Unicom 02-2007

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editorial MAIS QUE UMA META, UM JORNAL Ao passo em que se encerra formalmente mais um semestre em nosso processo de formação acadêmica em jornalismo aqui na Unisc, fazemos chegar às suas mãos mais uma edição do Unicom. Com este, atingimos a meta estabelecida ainda no início do ano de viabilizarmos a publicação de quatro números de nosso jornal-laboratório neste 2007. A importância deste Unicom, que trabalha a temática jornalismo ambiental, e do número que lhe antecedeu neste segundo semestre, extrapola, em muito, a simples realização de um exercício acadêmico curricular. Isso porque, não obstante não termos disponível nenhuma cadeira formalmente instituída para trabalharmos o Unicom, entendemos – coordenação, alunos e professores -, que um curso de jornalismo justifica-se principalmente pela materização do conhecimento dos que neles se inserem. Neste sentido, seria ruim encerrarmos o ano com apenas dois jornais, feitos no início do ano. A tarefa se tornou possível por meio do esforço dos professores e alunos das disciplinas de Jornalismo Especializado e Técnicas de Reportagem, que abriram espaço em seus cronogramas curriculares para, junto dos alunos, levarem a bom termo seu propósito. Mas não apenas eles: uma vez mais tivemos como parceiros alunos e monitores das disciplinas de fotografia e publicidade, que têm sido aguerridos no sentido de tornar possível o Unicom e, com isso, desenvolverem também eles suas potencialidades. No que toca especificamente à temática – jornalismo ambiental -, e considerando as restrições operacionais que tal arranjo curricular nos obriga, escolhemos este tema porque ele representa, quem sabe, uma das pautas mais importantes deste século que recém se inicia. E que diz respeito, à sobrevivência de cada um de nós, motivo pelo qual ele foi tratado com muita propriedade, como eixo condutor da Semana Acadêmica da Comunicação, há pouco realizada. Como dissemos, o resultado obtido a partir desta perspectiva aí está. Cabe a você, agora, na condição de leitor, ajudar-nos a tornar este espaço acadêmico ainda melhor, o que será possível por meio principalmente de sua participação crítica. Grande abraço a todos e uma boa leitura.

Flash! O coração fez X HELOÍSA POLL A apresentação começou. Meu coração bate forte. É tanta expectativa! Não consigo expressar em palavras. Daqui de cima, tudo parece mais bonito, emocionante. Lá embaixo, os protagonistas aparentam ser simpáticos. Será apenas ilusão? A moça loira, que vejo pela terceira vez na semana, começa a falar. Narra currículos, conta pequenos trechos de grandes vidas. Minha ansiedade aumenta. Após uns dois, três minutos, finalmente, o palestrante leva o microfone à sua boca. Logo, descubro que ele não está sozinho. Sua mulher está sentada ao lado. A simpatia é comprovada. Passadas algumas falas, a representante do sexo feminino, possuidora de um olhar arteiro, anuncia a reprodução de um vídeo. A partir daquele momento, meus olhos, ouvidos e coração tornamse propriedade exclusiva de uma projeção, de um momento. Os primeiros slides começam a passar. Sinto arrepios pelo corpo. A trilha sonora é linda, a história também. Com a dupla, surgem fotografias. Imagens que fizeram rolar pequenas lágrimas em minha face. Quanta paixão! O tempo foi passando. Para mim, a noite estava ganha. Que trabalho sensacional! Que vida interessante! Meus pensamentos possuíam pontos de exclamação. Em instantes, a pequena introdução chega ao fim. Agora é o momento de ouvir as histórias do casal. Impossível ser tão bom quanto o vídeo. Engano. O incrível foi que, em meio às palavras deles, lembrei das minhas. Os dois viajaram à África do Sul e fizeram fotos esplêndidas. Eu viajei

ao interior de Vera Cruz e fotografei formigas em uma velha árvore caída. Eles utilizaram uma Kombi como meio de locomoção. Eu utilizei meus próprios pés. Ele fotografou um jacaré. Eu fotografei o cachorro da minha avó. A Patagônia, daqui a alguns meses, será sua próxima parada. Eu, há um ano, fiz fotos nos cemitérios de Ferraz – outro ponto do meio rural vera-cruzense. Suas imagens foram aprovadas. As minhas? Saberei somente no fim do semestre. Conforme a conversa com a platéia fluía, minha admiração aumentava. Houve um momento em que eu não conseguia mais controlar meus sentidos. Aquilo tudo era tão interessante! Eu queria ouvi-los e, ao mesmo tempo, admirar as fotografias que passavam ligeiramente pelo telãoparede. Ah, aquela era a palestra dos meus sonhos. A semana acadêmica toda estava salva pelo depoimento de duas pessoas que me fizeram acreditar na vida e, principalmente, nos meus tantos desejos. As perguntas começaram e senti que havia outros seres maravilhados com aquilo tudo. Até as conchinhas da minha pulseira estavam vibrando! O tempo acabou e a bateria do meu celular também. Com medo de perder o ônibus, não fiquei para ver os portfolios que estavam sobre a mesa. Voltei para casa com ar de Primavera. Deitei minha cabeça no travesseiro e ele testemunhou: sonhei com tudo e com todos, de novo. Suspirei, “ITAva bem bom aquilo tudo”.

expediente UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - RS CEP: 96815-900 Curso de Comunicação Social - Jornalismo. Bloco 15 - sala 1506. Fone: 3717-7383 Coordenadora do curso: Mônica Pons.

Capa Foto: Márcia Melz Arte: Lázaro Paz Fanfa Logotipo Samuel Heidemann Impressão Graphoset Tiragem 500 exemplares

Revisão Carina Weber Letícia Mendes Lucas Nobre

Repórteres Carina Weber Daniele Horta Lucas Nobre Márcia Melz Mariane Selli Poliana Pasa Rodrigo Nascimento

Ilustrações Lázaro Paz Fanfa

Diagramação Gelson Pereira Poliana Pasa

Produção Sancler Ebert

Editor-chefe Demétrio de Azeredo Soster Este jornal foi produzido de forma interdisciplinar. O conteúdo editorial ficou a cargo das turmas de Jornalismo Especializado (professor Demétrio de Azeredo Soster), Técnicas de Reportagem e Jornalis-

mo Impresso II (professor Hélio Etges). As fotografias foram feitas pela turma de Fotojornalismo II (professor Alexandre Borges). Os anúncios da edição foram criados pelas turmas de Redação em Publicidade e Propaganda II (professor Fábio Hansen) e Direção de Arte I (professor Rudinei Kopp).


