Unicom Separações

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JORNAL EXPERIMENTAL DO CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA UNISC - SANTA CRUZ DO SUL VOLUME 22 nº 1 MAIO/2014

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~ Separacoes


Editorial

JorNaL UNICoM 02

Ele nasceu! Três meses, dez encontros. Um por semana. Os primeiros dias foram difíceis, como os começos costumam ser. No dia 19 de fevereiro de 2014, os 17 acadêmicos, mais o professor, começaram a gestar uma nova criança. Uma nova edição do Unicom. Como em qualquer gravidez, mesmo nas planejadas, milhares de perguntas, incertezas e inseguranças são geradas ao mesmo tempo. E então, aparecem o nervosismo, o frio na barriga, o medo, os enjoos e a insônia. Logo na segunda semana, o Unicom já tinha nome: Separações. E já começa a incomodar, também, no bom sentido. Nas semanas seguintes, vieram os desejos por pautas diferentes, que não eram oferecidas no mercado, entrevistados de todos os tipos, misturados, separados, aqueles que ficam escondidos, que ninguém vê, ninguém ouve. O primeiro filho da turma de Produção em Mídia Impressa 2014/1, veio com muitas histórias para contar. É então, que a tão esperada hora chega. O Unicom Separações, que há dias era apenas um embrião, na mente de cada pai e mãe, nasceu. E esses pais que falaram tanto em separação, hoje cortam o cordão umbilical. Com votos de que ele seja aceito e querido por todos e, se isso não for possível que, pelo menos em uma pessoa, possa despertar o sentimento de carinho e a profundidade do assunto que traz no nome. Afinal, é esse um dos propósitos do jornalismo: provocar sentimentos, sejam quais forem. Boa leitura!

#nãomeseparo Durante o período de produção do unicom Separações, a equipe divulgou o tema através de cartazes. Um, em especial, ficou a disposição dos alunos no Centro de Convivência dos blocos 12 e 13 (CCzinho) para estimular a interatividade. através da hastag #nãomeseparo, os estudantes foram convidados a escrever do que não se separam. Quer saber quais foram as respostas? Confere aí!

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul av. Independência, 2293 - bairro universitário Santa Cruz do Sul - Cep 96815-900

Curso de Comunicação Social - Jornalismo bloco 15 Sala 1506 telefone: (51) 3717-7383 Coordenador do Curso: Hélio etges

Impressão grafocem

blog: blogdounicom.blogspot.com fanpage: facebook.com/unicom2014

Tiragem 500 exemplares Capa Jéssica bagatini

este Jornal foi produzido na disciplina de produção em mídia Impressa, ministrada pelo professor Demétrio de azeredo Soster. Colaboração dos alunos da disciplina de Jornalismo Impresso II e demais acadêmicos do Curso de Comunicação Social, que escreveram textos opinativos.

Contracapa Jéssica bagatini

Volume 22 - n° 1 - Maio/2014 DISTrIbUIçÃo graTUITa


Expediente ana Cláudia Müller

bianca Cardoso Repórter

Eduarda Pavanatto editora

Luísa ziemann

Carolina Schmidt Repórter

fábio felício

Débora Paz

andressa bandeira Repórter e produtora

Demétrio Soster

Repórter

professor e editor-chefe

Repórter e produtor

Repórter e subeditora

Isadora Trilha

Letícia Wacholz

Luiza adorna

Maria regina Eichenberg

Martina Wrasse Scherer

Vania Soares

Viviane fetzer

Repórter e revisora

Repórter e revisora

Mônica Leal Repórter

Repórter e revisor

rui borgmann

Repórter e produtora

Repórter e editora de fotografia

Repórter

Diagramadora

Repórter

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Repórter e editora de online


Tinha uma pedra no caminho

V

erão de 2013, noites perfeitas para sair e festejar. Em uma casa grande, com 11 cômodos, verde-oliva e branco, no quarto com janelas de frente para a rua, Jessica passa blush, rímel e delineador. Tira o vestido do armário e o estende na cama. Passa batom vermelho, delicadamente, em seus lábios, os rumos guiados pelas tira os bobes do cabelo, passa drogas levam os usuários creme hidratante no corpo, ao desgaste e à total coloca seu melhor e preferido separação da dignidade perfume, veste o vestido de cetim e do convívio social rosa bebê e sobe num chamativo scarpin. “Estou pronta”, pensa. Loira, olhos claros, bonita. Não fÁbIo fELÍCIo precisaria de tanta produção RepoRtagem para chamar atenção, mas a moça é vaidosa e quer sair para arrasar. Jessica tira o carro da garagem e, aos gritos, se despede dos pais. Mal sabia ela que, naquela noite, estava se despedindo, aos poucos, dessa rotina, daquela casa, daquela vida. Essa não seria uma noite qualquer. Seria a noite que mudaria sua vida. A festa, em um famoso estabelecimento, é regada a drogas. Jessica era careta - como os usuários chamam quem não usa drogas -, mas a insistência dos amigos a faz ceder e se entregar de corpo

e alma em busca da felicidade sintética. Juca, um dos amigos, espalha um pozinho na mesa. Com o cartão de crédito, ele faz uma carreira de cocaína e diz: “Vai Jé... Essa é a primeira de muitas”. O medo toma conta dela. O coração bate forte. Vem a mente a imagem do pai, da mãe... Enfim, um emaranhado de coisas pairam sobre seus pensamentos. Mas, ela olha em volta e percebe que todos torcem pelo seu primeiro teco. A loira pega o canudo, posiciona no nariz, debruçase em frente ao filete de pó, fecha os olhos e puxa... Por um minuto ela fica sem reação. O mundo passa em câmera lenta. Tudo fica estranho. Tudo fica azul, rosa, laranja, cinza, bege. Aos poucos se vê o verde dos olhos crescendo, as pupilas dilatando, o corpo todo arrepiado. Nesse momento, um sorriso surge nos lábios e como um mantra, Jessica repete, incansavelmente, o que a pouco Juca lhe falou: “Essa foi a primeira de muitas!”. Sem dúvidas foi. Pois, a bela só quer saber do pó e já não consegue controlar seus impulsos e corre, cada vez mais, em busca dessa tal felicidade. Como pode um pozinho fazer tanta diferença assim? Com David, um advogado de 29 anos foi a mesma coisa. Foi tudo muito

rápido na vida dele. Aos 16 anos, ingressou na universidade. Com 21, se formou e ganhou um carro. Passou na prova da OAB em seguida com 22 anos e, de cara, já estava em seu próprio escritório. Entre uma causa e outra, David dedicava um tempinho para o pó. O escritório cresce como uma árvore que busca seu lugar ao sol. A conta bancária fica recheada de números e David faz a troca: de um bolso tira as notas de R$ 100 e no outro enche de pirilimpimpim. Não sabendo administrar seu tempo, o advogado de sucesso começa a dedicar mais horas aos tecos do que aos seus processos. A clientela começa a incomodar. Toda escolha tem seu preço e agora o cenário é outro. Nada dá certo e a jovem árvore que fez de tudo para aparecer e buscar os melhores raios de sol, hoje quer esconder-se à sombra dos gigantes. Foi essa a solução encontrada pelo pai de David. Internar o filho em uma clínica na capital gaúcha. Depois de dois anos se readaptando a vida sem drogas, David lamenta suas perdas: “Simplesmente joguei o queijo fora. Vou ver o que consigo fazer só com a faca. Não vai ser fácil”. Uma história com um final nem tão feliz, tampouco


FábIo FeLÍCIo

dramático. Bem que poderia ser assim com Jessica. Mas, seu tormento estava apenas começando. Na medida em que o tempo passa, Jessica vai, aos poucos, envilecendo, se degradando. Esse é o custo para se manter feliz. Assim, o quarto some e boa parte da sala também. Eletrodomésticos somem. A bicicleta some. A paciência e compaixão dos pais também somem e ela acaba sendo expulsa de casa. Na rua, ela exclui a palavra vergonha e parte para o plano B: roubar e se prostituir. Só assim as pedrinhas de crack estariam em suas mãos. Mas, não demora muito para que ela apareça grávida. Mesmo assim, ainda desperta interesse de muitos que pagam 10 pilas por minutos de prazer. Entre tantas faces que desprezam a putrefação de um ser vivo, surge uma mão caridosa. Jessica ganha uma nova oportunidade de vida e é amparada por uma ONG. Tudo que é bom dura pouco. A loira não consegue se adaptar a vida regrada do recinto. Foge e, na rua, reencontra a pedra no caminho. Com seis meses de gestação, já não parece mais aquela moça de arrasar. Magra, pele mal cuidada, cabelos picotados que não se consegue distinguir a cor, unhas sujas, pés imundos, roupas encardidas. A

bela agora é fera. Acabara de se transformar em um adorno urbano. Saudades mil da moça de arrasar! Em meio a uma chuva torrencial, Jessica ganha mais uma chance e, já com sete meses e meio de gestação, é amparada por uma entidade ligada a uma igreja. Dessa vez, ela decide mudar o rumo que tomou, mas, um branco permanente a incomoda muito e não há cores para preencher essa imensidão clara. Na verdade, essa é a tortura da abstinência, a dor da separação de algo que quer muito, mesmo que faça mal. Jessica segue firme e consegue vencer essa barreira. Dias antes do parto, ela decide deixar o filho para adoção. Depois, já no hospital, após dar à luz, ao ver o rosto da criança, percebe que mais uma vez fez uma escolha infeliz. Porém, essa era muito mais sofrida, dolorosa, triste, funesta. E o branco intenso se propaga, novamente, no espaço. E, mais uma vez, não há cores para preencher. Riba, apelido de um andarilho, também lamenta a separação dos filhos. Ele tinha emprego e casa. Foi apresentado ao crack por um amigo. Experimentou pensando que seria homem suficiente para controlar seus impulsos. A pedra acabou

quebrando a hombridade do senhor de 42 anos, mas com aparência de um ancião de cento e poucos. Riba não sabe muito bem como tudo aconteceu. Quando percebeu, estava catando coisas no lixo e trocando por crack. “Não roubo nada. Já cortei até grama pra ganhar dinheiro pra comprar pedra. Sou um pepitero comportado!”, diz. Jessica, que não foi nada comportada, tenta curar uma ferida. Para isso, ela reza dia e noite. Pede a Deus que possa voltar ao passado para reverter todas as escolhas ruins que fez. Quando chega a hora da despedida, ela já não consegue respirar de tanto soluçar. Dá tapas nas pernas, puxa os cabelos, pula, sapateia. Isso tudo para tentar reverter à situação. O repúdio traduzido em gestos. Tudo em vão. Os gritos chamam a atenção no local. A cena é chocante, de cortar o coração. O bebê sente o clima, o drama, a separação e também chora desesperado. Mãe e filho são separados para sempre. Jogada no corredor, a jovem mãe não acredita que mais uma vez perdeu para o destino. Cabisbaixa e com o rosto marcado pelo inchaço do arrependimento, Jessica, sai sem rumo. O rosto e o choro do filho não saem da cabeça. Na hora do rush, em uma movimentada

esquina, ela para. Um senhor se aproxima. “Posso ajudar moça?”. Com um sorriso tímido Jessica olha fixamente para o homem e pergunta: “Tem 10 pilas aí?”. Prontamente ele tira a carteira do bolso e... vupt. Jessica sai correndo com a carteira do homem. Tira o dinheiro e joga a carteira fora. São R$ 200 de desgosto. Pois na falta daquele que completaria sua vida, ela volta a construir seu muro de pedras. Entre gargalhadas, Jessica é vista pela última vez compartilhando a felicidade com seus amigos em uma praça da cidade. Ali ela festeja seu retorno. Bem vinda vida sem mágoas, sem preocupações, sem tédio. O branco acabará de ser preenchido com várias cores. Laranja falso, verde falso, rosa falso, amarelo falso. Tudo falso, a droga trouxe de volta a falsidade de sentimento a Jessica. Em uma noite quente de verão, o branco intenso retorna. Mas agora ele vai sendo tomado por um fosco intrigante, uma cor inexplicável, arrepiante. Era a morte tomando conta do cenário. Jessica vai sem entender o que fez da vida. Deixa a certeza de que não se volta ao passado, mas sim, aprendese com ele. As escolhas de hoje serão as colheitas do amanhã.


No palco com a solidão JorNaL UNICoM 06

T

História de duplas sertanejas que fazem sucesso e terminam repentinamente VIVIaNE fETzEr RepoRtagem

anto no pagode, quanto no rock ou no pop, além do vocalista, existem mais pessoas envolvidas e por isso se tem uma banda. Quando se fala em sertanejo, a primeira coisa que vem à cabeça são as duplas. Ao separarem-se, as bandas dão entrevistas, falam sobre os motivos e, depois de um tempo, anunciam a volta. Com as duplas sertanejas não é diferente: o impacto nos fãs e no mundo da música é ainda maior, porque no senso comum são elas as preferidas. Depois que passam pela separação é complicado fazer a escolha de parar ou continuar. Na história das duplas que você vai acompanhar, as separações foram repentinas e os companheiros de palco escolheram seguir carreira solo. O sertanejo tem uma diferença em relação aos demais segmentos musicais. Ele não precisa estar em evidência na televisão para vender discos, ao contrário de outras ondas que vem e vão, como a do pagode ou da música infantil. Isso porque representa um pedaço do Brasil que tem seus canais próprios de comunicação, independentemente de estar ou não em exposição na mídia. É o mundo das feiras de gado, dos rodeios, dos romances e das festas agrícolas. A música sertaneja constitui o veículo de afirmação desse pedaço do Brasil e ilustra também como ele se modernizou. As duplas sertanejas, Leandro e Leonardo, que conquistou fãs pelo Brasil inteiro na década de 90, e Júnior e Marcel, que fazia sucesso no interior do Rio Grande do Sul desde 2007, passaram por separações semelhantes e a convivência com a solidão no palco se tornou habitual. Por mais difícil que seja olhar para o lado e não ter quem faça a segunda voz enquanto se toma água, não ter quem entretenha o público enquanto recupera o fôlego, não ter mais com quem dividir os erros e acertos do show, seguindo a carreira solo eles continuam recebendo o

carinho dos fãs, o apoio da família e tentam, com isso, superar a perda. Marcel, em um dos últimos shows da dupla aproveitou para agradecer a parceria do irmão. Pediu, ao público, que valorizassem a família e os irmãos, porque isso é a única coisa que se tem na vida. E Leonardo em seus shows durante os dois meses em que Leandro estava no hospital, passava um vídeo em que Leandro falava aos fãs para que cuidassem dele, para que ele não fizesse besteira. E no final, Leonardo sempre afirmava que em breve voltariam a cantar juntos. Mal sabiam eles que essas frases teriam um efeito muito grande sobre o que viria a acontecer. Passando por tantos obstáculos no início da carreira, nada abalava Leandro e Leonardo. Na década de 90 conquistaram milhares de fãs com a música Entre tapas e beijos, que estava entre as primeiras nas paradas de sucesso. Contudo, não podiam imaginar que uma mancha no pulmão direito de Leandro fosse acabar com a carreira e com todos os planos. O álbum Um Sonhador estava pronto quando em 1998 descobriram que Leandro tinha um tipo de câncer maligno, o raríssimo tumor de Askin. Tudo deixou de fazer sentido: os dois conversaram enquanto Leandro estava no hospital para decidirem o que fariam. Da descoberta da doença até sua morte se passaram dois meses. Todos os métodos possíveis foram usados para prolongar o tempo de vida de Leandro, mas não foram suficientes. Na madrugada do dia 23 de junho de 1998 ele morreu com falência múltipla dos órgãos. Leonardo fazia um show na Bahia naquela noite e repetiu a mensagem de que os dois voltariam a cantar juntos. A notícia da morte do irmão só foi dada quando ele se dirigia para a cidade do próximo show. Ele desabou em lágrimas e mergulhou no silêncio.

