% delas sabem o que é o metaverso ou conseguem explicá-lo para outra pessoa. A diretora global da agência, Emma Chiu, o descreve como “uma extensão de nossas vidas aprimorada pela tecnologia”, e acredita que o mesmo passará da fase atual – em que “existe como uma série de mundos e experiências virtuais distintas” – para, no futuro, tornar-se “um mundo interconectado e ilimitado, onde nossas vidas digitais e físicas convergem totalmente”.

de metaverso, mas apenas 19,6% já usufruíram, de fato, de algum tipo de experiência imersiva em um. A explicação, entre outros fatores, pode ser observada na dificuldade de acesso a dispositivos especiais: 70,9% não possuem nenhum equipamento de realidade virtual. Note-se que, dentre as mais de 13 mil pessoas entrevistadas, predominam os consumidores de games – público já familiarizado com o comportamento digital.

Como entrar no metaverso A despeito das diferenças conceituais sobre o tema, todas elas convergem para dois pontos em comum: o avanço de tecnologias de realidade mista (RM) e a necessidade de aquisição desses recursos pela população. E, embora cada vez mais empresas estejam investindo no aprimoramento de experiências imersivas ao redor do mundo, Araújo chama atenção para os desafios de acesso a esses itens, sobretudo diante das diferenças sociais. “Existe aí [no metaverso] uma grande promessa de popularização do acesso a muitas coisas, na medida em que o digital elimina barreiras. Porém, a gente precisa ser bastante realista com o lugar onde estamos, em um Brasil que tem grandes desigualdades. A gente tem espaços onde há acesso a tecnologias de ponta e outros em que nem as tecnologias digitais mais básicas estão disponíveis.” De acordo com a pesquisa Pesquisa Game Brasil – realizada entre fevereiro e maio de 2022, pela Go Gamers, Sioux Group, Blend New Research e ESPM para avaliar o ecossistema gamer no país –, 63,8% dos entrevistados já ouviram falar

CAROLINA APPEL @appelcarol 41


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