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Mel de teias de aranha

Desaparecimento de abelhas nas colméias de Santa Cruz do Sul é reflexo de uma tendência que deixa o mundo em alerta

LUCAS NOBRE Sim, o título é um absurdo. E dos grandes! Mas pode começar a ser explicado em uma simples ida à feira. Pois, se um santa-cruzense for em uma ao meiodia, também conhecida como “hora da Xepa”, notará que tudo fica mais barato. Menos o mel. À procura de respostas, fomos a uma movimentada exposição de flores, localizada no Parque da Oktoberfest. Lá encontrava-se o apicultor Roberto Schmitt, presidente da Associação SantaCruzense de Apicultores e da Rede Mel - que congrega associações do ramo das cidades do Vale do Rio Pardo - ele conta que este ano foi atípico para a produção na região. “Nas épocas de coleta do mel, é normal a gente tirar entre 20 e 30 quilos por colméia. Esse ano foi bem menos do que isso”, afirma Schimitt, sem informar a média que se extraiu até agora. Ao lado dele, estava o também apicultor Lauri Hübner. Na roda de chimarrão, onde aconteceu a conversa - interrompida várias vezes por compradores de mel, atraídos pelo preço mais camarada do que usualmente encontram -, Lauri relata que a atividade funciona para ele como um hobby e também como uma alternativa de renda extra. Sua atividade formal é conduzir um táxi cujo ponto fica na rua Carlos Trein Filho. “É muito difícil encontrar alguém, ainda mais aqui no Rio Grande do Sul, que dependa apenas da apicultura”. Essa realidade apontada pelos dois apicultores de Santa Cruz do Sul é difícil de ser confirmada com números. As informações mais atualizadas da Embrapa, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, são de 2003. E, mesmo assim, não se tem muita segurança para estimar quantas famílias brasileiras fazem com que o país seja o sexto maior produtor de mel do mundo, perde só para China, Estados Unidos, Argentina, México e Canadá. Os números apresentados afirmam que existem, no Brasil, entre 1,3 e 2,5 milhões de col-

méias. As mesmas, segundo as pesquisas do governo, seriam cuidadas por um número de apicultores que chega na casa dos 300 mil. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são mais precisos, apesar de serem do ano 2000. Segundo o instituto, a produção de quase 22 mil toneladas de mel brasileiro gerou um faturamento de R$ 84 milhões. Independente do número de famílias envolvidas no setor, que produz também outros produtos, como cera, própolis e geléia real, todos percebem que algo está errado. Seria mais um ano ruim de produção de mel por causa do frio e do excesso de chuvas em Santa Cruz do Sul, conforme pensam Schmitt e Hübner? Ou há algum outro fator que explique a queda? O biólogo Andreas Köhler, responsável pelo laboratório de entomologia da Universidade de Santa Cruz do Sul, UNISC, aponta que a produção de mel na região pode ter sido afetada por um fenômeno que acontece na América do Sul, o desaparecimento da abelha Apis melífera, espécie utilizada pelos apicultores. “Esta abelha é de origem africana e por isso é que aqui e na Europa elas são consideradas exóticas. Apesar de terem se adaptado bem nos dois continentes, há uma mortandade de abelhas por lá e um desaparecimento delas por aqui”. Nos Estados Unidos, a produção de mel caiu na faixa de 30%, como publicou o jornal Estado de São Paulo. O assunto virou pauta até no senado americano, pois as abelhas são responsáveis pela produção de 65% dos alimentos consumidos pelo homem. E, na terra do Tio Sam, esses insetos movimentam respeitáveis US$ 14 bilhões anuais na economia americana. Ao comprometer esse orçamento, os efeitos colaterais geram uma dor que, para qualquer americano, pode ser muito mais forte do que levar ferroadas de um enxame inteiro.

Os efeitos e conseqüências do desaparecimento no Brasil Aquecimento global - Köhler explica que com o aquecimento global, tão discutido durante a Semana Acadêmica da Comunicação Social (leia mais na página 06), o calor mais prolongado está fazendo com que as fontes alimentares da espécie mudem. “O período das abelhas sem alimento está passando a ser maior. Isso por aqui é um problema, pois a abelha da América do Sul não é acostumada a estocar muito alimento nas colméias assim como fazem as européias”, conta o biólogo nascido na Alemanha. Polinização comprometida - Não é apenas no aspecto econômico que as abelhas são muito importantes. “Elas são eficientes polinizadoras das flores de árvores que produzem frutos como bergamoteiras e laranjeiras, comuns no sul do Brasil”. Se você for picado por uma enquanto estiver colhendo bergamotas e laranjas, respire aliviado. È sinal de que, além de estar tudo normal, as colméias não correm o risco de serem tomadas por teias de aranha.


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Consumo e desperdício: os gastos são como água

A população de Santa Cruz do Sul consome cerca de 30 milhões de litros de água por dia. Mas essa quantidade poderia ser de quase 40% a mais, não fossem as perdas no sistema de distribuição da Corsan

Todos os dias cerca de 30 mil m³ de água abastecem mais de 38 mil imóveis em Santa Cruz do Sul. Isso equivale a 30 milhões de litros, distribuídos diariamente entre casas, estabelecimentos comerciais e indústrias. Mas são as residências, que somam 30 mil na cidade, as responsáveis por quase 80% do consumo. Portanto, se há alguém que pode começar a economizar, são os moradores. Iracema Geller, 48 anos, vive no bairro Universitário e acredita que faz sua parte: usa a mesma água da máquina de lavar roupas para limpar o pátio. Porém, ela admite o desperdício. As seis pessoas que moram na casa tomam dois banhos por dia. O que a dona Iracema não sabe é que esse tipo de gasto não é o único responsável pelo desperdício de água em Santa Cruz do Sul. A própria Corsan (Companhia Rio-Grandense de Saneamento) perde todos os dias de 30% a 40% da água que trata. Ou seja, os 30 mil m³ que abastecem a cidade poderiam se tornar mais de 40 mil m³, caso o sistema de abastecimento fosse mais resistente. São quinhentos quilômetros de uma rede subterrânea cuja parte mais antiga data do final do século XIX. A pressão da água aos poucos deteriora os tubos. Além disso, a topografia urbana, repleta de desníveis, colabora bastante para a aparição de vazamentos. Segundo o gerente da Corsan, Paulo Stein, os grandes culpados são os materiais que constituem a rede. A primeira parte dela foi composta de ferro e chumbo, bastante resistentes. No entanto, todas as ampliações do sistema – necessárias à medida que crescia a cidade – foram feitas de fibro-cimento, material de fragilidade maior, mais indicado para cidades planas. Nesses pontos da rede ocorre a maioria dos vazamentos. Muitos deles não chegam a aflorar para o solo e são, portanto, difíceis de detectar. A solução encontrada pela Corsan para diminuir as perdas é a substituição das partes mais problemáticas do sistema por tubos de PVC. Entretanto, até mesmo alguns desses pedaços novos da rede já precisaram ser trocados. Paulo Stein acredita que uma renovação completa do sistema de abastecimento seria o ideal, mas ainda não há um plano con-

