Revista Exceção- 2015

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EXCEÇÃO Revista- laboratório do Curso de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul - ANO 11 - nº 11


A EQUIPE: Editor-chefe: Ricardo Duren Chefe de redação: Diana Azeredo Sub-editora: Julianne Wagner Diagramador: Frederico Silva Revisoras: Cleonice Goerck, Diana Azeredo, Maria Helena Lersch e Roberta Kipper Editora de fotografia: Francieli Graff Editores de multimídia: Daniela Lemes, Guilherme Bica e Maria Helena Lersch

UNISC - Universidade de Santa Cruz do Sul Av. Independência, 2293 - Bairro Universitário Santa Cruz do Sul - CEP 96815900 Curso de Comunicação Social Jornalismo Bloco 16 Telefone: (51) 37177383 Coordenador do Curso: Hélio Etges

Impressão: Grafocem Tiragem: 500 exemplares Capa: Francieli Graff Contracapa: Francieli Graff Blog: revistaexcecao.blogspot. com Esta revista foi produzida na disciplina de Jornalismo de Revista, ministrada pelo professor Ricardo Duren.

EXPEDIENTE


EDITORIAL As histórias deles e os desafios nossos

A turma assumiu o desafio: produzir uma edição da Exceção que questionasse, problematizasse, contrapusesse. As narrativas pessoais deveriam ser complementadas com depoimentos de especialistas e todas as informações, claro, organizadas e apresentadas no estilo literário. Ao leitor, queríamos oferecer o resultado de uma apuração densa, aprofundada. Queríamos e continuamos querendo. Assim, é com satisfação que contamos e contextualizamos, nas próximas páginas, muitas histórias. São alunos integrantes de uma banda marcial, jovens que optam pela vida no campo, uma gaúcha que respirou os ares revolucionários de Woodstock, o futuro do socialismo, mulheres que debatem sobre conceitos de beleza e consumo, um ciclista aventureiro que encontra nas viagens um sentido para a vida... Existem também o caso dos homossexuais que erguem a bandeira do Rio Grande do Sul com uma mão e a bandeira do movimento LGBT com a outra, da mãe que virou especialista em autismo e viu no diagnóstico do filho a motivação para mudar de carreira, de pessoas que sofrem com distúrbios do sono, da devota que se submeteu à cirurgia espiritual para curar a dor intensa no joelho e das vítimas de acidentes de trânsito em uma das principais rodovias da nossa região. De cada narrativa, emerge emoção, desafio, superação, enfim, traços da fascinante trajetória humana. Entre nós, também tivemos exceções: um colega que, devido a uma fratura no tornozelo, teve que deixar a turma; e um editor de jornal que estreou como professor da disciplina de Jornalismo em Revista. Ao Felipe e ao Ricardo, assim como a Cleonice, Daniela, Francieli, Frederico, Guilherme, Jaqueline, Julianne, Maria Helena, Roberta e Rodrigo fica a gratidão pela parceria e o elogio pelos esforços somados nesse semestre. Foi uma honra compartilhar esse desafio com vocês!


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Revista Exceção - Dezembro de 2015


06 09 15 19 25 29 37 42 47 51 53 56 58 63

ROTINA X AVENTURA EM BUSCA DE UMA NOVA HISTÓRIA ENTRE A ROTINA E O SONO A FÉ QUE CURA QUANDO A OPÇÃO É FICAR BELAS E FERAS A VIDA E O MUNDO APÓS WOODSTOCK SOCIALISMO NO SÉCULO XXI ORGULHO E PRECONCEITO O RELATO DE UMA DENTRE TANTAS TRAGÉDIAS MÚSICA NO AMBIENTE ESCOLAR CRÔNICA ENSAIO FOTOGRÁFICO RESENHA

Divulgação /Free Pik


Arquivo Pessoal O aventureiro Jefferson Schley Machado

ROTINA X AVENTURA Uma nova forma de aproveitar a vida DANIELA LEMES

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Há quem acorde em uma segunda-feira disposto a dar início a mudanças de vida. Tudo pode ter um rumo diferente em um dia de sol, ou pode acontecer em um de chuva, em um domingo ou uma quarta-feira, mas a transformação começa pela sede de novos hábitos, de nova vida. Há os corajosos que buscam, reinventam, se moldam de outras maneiras e aos poucos se tornam exceções no meio em que vivem. Já pensou que loucura seria largar sua rotina, seu futuro programado por uma aventura? Poucos fazem, mas esses se dizem felizes pelas escolhas e garantem sentir a plenitude de uma íntima e nova vida. Ser exceção é buscar aquilo que ninguém tem coragem de fazer. Ou aquilo que os outros até pensam em fazer, sendo impedidos por um botão automático que faz as pessoas seguirem a programação diária. Quem arrisca fazer de forma diferente do que a rotina impõe, pode ser chamado carinhosamente de, nada mais nada menos que, louco. Em um mundo de despertador com hora marcada até para tomar re-

médio, tem aquele que em 1993 descobriu a paixão pelas duas rodas e foi tão longe, que viajou mais de três mil quilômetros sobre uma bicicleta. Aos 14 anos, Jóbio de Moraes Teixeira ganhou a primeira bike e, junto com os amigos, organizava passeios pela região de Rio Pardo, cidade onde mora. Já aos 37 anos, ele realizava o sonho que iniciou ainda na adolescência: conhecer cidades, estados e países com sua fiel escudeira, a bicicleta. A meteorologia mostrava um verão intenso no Rio Grande do Sul, mas isso não assustou o aventureiro. Sob o forte calor que fazia em Rio Pardo, em 15 de janeiro deste ano, Jóbio iniciava a viagem mais esperada de sua vida. A bicicleta estava equipada, assim como o corpo e a mente estavam preparados. A viagem seguiu pelo Rio Grande do Sul, passando pelo o Uruguai, até chegar a Argentina. O retorno foi em fevereiro, com a bicicleta no bagageiro do ônibus. Viajar faz bem à saúde, segundo estudo britânico publicado no jornal Daily Mail. Muitas pessoas sabem do quanto é bom viajar, sair da zona de conforto, conhecer o novo. Mas

por que não de avião, ônibus ou carro, e sim bicicleta? Jóbio acredita que o fato de ter escolhido este meio de locomoção, está na sua característica de liberdade: “A procura de autoconhecimento, de enfrentar o desconhecido, os medos, de conhecer a Patagônia e os países vizinhos, vendo o mundo de uma forma mais lenta e detalhada, e a bicicleta nos proporciona tudo isso... É um tempero na vida”. Pode-se confundir liberdade com “coisa de louco”, como o Jefferson Schley Machado já foi identificado. Técnico de enfermagem, acostumado a cuidar de muitas vidas, ele sempre é questionado sobre o que motivou arriscar a própria, com esportes radicais. Trata-se de um hobby que começou em 2005 aos finais de semana, para espairecer, e hoje é profissão. Théo Machado, como é conhecido entre os colegas de escalada, garante que o gosto pelo esporte aumenta gradativamente junto à vontade de desafiar a si mesmo. “Eu diria que descobri o amor pela vida quando comecei a praticar esporte na natureza”, garante.

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Jóbio de Moraes Teixeira: paixão incondicional pela aventura em duas rodas


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O técnico de enfermagem não deixou de se entusiasmar com a chance de salvar vidas. Ele é socorrista de uma empresa que oferece serviço de atendimento pré-hospitalar em rodovias, mas concilia com o prazer de ser profissional na área do turismo de aventura. Desde 2010, tem sociedade em uma operadora de ecoturismo, a UP Aventuras. Uma nova rotina, uma nova vida, ser pessoas incomuns na sociedade que vivem, gera muito mais alvoroço do que ser caracterizado como “normal”. Jóbio e Théo são exceções. Decidiram se encontrar neles mesmos, quando agiram para realizar os desejos que sempre tiveram. Segundo a psicóloga Êmilli Panichi, cada um sabe o que é bom para si. “O ser humano busca o seu conforto, e cada um sabe o que é confortável para si. Caso ainda não saiba, as buscas uma hora iniciarão. Conforto não é sinônimo de estagnação”. A viagem de mais de três mil quilômetros pedalando por três países em

2015. Foi o ápice da vida de Jóbio Teixeira até o momento. Em 2013, Théo Machado escalou o Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, que tem 360 metros, e considera uma realização pessoal. Há sempre aqueles que dizem em um bate-papo informal entre amigos: “Depois que tu faz uma viagem, vai querer fazer sempre”. E unindo esse conselho, com os próximos passos, ou melhor, pedaladas e escaladas, a dupla já idealiza o futuro. Théo se prepara para começar a praticar outra modalidade do montanhismo. Agora, é a vez da escalada em montanha de altitude. “A ideia é que isso se realize em fevereiro de 2016. Esse seria meu objetivo mais próximo”. Jóbio não tem um destino certo, mas quer continuar pedalando e focado no seu novo empreendimento, a loja Bike em Rio Pardo, além de escrever um livro com suas peripécias. Desafiar a si mesmo. Buscar liberdade. Realizar sonhos. Dar valor às pequenas coisas. Liberdade. Théo Machado valoriza o

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simples: “Passei a deixar de dar valor para coisas que hoje não fazem o menor sentido para mim. E comecei a dar valor, para coisas que sempre tiveram valor. A vista do alto de um morro, um acampamento com os amigos”. A realização para Jóbio Teixeira é sobre duas rodas: “você não pode comprar felicidade, mas pode comprar uma bike que é quase a mesma coisa”. Para a psicologia, segundo Êmilli Panichi, a felicidade é rotina e cada ser humano sabe onde está o melhor para si mesmo: “Temos uma linha que separa o que realmente queremos daquilo que nos foi imposto, a felicidade tem um significado para cada um de nós, assim, o que encoraja alguém para exercer uma função cheia de detalhes, exigências e responsabilidades é o que encoraja alguém a sair pelo mundo buscando seu bem estar biopsicossocial. Ser feliz é regra. Agora, como cada um busca esse caminho, ah, isso é essencialmente particular”.


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EM BUSCA DE UMA NOVA HISTÓRIA A decisão mais comum não os convenceu. Optaram por mudar, por se reinventar em prol do filho e da avó GUILHERME BICA


O ano era 2009. O Airbus da companhia Air France, que faria a rota Rio de Janeiro – Paris caia em meio ao Oceano Atlântico e deixava 228 mortos. O vírus da Influenza A(H1N1) causava pânico. Uma nova gripe que matava em pouco tempo assustava pelo grande número de vítimas. Em Washington, Barack Obama tomava posse e tornava-se o primeiro negro a assumir a Casa Branca. Em Los Angeles, morria o rei do Pop Michael Jackson. No Rio de Janeiro, o Comitê Olímpico Internacional confirmava a Cidade Maravilhosa como sede das Olimpíadas de 2016. Já na capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, em meio a tragédias e conquistas que marcavam aquele ano, uma mãe encontrava um motivo para mudar. E, por amor. Um diagnóstico faria com que a então artista plástica Claudia Zirbes, de 37 anos, se reinventasse. O pequeno Guilherme, de 1 ano e 9 meses, seu terceiro filho, era autista. Começava ali uma rotina de estudos e dedicação da mãe, que com brilho nos olhos, conta o início desta jornada. “Rapidamente entendi que tudo que ele precisava era um diagnóstico preciso, uma intervenção intensa e precoce. E ninguém parecia entender e muito menos oferecer isso. Passamos por incontáveis avaliações com neurologistas, psiquiatra, psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogas e após dois anos do diagnóstico eu entendi que buscava o indelegável”. O período que ela define como de muitas dúvidas, pouquíssimas respostas e absolutamente nenhuma certeza ia chegando ao fim. A falta de conhecimento em autismo justamente por aqueles que deveriam oferecer serviços para o seu filho foi deixada de lado. Claudia buscou na formação em psicopedagogia e em palestras mundo afora, a solução para os seus questionamentos. Lar10

gou de vez a carreira em ascensão como artista plástica para se especializar e se dedicar no desenvolvimento do filho Guilherme. “O curso contribuiu através de alguns referenciais teóricos para que eu adquirisse uma visão mais organizada do desenvolvimento humano, o que me ajudou a entender as lacunas, desvios e excessos que ocorrem com o desenvolvimento atípico característico do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Ainda hoje conto com suporte especializado, mas as decisões sobre a intervenção do Gui são por conta da família. Fiz muitos cursos no Brasil, alguns no exterior e “MEU FILHO, NÃO TENHO DÚVIDA QUE ESCOLHEMOS VIVER ESTA VIDA COMO MÃE E FILHO, TAMPOUCO DUVIDO DO QUÃO EVOLUÍDO É TEU ESPÍRITO DADA A GRANDIOSIDADE DA TUA MISSÃO. UMA PARTE DESTA MISSÃO TEM SIDO ME ENSINAR SOBRE ESTE MUNDO, QUE AS VEZES EXAGERA NA HOSTILIDADE, MAS UM MUNDO QUE CERTAMENTE FICOU MELHOR COM A TUA EXISTÊNCIA”. Claudia Zirbes ainda leio diariamente sobre o tema”. Os questionamentos e dúvidas a respeito do autismo são comuns. A medicina associa o TEA à deficiência intelectual, dificuldades de coordenação motora e de atenção. A criança nasce com autismo e carrega a doença ao longo da vida. A Organização das Nações Unidas (ONU), estima que no Brasil, mais de 2 milhões de crianças sejam portadoras da doença. Porém, a mesma fonte aponta que 90% ainda não foram diagnosticados. Para a Psicóloga Jociane Stracke a decisão de Claudia foi fundamental. Em casos como este, os pais costumam deixar os filhos sob

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os cuidados de especialistas. Ter o acompanhamento de um familiar que entenda o que se passa com o parente é essencial para o desenvolvimento do mesmo. “A criança sente-se mais confortada com seu familiar, pois tem algum vínculo. É uma relação onde há respeito, acolhida, apoio, afetividade, carinho, consideração ao sujeito independente da reação aos acontecimentos da vida”. A psicologia encara a decisão de Claudia como acertada, mas não comum. Muitas pessoas com familiares que necessitam de acompanhamento diário optam pelos cuidados de profissionais especializados. Isso pode ser motivado pela necessidade de priorizar o trabalho e também por se acreditar que a dedicação ao parente não vai colaborar ou influenciar no tratamento. Segundo Jociane Stracke, a condição financeira da família influencia. “Vejo famílias tentando se organizar diante das doenças e muitas angustiadas por não poderem cuidar de seus entes, seja por seus trabalhos, fases familiares e profissionais, relações com familiares escolhidos, distância de residências ou até mesmo a condição financeira.” Apesar disso, Jociane afirma que a postura adotada por Claudia diante do diagnóstico de Guilherme foi motivada por outro fator. “É a ideia da maternidade, a de ser responsável pela vida de alguém”. Passados sete anos, Gui, como é carinhosamente chamado pela mãe, segue com muitas lacunas no desenvolvimento a serem trabalhadas. Claudia salienta que o autismo do filho não é leve e o trabalho é diário. A melhora sob os cuidados da mamãe é nítida, e passa muito pela comunicação. Hoje, com oito anos, Guilherme é capaz de comunicar muitas coisas verbalmente, mas até os quatro ele não falava nenhuma palavra. Com um sorriso no ros-


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to, a mãe diz: “O Gui atende bem aos comandos. Incluo-o nas rotinas da casa para que ele exerça um papel ativo na família, e te digo que por vezes ele é melhor que as minhas duas adolescentes juntas”. A convivência diária faz a mãe e especialista em autismo perceber também algumas dificuldades do filho. Gui sabe das suas limitações, o que faz a ansiedade se manifestar juntamente com com problemas relativos ao processamento sensorial, algo típico nos autistas. “A forma como ele integra as informações nos sistemas auditivo, visual, olfativo, tatil, gustativo, proprioceptivo e no sistema vestibular (equilíbrio) não é adequada e, desta forma, a leitura que ele faz do mundo é diferente da nossa. O mundo é o mesmo, mas a forma de percebê-lo é outra”. O acompanhamento diário, que faz a mãe perceber todas as mudanças ao longo do tratamento, a enche de orgulho. O café da manhã é como

manda a tradição, com toda a família reunida. Ainda antes do almoço, uma auxiliar terapêutica trabalha na casa dos Zirbes. Quando o relógio anuncia o meio dia, o encontro volta a se repetir, com a exceção do pai, que devido ao emprego não consegue participar do momento. Na parte da tarde, Guilherme frequenta a escola, das 13:15 às 16:15. Após, a mãe entra em ação novamente. “Busco na escola e fazemos diversas atividades juntos. Procuro encontrar prazer para ambos neste período. Fazemos bolo, vamos ao parquinho, passeamos no shopping, recebemos alguma visita ou visitamos alguém”. Já quando o sol se põe, Gui ajuda na rotina da casa. A mesa do jantar é ele quem organiza. A noite que segue serve para todos aproveitarem e curtir o caçula. O final de semana também é em família. Sempre há alguma programação: circo, cinema, parque de diversões, museu, etc. “Vou com meu marido ou com alguma amiga mãe de

outra criança com autismo”. A especialização obtida ao longo da rotina e dos estudos faz Claudia passar a experiência adiante. Atualmente, faz parte do Instituto Autismo e Vida, grupo sedeado na zona norte de Porto Alegre. O principal objetivo é garantir o direito das pessoas com autismo e disseminar conhecimento com intuito de diminuir o preconceito e aumentar as oportunidades para os indivíduos com TEA. “Queremos que eles possam exercer um papel ativo na nossa sociedade, que tem uma dívida histórica com pessoas com o transtorno que antes eram excluídas ou segregadas em instituições. Muitos autistas não perderam sua inteligência, perderam sim sua habilidade de demonstrar suas capacidades através das formas com as quais estamos acostumados. E ter a oportunidade de ajudar outras famílias contagia a mãe com um sentimento, o orgulho. Ao olhar para o passado, Claudia vê a mudança


radical de sua vida e tem certeza de que se preciso, faria tudo de novo. “Precisei me reinventar através da aceitação desta nova realidade. Sou mãe de um menino com autismo e apesar de eu não ser capaz de agradecer pelo autismo dele eu posso agradecer pelas transformações que isto trouxe para nossas vidas. Cresci muito e me orgulho de quem eu sou. Orgulho-me dos novos valores que permeiam nossa família, me orgulho dos novos amigos e não sinto falta dos que se afastaram. Orgulho-me por ter uma razão para acordar diariamente com disposição para ajudar o meu filho e mais um monte de pessoas ligadas ao autismo”. O convívio com o filho fez a mãe entender o real sentido da vida. Hoje, a psicopedagoga e artista plástica define-se como uma cidadã consciente sobre a riqueza acerca da diversidade humana e com a preocupação em melhorar o mundo em que vivemos. Quando a pergunta é o que faz ela ter forças pra continuar sua missão, a resposta é direta: “Tenho

Oi, quem é você? Muito mimo, carinho, beijos e atenção marcam as relações entre avós e netos. Dizem, inclusive, que amor de avó é duplamente maternal, é amor em dobro. Quem não lembra daquela tarde na casa da avó regada a biscoitinhos e bolos? Um sentimento que se torna difícil de explicar ou descrever e impossível de quantificar. Quando criança tratamos de recompensar toda essa atenção, seja em forma de bilhetes, desenhos, presentinhos feitos pelos próprios netos, beijos ou muitos gestos de afeto. No caso do estudante de Filosofia, Fernando Aguzzoli, a retribuição veio com dedicação. Também em 2009, após frequentes enjoos, o jovem decidiu levar a avó para realizar exames. O diagnóstico não foi o esperado. Foi duro. A vovó Nilva, com então 73 anos, estava com Alzheimer. A realidade chocou a família. Vovó Nilva era uma senhora ativa, morava sozinha num apartamento em

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Porto Alegre, era querida por todos. As preocupações em torno da doença assustavam. O mal de Alzheimer é uma enfermidade neurodegenerativa ainda sem cura. A chance de controlá-la é maior se for detectada precocemente. Não foi o caso. Com o passar dos anos, a doença foi comprometendo o cérebro de Dona Nilva. Então, Fernando decidiu agir. Em entrevista à Exceção, conta que trancou a faculdade e largou o emprego. Queria estar perto, cuidar e entender sua avó. Abriu mão da vida que qualquer jovem dessa idade leva para fazer a Dona Nilva ser feliz. “Não foi uma decisão tomada da noite pro dia. Conforme fui percebendo a evolução da doença, os cuidados foram se intensificando, assim como a necessidade de alguém sempre à disposição. Como minha mãe estava praticamente em depressão, e não tínhamos dinheiro pra uma cuidadora profissional (e na época eu nem teria coragem de deixar alguém com vovó), decidi primeiro trancar a faculdade e passar mais tempo em casa. De-

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uma bandeira para lutar: O autismo”.


