Miolo 20 villa da feira

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Ficha Técnica Título: Villa da Feira - Terra de Santa Maria Propriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ® Director: Celestino Portela Director Adjunto: Fernando Sampaio Maia Colectivo Editorial - Fundadores LAF: Alberto Rodrigues Camboa; António Luís Carneiro; Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim Carneiro Processamento de Texto: Carla Maria Costa Ferreira Coordenação Científica: J. M. Costa e Silva Supervisão Editorial e Gráfica: Anthero Monteiro Colaboração do TOC, Belmiro da Silva Resende Periodicidade: Quadrimestral Assinatura anual: 30 euros Assinatura auxiliar: 50 euros Este número: 15 euros Pagamentos por: Transferência bancária NIB 007900001127152910124 Cheque à ordem de LAF - Liga dos Amigos da Feira Capa: Alfredo Luz - Auto Retrato - pormenor (Colecção Particular) Fotografias: Óscar Maia, Câmara Municipal, LAF, Alberto Tavares, Arquivos particulares e Fotos Web por José Correia Redacção e Administração: Apartado 230 • 4524-909 Feira

Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604 Fax: 256 379 607 Tiragem: 500 exemplares Edição: N.º 20 - Outubro de 2008 Pré-impressão, Impressão e Acabamento: Empresa Gráfica Feirense, S. A. Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da Feira Sede Social: Edifício Clube Feirense - Associação Cultural Vila Boa 4520-283 - Santa Maria da Feira Email: villadafeira@portugalmail.pt Depósito Legal: 180748/02 ISSN: 1645-4480 Reg. ICS: 124038 Depositária: Livraria Vício das Letras Rua Dr. José Correia de Sá, 59 Telef.: 256 364 627 4520-208 Santa Maria da Feira Apoios: Câmara Municipal Santa Maria da Feira Irmãos Cavaco S.A. Zoo Lourosa - Parque Ornitológico E. LECLERC Termas das Caldas de S. Jorge Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira Patrícios, S.A.


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Pórtico ALFREDO LUZ visto por críticos de arte e admiradores do seu talento. “Sim, já tirei a prova dos nove, quero ser só pintor, compensar-me de ter deixado o seguro pelo incerto”, disse, e em boa hora o fez, dizemos nós. É a Homenagem de “Villa da Feira” a um dos mais ilustres Santamarianos, que se impôs pela singularidade da sua arte, pela sua sensibilidade estética, pela criatividade inovadora. O Centenário da inauguração dos Caminhos de Ferro do Vale do Vouga, pelo Rei D. Manuel II, em 23 de Novembro de 1908, assunto já tratado em Villa da Feira,1 é agora estudado noutras perspectivas, desde uma visão global de Espinho a Viseu, a Estação de S. Paio de Oleiros e a de Arrifana, um passeio até à Sernada e respigos da imprensa local da época, numa altura em que é tema de actualidade. Especial atenção ao traçado Espinho – Oliveira de Azeméis, o que foi inaugurado na data que se celebra. 1- Serafim Guimarães – A visita de D. Manuel II às Terras de Santa Maria – Nº. 7; Manuel Castro Pereira – Caminho de Ferro do Vale do Vouga – “os primeiros passos...” – Nº. 8.

Fica registado para memória dos Futuros. Uma carta do Sr. Dr. Belchior Cardoso da Costa que nos revela mais um Feirense que conheceu Fernando Pessoa. A palestra do Sr. Dr. David Simões Rodrigues no acto inaugural da Semana Cultural promovida pela Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira merece uma atenta reflexão. E como é habitual a excelência dos nossos colaboradores. Por tudo o nosso Bem-haja aos Amigos e Companheiros desta Aventura! Executivo LAF


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Mensagem Orlando da Silva No lº número da revista “VILLA DA FEIRA”, que viu auspiciosamente a luz do dia no mês de Junho do ano de 2002, num modesto artigo que nele publicamos, como preâmbulo do mesmo e à guisa de mensagem, escrevemos o seguinte: “ – iniciamos a nossa colaboração na novel “VILLA DA FEIRA”, com votos de que dezenas de números se sucedam ao agora imberbe número um. Sabido é que revistas literárias ou culturais, não raro – ressalvada que seja uma ou outra excepção – têm vida efémera, a que não será por certo alheia a falta de recursos financeiros, a, por vezes, precária colaboração e o marketing que infelizmente tem de estar por detrás de tudo o que tem de ser consumido. Que a força de qualquer destes obstáculos não vença a determinação, a alegria, que os seus mentores em hora lúcida e prenhes de entusiasmo entenderam dar ao Concelho e às Terras de Sta. Maria uma nova revista cultural que por certo muito os valorizará e orgulhará as gerações futuras, se ela, como esperámos, não tiver a perenidade das folhas do Outono.

* Publicista.

Cremos bem que não, já que o travejamento que a vai erguer é da mais pura riga”. Estas linhas, juntas ao “Pórtico” subscrito pelo Director e à “Mensagem” do Presidente da Câmara, traduziam, à partida, a crença, a esperança e a determinação em fazer Obra que os santamarianos se orgulhassem de possuir. Entrada já a “VILLA DA FEIRA” no seu 7º ano de publicação, para orgulho e honra de todos, assim está a acontecer. O presente número, com cerca de 200 páginas - quase o triplo do longínquo 1º número -, é o resultado da vontade indómita e sabedora da equipe editorial e da elevada craveira intelectual dos inúmeros colaboradores, que já fizeram dela o mais rico, importante e completo acervo sobre o Passado e o Presente do nosso Concelho e das suas Gentes. Em duas palavras, com letra maiúscula, HONRA a TODOS!


SUMÁRIO

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Pórtico Executivo LAF

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Mensagem Orlando Silva

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Alfredo Luz

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Ai, Meu “Vale do Vouga” do Meu Coração Vasco de Lemos Morisca

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100 Anos Caminho de Ferro do Vale do Vouga - 1908/2008 M. Castro Pereira

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S. Paio de Oleiros e a Inauguração da Linha do Vouga Anthero Monteiro

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Fotografia Medalha

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Uma Viagem na Centenária Linha do Vale do Vouga Alberto Tavares

61

Estação dos Caminhos de Ferro de Arrifana de Santa Maria Augusto Telmo

71

Progresso da Feira - Órgão do Partido Progressista Roberto Carlos

75

Escultura - A Viagem João Rodrigues

84

O Centenário do Caminho-de-Ferro do Vale do Vouga - 1908/2008 Franscisco Azevedo Brandão

85

Hino ao Caminho de Ferro do Vale do Vouga Letra de Aguiar Cardoso

94

Uma Carta de Belchior Cardoso da Costa Belchior

95

Cultura, Factor Promocional dos Povos David Simões Rodrigues

97

Dr. António Toscano, para mim e Sempre, Toninho Toscano Serafim Guimarães

107

Fotografia de Flávia Pedrosa Reis

120

Itinerário da Vida de um Homem Comum Manuel Lima Bastos

121

Aspectos Históricos de Arnelas Manuel Leão

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Alfinetes Jorge Augusto Pais de Amaral

133

Oliveira Guerra e os Seus Sonetos Anticlericais (102 anos após o seu nascimento) Anthero Monteiro

135

Escultura - 11 de Setembro João Rodrigues

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As Máscaras do Preste João Maria Conceição Vilhena

145

Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria Augusto Telmo

149

Dicionário Biográfico de Personalidades Feirenses Francisco de Azevedo Brandão

157

Vexames e Razões do Colonialismo Ibérico no Brasil António Mesquita

165

Poesia Anthero Monteiro

192

Espinho. De Lugar a Freguesia e Concelho. Francisco Azevedo Brandão

193

Poesia Gilberto Pereira

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Antologia Prática de um Devocionário Popular Domingos Azevedo Moreira

203

Memórias da História e Tradições de Sanfins da Feira Óscar Fangueiro

215

O Novo Inquisidor Joaquim Máximo

223

Por quem Esperas, ó Humanidade? Acorda. O Planeta Espera por Ti !!! Judite Lopes

225

Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo

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Alfredo Luz Nasceu em Riomeão, Santa Maria da Feira, a 31 de Outubro de 1951. Obras gráficas editadas pela EPNC, EPAL, RDP, Galeria Galveias, Galeria Grade, Editora Vigo, Didáctica Editora, Casino Estoril, Galeria Enes, Fundação Eugénio de Andrade, Instituto do Consumidor, Livros Horizonte, C.M. de Cascais e Ministério da Justiça. Premiado em Pintura e Desenho. Sobre a sua pintura escreveram: Carlos Lança, António Campos, Eurico Gonçalves, Fernando Pamplona, Lima de Carvalho, Manuel Vieira, Manuela de Azevedo, Porfírio Alves Pires, Rodrigues Vaz, Eunice Lopes, Baptista Bastos, Nuno de Oliveira Pinto, Aliette Martins, Pedro Barroso, José Carlos Cardoso, Inês Serra Lopes, Edgardo Xavier, Celestino Portela, Nuno Rebocho, Teresa Pinto, Jorge Listopad, Egídio Álvaro e Cruzeiro Seixas.

Exposições Individuais 2008- GaleriaGaleria Galveis “Manual para Lavrar” 2008 Galveias “Manual para Lavrar” 2006 Galeria São Francisco “As mãos e usufrutos” 2006 - Galeria São Francisco “As mãos e usufrutos” 2006 Galeria Municipal – Abrantes “Pintura” 2004- GaleriaGaleria São–Francisco Bússolas” 2006 Municipal Abrantes “Outras “Pintura” Parlamento Europeu – Bruxelas 2004- Galeria“Ce les cartes ne disent pas” 2004 Sãoque Francisco “Outras Bússolas” 2003 Galeria Inter-Atrium “A Lua Delirante” 2004 Parlamento Europeu – Bruxelas “Ce que cartes 2001 Galeria Galveias “Onde moram as les Heras” Galeria Inter-Atrium “As chuvas desacertaram pas” 2001 ne disent as margens” Galeria Almadarte “É por nós que a fonte 2003 Inter-Atrium 2000- Galeriadeita água” “A Lua Delirante” 1999 Galeria Casino Estoril “O Prendulário” 2001 - Galeria Galveias “Onde moram as Heras” 1998 Galeria Inter-Atrium “Metade do que dizem” 1997- GaleriaGaleria S. Francisco “Lisbon revisited” as 2001 Inter-Atrium “As chuvas desacertaram 1996

Galeria Inter-Atrium “Cidade de Pedra” margens” 1996 Galeria Almadarte “Ainda sons da Terra” Galeria São Francisco “Vem comigo ver 2000 - Galeria Almadarte “É por nós que a fonte deita 1995 Lisboa II” Galeria Neupergama “Percorro os campos 1995 água” até ao meu destino” Galeria Casino Estoril “Enquanto o vento faz 1999 Casino Estoril “O Prendulário” 1994- Galeriadiscursos”

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1998 - GaleriaGaleria Inter-Atrium “Metade do que dizem” Almadarte “Nem Lírios, nem 1993 Rebanhos” 1997 S. Francisco revisited” 1993- GaleriaGaleria Grade “Lisbon “Almas Gémeas” Galeria S. Francisco “Naturezas – Arquivos de 1996 Inter-Atrium “Cidade de Pedra” 1992- GaleriaDenúncia” Galeria Casino Estoril “Vem comigo ver 1996 Almadarte “Ainda sons da Terra” 1991- GaleriaLisboa” 1990 Galeria São Francisco “Sons da Terra” 1995 - Galeria São Francisco “Vem comigo ver Lisboa II” 1990 Galeria Barata “Paisagens para Eugénio” 1995 Neupergama os campos até ao 1989- GaleriaGaleria Casino “Percorro Estoril “Trago Paisagens” 1988 1987

Galeria Ditec meu destino” Galeria Escada

Ministério do Exército – Macau Abrangente” 1998 Galeria Pirâmide – Lisboa 2004 - GaleriaCâmara PirâmideMunicipal – Lisboa da Amadora – Espólio 1998 Municipal 2003 Arte Contemporânea – Estoril 1998- Feira de Galeria Gymnásio – Lisboa “Carmen”

1993 - Galeria Almadarte “Nem Lírios, nem Rebanhos” Exposições Colectivas 1993 - Galeria Grade “Almas Gémeas”

1998 Galeria São Francisco – Lisboa 2003 - Bienal do Avante 1998 Galeria Ao Quadrado – Stª Maria da Feira

Actual - Coimbra 2008 1992 - Galeria S. Francisco “Naturezas – Arquivos de Exposição de Surrealismo - Internacional 2007 Arte Madrid - Madrid 2006 Denúncia” 2006 Feira de Arte Contemporânea – Lisboa 1991 CasinoAtlântica Estoril “Vem comigo ver Lisboa” 2006- GaleriaGaleria – Açores 2005 Bienal do Montijo 1990 - Galeria São Francisco “Sons da Terra” 2005 Bienal do Avante – Seixal 1990 BarataAlexandra “Paisagens para Eugénio” 2005- GaleriaGaleria Irigoyen – Madrid Fundação Cupertino de Miranda 2004- Galeria“Surrealismo Abrangente” 1989 Casino Estoril “Trago Paisagens” 2004 Galeria Pirâmide – Lisboa 1988 - Galeria Ditec 2003 Feira de Arte Contemporânea – Estoril 2003- GaleriaBienal do Avante 1987 Escada 2003 Padrão dos Descobrimentos – Lisboa 1986 - Galeria Grade 2003 Colégio St. Julian`s – Carcavelos 2003- GaleriaGaleria – Funchal 1985 Fonte Mouraria Nova 2002/2007 Galeria Ao Quadrado – Stª Maria da Feira 2002 Galeria Cógito – Setúbal Exposições Colectivas 2002 Galeira Iosephus – Lisboa 2001- Actual Galeria Galveias – Lisboa 2008 - Coimbra 2001 Bienal do Avante 2007 - Internacional 2001- Exposição FeiradedeSurrealismo Arte Contemporânea – Porto