HELOÍSA POLL

POLIANA PASA

creto para isso. E, mesmo que o prejuízo de quase 40% na distribuição da água seja assustador, é um dos menores índices no Brasil. O coordenador e técnico da Corsan em tratamento e qualidade, Luiz Augusto Schmidt, ressalta que a rede de Santa Cruz do Sul é considerada de alto nível no Brasil. Mas ele sabe que em países europeus, por exemplo, essa quantidade de desperdício seria inaceitável. Aliada à perda física de água dos vazamentos está a perda de faturamento, causada pelo uso clandestino de canos e pelo gasto excessivo de casas sem medidor de consumo. A instalação do aparelho é responsabilidade da Corsan, que ainda não equipou 5.200 casas com o medidor. A previsão é de que até 2009 todos os imóveis da cidade tenham o consumo controlado pela empresa. Nas casas sem medidor, não importa o quanto de água é usado. Ainda assim, o morador paga para a Corsan apenas a taxa básica, que corresponde a 10 m³ por mês. A cobrança não é apenas uma questão de lucro, porque, de acordo com Paulo Stein, a empresa não cobra pela água e, sim, pelo seu tratamento e transporte. A preocupação do gerente é que as pessoas não sabem o va-

lor real da água, aquele que vai além do financeiro e está na base da sobrevivência humana. Logo que se mudou para sua propriedade, no bairro Verena, Nelson Julich, 46 anos, viveu por algum tempo sem medidor. Hoje, já instalado, o medidor mostra que a família de Nelson gasta mais que o dobro da taxa básica. Ele afirma que o consumo não era maior quando não havia o aparelho, mas, por precaução, construiu no terreno dois reservatórios que captam água da chuva. Com o líquido armazenado ele lava as calçadas, o carro e irriga as folhagens. Se tiver que economizar água, Nelson diz que pode parar de lavar o automóvel – que ele e a esposa banhavam quando foram entrevistados. Porém, ele não vai deixar de regar as plantas a cada dia. Para a agente administrativa da Corsan, Lúcia Müller Schmidt, economizar não é uma possibilidade, é uma urgência. “Não há mais o que esperar”, declara, “do jeito que a gente usa e abusa da água, a situação é preocupante”. Ela garante que há um consumo excessivo por parte da população e aponta para o fato de que pode haver racionamento neste verão. É quando começa a estação quente, principalmente nos meses de

outubro, novembro e dezembro, que os gastos aumentam. Imelda Vagner, 59 anos, também moradora do bairro Verena, sabe bem disso. Ela cuida para economizar, mas já sabe que no verão não tem jeito: o uso da piscina encarece a conta de água. Em caso de racionamento, Imelda pensa que é possível poupar em tudo. De acordo com Lúcia, a dona Imelda pode se preparar para a economia, pois a possibilidade de racionamento aumenta ainda mais com a previsão de seca. Nos últimos anos, a cidade escapou da economia forçada devido ao abastecimento do Lago Dourado. Mesmo que não chova por três meses, o lago garante água para Santa Cruz do Sul. Mas o período de seca deste ano promete ser bastante rigoroso, o que aumenta a probabilidade da contenção de gastos. Contudo, quanto à garantia de fornecimento de água, Lúcia, que também é a presidente do Comitê Pardo (Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Pardo) lembra que a responsabilidade é de todos. Para a agente administrativa, a existência da água depende do uso dos seres humanos e não apenas da capacidade dos rios e mananciais.


Vilãs do consumo usam poços O gasto residencial é tão expressivo no total gasto pela cidade porque os maiores usuários não são contabilizados pela Companhia de Saneamento Rio-Grandense. As indústrias, na maioria dos casos, utilizam poços artesianos para os processos industriais. No entanto, é proibido o uso da água de poços para consumo humano. Por isso, a Corsan abastece as indústrias, mas apenas para a utilização dos funcionários. Mesmo assim, as grandes empresas pagam uma taxa industrial, mais cara que a residencial, pelo fornecimento. A perfuração de poços é controlada por entidades governamentais, que estudam a viabilidade de cada reservatório. Como a água de poços artesianos é puxada diretamente do lençol freático, as perfurações devem ser feitas com moderação, para que as fontes subterrâneas de água não sequem.

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FERNANDA ZIEPPE

que essa não é uma preocupação imediata, já que hoje a qualidade da água bruta do Dourado é ótima. Apesar de se tratar de um lago, a água nunca fica parada, pois está sempre a chegar do rio e a sair para o abastecimento da cidade. Segundo a agente administrativa, a Corsan respeita os limites de fornecimento. Através de um procedimento chamado recalque, a empresa retira 40 litros por segundo do lago – e garante que entra muito mais água do que sai. Três grupos de motores bomba puxam os recursos hídricos e os levam por 4,5 quilômetros de aparelhos adutores até a estação de tratamento da Corsan. De lá, a água já pronta para o consumo humano, é distribuída para os imóveis. Para Luiz Augusto, só o uso racional é capaz de frear a escassez catastrófica prevista pelos ambientalistas. “Cada um tem que fazer a sua parte”, diz ele. No entanto, Lúcia lembra que, em toda a história do planeta, o nível de recursos hídricos não aumentou nem diminuiu – foi apenas transformado. O que está em risco hoje é a quantidade de água potável disponível para a humanidade. E o coordenador de tratamento e qualidade expõe o tripé de fatores necessários para a conservação do líquido: preservação das matas ciliares, adequação da Corsan para diminuir as perdas e a conscientização da população para controlar o consumo demasiado.