DICAS DE FILMES QUE ABORDAM A MUDANÇA EM PROL DE ALGUÉM

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pois, a coisa foi apertando e tive que largar também a minha empresa”. O período ao lado de dona Nilva fez Fernando perceber que mais do que uma avó, ela era uma grande amiga e até mesmo uma filha. A simplicidade dessa relação dava o tom do dia a dia dos dois, onde o objetivo era a diversão. “Queria fazê-la rir. As nossas brincadeiras e distrações eram muito simples, mas que envolviam grandes emoções. Jogávamos almofadas um no outro, fazíamos palavras cruzadas, ouvíamos música, cantávamos, dançávamos, etc. Tudo era um motivo pra nos levantarmos da poltrona e rirmos muito, seja em casa, na padaria ou no shopping. Até de balanço andávamos na pracinha”. Para a psicóloga Jociane Stracke, a decisão de Aguzzoli deve-se

Divulgação

O Óleo de Lorenzo - Um garoto levava uma vida normal até que, quando tinha seis anos, estranhas coisas aconteceram. Diversos problemas de ordem mental foram diagnosticados como ALD, uma doença extremamente rara que provoca uma incurável degeneração no cérebro, levando o paciente à morte em no máximo dois anos. Os pais do menino ficam frustrados com o fracasso dos médicos e a falta de medicamento para uma doença desta natureza. Assim, começam a estudar e a pesquisar sozinhos, na esperança de descobrir algo que possa deter o avanço da doença. Amy - No início do século, uma mulher rica e infeliz descobre um novo sentido para sua vida. Ela abandona

o marido prepotente e se dedica a cuidar de crianças deficientes visuais e auditivas. Os próprios alunos de uma escola participaram das gravações.

muito ao aprendizado de respeito e gratidão aos mais velhos que muitas pessoas têm. Pode ter sido levado em conta também a religião e os valores culturais da família, querer repassar um exemplo que gostará que seja repetido. “Fernando é muito identificado com a avó, tem uma consideração muito grande, que pode ser até maior do que a valorização por seu pai ou mãe inclusive”. A decisão de mudar de vida em prol de um familiar também tem um outro lado, segundo a psicóloga. O certo é a pessoa buscar informações a respeito da doença. Entender o problema em questão, falar com alguns especialistas em buscas de orientação sobre o modo de cuidar e atender o sujeito em suas necessidades. Do contrário, a dedicação pouco valerá.

“Há aqueles que só fazem o que é demandado e nem querem saber muito sobre o problema, agindo com uma espécie de frieza. Talvez mais por uma culpa ou por ressentimento do que vivenciou ao passado com aquele familiar”. Jociane também afirma que os mecanismos de defesa dos seres humanos são os maiores motivos para suas ações. E Fernando buscava entender cada vez mais o Alzheimer. A disposição de Dona Nilva fazia com que o neto criasse força para enfrentar até a parte mais dura da doença, a perda de memória. A avó vivia feliz, mas em algumas situações não lembrava sequer o motivo. O problema se agravava ao passar dos dias. Em uma tarde fez o neto chorar. “Ela me esqueceu. Olhou pra mim e disse que não sabia se tinha netos.


Primeiro, fiquei muito brabo e gritei dizendo que eu era seu neto. Então ela me disse que sabia que me amava, mas não lembrava o motivo. Foi muito emocionante para nós dois.” A história o motivou a escrever. Queria passar para outras pessoas as experiências e fatos inusitados vividos ao lado da avó. Surgiu o livro Quem, eu? Uma avó. Um neto. Uma lição de vida. A obra conta a trajetória dos dois sob uma perspectiva muito bem humorada. “O leitor vai das lágrimas às gargalhadas em poucos minutos, e isso que torna a obra interessante”. Em junho deste ano, o livro foi relançado pela editora Paralela, do grupo Companhia das Letras. No Facebook, criou uma página com o mesmo objetivo. Hoje, já tem mais de 120 mil seguidores. A felicidade em

poder ajudar outras pessoas serviu para Fernando ter a certeza de que a decisão de largar tudo para viver em prol da Vovó Nilva foi acertada. Porém, Vovó Nilva não teve tempo para acompanhar e ler os seus diálogos diários. Em dezembro de 2013, uma infecção urinária deu fim à rotina feliz ao lado do neto. Pouco antes de completar 80 anos de idade. “Eu não sou um herói, não sou um guri iluminado. Eu apenas tomei uma decisão e fiz o que tive que fazer. Todo jovem pode se relacionar com seus avós. Não é porque ela era velha ou porque tinha um obstáculo no caminho. Aprendi muito com ela”, frisa o rapaz, que voltou a cursar Filosofia. Hoje, seu objetivo é levar as histórias com a avó pra todos os cantos em que ela

sempre quis estar, mas por questões financeiras ou de saúde, nunca pôde. Saudade? Sim, ele tem. Mas é este sentimento que motiva Aguzzoli a adotar uma postura parecida com a de Claudia Zirbes. Após concluir seu curso, quer estudar gerontologia. As histórias unem os dois. As decisões, tomadas por ambos, mostram que o ano de 2009, citado no início desta reportagem, não foi um ano de tristezas com os diagnósticos de Gui e Dona Nilva, e, sim, de recomeço. Recomeço este, motivado pela decisão de mudar por amor ao filho e à avó. Em um de seus poemas, Carlos Drumond de Andrade, disse que recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo e assim renovar as esperanças na vida. Foi o que fizeram Claudia Zirbes e Fernando Aguzzoli.

AS HISTÓRIAS DA VOVÓ NILVA Diálogo entre a vovó e a mãe depois de eu ter saído do quarto. Vó: minha filhinha, tu tem que ter teus filhos, não pode ficar cuidando do filho dos outros. Mãe: como assim mãe? Vó: tem que ir nos bailes, tem que namorar, tá na hora de encontrar marido! Mãe: mas eu tenho marido! Vó: ué, essa é nova pra mim. Mas então tá na hora de começar a pensar em ter filhos, não acha? Chega de cuidar do filho dos outros. Mãe: mas ele é meu filho, o Fernando! Vó: não Rose, ele não é teu filho! Mãe: mas eu tenho certeza que ele é meu filho... Vó: e como é que eu não ia saber? Mãe: essa já é uma questão um pouco mais complexa.

Vó: mas então eu já sou avó! Mãe: siiim! Vó: Que beleza, tu vê, e eu nem sabia. Coisa boa! Depende pra quem, Vovó Nilva vivia em seu eterno domingo de folga! Eu: vamos ao shopping vó? Vó: Mas é domingo! Eu: Claro que não, é terça-feira! Vó: E a gente não devia estar trabalhando então? Eu: Tu já está aposentada vó! Vó: Eu? Claro que não! Eu: Tá sim! Vó: Mas e tu, não devia estar trabalhando? Eu: Então, vamos ao shopping vó?!

Trecho do livro “Quem, eu?”, de Fernando Aguzzoli

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ENTRE A ROTINA E O SONO

Dormir mal já é tão comum que, muitas vezes, as consequências não são levadas a sério. Mas é importante saber o quanto isso afeta a sua saúde MARIA HELENA LERSCH


Estágio, aula e trabalho. É nessa ordem que a tumultuada rotina de Luana Faust atende a uma tendência de aprimoramento profissional contínuo. O lazer e o descanso, quando chegam, são por pouco tempo. Relaxar é um luxo para a técnica de enfermagem, de 27 anos. A profissão exige ainda mais do seu período de sono. Com plantões de 12 horas, as outras 36 deveriam ser para descansar. Porém, não é isso que acontece. A correria começa cedo da manhã. Luana acorda às 7 horas e vai para o estágio. A partir de então, não para mais. Em alguns dias da semana, só consegue parar no dia seguinte. Como passa muito tempo ocupada, esforça-se para conseguir almoçar todos os dias em casa, uma das coisas que mais lhe dão prazer. Depois da aula da tarde, apronta-se para trabalhar. Mal começa o expediente e o cansaço já dá o ar da graça. Os olhos vermelhos e a aparência abatida sugerem a falta de sono. Luana trabalha como folguista – co-

brindo folgas e férias de colegas – no Centro Obstétrico (CO) do hospital local. Entre as tarefas, precisa receber gestantes e acompanhá-las em todos os procedimentos desde o pré-parto até a recuperação. A demanda de atividades aumenta ainda mais o cansaço da santa-cruzense e o momento mais esperado passa a ser o fim do plantão. Nos dias sem estágio, ela chega em casa de manhã e dorme em torno de três horas. Mais do que isso não pode para não se atrasar para a universidade – o que acaba sendo impossível quando o despertador não colabora. Após a aula, enfim, o merecido descanso. Porém, o tempo que deveria ser dedicado ao sono algumas vezes é conciliado com as tarefas da universidade e com o famoso relógio biológico que não está acostumado a desligar cedo da noite. “Antes da meia-noite, não tem jeito”, afirma Luana. Mesmo jovem e há poucos anos mantendo essa turbulenta agenda, a técnica de enfermagem já sente os

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Maria Helena Lersch

André Luis evita descansar durante o dia para dormir melhor nas noites de folga

efeitos colaterais da falta de qualidade do sono. A união estável que mantinha, reconhece ela, se desgastou pela indisposição para programas a dois e o excesso de atividades. Além disso, Luana sente que a saúde acaba fragilizada. “Quando fico muitas horas sem dormir, minha imunidade cai e fico resfriada com mais frequência. Já sofri até de problemas gastrointestinais em função disso”, conta. As atividades normais também são prejudicadas, segundo ela. “Tenho dificuldade de concentração nas aulas, estou sempre com sono. Minha memória não é muito confiável”, admite. André Luis Soares, de 45 anos, é vigilante. O que ele e Luana têm em comum? O sono. Há seis anos, ele precisa trocar o dia pela noite para trabalhar. A carga horária é a mesma de Luana: 12 horas de trabalho e 36 horas de descanso. Sorte a dele é que não tem tantas atividades quanto a jovem estudante. O vigia conta que, quando chega


em casa do trabalho, pela manhã, procura dormir somente por três horas. “Faço isso para ter sono de noite. Assim, consigo dormir cedo”, explica. Nas noites de folga, consegue dormir tranquilamente nove horas, sem acordar na madrugada. Entretanto, ele sabe que o período dedicado ao sono ainda é insuficiente. “O que mais percebo é que fico mal-humorado, o que gera algumas discussões com minha esposa”, revela. O problema que André e Luana enfrentam é mais comum do que se imagina. Quando não é a má qualidade de sono que prejudica a saúde, são outros distúrbios que acometem e interferem na vida do paciente. Atualmente, segundo o especialista em Ronco e Apneia do Sono, cirurgião-dentista Antônio Rocha, existem mais de 100 distúrbios do sono. A insônia, o ronco e a apneia são os principais deles. O mais comum é o primeiro, que atinge em torno de 40% da população adulta.“Privação de sono significa dormir pouco. É um problema

que pode ser momentâneo, como por exemplo, o caso de alunos no fim da faculdade e que têm muitos trabalhos para fazer, e de pessoas que precisam realizar atividades físicas à noite e trabalhar até tarde, fazendo com que o organismo não tenha tempo de desacelerar da forma que deveria. Mas também pode ser um problema crônico, que é o caso da insônia. Normalmente, ela é provocada pelo estresse, distúrbios neuroquímicos ou ansiedade. Para tratar, existem medicamentos, mas é necessário o acompanhamento de um neurologista ou médico do sono”, explica Rocha. A técnica de enfermagem e o vigilante se enquadram em um grupo de pessoas que deveria inverter o dia pela noite, não só para trabalhar. De acordo com o especialista em sono, exceto no caso de notívagos – indivíduos que admiram a vida noturna e que preferem conviver à noite –, há uma redução da produtividade para indivíduos que dormem apenas durante o dia. Isso ocorre porque as

pessoas não costumam dormir o tempo necessário. “É preciso compensar o sono que não teve à noite. Para isso, tem que ter qualidade e quantidade. É necessário dormir entre seis e oito horas, se possível, sem estar exposto a coisas que possam despertar muito. O sono do dia só será satisfatório se for igual ao que costumamos ter à noite”, afirma o dentista. As consequências Antônio Rocha explica que uma noite mal dormida pode trazer inúmeras consequências. Sonolência excessiva diurna, esquecimentos, dor de cabeça, alterações de humor, queda da produtividade e demora de raciocínio são alguns dos problemas sofridos a curto prazo em função da insônia e da má qualidade do sono. Já a longo prazo, quando relacionados ao ronco e à apneia do sono, os problemas podem ser mais graves. Entre os principais, estão a tendência a ter hipertensão, diabetes e doenças cardiológicas, como risco de acidente vascular cerebral (AVC).

ELES NÃO DORMEM BEM...

Maria Helena Lersch

Juliana Karina Roehrs Sperb, 28 anos: a musicista e radialista sofre com pesadelos desde os 13 anos. Os sonhos são sobre diferentes coisas e nem sempre têm a ver com coisas da rotina da jovem. “Não tenho medo de cachorro, mas tenho pesadelos terríveis com cães. Algumas vezes já acordei e pulei da cama. Tenho pesadelos tão reais que acordo chorando”, conta. “Já dei socos e chutes no meu marido. Quando acordo, muitas vezes, estou assustada e, ao me mexer, acabo machucando quem está do meu lado”, re-

lata. Há noites em que Juliana sente que teve pesadelos durante todo o período que deveria ser de sono. Além do cansaço no dia seguinte, admite que as atividades não rendem tanto quanto deveriam. Geraldo Haiml Newlands, 55 anos: médico-veterinário, agricultor, fotógrafo e assessor político. Com todas essas atividades para administrar, as preocupações também aumentam. E com elas, vem a insônia. Apesar de não ser tão frequente, o distúrbio influencia no dia a dia de Geraldo,

que já acorda cansado. Enquanto o sono não chega, Lalo, como também é chamado, tenta se distrair. O problema é que ele procura a ocupação em meios eletrônicos, que acabam o despertando ainda mais. “Normalmente, leio as notícias dos jornais virtuais e as do meu time quando ele ganha, perambulo pelas redes sociais e, raramente, vejo tevê”, diz. Até hoje, ele nunca sofreu problemas graves em decorrência da insônia, mas, para isso, sempre tomou cuidados. “Evito guiar ou operar máquinas em minha atividade rural”, conta.


OS 10 MANDAMENTOS

Para ter um sono de qualidade, o especialista Antônio Rocha deixa algumas dicas de cuidados que devem ser tomados. Confira: 1. Ter horários regulares para dormir e despertar 2. Ir para cama somente na hora de dormir 3. Ter um ambiente para o sono

adequado: limpo, escuro, sem ruídos e confortável 4. Não ingerir álcool ou café e determinados chás e refrigerantes próximo ao horário de dormir 5. Não levar problemas para a cama 6. Ser ativo física e mentalmente 7. Evitar dormir de dia para

recuperar o sono perdido na noite anterior 8. Somente usar medicamentos para dormir com orientação médica 9. Realizar atividades repousantes e relaxantes preparatórias para o sono 10. Jantar moderadamente em horário regular e adequado.

ENTENDA Má qualidade de sono Despertar várias vezes durante a noite devido à apneia do sono, dores, gastrite, entre outras questões do organismo. Além disso, a situação do ambiente em que se dorme também pode afetar o sono, como a claridade, o frio, o calor e o barulho, seja por ronco de alguém ou de veículos na rua.

para conseguir dormir. A maioria dos pacientes que sofrem de insônia é formada por mulheres. Isso ocorre por questões hormonais e pela ansiedade. Ronco É a dificuldade de respirar enquanto se dorme, que acaba gerando ruídos. Apneia do sono: são as paradas respiratórias no período da noite, durante o ronco.