1999- GaleriaBienal do Avante 2006 Atlântica – Açores 1999 Ministério da Justiça – Lisboa éme Anniversaire D`Avril – Bobigny – 2005 - Bienal 25 do Montijo 1999 França 2005 do Avante – Seixal 1999- Bienal Feira de Arte Contemporânea – Lisboa Galeria Pomar dos Artistas – Lisboa “Um 2005 Alexandra – Madrid 1999- GaleriaOlhar sobre Irigoyen Portugal” 1999 Associação Fernando Pessoa – Lisboa 2004 - Fundação Cupertino de Miranda 1998/2006 Galeria Inter-Átrium – Porto– “Surrealismo 1998

1986- GaleriaGaleria 1994 CasinoGrade Estoril “Enquanto o vento faz 1985 Galeria Fonte Nova discursos”

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2006 - Arte Madrid - Madrid 2000 Feira de Arte Contemporânea – Lisboa Feira de Arte Contemporânea – Madeira – 2006 Arte Contemporânea – Lisboa 2000- Feira de Funchal

2003 dos Descobrimentos – Lisboa 1998- PadrãoGaleria Século XVII – Leiria 1997 Feira de Arte Contemporânea – Lisboa 2003 - ColégioFeira St. Julian`s Carcavelos de Arte –Contemporânea – Madeira – 1997 Funchal 2003 - Galeria Mouraria – Funchal 1997 Galeria Vandelli – Coimbra

1997 Igreja de 2002/2007 - Galeria AoSantiago Quadrado– –Monsaraz Stª Maria da Feira 1996 Feira de Arte Contemporânea – Porto 2002 CógitoGymnásio – Setúbal – Lisboa “Naturezas” 1996- GaleriaGaleria 1996- GaleiraSNBA – Lisboa 2002 Iosephus – Lisboa 1995 Feirarte 95 – Braga 2001 – Lisboa 1994- Galeria1ºGalveias Salão de Prestígio FIL – Lisboa Galeria São Francisco – Lisboa “Surrealistas 2001 do Avante 1994- Bienal Portugueses” 1993 Galeria Soctip – Lisboa 2001 - Feira de Arte Contemporânea – Porto 1993 Galeria Neupergama – Torres Novas 2000 Arte Contemporânea – Lisboa 1993- Feira de Centro Cultural de Belém – Lisboa 1992 Trienal Latina – Braga 2000 - Feira de Arte Contemporânea – Madeira – Funchal 1992 Galerie Magellan – Paris 1992- Bienal Galerie Art Direct – Paris 1999 do Avante 1992/2007 Galeria São Francisco – Lisboa 1999 - Ministério da Justiça – Lisboa 1992/2007 Galeria G – Lisboa


1999 - 25éme Anniversaire D`Avril – Bobigny – França 1991 Cooperativa Árvore – Porto 1ª Mostra de Artes Plásticas Luso-Africanas 1999 Arte Contemporânea – Lisboa 1991- Feira de – Porto

1993 - Galeria Soctip – Lisboa

1990- GaleriaGaleria Torres “Um NovasOlhar 1999 PomarNeupergama dos Artistas –– Lisboa 1990 Galeria Sépia – Braga sobre Portugal” 1990 Festas da Cidade – C.M. Lisboa 1990 Instituto Cultural de Macau “Retratos de 1999 - Associação Fernando Pessoa – Lisboa Eugénio de Andrade” 1990 Missão de Macau – Lisboa “Retratos de 1998/2006 - Galeria Inter-Átrium – Porto Eugénio de Andrade”

1993 - Centro Cultural de Belém – Lisboa

1989 Galeria da Praça – Porto 1998 - Ministério do Exército – Macau 1989 Exponor – Porto 1998 Pirâmide – Lisboa 1986- GaleriaGaleria Tempo – Lisboa 1982 1998 Municipal da Amadora – Espólio 2006- Câmara Salões de Outono do Casino EstorilMunicipal

1992/2007 - Galeria São Francisco – Lisboa

1998 Gymnásioda – Lisboa 1980- GaleriaBiblioteca Câmara“Carmen” Municipal de Stª Maria da Feira 1998 - Galeria São Francisco – Lisboa

1991 - 1ª Mostra de Artes Plásticas Luso-Africanas – Porto

1998 - Galeria Ao Quadrado – Stª Maria da Feira

1990 - Galeria Sépia – Braga

1998 - Galeria Século XVII – Leiria

1990 - Festas da Cidade – C.M. Lisboa

1997 - Feira de Arte Contemporânea – Lisboa

1990 - Instituto Cultural de Macau “Retratos de Eugénio de

1997 - Feira de Arte Contemporânea – Madeira – Funchal 1997 - Galeria Vandelli – Coimbra 1997 - Igreja de Santiago – Monsaraz

1993 - Galeria Neupergama – Torres Novas

1992 - Trienal Latina – Braga 1992 - Galerie Magellan – Paris 1992 - Galerie Art Direct – Paris

1992/2007 - Galeria G – Lisboa 1991 - Cooperativa Árvore – Porto

1990 - Galeria Neupergama – Torres Novas

Andrade” 1990 - Missão de Macau – Lisboa “Retratos de Eugénio de Andrade”

1996 - Feira de Arte Contemporânea – Porto

1989 - Galeria da Praça – Porto

1996 - Galeria Gymnásio – Lisboa “Naturezas”

1989 - Exponor – Porto

1996 - SNBA – Lisboa

1986 - Galeria Tempo – Lisboa

1995 - Feirarte 95 – Braga

1982/2006 - Salões de Outono do Casino Estoril

1994 - 1º Salão de Prestígio FIL – Lisboa

1980 - Biblioteca da Câmara Municipal de Stª Maria da

1994 - Galeria São Francisco – Lisboa “Surrealistas Portugueses”

Feira

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Trago Paisagens

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Alfredo Luz surgiu como uma das revelações mais positivas no panorama morno da pintura portuguesa dos últimos anos. É um pintor que carrega nas suas telas, para além de uma personalidade vincada, uma técnica apurada numa paleta de grande suavidade cromática, trabalhando os seus temas com um saboroso espírito ao mesmo tempo lírico e mordaz, que alguns limitadamente classificarão de decorativo como outros o fizeram no seu tempo a respeito de nomes como Maigritte ou mais recentemente a respeito de Dali, o tal que não sabia pintar, no juízo de um dos sábios encartados da nossa praça, aquando da sua morte... Nas quatro dezenas de trabalhos desta sua mostra, agrupados em outras tantas famílias em que estão presentes as árvores, a terra, a natureza e as aldeias onde vivem as pessoas e se afirmam os rostos procurados, Alfredo Luz delicia-se e delicia-nos com o tema Mãe Natureza sob a forma de paisagens humanizadas e repousantes ou de elementos naturais que têm a força de símbolos, bandeiras ou mensagens por demais interventoras. Poucos artistas temos conhecido em que a personalidade simples e humilde de um humanismo riquíssimo e fraterno anda tão intimamente ligado à própria obra — a cada um dos trabalhos assinados pelo artista que pede e recomenda que no catálogo o seu nome seja escrito com “caixa baixa”. O tempo se há-de encarregar, muito brevemente, de exigir que esse nome se venha escrever com “caixa alta” no panorama das nossas Artes... N. Lima de Carvalho Julho de 1989


Paisagens para Eugénio «Alfredo Luz surge com uma arte consumada, por vezes espectacular, com uma carga de intenções que a meditação sobre os temas cada vez mais o há-de enriquecer. Os temas propostos, pela sua subjectividade, andam geralmente à volta das raízes do homem e da terra. Dir-se-ia que a mãe-natureza e os seus frutos são urna preocupação subjacente a este cidadão como se nas preocupações sobre a saúde da natureza se satisfizesse uma arreigada consciência ecológica. Creio que, na essencialidade das minhas opiniões, deixo claramente expressa a convicção de que o surrealismo pode encontrar no actual movimento da nossa pintura novos alentos com a criatividade de Alfredo Luz». Manuela de Azevedo 1990

Louvação da cidade remanchada Eis uma lisboa remanchada, remanejada, revisitada por um pintor de mão clássica, de mão moderna, de mão surreal. De mão feliz – enfim. Creio que todas estas definições se contêm na pintura de Alfredo Luz: uma pintura extremamente imaginativa, de cores ora brandas, ora violentas, mas sempre impregnadas de um registo muito pessoal. Há qualquer coisa de Alexandre O`Neill, poeta maior, na pintura de Alfredo Luz: o rasgo algo irónico, a ternura das grandes mágoas e, sobretudo, uma Lisboa mais desejada do que real. Claro que toda a arte deve re-criar qualquer tipo de visão imediata. Quero dizer: toda a grande arte (e Alfredo Luz faz grande arte) é a transfiguração de uma dada e peculiar realidade – para se expôr como uma outra noção do real. Se falei de O`Neill e associei a sua poesia fulgurante à pintura de Alfredo Luz é porque em ambos, na obra de ambos, reside algo de absolutamente imponderável e de absolutamente evidente. Nos dois a noção do humano está sempre presente mesmo quando dissimulada. Nos dois o absurdo do viver é

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Jardins de S. Maria da Feira

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subtilmente instilado. Mas como o grito de um viva. Mas como uma secreta declaração de amor a Lisboa. Baptista-Bastos Lisboa, 1992

Naturezas – arquivos de denúncia Foi pelo fim da tarde, escrito a verde, em linhas incertas. O último homem legalizado, após uma caminhada exaustiva pelos desertos do reino. Teve ainda forças para subir ao cabo da serra onde o esperava a caverna secreta que o seu avô lhe ensinara quando menino. Ali guardara, durante anos de inocência, os arquivos da memória perdida, denúncias avulso de um descuido colectivo. E, conforme vira os caçadores de vida colher os últimos ovos da criação, assim registara nos seus olhos a lembrança lúcida de um outro tempo em que houvera árvores e não medo. Sacudindo da roupa o pó da estrada e afastando as teias de aranha que cobriam a estrada da caverna, descobriu, com um sorriso triste, o menino que já fora, e as colecções de objectos perdidos, roubados ao destino impiedoso da queima universal, enquanto relembrou nomes perdidos de flores, pássaros, ramos, árvores, sabores e cheiros de antigamente.


Colocou os últimos frutos na pedra do altar à Natureza, tombou-os, bebeu-os, sorveu um halo grande de ar como se abastecesse a alma para o caminho de regresso, franziu a testa como se um pensamento mau o apoquentasse. Era de facto tão difícil viver no deserto e na aridez, depois do espectáculo da vida que ainda lembrava dessa infância! Era de facto difícil circular nos espaços arenosos, pardacentos e desencantados, enfrentando os picos da grande trituradora, servo para sempre da Grande Ordem Universal da Queima e da Indiferença. Ecologia era até uma palavra vã. Desatentos e selvagens, todos tinham sorrido desse nome e dessa ideia. O último celta matara o último visigodo que matara o último namíbio que matara o último mongol que matara o último rio que levara a última árvore. E agora era apenas tarde. Só tinham sobrado estes arquivos da denúncia; jogando xadrez com borboletas roubadas ao espanto da memória e caixotes repletos de recordações do futuro, museu de um velho encantamento. Pintado à mão. Com traços de poesia. E de Luz. Como só ele soubera. Concluída a visita ao museu do eternamente achado e eternamente perdido, viagem quanto baste aos dois lados da Natureza o poeta e caminheiro, o pintor da vida que já fora, encolhe os ombros, relança um último olhar furtivo a tudo isto e ei-lo que regressa, amargo, em desencanto.

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Mas como me encanta o desencanto dessa Luz. Pedro Barroso Lisboa, 1992

Sons da Terra Amadurecidas, as figuras emergem da trama das texturas e recebem a suavidade da luz para serem, no espaço pictórico, um murmúrio visível. Trazem os sinais da inquietação e da procura, os estigmas do combate, a ternura de quem, cansado de amar, se volta à contemplação do transcendente. Fiel ao vocabulário recolhido nos caminhos do surrealismo mas já pouco saudoso de Magrite e Dali, Alfredo Luz tece a metáfora a que não resistem os românticos tão pleno de lirismo é este discurso, tão aliciante se torna a leitura possível. Desenhador exímio e sensível aos jogos da livre associação, o pintor comunica-nos, com inexcedível rigor, uma poética que indubitavelmente pertence ao imaginário de muitos, quando não ao quotidiano de todos. Assim, recuperando a potencialidade mítica do real, é na plenitude da expressão plástica ou mesmo do “trompe l’oeil” que Alfredo Luz, de modo eminentemente narrativo, nos conta situações e lendas. É o factual e fantástico que se ligam para erigir


o sonho, esse campo de liberdade no qual os olhos vogam ávidos de referência. As certezas, trave mestra das suas construções, transformam-se, à medida que o trabalho progride, em nebulosas ambiguidades ou, se quisermos, no apelo à emoção simples sem o suporte de questionáveis racionalidades, como se a inteligência só nos fosse solicitada para o começo do voo. O resto há-de ser fruto das experiências que guardamos em íntimos escaninhos da memória. Quem as não tem só vê silêncios neste ferver de águas paradas. A verdade é que o autor não defrauda quem espera e a acção é a seguir, para que a vejamos acontecer. Da gnose primária à iniciação, da simbologia próxima à universal e da casca a esta pele que é limite de corpo vivo, quanta estrada percorrida!