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MÁRCIA MELZ

O principal manancial que abastece Santa Cruz do Sul é o Lago Dourado que, por sua vez, é alimentado pelo Rio Pardinho. Apenas quatro poços artesianos são utilizados pela Corsan. Eles estão numa parte da cidade em que não há pressão suficiente nos canos para que a água chegue às casas. Em Linha Santa Cruz, na parte mais alta da Avenida Leo Kraether, existem três poços doados pela prefeitura e um que foi furado pela empresa. A água de poços representa menos de 10% do total fornecido para a cidade. Isso reforça ainda mais a necessidade de preservação do Lago Dourado. De acordo com o coordenador e técnico em tratamento e qualidade, Luís Augusto Schmidt, um dos principais fatores para a manutenção do manancial é o cuidado com a mata ciliar do Rio Pardinho. Ele afirma que se as comunidades ribeirinhas fossem mais responsáveis com a recuperação da mata, não haveria tantos resíduos sólidos no rio e no lago. A chuva leva a terra solta das plantações para os arroios, que desembocam no rio. A correnteza leva os detritos ao Lago Dourado. Se a mata ciliar da região estivesse preservada, ela conseguiria segurar a sujeira e não poluiria o rio. Por enquanto, quanto mais precipitação, mais resíduos na água. Algum dia será necessário um processo de drenagem para limpar o lago. Mas Lúcia adianta

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Abastecimento depende do Lago Dourado

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A Corsan acredita em um tripé de fatores para preservar a água: a conservação das matas ciliares, para que a água do rio seja de boa qualidade; o cuidado no tratamento e controle das perdas físicas da própria empresa; e conscientização dos usuários para a economia do líquido

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A experiência v Isso mesmo. O convidado mais experiente, responsável pela palestra de abertura da 12ª Semana Acadêmica da Comunicação Social, chegou com o famoso All Star nos pés. O editor-chefe do Globo Ecologia, Cláudio Savaget, conversou com os estudantes acerca do tema proposto pela Seacom: comunicação e meio ambiente. No entanto, ele falou mais – bem mais – sobre ecologia do que sobre comunicação. O anfiteatro do bloco 18 nunca esteve tão lotado numa palestra promovida pela Comunicação Social, mas também nunca esvaziou tão rápido. A porta de saída da sala teve de ser chaveada para diminuir o fluxo de alunos fugitivos. Parece que o caminho percorrido pelos tênis não agradou aos alunos. Na manhã seguinte, houve um papo mais dirigido aos acadêmicos de Jornalismo. Ecojornalismo foi a pauta da palestra. De um lado, a ecojornalista Silvia Marcuzzo defendeu a idéia de o jornalismo ambiental perpassar todas as editorias dos jornais, sem a necessidade de criação de páginas específicas. De outro, o editor da página de meio ambiente do Jornal VS, de São Leopoldo, Eduardo Kopp, mostrou-se contrário: ele acha importante um veículo dedicar espaço exclusivo às matérias de cunho ecológico. Durante a tarde, foi exibido e discutido o polêmico documentário Uma verdade inconveniente, de Al Gore. Vindos de Novo Hamburgo, o casal apaixonado por fotografia Ita Kirsch e Simone Blauth, contou suas aventuras em expedições fotográficas. Um exemplo delas é a viagem de 17 meses feita de Kombi pelo Brasil. E o fotógrafo deixou o recado: apesar de qualquer jovem de 17 ou 18 anos ter uma câmera digital em mãos, o bom fotógrafo é o que faz a foto no clique, e não na edição.

MÁRCIA MELZ

MÁRCIA MELZ

MÁRCIA MELZ

MÁRCIA MELZ E MARIANE SELLI


MÁRCIA MELZ

A palestra da manhã de quarta-feira não prometia muito. Talvez por não ser específica para uma das habilitações, ou por não ter nomes tão conhecidos e não se aproximar muito da comunicação. Porém, foi a mais elogiada dessa edição da Seacom. O membro do CAPA – Centro de Apoio ao Pequeno Agricultor -, Luiz Rogério Boemeke, ao lado de Jair Putzke, professor do Departamento de Biologia e Doutor em Botânica, deu uma aula sobre como nós prejudicamos o meio ambiente e o que podemos fazer para melhorá-lo. À noite, foi a vez dos Relações Públicas ganharem espaço. O RP da Prefeitura de Porto Alegre, Robson Lhul, mostrou a importância da profissão em áreas de responsabilidade social. Em 10 minutos de conversa, ocorreu o mesmo fenômeno visto na palestra do Savaget. Para encerrar o ciclo de palestras, a publicitária do Greenpeace, Daniela Carvalho Soares, explicou como são feitas as ações dos ativistas e apresentou campanhas realizadas pela ONG no último ano. Depois da palestra, houve o plantio simbólico de três árvores no pátio do bloco 15 da Universidade. No turno da tarde, foi realizada uma visita à chácara do professor Jair Putzke, em Vera Cruz. Os participantes puderam ver uma jibóia morta em formol e a réplica de um Tiranossauro Rex. O passeio ecológico parece ter agradado mais os meninos do que as meninas. Após mais uma Semana Acadêmica da Comunicação Social, merecem créditos os monitores e voluntários da Agência A4 que mais uma vez trabalharam na organização, divulgação e cobertura do evento. Em especial o núcleo de Produção em Mídia Audiovisual, responsável pela realização de vídeos sobre o evento. Diversos futuros profissionais que, já durante a vida acadêmica, começam a trilhar um caminho com os próprios pés.

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veio de All Star

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Um novo desafio para os orquidófilos

Opção econômica e ecológica faz da casca de noz-pecã e de outros substratos bons substitutos ao xaxim no cultivo de orquídeas

CARINA WEBER CARINA WEBER À ocasião do aniversário de sua esposa, na procura por um presente na capital, o militar Clovis Francisco dos Santos deparouse com uma linda orquídea. Isso há sete anos. Na época, trabalhava em Porto Alegre e nos fins de semana retornava a Cachoeira do Sul. “Na realidade, não escolhi as orquídeas. Eu acho que as orquídeas me escolheram”, diz, ao lembrar da primeira orquídea que adquiriu. O presente foi dado à esposa. Com o tempo, a floração passou, a planta murchou e ele pensou: – Vou pagar R$ 170,00 por uma planta para deixá-la morrer? Não é possível! Foi aí que resolveu começar a pesquisar. E não parou mais. Hoje, ele possui uma coleção com 800 orquídeas de várias espécies – é orquidófilo (o amigo das orquídeas), orquidólogo (aquele que estuda as orquídeas) e também preside a Ascor (Associação Cachoeirense de Orquidófilos), que existe há 12 anos e conta com 60 sócios. Assim como Clovis, Carlos Daniel Schumacher da Rosa, presidente da FGO (Federação Gaúcha de Orquidófilos), também teve um motivo especial para tornar-se um orquidófilo, há 35 anos. Durante um curso de Zoologia Marinha, em Porto Belo, Santa Catarina, encontrou uma orquídea à beira-mar. Ele queria plantá-la para presentear a mãe. No começo, tinha apenas algumas plantas. Com o tempo, o número aumentou. Hoje, é colecionador, produz e comercializa algumas orquídeas e também bromélias. Carlos Daniel possui