Privação de sono Diagnóstico Dormir tempo insuficiente, seja por problemas momentâneos ou por in- Os distúrbios do sono podem ser sônia – quando o indivíduo não tem diagnosticados através de um exasono ou sente dificuldade e demora me chamado de polissonografia. 18

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A Fร QUE CURA Tratamentos alternativos dividem espaรงo com a medicina convencional Julianne Wagner

JULIANNE WAGNER


Estamos em constante negociação com Deus. Tem avó tentando adiar a viagem para o plano espiritual para depois da formatura do neto; marido pedindo que uma força superior auxilie no procedimento cirúrgico da esposa; mãe orando ao pé da incubadora do filho prematuro... Enfim, não faltam exemplos que ilustrem como a religiosidade tende a aflorar em situações que envolvam doença e, consequentemente, a morte. O papel desempenhado pela fé no tratamento de pessoas enfermas foi reconhecido pelo Ministério da Saúde brasileiro que, em 2006, através da portaria nº 971, aprovou a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde (PNPIC-SUS). A medida incentiva postos de saúde e hospitais públicos a oferecerem meditação e ioga, por exemplo, em salas exclusivas para a prática. O reconhecimento científico destes tratamentos religiosos vai ao encontro dos estudos desenvolvidos nos Estados Unidos, onde, também em 2006, o National Institutes of Health (NIH), responsável pelas pesquisas médicas, garantiu a eficácia de terapias não convencionais. A diferença principal entre Brasil e Estados Unidos é que, em nosso País, a oração – ao contrário da meditação – não está inclusa na PNPIC-SUS, enquanto no sistema norte-americano ela é classificada como um exercício religioso complementar. Embora não haja reconhecimento formal no Brasil, há quem assegure o poder que emana da oração. Ministra da Palavra, Comunhão e Esperança da Igreja Católica, Odete Lopes Steffanello traz na bagagem 11 anos de trabalho voluntário realizado junto à Sociedade Beneficente Hospital Candelária (SBHC), localizada na cidade de mesmo nome. Sua atividade consiste em levar um 20

pouco de paz interior aos pacientes da SBHC, estejam eles em estado de saúde regular ou grave. Dona Odete, que tem 67 anos, enfatiza um dos principais aprendizados adquiridos nesta trajetória: “Nunca vi ninguém morrer ateu. Na hora da morte, todos clamam por Deus”. Ela descreve a sua iniciativa como “terapia do abraço”: “Eu abraço o cuidador do doente, toco o paciente. Aprendi, nestes 11 anos, que doença não pega”. Durante o período em que circula entre os leitos hospitalares, Odete veste um jaleco branco, pois faz parte da equipe da casa de saúde, embora de forma voluntária. “Sempre que faço as visitas, peço: ‘Jesus, vem comigo, pois hoje estou no teu lugar’”. Odete diz que seu tratamento é paralelo à medicação e, por isso, não minimiza a importância da medicina convencional. Ela lembra que um dos ensinamentos repassados por Jesus Cristo aos discípulos foi: “Ide, curai os doentes”. Desta forma, analisa que, hoje, são os médicos que cumprem o papel da cura, cujo dom, conforme acredita, foi enviado por Jesus. Apesar disso, Odete admite que alguns profissionais da área da saúde ainda mostram certa resistência com a prática da oração dentro de hospitais e unidades de reabilitação. Para o médico responsável pela delegacia seccional do Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) de Santa Cruz do Sul, Gilberto Neumann Cano, 68 anos, geralmente são os médicos novatos que ficam constrangidos ao se deparar com um ambiente em que a confiança no poder da fé se sobrepõe ao da ciência. “Os mais velhos não se importam”, assegura. Ele explica que o médico não pode indicar nada que ande na contramão da medicina tradicional, mesmo que sejam cirurgias experimentais – o que não significa que os efeitos po-

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sitivos da fé não sejam reconhecidos. “O que a gente (classe médica) nota é que as pessoas que têm algum tipo de fé – no anjo da guarda, por exemplo – melhoram mais, aguentam mais. Elas têm o que se chama hoje de ‘sentimento de resiliência’ – aspecto psicológico que auxilia os indivíduos a, resumidamente, lidar com problemas e superar obstáculos – muito maior do que as outras pessoas”, sintetiza Cano. Se a fé em apenas um anjo já ajuda, imagine ser devoto de vários santos? É assim com Dorvalina Schena Piassini, 71 anos, moradora de Gramado Xavier. Na cômoda do quarto, Dorvalina mostra as estatuetas às quais direciona a sua devoção: Divino Pai Eterno, Nossa Senhora das Graças, Santo Antônio, Menino Jesus e Nossa Senhora Aparecida. “Eu sempre agradeço pelas graças alcançadas, principalmente através das novenas do Divino Pai Eterno e de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Eu rezo para toda a família, mas tem que pedir e também agradecer”, instrui. Católica, Dorvalina frequenta a igreja para manifestar a sua fé, além de acompanhar todos os dias as missas transmitidas na televisão. Mas, também busca ajuda na doutrina espírita. A confiança em uma força superior fez com que ela se submetesse a uma cirurgia espiritual em 2013, em um local destinado para a prática em Santa Cruz do Sul. O procedimento alternativo foi realizado para o tratamento de uma dor intensa em um dos joelhos. Ela sofre de desgaste nos ossos, o que a faz manter um castelo de remédios no armário da cozinha. Para o joelho, no entanto, o medicamento prescrito não estava oferecendo a melhora prometida. Dorvalina descreve que nenhum corte foi feito durante a cirurgia espiritual. Segundo ela, os médiuns – uma mulher e um homem


Dorvalina Piassini diz que foi curada por cirurgia espiritual

Julianne Wagner

– apenas colocaram as mãos sobre o membro dolorido e disseram palavras não compreendidas pela paciente. “Não havia velas ligadas, somente uma luz que deixava as paredes amareladas”, relembra Dorvalina, que ficou deitada sobre uma cama durante o tratamento. O procedimento foi realizado em três sessões de 10 minutos cada, com intervalo de 15 dias entre elas. A idosa ficou consciente durante toda a cirurgia espiritual. “Eu lembro de tudo: de eles passando ao meu redor, colocando as mãos na minha cabeça”, diz. Quando as três sessões foram encerradas, Dorvalina rece-

beu a informação que estava sarada. “E fiquei curada mesmo”, garante. A caminhada de Dorvalina em torno da religião iniciou ainda na infância. A devoção, conta ela, foi aprendida com a mãe, com quem rezava o rosário diariamente. Por isso, Dorvalina acredita que a sua fé garantiu o êxito do tratamento. Para ela, cada momento destinado à oração é uma conversa com Deus, diálogo no qual pede proteção para os filhos, netos e bisneta. Ao ouvir o relato sobre a experiência vivida por dona Dorvalina, o delegado do Cremers de Santa Cruz do Sul, Gilberto Neumann Cano, diz:

“dor no joelho, com 71 anos, é doença degenerativa-articular, não vai melhorar. Ela pode ter uma grande força de vontade, uma capacidade, e não está dando muita bola para a dor”. Cético, ele compara as cirurgias espirituais ao efeito placebo. “Toma aquele comprimidinho cor de rosa que é bom. O que é o comprimido rosa? Sei lá, extrato de morango... mas o paciente considerou aquilo bom. Isto é, a tua cabeça que faz funcionar. Tudo está dentro da tua cabeça. É você que faz e acontece”, reflete Cano. A oração e os tratamentos não convencionais, como as cirurgias


espirituais, refletem uma necessidade do paciente de ouvir uma palavra amiga e sentir um toque acolhedor em um momento de fragilidade. Por isso, Cano reconhece a necessidade de o médico se tornar, para além de um profissional, um ouvinte. “Uma coisa é você atender a doença. A doença não vem no teu consultório, ela está no livro. Quem chega à tua frente é o doente, ele é único. O paciente que vai dizer que brigou com a avó, que está fumando crack. Aí o médico vai achar para ele o que é melhor para fazer. Claro

que o profissional tem toda a medicina ao seu dispor. Então o paciente te diz: ‘mas eu posso rezar?’. ‘É claro que tu podes rezar!’. ‘Mas vai fazer efeito?’. ‘Se tu acreditares, vai. Se não, não vai’”, descreve Cano. Assim aconteceu com dona Dorvalina. Porém, foi em uma sociedade espírita, e não num consultório médico, que ela recebeu a energia extra que precisava para seguir a vida sem abrir mão, por exemplo, dos bailes da terceira idade. “Para descer a escada, tinha que ser de lado, para não forçar o joelho”, conta.

Desde a cirurgia espiritual, nem a escada e, muito menos uma dança animada no baile são obstáculos. “A gente não pode acreditar em tudo, mas têm coisas que valem a pena”. Entre soros e rezas Às 9 horas de sexta-feira, 16 de outubro, a ministra Odete recebeu-me com um sorriso gentil na recepção da Sociedade Beneficente Hospital Candelária (SBHC). Há 11 anos é assim: suas tarefas rotineiras são deixadas em segundo plano e os pacientes da casa de saúde assumem os papéis

Gilberto Cano: “As pessoas que têm algum tipo de fé aguentam mais” Julianne Wagner

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de irmãos, filhos e netos de Odete. Antes de iniciarmos as visitas, deixo clara a posição que adotarei: observadora. Dirigimo-nos ao primeiro leito. Duas batidas leves e, tão logo a porta se abre, sinto-me desconfortável: é como se estivesse desrespeitando o sofrimento alheio. A sensação, no entanto, logo é substituída por serenidade, tamanha a capacidade que dona Odete tem em levar esperança a um ambiente, na maioria das vezes, dominado pela dor. A senhora deitada na cama hospitalar parece não perceber a nossa chegada. É a cuidadora quem nos recebe e ora sob a coordenação de Odete, que me informa: “Elas (paciente e cuidadora) estão há três meses aqui”. Com a convivência, veio a confiança. Assim, após rezarem, as duas conversam sobre o estado de saúde da enferma que, mesmo sem abrir os olhos, é tocada carinhosamente por Odete. De formalidade nas visitas, há somente a batida na porta e uma breve apresentação, na qual Odete explica quem é e em nome de quem está ali, ou seja, Jesus Cristo. “Deus não criou o mundo sem sofrimento. E a ferramenta que nós temos para superar isso é o cuidado que uns dedicam aos outros”, opina.

Foram mais de duas horas de diálogos e orações. Estivemos em leitos onde os pacientes apresentavam os mais diferentes quadros de saúde: em alguns, os familiares disseram que o ente querido tinha pouco tempo de vida, em outros, mães aguardavam o nascimento dos filhos. Na pediatria, as crianças intercalavam entre o soro e o brinquedo. Independente da situação, a palavra fraterna e o toque acolhedor de Odete estiveram presentes. Além dela, representantes de outras religiões cristãs prestam auxílio religioso aos enfermos. Nas terças e quintas-feiras a oração é coordenada, respectivamente, pelos pastores da Congregação Evangélica Luterana Cristo e da Igreja Sinodal. Às quartas-feiras, é o dia de visita do padre e, às quintas e sextas, é Odete quem assume a Unidade de Saúde Mental e os pacientes da SBHC. Nestas datas, os representantes cristãos se deslocam por todos os leitos, independente da religião dos internos. “A oração é espontânea. Com as minhas palavras eu converso com Deus e peço que as pessoas presentes no quarto façam parte deste momento. Quando todos no leito são católicos, peço para que rezem a Ave Maria ou a oração ao Anjo

da Guarda, esta última, principalmente, na ala pediátrica”, descreve. Apesar de haver fiéis de diferentes doutrinas e religiões nos leitos, todos foram receptivos. Mesmo quando não sabiam rezar, os pacientes e acompanhantes fecharam os olhos e refletiram sobre as palavras pronunciadas por Odete. Um dos enfermos, diagnosticado com Alzheimer, num primeiro momento ficou indiferente ao que acontecia ao seu redor, mas logo começou a balbuciar logo depois de dona Odete encerrar a oração. A filha se aproximou do pai e disse: “Ele está rezando. Disso ele não esquece”. A ciência explica As conexões celulares e a troca de informações realizadas no cérebro intrigam cientistas e leigos. Por isso, estudos avançam no sentido de buscar entendimento para a complexidade da mente humana. Mesmo quando o assunto é religião, a ciência vem ganhando espaço para mostrar evidências sobre a eficácia de práticas meditativas e a sua relação com o cérebro. Psicólogo e coordenador do Programa de Avaliação do Estresse do Centro Avançado em Saúde da Beneficência Portuguesa de São

PRINCÍPIOS DA MEDICINA TEOSSOMÁTICA

Julianne Wagner

O reconhecimento de que os fatores espirituais são determinantes na saúde recebeu uma denominação: “Medicina Teossomática”. São sete princípios gerais: 1 – a afiliação religiosa e a participação como membro de uma congregação religiosa beneficiam a saúde ao promover comportamentos e estilos de vida saudáveis; 2 – a frequência regular a uma con-

gregação religiosa beneficia a saúde ao oferecer um apoio que ameniza os efeitos do estresse e do isolamento; 3 – a participação no culto e na prece beneficia a saúde graças aos efeitos fisiológicos das emoções positivas; 4 – as crenças religiosas beneficiam a saúde pela sua semelhança com crenças e com estilos de personalidade que promovem a saúde; 5 – a fé, pura e simples, be-

neficia a saúde ao inspirar pensamentos de esperança e de otimismo e expectativas positivas; 6 – as experiências místicas beneficiam a saúde ao ativar uma bioenergia ou força vital ou estado alterado de consciência que promovem a cura e; 7 – a prece à distância em favor de outras pessoas é capaz de curar por meios paranormais ou por intervenção divina.


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Paulo, o professor Armando Ribeiro cita a importância de tratamentos alternativos para as seguintes condições médicas: pressão alta, síndrome do intestino irritável, colite ulcerativa, ansiedade, depressão, insônia, cessação do tabagismo, dor crônica, entre outras. O tratamento, explica Ribeiro, não deve se limitar à meditação e ioga, por exemplo. Um programa completo inclui medicamentos, psicoterapia e educação em saúde. Segundo o professor, o emprego das práticas meditativas na saúde faz parte dos últimos estudos de revisão sistemática do National Center

Divulgação

Armando Ribeiro: “As práticas meditativas são estratégias cientificamente aceitas”

for Complementary and Integrative Health (NCCIH), do National Institutes of Health (NIH), agência dos Estados Unidos. “Já podemos afirmar que as práticas meditativas são estratégias cientificamente aceitas, por apresentarem estudos de eficácia e segurança”, garante Ribeiro. Além disso, ele diz que a espiritualidade e a religiosidade são objetos de estudo da Psicologia e da Medicina. “Existem relatos seculares dos benefícios da espiritualidade e da religiosidade para a saúde física e emocional”, acrescenta. Durante as práticas de meditação e oração, descreve Ribeiro, regi-

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ões do lobo frontal do cérebro ficam mais ativas. Elas são as responsáveis pelas funções cognitivas superiores, tais como planejamento, autocontrole e raciocínio lógico. Já o lobo parietal fica menos ativo durante as atividades religiosas, reduzindo a noção de espaço e tempo. Essa capacidade inata do cérebro de se modificar através de novas experiências e aprendizagens se chama neuroplasticidade. Um violinista, por exemplo, controla seu instrumento musical através dos dedos. A região do cérebro que controla esse movimento aumenta progressivamente à medida que o músico domina o violino.


Roberta Kipper

Divulgação

QUANDO A OPÇÃO É FICAR Histórias de quem não quer deixar o campo ROBERTA KIPPER


Você já parou para pensar onde vai morar depois que se formar na faculdade, casar ou ter a sua família? Talvez você ainda não tenha idade para isso, ou já possua a sua própria casinha, em algum lugar. Mas se fosse para escolher entre morar no campo ou na cidade, onde você ficaria? Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) o Brasil registra um encolhimento na população rural, desde 1970. Nos últimos 10 anos, a pesquisa do Censo constatou que essa diminuição também foi registrada, já que no país, em 2010, havia 29.830.007 residentes na região rural, contra 31.835.143 em 2000. Este processo, que está presente há mais de 40 anos no Brasil, é conhecido como êxodo rural, ou seja, o abandono do campo. Para se ter ideia, entre os anos de 2000 e 2010, o êxodo rural atingiu mais de 835

mil jovens de 15 a 24 anos em todo o país, segundo o IBGE. Muitos são os adolescentes que ainda preferem largar as propriedades rurais dos pais para buscar uma nova vida na cidade. Porém, em algumas regiões, como é o caso de Venâncio Aires, alguns jovens estão indo contra esta corrente e optando por permanecer no campo. São histórias como estas que vamos contar nesta reportagem. É o caso de Lucas Hermes e do casal Sabrina Kist e Willian Simianer. Sair da casa dos pais, ter independência, formar a sua família e poder realizar as atividades do dia a dia do seu jeito, descobrindo as suas maneiras de se fazer as coisas, são os sonhos de todo jovem hoje em dia. Principalmente, quando falamos de um casal. A Sabrina e o Willian estão começando a transformar este sonho em realidade. Sabrina é natural de Venâncio Ai-

res, tem 21 anos e é técnica em segurança do trabalho em uma empresa da sua cidade. Ela sempre morou em Linha Hansel interior de Venâncio Aires, junto com os pais. Já Willian, de 26 anos, é auxiliar administrativo em Santa Cruz do Sul e passou sua infância e adolescência em Linha Monte Alverne, localidade da mesma cidade onde trabalha. Namorando há quase sete anos, eles decidiram que era o momento de reunirem as escovas de dentes e resolveram morar juntos. Mas, então, veio a dúvida: Onde vamos construir nossa casa? Obviamente que você deve estar pensado: mas é claro que eles foram morar em alguma das cidades. Errado! Eles decidiram ficar no interior. Os motivos que os levaram a essa decisão, depois de pensar muito e colocar vários quesitos na balança, vão muito além das questões burocráticas que uma vida urbana exige. Ficar em um dos municípios em que