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Edgardo Xavier 1996

Prendulários ou a resistência da memória (o realismo mágico em Alfredo Luz) Todo o discurso sobre o real é um juntar de cacos, reunião de fragmentos que os sentidos e a mente recolhem nas suas jornadas. Por isso é que toda a leitura e teoria reordenam o caos. Eis o que vos é dito aqui nas telas de Alfredo Luz, com a sua batalha dele com a memória, feita com a heroicidade dos gestos ternos, com a tranquila ironia de quem, agarrado ao campo, não desiste do cordão umbilical, da afirmação da sua consciência e coerência. Ao contrário do

que aparenta, não é um magrittiano: porque não é um pintor urbano e de interioridades, crítico amargo-jocoso das verdades convencionadas que recorre ao surreal para confrontar o homem com as frágeis certezas suas. Alfredo Luz percorre diferenças que, recordando embora o belga, desaguam noutras águas. Olhai as cores baças de Luz: são cores da memória. Da memória que consigo traz, os fragmentos do seu ruralismo irredento a larvar no caldo cultural da urbe que o acolhe e intenta tripudiar. A pintura de Luz é um modo de resistência: paisagens que se refazem nas imagens justapostas, que reconstroem o seu mundo com imagens a partir das cores telúricas a projectar para a mente uma agressiva suavidade feita de carinhos por um espaço que foi seu, o qual, por ter sido perdido, foi reencontrado. É o imagético do migrante, do campesino que a vida (o homo aeconomicus) converteu em urbano. Mas que se mantém atilhado pelas mágicas dos ciclos da natureza e que por elas fala: se o discurso urbano é feito de frases, o campesino é feito de imagens. Duas vivências, dois modos de estar, dois discursos, dois tempos. O que é notável: há anos que o pintor refaz este itinerário, outro indicador da sua cultura de resistência. Sobre os fundos nebulosos, amachucados de manchas, de indefinições de cor, revelam-se as formas rigorosas, as imagens fragmentadas e herdadas, conservadas pela persistente memória – o discurso da reminiscência. O discurso que é a medida do homem, da sua leira, do seu canto, do seu recanto, dos instrumentos do seu trabalho, das árvores residuais, do sentir na terra e com a terra, da natureza que recusa sucumbir. Olhai. A arte de Alfredo Luz é a memória dos olhares. Prendulários: de prendas se fala. De prendas que são gestos e são dádivas, são relações entre pessoas, são


A entrada em cena das heras Fim de verão. Clamo: o fim ainda não, ainda não, pois a madeira está seca, o ar quente, numa palavra, o tempo disponível para investigar afectuosamente os quadros. Implacavelmente finos, subtis e robustos, simultaneamente. Os quadros de Alfredo Luz. Fiat Lux. Examinemos então o seu modo de escrita: Os quadros da exposição (“Onde moram as heras”) aprendem a utilização directa de “doença infantil”; a passagem pelo surrealismo. Mais uma vez confirma-se que sem essa experiência noctívaga não há saúde superior em nenhum artista. conjugações e entrelaçares de vidas, são trocas de memórias e de imagens, são casamentos de seivas. São discursos complexos estribados na simplicidade dos processos, na enorme e estranha riqueza do simples. Tudo isto faz a força da pintura e da sua diferença – aquela diferença que distingue uma expressão de outra, que define e caracteriza uma arte. Nuno Rebocho 1999

As chuvas desacertaram as margens Este ano as chuvas cairam intensas e desacertaram as margens dos rios. Não faço ideia para onde terão ido as rãs (nas histórias dos meninos as rãs trazem coroas e são sempre felizes). Não faço ideia para onde terão ido as histórias dos meninos. E o Alfredo, que apenas tenta permanecer inteiro, depara-se com mil cuidados. Traz os pés suspensos do céu e, assim virado de pernas para o ar, segundo a referência do mundo, toca com uma mão no fundo do mais escuro poço, enquanto com a outra ensaia as cores na paleta, que se quer branda ou atrevida, porém e isso é coisa certa, alheio aos tremores de terra, porque acredita que o amor protege. Essa é a sua crença e o seu Deus. Escrevo-o a tinta firme. Teresa Pinto Lisboa, 2001

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O seu sistema perfeitamente suportado pela semiótica narrativa, cria o universo de segmentos épicos mediante códigos visíveis ou encobertos pelo sonho; esses, tais como os canais subterrâneos dos cogumelos, comestíveis e venenosos, plurais e plurivocais, são sempre belos e misteriosos. A estratégia que canta, seu medo espanta.

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É o teatro que inspira o discurso esfarrapado: o seu fingimento do real – quando tudo corre na sua normal anormalidade -, a máscara em favor ou contra a verdade, a pantomima silenciosa, mas é o corpo que fala em nome dos surdos-mudos. O aspecto dramatúrgico da pintura sabe o segredo dos sentimentos azulados da melancolia mas não se manifesta em kitsck por causa da engenharia civil, a paraciência exacta do pintor. O mito restante? Em permanente evolução. O lugar a partir do qual vemos a pintura de AL, melhor, o sítio do olhar que ajuda a construir a imagem, é tão importante como a imagem que nos reconstrói: anulam-se as distâncias mútuas. E quando a estética porventura preceder à natureza, ela é operada pela experiência, pelo saber intuitivo, pelo que em nós é mutável, neste mundo de restos. Os quadros sem oposição. Alfredo Luz inventou-os tal como a borboleta que, depois de todas as metamorfoses, é a pintora das suas próprias asas. Jorge Listopad Setembro, 2001


Um realismo onírico A arte de Alfredo Luz representa um caso particular no panorama da pintura actual. O título de uma exposição de 1994 é “Enquanto o vento faz discursos”. A sua pintura recente é feita de estranhos discursos sobre os personagens saídos da sua imaginação: “Visite inattendue - Nazaré”; Il pluie en Djibouti”; “Les trouveurs de trésors”. As situações mais inesperadas sucedem-se. Poderia dizer-se que se trata de uma pintura onírica, onde os sonhos submersos tomam formas enigmáticas. Há nele um certo apego ao campo, aos frutos, aos pássaros, aos instrumentos musicais de bandas populares. Quando pinta a cidade, as casas, sentimo-lo mais fechado.

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Mas a noção de realismo poético caracteriza igualmente a sua pintura, mesmo se o realismo se situa sempre fora da realidade quotidiana. A Torre de Babel está sempre presente, algures, anunciando a multitude das linguagens que nunca se compreenderão entre elas. A porta continua aberta sobre um algures cheio de mistérios. Em todo o lado, uma ironia delicada. As suas cores são doces e adaptam-se perfeitamente aos temas escolhidos. São de uma claridade difusa e permitem transições subtis.


Na pintura actual que, um pouco em toda a parte na Europa, se procura, Alfredo Luz apresenta-nos uma opção pessoal. Para esta exposição, anuncia uma série de Cartas Geográficas sob o título “Ce que les cartes ne disent pas”. São mapas humanos. Egídio Álvaro Paris, 2004 Crítico de arte AICA

Outras Bússulas

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Por certo, que seguindo pelas estradas das Beiras, não encontrarei José Buendía construindo os seus peixinhos de ouro, nem Mariana Alcoforado juntando as letras que lhe hãode apertar a garganta; porque estes cismaram noutros lugares e esses lugares, numa contemplação colectiva, desenvolveramlhes a cisma, fixando por esta via, e sem retorno, um fatalismo cartográfico. Os lugares não se opõem ao escutar dos passos, ao eco que se repete sem insurreição onde silenciosamente aprendemos a ser tudo, mesmo árvores que sejam e não se conhece nome para esta ordem. Só sei que os pirilampos não habitam terras impuras. Alfredo Luz Julho 2004


Da sua pintura As personagens de Alfredo Luz e os seus quasecenários, referem-se a um homem colado ao natural. E sendo assim, não é tanto pela encenação mas pela imensa serenidade que tudo invade. Tempo de crescimento vegetal, no qual as coisas vão acontecendo na penumbra de processos silenciosos. É evidente que nos espaços e nos tempos assim ritmados as rupturas também elas acontecem, e mais abruptas, mais implícitas num conceito de destino, porque mais individuais e surgidas do silencio., O encanto desta pintura reside nisso: num saber táctil dum tempo que se materializou em formas que são estas. Porfírio Alves Pires A preocupação deste artista está ligada à Terra, em que os homens destroem mais do que constroem. Pintura comprometida, aliás como tudo aquilo que se faz com respeito. Aliette Martins Aparentemente de uma leveza e suavidade sem par, Alfredo Luz consegue, com efeito, uma tensão que aumenta à medida da contemplação, criando uma interrogação que nunca se fica pelo simples fruir o estético. Rodrigues Vaz A pintura de Alfredo Luz assenta numa proposta social, resultante da observação do quotidiano na qual identifica o seu foro íntimo e a forma, subtil de analisar a essência das coisas. Comunica às personagens um dramatismo e ao mesmo tempo, sabor poético, dos que lutando dia-a-dia por esperanças renovadas, dão forma aos seus sonhos. Sérgio Mourão Não abdicando da delicada concepção convencional da imagem, antes a acentuando numa nova perspectiva, a pintura de Alfredo Luz ilustra uma temática, que são vultos humanos associados a paisagens bucólicas, de nostálgica e nocturna ressonância lírica. Eurico Gonçalves

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Inauguração do Caminho de Ferro do Vale do Vouga

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por El-Rei D. Manuel II, em 23 de Novembro de 1908


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Ai, Meu “Vale do Vouga” do Meu Coração! Ai, o “VALE DO VOUGA” como vai bonito! Já não tem apito já não deita fumo. Mas não perde o rumo, vai todo ligeiro, passa no que é meu, vai na caminhada da sua rodada ... todo bonitinho. Ou lá vem de Aveiro ou lá vem de Espinho ou vem de Viseu. Mas é a Sernada o destino seu. Ai meu “VALE DO VOUGA” não mo tirem, não! Faz um figurão, boa companhia, todo ele é graça

todo ligeireza, todo utilidade. Se por aqui passa, por Albergaria -a-Velha, a velhinha, que vem da Rainha, da D. Tereza. E lá vai seguro, vai para o futuro. Ai, que liberdade! Ai, minha riqueza, não ma tirem, não. Ai meu “VALE DO VOUGA” do meu coração!

Vasco de Lemos Morisca* Do livro do 75º Aniversário do Vale do Vouga. * Advogado. Poeta. Natural de Albergaria a Velha. 28-08-1911 • 14-12-1984


100 Anos Caminho de Ferro do Vale do Vouga - 1908 / 2008 M. Castro Pereira* “A povoação de Espinho divide-se em dois bairros diferentes, separados pelo largo do mercado. Para o nascente, até à estação do caminho-de-ferro, fica o bairro novo e caro; para o poente, até à praia, acha-se o antigo bairro pobre. Pequena povoação de pescadores do concelho da Feira, no distrito de Aveiro, Espinho deve ao caminho-de-ferro o seu aspecto actual. As antigas barracas de madeira dos primitivos habitantes acham-se mascaradas para o lado da estrada pelas edificações modernas, nas duas principais ruas novas, a da Assembleia e a do Bandeira de Melo. No velho Bairro, as ruas estreitas e tortuosas, os antigos casebres esbeiçados que pendem em ruínas esfarpadas, as saliências das varandas de pau, empenadas e barrigudas, a fogueira de pinho que está dentro ardendo no lar, as crianças seminuas que saiem à rua, as mantas ou as redes de pesca, penduradas da janela ou estendidas a enxugar em duas varas, têm um cunho muito característico, de um pitoresco oriental… Ramalho Ortigão * Médico. Historiador dos caminhos de ferro.

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Como o autor refere, a existência do caminho-de-ferro, contribuiu de forma notável para o desenvolvimento de Espinho e, diremos nós, de todas as terras por ele servidas, como foi o caso de Aveiro: Estavam assim no mapa ferroviário dois importantes pólos do futuro caminho-de-ferro do Vale do Vouga. É referida no texto de Ramalho Ortigão a “rua Bandeira de Melo”. Penso que deverá tratar-se da rua Bandeira Coelho, depois rua 19. A gravura de Espinho é da primeira edição de “As praias de Portugal” em 1876, e dá-nos a ideia precisa do terreno arenoso. O desenho é de Emílio Pimentel e a gravura de Pedrozo. 26

A segunda metade do século XIX viu nascer o caminhode-ferro em Portugal, e em 1864 completa-se a linha do Norte até às Devesas. Isso correspondeu à entrada de uma nova época em matéria de transportes: terminaram as carreiras de malapostas entre Porto e Lisboa, bem como as viagens por Mar, de má memória, entre as duas cidades. O caminho-de-ferro impunha-se e estendia-se pelo país: o Minho, o Douro, a Beira Alta com a ligação Santa Comba – Viseu (Linha do Dão) inaugurada em 1890, etc. Todos desejavam o caminho-de-ferro. Também o Vale do Vouga! Que estava “cercado” de comboios, sem nenhum lá chegar. Estávamos no fim do século XIX e era preciso lutar, sonhar, fazer projectos, mas principalmente, construir um caminhode-ferro que servisse o Vale do Vouga; é que os outros, já andavam! E a ideia nasceu, como uma esperança forte, para o desenvolvimento de toda uma região que se estende do litoral ao interior – principalmente o interior, mais isolado, então com uma rede de estradas incipiente; havia umas, poucas diligências, viagens a cavalo… ou a pé. Também as pessoas não tinham esta “necessidade” que agora têm de andar sempre de uns lados para os outros, e depressa.

Entretanto, alguns já tinham ouvido falar de “viação acelerada” – assim foi chamado também o caminho-de-ferro nos primeiros tempos. A primeira concessão foi para Frederico Palha em 1889, para uma linha que viria de Torredeita, próximo de Viseu, mas já na linha do Dão. Passaria por Vouzela, Oliveira de Frades, Sever do Vouga (com ramal para Aveiro), Albergaria, Oliveira de Azeméis, Feira e Espinho. Não passaria em S. Pedro do Sul nem nas termas. Reacção pronta das “forças vivas”: “A Companhia sabe muito bem a estância do banho (Termas de S. Pedro do Sul) será em movimento de passageiros uma das mais importantes da linha, e não ignora que S. Pedro do Sul sustenta ainda hoje, por si só, uma carreira diária de diligência para Estarreja”… Isto disse o jornal “Cintra da Beira”. Posteriormente a concessão passou para a “Compagnie Française pour la construction et l’exploitation de chemins de fer à l’étranger” que foi a construção da linha com qualidade. O projecto foi aprovado pelo Ministro das Obras Públicas, conde de Paço Vieira, em 30-10-1903. Em 1907 arrancaram, finalmente, as obras em Espinho “onde já está muito material e maquinismo para a construção das pontes e viadutos”- disseram os jornais.

1908 – A 1 de Fevereiro são assassinados, o rei D. Carlos e o príncipe Herdeiro D. Luís Filipe. Em consequência, sobe ao trono em Maio El-Rei D. Manuel II. Durante o ano, progridem as obras de construção da primeira fase do caminho de ferro do Vale do Vouga, entre Espinho e Oliveira de Azeméis, cuja inauguração tem lugar em 23 de Novembro, com a presença do rei e em ambiente festivo ao longo de todo o percurso. Na Vila da Feira, D. Manuel II desceu do comboio para uma memorável visita, que incluiu, naturalmente, o magnífico castelo medieval. E foi no meio de euforia popular que a composição inaugural fez os trajectos de ida e volta inaugurando um sonho: o caminho de ferro do Vale do Vouga! (21)


23 de Novembro de 1908! A inauguração Com a presença D’El-Rei D. Manuel II, é inaugurado o caminho de ferro do Vale do Vouga, no meio de um grande entusiasmo Popular. O arranque do primeiro comboio, levando a bordo o Rei e a comitiva e os convidados, aconteceu em Espinho, depois de “um Lauto Almoço” oferecido pela companhia: era meio-dia e meia hora.