No Rio Grande do Sul o último carnaval de Júnior e Marcel realmente aconteceu em 2012. Estavam se aventurando com músicas em inglês e um álbum estava sendo produzido nas duas línguas - português e inglês - que estaria pronto depois do carnaval daquele ano para que Júnior pudesse viajar para Dublin, capital da Irlanda, mostrar o trabalho. Antes disso, as noites de festa em Santo Ângelo os esperavam. Chegaram à cidade depois de 4 horas de viagem e foram visitar os amigos como de costume. Mais tarde se prepararam para o show. Ainda no camarim conversaram sobre Dublin, o que iriam fazer de


se a ela recebeu uma descarga elétrica e caiu. Marcel viu toda a cena e pensou que Júnior só estava desmaiado. A reação de Marcel foi largar tudo e correr para ajudar o irmão. Enquanto o socorro não chegava foram feitas massagens cardíacas e respiração boca-a-boca, para tentar reanimar Júnior. Ele foi encaminhado para o hospital da cidade e Marcel acompanhou todos os procedimentos. Médicos e enfermeiros fizeram tudo o que podiam para salvar a vida de Júnior, mas prestando atenção em tudo o que acontecia foi nos olhares da equipe que Marcel entendeu e saiu da sala paralisado. A respiração estavapesadaeaslágrimasmolhavam

a camisa. Foi quando viu o pai e, sem que nenhuma palavra fosse dita, se entenderam em um único abraço. Júnior havia perdido a vida fazendo o que mais gostava na madrugada do dia 19 de fevereiro de 2012, aos 28 anos. Duas perdas repentinas que causaram sofrimento para as famílias e mais ainda para os parceiros de palco que ficaram. Leonardo voltou a cantar em carreira solo com o apoio da família e também dos fãs. Marcel, cerca de três meses depois do acontecimento, foi convidado para fazer a abertura de um evento de dança em Santa Cruz do Sul e homenagear Júnior. A música escolhida retratava a

falta e a vontade de fazer o irmão voltar: “Eu quero acreditar que vou te encontrar em breve/ tá difícil, complicado, mas eu sei que a vida segue/ ‘tá’ tudo certo, só falta você/a tua falta me fez planejar, alguma forma de me aproximar/ e só estava pensando em você, queria tanto te encontrar pra te dizer/ que eu preciso de você. Queria tanto ir poder te ver/ não tem como disfarçar, quando a saudade aperta/ às vezes eu pareço escutar tua voz, não tem dia que eu não pense em nós”. Só depois de dois anos Marcel volta aos palcos com um trabalho diferente, mas que retrata nas letras a solidão.

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diferente no show, o que iriam repetir. Júnior disse para Marcel que não queria mais aquilo, que estava cansado e só conseguia pensar no novo projeto. Marcel levantou o ânimo do irmão e os dois subiram ao palco. Animavam carnavais com a banda do pai, Banda Ghermania, desde que começaram no mundo da música. Depois de aproximadamente 30 minutos de show, o inesperado aconteceu. Marcel percebeu que o som de seu microfone estava muito alto, prejudicando a banda e sua voz. Júnior foi tentar solucionar o problema. Deu um beijo no pai que estava ao lado do palco, o que não era habitual, e foi para a mesa de som. Ao encostar-

DIVuLgaÇÃo/FRaNCISCo FRaNtz


aNDReSSa baNDeIRa

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Memórias de uma época que não volta mais

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Seu Ilgo cresceu, mas ainda guarda consigo as melhores lembranças da infância aNDrESSa baNDEIra RepoRtagem

esde a infância, a vida de Ilgo Etges é cheia de separações. Pequenas mudanças que foram construindo sua história ao longo de seus 56 anos. A rotina no campo com a família, o Colégio Agrícola, o emprego, o casamento. Todas transformações. Todas separações que levaram Ilgo até os dias de hoje. Até sua casa de madeira em Arroio do Tigre, onde vive com a sogra e a esposa. O dia começava cedo. Às 5 horas da manhã Ilgo e a família já estavam de pé. As mulheres da casa tiravam o leite das vacas enquanto os rapazes iam cuidar dos porcos, que eram muitos, já que contribuíam com a renda familiar. Lá na propriedade de Linha Tigre, a família de Ilgo plantava milho e trigo. Do milho se fazia a mesa, se alimentava os animais. Desde sempre, Ilgo ia para a

lavoura com a família. Naquela época ele não se separava da mãe, que cuidava da plantação, e nem dos irmãos. Iam todos juntos. Primeiro no balaio, que a mãe os punha, ainda bebês. Depois com seis ou oito anos, já maiores, para ajudar na lida. Na infância, Ilgo não se separava de sua rotina familiar. Era da casa para lavoura e da lavoura para casa. O trabalho seguia da segunda-feira até o sábado. Nos domingos, a missa era evento sagrado para toda família. Durante a semana, Ilgo comia o pão de milho, feito em casa. No sábado, podia saborear um bom pão de trigo, com os familiares. O primeiro idioma que o garoto aprendeu foi o alemão. Quando chegou ao Colégio Sagrado Coração de Jesus, comandado por freiras, não sabia rezar nem Pai Nosso, nem

Ave Maria em português. Mas, os sabia direitinho em alemão. Ilgo passou seus dias na escola, aprendendo o novo idioma e tudo o que as irmãs franciscanas lhe ensinavam. Foi reprovado no segundo ano, por causa do sotaque germânico, que não colaborava para que falasse corretamente o português. Isso o marcou e, determinado, o garoto resolveu caprichar nos estudos. Separouse das dificuldades e aprendeu o português perfeitamente. A mesa na casa da família Etges era sempre cheia. Farta daquelas comidas caseiras que deixam saudade. Opções não eram o problema, mas decidir entre tantas coisas, sim. Geleias de uva, ameixa, pera e pêssego coloriam a mesa e enchiam a casa de aromas deliciosos. Ao lado delas, chimias de todos os tipos, melado, nata, mel, manteiga, cuca e pão. Tudo feito


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Antes, os dez quilômetros que precisavam ser percorridos para confraternizar com os familiares não eram empecilho algum. Agora, a rotina agitada o separou dessa constante procura. Os aniversários na época de pequeno de Ilgo eram praticamente feriados. As festas duravam até que se acabasse o som da gaita ou cansasse a voz dos cantores. A mesa era cheia de quitutes feitos em casa. Gastar mesmo, só tempo para se preparar as delícias. Ilgo gosta de lembrar que comprado, era só sal, café, fermento e essas pequenas coisas que não era possível produzir nas terras da família. Os divertimentos de criança, aos domingos, eram jogar futebol e passear de carreta. Para que tivessem o turno livre, Ilgo e os irmãos negociavam. Aos sábados à noite cuidavam do forno de secar fumo e aí ganhavam a tarde do outro dia livre para serem crianças. Como Ilgo costuma dizer, sorrindo, não eram crianças arteiras, mas sim, criativas. Certo dia, enquanto trabalhava na lavoura, Ilgo pensou em se tornar padre. Como a ideia lhe viera mais como forma de deixar o trabalho pesado de lado, não foi adiante. Logo em seguida, resolveu fazer concurso para estudar na Escola Agrícola do município de Sertão. Não passou para primeira chamada. Quando já cursava Ciências Contábeis em Sobradinho veio a carta. O aviso era de que Ilgo tinha sido selecionado na segunda chamada. Porém, a carta veio tarde, quase passado um mês do dia em que ele precisaria estar na cidade, pois só havia a Prefeitura como referência para correspondência naquela época. Então surgiu a oportunidade de fazer concurso para a Escola Agrícola de Cachoeirinha. Desta vez Ilgo passou. Ocorre aqui a primeira separação do menino para o jovem. Ilgo passa as semanas no Colégio Agrícola, longe de casa e da família. Durante a manhã, aula. À tarde o trabalho braçal. Os alunos iam cuidar dos porcos, das aves, tirar leite, cuidar da plantação de arroz e do pomar. Ao sair de casa para estudar, o rapaz não se separou de algumas coisas,

como a comida caseira. Levou consigo salame, cuca, pão. Levou também a saudade de casa, que o fazia chorar. Era difícil ficar longe. Ilgo pensou uma ou duas vezes em voltar para sua família. Estava longe de casa no auge da ditatura militar. No auge de muita pressão, em uma época que não se podia falar nada e que o melhor era ficar quieto. Um dos motivos que mantiveram Ilgo firme e forte tem nome, sobrenome e profissão: Ricardo Waindorff, professor de agronomia da Escola Agrícola. Foi ele que deu apoio e incentivo, no começo da separação de Ilgo e da sua casa, que é sempre complicado. O estudante ganhava dinheiro ajudando o professor na casa e com o carro. Com o tempo e esse dinheiro, o grande torcedor do Internacional começou a ir aos jogos do seu time e aí a separação de casa começou a doer um pouquinho menos. As separações também ocorrem depois da Escola Agrícola. Ilgo tinha vinte anos quando se formou em dezembro de 1978. Em maio de 1979 começou a trabalhar na empresa Souza Cruz, como o pai e o avô, e foi quando comprou o antigo Opala de seu professor. Uma promessa que o mestre tinha feito ao aluno anos antes. Quando começou a trabalhar, o jovem não se separou só de sua rotina antiga, mas de sua cidade. Passou por Faxinal do Soturno, Cachoeira do Sul e Camaquã, onde nasceu a primeira filha. Por fim, voltou para Arroio do Tigre, já na área urbana. Agora separado dos afazeres de criança, na lavoura da família e com uma rotina de pai, empregado, marido e adulto. Seu Ilgo não nega que sente saudades do tempo em que era criança. Da sociedade, das pessoas e dos hábitos. Tinhase mais tempo para sentar, conversar e conviver. O pequeno cresceu, separou-se da sua infância, mas não a esqueceu. Tem vivas as lembranças de uma época deliciosa, com pessoas que vivem em seu coração. A casa, as terras e os pais continuam lá para ele sempre lembrar. E essas lembranças, com gosto de infância, Ilgo vai sempre carregar consigo. E não há motivo, nem razão, para se separar delas.

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em casa. Na casa construída por seu Amário, pai de Ilgo, e onde o garoto e seus irmãos cresceram. Das travessuras de pequeno, Ilgo costumava roubar pedaços de cuca, que a mãe deixava esfriando na despensa, e sair correndo de volta para o galpão, para terminar o serviço. Separavam pêssegos e ameixas das árvores e os deixavam secar nas folhas de Brasilit, já que não se tinha outras formas de conservação. E, assim, faziam as sobremesas. Ilgo só não comia mais porque cada membro da família tinha sua porção acertada. Aos fãs de carne, costumava-se carnear porco a cada trinta dias. A rotina do menino que conheceu a luz elétrica com 14 anos, em 1978, era basicamente o trabalho na lavoura. Na segundafeira, pela manhã, eram decididas as tarefas da semana. Nos finais de semana, aconteciam as visitas aos parentes. Visitas que foram muitas na vida de Ilgo. Coisa que não acontece mais.



Cada história é uma história ANTES Aline S. 23 anos, Outubro de 2004: “A nossa história começou através de uma amiga em comum. Ela o convidou para ir a uma festa na minha casa e nós nos conhecemos lá. Os nossos amigos queriam muito que nós namorássemos, mas nenhum de nós dois tinha muito interesse. Depois de algum tempo, quando a gente finalmente decidiu que queria tentar, as bocas não se encontravam, tentamos uma, duas, três vezes. Aí eu desisti! Mas, ele não me deixou ir embora sem antes dar o primeiro beijo...”

como um casal. Mas, depois a relação ficou mais estável e nós tivemos uma filha...”

Gilmar P. 53 anos, 12 de junho de 1985: “Nós nos conhecemos numa boate, começamos a namorar e era tudo uma maravilha. Nove meses depois nós decidimos nos casar. Nos primeiros três anos de casamento nós brigávamos muito, talvez porque nos casamos muito cedo e ainda estávamos nos adaptando a nós mesmos,

Noemi C. 64 anos, 1963: “Foi uma paixão! Quando eu o conheci e vi aqueles olhos azuis, me apaixonei. Eu tinha 15 anos na época, ele era noivo, e ninguém da minha família aprovava. Mas, nós conversávamos e depois que ele deixou a noiva, começamos a namorar. Dez anos depois nos casamos...”

Alexandre C. 34 anos, Meados de 2000: “Foi numa fase difícil da minha vida porque eu tinha me separado de uma antiga namorada e tive a oportunidade de ir a algumas festas em que ela estava. A gente se conheceu, namorou um tempo, noivamos por um ano, e então casamos. Nos primeiros seis anos foi um casamento perfeito. Fazíamos planos, queríamos crescer, evoluir juntos...”

bIaNCa CaRDoSo

N

o início é sempre lindo. E realmente, não há outra forma de começar. É assim mesmo, cheio de cartões, recados, flores, chamegos, cafunés, beijinhos, carinhos. Tudo no diminutivo, pois parece mais apaixonado. Tudo fica colorido, a vida parece mais viva, o sol parece mais brilhante, o que relatos distintos de antes era comum, agora ganha quem já se separou e cor. E essa cor é vermelho de hoje sorri ao contar amor. Nos relatos que seguem você encontrará quatro histórias de pessoas completamente bIaNCa CarDoSo diferentes, com vidas e idades RepoRtagem distintas, mas com um final que mais parece um início. Tudo se desenvolve em três momentos: o princípio, o final e o recomeço. Cada separação tem as suas peculiaridades, mas todas possuem alguns aspectos em comum: o amadurecimento, o aprendizado e a vontade de fazer diferente da próxima vez. No início nunca se pensa no fim...


DURANTE

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O

tempo passa, e com ele surgem os problemas. As diferenças se sobressaem e já é possível vislumbrar o fim. Quando a vida se estreita e parece que não há mais espaço para aquela pessoa, quando o sentimento parece pequeno demais para lutar e quando o desgaste chega a um extremo em que o casal não consegue mais ficar próximo, aí se começa a pensar no início. E as lágrimas começam a correr.

Aline S. Novembro de 2013: “Ficamos olhando para aquele rio em silêncio por uns 40 minutos, e quando finalmente falamos algo, foi o fim. E já havia terminado há semanas quando eu descobri. A irmã dele disse que eles estavam juntos há mais de um mês. Ele negou veementemente. No momento em que ela contou, porque nós somos, realmente, grandes amigas e ela não mentiria, o meu mundo caiu. Desconfiar é uma coisa, mas ter certeza é muito pior. Eu não conseguia vê-lo na

rua porque sentia muita raiva. Diversas vezes voltei pra casa chorando ao cruzar com ele na cidade...”

vê privado do convívio daquelas pessoas e não tem mais com quem dividir os teus problemas e planos. Tu te vê sozinho...”

Gilmar P. 13 de outubro de 2003: “Nós ficamos juntos por 16 anos, mas a relação começou a desgastar. Eram problemas financeiros e havia muita cobrança. Então, pacificamente, num almoço familiar nós decidimos que iríamos nos divorciar. É uma frustração porque é um investimento que se faz durante muitos anos em uma relação com uma pessoa e de repente tu começas a ver o relacionamento ruir, mas não consegue tomar a decisão de separar, por causa da filha e pela dificuldade que é enfrentar um divórcio. E o dia seguinte é o pior! Dá uma sensação de vazio na vida. Tu ficas fragilizado, perdido. Não tem ainda uma diretriz na vida. É um misto de sentimentos, porque embora tu te sintas mais liberto, tu estavas acostumado a dividir as tuas decisões com a família, e tu te

Alexandre C. Junho de 2013: “Eu sou meio romântico, gosto de mandar uma mensagem, dar uma flor, um agrado, uma surpresa. Essas pequenas coisas que fazem a diferença numa relação. Mas ela nunca valorizou isso. Ficamos juntos por doze anos, mas era para termos nos separado aos oito. A razão de continuar tentando foi a minha filha que era muito pequena e que é tudo pra mim. Eu fui abandonado pelo meu pai aos 6 anos e não queria isso para a minha filha. Não posso dizer que eu não sofri. Eu fui para o fundo do poço, chorava sozinho, quieto num canto. Sofri bastante, chorei bastante, mas terminei...” Mas, as lágrimas não precisam, necessariamente, ser de tristeza.

Noemi C. Julho de 1973 : “Com

dois ou três meses de casamento eu percebi que não iria dar certo, porque ele ia para festas e embora eu insistisse ele não me levava. A minha vida era só trabalhar, cuidar da casa e dos filhos. Contudo, era outra época, não era tão fácil se divorciar. Ele recebeu uma proposta de emprego em Goiás e aceitou pensando que depois eu iria encontrá-lo, mas eu não fui. Eu tinha certeza que ele gostava de mim, e jamais poderia imaginar que ele tinha uma vida dupla. Com quase vinte anos de casamento, eu descobri que ele sempre teve outra casa e outras mulheres. Descobri, inclusive, que ele esteve com todas as minhas empregadas. E no instante em que percebi isso, dei um basta. Eu não tive trauma nenhum, muito pelo contrário, eu fiquei muito feliz. O maior sonho da minha vida era me separar. Foi a maior felicidade do mundo, porque eu vivia uma vida que eu não gostava, mas eu entendia que eu tinha que viver porque era o que eu tinha escolhido...”