Sabrina e Willian optaram pela tranquilidade ao permanecerem no interior

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Julianne Wagner

trabalham seria muito mais fácil por conta do deslocamento até os empregos, da facilidade em encontrar os itens básicos como farmácias e supermercados, sem falar das opções de diversão. Porém, não teriam a vantagem de fazer a obra com menos exigências para construir, tampouco teriam isenção do IPTU. A água e a energia, na roça, são mais baratas, sem mencionar a proximidade com familiares, principalmente dos pais da Sabrina, já que o casal está construindo no mesmo terreno em que fica a propriedade deles, em Linha Hansel, interior de Venâncio. Outro fator que pesou na decisão dos dois foi a tranquilidade. Por mais que a locomoção pelas estradas ruins seja um empecilho, entre

outras coisas que se encaixam na “parte ruim” de se morar no interior, a possibilidade de uma vida saudável e longe do agito da cidade pesou muito na decisão do casal. Sabrina é quem fala sobre isto: “É uma vida comum como de todos, com suas vantagens e desvantagens. Somos felizes com nossa escolha, pois aqui temos mais espaço, independência, menos burocracia, mais ar puro, paz e principalmente, amor”. Quem também resolveu continuar morando na zona rural foi Lucas Hermes. Porém, o rapaz de 19 anos foi mais drástico em sua decisão: parou de estudar para dar continuidade aos negócios dos pais, que também fica em Linha Hansel. Lucas estava no segundo ano do curso técnico em infor-

mática do Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul) quando decidiu dar um tempo nos estudos, para, segundo ele, aliviar um pouco o estresse de anos consecutivos estudando. Ele conta que sempre gostou de morar no campo, pois, apesar de o surgimento de algumas empresas no interior ter aumentado, ainda continua sendo um lugar tranquilo para se viver. Lucas também ressalta o crescimento de algumas culturas e atividades neste meio, embora algumas estejam em decadência: “Muitas coisas cultivadas hoje no campo estão em queda. Porém, outras, como o milho e o feijão, estão ganhando espaço”. Apesar de ter dado este tempo no seu curso, Lucas pretende voltar a estudar em breve, pois acredita que


o estudo e o conhecimento são muito importantes para se prosperar no campo. O rapaz salienta que o agricultor precisa saber ler e escrever para poder ter um melhor entendimento dos produtos utilizados em sua lavoura e também saber fazer cálculos, para poder ter um controle da propriedade e da produção. Estas duas situações e outros tantos casos semelhantes, de adolescentes que optam por continuar vivendo na zona rural, trazem um grande retorno. Estes benefícios são tanto financeiros quanto culturais, para as cidades que são sede das localidades interioranas. Segundo o prefeito de Venâncio Aires, Airton Artus, a vantagem econômica desta escolha é bem relevante, visto que as inúmeras propriedades rurais do município poderão significar um diferencial no futuro: “Enquanto as economias industriais

sofrem de forma mais direta com as crises internacionais e mesmo com as instabilidades econômicas, o setor agrícola tem sido o fiel da balança e contribuído para a manutenção do Produto Interno Bruto”. O prefeito ainda ressalta que a qualidade de vida para quem mora no interior é muito melhor, e que isto, futuramente, poderá ser um símbolo de riqueza, um diferencial, para quem continuou na zona rural ou ainda proporcionando uma maior valorização das terras, já que outras famílias poderão ir em busca dessa tranquilidade para fixarem residência ou só para passar o fim de semana, em uma chácara, por exemplo. Artus também aposta na diversificação das culturas produzidas pelas famílias: “A permanência do jovem no campo é mais do que uma política pública para o futuro, mas uma crença de que esse é o caminho mais viá-

vel para a subsistência da produção. Acredito no setor de alimentos como um negócio rentável e capaz de trazer uma nova alternativa de riqueza para as famílias do campo.” Pensando pelo lado lógico, isto é verdade. Hoje em dia a produção de alimentos, como hortifrutigranjeiros, é mais trabalhosa e envolve mais normas do que outras culturas. Mas, caso as famílias locais apostarem nisso, terão como consumidores, além de supermercados e fruteiras, as pessoas que trabalham na cidade e moram no campo. Este setor da sociedade teoricamente não possuem tempo e/ ou conhecimentos para manter uma horta e buscarão pelos produtos das famílias rurais. Além de mais saudáveis, poderão estar mais próximos deles, pois serão produzidos por seus vizinhos, quem sabe.

Prefeito Artus ressalta a qualidade de vida de quem mora no interior

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Folha do Mate

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Um debate sobre mulher, beleza e consumismo DIANA DE AZEREDO

Fรกbio Goulart e Samuel Reschke

Folha do Mate

BELAS E FERAS


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No aeroporto, a atriz brasileira de 63 anos de idade é criticada por sua aparência envelhecida, diferente da imagem maquiada e esculpida divulgada pela televisão. Enquanto isso, na Austrália, a modelo de 18 anos, que reunia milhares de admiradores nas redes sociais, decide publicar legendas honestas em suas fotos. Nelas, passa a revelar seus truques para parecer desejável, como as horas de produção, maquiagem e a quantidade de cliques necessários para conseguir um bom ângulo. Os textos, que contrastam com as belas imagens, apresentam confissões de como a aprovação das pessoas influencia na autopercepção e criticam a futilidade e a insegurança provocadas nesse jogo de aparências. O que os exemplos recentes de Vera Fischer e Essena O’Neill

têm em comum? Basicamente, as duas são mulheres de grande visibilidade em uma sociedade de valores questionáveis. Inevitavelmente, as duas são mulheres avaliadas a partir do próprio corpo e do padrão de beleza dominante. Denúncias de abusos e campanhas de conscientização, como “não mereço ser estuprada”, discussões sobre a legalização do aborto e os direitos femininos, sem falar da abordagem da violência contra a mulher como tema de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), são outros exemplos recentes que provocam a reflexão. Afinal, são debates que apresentam, em sua essência, a visão da sociedade sobre a mulher. Desde a crítica às rugas – que deveriam ser consideradas naturais – à violência doméstica que evolui para

o assassinato classificado, por lei, como feminicídio e crime hediondo –, existem crenças construídas ao longo de séculos. A ideia de que a mulher precisa depilar, tingir, cortar, maquiar, malhar e comprar para se adequar, agradar e conquistar sugere um ideal violento, de domínio e pressão sobre o corpo feminino. Porém, esses pensamentos e atitudes integram uma cultura que precisa ser compreendida em sua origem. Identificar o surgimento dessa relação entre corpo feminino, beleza e consumismo é um desafio assumido por muitos filósofos, sociólogos e pesquisadores de diferentes áreas. Os psicólogos Georges Daniel Janja Bloc Boris e Mirella de Holanda Cesídio, em um artigo chamado Mulher, corpo e subjetividade: uma análise desde o patriarcado à contemporaneidade,

Morena de olhos azuis, aos 23 anos de idade, Juliana Böhm soma, entre as conquistas em concursos de beleza, os títulos de Soberana das Piscinas do Rio Grande do Sul e A Mais Bela Gaúcha. Para impulsionar a carreira, a venâncio-airense mora em Porto Alegre, onde trabalha como instrutora de modelos. Além de exercícios físicos e cuidados com a alimentação, seus investimentos profissionais incluem pequenas intervenções cirúrgicas. São exigências por vezes incômodas, mas que, para ela, fazem parte da composição do currículo.

Militante em prol das causas feministas e vegana, Natália Luísa Escouto não come carne, nem derivados de animais, em respeito à própria saúde e aos direitos dos bichos. É formada em Gastronomia e, aos 23 anos, a santa-cruzense também mora em Porto Alegre por conta das atividades profissionais. A desenhista de mandalas traz consigo um discurso liberal em relação ao corpo feminino e comemora reflexões mais amplas como as que foram estimuladas a partir da redação do Enem deste ano, cujo tema foi a violência contra a mulher.

O riso fácil e o visual elegante parecem contrastar com o posicionamento firme e os valores transcendentais de Pâmela Francieli Rodrigues. A professora de 26 anos lidera um grupo de meninas e canta no coral da Igreja Assembleia de Deus de Venâncio Aires. Formada em Teologia, tem nos princípios bíblicos a orientação para a conduta diária. Mas, quem espera uma cara fechada, vigilante contra os “costumes mundanos”, se surpreende com seu jeito amistoso e extrovertido que esbanja leveza e descontração.

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nina se constrói (ou destrói) a partir de modelos impostos, difundidos principalmente nos meios de comunicação de massa e mais recentemente, nas redes sociais. Mas, no seu dia a dia, como diferentes mulheres percebem a influência dessa cultura? Haveria maneiras de mo- dificar esses valores? A proposta dessa reportagem é mostrar o que uma artista alternativa, uma modelo e uma teóloga pensam a respeito dessas e de outras perguntas. Para além dos rótulos superficiais, as três são belas e feras e representam versões de toda a diversidade feminina. O trio foi escolhido pela sua disposição de pensar e dialogar sobre os temas. Devido à dificuldade de reuni-las em um encontro presencial, a opção foi realizar um bate-papo online, por meio do Facebook. A ideia central foi provocar questionamentos e incentivar a troca de ideias que, sabemos, não se esgotaria mesmo depois de anos de debate. Os trechos da entrevista realizada com as três fontes são reproduzidos a seguir.

Arquivo Pessoal

lembram que a nossa cultura foi fortemente influenciada pelo patriarcalismo, ou seja, a ideia de que o homem é superior e deve dominar a mulher, o sexo frágil. Segundo eles, de 1890 a 1930, até mesmo cientistas afirmavam que, devido a uma conexão entre o útero e o sistema nervoso central, gestantes com atividades intelectuais poderiam gerar crianças doentes e malformadas. Nos livros “História da Beleza” e “História da Feiúra”, Umberto Eco explica como as definições estéticas se modificaram desde a Grécia Antiga até o século XX. Para os gregos da Antiguidade, por exemplo, cálculos matemáticos delimitavam a concepção de corpo ideal e a versão feminina sequer aparecia entre as principais obras de arte. Com o passar dos anos, as mulheres eram pintadas como puras e santas; depois, reproduzidas como indecifráveis e sensuais. Houve um tempo em que as vesgas e mancas eram motivo de piadas. Anos depois, já inspiravam poemas e canções. Situação semelhante ocorria com a magra e a gorda, movimento que vai chegar aos tempos atuais permitindo tudo – ou, ao menos, dando a impressão de permitir. No quadro ao final desta reportagem, o resumo de uma linha do tempo mostra como os conceitos de “belo” e “feio” foram alterados e de onde vêm

as referências que possuímos hoje, principalmente no que diz respeito à arte e à imagem do corpo feminino. Para Boris e Mirella, o cenário desfavorável para elas ganhou apenas novos valores: “De um lado, uma mulher pura e recatada, virgem quando solteira, e, quando casada, devotada e dependente financeiramente do esposo; e, de outro, uma mulher sensual e provocante, estável profissional e financeiramente, mas submetida às imposições da mídia. O corpo feminino, que sofreu os limites impostos pela cultura e pela sociedade patriarcal em sua busca de prazer, deu lugar ao corpo que produz força de trabalho e parece se adequar aos interesses capitalistas: o lucro e a mão-de-obra do trabalhador”, apontam os psicólogos. É como se provocar o desejo masculino satisfizesse todas as necessidades da mulher. E, mesmo mirando uma conquista amorosa ou profissional, ela estivesse sempre presa, como marionete, manipulada por visões machistas e capitalistas. Na busca pela aceitação da própria imagem, vale apelar para compras de roupas e cosméticos, gastos em academias e até mesmo cirurgias. O consumo de determinados produtos promete uma autoestima elevada e sucesso em todas as áreas. A identidade femi-


ENTREVISTA O que é belo? Natália Luísa Escouto - Humm, pra mim, “belo” é algo natural, sincero, honesto e criativo. Se pensarmos em artes, o belo pode ser qualquer coisa para o artista e diferente também para o espectador. Belo é o olhar que você tem sobre algo.

ro. Para fazer sucesso, por exemplo, na área profissional, a beleza física é importante. Mas, claro, a beleza interior deve caminhar junto. Sobre a área afetiva, posso ver, a cada dia, o quão estar de bem com a beleza física levanta a autoestima, fazendo com que tudo melhore. Resumidamente, devemos nos amar! Essa é a nossa beleza afetiva: amar para ser amado.

Pâmela Rodrigues - Pra mim, belo é tudo que faz bem a mim, ouNatália Luísa Escouto - Acredito tras pessoas, que me faça sentir bem, que exista um padrão de beleza que que agrade o olhar de Deus em mim. mesmo com tantas mudanças de paradigmas hoje em dia ainda persista Juliana Böhm - Bom, belo pra na sociedade. Muitas vezes, acabamim significa algo bom, que, em pri- mos inevitavelmente nos enquadranmeiro lugar, sentimos com a alma, do. Isso muito influencia na carreira sentimentos puros e verdadeiros. e na vida afetiva. Em relação a minha vida, tento ser o mais honesta e verA beleza física é importante dadeira comigo mesma, busco trapara alcançar sucesso pessoal nas balhar com pessoas que respeitem a áreas afetiva e profissional? minha individualidade e minha diversidade, assim como na vida afetiva. Pâmela Rodrigues - Acredito que na área profissional é extremaE vocês, já se sentiram, fisicamente importante, pois as pessoas mente, inadequadas (sem a roupa não confiam em alguém mal vestido, certa, sem os quilos ideais)? Em sujo ou não apresentável. Temos que qual momento? Como reagiram à mostrar através da aparência o que experiência? somos, porque infelizmente não conseguimos ver a alma e o espírito com Pâmela Rodrigues - No início os olhos físicos. Na área afetiva, acre- da minha adolescência, eu me senti dito que devemos nos amar primeiro, mal em um ambiente onde estavam usando o que nos faz sentir bem, com apenas pessoas brancas. Algumas decência e de acordo com o ambien- pessoas se reuniam, olhavam para te onde estaremos, sem vulgaridade. mim e diziam coisas desagradáveis a respeito da minha etnia. Senti-me Juliana Böhm - Acredito que seja humilhada e inadequada. Mas, serimportante sim, mas costumo usar viu de incentivo para me tornar uma uma frase em minhas aulas e gosta- pessoa diferente daquelas e fazer, ria de repassá-la: “A real beleza vem sim, a diferença onde passasse. Hoje, de dentro”. Falando como instrutora sou uma das maiores influências ende modelos, vejo que a “beleza” tem tre aquelas pessoas, com a graça e a uma simbologia muito grande. Mo- justiça de Deus. Meus pais sempre delos, atrizes são ícones, espelhos me disseram que eu devo ser o que para muitos jovens do mundo intei- sou, sempre me ensinaram a amar 32

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cada particularidade do meu ser. Hoje, vejo muitas meninas, adolescentes e mulheres que se espelham em mim. Acredito que nem as pessoas, nem a sociedade devem dizer quem sou ou como devo me vestir. Juliana Böhm - Sim. Nas primeiras entrevistas de emprego, por exemplo, não me vestia de acordo. Mas sempre fiz disso obstáculos a serem superados. Vamos ganhando maturidade com essas experiências. Sobre os quilinhos nada ideais?! Passei por momentos como estes também. Sempre amei o mundo dos concursos, moda. Mas, vi que precisava mudar para poder correr atrás dos meus sonhos. Foi difícil no início, mas acredito que se não fossem por estas situações nada teria mudado. E hoje agradeço a Deus por ter me dado força para lutar! Infelizmente, ou felizmente, esse mundo exige muito de você quanto profissional e dentro da palavra profissional entram vários quesitos. Quanto mais cobram de você, mais você deve lutar, pois aquelas mesmas pessoas que estão lá cobrando são pessoas que te dão valor e sabem que o seu potencial pode ir além. Natália Luísa Escouto - Nós mulheres somos constantemente pressionadas em relação ao nosso corpo... Já tive momentos em que me senti gorda, tive alguns momentos em que sofri de ansiedade e acabei engordando. Apesar de não me preocupar muito, acabei emagrecendo. Algo que me marcou muito na adolescência foi meu cabelo que é cacheado/ crespo. Por muito tempo prendi e o escondi, mas sempre gostei dele. Tive inúmero apelidos, chicletes colados, canetas e objetos colocados nele.


Cabeleireiro sempre foi difícil de enPâmela Rodrigues - Faço depilacontrar e a sociedade cobra muito ção, mas não definitiva. Como uma cachos perfeitos, cachos domados e mulher cristã, nunca fiz nenhuma eu não me enquadro nesse padrão. dessas coisas, nem pretendo fazer, pois me amo como sou e não sinto que Natália e Pâmela, alguma vez preciso disso. Penso que a aparência vocês alisaram os cabelos, nem de uma mulher, muitas vezes, revela que tenha sido por curiosidade? o seu coração. A aparência exterior agradável deve trazer as pessoas para Pâmela Rodrigues - Nós mulhe- perto, dando a oportunidade de falar res crespas temos que amar nossos de Cristo no seu interior, através de cachos, pois são únicos e lindos! Sim, às vezes aliso, porque gosto de mudar, “HOJE JÁ EXISTEM faço penteados diferentes, tranças, mas o que mais gosto são os cachos! MUITOS MOVIMENTOS Natália Luísa Escouto – Nunca. Nunca quis. Gosto muito do meu cabelo e, mais do que beleza, ele representa a minha descendência. Por parte de pai, sou negra apesar da brancura na pele. Vocês já fizeram alguma modificação no corpo? Tatuagem, dieta, cirurgia, alisamento (como já mencionamos), maquiagem definitiva, tratamento de depilação...?