A bandeira nacional que vigorou desde o tempo de D. Pedro IV até 1910.

Na fotografia, a locomotiva inaugural ornamentada com a Bandeira Nacional (azul e branca), está preparada para a partida. O povo, muito povo, mesmo na “passerelle”, aguarda o ansiado momento… e os foguetes.

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- El Rei D. Manuel II


Abertura à exploração/ mais obras

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Depois da cerimónia inaugural, e quase um mês passou, veio a abertura à exploração do primeiro troço – Espinho a Oliveira de Azeméis em 21 de Dezembro de 1908, numa extensão de 32,750 km. Agora já havia transporte de passageiros e carga; era mesmo a valer! Claro que as obras continuaram: o troço entre Oliveira de Azeméis e as proximidades de Albergaria, na extensão de 19,959 km, ficou concluído em 1 de Abril de 1909; daqui a Albergaria, 2,238 km, em 10 de Fevereiro de 1910. Seguindo-se a ligação à Sernada, 6,703 km, em 10 de Setembro de 1910: Sernada que viria a ser o centro nevrálgico da linha do vale do Vouga. Faltava agora a ligação até Aveiro (o ramal de Aveiro); com uma extensão de 34,558 km, foi inaugurado a 8 de Setembro de 1911. Estava feita a ligação entre Espinho e Aveiro, um pouco mais pelo interior… Foi a isto que a linha do norte chamou de “paralelismo”. Vinha agora a parte mais difícil, a penetração no interior da Beira Alta, zonas montanhosas, declives mais acentuados, curvas, muitas curvas, pontes, túneis e a beleza da paisagem e do rio Vouga, claro; afinal era só continuar uma linha toda ela linda, mas em zonas mais acidentadas: o troço da Sernada a Rio Mau, 4,000 km, ficou concluído em 29 de Maio de 1913. Demorou um pouco, não foi? A partir de agora as coisas iam entrar em velocidade de cruzeiro… Rio Mau - Ribeiradio, 14,861 km, ficou pronto em 4 de Setembro de 1913. Entretanto também havia obras no outro lado da linha: o trajecto entre Bodiosa e Viseu, 11,114 km, ficou concluído em 5 de Setembro de 1913. De Ribeiradio a Vouzela são 25,695 km: troço completo em 30 de Novembro do mesmo ano de 1913. Faltava “só” a ligação Vouzela – S. Pedro – Bodiosa, com a extensão de 23,090 km. Ficou pronta em 5 de Fevereiro de 1914. Estava pronta a linha do Vale do Vouga! Acontece que Viseu já tinha ligação ferroviária a Santa Comba Dão (interface com linha da Beira Alta), desde 24 de Novembro de 1890:

“Viseu rejubilou, armou-se em festa, embandeirou e iluminou as casas, fechou as lojas e veio para as ruas, que as músicas percorriam tocando alegremente. Todas as classes da sociedade ali consideraram de gala este dia, e todas expontaneamente manifestaram o seu regozijo por ver a sua capital de distrito ligada por uma via acelerada ao resto do país”.(3) É interessante referir que, em Novembro de 2007 lamentava o presidente da câmara municipal de Viseu, o facto do primeiro ministro não se ter referido à “ligação da cidade ao caminho de ferro” – Durante uma declaração sobre meios de comunicação regionais. (13) Realmente, quando uma região já teve acesso ao caminho de ferro durante tanto tempo, e depois o perde, fica com uma nostalgia forte e grande vontade de retomar a via ferroviária, agora naturalmente em condições concordantes com as existências e problemáticas do século XXI.

Albergaria-a-velha “No seu próprio nome o certificado da sua origem. Em Novembro do ano de Cristo de 1117, isto é, ano de 1155 de Era de César, passava a infanta-rainha D. Teresa, Mãe de D. Afonso Henriques, nosso primeiro rei, uma carta de privilégio a Gonçalo Eriz, cotando-se a sua vila de Osseloa (hoje o bairro de Assilhó), que confinava com as terras de Santa Maria (Feira), onde a carta foi assinada e concedida com a cláusula de estabelecer e sustentar uma albergaria próximo da estrada. O primeiro albergueiro, ou seja, o primeiro habitante de Albergaria de nome Gonçalo de Cristo, seria posto pela rainha. Para se demonstrar quanto era agreste o território circunjacente, bastará notar que a carta de couto dá fé da existência de veados, corças, gamos e ursos. As albergarias eram utilíssimas instituições de previdência, ponto de refúgio dos viandantes que se viam perseguidos pelas quadrilhas de malfeitores de toda a espécie que infestavam o país naqueles rudes tempos medievais. Na Carta de Couto declara-se que o sítio onde se fundava


a Albergaria era escolhido de preferência pelos salteadores, que ali vinham roubar e matar os transeuntes.” (3) Vários séculos e muitos anos depois, por aqui viria a passar um moderno e desejado meio de transporte, que se chamou Caminho-de-Ferro do Vale do Vouga.

O ramal de Aveiro. A ligação Albergaria-A-Velha – Sernada – Águeda – Eixo –Aveiro, foi inaugurada em 8 de Setembro de 1911, menos de três anos depois do arranque da linha em Espinho. Estava assim alcançado um importante objectivo do projecto: Aveiro – com tudo o que isso representava. Mais tarde veio a construir-se uma extensão até AveiroMar, para mercadorias e transporte de material relativo a obras portuárias.

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“E no dia seguinte vou a Águeda, para conhecer o Vale do Vouga. A ida, de comboio, encantou-me. A volta, de automóvel, maravilhou-me…” Paulo de Magalhães (26)

Inauguração oficial da Linha do Vale do Vouga, a 9 de Fevereiro de 1910.


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Nos primeiros tempos, os edifícios das estações foram pintados em tons escuros de ocre, como pode adivinhar-se nos bilhetes postais. Depois generalizou-se a cor branca.

1914 – Um ano muito especial: fica concluída a linha do Vale do Vouga, o que representa a concretização de um sonho, seguido pouco tempo depois por um pesadelo – rebenta a Primeira Guerra Mundial, com todos os problemas e sofrimentos daí decorrentes. Para os caminhos-de-ferro chegou a dificuldade de abastecimento de carvão, o que obrigou ao uso de lenha nas locomotivas, com a consequente lentificação da marcha. As complicações eram mais vastas, atingindo também falta de material diverso, incluindo peças, levando à paragem de algumas máquinas; ainda a falta de bens essenciais, incluindo alimentares. A partir de 1916, com a nossa entrada na Guerra, foi algum pessoal mobilizado, o que veio aumentar as dificuldades. Não faltou também a grave epidemia de gripe – a “pneumónica”, nem a desvalorização da moeda, greves, etc. foram anos difíceis, a Guerra durou até 1918, mas os problemas continuaram e as coisas tardaram a recompor-se. Faltava um pouco de tudo, incluindo metal para a fabricação de moedas; a solução encontrada foi a emissão de cédulas pelas Câmaras Municipais e por outras instituições de reconhecida importância. Valiam como dinheiro.

1923 – foi um marco na vida do caminho de ferro do Vale do Vouga - a nacionalização da companhia trouxe o melhoramento das linhas e do material, o aumento das receitas, o desenvolvimento do tráfego. Em 1925 foram adquiridas três potentes locomotivas de tipo “mikado” que vieram melhorar a tracção dos comboios, nomeadamente no trajecto Espinho – Viseu, caracterizado pelo atravessamento de zonas montanhosas. Em 1927 fala-se em prolongar a linha de Aveiro a Cantanhede, e outros prolongamentos se imaginam… Em 1928 Ferreira de Castro faz um passeio na linha do Vale do Vouga: …” E que maravilhosas rendas o sol tece neste rincões de quimera, com o Vouga adormecido, com o arvoredo em êxtase e as estradas brancas que parecem ir dar a um palácio encantado! Para além de cada túnel há sempre uma aguarela soberba Sentimos a impressão de havermos caído num outro mundo, que vive, cioso da sua assombrosa beleza, isolado do tumulto contemporâneo – um mundo onde tudo é belo, estético e deslumbrante! Vouzela é a exclamação máxima!”… (18)


Aveiro e a sua ria. “Aveiro não tem fronteiras nem no mar, nem em terra, nem no ar. As fronteiras do mundo não passam por aqui. Em todas as direcções o horizonte ou o zénite estão no infinito”… José de Almada Negreiros (14) A ria de paisagem única, “ indecisa entre o mar e a terra, enche-nos de vivo prazer e atira-nos, como a sombra da manzanilha, sendo aqui o homem anfíbio, lavrador e marinheiro”. Oliveira Martins (7) “Este lindo barco serve para tudo. Vai à pesca e carrega o sal e o moliço pelas terras dentro. É o meio ideal de transporte entre estas terras ribeirinhas. Substitui os animais de carga, as diligências nas feiras e é o encanto da ria. …Navega à vela pelo interior das terras, e estou em dizer que é capaz de escorregar por cima das ervas”… Raul Brandão (15) Não esquecer os doces de ovos de Aveiro…

1929/30 – A grande depressão, a crise económica mundial “que o nosso país compartilha”como sublinha o Eng. Fernando de Sousa, afectou particularmente os transportes. Também os anos 30 viram nascer uma nova “ameaça” para os caminhos-de-ferro: a estrada e a camionagem que “com percursos paralelos” tirava clientes ao comboio… A resposta do “Vale do Vouga” não se fez esperar - foram adquiridos novos autocarros ligando Viseu - Porto, via S. Pedro do Sul, Santa Cruz da Trapa, Vale de Cambra e muitas Curvas! As dificuldades não impediam (1931) a inauguração do serviço ferroviário de ambulâncias postais, e em 1933 (25 anos de V.V.), realizou a companhia um congresso cheio de ideias e projectos, só travados pela crise…

Os comboios do Vale do Vouga, mesmo em períodos difíceis, continuaram ao serviço das populações. Foto: colecção Dr. M. Teresa Verdasca, Oliveira de Frades.

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- Linhas do Vale do Vouga e do Dão. A tracejado, alguns projectos dos anos 1930s, não concretizados, incluindo o troço Arrifana-Crestuma - Sra. da Hora, que faria a ligação ao Porto de Leixões. - Uma correcção neste mapa: a estação de apoio do C.F. do Vale do Vouga, chama-se Sernada. - Acrescentamos a linha do Dão.


Projecto V.V. em 1944, vindos de 1933. Os Caminhos de Ferro do Vale do Vouga, “encravados entre duas linhas de via larga (Norte e Beira Alta), obrigados a transbordos, o que constitui encargo e complicação grave, sobretudo nas suas relações com o Porto, só adquirirão o pleno desenvolvimento quando tiverem a sua “testa” marítima no Porto de Aveiro e, principalmente, acesso directo ao porto pela linha da Arrifana, para os ligar também à rede de via métrica e ao Porto de Leixões. Para a realização destes objectivos têm já construído o pequeno ramal de Aveiro ao canal de S. Roque, utilizado largamente para transporte de pedra para as primeiras obras deste porto, em 1933 e 1934, cuja conclusão, parece, só a guerra actual tem impedido; e têm também feitos os primeiros estudos e longamente instado pela construção da linha de Arrifana, que é de fundamental importância para a vida da companhia, tais e tão graves são os efeitos do transbordo em Espinho, em especial por causa da curta distância a que se encontra do Porto e de Leixões, a melhor zona industrial do Vale do Vouga, ou seja de Espinho a Oliveira de Azeméis”.(3)

Contudo, a terra move-se… e o “Vale do Vouga” também: para dar resposta ao problema da lentidão dos comboios, “inventan-se” as automotoras feitas nas oficinas da Sernada no inicio dos anos 1940s: - “foram construídas sobre chassis de camiões «Panhard»; para facilitar a inscrição nas curvas, adaptou-se um “Bogie” na frente; para rodado motor, aproveitou-se o eixo motor do camião” (3) Eram francamente mais rápidas do que os ronceiros comboios a lenha , e foram um sucesso, em tempos difíceis. Fiz algumas viagens nas automotoras e posso dizer que eram, no mínimo, emocionantes! Aquelas curvas, aquela sensação de velocidade… Inesquecíveis.

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Carimbos da ambulância postal, Vouga I / Vouga II

2ª Guerra Mundial 1939 – 1945 Nova grande contrariedade para a Europa, para o mundo… e para o “Vale do Vouga”: falta outra vez o carvão, volta de novo a lenha e a lentificação dos percursos; faltam também muitas outras coisas, e as poucas que vai havendo são racionadas, mesmo já depois da guerra ter terminado, como, por exemplo, a gasolina. (ver, à frente, talões de racionamento para 1946).

As locomotivas foram adaptadas ao consumo de lenha: “a caixa do carvão era eliminada e substituída por duas paredes laterais em madeira, a parte traseira era aberta porque quando acabava a lenha, e acabava muito rapidamente, a locomotiva era abastecida por um terceiro tripulante, o chegador, que viajava num jota sem a parede frontal, cheio até cima de toros de eucalipto”. - texto e foto, gentilezas do Sr. Fernando Pedreira


A segunda Guerra Mundial terminou em 1945, embora, e mais uma vez, os seus efeitos se tenham prolongado, misturando-se com sinais de uma progressiva recuperação. - No que à linha do Vale do Vouga diz respeito, esta época é marcada por um acontecimento que viria a definir o seu Futuro: 34 As primeiras automotoras foram construídas na Sernada, a partir de 1940. Foto: J.Wiseman/1969

- Em 1 de Janeiro de 1947 foi imposta a integração na C.P. de todas as companhias ferroviárias, com excepção da linha do Estoril… Acabou a sigla V. V. e foi tudo para a C. P.. Contudo as coisas não melhoram com isso e muita gente entendia que a “companhiado Vale do Vouga” tentava sempre resolver os problemas e havia uma maior confiança. - Escrevia Guerra Maio em 1956, o seguinte: - As linhas de bitola estreita foram sempre consideradas pela via larga como parentes pobres, sem se ter olhado a que eram poderosos elementos de tráfego. A companhia do Vale do Vouga, no seu contacto com a via larga em Aveiro, ficou relegada para lá das cancelas e os passageiros de um para o outro comboio, têm que atravessar numerosas vias de resguardo…” (3)

Este anúncio era muito frequente nas estações de caminho de ferro Foto: Jorge Castro Pereira.