DEPOIS

O

s minutos, as horas, os dias e os anos têm pressa. A dor e o sofrimento começam a cicatrizar. Surge a vontade de tentar fazer diferente.

bIaNCa CaRDoSo

Aline S. Março de 2014: “Hoje eu estou muito feliz. Encontrei alguém que me valoriza, me elogia, me cuida, me faz muito bem, e me dá muito carinho. Estou tentando fazer tudo certo desta vez: ser a mais honesta e verdadeira possível, e ele também. Estou completamente apaixonada! E sobre o passado, eu não sinto nada, nem raiva, nem desprezo, nada por aquela pessoa.” Gilmar P. Março de 2014: “Eu recomecei diversas vezes. Hoje eu sou casado novamente. Conheci a minha atual esposa pela Internet. Ela veio do Rio de Janeiro morar aqui no Rio Grande do Sul comigo e felizmente deu certo. Eu procuro não cometer os mesmos erros que eu cometi no primeiro casamento. Como dizem, não dá nunca para fazer um novo começo, mas um novo final tu é capaz de fazer.”

Alexandre C. Março de 2014: “Eu vivo com outra pessoa e tento ensiná-la todos os dias a ser a mulher que eu quero que ela seja, e vice-versa. A mulher é como uma flor, se não cuidar bem dela, tratar a terra, aguar, a deixar pegar sol, ela vai murchar. Então eu procuro elogiar ela, dividir as tarefas da casa, e contar tudo sobre a minha vida, porque ela é a minha companheira.” Noemi C. Março de 2014: “Da minha vida de casado eu não gostei, mas o que restou dessa união foram os meus três filhos que eu amo demais. Faz 20 anos que eu tenho um novo relacionamento. E sou muito feliz com essa união, porque se não tivesse encontrado alguém, uma pessoa boa como eu tenho, eu não levaria, quando eu me for daqui, uma imagem boa do matrimônio. Eu levariasóumaimagemdequeéruim. Mas não, existem sim casamentos bons. É o que eu tenho agora. Por isso eu procuro não cometer os mesmos erros que cometi antes, e ainda quero viver muitos, muitos anos com essa pessoa.”


Conto

Evangelho

O

o som é abafado pelo tanto que teria a lhe dizer e as operadoras roubam em centavos por segundo. Para a saudade, não bastam frases completas ou declarações extensas. Somente uma palavra sem tradução que produz tantos outros sentimentos tão ou mais confusos quanto qual. Você acorda nervoso, mal humorado enquanto espera acomodado em um incomodo banco. Observa as idas e partidas dos aeroportos, as despedidas e desencontros. Enquanto folheia uma revista ou jornal qualquer, se distrai com o celular de última geração que tem mais de cem funções e se perde em devaneios, acreditando que a sua hora, ou a hora do voo nunca chegará. E a hora finalmente chega. Nada além da escuridão densa da espera pela porta se abrir. O calor dos pequenos pavores, os poros inundados pelo abafamento das roupas usadas. Corpo em riste, pés sólidos plantados no tapete que diz ‘bem vindo’, em espanhol. Passouse um mês desde a última visita. Inúmeros dias perdidos vividos na inércia de viver longe e desejar estar perto e as madrugadas de catarses, acompanhadas pelas manhãs em que o sono é abundante e o cansaço é mental também. Saudade tem lar: é Buenos Aires. E tem nome, Camila. Dois filhos da pátria, longe de onde se espera um brasileiro estar. Dois refugiados, um dos pais, outro da sua realidade. E a gente se completa. Camila sempre teve como ideia ser escritora. Por fim, não foi preciso muita força para que ela entendesse que seu futuro estava ali. Filha de pais separados encontrou na capital argentina a possibilidade de estar perto de Porto Alegre, onde morou por toda a vida, e de ser publicada por editoras argentinas e brasileiras. E eu aqui, fugindo da minha realidade, buscando algum lugar que eu possa chamar de lar. Rodando o mundo, visitando clientes nas Américas e na Europa.

A espera não é longa, e quem abre a porta não denuncia a sua vinda, seja por algum passo mais pesado. O silêncio é o mesmo companheiro que me acompanha pelos voos enfrentados. Uma voz monótona denuncia a angústia trancada na laringe. Luz opaca, estourando nos círculos pálidos de luminosidade. O tratamento é frio, embora o sorriso dado se irradie pelo ambiente e chegue até meus olhos ainda sonolentos e me faça retribuir mostrando todos os dentes. O rosto crispado que conheço, a boca bem desenhada que vem até minha pele e com o beijo dado, abre meus poros. Oi, ela diz, em tom defensivo. Senti saudades, falo tentando penetrar ante seu comportamento pouco receptivo. Deixo minhas malas cheias de objetos e roupas que não usei, no quarto. São 19 horas agora e decido tomar um banho. Pego o kit de higiene pessoal e rumo ao banheiro, esperando que seja surpreendido por uma possível decisão de partilhar o chuveiro comigo. Entretanto, a minha espera é em vão. Saio molhado do banho, com a toalha pela cintura e sem os óculos. Procuro-os no quarto, enquanto me dou conta do silêncio que se faz presente novamente. Sento-me na cama, onde por trinta dias ela deve ter deitado chorando por minha ausência. Ainda reconheço o quarto, os mesmos móveis agora cumprindo a tarefa de segurar as pilhas de folhas que parecem ter brotado do nada. O armário de madeira, a TV sempre desligada e o violão escorado na parede cor creme. Por fim, quando estou me arrumando e colocando as roupasconfortáveis-de-ficar-em-casa, me deparo com um papel de rabisco enérgico, dentre as outras folhas na escrivaninha que diz: “Desculpa Marcelo, mas não dá mais pra esperar. Espero tu arrumar tuas malas e voltar. Tô no táxi pra te deixar no aeroporto. Acabou”.

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FReDeRICo SILVa

torpor se alastra de forma súbita por todos os pedaços do corpo pesado e cansado. A espera parece ter tomado forma – densa – e agora pesa em minhas pernas o fato das 8 horas de viagem. Placas variadas de conotação negativa, não pise aqui, piso escorregadio, cuidado, perigo, respeita a faixa amarela. Os ditos ficam na sua cabeça e lá se concentram. E então você acorda levemente suado pelo sono abrupto e o fuso horário que teima em lhe tirar horas de sono. Você acorda às 14 horas e percebe que ainda assim está no avião. Percebe que está em pleno ar, em uma forma de transporte que pode ser abatida a qualquer momento, seja pela natureza ou por uma desgraça qualquer, como se estivesse num enlatado com outras sardinhas. Pronto pra morrer, mas ainda não. É preciso ver outro cliente, ouvir o que ele tem a te dizer nessa reunião e então, após ouvir retificações de alguém que nunca estudou a sua área, mas por te pagar acredita que pode dar pitacos, você vai embora com cara de trouxa e um emaranhado de rabiscos que são os pedidos dele. Você quer perde-los, não quer segui-los. Entretanto, nesse mesmo momento recebe telefonema do chefe que lhe pergunta o padrão: já chegou? Como foi? Tratou bem o cliente? Ele gostou do trabalho feito? E as passagens, já compradas? Avise-me quando for pegar o voo, e por nenhum segundo me deixe esperando enquanto estou tentando o contato contigo. Em seguida, após o protocolo, chegam as outras notícias. Ou outros que procuram por notícias tuas. No caso, a mãe e então a namorada: quando vens? Tão tarde assim? Tá desanimado? E como foi com o cliente? Te amo. Para todas essas perguntas, basta apenas algumas monossílabas que saem tímidas como que não quisessem sair. A boca abre, mas


Mulher de corpo e alma JorNaL UNICoM 14

E Existem separações inevitáveis, necessárias e outras com poder de transformação LUIza aDorNa RepoRtagem

la brincava de boneca e colocava cabelo na miniatura do Batman. Sonhava em ter um namorado e se casar com ele, como via nos contos de fadas. Ela vestia as roupas da mãe quando a mesma não estava em casa. Não por querer se tornar adulta logo, mas sim por querer usar aquele tipo de roupa. Nessa época, ela ainda era chamada de ele. Fernanda nasceu como Luis Renato Garcia Eichenberg em Encruzilhada do Sul e hoje, depois de diversos obstáculos, se sente mulher. Não só por dentro como por fora. Na época dos lápis de cores e do pique-esconde, Fernanda ainda não tinha percebido que era vista como um menino. Foi difícil entender que mesmo gostando de brincar de bonecas, a sociedade a imaginava com um carrinho na mão. Seus pais não conversavam com ela, mas algumas pessoas começaram a perceber e, depois de se tornar adolescente, muitos homens passaram a dizer que ela deveria ter nascido mulher. Filha de pais separados, a madrasta de Fernanda foi a primeira a conversar com ela. Aos 14 anos começou a se assumir homossexual para os amigos na escola. Um pouco depois, se vestiu de mulher pela primeira vez em uma festa de Dia das Bruxas da cidade. Ao começar a se separar da sexualidade de nascença, Fernanda passou a sofrer preconceito não só fora, mas, também, dentro de casa. O berço evangélico em que nasceu tornou a aceitação por parte da mãe ainda mais complicada. Sair na rua e escutar piadas se tornou comum para a adolescente, que começava a deixar o cabelo crescer e a usar roupas femininas. Nem mesmo Fernanda entendia seu lado no início. Descobrirse mulher dentro de um corpo masculino não era aceitável para

ela no começo. Mas, a certeza sobre seus pensamentos de mulher a fizeram ir em frente. Com o passar do tempo, aprendeu a conviver com sua escolha e, hoje, não tem mais conflitos consigo mesma. Ainda na adolescência, tomou poucos hormônios, pois seu rosto sempre foi feminino. Fernanda não fez cirurgia de mudança de sexo, mas chegou a pensar na hipótese. Porém, percebeu que nada mudaria em relação ao preconceito. Ela continuaria escutando piadas nas ruas da mesma forma. Sem a aceitação da mãe, Fernanda largou os estudos, saiu de casa e foi para Porto Alegre. Apenas com a pensão do pai, ela não conseguia pagar o valor do aluguel. Por isso, passou a se prostituir para poder se alimentar e ter um teto para morar. Hoje, com 30 anos, Fernanda mora com seu marido e com Théo, seu gato de estimação. É revendedora de cosméticos, mas continua na prostituição para ter uma vida financeira melhor. Se pudesse voltar ao passado, gostaria de não ter tido tanta pressa pela transformação e ter terminado os estudos, para não precisar vender o corpo para ganhar dinheiro. Nas visitas de Fernanda a Encruzilhada do Sul, ela precisa anular uma parte de si. Sua mãe aceita o filho, mas não as condições. Ela a vê como homem e não como mulher. Já seu pai aceita até mesmo a sua relação amorosa, mas não gosta que a filha tenha entrado para a prostituição. Fernanda o entende, afinal, ela também não desejaria esse futuro aos filhos. Seus amigos, sua segunda família, sempre a apoiaram. Quanto a seu companheiro, estão juntos há quatro anos. Fernanda diz ter sorte: são poucos os homens que não se importam em assumir uma relação com uma transexual.

Apaixonada por maquiagem, bolsas, lentes de contato e brincos de argolas, Fernanda diz que é difícil tanto ser homem quanto mulher. Ela gostaria de poder escolher. Preferia ser um ou o outro, não os dois. Seu maior sonho é ter o apoio da mãe e ser mais respeitada perante a sociedade. De acordo com ela, a nova geração é menos preconceituosa. Para que isso continue a progredir, os pais devem conversar com seus filhos sobre o homossexualismo desde cedo, antes mesmo da escola. Taurina sonhadora, ela se imagina no futuro em uma situação melhor, com apoio total da família e com a certeza de que viveu o suficiente, da forma sempre desejada, sem arrependimentos. Fernanda aponta que se não tivesse se transformado, não seria feliz. Mudar por causa das pessoas a faria viver uma vida que não a pertence. E não é apenas Fernanda que viveu uma história assim. Com um longo cabelo preto, sorriso no rosto e muita história para contar, Bruna Ferraz, transexual de 29 anos, conta que as pessoas comentavam seu modo de agir desde cedo. Já seus pais, no início, não a apoiavam. Ela foi expulsa de casa aos 16 anos, quando começou a revelar sua verdadeira identidade. Com 17 anos passou a se vestir de mulher e a conhecer um mundo diferente, um mundo só dela. Teve que amadurecer rápido, pois não contava mais com a vida tranquila ao redor dos pais. Era ela e o mundo. Foi na noite, na vida corriqueira e na prostituição que Bruna passou a entender muitas das coisas que ela acredita hoje. Aprendeu o que sabe não com o amor dos pais e sim com a dor do mundo. Cabeleireira em Santa Cruz do Sul, especialista em mega hair, tem como a separação mais complicada da sua vida, deixar sua casa. Se


todo o momento, chamando-a de mãe. Ela vinha de Pedro Henrique, 3 anos, que brincava com seu carrinho. A criança é filha de uma amiga de Bruna que, sem condições para criar o menino, entregou-o a ela. O maior desejo para a vida da cabeleireira é a possível posse de adoção. Carinhoso, ele é como se fosse parte dela. Bruna pretende conversar com ele sobre o que passou de ruim, como a

dura realidade que enfrentou no mundo para não deixar acontecer o mesmo com ele. No universo feminino, chamamlhe atenção mulheres de atitude, com postura, beleza e elegância. Já no masculino, homens cheirosos, educados e com respeito. Ser homem é mais fácil, para Bruna, na questão de se arrumar. Homem coloca uma bermuda, um chinelo, molha o cabelo e está pronto. Bruna é amante de brincos, relógios

aCeRVo peSSoaL aCeRVo peSSoaL

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sentir excluída era normal para ela, na época. Hoje, depois de tudo, ela diria para as pessoas preconceituosas que raciocinar assim é uma forma pequena e medíocre de pensar. Se assumir homossexual, sem querer ser transexual, seria mais fácil. Bruna não costuma enxergar uma transexual atendendo em uma farmácia, sendo secretária em escritório ou banco. Mas, homossexuais ela encontra em diversos empregos. Isso porque ainda existem pessoas com e sem preconceito. Durante a vida, é possível conhecer diversas delas. Bruna diz que algumas ficam, outras passam, algumas marcam e outras simplesmente não têm importância. Ela fez plásticas para obter características femininas a fim de se sentir melhor ao se olhar no espelho. Mas, ela tem seu modo de pensar. Sabe bem o que é e não tem a intenção de virar mulher. Uma coisa é você nascer, ter atrações por homens e querer mudar seu corpo. Para ela, quem nasce assim nunca vai se transformar de verdade. A cabeleireira se orgulha de ter vindo de uma mulher, pois vê todas elas como a coisa mais linda que Deus já criou. Bruna não passou por uma operação de mudança de sexo. As mudanças realizadas foram no busto, glúteo, panturrilhas, coxas e rosto. Pensou em operação, mas não pretende fazer no momento. Natural de Itaqui, ela não pensa em seu nome de batismo, prefere não lembrar, e apenas usa quando necessário, em documentações. Bruna Ferraz é o seu nome, sua identidade. Sobre a separação de seu lado masculino, foi uma fase de adaptações. Ela se descobriu, se adaptou e habituou. Ninguém a empurrou, ela passou por tantas mudanças e obstáculos porque era o trajeto que precisava percorrer. Já em relação ao preconceito dos homens, ela diz que existe em rodas de amigos, mas que muitos têm curiosidade de ver uma mulher em um corpo de homem ou um homem com formas femininas. Com o coração ocupado, ela quer ter uma família. Durante a entrevista, Bruna se dividia entre respostas e carinhos. Uma voz fininha era ouvida a

e pulseiras. E não se separa, de forma alguma, de suas maquiagens. Se ela se importasse com a opinião dos outros, jamais teria feito a transformação. Pensou em desistir, mas se fizesse não seria Bruna Ferraz. Como conselho para quem tem medo de mudar, ela pede para pensarem muito. É preciso estar disposta a encarar o mundo. Afinal, é preciso ser muito homem para se tornar mulher.