DE EMPODERAMENTO DAS MULHERES E, PRINCIPALMENTE, OS MOVIMENTOS FEMINISTAS QUE TENTAM REFLETIR O PADRÃO BRANCO, OCIDENTAL, CISGÊNERO, CLASSISTA NAS REDES SOCIAIS. E POR ISSO, MUITAS MULHERES ESTÃO ANSIOSAS, DEPRESSIVAS E LUTANDO COM SEUS PRÓPRIOS CORPOS”

grupo que as redes sociais, curtidas, nem mesmo a sociedade devem dizer a elas o valor que elas têm! Essas coisas não me fazem a cabeça. Mas, para a comunicação e divulgação do que queremos mostrar, é importante. Juliana Böhm - As pessoas deveriam ter um pouco mais de cuidado quando falamos em redes sociais. Elas expõem muito de suas vidas, não havendo limites. Minha opinião é que usem esta ferramenta de forma correta, para fins de divulgação, comunicação... e não apenas como um passatempo. Natália Luísa Escouto - Acredito que sim. Hoje já existem muitos movimentos de empoderamento das mulheres e, principalmente, os movimentos feministas que tentam refletir o padrão branco, ocidental, cisgênero, classista nas redes sociais. Somos bombardeadas a todo tempo sobre a dieta da moda, as roupas da moda, como ficar com o bumbum durinho, como conquistar o cara ideal, mulheres lindas e maravilhosas, magras, ricas, bem vestidas, bem sucedidas nas revistas, nas novelas... Nas redes sociais, ainda condenam a roupa que usamos, o corpo que temos, condenam e reprimem nossa sexualidade, somos oprimidas de inúmeras maneiras. E por isso, muitas mulheres estão ansiosas, depressivas e lutando com seus próprios corpos.

Juliana Böhm - Sim, já fiz cirurgia plástica. Fiz rinoplastia. E atualmente estou em tratamento de depilação (depilação a laser). Lembro que fiz isso para o meu bem-estar. Acho que antes de decidir fazer alguma modificação no seu corpo, deve-se avaliar bem. Antes de qualquer decisão, tendo 23 anos, sento e converso com os meus pais. Pra mim, a opi- sua aparência (2 Coríntios 3:2,3). nião e o apoio deles é fundamental. Isso, em relação a mim! Cada mulher Qual seria o padrão de beledeve fazer o que acha de si mesma. za feminina que faz sucesso nas Natália Luísa Escouto - Teredes? Na opinião de vocês, até que nho algumas tatuagens, sou vegetariana/vegana há quase quatro ponto as redes sociais influenciam Pâmela Rodrigues - Percebo que na autopercepção feminina? anos. Fazia depilação com cera com as mulheres estão se vulgarizando frequência, mas agora não mais. muito nas redes sociais. Quanto mePâmela Rodrigues Influenciam Quando dá vontade, eu depilo. nos roupas, quanto mais exposição muito! E ensino as meninas do meu


ENTREVISTA melhor. As pessoas dizem o que sentem o que pensam, colocam suas famílias, expondo crianças e a família. Acho que nós, mulheres, temos que preservar nossas intimidades. Tenho visto muitas separações e brigas nas famílias porque as pessoas não estão sabendo usar as redes sociais. Natália Luísa Escouto - Acho que a questão aqui não é como as pessoas usam as redes sociais e qual a real finalidade dela e, sim, como as mulheres estão sendo vistas nas mídias sociais. Eu me pergunto qual padrão feminino é socialmente aceito. Eu pergunto pra vocês meninas, o que é padrão feminino? Ser vulgar é socialmente aceito? Ser mulher negra é aceito? Mulher trans? Lésbica? Gorda? Juliana Böhm - Se me for permitido, eu gostaria de citar como padrão de beleza feminina, uma famosa: Gisele Bündchen. Por quê? Ela é mãe de família, é uma mulher forte e guerreira, cultiva suas tradições, é ativista da ONU. Ela é linda, mas se preocupa com outras coisas. A minha admiração é por pessoas como ela, que usam da sua carreira para ajudar o próximo. Ela mostra ao mundo que beleza não é tudo na vida. Quando citamos como exemplo um famoso(a), as pessoas costumam pensar que isso se trata de algo surreal. Mas, não. Nada é impossível! Tenho muitos sonhos, muitos objetivos a serem alcançados. E tudo isso porque um dia me espelhei nessa que para mim é um exemplo de beleza feminina. Na minha opinião sexo, cor... não padronizam a beleza feminina. E discordo em um ponto quando dito que a mulher padrão seria uma mulher magra, branca, loira... Hoje, estando dentro do mundo da moda, afirmo que isso é 34

passado. Hoje, a mulher “padrão” é exótica, ou seja, não existe mais um padrão. Trabalhamos com um mercado muito amplo, com categorias: comercia, fashion, kids, pluz size... Cútis: branco, moreno, negro... Na opinião de vocês, esse perfil que rende centenas de curtidas (socialmente aceito) tem relação com o sistema capitalista? De que forma?

“SOMOS JULGADAS POR NÃO USAR TAL ROUPA OU USAR ROUPAS QUE NÃO SÃO FEMININAS, AGIR DE TAL MANEIRA, SER VADIA, SER SANTA, BEBER, FUMAR, CABELO SOLTO, SALTO, TÊNIS, ESPORTE, PROFISSÕES E TANTOS OUTROS ASPECTOS DAS NOSSAS VIDAS” Pâmela Rodrigues - Sim quanto mais compramos, quanto maior o poder aquisitivo, melhor é a mulher! Percebo que é isso que a sociedade impõe! Também penso que o diferente é sempre uma ofensa à sociedade! Lamento, mas eu, como um ser livre e cristã (que também sofre bastante preconceito), não concordo com algumas coisas, mas isso não significa que não deva respeitar a cor da pele, cabelo, opção sexual, peso...

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Penso o mesmo que você Juliana. Beleza feminina é impossível ser padronizada! Nas propagandas, televisão, internet, redes sociais, no comércio, se vê mulheres expondo seus corpos de forma sedutora e, por que não dizer?, vulgar, dando a entender que se você comprar esses produtos ficará como elas ou, sendo do sexo oposto, atrairá outro sexo! Sinceramente, não concordo com esse tipo de pressão social, até porque a maioria das mulheres que se expõem na mídia dessa forma não são assim como expostas. São submetidas a cirurgias e treinamentos rigorosos para ficarem perfeitas nos ditos padrões. Natália Luísa Escouto - Pra mim capitalismo e padrões socialmente aceitos têm relação sim. Como a Juliana comentou, talvez seja surreal pra muitas meninas sonharem em ser a Gisele, ou tentar a carreira de modelo. Isso faz com que tentamos nos enquadrar por meio do consumo. A maioria das empresas de cosméticos, roupas, sapatos, produtos de beleza e “n” outros fazem uso de plataformas como revistas, comercias de TV, redes sociais para vender seus produtos e normalmente usam essa mulher padrão: magra, branca, loira, etc, etc. É claro que já existem campanhas de roupas com modelos pluz size, com mulheres tatuadas, mulheres negras, enfim... Mas, isso é muito raro, não? Inconscientemente acabamos nos cobrando esses padrões e consumindo esses produtos. Além de ser um público alvo de consumo “manipulado”, as mulheres também são objeto de consumo nos comercias de cerveja, de carros e tantos outros. Isso mostra que não temos total autonomia de nossos corpos. Somos julgadas por não usar


tal roupa ou usar roupas que não são femininas, agir de tal maneira, ser vadia, ser santa, beber, fumar, cabelo, salto, tênis, esporte, profissões e tantos outros aspectos das nossas vidas. Juliana Böhm - Sim. E o que me remete a pensar isso? Bom, a imagem que as pessoas querem vender ao publicar uma foto sua no Instagram, por exemplo. Pois querendo ou não, você sempre se preocupa em postar aquela foto mais bonita ou a que você acha que ganhará mais curtidas. Talvez nem todas as pessoas, mas algumas ou a maioria das pessoas sim. Vocês já usaram o batom vermelho e o decote para provocar o desejo masculino (em alguma festa...)? É certo que mulheres de short curto não merecem ser violentadas. Mas na relação entre homem e mulher, existem estratégias de sedução reconhecidas por ambos? Como lidar com essas estratégias e com esses limites, quando a vontade é exaltar a própria beleza e se comunicar com o outro? Como a mulher pode se libertar do rótulo de “santa” ou “vadia” e continuar se expressando através do corpo, sendo sensual ou preservando-se?

circunstância. Aliás, não deveriam acontecer! Existem sim estratégias de sedução, o batom vermelho, roupas justas ou curtas, pagar bebidas, etc. Mas apesar disso, muitos esperam que o primeiro passo na conquista venha do homem (o homem é quem toma a iniciativa). Muitas meninas acabam não se sentindo encorajadas a tomar a iniciativa. Muitas vezes, por ter atitudes nos relacionamentos, as mulheres são julgadas como putas, vadias, etc. A maneira que eu consegui lidar com essas relações, estratégias e limites foi atrás das vivências feministas que eu tive, questionando as relações de gênero, o machismo e o patriarcado ainda tão

“NENHUMA MULHER, DE SHORT OU DE BURCA MERECE SER VIOLENTADA. ESSE DISCURSO CULPABILIZA A VIÍTIMA E É MUITO ERRADO”

presente no nosso dia a dia. Como as meninas disseram no início, o importante é se sentir bem, se amar. Eu tive que rever muitos conceitos que Natália Luísa Escouto - Já usei eu julgava certos na minha vida e nas batom vermelho e fui pra festa pra minhas atitudes. Eu exalto a minha seduzir, não só homens, mas como beleza na minha individualidade e comentei na resposta anterior, mui- através de escolhas que fazem partas vezes me senti um objeto agindo te do meu dia a dia. Usar tal roupa e assim. NENHUMA MULHER, DE me sentir bem e ver que outra meniSHORT OU DE BURCA MERECE na também se sente bem usando tal SER VIOLENTADA. Esse discurso roupa, ou diferente, e sendo respeiculpabiliza a vítima e é muito erra- tada por toda a sociedade é o mais do. Em caixa alta pra mostrar que os importante. Sobre ser vadia ou sancasos de violência podem acontecer ta, sou as duas e muitas outras. Não com qualquer mulher, em qualquer devemos nos reduzir a estes rótulos.

Juliana Böhm - Já usei batom vermelho e ainda uso. Mas nunca usei para essa finalidade, de provocar o desejo masculino. Claro que sempre me preocupei com a aparência, ainda mais quando o assunto é: conquistar um homem. Mas, na minha opinião, uma mulher não precisa se sujeitar a essas “vulgaridades” para despertar o tal desejo masculino. Em primeiro lugar, a mulher tem que ter amor próprio. Se aceitar do jeito que é! E por que falo isso? Porque a maioria das pessoas muda o seu jeito para tentar seduzir, conquistar, ter pelo menos um dia com o homem desejado. O problema é que as mulheres não têm mais limites e se sujeitam a qualquer desafio para conquistar o paquera. Eu posso afirmar que provocar o desejo de um homem vai muito além do físico. A beleza interna (a cultura, humildade, carinho, compreensão) na minha opinião é o ponto chave. Essa é minha estratégia de sedução e será reconhecida apenas por um homem de verdade. E daqui voltamos para o inicio desse debate, o significado do belo, que por si só já reflete o significado: a alma refletindo sentimentos puros e verdadeiros. E volto a frisar, nós criamos identidades, não á necessidade de usarmos rótulos. O importante é ser você respeitando-se e sendo respeitada! Pâmela Rodrigues - Nunca usei decotes, shorts ou determinadas maquiagens para chamar atenção de alguém, pois acredito que a pessoa deve gostar de mim pela essência, que irá transbordar mostrando no meu exterior o que realmente sou. Mulher nenhuma deve passar por esse tipo de violência e trauma.


LINHA DO TEMPO - A BELEZA CORPORAL E FEMININA EM DIFERENTES ÉPOCAS

Séculos V a XV (Período Medieval) A beleza do corpo estava vinculada à beleza da alma. Os conceitos matemáticos misturavam-se aos valores cristãos. A mulher era exaltada pela sua aparência angelical, seus cabelos dourados, sua pele branca e sua postura intocável. Simbolizando a degradação física e moral, a versão feminina da

velhice se opunha à supervalorização da juventude, que representava a beleza e a pureza. Séculos XV e XVI (Renascimento) A mulher começou a usar cosméticos, tingir os cabelos e promover eventos culturais. Belas eram consideradas as formas naturais, segundo as regras científicas. A imagem feminina era descrita como indecifrável, inquieta e sensual. Nas obras artísticas, a mulher aparecia frequentemente como hábil dona de casa. Com elogios irônicos a modelos fora dos padrões estéticos, a feiúra feminina tornava-se objeto de divertimento.

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Séculos XVII e XVIII (Barroco) Vistas como elementos de atração, as imperfeições femininas eram avaliadas positivamente. Surgiam os elogios às mancas, anãs, gagas, corcundas, vergas e bexiguentas. Os cabelos pretos passam a ser exaltados. Mesmo quando as musas eram descritas de forma aparentemente depreciativa, os autores costumavam chegar à conclusão de que ainda assim amavam as suas escolhidas.

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Séculos XX a IV a.C (Grécia Antiga) O conceito de beleza estava diretamente relacionado à simetria proposta pelos pitagóricos. Nessa época, Vitrúvio calculou o que seriam as proporções corporais ideais. Definições de euritmia abordavam a importância do equilíbrio e da harmonia nas formas físicas.

Primeira metade do século XX (Pós-Revolução Industrial) Apesar de se vestirem e maquiarem conforme os modelos da imprensa de massa, as pessoas passam a desejar a arte crítica aos padrões. Os padrões veiculados pelos grandes veículos apresentam uma democracia de valores, com referências, inclusive, nas “artes maiores” (pintura, escultura). Ocorre uma “orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto politeísmo da Beleza”, aponta Eco. Fonte: Livros “História da Beleza” e “História da Feiúra”, de Umberto Eco.


A VIDA E O MUNDO APÓS WOODSTOCK

Relatos de quem esteve lá e de quem estuda o festival ajudam a entender o que realmente os três dias de paz, amor e música em 69 representaram para a história RODRIGO KAMPF

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No dia 13 de agosto de 1969, a gaúcha Marlot Caruccio saía de Nova York para fazer parte da história. Com apenas 15 anos, ela e mais cinco amigos – todos americanos – entraram em um carro e foram até a pequena cidade de Bethel, onde meio milhão de jovens proporcionariam o maior festival de música da história. Lá, durante três dias, ela viu lendas do rock como Janis Joplin, Jimi Hendrix, Creedence e The Who. Mas, mais do que isso, a jovem Marlot viveu intensamente ideais do Movimento Hippie, como a paz, o amor e a liberdade. E essa aventura, apesar de ter acontecido há mais de 46 anos, ainda tem influência no que hoje, a doutora em Letras e Direito, é. Só que não foi apenas a vida dela que mudou graças ao Festival de Woodstock. O que aconteceu naquela fazenda do interior dos Estados Unidos impactou o mundo para sempre. No interior do Rio Grande do Sul,

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Edgar Allan Poe. Após muita discussão e algumas concessões, conseguiu convencer seus pais a autorizarem a viagem. Ela, com 15 anos, já havia estado na terra do Tio Sam outras vezes e era fluente em inglês e espanhol. Esta, porém, foi a sua primeira ida ao exterior totalmente sozinha. Conhecia apenas um jovem americano com quem se correspondia por cartas. E, com ele, Margot se encontrou lá. Chegou à metrópole Nova York em julho de 1969 e, na reta final de sua viagem, ficou sabendo de Woodstock. Por serem fãs de rock, ela e o amigo americano decidiram ir – o sonho da gaúcha, por acaso, era ser a Janis Joplin latino-americana. Nas semanas em que esteve longe de casa, Margot conheceu os hippies. Na universidade onde estudava, conta, existia uma comunidade alternativa formada por jovens que seguiam este movimento. “Eu notava lá um sentimento de liberdade

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mais precisamente na cidade de Pelotas, a vida era muito diferente em 1969. A televisão ainda engatinhava e o acesso às informações estava limitado, principalmente porque a ditadura militar estava fervendo no Brasil. É neste cenário que vivia Marlot. Porém, ela era diferente das outras crianças do seu convívio. Lia muitos livros, viajava para outros lugares do mundo com sua família e mantinha um espírito rebelde – possivelmente fruto destas experiências. Basicamente, não compartilhava o sonho das suas amigas: ter um lindo baile de debutantes, achar o marido ideal, casar e viver o resto da vida como em uma linda radionovela. Ser diferente, no entanto, não era fácil. Mesmo assim, a jovem Marlot não imaginava o que ela estava prestes a vivenciar. A ideia de ir aos Estados Unidos surgiu pela vontade de fazer um curso de literatura americana, com foco nos contos do famoso escritor