dois orquidários em Cachoeira do Sul: um na área urbana com 420 m², e outro na área rural com 540 m². Contudo, Clovis, antes de ser orquidófilo como Carlos Daniel, notou que sua orquídea necessitava de substratos para sobreviver. Ele percebeu que um deles era o chamado xaxim (Dicksonia sellowiana), espécie de samambaia, e uma planta que, em geral, leva muitos anos para se tornar adulta. Por um bom tempo, o xaxim teve quase uso exclusivo. Porém, no Rio Grande do Sul, foi criada a lei nº 9.519 de 21 de janeiro de 1992, que institui o Código Florestal do Estado e, em seu art. 31, proíbe a coleta, a industrialização, o comércio e o transporte do xaxim proveniente de floresta nativa. Por sua vez, desde 24 de maio de 2001, o Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) criou a resolução nº 278, que dispõe contra o corte e a exploração de espécies ameaçadas de extinção da flora da Mata Atlântica.

O começo do uso da casca de noz-pecã Sem o xaxim, muitos dos orquidófilos tiveram que buscar alternativas. Foi aí que surgiu a casca de noz. O primeiro a testála na plantação de orquídeas em Cachoeira do Sul, no estado e até no Brasil foi o professor e biólogo Carlos Daniel Schumacher da Rosa. Tudo começou com uma

Orquídeas plantadas com o uso de casca de noz

conversa informal. Um aluno que havia testado a casca de noz em bromélias, e obtivera bons resultados, sugeriu que Carlos Daniel a experimentasse nas orquídeas. A experiência soma mais de dez anos. Após os testes, o professor começou a aplicá-la e isso antes mesmo de o xaxim ser proibido. Mas de onde vem a casca de noz? Na América do Sul existem apenas duas indústrias – Divinut e Pecanita –, que beneficiam a noz-pecã e estão localizadas em Cachoeira do Sul. Edson Roberto Ortiz, biólogo e proprietário da Divinut, trabalha há mais de dez anos com a noz-pecã. Da mesma forma que os orquidófilos Clovis e Carlos Daniel, ele também tem histórias a contar sobre porque escolheu as nozes. Edson nasceu em Cachoeira do Sul, porém residia em Porto Alegre. Quando vinha visitar parentes na cidade natal, sempre cruzava em frente ao pomar de nogueiras da Linck Agroindustrial Ltda., que lhe chamava a atenção. Na época em que resolveu ser técnico agrícola, foi para a Escola Agrícola de Viamão. À medida que se interessava pela agricultura, também vislumbrava a nogueira-pecã uma cultura interessante. “Desde os 14 anos botei na

minha cabeça que iria trabalhar com a planta”. Foram dez anos na Linck Agroindustrial Ltda. – Hoje, a indústria leva o nome de Pecanita e possui outra direção. Edson começou na parte técnica, chegou à coordenação geral e saiu da empresa para ter a sua própria, há sete anos – a Divinut. Foi a partir de uma idéia dele que Cachoeira do Sul recebeu o título de capital sul-americana da noz-pecã, já que o município comporta as duas únicas indústrias de beneficiamento da América do Sul e possui um viveiro – local onde é produzida a muda de nogueira. Edson pesquisou durante dez anos as variedades de nogueira-pecã que se adaptavam melhor ao solo cachoeirense. Das 26 subespécies analisadas na Linck Agroindustrial Ltda., escolheu sete para multiplicar como seleções genéticas de variedades ou subespécies. A Divinut produz mudas – o maior viveiro do mundo de nogueira-pecã com raiz embalada. “A muda convencional sofre muito ao sair do viveiro e ir para o campo. Na embalagem, ela não sofre nada. Trabalhamos com a planta Carya (gênero) illinoensis (espécie) – Junglandaceae (família)”. A muda sai pronta do vi-


09 midoras finais de Carlos Daniel na aquisição de substratos e de plantas. Quando necessita de alguma assessoria conta com a ajuda dele. “As orquídeas precisam de apoio. A casca de noz resolve perfeitamente. Eu acredito que vou usá-la sempre”. Mary admite que sempre gostou de plantas e deixa uma dica para quem deseja cultivar orquídeas: “Além dos substratos é preciso ter paciência, gostar. Todos os dias dar uma olhadinha para ver se está tudo em ordem”.

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empresa traz de lá duas toneladas. O preço varia de acordo com o volume comprado – o padrão é de R$ 1,00 o quilo até R$ 0,20 a 0,30 o quilo se for um caminhão. A maior parte ele utiliza e o restante comercializa. O custo da revenda, hoje, está em torno de R$ 2,50 o quilo. As cascas chegam aos compradores já limpas e prontas para serem aplicadas como substrato. A aposentada Mary Leipnitz, que coleciona orquídeas e pertence à Associação Cachoeirense de Orquidófilos, é uma das consu-