- Vem a propósito lembrar um exemplo: - Na estação central (terminus) de Lucerna, Suiça, as linhas de via estreita chegam ali com dignidade, paralelas às de via normal.


Viajar no Vale do Vouga Partimos da estação de S. Bento, manhã cedo; já lá estava o comboio, preparado para sair dali a uns 20 minutos ou mais. A locomotiva, grande, imponente mesmo aos nossos olhos juvenis, arfava suavemente e deitava um fuminho tranquilo, nada do que seria na hora da partida, aí sim, uma fumarada a valer, mais aquela chiadeira de rodas, bielas, carris… E lá íamos nós pelo túnel até Campanhã, o cherinho a fumo, o ruído característico, tudo o que um comboio a vapor tinha para oferecer. Dali a pouco a passagem, lenta, sobre a ponte Maria Pia: a vista, sempre linda, e o “respeitinho” que aquela travessia impunha a muito boa gente! (não deixem cair a ponte). Pouco tempo depois passávamos na estação das Devesas, e mais adiante a Granja e logo ali Espinho, a nossa estação de saída: nós e as malas, claro. Pesadas e sem rodinhas… Tudo a caminho do “Vale do Vouga”, à nossa espera mesmo ali ao lado, junto da “passerelle”. Um comboio mais pequeno, mas com muita pinta: a locomotiva também arfava, deitava fumo, etc, mas tudo era mais familiar, mais tranquilo. Arrumadas as malas e os cestos, sentadas as pessoas, e ouvia-se um silvo da máquina – íamos partir de EspinhoPraia! Não muito longe e estávamos em Espinho-Vouga; lentamente, íamos ganhando velocidade até que o comboio atingia o que se chama de “velocidade de cruzeiro”; abre-se uma porta, entra o revisor a “trincar” os bilhetes com o alicate: Muito obrigado, boa viagem! A carruagem até era cómoda: como eu gostava de me sentar naqueles estofos, às vezes cobertos com uma protecção de tecido branco… E por cima das nossas cabeças, havia a habitual rede para arrumar malas e embrulhos: É preciso ver se ficou tudo bem arrumado, para não cair em cima de nós. Era o conselho, levado a sério. Está tudo bem. Pronto podíamos agora relaxar e apreciar a paisagem, sempre bonita; também atenção às estações, porque isso era um bom ponto de referência e evitava a pergunta: - ainda falta muito? O “nosso” comboio rolava a par das composições da via larga, mesmo ali ao lado – isto entre Espinho – Praia e

Espinho A “passerelle” era uma atracção para a pequenada… - O “Vale do Vouga” sito mesmo ali do lado direito das linhas de via larga

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Interior de uma carruagem: lá estão os bancos cobertos de tecido branco

Espinho – Vouga. Depois, sorrateiramente, a linha ia ficando cada vez mais longe do mar. Sobre Espinho, dizia a “Gazeta”, que a vila é progressiva, lavada de ares, com excepcionais condições climatéricas, quase únicas no Verão, o que a torna a praia preferida de todos os que querem fugir ao calor”… (3) Mas o comboio anda, é da sua natureza, e nós, mesmo sentados e quietinhos, vamos mudando de cenário e vão aparecendo novas estações, novas terras: - Sampaio – Oleiros, que já está a perto de seis quilómetros de Espinho; mais adiante, Paços de Brandão


– Recorda-me o nome de um velho lugre bacalhoeiro que fundeava no rio Douro, perto de Massarelos, e que eu via da janela do carro eléctrico quando por ali passava. O nome (Paços de Brandão) virá do palácio Blandon, “fidalgo que, dizem, acompanhou o conde D.Henrique e aqui edificou uma grande casa”. Depois Rio Meão, industrial, e uns três quilómetros mais à frente, aparece S. João de Ver, estação que também serve as Caldas de S. Jorge. Estamos a atravessar uma região que, para além da agricultura, se caracteriza pela existência de indústrias ligadas ao papel, cortiça e ferragens.

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Chegamos ao apeadeiro do Cavaco, que tem uma velha historia para contar: É que no dia da inauguração do “Vale do Vouga”, o rei D. Manuel II visitou, como sabemos, a Villa da Feira e o seu velho e imponente Castelo. Só que saiu do comboio (e retomou) no apeadeiro do Cavaco, porque a estrada que liga a estação ao centro da Feira não estava ainda construída… Vamos continuar a nossa viagem e chegar à estação da Villa da Feira, assim mesmo, com dois “ll”. E já andamos dezanove quilómetros desde que saímos de Espinho – Praia. Chegamos a uma terra com história e com um castelo que, atravessando varias épocas, testemunhou todos os períodos da nossa história. E lá está ele firme para enfrentar o Futuro. E nós vamos continuar a viagem no “vouguinha” – como se ele existisse ainda, a vapor, e por esse rio acima…

Saímos de Espinho às 7 horas e estamos na Feira às 7 horas e 38. Gente que sai do comboio, gente que entra, um assobio, um apito e lá vai ele lentamente, depois um pouco mais veloz permitindo que entre pela janela a brisa fresca da manhã - antes que chegue o calor… estamos no Verão, tempo de férias. E quando pensei que íamos parar em Escapães, não senhor sempre em frente até Arrifana – Estação de onde teria partido o projectado ramal passando em Crestuma e ligando à Senhora da Hora e a Leixões, que nunca veio a ser construído.


Castelo de Santa Maria da Feira Durante a reconquista, em plena época medieval, a delimitação de “fronteiras” era algo muito fluído; dominava quem tivesse a força das armas. Daí a grande importância que tinham os castelos, como o da Feira, verdadeiro marco defensivo de um território que se queria progressivamente libertar. - “Ainda antes da conquista de Coimbra, o castelo da Feira foi um dos principais centros de fronteira entre o território cristão e o muçulmano, e ponto de apoio das várias operações militares que culminaram na conquista da cidade em 1064”. - José Mattoso (2)

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Em terras de Santa Maria da Feira devem provar-se as saborosas fogaças, tambem elas encimadas por quatro torres, como o castelo. A festa das fogaceiras, em honra do mártir S. Sebastião, realiza-se anualmente no dia 20 de Janeiro, atraindo muito povo.


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As Caldas de S. Jorge “estão indicadas no tratamento de reumatismos, doenças de pele, afecções catarrais ou alergias das vias respiratórias superiores. Os meios de cura no balneário são os banhos de imersão, duches, inalações, pulverizações e irrigações nasais”. (25)


1º - Premio – concurso das estações floridas.

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Arrifana “como pequena povoação, este núcleo de habitantes viveu esquecido no seu estatismo até meados do século XIX, momento em que despertou do seu sono letárgico, quantas vezes milenário, e, mercê de um intenso e progressivo impulso da sua indústria, do seu comércio e da sua agricultura, em breve ocupou lugar primacial entre as demais terras do distrito de Aveiro”… (13) …” Mas o que mais próxima e decisivamente tirou esta terra da rotina da vida rústica e lhe rasgou os horizontes da modernidade e do progresso, foi a abertura da linha do Vale do Vouga…” (14) - Saímos da Arrifana e, pouco tempo depois, entramos na estação de S. João da Madeira. Terra de trabalho, terra de indústria, onde a chapelaria atinge níveis elevados (a verdade é que os homens andavam todos de chapéu). Também o calçado e outras indústrias são de realçar: quando eu andava na escola, os meus lápis eram “viarco” e,

lá em casa, a máquina de costura Oliva, a máquina de costura Portuguesa! Tudo produtos de S. João da Madeira, entre muitos outros. E lá vai o comboio: Couto de Cucujães, com dois “uu” claro. Antigo couto, hoje mais um pólo industrial da linha do Vale do Vouga. São quase oito horas e a chegada a Oliveira de Azeméis está próxima e prevista para as 8h,06. Já passou a primeira hora de viagem e a esta hora sabem bem uns biscoitos e um pouco de chá que vinha na garrafa termos. Foi o que fizemos.


Oliveira de Azeméis, terra ligada à estrada desde os tempos antigos (estrada Romana, estrada Mourisca…) aos mais modernos, incluindo os trajectos de almocreves ou Azeméis (daí lhe veio o nome). Também a Mala-Posta ainda hoje tem direito a nome de rua. “Seria injustiça não destacar os vidros e cristais do Centro Vidreiro do Norte de Portugal, que tem a sua sede em Oliveira de Azeméis. As suas produções atestam bem o aperfeiçoamento, entre nós, desta indústria delicadíssima”… (7) “Da sua vasta e poderosa riqueza industrial, realce para a Fábrica de Papel do Caima, uma das mais conceituadas em todo o país, sob a direcção do eminente economista Dr. Bento Carqueja”. (7)

Parque de La Salette - Oliveira de Azemeis

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Venda do pão na praça (mercado).

“Esse aprazível encanto turístico que é o Parque de Nossa Senhora de La Salette, formosíssimo conjunto de jardins e sombra…” (7)

- “ Durante cerca de um Século, produziram-se na freguesia de Ossela, Oliveira de Azeméis, louças negras de tal qualidade e gosto decorativo que a sua tradição, por certo, ultrapassou a qualidade de peças saídas das rodas dos oleiros” (27) O notável escritório Ferreira de Castro nasceu em Ossela em 1898. Viveu alguns anos no Brasil e escreveu “A Selva”, livro que o celebrizou, tendo sido traduzido para várias línguas.

O comboio continua a andar: a seguir a Oliveira de Azeméis, aparece Ul, uma estação que sempre admirei pela simplicidade e eficácia das duas letras do seu nome. Depois vem Travanca, Figueiredo, Pinheiro da Bemposta – onde as máquinas podiam reabastecer-se de água; a Branca é a próxima paragem. Seguem-se as duas Albergarias, primeiro a nova, depois a velha – de que já falamos anteriormente. Agora a descida para a Sernada, centro nevrálgico da linha do Vale do Vouga, com as suas ligações a Espinho, Aveiro e Viseu; é uma estação com oficinas, depósitos de locomotivas,


armazéns, escritórios…”há máquinas em manobras; há oficinas em laboração; há carvão a ser removido; há agulhas que se colocam no seu lugar; há escritórios a processar o deve e o haver; há baús que embarcam ou desembarcam com o sustento dos ferroviários; há gaitas a tocar para dar partida aos comboios…” (24) - E é mesmo o nosso, em direcção a Viseu.

Estamos em Paradela, terras de Sever do Vouga; a máquina já apitou. Vamos partir e andar um pedaço até chegar a Ribeiradio – belas vistas! Este planeta é lindo, nós é que o estragamos. Vem depois Arcozelo das Mais e a seguir Pinheiro de Lafões, com outra obra de arte ferroviária – o seu viaduto, tão bem inserido na paisagem.

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Sernada

Lá vamos nós começar a subir e a dar curvas, muitas curvas, passar em pontes e túneis, e em passagens de sonho. Estamos sobre a bela ponte norte do Poço de Santiago, uma obra de referência do seu tempo (a imagem está na página de abertura). - Sim, as curvas são uma constante e sente-se um pouco daquele “mal-estar” muito parecido com enjoo… - Vai até à janela e respira este ar puro dos pinheirais! E parece que deu algum resultado…mas o que ajudou mesmo foi a paragem em Paradela, porque estas paragens frequentes ajudam muito, revitalizam. Podem atrasar um bocado, é certo, mas naquela altura eram diferentes os conceitos de tempo e de espaço; a pressa não era muita e as viagens demoravam o que demoravam. No nosso caso, o dia tinha sido destinado a isto mesmo, e não seria meia hora para trás ou para a frente que vinha alterar o humor.

Dólmen de Cerqueira, Sever do Vouga (Foto - Rota da Luz)

Toda esta terra mostra sinais antigos de presença humana: “Ao período da pedra polida ou à mais antiga idade dos metais, pertencem muitas estações e achados da bacia do Vouga. Monumentos sepulcrais chamados pelos arqueólogos dólmens, cistas e tumuli, mas que o povo conhece pelos nomes de antas, arcas, fornos de mouros…” Prof. Mendes Correia (7)

E estamos a chegar a Oliveira de Frades, sede do concelho, pois já vínhamos viajando no seu território há algum tempo. Entramos assim “nestes ares incomparáveis” e em terras de Lafões, que no passado já constituíram um concelho, integrando os territórios de Oliveira de Frades, Vouzela e de S. Pedro do Sul; por lá vamos passar, bastando para tal continuar a seguir a linha do Vale do Vouga.


Foto Beleza - Porto

“Os frades que se juntaram ao topónimo Oliveira, foram os cónegos regrantes de Santo Agostinho, sediados no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra”… - Manuel Barros Mouro (11) 42

Câmara Municipal de Oliveira de Frades


O viaduto e a estação de Vouzela em tempos que já lá vão, vividos com a curiosidade e esperança próprias de grandes empreendimentos, como foi o do caminho-de-ferro do Vale do Vouga.

- Nós já íamos um pouco cansados , o calor a apertar, a hora do almoço a chegar… O que valia era estarmos em Vouzela. - Terra do viaduto mais impressionante de toda a linha, que ainda hoje e mesmo sem comboio, continua a marcar fortemente a bela paisagem.

Vouzela - Estação de caminho de ferro

- Uns minutos mais à frente e chega a estação das Termas. Movimento de gente que vai a banhos; à espera estavam os corretores dos hotéis:

- Hotel Vouga! Palácio Hotel! Grande Hotel Lisboa! Diziam eles em voz bem audível, apoiando e encaminhando os seus respectivos clientes. Nas páginas seguintes, alguns aspectos de Vouzela e das termas.