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tremendo, por estar sozinha e por estar em contato com toda essa geração que ia contra os paradigmas da sociedade. Mas, realmente, não sabia o que esperar do Woodstock, era tudo novidade”, explica. A pelotense, seu amigo e mais dois casais, conhecidos do americano, pegaram um carro dois dias antes do festival começar oficialmente, e rumaram a Bethel. Todos os companheiros eram mais velhos que Margot e apenas metade do grupo tinha ingresso comprado para o festival. “Sabíamos que teria muita gente, que seria ruim de chegar e de estacionar. Mas não tínhamos ideia do que realmente iria acontecer. Eu tinha ingresso e uma das primeiras coisas que fiquei sabendo foi que eles abriram as porteiras e deixarem todo mundo entrar.” Margot lembra que, quando viu a dimensão do que estava acontecendo, ficou surpresa e “em estado de guarda”. “Era muita gente e nós não levamos barracas. Uma noite dormi no carro, nas outras descansei onde dava mesmo. Já para chegar aos shows, tinha que brigar. Para ver a Janis cheguei cedo, peguei um bom lugar e dormi onde estava”, recorda. A gaúcha também relembra que havia um posto de gasolina há uns 15 quilômetros do festival, onde foi possível tomar banho, comer alguma coisa e descansar. Outras pessoas, no entanto, se banhavam em um grande lago ou simplesmente aproveitavam a chuva e o barro. “Foram três dias de festival, mas ficamos cinco por lá. A saída também foi bem difícil, ficamos na chuva, dormimos na rua e passamos muitos sacrifícios. Mas em um lugar desses, nesta situação, tem que se adaptar.” Por ser diferente do que a maioria das jovens pelotenses da sua idade, Margot acredita que estava mais preparada para viver o Woodstock. Mesmo assim, não fazia ideia de que

aquilo tudo entraria para a história. “Estar lá, para mim, era um ato de rebeldia. Estava fazendo algo que meus pais não sabiam e nem iriam saber. Então, para começar, tomava uma atitude que mudaria a minha vida. Mas quando se juntam tantos jovens com essa mesma sensação, a dimensão é outra, muito maior e melhor. Sentíamos mesmo que tínhamos força de mudar alguma coisa no mundo, era o que queríamos lá. E acho que realmente mudamos”, afirma. Uma geração que se traiu E mudaram mesmo. Mas não foi assim tão fácil. Após vivenciar algo único no festival, onde questões tão atuais, como igualdade de gênero e raças, vegetarianismo, amor livre, drogas e a liberdade, eram discutidas abertamente, Marlot acabou traindo os ideais difundidos pelo movimento hippie. E não foi a única. Mas, para entender o que isso quer dizer e o que o evento representou e ainda representa, é preciso olhar para antes de 1969. É preciso tentar compreender como os Estados Unidos da América motivaram meio milhões de jovens a viverem algo tão intenso, significativo e único como o Woodstock. Para o historiador e cineasta Beto Rodrigues, o Woodstock foi o clímax de várias vertentes de movimentos sociais que se desenvolveram nos EUA após a Segunda Guerra Mundial. “O país, ao contrário das potências europeias, saiu da guerra fortalecido e como o novo comandante do mundo ocidental. Além disso, a guerra fria criou uma polarização artificial no planeta, considerando o lado ‘de cá’ como ‘o mundo livre’ e o ‘de lá’ como pertencentes a um mundo dividido por uma ‘cortina de ferro’”, explica. Porém, nesse “mundo livre do lado de cá” havia profundas diferenças sociais, opressão política, falta de liberdade e se-

gregação social, que acabaram ocasionando movimentos importantes a partir do começo dos anos 60. “Na contramão disso, o país chafurdava em uma guerra que nada tinha a ver com as demandas da sua população.” A guerra do Vietnã significou o envio de centenas de milhares de jovens sonhadores para combater por algo que não tinha relação com a defesa da pátria nem com qualquer sonho de futuro de uma gama de homens na flor da idade. Assim, a causa pacifista começa a crescer a partir da metade da década de 1960 e se soma às bandeiras em prol do negro e das liberdades civis, tornando-se, pouco a pouco uma grande cauda de insatisfação social. De acordo com o historiador, o rock e a música pop, como manifestações artísticas e culturais nascidas no seio da juventude, não ficariam imunes e insensíveis a esses apelos sociais, justamente por também terem em suas raízes o preceito da rebeldia. “Pois é justamente a confluência desses três movimentos que gera o fenômeno que foi o Festival de Woodstock, turbinado ainda por um sentimento de ‘revolução de costumes’, isto é, a necessidade de romper com alguns dos paradigmas americanos de felicidade, o ‘american way of life’.” Porém, Rodrigues ressalta que o evento em si não teve intensão alguma de ser ou gerar um movimento social. Ele foi pensado por seus ousados e desavisados organizadores como um mero concerto de rock onde eles “poderiam ganhar uma grana fenomenal”. “Como qualquer evento, mesmo tendo uma repercussão enorme, marcando a passagem de uma época a outra e deixando fortes marcas subjetivas nos que estiveram lá, ele padeceu por seu sentido de transitoriedade”, explica. Após o festival, parte das pessoas que estiveram lá, durante um tempo constituíram


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comunidades hippies e de certa forma se isolaram socialmente, criando seu mundo à parte e com regras que, mesmo diferindo das relações sociais e de família convencionais, não tinham nada de revolucionárias – apesar de terem um sentido simbólico importante através da pregação da paz e do anti-imperialismo. “Mas a grande maioria dos que lá estiveram voltaram a suas vidas normais, alguns ainda motivados a participarem de movimentos de protestos, como os que seguiram eclodindo contra a guerra do Vietnã ou em apoio à causa negra. Mas, certamente, a maioria buscando integrar-se ao tecido social tal como ele se encontrava e cada um buscando formas próprias 40

de revolução”, afirma Rodrigues. O historiador, mesmo assim, considera indiscutível que o Woodstock ajudou muito o ambiente sócio-político-cultural do EUA a melhorar e contribuiu para dar força à causa dos direitos civis e para a necessidade de retirada do Vietnã. “O Woodstock reforçou a importância da vida social, do sentido de cooperação, da força que adquirem as ações coletivas e de enxergar o outro”, avalia. Então, mesmo não sendo e nem gerando por si mesmo um movimento político e uma determinada linha ideológica, Rodrigues acredita que o festival ajudou a reforçar também o sentido da diversidade social e racial e isso se tornou uma

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marca muito significativa nas mudanças comportamentais que mundo passou a viver desde os anos 70. Portanto Margot, a pelotense que esteve lá, está certa quando acredita que ela e os outros milhares de jovens mudaram alguma coisa. A guerra acabou e, aos poucos, paradigmas foram quebrados. “Demorou bastante, mas se formos ver hoje, a maconha é liberada em vários estados americanos, o casamento gay foi legalizado e o país conta com um presidente negro”, afirma a professora de Direito. Mas admite: “Nossa geração nos traiu”. E ela fala isso em todos os sentidos, pois, ao voltar para o Brasil após o Woodstock, abandonou muitas das coisas que acreditava e


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acabou entrando no sistema necessário para a sobrevivência. “Eu fui com 15 anos para os Estados Unidos. Com 16, conheci meu marido, casei com 17 e com 21, já era mãe. Ou eu me enquadrava ou não ia dar certo.” Mas Margot sabe que não foi apenas ela que passou por essa mudança. A geração, em si, não manteve alguns anseios que defendia durante o movimento hippie. “Tudo que é oito ou oitenta cai fora. Foi o que aconteceu. Toda aquela cultura hippie pecou pelo excesso. Brigávamos contra os paradigmas impostos pela sociedade. Não queríamos a lógica do consumismo, ser um bom menino e ter um bom emprego, mas o país e

a mídia não queriam isso e combateram essa lógica com todas as forças.” Mesmo assim, tendo seguido o fluxo da sociedade e “se traído”, Margot acredita também em várias conquistas importantes. “A ideia era mudar a minha vida e ela realmente mudou. Eu, após o Woodstock, impus limites até onde as outras pessoas podem mandar em mim. Trouxe de lá uma vontade de não me deixar controlar e mantenho isso até hoje.” Depois de casada, Margot veio morar em Santa Cruz do Sul com o marido, onde permaneceu até a década passada. Sobre a sociedade atual, a professora acredita que poderia estar melhor, pois falta muito

ainda para avançar. “Fico indignada com o conservadorismo nas relações afetivas. As pessoas não podem ser preconceituosas com o amor. O amor não pode ter divisões. É inadmissível que isso ainda seja discutido.” Mesmo assim, diz que existem ainda muitas pessoas lutando pelo certo e que incentiva esse pensamento na universidade onde trabalha. “Faço minha parte. Precisamos de um mundo melhor. Não aquele pensado pelos hippies, mas podemos pegar vários daqueles ideais defendidos para usarmos nos dias de hoje. Não seria ruim um planeta com mais paz, amor e liberdade. Um mundo com mais Woodstock”>

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A queda do Muro de Berlim e o fim da URSS não conseguiram acabar com a ideia de uma sociedade diferente do capitalismo FREDERICO DE BARROS SILVA 42

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Fábio Goulart

SOCIALISMO NO SÉCULO XXI


Fábio Goulart

Em 1989, o Muro de Berlim, que dividia a Alemanha e o mundo, foi derrubado. Iniciava ali um longo processo que culminaria no fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e teria impacto global nas esquerdas. Ainda que, de certa forma, o capitalismo tenha prevalecido e os últimos resquícios do socialismo se restrinjam hoje a alguns poucos países – como China, Cuba e Venezuela – a ideia de uma sociedade mais igualitária, onde os recursos são geridos e administrados pelo Estado, não foi enterrada. Da obra “Manifesto Comunista”, escrita pelos alemães Karl Marx e Friedrich Engels em 1848 até a desintegração do bloco soviético, passaram-se 144 anos. Os escritos de Marx tiveram profundo impacto em todos os setores da sociedade. Da guerrilha em Cuba, aos zapatistas e sandinistas na Nicarágua, da resistência ao imperialismo no Vietnã à consolidação do bloco soviético no Leste Europeu, abrigando diversos países, a doutrina de Marx e Engels por muito tempo foi uma alternativa possível de sociedade. No entanto, existem controvérsias sobre a questão: há quem defenda que o socialismo real, de fato, nunca foi posto em prática, enquanto outros acreditam na tese de não seria possível realizá-lo dentro do contexto da globalização. Mas, afinal, o que é o socialismo? O socialismo surge em contraposição ao capitalismo, ganhando ao longo do tempo diferentes interpretações e novas reconfigurações teóricas conforme a sociedade avança dentro do capital. Em um mundo socialista, os meios de produção, como empresas, indústrias e a terra são de propriedade da sociedade, geridos pelo Estado, de modo que os processos produtivos são divididos de forma igualitária entre todos. A estrutura de uma sociedade socia-

lista também prevê a inexistência de uma sociedade dividida em classes, visto que só existe uma: a proletária. No âmbito da economia, o Estado faz a sua regulamentação e o seu controle, eliminando a flutuação de preços e o mercado financeiro. Segundo Engels, o socialismo não é uma descoberta casual, ou de um intelecto genial, mas como produto necessário da luta entre duas classes formadas historicamente: o proletariado e a burguesia. O sonho pode se transformar em realidade, solucionando as contradições: os trabalhadores tomam o poder político e por meio dele convertem as propriedades públicas em os meios sociais de produção, saindo das mãos da burguesia. Mesmo em países comandados por governos de esquerda, comunistas ou socialistas, como China, Cuba e Venezuela, o ideal socialista não é plenamente colocado em prática. A bolsa chinesa tem assustado o mercado financeiro neste ano, mas as previsões são de crescimento. O regime comunista chinês encanta pela perfeição na sua execução, mas ainda é um regime. Do outro lado do mundo, a situação é diferente. Após a morte de Hugo Chávez, líder da revolução bolivariana, a Venezuela passa por momentos turbulentos, com a falta de alimentos, uma inflação descontrolada e problemas sociais. A corrupção é outro mal que assola o mandato de Maduro, sucessor de Chávez. Por fim, Cuba sobreviveu heroicamente meio século com um embargo econômico imposto pelos americanos, em um mundo tomado pela globalização. Após a queda da URSS, a ilha de Fidel tem como sua maior parceira econômica a Venezuela. Mas, sem dúvidas, o caso mais emblemático é da América Latina: após a excitação com a conquista da presidência da república em países, como Brasil, Equador e Uruguai, por parte de par-

tidos de esquerda, há uma retração geral e a fórmula parece esgotada. As diferentes teses tentam explicar como este cenário se formou. A falta de reformas estruturais e a política de conciliação com a burguesia são apontadas como as principais causas responsáveis pela retração geral do crescimento na América Latina e a diminuição dos avanços sociais. Para Elbes Marques Belardinelli, professor de História e simpatizante da tendência interna do PT, Articulação de Esquerda, a situação é complicada, mas não ao ponto de desistir da luta. “Vivemos momentos difíceis na América Latina, com a morte de Chávez e o momento de reorganização de Cuba. A crise estrutural e orgânica do capitalismo, que começou em 2008, com a queda do valor das commodities e a crise da China, colocou em cheque toda a América Latina e o processo que tinha começado em 1998 e 2000, com os governos pós-neoliberalismo. Estamos em meio a um tempo de incertezas e de disputa. Não é momento de pular do barco, e sim de disputá-lo e ganhar os trabalhadores para o nosso projeto, que é de superação do neoliberalismo. Um projeto não que desenvolva de maneira mais humana o capitalismo, pois isso a história já nos mostrou que não existe. O que nos resta é outra coisa: o socialismo”, conclui. Este ponto de vista é reforçado pelo sociólogo Valter Freitas. Para ele, é necessário superar o capitalismo, visto que este mesmo modelo não se adequa às necessidades dos trabalhadores. “Segundo Marx, trabalhar a vida toda para nos alimentarmos, nos abrigarmos e descansamos não nos distingue, enquanto mundo das necessidades, dos demais animais. Precisamos nos apoiar na ‘ágora moderna’ dos novos movimentos sociais, que não canalizam mais as suas reivindicações


às instituições do estado burguês, para construirmos uma nova sociedade sem exploração e opressão. Devemos postular uma nova forma de organização social que estabeleça uma relação de equilíbrio com a natureza e fortaleça os vínculos de solidariedade entre as trabalhadoras e os trabalhadores”, explica. O comunismo, o trabalhismo e o petismo O grande momento do comunismo no Brasil aconteceu durante a década de 30, comandado por Luís Carlos Prestes, líder da Aliança Nacional Libertadora e membro do Partido Comunista Brasileiro. Na década anterior, Prestes comandara a controversa Coluna Prestes, em oposição à República Velha e às oligarquias rurais, exigindo o

voto secreto e o ensino primário aos brasileiros. No entanto, a escritora Eliane Brum relata outro lado do movimento em seu livro Coluna Prestes – O Avesso da Lenda, onde sobreviventes contam uma rotina de estupros, saques e assassinatos. Prestes ainda seria preso em 1936, na ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas, outra figura controversa. Vargas é considerado por muitos um “ditador”, ainda que tenha ajudado na construção da CLT e seja conhecido como o “pai dos pobres”. Durante a Era Vargas, o comunismo foi fortemente combatido pelo gaúcho de São Borja, por ser visto como uma ameaça. O mesmo pretexto foi utilizado na Ditadura Militar para acabar com a esquerda brasileira. Nesta época, diversas organizações aderiram à guerrilha por terem entrado na

ilegalidade no regime militar. Entre os principais episódios do período, podemos destacar a adesão de movimentos comunistas e de esquerda na Guerrilha do Araguaia, que aconteceu entre as décadas de 60 e 70 na divisa dos Estados de Tocantins e Pará. Entre os guerrilheiros da época surgiram nomes de relevância na política, como José Genoíno, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, Dilma Rousseff, atual Presidente da República, e José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil no governo Lula, este último, líder estudantil naquele período. Nos anos finais do regime militar, o movimento operário em São Paulo eclodiu e promoveu uma série de paralisações e greves com a adesão de milhares de trabalhadores. As greves do ABC tinham um líder, o operário Luís Inácio Lula da

Pintura do artista mexicano Diego Rivera, marido de Frida Kahlo, intelectual comunista. O casal abrigou o revolucionário Léon Trotsky (ao centro), durante sua passagem pelo México. À direita, Engels e Marx

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Para Belardinelli, a classe trabalhadora ainda tem o PT como referência na luta dos trabalhadores

sileiros, que reproduzia a máxima da política das classes dominantes: o novo para governar tem que fazer concessões e aliar-se ao velho. O PT foi, a passos largos, abdicando de suas bandeiras históricas e paulatinamente foi abrindo mão de fazer política com ética. Primeiro para angariar recursos para o partido e, depois, quando foi consolidando-se a burocracia partidária para a mesma elucubrar-se das isenções de impostos, concessões e concorrências fraudulentas do setor privado da economia”, avalia. Ainda, conforme a visão do sociólogo, ‘o PT que emergiu das lutas sociais está morto’. “O Partido que ainda tenta nos seduzir tornou-se um amo e não mais senhor dos destinos da maioria”, decreta. No entanto, Belardinelli vê como

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Silva, que viria a ser presidente em 2002. Lula comandou greves que mobilizaram mais de 100 mil operários de fábricas e acabou sendo preso pela ditadura, em 1980. O líder sindical viria a ser liberado após 30 dias e, ainda naquele ano, fundaria o Partido dos Trabalhadores (PT). A Lei da Anistia, aprovada em 1979, ainda faria com que intelectuais e diversas lideranças políticas, que exilaram-se durante o período no exterior, voltassem ao Brasil, como Leonel Brizola, fortalecendo o campo da esquerda. Brizola fundou o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e disputaria em 1989 as eleições presidenciáveis ao lado de Lula, pelo PT. Embora o campo da esquerda tenha avançado e conquistado estados e até mesmo a Presidência da República, a sociedade brasileira sempre foi conservadora, conforme reforça Freitas. Ainda que nos últimos 13 anos, o governo federal seja comandado por um partido de esquerda, isso não teve como consequência uma sociedade majoritariamente a favor do socialismo. Inclusive, o governo e o PT, no momento, sofrem um enorme desgaste por conta das denúncias de corrupção envolvendo a companhia estatal de petróleo Petrobras. Segundo Freitas, o PT se perdeu na corrida para a Presidência da República e não representa mais a luta dos trabalhadores. “O PT significava a esperança e constituiu-se na primeira experiência dos representantes dos trabalhadores com as instituições que gerem e administram o estado burguês. Ele não se propunha a edificar o socialismo, mas lutar por uma sociedade mais justa e igualitária. O primeiro governo do PT já é o resultado da pressa do seu principal dirigente em ser eleito. Lula pediu todo o poder ao partido e, fruto desta concessão, articulou um documento intitulado Carta aos Bra-

importante os avanços obtidos na última década, através das políticas sociais. Ele ainda enxerga o PT como a representação da classe trabalhadora, mesmo com os problemas enfrentados pelo partido. “Sob o governo Lula tivemos avanços significativos principalmente para os mais pobres. Nem o PT, nem a CUT acabaram e, mesmo com todas as contradições existentes, ainda dirigem o movimento dos trabalhadores do Brasil. Lula segue sendo a maior liderança da história do país e, portanto, romper com isso é um grave erro. Temos que disputar o PT para girá-lo à esquerda”, ressalta. Ambos concordam com a possibilidade de construção de um mundo melhor, de viés socialista. “Sigo acreditando, mesmo com todas as dificuldades,


que temos de construir alternativas, como a Frente Brasil Popular, que estamos construindo junto aos movimentos sociais, e demais partidos de esquerda. Acredito que com a crise atual, chegamos ao fim de uma etapa e que temos que construir uma alternativa e essa é por esquerda”, declara Belardinelli. Freitas vai

ao encontro à mesma posição do professor de História. “As contradições na nossa sociedade estão cada vez mais acirradas, mas os meios de dominação social têm difundido um individualismo extremado que impõe uma integração subalterna das novas gerações em um mercado de trabalho volátil. Acredito que os

novos movimentos sociais podem despertar na coletividade a ideia de pertencimento. Não queremos e não podemos reduzir o nosso poder de decisão às nossas escolhas feitas, individualmente, de candidatos que, a cada dois anos tornam-se os negociadores e, portanto, falsificadores das nossas vontades”. A luta continua.