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Histórias marcadas no coração

F

Duas jovens com histórias de separações que deixaram marcas em suas vidas MÔNICa LEaL RepoRtagem

oi muito difícil ver ela ir embora, e perceber que estávamos nos separando”. Essa foi uma das frases que a adolescente Carine Gonçalves teve mais dificuldade em pronunciar ao relatar sua história de separação. Com o olhar triste, as mãos agitadas, demonstrando nervosismo, Carine expressou com voz trêmula o quanto separar-se deixou rastros de uma vida sofrida e com pouca esperança. Carine vivia em um bairro carente de Santa Cruz do Sul,

acompanhada de dificuldades e desafios diários, até mesmo para trazer alimento aos irmãos. Daniele, desfrutava de uma vida feliz, ao lado de pais que lhe davam muito amor e carinho. Carine Gonçalves tem 12 anos. Daniele Furtado, 20. Pode parecer que não, mas as duas tem algo em comum: Essas são duas histórias de separação. Separação de filhos e pais. Histórias com início e final bastante parecidos, mas com os meios bem distintos. As duas

meninas carregam lembranças que deixaram marcas profundadas, no coração e na mente. Carine Gonçalves, até os sete anos de idade, vivia em um lar harmonioso, com os pais e os quatro irmãos. Sua família era completa e os pais lhe davam toda a base de carinho e atenção da qual necessitava. Essas lembranças são o motivo de sorrisos no rosto abatido da adolescente. Porém, toda essa felicidade se transformou em


tristeza e amargura quando o pai apresentou à família o poder destrutivo das drogas. A mãe no início relutou e tentou ,de muitas formas, reverter a situação. Enquanto Carine via o esforço da mãe em tentar manter a família em equilíbrio, o pai cada vez mais se tornava violento. Não foram poucas as vezes que humilhou e agrediu a esposa e filhos. Carine relata o quanto sofreu no dia que amãe cedeu as tentativas do pai e também entrou para o mundo das drogas. “Minha mãe começou a usar drogas com o meu pai. Foi muito triste. Mas, o pior foi quando ela avisou que ia embora. Juntou as coisas e foi sem nem nos dar um abraço”, relata Carine. Depois que a mãe foi embora o pai se tornou ainda mais violento. Obrigava dois, dos cinco filhos a trabalharem e assim trazer dinheiro para que ele pudesse alimentar seu vício. “Nós íamos todos os dias para a rodoviária e pedíamos dinheiro. Eu pegava a metade para comprar comida, pois só assim não morreríamos de fome. O que sobrava meu pai pegava para comprar drogas”, comenta. Com muito esforço Carine se esforçava para alimentar os irmãos. Ao mesmo tempo que a estudante Daniele integrava uma família de Pantano Grande. Daniele nasceu em Curitiba. Quando tinha um ano e seis meses, sua mãe percebeu que não conseguiria ter condições de criar, nem ela, nem seu irmão mais novo. A mãe então, optou por uma adoção direta. E foi através de contatos que o casal residente da cidade de Pantano Grande se interessou pela adoção das duas crianças. O processo ocorreu de forma acelerada e logo a pequena Daniele e seu irmão já faziam parte de uma nova

família. “Acredito que tudo tenha sido plano de Deus. Sou muito feliz na família que tenho”, relata a jovem. DESFECHOS DAS HISTÓRIAS Daniele foi passar as últimas férias de verão em Curitiba e antes de ir procurou o endereço de sua mãe biológica. Porém, como não estava acompanhada dos pais, optou por não fazer a visita. Alguns dias depois de voltar para casa, conseguiu, através de uma conhecida entrar em contato com sua mãe verdadeira. “Uma mulher que eu não conhecia, com o mesmo sobrenome, visualizou no Facebook, uma foto da minha certidão que eu havia postado algum tempo atrás. Ela mandou o perfil na rede social da minha mãe e de minhas tias e eu as adicionei. A partir desse momento passamos a conversar”, explica. Mãe e filha ainda não conseguiram se encontrar, mas Daniele espera ansiosa por esse momento. Enquanto isso, Carine foi tirada da guarda do pai e hoje vive com os tios, que a adotaram. “Logo que descobriram o que meu pai fazia, nos levaram para um orfanato. Minha tia foi me visitar e pediu minha guarda. Estou feliz com eles”, diz a adolescente. Carine conta que não sente mágoa pelo que seus pais fizeram. A adolescente sonha em continuar os estudos e futuramente conseguir dar uma vida melhor a sua família. Daniele quer muito reencontrar a mãe biológica, e dar total assistência e ajuda no que precisar. “Minha mãe também foi adotada. Imagino a dor dela e não tenho rancor. Meu desejo hoje é ajudá-la e dar apoio em tudo que for preciso”. A jovem acredita que tudo tenha sido escrito pelas mãos de Deus, e que tudo em sua vida tenha um propósito divino.


CaRoLINa SCHmIDt

Quando o adeus é definitivo Todos sofrem com a morte – e é por meio dela que as religiões explicam a separação CaroLINa SCHMIDT RepoRtagem


Aos fins de semana – e também em dias úteis quando possível –, o coordenador do Grupo Espírita Jornada de Amor, Silvio Aurélio Jaeger, auxilia nos atendimentos no local. Construído com auxílio da comunidade, o Centro funciona há mais de 15 anos. O lugar é simples e acolhe todos que sofrem com a partida daqueles que amam. Como ele mesmo define, o espírita tem o dom de ajudar. O Espiritismo, de que Jaeger já faz parte há tantos anos, MAIS VIDAS E EVOLUÇÃO entende que a morte separa Em meio a um altar com a matéria densa (corpo físico) imagens que vão de Ogum a da menos densa (corpo etéreo). Iemanjá, velas acesas e oferendas, O corpo carnal é a roupagem a mãe de santo Yara dos Santos temporária que serve para traz a visão da Umbanda sobre regressar a terra e passar a separação através da morte. pelos estímulos necessários Ela acende um incenso, aprecia para o crescimento como seres um chimarrão e fala com universais e eternos. ”Quando segurança que viemos de outras há separação do corpo e do vidas e não nos separamos espírito é preciso deixar a das existências passadas. Isso roupagem e seguir o caminho porque as pessoas fazem e em outro plano”, explica. De acordo com ele, a corrigem o que não foi possível separação pela morte é vista em outras vidas. De acordo com a Umbanda, por espíritos superiores para após a morte, o espírito se separa auxiliar o ser que sofre com do corpo físico e se une ao orixá o desencarne. Em relação a protetor. “É a separação e depois a aceitar ou não, dependerá união. No entanto, isso só ocorre do grau de elevação de se você tiver merecimento”, consciência. “Muitos ficam destaca Yara. Ela define a morte extremamente presos ao corpo como uma passagem e diz que físico, não entendendo o que a separação é necessária para acontece”, frisa Jaeger. Por mais difícil que seja, que haja a evolução do espírito. Para superar a partida, é preciso todos passam pela morte. Para fé. Esse credo pode ser nos aceitar, é preciso entender que santos, no Deus maior e na tudo tem uma explicação. Não chama de cada uma das velas é por acaso que o coração para que iluminam o pensamento e de bater ou que os olhos se fecham para sempre. trazem esperança.

CaRoLINa SCHmIDt

pároco marcelo diz que há duas dimensões em um só corpo: o físico e o eu.

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eternamente, e a outra que traria a morte. Diante do livre exercício de sua vontade, o homem escolheu a opção que comprometeu a sua eternidade”, cita Conceição. Ele observa que, a partir daí, o homem foi expulso do Paraíso. Por isso, a figura humana foi separada da comunhão com a divindade que alimentava a eternidade no seu espírito, alma e corpo. O homem entra então, em um processo de decadência que é a morte.

mãe de Santo Yara explica que, após a morte, a alma se une ao seu orixá protetor.

CaRoLINa SCHmIDt

E

m sua maioria, as separações são dolorosas. São ainda mais desesperadoras quando acontecem por meio de algo tão temido como a morte. Isto porque, desta forma, são definitivas. As religiões buscam compreender essa separação e todas confirmam que é a pior e mais dolorosa maneira de separar os seres humanos. Por quê? Pois acaba com as relações físicas na terra. Com a Bíblia na mão, forte concentração sobre ela e a imagem de São Sebastião Mártir por perto, o pároco da Igreja Católica de Venâncio Aires, Marcelo Carlesso diz que a morte é a única coisa certa que ocorre com os indivíduos aqui na terra. Ao lançar o olhar sobre a cruz que fica na sala, ele fala com convicção que há duas dimensões em um só corpo: a matéria é o físico e o eu é formado pela maneira de pensar, de ser e de agir dos indivíduos. O que fica no caixão é o físico. “Todo o nosso eu a identidade - forma o corpo espiritual. Quando morremos esse eu e a alma se separam do material”, explica Carlesso. No entanto, as pessoas não deixam de ser o que foram aqui, pois ainda carregam sua identidade, já que esta é eterna. Para a Igreja Evangélica Batista da Paz, a morte é consequência e resultado da escolha do ser humano. Com precisão, o pastor Edimílson da Conceição lembra que Deus e o homem viveram próximos. “Deus apresentou duas possibilidades ao ser humano: uma para viver


Um passado que A deixou marcas Separações judiciais não são fáceis, mas em alguns casos são necessárias Débora Paz Reportagem

lém de chegarem juntos ao Lar Mary Taranger, instituição que recebe crianças desabrigadas, situado no bairro Ramiz Galvão, em Rio Pardo, os cinco irmãos naturais de Pantano Grande têm mais um ponto em comum: passaram por um processo de separação familiar. As cinco crianças chegaram imundas. Algumas não tinham nem o que vestir e muito menos o que calçar. Estavam em estado de desnutrição, machucadas, irreconhecíveis, com os dentes quebrados e apresentavam marcas visíveis de violência doméstica e maus tratos. Situação que deixou a equipe do Lar alarmados. As

crianças que saíram de dentro do Fusca branco do Conselho Tutelar naquele dia não sabiam, nem mesmo, andar. Eliane Silva, presidente do Lar Mary Taranger e também do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) se emociona ao relembrar desse dia: “da forma como eles chegaram, eu nunca tinha visto nada igual. Estavam abatidos, sujos, não pareciam ser crianças. O estado deles me chocou porque nunca imaginei que tão perto existiam crianças nessa situação”. As três meninas e os dois meninos de pele negra chegaram debilitados e assustados. A conselheira segurava a bebê de sete meses nos braços, que estava com o braço e a costela quebrados. “As crianças perceberam nosso susto.


para os cinco irmãos que tinham necessidades urgentes. Foi feito um contato com a rede do município e a Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Conseguiram uma parceria com as duas instituições que ofereceram atendimentos odontológicos gratuitos e acompanhamento médico. Somente a menina mais velha, com sete anos, caminhava. Os outros três, com exceção da bebê, que tinham três, quatro e cinco anos, rastejavam pelo chão. Desde então, os cuidados foram intensos, tiveram que extrair todos os dentes que foram quebrados pelo pai quando os surrava. Qua ndo mor ava m no interior do município de Pantano Grande com os pais, as crianças dormiam no chão puro. O pai lhes

oferecia grama, terra e papelão como alimentos. Eles estavam daquele jeito por pura negligência. Tiveram de adaptar-se a comer os alimentos e, para isso, a nutricionista da Prefeitura fez um cardápio com multimisturas, o qual introduziu refeições dignas às crianças. Mas, levou quase quatro meses para que elas comessem normalmente. Enfrentaram muitas dificuldades, além do sofrimento do processo de separação. As crianças foram vítimas de violência doméstica, motivo pelo qual três delas ficaram com sequelas irreversíveis, desde síndrome de Kabuki a autismo. Uma delas que não apresentou sequelas e a bebê já foram adotadas. Os outros três continuam no lar

temporário. O pai era violento, bebia e nunca deixou a mãe amamentar nenhum dos filhos. De tanto sofrer as violências do marido, ela desenvolveu um distúrbio mental e hoje recebe cuidados da avó e de uma tia, mas não tem contato com os filhos. O marido está preso. No início a relação foi muito complicada. As crianças não aceitavam afeto. “A concepção de amor era a brutalidade”, explica Eliane. Tiveram que conscientizar as outras crianças abrigadas e os funcionários. As crianças pareciam ter medo de tudo. Antes de chegar ao lar, moravam numa barraca improvisada, viviam como bichos num mato. Agora, recebem cada um que chega de forma encantadora, cheios

Débora Paz

Tive resistência dos funcionários no início” conta Eliane. A chegada deles coincidiu com a da equipe que faz a manutenção do gás de cozinha. Eles expressaram seu espanto dizendo que não deveriam aceitar crianças que pareciam bichos. “No momento não sabíamos o que fazer e nem o que pensar. Colocamos luvas e levamos as crianças para o banho. O mau-cheiro parecia estar impregnado. Era muito forte e indescritível”. Com o olhar cheio de lágrimas, a presidente da instituição, desde 1997 tenta controlar a emoção ao recordar o momento mais marcante de toda sua vida. Tiveram que acessar uma rede de apoio, pois o Lar não tinha condições financeiras para pagar atendimento médico


Débora Paz

de expectativa, já que, para eles, conquistar o carinho e amor das pessoas pode abrir as portas para uma adoção. Foi assim que fui recebida pelos três e pelas outras crianças que vivem lá. Quando fui embora, me senti incapaz.Osofrimentoportrazdecada olhar era visível e nada pude fazer. Nada, além de apenas prometer uma próxima visita. Em conversas informais, com amigos e família, sempre ouvi das pessoas que a partir do momento em que nos tornamos pais, a coisa mais importante da nossa vida passa a ser os filhos. Enquanto não passamos por este processo podemos até pensar que não, mas a partir do momento que geramos uma vida, que necessita de cuidado, afeto, carinho e amor tudo passa a ter um novo sentido. Mas, por que casos como este ainda acontecem e separam pais e filhos? O Juiz de Direito Titular do juizado da Infância e Juventude e Segunda Vara judicial da comarca de Rio Pardo, Osmar Pacheco explica que no caso da destituição do poder familiar, em primeiro lugar busca-se a solução em meio à família biológica. “A destituição só acontece quando os pais não cumprem seu dever”, e mesmo assim é dado a eles o direito de defesa. De acordo com ele normalmente a característica socioeconômica está presente nestas situações e o nível escolar baixo também influencia para que o número aumente. No caso dos cinco irmãos, o alcoolismo e as drogas foram fatores decisivos que levaram a separação entre os pais e os filhos. Pacheco destaca que o afeto e o carinho que as crianças recebem nos seus primeiros meses de vida são essenciais para o desenvolvimento. Uma criança não pode viver sem as mínimas condições, esperando que os pais busquem tratamento ou resolvam seus problemas. Ele destaca que “o tempo dos pais não é o mesmo das crianças”. Assim como fiquei com vontade de voltar até o lar para visitar, cuidar e ajudar as crianças, muitas pessoas têm essa mesma vontade e acabam se dispondo a apadrinhar uma ou todas as crianças da instituição. A ideia do padrinho afetivo é

que, por ter um vínculo com o fórum, o padrinho ou madrinha não pode desistir tão fácil de continuar com a relação afetiva, mas quem se prontifica sabe que está desempenhando apenas um papel de apoio, e isso fica bem claro, até para que as crianças não criem falsas expectativas e acabem sofrendo. No caso de apadrinhamento a relação só é interrompida após o processo de adoção. Processo esse que pode causar a dor da separação como o caso da psicopedagoga Cassiandra Sampaio. Além de contato profissional Cassiandra também tem contato voluntário com o Lar Mary Taranger, e na tentativa de ajudar, mais uma vez, ela entrou com pedido de apadrinhamento afetivo da menina de um mês e 28 dias, com o objetivo de ajudar a cuidá-la, principalmente aos finais de semana, quando o Lar fica aos cuidados de diaristas. Depois de saber que ela seria adotada, acreditando numa possível aproximação com a família adotiva, no dia em que os pais foram conhecê-la, Cassiandra fez questão de estar presente. De acordo com ela foi um momento muito difícil, pensar que no outro dia a menina a quem ela já tinha um sentimento de amor e carinho iria embora. Ela foi até o Lar para se despedir. Foi muito emocionante e triste, pois não foram só os adultos que sofreram, as outras crianças já haviam se apegado à bebê. Foi uma consternação geral, ela conta que chorou muito. Após a adoção, a família se afastou e Cassiandra relata que mesmo sentindo muita saudade entende os motivos dos pais adotivos. Existem pais que não se importam em manter a relação com o padrinho afetivo, enquanto outros preferem cortar os laços. Está previsto em lei e é uma prerrogativa o direito dos pais adotivos em querer que seu nome esteja em sigilo para não ter relação com os pais biológicos, comenta o juiz Pacheco. Além disso, ele afirma que adotar é bem mais difícil do que ser padrinho. No caso dos três irmãos que continuam no Lar Mary Taranger, nenhum deles tem padrinho afetivo e a presidente da instituição conta que até hoje eles perguntam pela família biológica.