A transformação em substrato

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A casca de noz possui alta quantidade de tanino – que tem valor comercial usado para curtir couro. Para ser aplicada como substrato nas orquídeas, precisa passar por uma limpeza intensa. Carlos Daniel Schumacher da Rosa desenvolveu um processo que une um aparelho elétrico – em forma de cilindro, com rodas e três peneiras de graduações diferentes; e o trabalho manual (ver fotos). Apesar de o xaxim ser excepcional para a orquídea em termos de nutrientes, não mantém o pH (potencial de hidrogênio). No momento em que começa a se decompor, o pH torna-se mais ácido, isto é, diminui. A acidez causa prejuízo à planta – quando o xaxim inicia a decomposição com intensidade maior, a partir de três a quatro anos. A análise da casca de noz foi feita de acordo com o pH e teve um índice com variações de 5,18 a 5, 23; isto a partir da observação de produções do RS, SC e PR – de regiões diferentes, e não houve modificações maiores. Além desta avaliação foi realizado um teste em termos da variação que o pH poderia ter pela utilização em tempo, e ele se manteve constante no período de três anos: “Isso é fundamental para a planta. O pH ideal para orquídeas – 5,2; que seria a média na casca de noz”, reforça Carlos Daniel. Mas as opções não param por aqui. Existem outros mecanismos que os orquidófilos podem utilizar para o cultivo das orquídeas: fibra de côco, saibro, casca de pinus, adubo orgânico, nó de pinho e, acredite, até isopor. “O isopor é neutro e serve apenas para baixar a densidade do conjunto”, explica Carlos Daniel. Assim como a casca de noz, todos os demais substratos passam por algum tipo de preparação antes de serem aplicados nas orquídeas. Estas alternativas proporcionam benefícios, tanto ecológicos quanto econômicos, e têm apresentado ótimos resultados. Os orquidófilos Clovis e Carlos Daniel se apropriam da chamada complementação ou coquetel. Carlos Daniel não abre mão da casca de noz que possui o nitrogênio, do saibro – rocha granítica em fase de desagregação que contém cálcio, e do carvão vegetal que tem potássio. Já Clovis mescla o saibro com a casca de pinus e o carvão vegetal. No saibro o pH também se mantém constante. Ele está dentro da faixa de tolerância da orquídea. Os substratos são muitos, contudo Carlos Daniel garante: “Pode-se plantar uma orquídea até em um tijolo. E ela enche de flor! É o vegetal mais completo”. As orquídeas são classificadas em três grandes grupos quanto ao habitat: as epífitas se desenvolvem nas árvores, as terrestres na própria terra e as rupículas sobre solo pedregoso. A Cattleya (gênero) intermedia (espécie) é a orquídea símbolo da Associação Cachoeirense de Orquidófilos. Um dado curioso: esta mesma planta, que floresce em setembro, também é motivo de uma luta dos orquidófilos gaúchos para que se torne símbolo do Estado. Segundo Carlos Daniel, a flor símbolo do Rio Grande do Sul é o Brinco-de-Princesa (Fuchsia regia), que floresce na primavera e no verão. “Todos os estados brasileiros têm como símbolo alguma orquídea, exceto o nosso”. Tentativas já foram e estão sendo feitas, mas ainda sem resultados. Outras aplicações: A dissertação de mestrado de Edson Roberto Ortiz, realizada na Ulbra-Canoas (Universidade Luterana do Brasil), teve como tema a queima da casca de noz na geração de energia térmica para a secagem das nozes. Ele já tem os equipamentos, mas não implementou o projeto porque o volume de cascas gerado por sua indústria é todo absorvido para outros fins. “Nós fizemos testes e tem um alto potencial térmico”, afirma.

Pedaços em tamanhos diferentes vindos da indústria

Aparelho elétrico que separa em tamanhos diferentes, retira o pó e seleciona os fragmentos

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As cascas de noz passam por dez lavagens – a cada quatro dias a água é trocada. O processo dura de 30 a 40 dias

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veiro com destino à lavoura – é vendida para o produtor e a empresa compra a produção. A noz-pecã é dividida em três partes: epicarpo (casca madura – externa), mesocarpo (casca marrom/dura – utilizada pelos orquidófilos) e endocarpo (amêndoa – comestível). De uma tonelada de nozes processadas por dia saem cerca de 500 a 600 quilos de casca bruta (subproduto). Seu destino: a Divinut as vende para empresas produtoras de chá e orquidófilos. Cada vez que Carlos Daniel busca cascas de noz na

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O último estágio é a secagem em plataformas expostas ao sol


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Foi um arroio que passou em minha vida

Mas não levou meu coração, como no samba de Paulinho da Viola. Pelo contrário, deixou um rastro de poluição e desrespeito a natureza

RODRIGO NASCIMENTO fora de casa, sempre se fica preocupado”, lembra ao olhar para o teto, como se o sinal de alerta fosse visível no céu, quando as nuvens se preparam para despejar a chuva, tão necessária à agricultura e aos próprios rios e arroios. No caso do Arroio das Pedras, um problema. Douglas conta que, no meio da noite, de vez em quando, tem que levantar. “Os cachorros às vezes latem muito”, completa e classifica os dois animais de estimação como arautos da enchente. Enchente que, incontáveis vezes, subiu até a casa, distante 30 metros da margem da sanga. Sanga ou arroio? De acordo com os técnicos do setor de geoprocessamento da prefeitura, arroio. Sanga é um termo que vem da palavra sangra, a água sangra, nasce. Por isso, a cultura popular chama de sanga os arroios. A denominação é usada para classificar arroios com menor volume de água, ou que são temporários, dão vazão à água em algumas épocas do ano. Santa Cruz do Sul tem duas sangas, mas nenhuma passa pelo Arroio Grande. Uma está localizada no

RODRIGO NASCIMENTO

Eli Douglas Correa Tavares, Douglas para os amigos. Ele não admite, mas prefere ser chamado de Douglas. O jovem consultor de vendas, formado em Técnico em Segurança do Trabalho, há 23 anos, ou melhor, desde que nasceu, convive com um inquilino ora incômodo, ora engraçado, ora preocupante: um arroio que corta o terreno da família, moradora do bairro Arroio Grande, em Santa Cruz do Sul. Apesar do bairro se chamar Arroio Grande, não existe na cidade nenhum arroio com esse nome. O que banha a propriedade da família Tavares chama-se Arroio das Pedras. Deve ser uma analogia ao número de pedras que tem em seu leito, que passa por dois bairros da cidade e ainda pelo distrito industrial, e desemboca no Rio Pardinho. Na rotina de Douglas a convivência com o arroio, nos últimos dois anos, não tem sido tão próxima – 60 quilômetros o separam do arroio durante a semana. Porque ele trabalha em Lajeado de segunda à quinta-feira. Porém, a inquietação é constante. “Se chove muito e a gente está

Pelo arroio passa de tudo, inclusive água imprópria para o consumo

bairro Schultz, que leva o mesmo nome, a outra passa pelo São João, batizada também com o nome do bairro. O Arroio das Pedras, companheiro da família Tavares, carrega de tudo. Até mesmo fantasias de carnaval foram encontradas pela reportagem ao longo do seu trajeto. Para Douglas, isto é, sobretudo, um desrespeito com os próprios seres humanos. Indignado com o comportamento dos vizinhos, diz que “não custa nada juntar o lixo e esperar pelo lixeiro, que passa na frente de casa. Mas eles preferem colocar nos fundos”, lamenta.