AS TENDÊNCIAS INTERNAS DOS PARTIDOS DE ESQUERDA DO BRASIL As diferenças de linhas de pensamentos se refletem nas divisões dos partidos de esquerda, seja na sua programática, linha de atuação política, econômica ou social. Confira as principais tendências internas dos partidos de esquerda no Brasil: Partido dos Trabalhadores (PT): Em seu IV Encontro Nacional, realizado em 1986, o PT reconheceu o direito de tendências, se afirmando como um “partido democrático, de massas e socialista”. Entre as divisões do PT estão: Construindo um Novo Brasil: antigo Campo Majoritário, que lidera o partido desde 1993, sendo o responsável pelas alianças com partidos conservadores e a chegada à Presidência da República em 2002. Entre os principais nomes estão Lula, Rui Falcão e José Dirceu. Democracia Socialista: tem em seus principais nomes o ex-prefeito de Porto Alegre Raul Pont e o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. Tem grande base no Rio Grande do Sul. Mensagem ao Partido: entre 2003 e 2005, quando o partido enfrentava a crise do mensalão, perde parte dos integrantes, que saem da corrente e fundam o Par46

tido Socialismo e Liberdade (PSOL). O Trabalho: tendência de orientação trotskista, que se mantem no PT após o racha da Convergência Socialista, atual PSTU. Articulação de Esquerda: no início dos anos 90, chegou a ser a maior tendência interna do partido, em oposição ao Campo Majoritário. Defende um projeto popular, democrático e socialista. Outras tendências petistas: Militância Socialista, Esquerda Marxista, Esquerda Popular e Socialista, Partido de Luta e de Massas e Novo Rumo. Partido Socialismo e Liberdade (PSOL): Após a reforma na previdência em 2003, o governo Lula enfrentou resistência dentro do próprio partido, com grandes críticas a condução da política econômica, por parte de uma ala “rebelde” do PT. Com a expulsão de parlamentares como Chico Alencar, Heloísa Helena e Luciana Genro, nasce o PSOL, em 2004. O partido se diz oposição de esquerda ao atual governo Dilma. Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) O PSTU se forma em torno do grupo Convergência Socialista, expulso do PT em 1992. Defende um governo dos trabalhadores.

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Partido Comunista Brasileiro (PCB) Fundado em 1922, o Partidão, como é conhecido, ficou 62 anos na ilegalidade, entre a ditadura do Estado Novo e o regime militar. Reorganiza-se e retorna após o fim da ditadura militar, com uma cisão, que culminou na criação do PPS. Partido Popular Socialista (PPS) Grupo majoritário do PCB, comandado por Roberto Freire, adota a atual sigla. É conhecido por posições centristas. Partido Comunista do Brasil (PCdoB) Criado em 1962, durante a ditadura militar, atrai comunistas e adota a sigla PCdoB. Aliado do PT, guia-se pela teoria científica de Marx, Engels e Lênin. Partido Democrático Trabalhista (PDT) Partido fundado por Brizola, em seu retorno ao Brasil após a Anistia. O PDT foi aliado histórico do PT em nível federal. Decidiu pela sua saída da base aliada em 2015. Partido Socialista Brasileiro (PSB): Outro aliado histórico do PT, o PSB decidiu pelo rompimento com o governo em 2013, tendo candidato próprio na eleição presidencial em 2014.


ORGULHO E PRECONCEITO Postura dos grupos tradicionalistas diante de temas como casamento gay divide opini천es entre homossexuais FRANCIELI GRAFF


O estado do Rio Grande do Sul é conhecido pelo jeito de ser “campeiro” e pela fama atribuída aos gaúchos, de homens rudes, “machos” e que preservam a memória de seu povo. Que não se intimidam diante dos desafios inerentes à lida rural. Porém, ao longo de cinco séculos de tradição, é a primeira vez que esta cultura se defronta com uma questão que sempre esteve presente na história da humanidade, mas que só agora começa a ser compreendida na sociedade: o homossexualismo. Antes de tudo, vamos entender o que a palavra gaúcho significa. De acordo com o livro ABC do Tradicionalismo Gaúcho, a palavra tem uma denominação gentílica dada aos filhos do Rio Grande do Sul, no entanto, não tem uma origem segura. Para o escritor Aurélio Porto, seria “homem que canta triste.” O escritor Daniel Granada define como “homem do campo, cavaleiro, vaqueano, guardião das tropas.” Martiano Leguizamón diz que é “criado sem pai sem mãe.” Augusto de Saint-Hilaire afirma ser “homem que vivia de carne, morava em ranchos, tinha os hábitos do chimarrão e do fumo e andava a cavalo”. O gaudério, como também é chamado tradicionalmente, é considerado macho, forte e valente. Desde criança lhe ensinavam que homem não chora e que não se poderia ter medo. Quando ainda menino, era tirado de perto da mãe e mandado para os galpões, para se tornar homem de coragem. O gaúcho preserva a tradição, que é o ato de perpetuar os hábitos culturais de uma geração para outra. É a conservação das lendas, narrativas,

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valores espirituais, acontecimentos históricos, hábitos inveterados, através do tempo, de pais para filhos. É a memória cultural de um povo. Tradição é, basicamente, um culto. Para o autor do livro, Salvador Ferrando Laamberty, o tradicionalismo, que é o nosso foco, é a arte de colocar em movimento as peças do costume de um povo. No estado do Rio Grande do Sul, o Movimento Tradicionalista teve seu primeiro embrião na fundação do Partido Liberal Histórico, em 1860, por Gaspar Silveira Martins, Antônio Gomes Pinheiro Machado, Manuel Luis Osório e Felix da Cunha. A primeira iniciativa para atingir a população, que vivia nos galpões das estâncias, em sua maioria, saboreando causos e convivendo com os cenários das degolas das revoluções, foi um artigo, em 1896, escrito por Alfredo Ferreira Rodrigues. O movimento pioneiro organizado, voltado à defesa das Tradições Gaúchas, em sua arte, lutas, usos e costumes, foi a fundação do Grêmio de Porto Alegre, em 22 de maio de 1898. Foi esta entidade que realizou o primeiro desfile de cavalarianos gaúchos na Capital do Estado. Os Centros de Tradições Gaúchas, os CTGs, são como clubes. São entidades associativas com finalidade sociocultural. Para ter reconhecida sua personalidade jurídica, qualquer agremiação necessita de estatutos e de uma diretoria, que por ela responda judicialmente e extrajudicialmente. O CTG não foge à regra e tem o seu presidente e vice-presidente. Mas, neste grupo, adotou-se uma titulação simbólica, que traduz para a linguagem campeira a nomenclatura

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tradicional. Com isso, o presidente passa a ser chamado de patrão, enquanto o vice-presidente é o capataz. Em 1966, no 13º Congresso Tradicionalista de Tramandaí, foi fundado o Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), nome dado à federação de CTGs. Porém, esta imagem do gaúcho como homem rude e que cultua a tradição campeira parece contrastar com pensamentos novos que começam se instalar em nossa sociedade, dentre os quais, uma maior compreensão em relação ao homossexualismo. Buscando entender como esse processo vem se instalando nos redutos onde se cultua a tradição gaúcha, conversamos com o presidente do MTG, Manuelito Savaris, com uma ex-integrante do movimento, Natália Hendges Nunes, que recentemente descobriu a sua homossexualidade, com Solange Rodrigues, que em 2014 criou alvoroço no Rio Grande do Sul ao tentar casar com outra mulher dentro de um CTG, e com Henrique Vargas Guimarães dos Santos, que foi pedido em casamento por outro homem em um dos principais festivais tradicionalistas do estado. Natália, de 18 anos, é homossexual e moradora do município de Venâncio Aires. Ela frequentava o Chaleira Preta desde os 7 anos de idade, quando ainda não havia descoberto a sua opção sexual. Conta que entrou no CTG porque todas as amigas participavam. Gostou e nunca mais parou. Com 14 anos, descobriu que era lésbica e contou para os representantes do CTG. Segundo ela, todos foram receptivos. Natália garante que os integrantes da entidade não demonstraram ver problemas com isso. “Eles


disseram que era uma opção minha, que não mudava nada e me ajudaram muito no início.” recorda Natália. O presidente do MTG, Manuelito Savaris, diz que o CTG, como qualquer outro clube, combina questões com os seus futuros integrantes. “O tradicionalismo não pergunta a ninguém qual a sua opção sexual. Não pergunta quanto tem na conta bancária, a religião, o time de futebol e a preferência sexual. Não se pergunta isso porque não interessa saber qual é a opção sexual da pessoa. Nós trabalhamos com aspectos tradicionais dentro de um CTG”, afirma Savaris. Natália acredita que não se muda esse sistema porque o mundo está mudando. “A cultura é uma forma de preservar essa história”, comenta a jovem. “Quem está ali, está por

Henique(D) e Diogo em sua última participação no Enart

um objetivo maior, e somos respeitados”. Ela conta que teve o apoio do clube quando a própria família ainda não aceitava a sua opção sexual. Por outro lado, ela não podia agir como lésbica. Dentro do CTG, a jovem tinha que ir de vestido de prenda, dançar com peões e não poderia ter contato com a namorada. O presidente do MTG afirma que não existe preconceito por parte dos integrantes do movimento para com os homossexuais. Mas diz que “no dia em que for tradicional um casal homossexual ter manifestações públicas, como casal, aí talvez o tradicionalismo aceite.” E complementa: “mas, aí eu não sei. Porque as questões tradicionais têm tempo para ser consolidadas, assim como o folclore. Tradição não é aquilo que

eu invento hoje. Tradição é aquilo que passa de uma geração pra outra de forma espontânea.” E afirma também: “hoje a manifestação dos homossexuais publicamente, digamos assim, dois homens dançarem juntos num CTG, não é permitida, porque isso não é tradicional, e não acontece dentro do CTG.” O que acontecerá com um casal homossexual que estiver agindo como tal dentro do clube? Savaris diz apenas que “eles estarão descumprindo as regras. E serão convidados a se retirar. Ou a parar de fazer o que estavam fazendo.” A jovem venâncio-airense acredita que mesmo que os anos passem, nunca será normal homossexuais agirem como casal dentro do tradicionalismo. Para ela “isso


vem da cultura e não vai mudar.” Natália relata que deixou de participar do Chaleira Preta por falta de tempo, e que a decisão não teve nada a ver com a opção sexual. Visão diferente Solange Rodrigues tem 25 anos, mora em Santana do Livramento, é homossexual e está casada com Sabriny Benites. Em setembro do ano passado, o casamento das duas jovens iria ser realizado no CTG Sentinela dos Planaltos, que não é filiado ao MTG. A decisão de casar em um reduto tradicionalista não partiu das duas – a iniciativa foi da juíza da cidade –, mas o casal considerou interessante a ideia. Porém, um incêndio criminoso dentro do CTG impediu a realização da cerimônia no local. A união foi transferida para um fórum. A jovem, quando criança, já participou de um CTG. “Fui prenda mirim quando mais nova e naquela época, nem sabia qual o significado da palavra homossexual” conta Solange. Hoje, porém, questiona o que classifica como uma postura discriminatória dos tradicionalistas. “Acho ridículo (pessoas do mesmo sexo) não poderem nem dançar juntas dentro do CTG. Para mim é o mínimo que deveriam deixar”, opina, em tom de revolta. Solange diz ainda que os incomodados com o casamento entre ela e Sabriny “são pessoas reprimidas e que não podem ver a felicidade dos outros”. Ela garante que o preconceito é uma realidade entre os integrantes da tradição gaúcha “Aconteceu comigo. Quando saímos do anonimato,

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eu fui até o galpão, logo me conheceram. Um gaúcho fechou o pulso, na intenção de me bater. Veio na minha direção, mas não deixaram”, lembra. A experiência deixou a jovem cética em relação à possibilidade de o homossexualismo ser aceito dentro do CTG. “Acredito que eles não vão mudar nunca. Têm a mente fechada.”Já Savaris nega que exista preconceito no ambiente tradicionalista. Ele argumenta que nenhum tipo de casamento deve ocorrer em um CTG: “Lugar de casamento, não só para homossexuais, mas para quem quer que seja, é no fórum ou na igreja”, afirma. O preconceito que vem de fora Henrique Vargas tem 22 anos, é homossexual e residente de Pelotas. No 30º Encontro Nacional de Arte e Tradição da Cultura Gaúcha, o Enart, evento tradicionalista gaúcho promovido pelo MTG, realizado na cidade de Santa Cruz do Sul no dia 22 de novembro, ele foi pedido em casamento por Diogo Moreira. A homenagem gerou revolta através das redes sociais. Vargas iniciou a participação nas atividades do meio tradicionalista aos 3 anos. E relata que sempre foi atraído por homens, no entanto, até o final do ano de 2013 havia se relacionado apenas com mulheres. “Mas aí tive a oportunidade de matar a curiosidade e gostei. Me encontrei como pessoa”, conta o jovem. Afirma que a reação dos colegas do grupo de dança foi natural. “Todos continuaram me tratando com respeito e amizade. Não senti preconceito partindo deles”, diz Vargas.

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O peão, a partir do ano de 2016, não mais irá participar do Enart. Segundo ele a decisão nada tem a ver com a repercussão de seu noivado. “Desde o início de 2015, já havíamos decidido que essa seria a nossa última participação, uma vez que dançar requer muito investimento financeiro e de tempo. Assim, não conseguíamos visitar nossas famílias, por exemplo. Queremos focar no lado profissional”, afirma o jovem. Depois que o noivado foi divulgado pela mídia, o casal foi alvo de comentários negativos. Porém, segundo ele, “não partiu de ninguém do nosso círculo de amizades”. Trata-se de um preconceito que não é exclusividade de redutos tradicionalistas gaúchos. Uma pesquisa recente realizada por um instituto de recrutamento e seleção, o Elancers, constata que quase 20% das empresas atuantes no Brasil não contratam homossexuais. O fato se dá pelo desejo de não vincular a imagem seja associada ao funcionário. 7% dos entrevistados não contratam homossexuais de modo algum, e outras 11% só contratam se o funcionário não chegar a um cargo de visibilidade. Por outro lado, pode-se dizer que o Brasil é um país liberal quando o assunto é homossexualismo, principalmente se comparado a países como o Irã, onde homossexuais são punidos com a morte, e com o Qatar, que irá sediar a Copa do Mundo de 2022. No país, o homossexualismo é passível de prisão. Por outro, nota-se que há muito a mudar na mente das pessoas, estejam elas no CTG ou fora dele.


Lula Helfer /Gazeta do Sul

O RELATO DE UMA DENTRE TANTAS TRAGÉDIAS Família Fengler foi uma das mais de 130 atingidas por acidentes fatais registrados nos últimos cinco anos no trecho da RSC-287 que atravessa o Vale do Rio Pardo JAQUELINE RODRIGUES


Era um dia lindo, com sol e cara de domingo, bom para estar em casa com a família toda reunida. Mas não era domingo. Era um dia normal de trabalho, uma terça-feira, 18 de novembro de 2014. Uma data que ficará para sempre na memória de Angela Nyland Fengler. Como nos outros dias, Angela e o marido Marcelo Fengler acordaram, tomaram café juntos e embarcaram no carro da família com destino ao centro de Santa Cruz do Sul, para trabalhar. Às 7h45 saíram de casa, em Linha Pinheiral, e pegaram a RSC-287 (Santa Maria-Tabaí) em direção ao trevo do Fritz e da Frida, uma das entradas para a zona urbana da cidade. Se tudo tivesse dado certo, ingressariam na Avenida Léo Kraether em direção ao Bairro Belvedere, onde costumavam deixar a filha, Isadora, aos cuidados de um familiar. Depois, partiriam rumo à imobiliária Imobel, onde Marcelo trabalhava. Após deixar o marido no emprego, Angela pegaria o carro e seguiria até o seu local de trabalho, na Aliança Hum Telecom. Mas foi exatamente às 7h55, na altura do quilômetro 97, que o destino mudou a vida da família. De longe, Angela, viu uma camionete preta fazer uma ultrapassagem brusca, arriscada, e quase bater em um carro que seguia logo adiante deles. “Nossa, Marcelo, aquele cara está louco. Olha só, quase bateu”. Segundo Angela, Marcelo não teve tempo de responder, tentando desviar o automóvel da camionete que, agora, voava na direção deles. O que veio a seguir mudou para sempre a vida de Angela e da pequena Isadora, hoje com dois anos. O impacto da batida destruiu o Palio da família Fengler e fez tombar 52

a camionete, que transportava uma carga de cigarros contrabandeados do Paraguai – e cujo motorista fugiu. “Com o impacto da batida, o pneu da camionete veio parar em cima de mim”, recorda Angela. Instantes depois chegou um amigo da família, morador nas redondezas, que foi ver o que tinha acontecido após ouvir o estrondo. “Ele chegou antes da polícia e do resgate. Eu só pedia para salvar a Isadora, que estava no banco de trás, sentada na cadeirinha, e o Marcelo” recorda Angela. Foram despachadas duas ambulâncias, uma para Isadora e outra para Angela. Mãe e filha não podiam ir na mesma. Angela conta que um pediatra logo apareceu para cuidar de Isadora, no Hospital Santa Cruz. Já na sala onde estava a mãe da menina, o movimento era intenso. Havia muita gente, enfermeiras entrando e saindo, e Angela sempre perguntando pelo marido. “Onde ele está? Não escuto mais nenhuma sirene.” Até que chegou o momento de uma enfermeira conhecida e muito amiga da família, que cuidou da Isadora quando a menina nasceu, pedir para que todos na sala se retirassem. Deixaram ficar o pai de Angela e ela, para lhe darem uma triste notícia: o Marcelo havia falecido na hora. “Quando a maioria saiu da sala, eu já imaginava que seria para me darem a notícia. O que eu passei não desejo a ninguém”. Hoje, Angela e Isadora seguem a vida, saem aos fins de semana, vão passear com aquele vazio que nunca mais vai ser apagado da memória. A tristeza que emerge do relato de Angela aumenta ainda mais quando analisamos as estatísticas de acidentes da rodovia onde a camionete preta atingiu o Palio da família. Segundo o Comando Rodoviário

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da Brigada Militar (CRBM), quase 130 pessoas morreram nos últimos cinco anos no trecho da RSC-287 que atravessa o Vale do Rio Pardo, ou seja, entre Tabaí e Agudo, passando por Taquari, Venâncio Aires, Santa Cruz, Vera Cruz, Vale do Sol, Candelária e Novo Cabrais. Só em 2014, ano do acidente que matou Marcelo, outras 23 pessoas perderam a vida neste mesmo trecho. Ao todo foram 19 acidentes no período, que também deixaram 13 feridos. Foi um dos maiores índices de mortes nesta rodovia nos últimos cinco anos. A carnificina foi maior em 2013, quando 28 pessoas morreram em 25 acidentes registrados neste mesmo trecho. O número de feridos chegou a 25. Juntos, 2012, 2011 e 2010 registraram 61 mortes, em média, 20 por ano. Já em 2015, até o início de dezembro, foram mais 15 vítimas fatais. O próprio CRBM admite que tem dificuldades para fiscalizar a rodovia, por conta da falta de pessoal. “A fiscalização teria que ser mais intensa, principalmente no que diz respeito a excesso de velocidade, ultrapassagens indevidas e o consumo de bebidas alcoólicas, que são as principais causas dos acidentes mais graves”, afirma o comandante do Grupo do CRBM de Santa Cruz, sargento Railander Negrini. “Porém, esbarramos principalmente na falta de efetivo para atuar de forma mais eficaz”. Já se tornou senso comum que a fiscalização e as multas são justamente os grandes fatores na redução de acidentes. Mas vale citar que a carnificina na 287 e nas demais rodovias do país não vai acabar se os motoristas não mudarem sua postura ao volante. Enquanto isso não acontece, mais Angelas e Isadoras terão que chorar a perda de entes queridos.