~ Opiniao

Sempre fui comilona. Não é novidade para mim. Admiro e me satisfaço com os doces e salgados. Comer é algo que me deixa feliz. O que não me deixa feliz são os quilinhos a mais. Chego cansada da faculdade, meio-dia, morrendo de fome. VeRIDIaNa guImaRÃeS Em vez de descer do ônibus na minha casa, ou melhor, na casa dos meus pais, desço na minha vó Maria. Ela reside pertinho do asfalto onde daqui a vinte minutos terei que esperar o ônibus. Eu mal chego e o banquete já está servido. Entro pela porta, a primeira coisa que meu estômago visualiza é a comida da vovó. A dona Maria vem me receber e logo faz o convite tentador: “Vamos almoçar?”. Sento-me à mesa, meu semblante

Saudades daquele tempo

Infância, fase tão bela. Tudo é tão lindo e perfeito. O cronograma do dia sempre está repleto de brincadeiras e diversão. Tomar sorvete com os amigos, jogar futebol no campinho em frente à escola, brincar de pés descalços KátIa FaNtIN sobre aquela grama fresquinha. Nessa fase o tempo passa despercebido, sem pressa. Não é preciso viver na correria do diaa-dia ou ter uma agenda cheia de compromissos para cumprir. Ter horário para acordar então, nem se fala. Há quem diga que gostaria de ser criança sempre. Já imaginou? Guardo lindas lembranças da minha infância. Lembro o doce som dos balanços da pracinha de brinquedos, de andar de bicicleta e correr atrás das borboletas coloridas tentando pegá-las com as mãos. Quando criança, fechava

denuncia a satisfação daquele Só de imaginar já fico com fome. Que cheirinho, huumm. momento. Entre uma garfada e outra, A mesa de madeira coberta por uma toalha colorida. A as lembranças dos encontros em bancada encostada em uma família. Ela começa a falar, recorda parede multi enfeitada, com o meu tempo de infância: quando calendários - alguns de anos bagunçava sua casa com uma atrás - e recortes colados na maré de brinquedos. Além de parede. O quadro da Santa Ceia me trazer boas recordações, revela a fartura da mesa. É assim a comida da vó me fornece a que a vó gosta de receber suas energia necessária para cumprir visitas: com muita hospitalidade o expediente de oito horas de seja através das palavras ou trabalho. Vou dormir pensando através do alimento. A polenta no dia seguinte, pensando na com molho de galinha é um comida da vovó. Vó é sinônimo de afeto, dos meus pratos preferidos. A comida caseira de Maria é bem de dedicação. É assim que ela representada pela maionese com prepara sua comida, como uma massa, batata doce, aipim com obra de arte. Com cuidado para farofa. De acompanhamento, um atingir a perfeição. Amar a suquinho de laranja. Não tem comida da minha vó também é como resistir a tantas delícias. uma maneira de amá-la.

os olhos e imaginava-me sendo adulta. Queria ser como meus pais. A infância também nos faz viver em dois mundos: o real e o imaginário, que era um lugar fantástico e mágico, onde tudo existia. Era possível escorregar em arco-íris, sobrevoar o céu de braços abertos e até tocar as nuvens com a ponta dos dedos. A magia desse mundo imaginário transformava as nuvens em algodão doce. Um mundo que só eu percebia. Abro meus olhos e sinto aquele cheiro gostoso, de pão caseiro da vovó, que anunciava a hora do lanche da tarde, momento de reunir a família, de sorrir e aproveitar cada segundo. Que maravilha foi a minha infância! Pular corda, jogar amarelinha. Quisera que todas as

crianças desfrutassem de uma infância assim. Hoje, o mundo transformou essa fase. Tudo está tão diferente. A inocência das brincadeiras não existe mais. A infância de hoje está conectada ás novas invenções e tendências. Mas, descobri que a minha ficou na memória tão mágica e bela. Sei que é possível resgatar esses tempos e mostrar que a alegria e diversão estão nas coisas mais simples. O tempo passa tão rápido que nos separa desses momentos tão preciosos. Mas nada que não seja impossível de recordar. Cresci. Adquiri responsabilidades. Tive que aprender, como dizem por aí, a me virar. Quando criança me imaginava sendo adulta e hoje até da vontade de voltar a ser criança. Bons tempos aqueles.

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Não me separo da comida da minha vó


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O desafio de superar a morte

R Duas histórias marcaram a trajetória de duas famílias. Em comum, o sofrimento profundo e as cicatrizes eternas MarIa rEgINa EICHENbErg rUI borgMaNN RepoRtagem

ecomeçar é consequência da separação. Separação brusca, de uma realidade para outra, que não deixa avisos prévios. Quando a separação envolve morte é um obstáculo ainda mais doloroso para se superar. Para agravar, perder um filho é ter uma lacuna na vida que dificilmente será preenchida. É o rompimento de uma convivência diária, de um amor infinito e de uma vida pela frente. É, também, o caso de duas jovens famílias que passaram por separações diferentes: uma com a luta diária contra a morte; a outra formada por momentos inesperados que obrigarama reconstruir toda uma trajetória iniciada na década de

1980. Em comum, o sofrimento profundo, a força de vontade, a cicatriz eterna e o amor transcendente. A história de Fábio, apesar de todo sofrimento através das lembranças, serve de motivação para superar o trauma vivido. Já a outra família prefere não ser identificada pelos seus nomes verdadeiros ou por fotografias. A exposição dos acontecimentos aindadói.Mesmocomasdiferenças, a perda de filhos nos dois casos, logo no início do casamento, desafia os personagens a irem além de seus limites. Tratamentos psicológicos, a busca pela fé, a reaproximação e a valorização da família são caminhos para resgatar novamente a felicidade.

DOENÇA QUE MATA E DIVIDE CORAÇÕES

E

m meados de 1987, Fábio e Zândrea esperavam ansiosos pela chegada do primeiro filho: “Imaginávamos uma menina de olhos azuis, perfeita e de nome Débora”. Recém-casados, a gravidez não demorou muito e após nove meses a cesariana estava marcada. Três dias antes, o funcionário da extinta Caixa Estadual foi ao trabalho a pé, como de costume. Ao percorrer duas a três quadras, sofreu uma indisposição intestinal e precisou retornar para casa. A esposa estava caída no banheiro e o chão, cheio de sangue. Fábio conduziu-a ao hospital, nos braços, desfalecida. “Pensei no pior, achei que ia perdêla”. Em seguida o médico anunciou que o casal havia perdido a filha tão esperada, após Zândrea ter convulsão e entrar em coma. Foi um choque.

Fábio teve que enfrentar a dor aos poucos. Após ouvir dos familiares e colegas de trabalho que era necessário superar, eles tentaram outro filho. Com acompanhamento dos médicos, em agosto de 1992, nascia Débora. Apesar da felicidade total com o nascimento da filha, a relação do casal estava estremecida. Fábio relaxou, se envolveu com uma segunda pessoa e acabou se separando. Débora tinha menos de dois anos e no segundo relacionamento o pai teve outra filha, chamada Fabiane. Zândrea e a filha foram morar em Santa Cruz do Sul. Débora era uma menina linda, inteligente e esperta, mas ao mesmo tempo triste e irritada. Apresentava uma cor pálida, tinha dores nos joelhos e enfrentava dificuldades para se alimentar. Foram seis meses na busca por médicos e exames. Internada em Porto Alegre veio o diagnóstico:

Leucemia Mieloide Aguda (LMA).

Banco Mundial. O caso mobilizou a comunidade. Cartazes eram A LUTA DE DÉBORA colados em escolas, ônibus e até um festival de música O processo de quimioterapia intitulado Débora Rock visava iniciou rapidamente, Zândrea arrecadar fundos para auxiliar pediu demissão do emprego no tratamento. Campanhas em para se dedicar integralmente busca de um doador compatível e Fábio assumiu as despesas também foram realizadas. Com quase dois anos de com parcelas do apartamento, alimentação e vestuário. Já tratamento e a busca desenfreada a vida de Débora, com toda por um doador, Débora completou infância pela frente, tornou- nove anos e a cirurgia estava se extenuante. Conforme a marcada em Curitiba. Dia 10 de doença se agravava, Fábio agosto de 2000 era o aniversário trabalhava até quinta-feira e de nove anos. Para comemorar de sexta a domingo cuidava de em família, foi permitida a sua sua filha no hospital Ernesto ida ao hospital Santa Cruz. Cada vez mais enfraquecida, a menina Dornelles, em Porto Alegre. As quimioterapias não foi levada novamente a Porto surtiam efeito e, para agravar, Alegre a fim de se preparar para a menina ficava cada vez mais o transplante. Com toda essa debilitada, longe da cura. Um turbulência, Fábio recebera a ano se passou sem resultados e a notícia da morte de seu pai, em alternativa era o transplante de consequência de um infarto e medula óssea. Foi necessário um também da separação definitiva cadastro em Curitiba, através do de seu segundo relacionamento.


ACERVO PESSOAL

UM PRESENTE PARA NOEL Naquele momento, pelo menos solidariedade e, contraditoriamente, um pouco de sorte acenavam para Fábio. Para saldar tratamentos, viagens diárias e hotéis, precisou se desfazer de bens materiais. Superendividado, não sabia mais o que fazer para embarcar a Curitiba. Nenhum banco liberava empréstimos. No início da década de 1980, muito antes deste episódio, todos os finais de ano Fábio se vestia de Papai Noel, comprava presentes e saía com seu Fusca à noite. Anonimamente, repassava brinquedos às crianças mais humildes. Uma dessas casas era de Eva, a faxineira do banco em que era servidor. Eva tinha duas filhas pequenas e para elas aquele gesto representava muito. Para Fábio, uma realização pessoal. Quando soube que teria que se deslocar a Curitiba com Zândrea e a filha, previa gastos

com deslocamento e estada. Teria de ser de avião pela fragilidade da garota. Foi então que recebeu uma ligação de uma moça, que se colocava à disposição três passagens. Era a filha de Eva, uma das meninas que recebia os presentes daquele Papai Noel há cerca de 20 anos. No dia da viagem à capital paranaense, outra surpresa agradável. Fábio entrou em um shopping de Porto Alegre e comprou um bilhete da Lotomania por R$ 1,00. Passou três semanas sem conferir o resultado. Ao pagar uma conta numa lotérica lembrou-se de conferir o bilhete. A atendente explicou que Fábio deveria sacar o prêmio na Caixa Federal porque o valor era maior do que poderia lhe pagar, segundo ela, cerca de R$ 3 mil. Chegando à Caixa Federal, Fábio disse que levaria o dinheiro porque precisava embarcar a Curitiba. O valor

era de R$ 27 mil. Como Débora estava muito fragilizada, seria arriscado realizar um novo processo de quimioterapia. A guerreira Débora, apelido dado pela família, passou seu aniversário de nove anos na UTI. Um mês depois, teve sua prometida festa, na companhia dos amigos, colegas de escola e familiares. A intenção dos pais era deixar de lado a festinha e correr na missão final de realizar o transplante. Eis que Débora fez o pedido: - Papai, quero ficar em casa.... com meus presentes. Desesperados, Fábio e Zândrea não atenderam as súplicas da filha, pois queriam insistir na desenfreada maratona de curar aquela doença que mata e separa corações. Lutaram... Com 7 anos, no início do tratamento, Débora pesava 35 quilos. Aos 9 anos de idade apenas 14 quilos. A guerreira não conseguiu abrir os presentes.

O RECOMEÇO Fábio tenta a reaproximação com Fabiane, sua outra filha de 18 anos. Aos poucos pai e filha estão aprendendo a ter uma admiração e confiança mútuas. Fábio conclui que durante o tratamento de Débora foram dois anos como se tivesse vagando no tempo. Ele ressalta que não adiantava as pessoas dizerem que sabem a dor de perder um filho. Só quem perde pode saber o verdadeiro sentimento de angústia, de sofrimento. Com depressão profunda, realizou um tratamento longo com psicólogo. Em seguida ingressou na faculdade de Direito e fez cursos de corretor de imóveis. Hoje leva uma vida com uma terceira pessoa. Casou novamente e a atual mulher lhe cobra um novo filho.


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maRIa RegINa eICHeNbeRg

QUANDO A SUBTRAÇÃO VIRA SOMA

H

á cerca de 30 anos, Silvia e Carlos esperavam ansiosos pela chegada do primeiro filho. Silvia tinha 22 anos e curtia a gravidez tão sonhada junto com seu marido. No oitavo mês de gestação ela passou a noite inteira com contrações e tinha dúvidas sobre o que sentia. Na manhã seguinte percebeu que a bolsa havia rompido. Já no hospital, o médico lhe contou que ela teria gêmeos, dois meninos. Entretanto, a notícia foi tão rápida quanto a perda dos filhos: um sobreviveu por 18 horas e o outro, por 28. O motivo não ficou bem esclarecido, mas os médicos apontaram na época que por ser a primeira gravidez e de gêmeos univitelinos as dificuldades eram maiores. A tristeza tomou conta do momento que seria para ela o começo da vida a dois. O casal esperou um ano e meio após a perda dos gêmeos e tiveram Camila, uma luz na vida deles. A vontade de formar uma família maior fez com que Silvia engravidasse pela terceira vez. Quando Camila tinha pouco mais de dois anos, nasceu Cristina. Em agosto de 1985 a família voltava de um aniversário em Passo Fundo. O carro estava cheio: Carlos dirigia e Silvia estava sentada no banco ao lado com a caçula no colo, que há pouco tempo havia completado 1 ano. Atrás estavam a mãe de Carlos e Camila. No percurso até Santa Cruz do Sul, Silvia avistou um acidente perto de uma ponte. Eles pararam o carro para deixar Cristina no banco de

primeiro sinal de que a grande força que o casal teria para recomeçar seria através do espiritismo. Carlos era muito descrente. O livro E a vida continua, de Chico Xavier, foi como um mantra na vida de Silvia. Ela fazia questão de contar algumas lições para o marido, até que, pouco a pouco, ele foi acreditando. Em casa, ele com o pescoço quebrado e por um detalhe não estava paralítico e ela com o quadril quebrado, recebiam de 30 a 70 pessoas por dia. Elas vinham perguntar como tudo havia acontecido e dizer palavras confortantes. Silvia tomava algumas medicações para ajudar a superar a dor, até que um dia percebeu que não adiantaria. SUPERAÇÃOPELOESPIRITISMO Durante muito tempo eles pensavam que tudo aquilo não Após algum tempo do estava acontecendo, nem a dor acidente, Carlos contou a esposa física e muito menos a dor da uma lembrança do momento perda. Na época ela trabalhava em que estava na ambulância em uma empresa de ônibus e com as filhas - pois ela havia ele em uma farmácia e os dois sido encaminhada em outra. logo retornaram aos serviços. Ele se lembrava de ir para um Silvia preferiu não procurar ajuda campo com muita fumaça e com psicológica. Os grandes amuletos pessoas ao redor. Carlos sentia- do casal foram o espiritismo, a se bem de mãos dadas com família, os amigos e o trabalho. Quando ela conseguiu colar Camila e ele queria ir adiante com ela. A menina, entretanto, o quadril, o médico mais uma vez dizia: “Não pai, não. A mãe, a pediu que ela esperasse meio ano. mãe”. Então ela o empurrou: Mas Silvia sabia que tinha que “A mãe precisa...” e ele caiu em buscar, afinal, já havia perdido um abismo. Ao acordar, quatro filhos e eles não abririam ainda dentro da ambulância, mão da família. A persistência e o enfermeiro contou que a a coragem do casal resultaram, maiorzinha já havia falecido. cerca de um ano após o acidente, Talvez esse tenha sido o com o nascimento de Mariana. trás, já que a polícia abordava os carros na estrada. Porém,aviagemfoiinterrompida em uma passagem de segundos. “No que larguei ela, eu disse: Carlos, vem um caminhão! Daí eu só vi aquele caminhão preto vindo em cima e eu só acordei no hospital. Não lembro de mais nada”. Por ironia do destino, Silvia acordou na data em que completava 25 anos, um dia após o acidente. A enfermeira disse que tinha que dar uma notícia a ela e perguntou-lhe se ela queria receber a mesma com dor ou com anestesia. A moça contou a ela que suas duas filhas e sua sogra haviam morrido e a mãe, transtornada, deu um grito. Em seguida, recebeu a injeção.

A menina foi uma alegria enorme. Um ano e meio depois e tiveram a Paula, mais um motivo para comemorar. Quando os dois pensaram que não teriam mais filhos, dois anos após, o sonho de Carlos de ter um menino realizou-se com a chegada de João. Agora sim, Silvia tinha uma família completa. HOMENAGEM NA PELE No Natal de 2011 os três filhos surpreenderam os pais com uma homenagem. Tatuaram em suas peles uma soma complexa: 2+3=9. Entretanto, o cálculo nada mais é do que a representação de que os filhos entendiam tudo o que Silvia e Carlos haviam passado e o amor compartilhado com os quatro irmãos que não tiveram a chance de conhecer. A aceitação de que todos fazem parte de uma mesma família deixa a soma mais simples do que parece. Silvia não vê dificuldades ao contar o grande segredo de tudo: a aceitação. Já que o passado não mudaria, precisava fazer o futuro: “tu podes recomeçar sempre”. Depois de passar por seis gestações e perder quatro filhos, ela acredita que para superar os desafios da separação pela morte é importante não ter pena de si mesmo. Atualmente, Silvia está à espera dos netos que poderão vir. Para o futuro desejam uma vida mais tranquila: “para a hora em que os filhos precisarem procurar a gente”.