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“As torres medievais existentes no concelho de Vouzela fazem parte de um fenómeno que se estendeu de forma mais ou menos linear e sincrónica por quase toda a Europa. Em Portugal teve maior incidência a Norte e na Beira. …As Casas Torre eram o mais nobre e evidente sinal de senhorio sobre uma terra”. (16) - Na Batalha de Toro (1476), D. Afonso V e seu filho, o futuro D. João II, conseguiram impedir a união a Castela. Foi notável o heroísmo do decepado, que segurou a bandeira com os dentes até ser derrubado do cavalo.

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“castelo de Vilharigues, sentinela perdida de um tempo que não volta, pertença da antiga Casa da Cavalaria, onde nasceram S.Gil, o Fausto Português, e o Valente decepado” conde de Bertiandos (17)

Comprar pastéis de Vouzela! “Romeiro, se ainda sentes que em tua alma lampejam os brios patrióticos, revoca os grandes eventos da história, e deixa-te penetrar da emoção de saberes que, sob o abrigo destas pedras, nasceu e viveu um dos nossos mais gloriosos heróis: alferes Duarte de Almeida, o decepado de Toro” - eng. Mário Cruzeiro, liga de amigos de Vilharigues – 1984. (placa no local)


O novo edifício dos banhos, de moderna construção, é elegante e está bem dividido. Não está porém ainda acabado, sendo, por esse motivo, o tratamento das inalações ministrado n’uma pequena casa. É nestas Termas que sua majestade a raínha senhora D. Amélia, vai todos os anos fazer uso dos banhos termais. A casa onde, este ano, sua majestade se alojou (figura à esquerda), fica no Forno Telheiro, S. Pedro do Sul, e pertence à senhora D. Maria Emília Pinto Leite”. (6)

Casa onde habitou este anno S. A. Rainha (photographia de António Tudella)

S. Pedro do Sul, 1896 “A Beira Alta!... os senhores imaginam bem – aqueles que se limitam a viver a vida smorzante do sul, com as suas paisagens monótonas, uniformes, sem vida, sem cor… O que seja aquela vastíssima região? De Viseu a Vouzela – uma distância de 18 quilómetros. - A paisagem é larga e lavada: montanhas aqui, mais além desenrolando-se já em vastíssimas planícies, verdadeiros jardins, a esmo espalhados e que só uma concepção divina poderia criar! … Um encanto! Uma manhã d’Abril ou Maio – para longe o Spleen! - Tomem o carro da carreira, subam para a imperial, e percorram esse pedaço, esse recanto da Beira Alta que vai de Viseu a Oliveira de Frades! Saindo de Viseu às 6, às 8 estarão em S. Pedro do Sul. É uma vila toda cheia de sol: alegre, de casas muito caiadas, docemente reclinada na encosta de um monte, e ali mesmo na confluência dos rios Sul e Vouga… Para um lado e para outro, quintas e pomares: uma vegetação exuberante ante nossos olhos. Depois, como se isto já não bastasse, há ainda a admirar o carácter d’aqueles povos: robusta e pacífica, leal e trabalhadora, toda aquela gente! A hospitalidade é proverbial”. “- Adiante logo de S. Pedro – meia hora de caminho. - Na margem esquerda do Vouga, fica a antiga povoação do banho – hoje Termas da Rainha D. Amélia.

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Termas de S. Pedro do Sul Depois de terem sido utilizadas pelos romanos, como o provam evidentes vestígios arqueológicos, estas termas, como todas, sofreram um interregno com o fim do império romano. Seguiu-se o obscurantismo medieval que, neste caso, foi ultrapassado a partir do séc. XI, com a chegada “Dos Gafados Leoneses e outros doentes, que principiavam a fazer ressurgir, pobre mas seguramente, a velha estância”. E assim chega o séc. XII e a vinda de D. Afonso Henriques que “em uma das suas audazes incursões - a falsa investida sobre Badajoz – na eminência de ficar prisioneiro, retira precipitadamente e ao atravessar a porta das cidade, bate com a perna esquerda num ferrolho, fracturando-a”…sofria dores agudas que o tornavam “insofrível, insofrido e enraivecido”…e aproveitou o conselho de “um residente em terras de Lafões, que lhe indicou as caldas da sua terra. Não teve de arrepender-se, pois encontrou ali o ansiado alívio das suas dores…com os banhos ficou tão são que ficou capaz de vencer muitas mais batalhas…”


Balneário rainha D. Amélia, em desenho de 1930.

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Balneário (piscina) de D. Afonso Henriques. Fotografia de meados do século XX, altura em que era visitável. (foto-Junta de Turismo, 1955)

O rio Vouga, sempre belo, em todas as épocas. - postal: Ed.”Superior”


S. Pedro do Sul -Logo que saímos da estação das termas, começam os preparativos para a saída em S. Pedro, daí a pouco; malas alinhadas no corredor, a caminho da plataforma, uma revisão aos lugares e à rede a ver se não esquece nada. Mais uma passagem sobre o Rio Vouga, agora na ponte do pégo, e estamos quase a chegar: S. Pedro! - A saída, as malas e os embrulhos, o tal calor do meiodia e mais uma curta viagem, agora de automóvel. Finalmente o almoço! - Estas viagens são um acumular de sensações: belas paisagens, um comboio como não há outro, o calor, algum cansaço, umas curvas a mais, tempo a mais de viagem… Contudo , para mim, o cômputo geral é sempre positivo. - Nestes momentos apetece lembrar a solução sugerida há anos pelo Dr. Jaime Gralheiro- talvez mesmo “um comboio a sério”! - Entretanto, a locomotiva teve de “Beber Água” para conseguir enfrentar a difícil subida para Viseu. Logo depois da estação, o comboio atravessava a ponte curvando à direita na direcção de Fataúnços, até deixar mesmo de se ouvir… Passavam mais alguns minutos, e tornava a ouvir-se ao longe e a ver-se lá no cimo do monte, entre pinheirais, a caminho de Viseu… Termas de S. Pedro do Sul - Margens do Rio Vouga.

Rio Vouga …”rios do meu país, milagres de água, Fundos olhos de moiras prisioneiras Entre sombrias árvores, olhando… Só um de vós viu já abrir meu peito: E, de falar comigo, sabe a lágrimas, Enrouqueceu a sua voz profunda… És tu, Vouga sagrado! És tu, ó rio Português de nascença, e até à morte, Figura da nossa alma derradeira”… António Correia de Oliveira

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O comboio atravessava a ponte curvando à direita... Foto: Edgard, S. Pedro do Sul.

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Nos anos 1960/70 ainda funcionavam locomotivas a vapor, com toda a magia que lhes estava associada: aqueles ruídos metálicos, a fumarada, o cheiro, o apito estridente anunciando a partida, o calor que a máquina acrescentava a quem perto dela estava… Muitas vezes fomos à estação só para ver o comboio!

Viseu “A cidade de Viseu é uma das mais antigas de Portugal, podendo a este respeito competir com as que mais se abonam em primazia de vetustez. Como sucede a todas as povoações cuja fundação se oculta na penumbra dos séculos, Viseu possui lendas e fábulas que a poesia tem revestido de roupagens mirabolantes, mas que a história põe de parte porque, mais prosaica e positiva, não se prende com as lendárias ficções que as gerações vão transmitindo umas às outras. Poderíamos aqui falar de Viriato, o célebre capitão dos Lusitanos e terror dos romanos, da Cava, do último rei dos godos, Ramiro; mas, deixando isso aos Arqueólogos e Antiquários, diremos unicamente que Viseu foi sempre uma das povoações mais importantes da monarquia portuguesa, não só pela situação, comércio e indústria, mas também pelo número de varões eminentes com que tem dado lustre a Portugal e ao mundo”…

Eduardo Leite, 1925 “A Porta do Soar” Museu de Grão Vasco.

- Automotoras “Allan, em Viseu. Estação de Viseu - 1988 Foto: Clube de Entusiastas do C. de Ferro (Lisboa).


O fim do “vapor” Até aos anos 60/70 ainda circularam comboios com máquinas a vapor (a foto com locomotiva na estação de S. Pedro do Sul é de 1969). Chegou o ano de 1972 e deflagraram grandes incêndios no Vale do Vouga atribuídos às faúlhas das máquinas a vapor; o movimento ferroviário foi encerrado entre a Sernada e Viseu e também no ramal de Aveiro. O serviço passou a ser feito por autocarros. Devemos lembrar que os incêndios florestais continuaram, de que maneira, e não só no Vale do Vouga, mesmo depois das máquinas a vapor terem saído de cena... Seguiram-se vários protestos populares exigindo a reabertura, diz-se que a linha é deficitária porque não há investimentos nem melhorias das infra-estruturas e do serviço...” Mas a verdade é que a nossa linha, antes de ser entregue á actual concessionária (1947) sempre se bastou a si própria, graças a uma administração economicamente equilibrada”......”o combóio voltará”(24). Foi realmente conseguida a reabertura da linha, mesmo até Viseu, desta vez com automotoras “Allan”; existiu alguma reanimação que se prolongou pelos anos 80. Não era a mesma coisa, não se viam nem ouviam já as velhas locomotivas a vapor... Mas havia serviço ferroviário! O pior viria nos anos 90: o encerramento definitivo do percurso Sernada-Viseu, ficando assim o “hinterland” sem a sua ferrovia, agora sim, abandonada, em vez de ter sido modernizada para constituir uma alternativa válida à problemática rodovia.

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O Vale do Vouga 100 anos depois Com o abandono da linha Sernada-Viseu, foi dada uma grande machadada no projecto “Vale do Vouga”, pois a ideia nuclear era precisamente ligar o litoral e o interior desta vasta e importante região. Este belo caminho de ferro foi de grande utilidade para as populações dos centros urbanos, para o comércio e indústria, mas muito especialmente para a gente dos campos e aldeias distantes, que viram e sentiram o comboio como um apoio que nunca tinham tido e que, enquanto durou, os ajudou bastante.

As automotoras “Allan”, vieram reanimar um pouco a, cada vez mais, abandonada linha do Vale do Vouga. Outras lá andaram como as “Jugoslavas”... O que resta da linha do Vale do Vouga são dois troços de tipo “regional- de Espinho a Oliveira de Azeméis, e de Aveiro a Águeda, com ligações umbilicais” à Sernada. Mesmo assim, com problemas: Estações fechadas, algumas em ruínas, como é o caso de Branca. Traçado sinuoso e baixa velocidade (até 40km/ hora).


... Quem anda aqui há sete anos, ida e volta, nota que isto está abandonado, diz uma utilizadora. ... Em causa está a renovação, requalificação e valorização da linha (160 passagens de nível). ... O que mais me dói é ver as estações abandonadas e fechadas, parece que querem acabar com isto... ...Mas se isto acabar, ficamos todos mais pobres. Outro passageiro diz: - “Este comboio faz um bom serviço e sou daqueles que pensam que as máquinas a carvão nunca deveriam ter acabado. O que pago neste comboio comparado com as camionetas. É uma ninharia”...(JN..extractos/20.01.2008) - A linha do Vale do Vouga foi motivo de esperança, factor de desenvolvimento, alegria e vida! Nos tempos que correm, a ferrovia tem um papel determinante a desempenhar. Adivinham-se dificuldades que vão exigir novas formas de pensar, planear, fazer- o clima, o ambiente, a água, a energia e a necessidade vão cruzar-se.

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Uma das actuais automotoras (trabalharam na linha da Póvoa, antes do metro) entra na estação da Feira com a luz da manhã.


Algumas características da linha - Bitola = 1 metro (via métrica). - Carris de tipo “vignole” com 25 quilos por metro e 12 metros de comprimento (carril normal). - Carris especiais para agulhas e curvas, muitas vezes de raio inferior a 100 metros. - Inclinação máxima 25mm/1000, atingida com frequência. - O acidentado da região obrigou à construção de numerosas pontes e viadutos, abertura de trincheiras e pequenos túneis, o que elevou o preço da construção e os encargos de exploração. - Placas giratórias para as locomotivas e automotoras, nas seguintes estações: Espinho-Vouga, Sernada, Aveiro, Oliveira de Azeméis, S. Pedro do Sul e Viseu. - As “Tomas de Água” são numerosas, devido ao grande consumo para subir rampas.Geralmente é uma operação rápida que demora uns 3 minutos. - Normalmente (até 1939, início da 2ª guerra) as máquinas consumiam 11/12 quilos de carvão “inglês” por quilómetro. Depois faltou o carvão, veio a lenha de pinho e eucalipto: consumiam 46/52 quilos por quilómetro, baixando consideravelmente o rendimento.

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Como “recordação” ficou esta locomotiva em Vouzela.

Notas Bibliográficas 123456789101112-

Correia de Azevedo/Espinho- 1961 José Mattoso/castelo da feira-ippc,1990 “Gazeta dos caminhos de ferro” Monografia S.J.Madeira/M.Martins.J.Teixeira,M.d. Silva,1944 S.J.da Madeira, cidade do trabalho,1996 “Branco e Negro”1896 “Dicionários regionais”/Espinho, 1933

Ramalho Ortigão/ 1ºed.”as praias de Portugal”1876 “O Occidente” “Albergaria –a-Velha/Bismarck,1994 Manuel Barros Mouro/ A região de LafõesCoimbra,1996 12-MCP/ “Memórias do Vale do Vouga”- Porto, 2000 13- “Jornal de Noticias” 14- “Panorama” 1941 15 - Raúl Brandão/ “Os Pescadores”

16 - “circuito das torres”/C.M. Vouzela 17 - Conde de Bertiandos/lendas da beira, 1894 18 - Revista “Civilização”1928 19 - Dr. Ferreira de Almeida/ Thermas de S. Pedro do Sul,- Porto,1930. 20 - “álbum de Vizeu” 1884 21 - Ver nº 8 desta revista”Villa da Feira” 22 - “Rota da Luz”/inform.turistica 23 - “Dão Lafões” Viseu/ inform. Turística 24 - Daniel Rodrigues/ “Vouga Arriba” Aveiro, 1974 25 - “Roteiro”/C.M. Santa Maria da feira 26 - Paulo de Magalhães/ Viva Portugal!”- rio, 1925. 27 - inform, Museu Regional Oliveira de Azeméis. 28 - “Roteiro do Viajante” 1865. 29 - “Oliveira de Frades”/inform.turística “Dão Lafões” 30 - “Boletim da C.P.” 31 - “Illustração Portuguesa” 32 - “O Regional”/S. J. Madeira”.