Mau cheiro Mesmo longe, a mais de 30 metros de distância da água, a presença de um “penetra” na casa de Douglas é constante: o mau cheiro, que, em dias de calor, como os esperados para os próximos meses, tende a aumentar e instalar-se dentro da casa. Dormir de janelas abertas, nem pensar. Em primeiro lugar,

por causa da possibilidade de furto, cada vez mais presente no cotidiano. Em segundo lugar, o mau cheiro e os mosquitos, que não dão trégua. Durante a reportagem, fomos picados mais que uma vez, ainda de dia, com temperatura média de 28 graus, normal na primavera. Muito menos do que os 35ºC – 38ºC, comuns no verão, que logo estará aí. Douglas conta que “quando está para chover”, o odor é sentido com maior intensidade, o que aumenta o alerta de possível enchente, já congênito em sua vida. Além do mau cheiro e dos mosquitos, visitas nada bem-vindas freqüentam o clã familiar dos Tavares. Moscas, baratas e ratos – de todos os tamanhos. Razão pela qual a família e os vizinhos passaram a criar gatos. “Todo mundo tem gato aqui”, brinca ele. Diz que a Misse e a Minie, mãe e filha, são sustentadas pelo Arroio das Pedras. A Misse, há poucos dias, contribuiu para o aumento demográfico da população felina: ganhou cinco gatinhos que vêm com a missão de reforçar o contra-ataque à proliferação de roedores promovida pelo depósito de lixo no leito do arroio, que, segundo ele, também passa por problemas de assoreamento. “Há dez anos, a margem era mais estreita. Conforme o tempo passa, perdemos espaço no terreno”, reclama. Douglas diz que não lembra se alguma vez alguém ficou doente por causa da água. “É uma preocupação muito grande quando existe a possibilidade da água subir”, conta ao lembrar das vezes em que tiveram que levantar os móveis e os eletrodomésticos para não perder os preciosos bens conquistados em conjunto pela família, que é formada pelo pai, mãe, irmã e avó materna. Apesar do incômodo, dos insetos e do mau cheiro, a família é feliz. Sonha com o dia em que o arroio vai estar limpo ou, pelo menos, que a população tenha consciência de que muito mais que jogar lixo no leito do córrego, o fato de não preservar os bens naturais, representa um problema de toda a sociedade. A conscientização ecológica faz parte da família de Douglas. O pai, também chamado de Eli, mestre-de-obras, profissão que muito orgulha ao filho, diz que


desde sempre cultivaram a valorização do meio ambiente como um ensinamento aos filhos. “É em casa que começa a educação”, dá de ombros e lembra como se fosse inútil sua sabedoria. Mal ele sabe que, mesmo modesto, tanto em bens como em teoria, Eli é rico porque, sobretudo, coloca as questões ambientais e a preservação do planeta como uma constante na casa da família. Um pouco se deve à rotina mal cheirosa do Arroio das Pedras, sócio da família, por cortar uma parte do terreno, que se torna improdutivo na outra margem. Douglas fala que se existisse uma estrutura, uma ponte, poderiam investir em um modesto salão de festas para os fins de semana. “Mas não adianta colocar uma ponte. A primeira vez que a água subir, ela irá junto”. A água, segundo os Tavares, quando vem, leva tudo.

E a água levou... Em meio a tantos desencantos e problemas ocasionados pelo Arroio das Pedras, que passa na vida de Douglas e sua família como um convidado inconveniente, o jovem adulto lembra com os olhos brilhantes do tempo de infância - quando a água do arroio era menos poluída e as preocupações de Douglas eram em planejar brincadeiras.

Brincadeiras com seu primo Tiago, porque a ocupação dos dois meninos ainda era brincar e ser feliz. Não que hoje não seja, mas, à medida que se cresce, a vida se transforma e, na lembrança, as travessuras de criança e eventos engraçados vividos nesta fase vêm como momentos felizes que a água levou. A personagem conta que no tempo de criança, isso há mais de 12 anos, a família criava animais para o consumo, não só para auxiliar com o arroio e seus hóspedes, como cães e gatos fazem hoje. Algumas galinhas e um porquinho faziam parte da vida dos Tavares. Um dia, choveu demais e não teve jeito: a água subiu tanto que levou o porco. Na luta contra a correnteza, o animal nadou, o que foi fundamental para que a família resgatasse o membro-atleta ainda com vida. Depois do susto, o riso ainda ecoa dentro da casa. Especialmente a risada de Douglas, que bate com as mãos no colo ao lembrar do episódio, em que o porco foi resgatado alguns metros abaixo da sua casa. Hoje os Tavares não criam mais animais para o consumo. Mesmo porque a legislação municipal não permite que no meio urbano sejam criados animais para o abate. A família dos Eli (pai e filho) agora cria sonhos. Sonhos de um mundo mais consciente da importância da água para os seres

RODRIGO NASCIMENTO

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No nível normal os moradores sofrem com o mau cheiro, quando chove o problema é o alagamento

vivos. Sonho de poder ver o Arroio das Pedras limpo, com cheiro de natureza, com a água limpa, como é na nascente. Um sonho compartilhado pela Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan). Conforme o gerente da unidade de Santa Cruz do Sul, Paulo Stein, o tratamento dado ao esgoto, maior problema dos arroios em Santa Cruz do Sul está sendo planejado pela companhia. Para isso a Corsan dispõe do apoio do Comitê Pardo – um grupo de pessoas formado por cidadãos comuns, representantes da sociedade civil e pessoas ligadas

ao governo. O grupo tem o papel de administrar os problemas das bacias hidrográficas, formadas pelo conjunto de rios, açudes e arroios de nossa região. Eles também tomam decisões com relação aos problemas e projetos para a preservação e a manutenção das águas. Enquanto o sonho não vira realidade, a família de Douglas segue na cadência da água turva do Arroio das Pedras, na esperança de um dia vê-la azul, assim como diz o samba da Portela, cujo nome empresta o título a esta reportagem, guardadas as devidas proporções: rio-arroio.

Agora é a vez do esgoto “O esgoto sempre foi deixado em segundo plano”, desabafa o atual gerente da Corsan em Santa Cruz, Paulo Stein. Relata que isso acontece desde a instalação da companhia, em 1966. Hoje a Corsan trata 15% do esgoto cloacal – quem vêm da casa das pessoas. Estes detritos não tratados são despejados, em sua maioria, direto nos arroios e sangas do município. Por isso a cidade convive com o mau cheiro e a proliferação de insetos e roedores nas proximidades dos leitos da bacia hidrográfica que banha as terras de Santa Cruz. Mesmo sem nenhuma nascente, existem nove arroios na cidade. Nomeados pela tradição, ou seja, as pessoas da localidade onde o arroio passa é que os batiza. Além do Arroio das Pedras, a cidade tem o Arroio da Gruta, Jucuri, Preto, Lajeado, do Moinho, Leves Pedroso, Manuelito e Camaquã. Nove arroios, mais duas sangas, a São João e a Schultz. Toda essa malha aqüífera vai ao encontro do Rio Pardinho, principal manancial da região. As águas do rio são armazenadas no Lago Dourado, uma espécie de piscina artificial construída pela Corsan no fim da década de 1990. Graças a este reservatório, que a capacidade de abastecimento dá conta dos mais de 80 mil habitantes de Santa Cruz, sem que haja cortes, em caso de seca. O lago consegue resistir a uma estiagem de seis meses. Para o esgoto, a estação de tratamento já tem capacidade, sem que sejam ampliadas as instalações, de tratar o volume produzido por uma população de 70 mil pessoas. A meta do Comitê Pardo e da Corsan é que até o final de 2008, o número de tratamento de esgoto dobre, e atenda toda a população do centro da cidade. Para isso serão investidos, a partir ano que vem mais de R$ 8,5 milhões de reais para a continuidade das obras de canalização e tratamento dos esgotos. Enquanto as obras “correm na direção oposta”, a aposta da Corsan, assim como da família Tavares, é na conscientização da população. Aquelas pequenas dicas: poupar água na limpeza da casa, do carro, não desperdiçar água em banhos demorados, e, no caso dos arroios, não jogar mais lixo no leito, ajudam a não aumentar o problema do esgoto, e, em conseqüência, dos arroios de Santa Cruz do Sul.