~ Opiniao

paoLa SeVeRo

24 horas por dia FeLIpe KRotH

O tempo que nos é ensinado, que cura os machucados da vida, acaba por ser aquele que nos inflige mais ferimentos. Pois ele é o único implacável, contra o qual não há solução. Até mesmo morrer, nosso momento derradeiro e um dos fatos que compartilhamos com todas as outras pessoas, acontece por sua causa. Sem o tempo correndo, sem os ponteiros dos relógios girando, viveríamos para sempre. Talvez o pior tipo de ferida do tempo seja o fim. O tempo separa os amigos, os familiares, os colegas e os amantes. Pois nenhum de nós carrega em si o poder de fugir desta força primordial.

O toque de duas mãos entrelaçadas, de dois lábios que se tocaram uma centena de vezes passam a significar nada. E duas pessoas que um dia foram o mundo uma da outra, cruzam uma de cada lado da sarjeta observando o padrão do calçamento ou as vitrines, para evitar um frio cumprimento de protocolo. O tempo que nos dá chances de corrigir nossos erros por um período, acaba delimitando que tudo chegou ao fim. E ao invés de arrebatar alguém de nossa vida apenas, decide retirála do mundo. Somos obrigados a nos despedir, como todos são em algum momento. A separação pode vir na forma

de uma lágrima, de uma ligação, de um sorriso, de uma dança, de uma xícara de café, um cigarro ou de uma garrafa de vinho. Enquanto o fim de uma coisa boa pode significar um coração partido e uma mudança irreversível de personalidade, a separação de um mundo obsoleto pode significar uma nova oportunidade, de que o tempo, este cretino, será obrigado a esperar para trazer infelicidade a esta vida. Por que a separação virá, como o tempo há de vir, pois este é o seu propósito. A dor virá, mas um dia irá embora ou será amenizada. Mas não se engane, pois encontros e uniões são partes inseparáveis do todo, e só o tempo pode tocá-los.

A estimativa de vida de um brasileiro atualmente é de 71 anos. Fazendo uma conta simples, desconsiderando anos bissextos, é possível dizer que um brasileiro vive, em média e aproximadamente, 622 mil horas. 622 mil horas pode parecer muita coisa, eu sei. Mas se tu pensares em como uma hora, um dia, passa rápido, será que é tanto assim? Eu mesmo, me considero jovem, mas já deixei para trás mais de 175 mil horas da minha vida. Se tu tivesses 600 mil reais, tu jogarias um real, que fosse, fora, ou usaria ele em algo que não te interessa ou que não te faz feliz? Das 24 horas do dia, se recomenda dormir, pelo menos, seis. Então, a cada dia, temos, ao menos, umas 18 horas para fazer alguma coisa, para nos dedicarmos ao nosso projeto de vida. E se passar um dia sem que tenhamos feito nada que valha a pena lembrar, talvez tenhamos

perdido essas 18 horas. Mas eu não sugiro que tu tenhas pressa. Não. Tu já deves ter percebido que, quanto mais a gente corre, mais rápido o tempo parece passar. Minha primeira sugestão é: pense em quanta coisa tu consegues fazer em uma hora. Cronometre um dia – ou parte dele – da tua vida e atente para quanto dura 30 segundos, quantas coisas tu consegues dizer, fazer, em um minuto. Atente para quanto tempo tu perdes naufragando na timeline de uma rede social, vendo reclamações, piadas infames e fotos da comida dos outros. A conclusão, pelo menos para mim, é assustadora. Separar-se de um dia de vida, de 24 horas de vivências que poderiam ser inesquecíveis, a cada ida e vinda do sol no céu, é inevitável. O tempo passa, é verdade – mas não tão rápido assim. Tente crescer um pouqinho a cada dia. Tente organizar teu dia para que isso

aconteça. Tente organizar teu tempo para garantir que, apesar do trabalho, do trânsito, do sono, do azar, tu consigas dedicar, pelo menos, uma hora por dia a algo que te faça, realmente, feliz. Dedica uma hora das tuas 18 úteis diárias para a música, livros, video-game, para praticar um esporte, meditar, qualquer coisa que não te faça sentir como se estivesse perdendo tua vida. Organiza teu tempo para que tu possas fazer um abraço em alguém durar 30 segundos. Quando foi a última vez que um abraço ocupou 30 segundos, das 24 horas que tu ganhas a cada dia? Se tu deres mais atenção a como usas teu tempo, tu vais continuar te separando de 1.440 minutos de vida por dia, mas, talvez, a cada 8.760 horas - quando tu parares para comemorar um aniversário - tu percebas que deixaste para trás alguém que tu eras antes para te tornar alguém maior.

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Divididos pelo tempo


Longe daqui, muito além Enfrentar estados psíquicos que causam dor, sofrimento e afastamento da realidade pode ser difícil. Mas, para não se perder dentro de si mesmo, é necessário ISaDora TrILHa LUÍSa zIEMaNN RepoRtagem

D

esprender-se nem sempre é fácil. Quando é de alguém, por vezes, não temos escolha. Quando é de algo, por vezes, podemos substituir. No entanto, quando se trata de nos separarmos de nós mesmos e daquilo que o universo determina como nossa realidade, a tarefa se torna ainda mais complicada. Distúrbios mentais provocam esquecimento, isolamento, enfraquecimento das relações intersociais e, sobretudo, dor. Para quem vive e para quem convive. Dentro da psiquiatria, a psicopatologia busca estudar os estados psíquicos relacionados ao sofrimento mental. Este, porém, pode até ter uma explicação química, mas não emocional. A medicina esclarece. E muitas vezes, a família não entende. Os amigos não entendem. A sociedade não entende. Mas a vida segue. E é preciso aprender a seguir. Henrique, de oito anos, e Antônio, quase aos 80, aprenderam. Suas famílias aprenderam. A biologia de seus corpos não queria, mas não há TGD, AVC, ou qualquer outra sigla que supere a vontade de viver. A psicopatologia, enquanto estudo dos transtornos mentais, é uma visão descritiva dos comportamentos que se desviam do que é o meio-termo, a média, isto é, do que é esperado pela racionalidade. Transtornos mentais e de comportamento, vividos com frequência por Henrique, Antônio e outros milhares de pessoas, não são raros. Desprender-se da realidade, da racionalidade, da média, tampouco, é raro.


LuÍSa zIemaNN

O

porcos. Há cinco anos decidiu aposentar a Rural ano 72, onde transportava a carne até açougues de todo o município. O primeiro AVC veio aos 74 anos. “Era domingo, ele estava sentado no sofá assistindo televisão e começou a reclamar que o relógio dele estava estragado. Começou a reclamar muito. De repente parou e foi se deitar. “Eu achei estranho, era de manhã. Não demorou uma hora. Tivemos que levar para o hospital”, lembra Neli Olivone Garcia da Silveira. Voltou para casa no mesmo dia, de uma maneira completamente diferente: sem uma peça do quebra-cabeça que configura qualquer ser humano. Seu Vidor não conseguia falar. Uma doença de apenas três letras e pronúncia difícil havia lhe tirado uma das formas mais primordiais de comunicação. O filho mais novo – que mora em São Paulo, assim como o mais velho e suas respectivas famílias –, se prontificou a pagar o fonoaudiólogo. Não precisou. Passaram-se sete dias até que a fala, que por uma semana parecia coisa de outro mundo para Seu Vidor, voltou ao normal. O segundo AVC foi pior. Neste, as sequelas foram um pouco diferentes. Desde 2012, Seu Vidor sofre com lapsos de esquecimento. Foi a partir daí que as contas de água de casa passaram a ser altíssimas.

“Ele nunca se lembra de fechar a torneira”, explica Dona Neli. Colocar o chinelo no pé esquerdo também é algo que teima em ser esquecido. A cabeça de Seu Vidor lhe prega peças. A batalha travada contra a própria mente é diária. Ao mesmo tempo em que Seu Vidor não sabe se já comeu ou não hoje, lembra-se claramente dos dias de trabalho no interior de Vera Cruz. Ele nasceu em Mato Alto, onde os cavalos são mais presentes que os carros e a estrada de chão ainda é o caminho. Lá, conheceu Dona Neli, se casou e criou os quatro filhos. E muitos porcos. Ganhou a vida da carne do animal. O hábito de acordar cedo, antes de o sol nascer, é mantido até hoje – mesmo que nenhum compromisso lhe chame. Seu Vidor acorda às 6 horas todos os dias. No máximo às 7h. Com ajuda de Dona Neli, toma banho, e, ao lado da esposa, toma café da manhã. A mesa é farta, mas seu Vidor prefere ficar apenas no pão com chimia. Todos os afazeres do dia de Seu Vidor levam em torno de uma hora. Depois das 8h da manhã ele não tem compromissos. Seu dia se divide entre cochilos no sofá, assistir televisão e caminhar pela casa. E como ele adora caminhar. Antes do segundo AVC, fazia caminhadas diariamente. Todos os dias,

calçava os tênis brancos que eu mesma lhe dei e sorria como se estivesse recebendo o presente pela primeira vez. Era feliz. Durante cerca de uma hora – pouco importava, ele não levava o relógio junto –, caminhava. Agora não dá mais. “A gente tem medo que ele se perca, caía. Sozinho não dá”, explica Dona Neli. A verdade é que ele, meu avô, vive sozinho. Não que a família o tenha abandonado. Muito pelo contrário, ele recebe atenção constante de todos. Em casa, ao menos metade das 24 horas dos sete dias da semana de Dona Neli e Margaret, a única filha mulher, são, exclusivamente, em função de Seu Vidor. No entanto, um mundo a parte, apenas seu, ele está sozinho. Pouco importa se a torneira ficou aberta, se ele colocou o chinelo ou se está de pé descalço. Dia desses, Seu Vidor disparou: “Hoje eu passei a tarde inteira pensando”. No quê, só ele sabe. No Brasil a expectativa de vida é de 71 anos. Seu Vidor já a superou. Em novembro deste ano meu avô completa 80 anos. Ele aprendeu a lidar com a velhice – assim como aprendeu a lidar com o primeiro AVC, depois com o segundo e com o princípio de Alzheimer que talvez ele nem saiba que tenha, de uma maneira muito tempestiva: esquecendose de lembrar.

PERCEPÇÕES DIFERENTES, MUNDOS IGUAIS Quando se trata de infância, a inserção da criança no meio em que vive parece uma tarefa fácil. Brincar com os amigos da rua, interagir com os colegas da escolinha ou até mesmo sentarse à mesa para almoçar em família são atividades comuns na rotina dos pequenos. Porém, para quem sofre com o transtorno global do desenvolvimento (TGD), popularmente conhecimento como autismo, não é bem assim. De maneira inevitável, a linha tênue entre a percepção diferenciada do

mundo que os cerca e a realidade em si, acaba por tornar os autistas reféns de um ambiente que exige socializações o tempo todo. Henrique é uma criança como qualquer outra. Ao descobrir que estava grávida aos 17 anos, a mãe, Mariana, sentiu uma felicidade instantânea; carregava o fruto de seu namoro com Cris. Após o nascimento, todo carinho e cuidados desferidos ao pequeno foram minuciosamente planejados. Como qualquer recém-nascido, Henrique chorava muito durante

a noite. Porém, com o passar dos anos, ele começou a demonstrar um comportamento agressivo na hora de dormir. Acostumados a recebê-lo em seu apartamento, os avós, Hugo e Neca, foram os primeiros a notar que o neto merecia mais atenção. Foi numa noite em que os pais de Henrique pediram para que Neca cuidasse do neto – na época com quase dois anos – que tudo começou. Após realizar as tarefas da casa, ela foi até o quarto onde o pequeno descansava na cama de casal

dos avós e se deitou ao lado dele. De repente, o susto. Henrique começou a gritar. E gritou muito. Assustada, Neca tentou acalmar o neto de todas as formas. Uma das alternativas envolvia os desenhos na televisão, que Henrique tanto gostava. Naquela noite, não resolveu. “Ele berrou. E continuou berrando”, relembra. Quando Mariana e Cris foram buscar o filho, Neca contou o que aconteceu. Ninguém deu bola. “É normal”, disse a mãe. “É assim que ele acorda sempre”. As

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s ponteiros do relógio marcavam 18 horas. Como de costume, Dona Neli e Seu Vidor tomavam chimarrão no pátio da frente de casa – ritual que se repete há, pelo menos, seis décadas. “Que horas fica pronto o almoço, Neli?”, resmungou. Seu Vidor não lembrava, mas ele já havia almoçado naquele dia. Tão frequentes quanto os almoços em família é a falta de lembrança do marido, não mais tratada como surpresa por Dona Neli. Vem sendo assim há cerca de dois anos, desde o último Acidente Vascular Cerebral (AVC). Às vezes ele lembra, às vezes não. Não há confirmação médica, mas os sintomas são os mesmos do Alzheimer, que já roubou boa parte das memórias de sua irmã, Dona Finina. Os esquecimentos e a confusão mental estão cada vez mais frequentes. Mas também, entende-se, há tanto do que se lembrar. São 79 anos, quatro filhos, sete netos – um deles é a repórter que vos escreve – e uma bisneta. Destes, ele nunca se esquece. Todos os dias pergunta como estão e reclama quando um dos filhos homens, o único que ainda mora em Vera Cruz, não vem para almoçar no domingo. “Mas é uma barbaridade, deve ter ficado dormindo”. Antônio Salvador Alves da Silveira trabalhou até os 73 anos na lida bruta, carneando


ISaDoRa tRILHa

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preocupações da família foram amenizadas na medida em que as crises de Henrique durante o sono diminuíram. Naquele tempo, Neca trabalhava na filial de uma creche no Centro de Santa Cruz do Sul onde, ao completar um ano e oito meses, Henrique foi matriculado. Não demorou muito para que a família do menino fosse chamada para conversar com a psicóloga responsável pelo local. Henrique tinha mesmo algo diferente. Os episódios caóticos na rotina da família Braz os tornaram resistentes às surpresas. O nervosismo que Henrique demonstrava diante de situações aparentemente banais traziam à tona uma inquietação mútua naqueles que conviviam com ele. “O que está acontecendo?”, pensavam os avós. Sempre ativo, o pequeno nunca parou no colo de ninguém. Quando contrariado, se escondia embaixo da mesa de jantar da sala do apartamento de Hugo e Neca. Ai de quem tentasse tirá-lo de lá. Caso permanecesse irritado, batia com a cabeça na parede ou no chão. Apesar das atitudes estranhas da criança, o desenvolvimento permanecia

normal. Henrique chegou até a balbuciar algumas palavras, como “papai”, “sapo” e “gato”. Com um ano e três meses, no entanto, o progresso estancou. A palavra de ordem passou a ser regressão. Henrique parou de falar, parou de gostar do contato físico com outras pessoas e não olhava nos olhos de ninguém. Ao pegar objetos como celulares, por exemplo, não sabia o que fazer: apenas girava os apetrechos, independente do que fosse. Henrique passou a se afastar da realidade concreta como a conhecemos e imergiu em um mundo próprio, onde o entendimento do que é normal e diferente transcende conceitos prédefinidos. O primeiro pensamento da família ao receber o convite da psicóloga foi de que o comportamento de menino pudesse ter causado algum constrangimento. A hipótese de surdez foi levantada pela equipe da escolinha. O pequeno não respondia quando seu nome era anunciado durante a chamada ou quando os colegas o procuravam para brincar. Mas Mariana sabia que quando ouvia sons que considerava interessantes, Henrique os

seguia onde quer que fosse. A consulta no pediatra confirmou o esperado: a audição do menino estava perfeita. Foi então que Mariana expôs, pela primeira vez, as atitudes diferentes do filho a um profissional. “O médico disse que não podíamos descartar a hipótese de que ele possuía certo grau de autismo”, revela a mãe. As ideias incertas sobre o que consistia esta condição não facilitaram o início da busca por um tratamento. De início, o parecer do neurologista foi crucial para os passos seguintes. Depois, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae), acolheu Henrique e trabalhou para ajudalo a superar as dificuldades presentes em sua rotina. Para se reconectar com as percepções alternativas de Henrique, a família Braz vivenciou um processo de amadurecimento comportamental. Antes, achavam que as atitudes do menino diziam respeito à sua personalidade. Com o diagnóstico de autismo em mãos, a mudança de visão se tornou inevitável. Avó, avô, mãe e pai – mesmo que separados – passaram a ser mais afetuosos

com Henrique. No universo da criança, abraços e carinhos não eram compreensíveis. Muito menos importantes. Insistente, a família o agarrava com os braços e não soltava até que Henrique percebesse o afeto transmitido. “Hoje ele nos abraça e nos beija quando pedimos. Foi uma grande luta”, comemora Mariana. Aos seis anos de idade, Henrique ainda não falava. As palavras arriscadas no início de sua vida foram dissolvidas em memórias turvas e compreensões perturbadas. Com o tempo, veio o distanciamento das pessoas. Seja por desconhecimento ou preconceito, muitos optavam não interagir com a criança em determinadas situações. O medo do futuro levou a família a testar um tratamento com medicação em Henrique. Usada em casos de déficit de atenção, a Risperidona fez com que a dificuldade de organizar ideias fosse canalizada em afeto, e tranquilidade. Os resultados foram gritantes. Diálogos ainda são construções difíceis para o pequeno que, atualmente, tem oito anos. Porém, comunicar-se nunca foi tão fácil. “Ele responde quando perguntamos algo e sempre pede o que quer”, conta a Mariana, feliz com a evolução. Olhar nos olhos de outra pessoa não é mais um desafio para Henrique. Muitomenosestabelecercontatocom os demais. Servir mais refrigerante enquanto come, contudo, ainda é um pouco difícil. Mas ele consegue se virar. Em um jantar como outro qualquer, o avô resiste ao pranto do neto e pede que ele coloque mais bebida no copo por conta própria. “Me ajuda”, pede. “Tu consegues fazer sozinho”, rebate Hugo. Com esforço, Henrique pega a garrafa plástica de 600 gramas e derrama o líquido escuro no recipiente. Olha para o avô de uma forma doce e apaziguada, como se os traços de seus atentos olhos azuis agradecessem pelo gesto carinhoso. Talvez ele não saiba se comunicar como as outras pessoas, porém as atitudes do pequeno Henrique conseguem expressar mais do que muitas palavras dissolvidas em conversas efêmeras. Hoje, a única separação que ainda pertence ao seu universo é a do futuro. Incertezas, vitórias e sucesso. É impossível prevenir as ações do tempo sobre o destino do menino.