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In CP: Caminho de Ferro do Vale do Vouga - Centenรกrios 1140 - 1640 - 1940 Porto, Tipograia Alianรงa 194_


S. Paio de Oleiros e a Inauguração da Linha do Vouga Anthero Monteiro Quando, no ano de 1900, o decreto 15/2 estabeleceu o plano de viação acelerada para o Norte do Mondego, incluiu nele o caminho de ferro do Vale do Vouga, entre Viseu e Espinho, prevendo os seguintes pontos de paragem obrigatória: Vouzela, Oliveira de Frades, Sever do Vouga, Albergaria-a-Velha, Oliveira de Azeméis, S. João da Madeira, Vila da Feira e Espinho. Não parece que fossem contempladas terras com estatuto inferior ao de vila e, por isso, também Oleiros não constava. No ano seguinte, ao falar do percurso estipulado, o Correio da Feira n.º 213, de 4 de Maio, inclui, entre as 22 estações previstas, numa extensão total de 115 quilómetros, Silvalde, Paramos, P. Brandão, Riomeão, S. João de Ver, Feira, Sanfins, Escapães e Arrifana. Uma vez mais, Oleiros ficaria de fora. Em 1906, é adjudicada a concessão da construção e exploração a uma Companhia Francesa. Em 1907, é publicado o contrato definitivo, sendo outorgantes, por parte do Governo, o conselheiro José Malheiro Romão e, por parte da empresa concessionária, o engenheiro André de Proença Vieira. A Gazeta d’Espinho referia, em 12 de Julho de 1908, que o deputado Dr. Egas Moniz tinha em seu poder

representações das juntas de paróquia de Lamas, Mozelos e Oleiros, a solicitar uma estação na freguesia de Oleiros, na zona dos lugares do Monte ou Valado. Constava, então, que a Companhia considerara o pedido como justo e estava pronta a fazer a estação, faltando apenas a aprovação governamental. As representações seguiram para o Ministério das Obras Públicas, e o Senhor Ministro responderia que iria «tomar na devida consideração o pedido do ilustre deputado». No dia 26 do mesmo mês, a Gazeta relatava que a linha estava pronta praticamente até à Vila da Feira e que os trabalhos de construção das estações iam adiantados, parecendo «definitivamente assente o apeadeiro de Oleiros, o que é um incontestável melhoramento n’aquela freguesia e outras visinhas, sobretudo Nogueira, Mosellos e Lamas». Parece, pois, não haver ainda consenso relativamente à construção de uma estação ou de um apeadeiro, muito embora, em 8 de Novembro seguinte, a mesma Gazeta dê uma animadora notícia para os oleirenses: «Parte brevemente para Oleiros, onde vai dirigir a estação do Valle do Vouga naquela localidade, o nosso amigo João Gonçalves Ramos, inteligente funcionário, que foi nomeado chefe da referida estação.» Aqui temos, pois, o nome do primeiro chefe do que era já uma certeza: a estação. Apesar disso, A Gazeta de 15 de Novembro do mesmo ano, ao narrar a primeira excursão pela nova linha realizada na quinta-feira anterior, uma visita do secretário do Conselho de

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor, de múltiplas obras poéticas, didácticas e ensaísticas. A última que editou intitula-se “A Canção de Guerra Contra a Guerra”, Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2008. Organizador de várias tertúlias poéticas, começou recentemente a coordenar as Quartas Mal - ditas do Clube Literário do Porto.

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Visconde de Assentis 56

Administração dos Caminhos de Ferro do Estado ao primeiro troço do Vale do Vouga, entre Espinho e Oliveira de Azeméis, usava de novo o termo “apeadeiro”: «Ao partir de Espinho a linha atravessa uma larga planície de areia, internando-se depois nos pinhaes para chegar ao apeadeiro de Oleiros, defronte do qual se vê o amplo hospital construído por um legado do capitalista Sá Couto e que deve inaugurar-se a 6 de Janeiro próximo». Admitimos que a paragem se tenha dado mesmo defronte do Hospital, e não propriamente na estação, por se tratar de uma viagem experimental e porque, assim, se comprovava a premência da mesma estação nas imediações de uma obra ímpar e de utilidade eminentemente pública, que iria ser inaugurada a 6 de Janeiro seguinte. Não terão sido apenas as representações da junta local e das vizinhas ou a necessidade de contemplar as empresas da zona o que terá provocado a inflexão nas decisões relacionadas com as estações inicialmente previstas. Era também a existência daquele hospital-asilo, que iria servir os concelhos de Espinho e da Feira, causa a que não faltou certamente a intervenção bairrista dos familiares do Comendador Sá Couto, já falecido, nomeadamente o peso político do Conde de S. João de Ver, seu testamenteiro e responsável por erigir aquela obra de alto valor humanitário. Seria de uma inconcebível falta de visão, aliás, perder aquela oportunidade única de fazer

Conversa do autor com Ti’Emília do Pedro (já falecida).

rentabilizar uma aliança entre dois serviços públicos tão úteis à região. João M. Ribeiro, Director do Notícias de Vouzela, escreve, a propósito deste movimento de influências: «As Câmaras Municipais enviavam exposições. Os amigos telegrafavamse, cruzando influências. Os políticos de toda a zona eram assediados e assediavam os correligionários de Lisboa. [...] Todos os partidos, de há anos a esta parte, vinham colocando na bandeja eleitoral a abertura do Vale do Vouga».1 E se não duvidamos de que S. Paio de Oleiros beneficiou, neste processo, do apoio de pessoas bem colocadas, até podemos acrescentar alguns indícios comprovativos. Em primeiro lugar, já acontecera idêntico procedimento com a estação da linha do Norte em Espinho, que era inicialmente – e foi-o durante dez anos, entre 1864 e 1874 – um simples apeadeiro. Quem terá conseguido a promoção do estatuto daquela paragem? Responde o P.e André de Lima, bom conhecedor da história da cidade-praia: «Isso deveu Espinho aos esforços hercúleos do Conselheiro Anselmo Braamcamp, ilustre chefe do Partido Progressista, que para o conseguir teve de pôr em acção todo o seu valimento e toda a sua amizade com o dito engenheiro, conselheiro Manuel Espregueira, seu correligionário, fazendo-o para ser 1 - João M. Ribeiro, «O Vale do Vouga... antes de circular», in Joaquim Moreira Vinhas (direcção), Monografia do Vale do Vouga, Edição da Comissão Organizadora do 75.º Aniversário da Linha do Vale do Vouga, número único, Novembro 1983, p. 159s.


Sede da estação bem tratada (como era tradição)

Recepção ao Rei em Espinho

agradável e ceder aos pedidos insistentes dos seus grandes amigos pessoais e políticos e amigos sem par da nossa terra, os saudosos Marquez da Graciosa, Comendador Joaquim de Sá Couto e o então Dr. Joaquim de Almeida Correia Leal, mais tarde o nosso Conselheiro Correia Leal […]».2 Outro indício: apenas o comboio experimental a que vínhamos fazendo referência parou em Oleiros, prossegue A Gazeta, «foram levantados muitos vivas aos srs. Visconde de Assentiz, François Mercier, à Companhia do Vale Vouga e ao conselheiro Costa». Quem era, afinal, esta primeira personagem a que aqui se alude e que mereceu tão veemente aclamação? Era exactamente o Eng.º André de Proença Vieira, que atrás mencionámos como outorgante no contrato definitivo da concessão ferroviária do Vale do Vouga e representante da companhia francesa concessionária. A ele e ao seu «ânimo empreendedor, à [sua] vontade irredutível e ao [seu] admirável senso prático» ter-se-á ficado a dever este «triunfo», que foi a construção do caminho de ferro do Vale do Vouga. O Eng. Proença Vieira, que, em Junho de 2008, foi agraciado com o título de Visconde de Assentiz, «fez o seu curso em Paris e depois nas escolas politécnicas de Zurich e de Stuttgard. Esteve dois anos na comissão da correcção do Danúbio, de onde veio em 1885, para a nossa comissão de faróis, e daí sucessivamente para a subdirecção do Porto

de Leixões, com a secção das obras da barra do rio Douro, a seu cargo, e para a construção do porto de Lisboa pela empresa Hersent. Esteve depois dirigindo as fábricas de álcool do centro do país, iniciando então a cultura da beterraba, como iniciou também a fundação da Companhia do Niassa. Mais tarde, por encargo dos bancos de Paris, executou uma série de estudos mineiros na América do Sul, cooperou na constituição do Banco da Venezuela, visitou a Rússia e a Sibéria para organizar o monopólio da platina e colaborou na formação do grande sindicato que comprou todos os jazigos de enxofre na Sicília.» Foi, assim, uma vida de permanente actividade e sucesso do Eng.º Proença Vieira, o qual teve participação preponderante na constituição da Compagnie Française pour la Construction et Exploitation des Chemins de Fer à l’Étranger, e que, graças às suas «valiosas relações adquiridas no mundo financeiro», conseguiu a linha do Vouga, «cuja empreitada geral foi contractada com um engenheiro francês de experimentada competência, o sr. François Mercier», afinal a segunda personagem mencionada pela Gazeta como alvo das ovações populares à paragem daquela excursão.3 Ora, o Engenheiro Proença integrara, em Março de 2008, uma Comissão que foi a Lisboa interceder junto do Ministério das Obras Públicas pela defesa da costa de Espinho contra as

2 - P.e André de Lima, «Espinho – Breves apontamentos para a sua história» in Espinho Boletim Cultural n.º 4, Edição da Câmara Municipal de Espinho, 1979.

3 - Cf. «Caminhos de Ferro Novos – A Linha do Valle do Vouga» in Illustração Portuguesa, de 4/01/1909, p. 833ss.

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com agradaveis gentilezas, como esta que tanto me honrou. Muito reconhecido, creia que nunca esquecerei a sua amabilidade. Sempre ao seu dispôr sou o seu amigo dedicado, Visconde d’Assentiz 22-3-1909 Terá sido graças a esta mediação da família Sampaio Maia que a Companhia do Vale de Vouga deu à estação o nome de Sampaio-Oleiros, como ainda depois da incorporação do Vale do Vouga na CP, em 1947, continua erradamente a figurar no edifício, nos horários e nos bilhetes? Ou este “engano” será mera coincidência? Carta de agradecimento do Viscondede Assentis a José de Sá Couto Moreira 58

invasões do mar. Dessa Comissão fazia parte, entre outros, o Conde de S. João de Ver. Eram, portanto, conhecidos e amigos, e não será por mera coincidência que, em Julho seguinte, estava concluído o que era então considerado ainda o apeadeiro de S. João de Ver, mais tarde estação, a confinar com terrenos e com ligação privativa da Casa da Torre, propriedade do mesmo Conde. Também não será apenas coincidência que, algus meses depois, José de Sá Couto Moreira, cunhado do Conde, certamente reconhecido pelos determinantes obséquios recebidos do Eng.º Proença Vieira, tenha proposto, com êxito, à Junta de Paróquia de Oleiros, que fosse dado o nome do Visconde de Assentiz à rua que sai da estação e segue para oeste paralela à via-férrea. O Visconde não deixou de manifestar por seu lado a sua gratidão por tal deferência, como prova o teor da carta endereçada a José de Sá Couto Moreira: «Meu caro Sá Couto. Não imagina quanto me penhorou a gentileza da Junta da Parochia d’Oleiros dando à avenida da estação o meu nome conforme hoje me communicou em officio, resolução esta que o meu amigo promoveu sinceramente. Com isto faz-me saber o amigo que sabe avaliar o quanto se soffre para levar qualquer emprehendimento por deante, mas ao menos temos a compensação de sermos distinguidos

O dia solene da inauguração do primeiro troço da linha do Vale do Vouga, aquela segunda-feira, 23 de Novembro de 1908, é data marcante da história de S. Paio de Oleiros e de toda a região entre Espinho e Oliveira de Azeméis, pelo quanto aquele empreendimento representou para o respectivo desenvolvimento económico e turístico. Após um banquete com 140 convidados, servido no Salão Nobre da Assembleia de Espinho, D. Manuel II entrava no comboio inaugural. A composição – duas carruagens de 1.ª classe, um salão para convidados e o salão real – partia, puxada pela máquina n.º 12, por entre a multidão que se aglomerara para, entusiasticamente, aclamar o monarca e regozijar-se com o advento de uma nova época. No salão real, circundavam Sua Majestade, o Presidente do Conselho e seus Ministros, um bispo, um marquês e vários condes. Com eles viajava também o Visconde de Assentiz e parece que José de Sá Couto Moreira também andaria por perto, ou no mesmo salão ou no dos convidados. Quanto ao Conde de S. João de Ver, sabe-se que estaria na recepção ao soberano, que se faria mais adiante, com o rei a apear-se no Cavaco para se demorar na Vila da Feira e retomar a viagem mais tarde já na estação sita na Piedade. Quisemos obter alguns testemunhos «vividos» do que terá sido a chegada a Oleiros do comboio real. Já lá vão 20 anos que registámos esses depoimentos ali numa eira do Fial, onde se encontravam, sentadas, a gozar o sol de inverno, três nonagenárias, entretanto, como é bom de ver, já desaparecidas do nosso convívio: eram as senhoras Emília Alves de Jesus, mais conhecida por Ti Emília do Pedro (95


anos na altura), sua irmã, Maria Gomes de Jesus (92 anos) e uma companheira da comunhão desta última, Ana Pereira dos Santos ou Ana da Quebrada (91 anos), que diziam recordarse perfeitamente do acontecimento. Ti Emília do Pedro era a mais interveniente e vivaça, na sua linguagem de sabor popular, mas muito expressiva, e as companheiras limitavamse a assentir: Fomos de branco, com os vestidos da comunhão, botarlhe [ao rei] flores. Quando o comboio chegou, começámos logo por atirá-las à máquina. O Rei era um rapaz como tu, só era mais delgadinho, mais baixo e também mais novo. Tinha 18 anos. Vinha com uma luva calçada e outra tirada, muito bonito e cheio de medalhas. O povo dava-lhe vivas – “Viva D. Manuel II!” – e ele agradecia com a mão. Além disso, arrebolava coisas para fora, deviam ser moedas que a canalha mais velha apanhava. Ia muito amarelinho – cheiinho de medo. Ele até nem ia no vagão que o senhor abade tinha dito! Vinha na plataforma de uma carruagem de 1.ª. As almofadas vinham lá, mas ele não! É que ele viu morrer, pouco tempo antes, o pai e o irmão. Havia muita gente, como na Senhora da Saúde. Muitos foguetes, O sítio é que era feio. Só havia lá umas casitas baixitas. Estava lá o nosso P.e José de Almeida. Pegou, tirou a capa de asperges e botou-a nas escadas do comboio. Ajoelhou-se e ele e mais três padres que estavam com ele beijaram a mão ao rei e embarcaram no comboio, onde também ia o sr. Sá Couto.4