O aquecimento global está prestes a colocar as Ilhas do pacífico, famosas por suas belas praias de águas cristalinas, em extinção

O paraíso era aqui DANIELE HORTA

Como evitar que isso aconteça Atitudes simples podem ajudar a salvar os paraísos tropicais: Economize energia. Troque lâmpadas incandescentes por fluorescentes, apague luzes desnecessárias, desligue aparelhos domésticos quando não estiverem em uso e compre eletrodomésticos com nível A em eficiência energética. Deixe o carro na garagem. Utilize o transporte coletivo e a bicicleta, quando possível. Dê preferência a combustíveis como o álcool e o biodiesel. Faça revisões periódicas no seu veículo para reduzir as emissões de poluentes. Evite o desperdício de água. Informe-se sobre as habitações ambientalmente corretas, que aproveitam a água da chuva, usam energia do sol para iluminação e aquecimento, e têm climatização natural.

que foram transferidos para outras localidades. Assim como eles, os habitantes de outras milhares de ilhas estão prestes a ter que deixar a região. O problema não é apenas a imersão por completo da ilha. Com o contínuo aumento dos níveis dos oceanos, quando a maré aumenta, as águas invadem as terras, e o sal trazido mata as produções de alimentos e a vegetação nativa. Nestas condições, o empobrecimento da população é inevitável, e ao não ter como produzir, permanecer nas localidades se torna impossível.

Em sites de relacionamento, como o Orkut, já começaram a aparecer brincadeiras sádicas relacionadas à situação. Nas comunidades sobre o turismo na Polinésia Francesa, não é difícil encontrar o comentário “se quiser ir, vai logo, porque daqui a pouco não vai mais existir”. A brincadeira pode até ser inocente, mas as causas não são. Já é comprovada a culpa do homem pelo aquecimento global, o que é um tiro no próprio pé, pois são os mesmos que sofrem as conseqüências. Porém, além do homem, flora e fauna também sentem os efeitos das mudanças. Novas espécies entram para a lista de extinção a cada ano e os gastos com a preservação e o resgate delas em zonas ameaçadas gera gastos milionários. Enquanto isso, milhares de turistas continuam a visitar os chamados “paraísos” do pacífico. A população local continua seus afazeres diários e, muitas delas, pouco sabem sobre as mudanças climáticas. Nas pequenas ilhas, de difícil acesso, pouca informação consegue alcançá-los, eles apenas sentem as mudanças, sem conhecer as causas.

Informe-se e procure entender as causas das mudanças climáticas e suas conseqüências. Pressione empresas e governos a substituírem as energias sujas, perigosas e ultrapassadas (combustíveis fósseis, nuclear, grandes hidrelétricas) pelas energias positivas ou alternativas (solar, eólica, pequenas hidrelétricas).

Com o progressivo aumento da temperatura do planeta, paraisos, como as ilhas do pacífico, podem ser submersos em poucos anos

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Última chance

Ajude a recuperar o verde de sua cidade. Plante árvores no seu quintal, na sua propriedade rural e até mesmo em áreas públicas. Apóie ações contra a destruição de nossas florestas. Exija da sua prefeitura sistemas eficientes de drenagem urbana, coleta e tratamento de esgotos.

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mente nenhum lugar nos proverá o que temos aqui e, em pouco tempo, também estaremos extintos. Penso que tenho sorte por ser uma mulher idosa, pois provavelmente não estarei mais neste mundo quando tivermos que deixar nossa ilha.” O planeta está mais quente. Segundo relatório divulgado pelo Painel Inter-governamental de Mudanças Climáticas, o IPCC, sua temperatura subiu 0,7°C no último século, e a tendência é que se eleve cada vez mais e mais rápido. Geleiras estão descongelando em um ritmo jamais imaginado, jogando mais água nos oceanos. Enchentes, secas e furacões começam a atingir lugares antes livres destas forças da natureza. A causa de tudo isso é o aquecimento global e o diagnóstico é que, sem medidas drásticas na contenção da emissão de poluentes, as temperaturas no próximo século aumentarão entre 1,4°C e 5,8°C. Uma entre as milhares de conseqüências trazidas pelo fenômeno é o desaparecimento de ilhas do Oceano Pacífico. Não, essa não é mais apenas uma previsão pessimista. A remoção de habitantes começou já no ano de 2002. Os primeiros a necessitarem de resgate foram habitantes de ilhas em Papua Nova-Guiné,

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Terras, animais, plantas e seres humanos. Todos sofrem as conseqüências das mudanças climáticas. Os habitantes das ilhas e arquipélagos do pacífico começam a se deparar com a triste realidade de em breve ter de deixar seus lares. Mimau Tom, 63 anos, esteve em Santa Cruz do Sul no último mês de agosto. Ela coordena um grupo de dançarinos das Ilhas Cook, país onde nasceu e mora até hoje. Ela nos fala sobre o sentimento em relação ao que em breve ocorrerá caso não haja uma rápida tomada de atitude. “Não consigo imaginar a vida longe de nossa pequena ilha. Nasci e passei toda minha vida em Aitutaki. Já conheci muitos países divulgando nossa cultura, porém jamais encontrei um lugar como onde moro. Aqui temos nosso paraíso particular, vivemos todos em harmonia, não temos violência nem doenças graves. Somos um povo amistoso e, como polinésios, temos uma cultura única que preservamos com muito orgulho. Prefiro não pensar que em breve este lugar não mais existirá, pois neste dia, além de lugares paradisíacos, será perdida também uma cultura, uma etnia, crenças e uma forma de viver. Não sei o que vai acontecer com o meu povo, mas certa-

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