CaRoLINa SCHmIDt

a separação nas telas

De Woody allen a almodóvar, o tema é mostrado de diferentes formas em filmes CaroLINa SCHMIDT RepoRtagem

do exército alemão. Em meio a tantas coisas ruins, eis que ele aparece como uma esperança. Não foi á toa que conquistou a academia de cinema e levou sete estatuetas do Oscar. O segundo, Ondas do Destino, retrata a vida de um homem que trabalha em uma estação de petróleo e seu distanciamento da família. “Discute a dor da separação e como é restabelecido esse elo”, observa Reyes. 20 ANOS DEDICADOS AOS FILMES

Por 20 anos, ele conviveu com filmes de todos os gêneros e os assistia todos os dias, por ter paixão pelo cinema e para poder indicar aos clientes. Essa é parte da história de vida de Marcelo Fontella Hornos que foi sócio de uma videolocadora. Ele sempre estava pronto para auxiliar os cinéfilos de plantão que chegavam até o local. Há alguns anos, o estabelecimento encerrou as atividades. No entanto, quem passa pela rua Barão do Triunfo em Venâncio Aires, lembra das dicas de Marcelo sobre filmes. Quando o assunto é separação, ele recorda que a temática costuma ser apresentada nos longas de dramas. Mas, na opinião de Hornos, os longas que retratam a separação pela morte são os mais marcantes. Isso, porque as pessoas nunca estão preparadas para lidar com o fenômeno. “Até que nos provem o contrário é separação para todo o sempre”.

O filme Brinquedo Assassino 2 trouxe mais que a história do boneco possuído pela alma do serial killer Charles Lee Ray. Mostrou que a atriz relacionou o papel no longa com fatos da realidade. “Todo adolescente, que vive em orfanato ou não, sente-se isolado, separado, de alguma forma. Ao dizer as palavras e interpretar, o fiz da forma mais honesta possível”, contou Christine. Uma das cenas do cinema que marcou Christine sobre separação vem de 1987. O elenco é estrelar: Jack Nicholson e Meryl Streep. Em Ironweed, Christine lembra o momento quando o personagem de Nicholson vê a filha adulta, após anos de separação. “O desempenho dele é de coração e você sente, na cena, toda sua mágoa e perda. Parece que o único presente que ele pode dar à filha, é permitir que ela o odeie”, explica. Para a atriz, as pessoas costumam definir os filmes que retratam a separação de forma negativa, pois os indivíduos não rotulam estar longe de algo que se quer estar perto. “Isso, poderia, provavelmente, ser chamado de fuga”.

DIVuLgaÇÃo/bJoeRN KommeReLL

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as telas de cinema, ela aparece em filmes que abordam guerras, morte, viagens, divórcio, entre outros. Os roteiros passam pelas mãos de cineastas consagrados como Woody Allen e Pedro Almodóvar. Os assuntos relacionados às separações são abordados em qualquer país e filmografia. Especialista em cinema, o professor Josmar de Oliveira Reyes, traz explicações sobre o assunto que penetra no emocional dos apreciadores de filmes. A perspectiva de abordagem é diferente no caso dos Estados Unidos e Europa. “Como a questão autoral é fundamental como conceito no cinema europeu, ela costuma ser tratada de uma maneira mais contundente e profunda”, explica Reyes. Apaixonado pelo assunto, o professor da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), mantem o pensamento fixo nos exemplos de filmes e diretores europeus que surgem na mente, ao decorrer da entrevista. Cenas de Casamento do cineasta sueco Ingmar Bergam, surge para retratar a separação pela ruptura amorosa. Já a separação por meio da morte, é retratada em Gritos e Sussurros. O consagrado Pedro Almodóvar é apontado como o diretor europeu que traz esse assunto de forma mais dramatizada. Mulheres à beira de um ataque de nervos aparece na mente de Reyes como exemplo imediato. Já nos Estados Unidos, o assunto toma outros rumos. O destaque do professor vai para Woody Allen. Em comparação com Almodóvar, Allen retrata a separação nas telas mais próxima da realidade. Manhattan está na lista. E não para por aí. As guerras e os afastamentos que causam são também apresentadas em A Lista de Schindler de Steven Spielberg e em Ondas do Destino de Lars Von Trier. O primeiro traz a história do solidário alemão Oskar Schindlder que ajuda o povo judeu a escapar

ATUAR COM SEPARAÇÃO

Uma das atrizes que interpretou uma jovem separada dos pais que passou a viver em um lar adotivo foi a norteamericana Christine Elise. Com alegria e simpatia fala sobre o assunto direto de Hollywood. Em 1990, aos 25 anos, no papel da adolescente Kyle foi perseguida pelo boneco de cabelos vermelhos e olhos azuis que aterrorizou a infância a atriz Christine relaciona a interpretação da adolescente Kyle separada dos pais com fatos da realidade de muitos: o Chucky.


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Vida que se vê em sonho orlei da Costa, 43 anos, perdeu a visão aos 19 anos e hoje volta a ver, toda vez que sonha LETÍCIa WaCHoLz RepoRtagem

Q

uando dorme, Orlei tem um encontro com o passado. É no sonho que ele consegue dar cor e forma aos homens e as coisas. Quase todas as noites Orlei da Costa, 43 anos, volta a enxergar as imagens que ainda guarda na memória. Aos 19 anos, Orlei se separou definitivamente do mundo visível para encarar o mundo dos cegos. Uma atrofia no nervo óptico representou a maior perda de sua vida, em plena juventude. O diagnóstico de que seria uma separação gradativa e apenas do olho direito, em um ano e meio o levou a escuridão total. Dos dois olhos. Hoje é o itinerário do ônibus que direciona os passos de Orlei pelas calçadas de Venâncio Aires. Pelo barulho, ele separa a cidade em cima e embaixo. A técnica ele desenvolveu quando precisou da condução para ir trabalhar em uma empresa que fica na parte de cima da cidade. Para quem anda sozinho, diariamente, pelas ruas e, que chega na porta de casa depois de subir 21 degraus, as marcas deixadas pela separação da visão não são mais um problema. Teve superação, a começar por não ter tirado a própria vida. - Não quis mais viver. Pensei em me matar muitas vezes. A minha vida não tinha mais sentido.

Orlei teve preconceito de si mesmo. Não se aceitou cego, nem mesmo um homem de bengala. Naquele um ano e meio, o início foi de correria em busca de tratamentos com profissionais renomados de diferentes regiões do Rio Grande do Sul. A cegueira foi irreversível. Um médico disse que se tratava de um caso raro, porém, hereditário. Mas, enquanto um facho de luz ainda entrava em seu olhar, Orlei carregou esperança. - Não sei dizer porquê, mas toda vez que ia visitar meu pai, achava que eu chegaria lá e estaria enxergando. Talvez porque quando eu estava lá, eu lembrava da minha infância. Mas, os dias foram ficando mais cinzas e nublados. O trabalho que ainda lhe motivava, logo deixou de fazer parte de sua rotina, após uma demissão. O motivo não podia ser outro. Orlei não tinha mais condições de cumprir suas funções no descarregamento de caminhões de frangos em um abatedouro de aves. É da casa branca de madeira, as últimas imagens que Orlei registrou. Foi lá que se isolou por mais de quatro anos até ter coragem de sair de casa. - Vivia dormindo, dia e noite. Engordei muito mesmo. Foi minha vingança para tudo que estava acontecendo comigo.

SONHOS PARA ENXERGAR

de casa. Aos poucos, ele criou práticas e métodos próprios para Pouco antes de ficar cego, andar na rua. A audição ficou Orlei, que já era casado, chegou aguçada. Hoje ouve até um clipe a ver a barriga da esposa gestar cair no chão e sabe quando o o primeiro filho do casal: uma sinal do semáforo está fechado menina, que ele nunca pode ver. pelo barulho do motor dos Passados dois anos, o casal teve carros. Durante a entrevista, o segundo filho. Duas infâncias parou para fechar a torneira da que Orlei acompanhou apenas pia que pingava levemente. sentindo e ouvindo as risadas, Mas os anos escuros ficaram o choro e o leve toque no chão ainda mais difíceis anos depois, dos primeiros passos. com outra separação: a do Foi sonhando com os filhos casamento. Embora reconheça que ele descobriu que podia toda atenção e dedicação da enxergar novamente. Tatiane, mulher no período mais difícil a filha mais velha, hoje com de sua vida, ele acredita que o 24 anos, apareceu nos sonhos preconceito da própria mulher, de Seu Orlei, quando tinha por que não queria sair com ele na volta de dois anos. Foi neste mundo rua de bengala, motivou o fim impegável e imaginário - dos sonhos do relacionamento. - que o pai pode passear com a A temida bengala jogada filha sem medo de derrubá-la, atrás da porta se tornou o escudo. pegá-la no colo e levá-la até a Logo, ganhou reconhecimento escola. Pôde admirar o rosto nas ruas de Lajeado e sua angelical, o cabelo preto e a história passou a ser exemplo pele macia e branca. para todos, principalmente para Orlei lembra da noite como cegos que diferente de Orlei, se fosse ontem. Despertou da nunca conheceram o mundo pelo cama gritando: “Estou enxergando!”. olhar. “Hoje sou um vencedor e Depois de perceber que era sei que desafiei meus limites. apenas um sonho, Orlei sentou Sou feliz e aprendi a dar valor na cama e chorou. Contou para as coisas, mesmo não podendo a esposa, detalhadamente, os vê-las”. Quem o vê por aí pode traços da filha como viu no sonho. até desconfiar da deficiência. Um retrato-falado perfeito. Para Basta olhar para os olhos ele “foi coisa de Deus”. O mesmo grandes e castanhos de Seu aconteceu com o segundo filho, Orlei: Eles não guardam uma Jonata Douglas, hoje com 22 anos. marca se quer de cegueira. São A coragem demorou a perfeitos e guardam imagens chegar, mas tirou Orlei de dentro para Orlei continuar sonhando.


S

eu Orlei atualmente é um homem ativo na sociedade. Natural de Boqueirão do Leão, morou em Lajeado praticamente a vida toda. Se mudou para Venâncio Aires em 2012, após ser selecionado para uma vaga de auxiliar administrativo através de um programa para deficientes de uma fumageira. Em Lajeado que o avô de três netos mantém o posto de presidente da Associação de Deficientes Visuais. Embora saiba escrever normalmente, investiu em um curso de braille.

É por querer lutar pelos direitos das pessoas, especialmente dos trabalhadores, que Orlei resolveu voltar a sala de aula depois de muitos anos. Em 2012 iniciou o curso de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Orlei vive o segundo casamento. Desde janeiro oficializou o relacionamento com Suzana das Graças Amaro, de 29 anos, natural do Paraná, que também é cega. Eles se conheceram em um encontro nacional de deficientes visuais em

2012, no estado de Santa Catarina. Diferente dele, ela nunca conheceu as cores e formas. Perdeu a visão quando recém-nascida, quando estava na incubadora. Mesmo assim, Suzana é vaidosa e faz questão de ir ao salão fazer a sobrancelha e deixar as unhas pintadas, mesmo que ela, nem o marido possam ver. Como sempre morou com a mãe, a jovem, formada em Pedagogia e professora de braille, tem no marido o equilíbrio necessário para percorrer as ruas. “Antes era

minha mãe que fazia tudo, ela era meu espelho na hora de me vestir”, comentou Suzana. O passatempo do casal, que vive sozinho e se vira com todos os afazeres domésticos, é ouvir notícias e novelas. Na casa onde moram, nada mais que o necessário. Nada de luxo. Dois sofás, uma pia, um fogão, um rádio e uma televisão, uma mesa com apenas duas cadeiras. Nada é adaptado. Sem necessidade de deixar a luz ligada, no último mês, a conta não passou de R$ 13.


Hora da despedida

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ágrimas, abraços apertados, Aeroportos, rodoviárias beijos, expectativas de se e locais nem tão óbvios rever em breve, ou assim costumam simplesmente, um até logo!. ser cenários na hora de dizer adeus Basta chegar a lugares como o aeroporto, por exemplo, para observar quantas pessoas estão ANA CLÁUDIA MÜLLER dizendo adeus, cada um a seu REPORTAGEM modo e com um motivo. Em alguns casos, nem é preciso ir tão longe. Existem lugares que costumam passar despercebidos pela maioria das pessoas, mas para alguém em especial é cheio de lembranças, já que é ali que sua história de separação sempre acontece. O Unicom Separações saiu em busca dessas histórias de despedidas nos locais onde elas costumam acontecer, nos lugares marcados pelas separações.

18h25min - Terça-feira, 08/04 – Aeroporto Salgado Filho Fábio, Andréia e Patrícia se encaminham ao portão de embarque. Ali, Patrícia vai se despedir dos amigos, o casal Fábio e Andréia, depois de dez dias na capital gaúcha. A amizade entre eles começou graças a um interesse em comum: a dupla sertaneja Jorge e Matheus. Andréia e Patrícia são fãs daquelas que acompanham a dupla e ficam na porta do camarim para tirar fotos ou conseguir um autógrafo. E foi nesse cenário que se conheceram, há dois anos, num show em Florianópolis, Santa Catarina. Ao fim da apresentação, em meio ao empurra-empurra das fãs desesperadas para entrar no camarim, iniciou-se uma conversa. Elas passaram seus contatos virtuais e

logo começaram a trocar informações sobre a dupla. Combinaram de se encontrar no show dos sertanejos em Itajaí em maio do ano passado e, em dezembro, Patrícia foi a Porto Alegre para ver os cantores mais uma vez. Foi assim, aos embalos de Jorge e Matheus, que as duas se tornaram grandes amigas. Amizade essa denunciada pelas lágrimas na hora da despedida. Com a partida de Andréia, resta para as duas a comunicação virtual. “Nos falamos todos os dias no Facebook ou no Skype. Mesmo de longe, estamos sempre juntas”, conta Andréia, acenando pela última vez para Patrícia, antes dela entrar definitivamente no portão de embarque.