Rodrigo Assman /Gazeta do Sul

MÚSICA NO AMBIENTE ESCOLAR Exemplo de cidadania e valorização do estudante CLEONICE GOERCK


A música pode ser um instrumento de transformação individual e social. Seus inúmeros ganhos podem ser notados também no ambiente escolar. Interação com os colegas, coordenação motora, concentração, desenvolvimento do raciocínio lógico, inclusão social e valorização da cultura são apenas alguns exemplos de benefícios que o ensino e a prática da música podem trazer. A evasão escolar também é combatida pois, como na maioria das vezes os ensaios são feitos no turno oposto ao da aula ou durante os sinais de semana, o relacionamento com a escola e com os professores é maior. Sem falar na possibilidade de desenvolver potencialidades e até descobrir talentos. A família e a comunidade também são agraciadas, não apenas pelas belas apresentações, mas também pelo convívio com crianças e jovens solidários, companheiros e conscientes de seu papel social. Todos saem ganhando: os alunos, a escola, a família, e a sociedade. Tudo isso pode ser observado na Banda Marcial da Escola Estadual de Ensino Médio Santa Cruz, criada em 2010, fruto da parceria entre a diretora do educandário Lecir Tomazi,

dos alunos que participam desta atividade. “Seria muito difícil administrar tudo se não fossem eles. Os pais apoiam, acompanham, ensaiam em casa e não se opõem em liberar seus filhos nos dias de apresentações.”. João da Fontoura, hoje um rapaz de 17 anos, deu seus primeiros passos na música em 2010. O então aluno da 4º série foi convidado a participar da primeira “turma” que formaria a Banda Marcial da Escola Santa Cruz. Começou tocando percussão, logo adiante, apendeu a tocar todos os instrumentos bocais e aí não parou mais. Em 2013, mesmo saindo da escola, atendendo a pedidos da diretora Lecir, continuou na banda, mas, agora, como regente. João lembra com carinho da primeira apresentação da banda, que ocorreu em 2011, em frente à Catedral São João Batista. Apesar do nervosismo, todos estavam confiantes e preparados. Depois desta, muitas outras apresentações vieram. Outro momento marcante foi o Festival Estadual de Bandas Marciais, realizada em Cachoeira do Sul. Hoje, João é integrante da Banda Santa Cruz. Participa também das bandas municipais de Sinimbu, Vale

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o 7º Batalhão de Infantaria Blindado (7º BIB) e pessoas da comunidade. Os instrumentos e os uniformes foram frutos de doação. Já o maestro é disponibilizado pelo 7º BIB. Atualmente a banda envolve 30 alunos e se apresenta em diversos eventos, como encontro de Bandas, desfiles, comemorações e apresentações na própria escola, sempre mostrando sua beleza e competência. Além dos músicos, há também o corpo coreográfico das balizas, formado por cerca de dez meninas, que sempre acompanham a banda. A diretora conta que o interesse em participar sempre foi grande: “Era quase uma disputa!”. Até hoje, mais de cem alunos já integraram a banda marcial. Os uniformes e os instrumentos não têm custo para aos alunos, mas cada um tem a responsabilidade de cuidar e manter a organização. Os ensaios são ministrados no turno oposto ao das aulas, normalmente uma vez por semana. Quando se aproxima alguma apresentação, os ensaios se intensificam. Lecir também enfatiza que o apoio dos familiares é um aspecto muito importante na permanência e sucesso

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Arquivo Pessoal/Tania Silva

do Sol e Vera Cruz. Porém, apesar de tantos compromissos, não esqueceu das raízes e continua atuando na Banda Marcial da Escola Santa Cruz. Ele conta que a música trouxe muitas coisas boas para sua vida. Em agosto deste ano, por exemplo, João participou de uma série de apresentações da Banda Santa Cruz no Mato Grosso “Foi uma experiência ótima! Já pude conhecer muitos lugares.”. Seus planos para o futuro são claros “Ano que vem me alisto no quartel. Lá pretendo seguir carreira militar na Banda do 7º Batalhão.”.

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e cuidavam dos instrumentos, feitos de sucatas, como latas de tinta, tambores, pauzinhos e tampas de panela. A banda também recebeu o apoio de empresas e instituições. Tânia conta que a participação dos alunos sempre foi muito grande, pois a banda exercia um importante papel social e de inclusão na comunidade. A cada ano os integrantes mudavam, mas isso não prejudicava a qualidade da música, pois todos possuíam uma grande facilidade de interpretar os diferentes ritmos. Outro aspecto interessante da Banda de Lata era a autoestima A Banda de Lata deixa saudade proporcionada aos integrantes. Os A cidade de Santa Cruz do Sul con- alunos aprendiam naturalmente as tava também, até 2013, com a Banda regras de convivência e sentiam-se de Lata da Escola Municipal de Ensi- capazes de realizar ações para a meno Fundamental Frederico Assmann, lhoria de suas próprias vidas. Além, localizada no bairro Belvedere. Foi claro, do benefício ao meio ambiente, criada em 2002 pelos alunos de 2º a pois todo o material usado foi retirado 4º séries que, devido à idade, não po- do lixo descartado pelos moradores. diam participar da banda oficial da Os ensaios eram realizados na escola, Escola. A Banda de Lata fez inúme- sendo intensificados próximos a daras apresentações na cidade e região. tas especiais, como o desfile cívico. Coordenados pela professora Em 2013, Tânia se aposentou Tânia Silva, os alunos preparavam e saiu da escola. Sem ela, a ban-

da teve fim. Mas o sonho continua. O que diz a lei A Lei Federal nº 11.769, de 18 de agosto de 2008, estabelece a obrigatoriedade do ensino de música nas escolas de educação básica em todo o país. Porém a música como conteúdo obrigatório pode estar presente no cotidiano escolar de várias formas, por exemplo, inserida na disciplina de artes, além de projetos no turno do aluno, no contra turno, ou ainda nos finais de semana. Questionada sobre o cumprimento desta lei, a Secretaria da Educação do Rio Grande do Sul, por meio do Serviço de Informação ao Cidadão explica que vem oportunizando a capacitação dos docentes das escolas da rede estadual através da realização de formação continuada, de oficinas e palestras. Hoje, a Rede Estadual conta com 50 escolas inseridas no Projeto Orquestras Estudantis. Além de escolas com bandas, correspondentes ao Programa Mais Educação e diversos grupos musicais e de canto coral.


CRÔNICA TRÊS ANOS OU TRÊS DIAS? UMA DÚVIDA DE 1969 A 2015 Por Rodrigo Kampf

O Festival de Woodstock – tema de reportagem nesta edição da Exceção – é um marco histórico para a humanidade. Foram talvez três dos mais importantes dias do século XX. E eu, como rockeiro desde criancinha e admirador dos ideais defendidos pelo Movimento Hippie, um dia me vi com uma pergunta difícil de responder. Em uma conversa de bar, com alguns amigos, surgiu a peculiar questão: “trocaria três anos da tua vida pelos três dias de Woodstock?”. Já mais pra lá do que pra cá, respondi um sonoro “SIM”. Mas, na manhã seguinte, com aquela leve dor de cabeça, comum após a ingestão de alguns litros de cerveja na noite anterior, refleti mais calmamente sobre a suposta troca. Woodstock foi um marco para a música e para a sociedade. Mas vou tentar focar apenas na parte musical dessa história. Ícones que lá tocaram nunca mais poderão ser vistos, pois os excessos daquela época acabaram os levando cedo demais. Sem chances de um dia ver Jimi Hendrix e Janis Joplin, é verdade. Esse fato, por si só, já me valeria a troca dos anos. Isso, é claro, na minha louca opinião de fã. Porém, outros festivais tiveram um peso artístico tão grande quanto aquele fim de semana em agosto de

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1969. Um deles foi, inclusive, realizado no Brasil. Considero o Rock in Rio de 1985 – o primeirão – o maior festival depois do Woodstock. Meu pai esteve lá e ouvi muitas histórias sobre aqueles dias em que o Rio de Janeiro respirou rock and roll. Bandas como AC/DC, Yes, Whitesnake, Queen, Ozzy Osbourn e Scorpions levaram os brasileiros à loucura. Mas, como nasci em 1991, também não pude viver isso. Comecei a ir a shows de rock apenas em 2005, 20 anos depois, quando vi o Deep Purple em Porto Alegre. E acabei me viciando nisso: assisti a Rolling Stones, Os Mutantes, Paul McCartney, AC/DC, Foo Fighters, Ringo Starr, Pearl Jam, Black Sabbath e tantos outros. Mesmo assim, me faltava um festival para saciar aquela sede de não ter vivido o Woodstock e o Rock in Rio de 85. E em 2015, justamente quando o festival carioca comemorou seus 30 anos, me organizei e comprei ingressos para três dias de rock and roll no Rio de Janeiro. Os mesmos três dias que duraram Woodstock, aqueles que eu – bêbado – trocaria sem pestanejar por anos inteiros da minha vida. O mundo hoje é outro e, por isso mesmo excluí da comparação que faço o lado social de 1969 e a importância histórica de 1985. Peguei meu cartão de crédito e gas-

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tei uma grana preta pela música e é sobre isso que eu começo falando. A primeira dificuldade enfrentada em um caso desses, principalmente para quem mora no interior do Rio Grande do Sul, é arranjar companhia. Queria ir, mas não sozinho. Perde um pouco da emoção. Consegui alguns amigos que pilharam assistir ao dia do metal (o segundo dos meus três). Mas para o primeiro e o terceiro ainda estava forever alone. Como as atrações principais eram Queen, Elton John e Rod Stewart, pensei ser uma boa ideia ver se meus pais não gostariam de ir comigo. Acertei em cheio! Meu pai, que esteve em 1985, estaria agora lá com seu filho, 30 anos depois. Que momento mágico! De avião na manhã de 18 de setembro, parti para o Rio de Janeiro realizar um sonho. No primeiro dia, quando poderia assistir ao Queen, não aguentei esperar os velhos decidirem sair da casa onde nos hospedamos e sai à tarde mesmo para a Cidade do Rock. Chegando lá, vi o mundo mágico da minha imaginação se tornar real. A Cidade do Rock realmente é uma cidade de rock, com o perdão da redundância. Milhares de pessoas também estavam lá desde cedo, vendo os shows que abrem o festival nos palcos alternativos. Todos


com seus copos de cerveja em mãos, sorrisos no rosto e muita vontade de ouvir e viver uma noite repleta de música boa. E, para quem ama rock and roll, isso é algo sem comparação. Não vou nem entrar na questão do preço dos produtos. Como era de se esperar, tudo é caro. Mesmo assim, o sentimento naquele local é único e o que menos importa lá são os gastos (mas o restante do mês foi sofrido). Quando cheguei ao Palco Sunset, o secundário do Rock in Rio, se apresentava a banda Ira! com participações especiais de diversos convidados. Os milhares que assistiam ao show dançavam e cantavam as canções como se fossem hippies lá de 1969. Pessoas de todas as idades se divertiam juntas. Mais tarde, quando eu já havia desbravado todos os cantos do festival, meus pais chegaram. Várias fotos registraram aquele momento histórico entre eu e meu pai, unindo duas gerações de rockeiros no principal evento do estilo neste país. Assim seguiu o Rock in Rio. Um emocionante show do Queen no primeiro dia, uma grata surpresa com a revelação Royal Blood no segundo, que ainda teve grandes apresentações como a despedida do Mötley Crüe e os gigantes do Metallica, e os ótimos Elton John e Rod Stewart, fechando com classe o domingo.

Foram todos incríveis. Mas, mesmo assim, o principal naqueles três dias, apesar do que falei antes, não foi a música em si. O que mais me marcou de ter vivido o Rock in Rio de 2015 foi o clima que encontrei lá. O país passa por um momento difícil, a crise está aí e traz dificuldades para todos. Porém, naquele momento, a ideia era curtir aquilo tudo. Era aproveitar ao máximo o momento, dançar ao som de seus artistas preferidos, conhecer pessoas e bandas novas, tomar uma cerveja gelada, cantar bem alto como se não houvesse amanhã e, acima de tudo, ser feliz. E, na real, dadas as devidas proporções, foi isso que aconteceu no Woodstock e no Rock in Rio em 1985, quando o Brasil vivia a Ditadura Militar. Os festivais, em si, representavam algo importante. Em diversos momentos de 1969, como se pode ver no filme oficial, as pessoas pediam por paz. Mas em nenhum momento faziam aquilo como algum tipo de protesto ou de forma séria. Todos estavam se divertindo, vendo shows dos seus ídolos e aproveitando ao máximo aquele momento, que posteriormente tornou-se histórico. Reunir aquele meio milhão de jovens, todos com os mesmos ideais, representou muito. Porém, quem estava lá, como conta a entrevista-

da da reportagem desta edição da Exceção, não fazia isso por protesto. Quem estava lá queria ser feliz. Durante três dias, eles esqueceram a aflição da guerra do Vietnã. Durante três dias, brancos e negros, homens e mulheres, heteros e homossexuais, ricos e pobres... todos viveram juntos, como irmãos, em uma experiência única. E é isso que eu levo do Woodstock. É isso que admiro tanto naquela geração. E foi um pouco disso que senti no Rock in Rio. Digo um pouco, e preciso dizer, porque o festival carioca é feito para poucos. Os ingressos são caros e limitados – diferente do Woodsock, onde os portões foram abertos para todos poderem entrar. Digo um pouco porque, apesar de vivermos a crise, temos uma realidade muito melhor do que a dos americanos em 1969. Digo um pouco porque o rock hoje não tem mais quase nada do seu caráter social e de protesto que tinha nos anos de seu surgimento. Mesmo assim, fico feliz com esse “pouco”. Fico feliz de sentir uma parcela daquilo que trocaria por três anos da minha vida para poder sentir. Mesmo assim, se hoje aparecesse um gênio da lâmpada ou algo do gênero e me fizesse responder a esta questão, sóbrio ou bêbado, minha resposta seria: SIM!


ENSAIO: O USADO TAMBÉM É BELO Por Francieli Graff O ensaio temático produzido para esta edição da revista, com a modelo Paula Greiner, é sobre a reutilização de roupas. E foi realizado no Brechó Casa Branca, de Santa Cruz do Sul, que tem como proprietário Marcelo Ribeiro. O jovem decidiu montar o empreendimento para revender as roupas que recebia de Ives Kolling.

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RESENHA O TAL JOÃO DE SANTA MARTA Por Diana Azeredo Ele lê, toca saxofone e sonha em liderar uma revolução social. Com o tema “Paz, justiça e liberdade”, aprendeu com os padres a trabalhar pelas melhorias da comunidade, sem esperar pelas ações governamentais. Sua banda favorita é Legião Urbana e na opinião dele, feijão é melhor do que sexo. Juliano VP é um dos maiores traficantes do Rio de Janeiro. E personagem central do livro “Abusado: o dono do morro Dona Marta”, do jornalista Caco Barcellos. Lançada em 2003, pela editora Record, a obra apresenta a história Márcio Amaro de Oliveira. A 557 páginas da 21ª edição, resultado do trabalho de cinco anos, são divididas em três partes principais: Tempo de Viver, Tempo de Morrer e Adeus às Armas. Em cada uma, o autor relata a infância, a adolescência e a fase adulta de Marcinho/Juliano, fazendo uma retrospectiva de seu ingresso, ascensão e queda no tráfico. “Abusado” traz a história de familiares, parceiros, chefões do crime, policiais, políticos e intelectuais brasileiros. O leitor não é convidado a visi-

tar apenas o barraco de VP (até porque ele se refugiava em muitos e não tinha paradeiro fixo). Seguindo o mapa de Caco, é possível percorrer as ruas estreitas e fétidas do morro Dona Marta e, dessa forma, conhecer os becos imundos do crime, da violência e da marginalidade nacional. A ecografia registrada pelo jornalista revela o ventre de onde nascem os bandidos. A prefeitura localizada ao pé do morro, que não providencia instalação de água, luz e do mínimo necessário a uma vida digna, os policiais que espancam e pedem propina, os empregadores que pagam o salário que, se economizado durante 11 anos, equivale à quantia arrecadada em um único assalto... Todos eles estão ali para com-

por o cenário de conquistas, disputas, traições, aventuras e desilusões da vida desse personagem tão singular quanto universal. “Abusado” é um convite ao rompimento, ao choque. É uma chance de ir além da superficialidade corriqueira da imprensa, que mais cega do que faz enxergar. Aos leitores dispostos a se desafiarem, um aviso: a ignorância, o preconceito e a apatia morrem no final. Conhecer “o lado certo da vida errada” é se questionar quem realmente abusa de quem.



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