Ana Cláudia Müller

18h52min - Terça-feira, 08/04 – Aeroporto Salgado Filho Quem vê de longe, pensa que a advogada Emanuele, de Porto Alegre, e o administrador Leandro, de São Paulo, se conhecem há muito tempo. Sentados perto do portão de embarque, os dois conversam animadamente. Depois de alguns minutos de sorrisos tímidos, gargalhadas, mexidas nervosas no cabelo e sussurros ao pé do ouvido, a dupla se despede. Ao contrário do que a intimidade entre eles sugere, essa foi a primeira vez que os dois se encontraram, mas desde o começo do ano Emanuele e Leandro conversam pela Internet. Eles se conheceram graças ao Tinder, um aplicativo para celular, no qual os solteiros podem encontrar pessoas que atendam suas exigências em uma distância determinada. Quando ambos se interessam pelo perfil um do outro, abre uma janela para começar um bate-papo. E foi exatamente isso que aconteceu com Emanuele e Leandro. A conversa que iniciou graças ao aplicativo, logo

evoluiu para chamadas de vídeo no Skype e mensagens ao longo do dia no celular. Não se sabe se por sorte ou com a mãozinha de um anjo da guarda, nesse caso o chefe de Leandro, mas finalmente surgiu para ele mais um compromisso de trabalho em Porto Alegre. Era a oportunidade para os dois se conhecerem pessoalmente e foi o que aconteceu. Como não tinham muito tempo, já que Leandro chegou pela manhã e voltaria a São Paulo no avião das 19 horas, eles só conseguiram almoçar juntos e depois conversar um pouco mais no aeroporto. Mas, o tempo havia se esvaído e Leandro precisava partir. Não sem antes fazer uma promessa: “eu venho passar a Páscoa contigo”. Na despedida, um abraço e um “até logo”, nada mais que isso. Ao vê-lo partir, ela desabafa: “ele é melhor do que eu imaginava”. Com o riso solto e quase flutuando, Emanuele vai embora, na expectativa que essa Páscoa seja especialmente doce.

20h33min - Terça-feira, 08/04 É a terceira vez em três dias que Adão e Leia vão ao aeroporto. No final de semana, houve um casamento na família e os três filhos do casal foram a Porto Alegre para brindar com o primo. Passada a festa, hora da partida. No domingo, o filho Paulo, sua esposa e os netos voltaram a São Paulo. Já na segunda, a filha Ellen voltou a Florianópolis. Na terça, era a vez de Laiza, a filha caçula, 14 anos mais nova que o irmão mais velho, partir para Maringá, no Paraná. Percebendo que os pais se entristeciam a cada nova partida, Laiza tentava consolá-los com frases como: “mãe, pensa que pelo menos nós três estamos felizes” e “a gente se fala por Skype, pai!”. O casal teve que aprender a usar a Internet para encurtar a distância com os filhos através do Skype, esse sim, o verdadeiro atenuante da saudade. Quando Paulo, o mais velho, saiu de casa, a única forma de comunicação era através

– Aeroporto Salgado Filho de cartas e, desse tempo, o casal não sente falta. “Agora, com essas tecnologias, a gente consegue acompanhar os netos crescendo e pode conversar com calma com os filhos”, conta Leia. Ao perceberem que está na hora de Laiza partir, repetem o que já foi feito nos dois dias anteriores. Abraçam-se e apesar das lágrimas correndo, não se esquecem das recomendações típicas dos pais, “filha, se cuida!”, e fazem o pedido final: “liga quando chegar em casa?”. O casal quase perdeu o filho Paulo num acidente de carro em 1998 e, desde então, só se tranquilizam quando o telefone toca. A filha concorda, vira as costas e vai decidida para não prolongar o sofrimento. O casal sobe as escadas, dirige-se a janela panorâmica do aeroporto de onde é possível ver o avião partir. Ficam ali, quietos, de mãos dadas, observando a sua caçula mais uma vez ir embora. Mais uma vez, ficaram só os dois.


andréia mostra fotos com o ídolo Jorge

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Cátia não tem a sorte de muitos, não pode levar o seu amado ao aeroporto e vê-lo partir. é em frente ao prédio que mora que ela e thiago se despedem. mais uma vez. Desde que se conheceram, no Carnaval em Jurerê, Santa Catarina, dizer adeus se tornou rotina para os dois. a história do casal mais parece um conto de fadas, onde Cátia é a Cinderela e thiago, o príncipe encantado. a semelhança com a história da gata borralheira se dá porque o romance também se iniciou por causa de um sapatinho. Nesse caso, a moça prendeu o salto entre as tábuas do chão da festa em que estavam e o moço, mais que prontamente, lhe ajudou a retirar. os dois começaram a conversar e logo engataram o namoro. mas, no caso deles, a grande vilã da história não é a madrasta malvada. é a distância. enquanto Cátia mora em Santa Cruz do Sul, thiago vive no Rio de Janeiro. mas pra eles isso não foi impedimento. Desde então, thiago vem toda semana para a cidade ver a moça, mesmo que o tempo seja curto. Nesse final de semana, por exemplo, ele chegou a Santa Cruz às 3 da manhã de sábado para ir embora ao meio dia de domingo. e na hora de partir, o ritual sempre se repete. os dois se despedem ali mesmo, na calçada, frente ao prédio onde mora Cátia. Com o coração apertado, o príncipe vira as costas e dirige-se até o seu cavalo branco, um carro alugado no aeroporto de porto alegre. os dois se olham pela última vez, até que ele toma coragem pra partir. Ela fica ali, vendo ele ir embora, de novo. Nessa história o Skype é a fada madrinha e se espera, que assim como nos contos de fadas tradicionais, o final seja um “felizes para sempre”.

emanuele não esconde o sorriso ao conhecer Leandro

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11H45MIN - DOMINGO, 30/03 - CALÇADA EM FRENTE À CASA DE CÁTIA

O casal Adão e Leia olha pela janela o avião em que a filha parte


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permanecer nela, mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que é preciso viver. Ela começou a trabalhar como auxiliar de cozinha em uma creche, e ficou lá por 26 anos. Tinha acabado a 8ª série, e com 16 anos ajudava as professoras titulares com as crianças. No outro ano assumiu o berçário e fez faculdade de Pedagogia e duas pós-graduações: Educação Especial e Educação Infantil. Rozi viveu neste ambiente metade da vida: ent rou adolescente e saiu com 42 anos. Adorava o que fazia. Amava o local de trabalho e tinha se acostumado com aquela rotina, da qual gostava demais. Resolveu então prestar concurso público para educação infantil para garantir o futuro, pois corriam boatos de que a escolinha iria fechar as portas. Ela ficava dividida. Estava tão

VaNIa SoaReS

VaNIa SoaReS

o dicionário a palavra apego significa: sentimento de afeição, de simpatia por alguém ou alguma coisa. E é por ai o começo da matéria. Não é tarefa fácil desapegar de algo, ainda mais quando há tanto sentimento envolvido. Separar do trabalho, das pessoas e do ambiente em que se vive traz à tona turbilhões Separar de algo é difícil, de questionamentos e sensações. ainda mais quando A separação pegou de surpresa acontece de forma uma professora, um radialista e inesperada um técnico agrícola moradores de Rio Pardo e um jornalista renomado do Rio de Janeiro. Eles VaNIa SoarES não se conhecem, mas viveram RepoRtagem situações semelhantes: foram obrigados a deixar de fazer o que mais gostam. Morena, sorridente, alegre e de bem com a vida, Rozi Figueiredo sofreu ao sair da sua zona de conforto. A educadora acredita que sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final e se insistirmos em

acostumada com aquela rotina, que não conseguia imaginar seu mundo sem essa realidade. Considerava o local sua segunda casa. Tinha o reconhecimento dos alunos, administradores e dos pais das crianças. Foi chamada para assumir uma escola municipal e foi então que a casa caiu, em todos os sentidos. E agora? Abandonar o que amava ou pensar na estabilidade oferecida ao ingressar na carreira de funcionária pública? Para ir se acostumando com a ideia a professora, começou a levar aos poucos seus objetos pessoais que, ao longo dos anos, foram guardados em uma caixa especial. Ali havia materiais didáticos e escolares que lhe pertenciam, mas tinha algo a mais: sua vida de educanda estava toda guardada ali. E Rozi sabia que se levasse tudo de uma só vez, estaria levando toda a sua história em um

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Cedo demais para dizer adeus


No dia 28 de agosto de 2007, Derozi estava trabalhando no interior do município e, na volta, ao chegar no escritório, foi informado pelas colegas de que havia chegado um e-mail falando de sua demissão. Na ordem estava escrito: “não precisa mais trabalhar a partir de amanhã”. Ao ver aquilo, ficou sem reação. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. O impacto foi grande, tanto no financeiro como no psicológico. Derozi é aposentado e acredita ser este o motivo de sua demissão. Com 52 anos na

época, ele ficou sem chão. As filhas estavam na faculdade, tinha contas a pagar e na hora bateu o desespero. Foi preciso vender a casa própria para honrar os compromissos. “Nós não estávamos preparados para isto”, diz o homem de cabelos grisalho, muito falante e de excelente memória. Foram noites de insônia e preocupação com o futuro. O que o motivou a tocar a vida foi sua família e a fé em Deus. Ainda existe a mágoa. Mágoa da desvalorização com os profissionais da entidade. ”Ficaram sequelas. Sequelas

muito fortes que não sei se apagarão”, diz com olhar vago para a paisagem. Mas ele a credita que Deus é maravilhoso. Mesmo com um físico pequeno, ele se considera forte. “Só os fracos se entregam, mas eu não sou fraco”, enfatiza. Acha que não superou ainda a saída deste trabalho. Derozi adotou Rio Pardo e solidificou amizades perduradas até hoje. Volta à sala para degustar o chimarrão e encerra a entrevista garantindo que, na vida, sempre virão coisas boas logo ali, além da paisagem vista da sua sacada.

COISAS BOAS VIRÃO A história de Rozi, de certa forma, se confunde com a do técnico agrícola. Da sacada da casa, o profissional aprecia a paisagem da vida urbana quando a reportagem chega. É natural de Coxilha das Flores, zona rural de Canguçu. Formou-se em Pelotas, trabalhou na Emater em Rio Pardo, por 30 anos, 6 meses e 28 dias, como faz questão de lembrar os números exatos.

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rompante brusco e doloroso. Por isso, resolveu levar aos poucos, para ser menos doído. No dia 27 de julho de 2012, levou de vez todas as lembranças. Antes de sair, com as recordações nas mãos e a sala vazia, parou por alguns instantes para se despedir em silêncio, daquele espaço onde viveu tantas emoções em 24 anos de trabalho. Olhou para a janela e se lembrou de quantas coisas passaram por aquela aresta. Olhou os fantoches e enxergou cada momento dividido entre ela e seus pequenos, os livros expostos na estante, cujas muitas mãozinhas os tinham tocados. Só não levou um coração colado na parede que tinha feito alguns anos atrás com os alunos. As duas primeiras semanas pós-creche foram terríveis, palavras da própria professora. Chegava em casa e desabava. Chorava muito. Pensou até em não voltar mais. Teve insônia. Pela manhã, ao acordar, sentiase triste, a angústia lhe invadia o peito e com ela outras sensações como medos, inseguranças e incertezas. Por pouco não entrou em depressão, pois não sentia prazer em ir trabalhar. Não tinha vontade de sair da cama. Com sua saída da escolinha, melhorou a situação financeira, a carga horária e a segurança do emprego, mas, ao mesmo tempo, separar-se do apego lhe doeu: “Sentia-me parte daquilo”, disse, emocionada. A professora de 45 anos não casou e não teve filhos por opção, mas dedicou parte da sua vida às crianças. No final de 2013 a instituição fechou definitivamente e, antes disso acontecer, ela foi buscar o coração. Um símbolo feito de borracha que representa o amor da rio-pardense pela creche. Partiu com vontade de ficar.


A idade o afastou do jornalismo E aqueles que se dedicam por longos anos a um trabalho e é chegada a hora de se despedir por causa da idade. O que passa na cabeça da pessoa nesta hora? Foi por causa desta questão que fui atrás de uma referência no jornalismo: Cid Moreira. A primeira fonte que pensei ao ser designada para fazer esta matéria. Mantive contato pelas redes sociais. Ele muito solícito e prestativo, me ajudou em tudo que precisei. COMO SE SENTIU AO SER AFASTADO? Não é uma sensação agradável, apesar de que eu sabia que isso iria acontecer. Eu estava chegando próximo dos 70 anos e sei que isso faz parte da vida. COMO VOCÊ FOI AVISADO SOBRE SUA SAÍDA DA BANCADA DO JORNAL NACIONAL? Meu chefe, o Armando Nogueira, me chamou na sala e me disse que teria que me dar algumas notícias importantes sobre o que a diretoria da Globo estava decidindo sobre minha permanência na empresa. Eles iriam aumentar meu salário e diminuir meu volume de trabalho, deixando somente minha participação no Jornal Nacional através de um editorial a cada noite. QUAIS FORAM OS MOTIVOS DA SUA SAÍDA? Primeiro a idade. Na Globo, costumam aposentar os funcionários que chegam aos 70 anos. Depois a renovação dos apresentadores e mudanças no modo de apresentação, tornando o Jornal Nacional mais solto, menos informal. QUAIS FORAM AS PRIMEIRAS SENSAÇÕES AO RECEBER A NOTÍCIA DE QUE NÃO IRIA MAIS APRESENTAR O JORNAL NACIONAL? É péssimo. Parece que perdemos o chão. Eu estava com boa saúde e só pensava: O que vou fazer agora? COMO FORAM OS PRIMEIROS DIAS LONGE DA ROTINA DE REDAÇÃO E BANCADA? Primeiro foram enxurradas de entrevistas em todas as mídias. Depois quando tentei montar uma rotina, fui fazer academia justamente à noite. Na hora do Jornal, para não ficar chateado. APÓS SUA SAÍDA QUAIS ERAM SUAS PERSPECTIVAS EM RELAÇÃO AO JORNALISMO? Pouco tempo depois fui convidado por uma empresa para gravar CD’s bíblicos. Então, comecei a achar o meu eixo de novo. Não demorou muito e fui convocado para trabalhar gravando o Fantástico. Na verdade não parei muito não. Apareceram muitos convites para eventos e até hoje é assim. QUAIS AS CONCLUSÕES TIRADAS APÓS UMA ROTINA DE 27 ANOS DE TELEJORNAL? Precisamos ter outras atividades fora do trabalho. Se não a gente se perde mesmo. Perde o ânimo. Dá até para entender porque tantos homens acabam envelhecendo mais rápido depois que se aposentam.

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Deixar o apego de lado nem sempre é fácil, em especial quando o que se faz é mais que um trabalho. O radialista Edson Menezes, de Rio Pardo, começou a carreira de radialista com 17 anos, em junho de 1987. Não tinha nenhuma experiência quando entrou na Rádio Rio Pardo, emissora AM da cidade. Nunca se imaginou atuando na área de radiodifusão. Começou como operador de áudio e, mais tarde, foi lhe dado uma chance para a locução. Apresentava dois programas de grande sucesso. Amava e se dedicava aquele trabalho que considerava a sua vida. “Trabalhar e fazer rádio para mim era, e é, algo carregado de significados. É muito mais que trabalhar. O rádio tem o poder de me ligar a mim mesmo”, declara o pouco falante, cabelos grisalhos e carrancudo rapaz. Ele permaneceu lá por 14 anos. Em 2001, houve mudanças internas e Menezes foi desligado da rádio. A notícia foi dada de forma fria e direta; sem muitas explicações. Foi separado daquilo que mais gostava de fazer. Aconteceu uma ruptura, a vida se quebrou e as dores surgiram. O comunicador não acha palavras quando fala de si mesmo, não sabe explicar quais foram os primeiros sentimentos que sentiu. “Quase todos”, disse. A tristeza foi o maior. “Todos eles permaneceram comigo por um bom tempo”, enfatiza o locutor. Depois, deu lugar a esperança de algum dia retomar os trabalhos na comunicação. Ficar longe do microfone para o comunicador foi um período de aprendizado, ou seja, precisou reaprender a viver. O corpo teria de se adaptar a um novo jeito de vida e a alma teve de ser trabalhada. Aprendeu que a separação precisa vir seguida da palavra superação. Nunca deixou de acreditar que voltaria para o rádio. Hoje o radialista voltou a sorrir. É locutor na Rádio Mais FM de Rio Pardo, e conseguiu resgatar seus ouvintes. Isso trouxe de volta sua confiança e autoestima. Hoje, todos eles estão bem profissionalmente. A professora Rozi já está adaptada com seus novos alunos e seu ambiente de trabalho, o técnico Derozi trabalha na secretaria da agricultura e Edson atua na emissora FM de Rio Pardo. A vida lhes reservou surpresas, lhes tirou algo do qual veneravam, mas em nenhum momento deixaram de acreditar que coisas boas estariam chegando, e foi assim que aconteceu. As lembranças ainda estão bem vivas em suas memórias, mas a vontade de seguir em frente fez a diferença.

DIVuLgaÇÃo/o gLobo

DA SEPARAÇÃO À SUPERAÇÃO



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