caso, um de manhã e outro de tarde. De Espinho partiam composições às 8.30 e às 17 horas e chegavam a Oleiros 18 a 20 minutos depois. No sentido descendente, paravam aqui um comboio às 7.12 e outro às 14.55 horas. Um bilhete Oleiros-Espinho (ou vice-versa) custava 150 réis em 1.ª, 120 em 2.ª e 80 em 3.ª classe. Vieram depois múltiplas alterações e Oleiros haveria ainda de conseguir um apeadeiro na Lapa5, como aconteceu com os do Cavaco-Feira, Sanfins e Escapães, para referir apenas os do concelho. Apesar do sucesso que foi esta linha, durante um século ao serviço desta região, não lhe faltaram, nem faltam hoje, as dificuldades e os percalços. Eles começaram logo nesse primeiro dia de exploração: a máquina do comboio descendente da tarde descarrilou em Oliveira de Azeméis, quando invertia o sentido, e à máquina que vinha de Espinho para a substituir aconteceu-lhe o mesmo em Cucujães. A passagem da linha para a gerência da CP, a má administração desta empresa e o seu aparelho extremamente pesado, as acusações de incendiário por volta de 1973, de que foi vítima o comboio, o desprezo a que foi votada esta linha com materiais sempre re-usados, a opção de privilégio concedida às estradas e auto-estradas e aos veículos motorizados, tudo isso e muitos outros factores terão contribuído para a decadência do Vale do Vouga, que teima, contudo e felizmente, em vingar. BIBLIOGRAFIA:

Seriam treze horas e pouco. O comboio real retomou a marcha, porque até Oliveira de Azeméis, haveria várias estações onde se repetiria o mesmo cenário de euforia e, só na Vila da Feira, esperavam-no 20.000 pessoas, segundo estima o Correio da Feira. O início da exploração efectiva daquela secção do Vale do Vouga, com “serviço de passageiros, bagagens e cães”, ocorreria em 21 do mês seguinte, a segunda-feira anterior ao Natal de 1908. Nos horários da altura apenas constam as seguintes estações: Espinho-Praia, Espinho-Vouga, Oleiros, Paços de Brandão, S. João de Ver, Villa da Feira, Arrifana, S. João da Madeira, Cucujães, Oliveira de Azeméis. Eram quatro os comboios diários: dois no sentido EspinhoOliveira de Azeméis, dois no sentido inverso e, em cada 4 - Referência certamente a José de Sá Couto Moreira.

- A Gazeta de Espinho de 16 e 23/12/1906, 12 e 26/7, 8, 15 e 29/11/1908; - «Caminhos de Ferro Novos – A Linha do Valle Vouga», in Illustração Portuguesa, de 4/01/1909; - Correio da Feira n.º 154 de 17/3/1900 e 213 de 4/5/1901; - Guias-Dicionários Regionais, Vol. I, Edições GEDER, Espinho 1933; - MONTEIRO, Anthero, «Inauguração e Abertura da Linha do Vale do Vouga», in Diálogo n.º 8, Novembro/Dezembro 1988. - VINHAS, Joaquim Moreira (direcção), Monografia do Vale do Vouga, Edição da Comissão Organizadora do 75.º Aniversário da Linha do V.V., número único, Novembro de 1983;

5 - O apeadeiro da Lapa consta de um mapa das estações e apeadeiros da Linha do Vouga inserto no vol. I dos Guias-Dicionários Regionais, datado de 1933.

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Escultura de Anselmo Brandão Bronze Ø 90 mm


Uma Viagem na Centenária Linha do Vale do Vouga Alberto Tavares* Esta coisa dos comboios tem, de há uns tempos a esta parte, consumido algum do meu tempo de lazer. Para isso, talvez tenha contribuído, embora tardiamente, uma costela de ferroviário que geneticamente herdei pois o meu avô paterno foi funcionário dos caminhos-de-ferro portugueses na categoria de carregador. Contava o meu pai que o seu progenitor teve oportunidade de subir de carreira, mas abdicou disso porque tinha de mudar de local de trabalho e, assim, afastava-se da frequência da mercearia e do convívio com os amigos. E por terem conhecimento deste meu gosto pelos comboios, mas também pela organização de uma exposição dedicada à linha do Vouga e outras mais, que em conjunto com outros aficionados dos caminhos-de-ferro levámos a efeito no âmbito da Semana Cultural promovida pela Junta de Freguesia de Santa Maria da Feira, no passado mês de Junho, fui honrado com o convite do ilustre director desta publicação, Dr. Celestino Portela, para narrar algo que aos comboios dissesse respeito. Esta narrativa servirá como mote ao reavivar a memória de alguns para o primeiro centenário da linha do Vale do Vouga a ocorrer este ano, mais precisamente a 23 de Novembro. * Um apaixonado dos comboios.

Nesse dia do longínquo ano de 1908, El-rei D. Manuel II inaugurou a ligação de Espinho a Oliveira de Azeméis. Esteve na, então, Villa da Feira, visitando o castelo, sempre acompanhado por uma enorme multidão, assim rezam as crónicas jornalísticas dessa época. Falar do que foi a visita do rei e a inauguração, já muitos estudiosos o fizeram e não importa agora repetir o que já muitos sabem, mas sim relatar o que é hoje fazer uma viagem de comboio desde Espinho até Oliveira de Azeméis. É agora, na abandonada e degradada estação de ‘Espinho Vouga’, o início deste ramal ferroviário, devido ao desmantelamento da estação de ‘Espinho Praia’, por soterramento da linha-férrea nesta cidade. Em face desta nova situação e única no país, nota-se um extraordinário silêncio na cidade de Espinho, contrastando com o barulho das composições que ao longo de mais de cem anos atravessaram esta cidade. Não tarda muito começarmos a falar das saudades que temos por o comboio não circular à superfície… Dando início à viagem no horário previsto, numa das composições que há uns anos andaram na linha da Póvoa, Guimarães e Trofa que, sendo mais modernas, vieram substituir as já muito velhinhas (ALLAN e DURO DRUkOVIC mais conhecidas por “chepas”) seguimos rumo a sul para ‘SilvaldeVouga’, primeiro apeadeiro após uma passagem de nível (PN)

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Passe: Vila da Feira - Oliveira de Azeméis do estudante Celestino de Oliveira Martins Portela. - válido de: 1.11.1948 a 31.10.1949

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Passe do Pai do Autor. Passe da Avó do Autor, Carolina.

Os passes de aposentados permitiam viajar em todos os comboios dos caminhos de ferro de Portugal, com reduções.


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Espinho. Desativado

com guarda. Aqui, como em muitos outros apeadeiros ao longo da linha, o comboio não faz paragem excepto se tiver passageiros para embarcar ou desembarcar. De lá seguimos para o ‘Monte de Paramos’, pequena localidade sobranceira à barrinha de Esmoriz, avistando-se pela última vez o mar, e atravessamos uma ponte sobre o IC1. Avançamos passando pela ‘Lapa’ para mais à frente vermos o antigo hospital de S. Paio de Oleiros, desactivado e adaptado a outras situações de carácter social. Chegamos à estação de ‘S. Paio de Oleiros’, a primeira do concelho de Santa Maria da Feira, hoje recuperada e que alberga a guarda da linha que controla a PN à distância. Daqui e passando por frondosas matas e algumas quintas com predominância para a do Candal, fazendo-se algumas curvas pela malha urbana, chegamos à estação de Paços de Brandão. Após paragem lá vai o revisor à estação dar informação de andamento à PN mais próxima. Esta estação actualmente serve de estaleiro para carga e descarga de materiais a utilizar na manutenção da via e estacionamento da Dresine e outros

equipamentos. Durante o dia, nesta estação, cruzam-se vários comboios tornando-a, por isso, uma referência. Seguindo viagem, e afastando-nos cada vez mais da orla marítima em direcção ao interior, continuamos a observar muito arvoredo para após a PN com guarda chegarmos à estação de ‘Rio Meão’. O edifício a que chamamos estação não tem na sua concepção as características das estações que existem ao longo da via, pois tem uma estrutura muito diferente e pressupõe que a sua construção ocorreu muito mais tarde em face da industrialização desta localidade, pólo importante no fabrico de ferragens. Não é de facto um edifício de encher o olho, mas servia perfeitamente para acolher e abrigar as pessoas. Avançamos na direcção nascente e pouco mais à frente atravessamos uma ponte sobre a auto-estrada nº 1. O comboio continua pela mata que é paisagem quase constante e, então, vislumbra-se, a certa distância, a torre da Igreja de S. João de Ver que, após uma curva para a esquerda, na passagem pelo cemitério local e muito perto de uma passagem privada (que conheça é a única), entramos na estação de S. João de Ver.


Silvalde - Vouga

Sampaio de Oleiros

Monte de Paramos

Paços de Brandão

Lapa

Rio Meão - Estação

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S. João Vêr

Vila da Feira

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Cavaco - Apeadeiro

Vila da Feira - Azulejo na Estaçã de Villa da Feira

Sanfins - Apeadeiro

Escapães - Apeadeiro


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Esta estação, na época do vapor tinha muita importância, pois aí existia e ainda existe um depósito de água que abastecia as locomotivas a vapor. Todas as estações que serviam de logística às locomotivas estavam um pouco mais acima das outras e eram alvo de visitas com alguma frequência. Vêemse com muita frequência registos fotográficos quer obtidos por portugueses como de estrangeiros destas estações. O seu depósito de água, localizado como está, forma com a estação um conjunto arquitectónico que desperta o interesse para uma observação atenta e demorada. Ainda hoje o quadro é bonito, exceptuando-se o coberto que recentemente construíram defronte à estação. Como ainda há muita viagem para se fazer, tomamos rumo e atravessando a urbe desta localidade com muitas casas, campos e PN´s com e sem guarda, já se vêem as traseiras das fábricas da Zona Industrial do Cavaco e chegamos ao apeadeiro com o mesmo nome. Foi neste apeadeiro que desceu El-Rei D. Manuel II, vindo de Espinho, e noutro meio de transporte dirigiu-se para os Paços do Concelho. Estamos já na cidade da Feira e, para chegarmos à estação desta localidade, teremos primeiro que atravessar os matos passando pelo apeadeiro de ‘Sanfins’ que, numa sequência de curva e contra curva a subir, chegamos ao alto da Piedade entrando na estação de ‘Villa da Feira’. Esta estação, à semelhança de tantas outras, fica um pouco afastada do centro da localidade, tornando difícil o acesso e a utilização de outros meios de transporte em detrimento do ferroviário. Também aqui o revisor de chave na mão dirige-se à estação e pegando no telefone, uma vez mais, comunica a circulação à PN mais próxima, que no caso é ‘Arrifana’. Visionando em pormenor, detecta-se o depósito de água muito diferente dos que existem nesta linha. Encontra-se na encosta de frente para a estação vendo-se a escala de medição em agulha. A água era bombeada numa distância de cerca de um quilómetro de um poço em terras de Sanfins. Ainda hoje vêem-se vestígios desses equipamentos. Foi em tempos uma estação de muito movimento mormente de mercadorias. Lembro-me de, nos meus tempos de rapaz muito novo, vir de Sanfins na companhia de amigos meus, puxando um carro pequeno carregado de embalagens contendo ferraduras feitas pelo saudoso “Ti Chico da Balga”, a troco de uns rebuçados comprados na loja do Zé da Maria Rosa. E recordo também desses tempos a chegada e partida do Vouguinha, ainda na era do vapor, anos mais tarde na viagem que fiz ao Porto

para a inspecção militar. Continuando viagem, chegamos a ‘Escapães’, um apeadeiro localizado no extremo da freguesia e o único que ostenta ainda a velha e característica placa com o seu nome e o brasão da freguesia nas partes laterais do abrigo dos passageiros. Avançando ainda no concelho da Feira, passando por campos verdejantes, chegamos ao que se costuma chamar a estação de ‘Arrifana’. Tem um pequeno edifício diferente de todos, defronte para uma grande empresa e hoje ocupado por uma associação cultural. É este o último reduto ferroviário no concelho da Feira. Daqui, seguindo a linha, aproximamo-nos das traseiras de uma grande empresa de metalurgia em decadência acentuada por onde passaram milhares de trabalhadores da região. Refiro-me à Oliva, onde também trabalhei e de onde guardo gratas recordações e um sentimento de saudade inexplicável. Esta empresa, na década de quarenta, era servida por um ramal ferroviário, onde entravam e saíam comboios levando e trazendo mercadorias. Recentemente, conversando com um trabalhador dessa época, relatou-me que de facto assim era e só nisso já se via a grandiosidade e a importância dessa empresa. Tudo isto era único na linha do Vale do Vouga. Ainda hoje existe o “lay out” dessa via junto a um edifício de características ferroviárias e a respectiva entrada vedada por um grande portão de ferro. Estamos a caminho da estação de ‘S. João da Madeira’, igual a tantas outras, vendo-se estacionado um vagão de mercadorias e as paredes grafitadas. Nesta estação entrei e saí algumas vezes quando viajava de comboio para a frequência da Escola Industrial, estabelecimento de ensino politécnico que acolheu muitos estudantes de muitas freguesias do concelho da Feira. Também aqui foi um grande entreposto de mercadorias fazendo jus à industrialização deste concelho único no país. Aguardando que o manobrador feche as cancelas da PN, mais abaixo, arrancamos lentamente e, passado pouco tempo, entramos noutro concelho, Oliveira de Azeméis. Paramos no apeadeiro de ‘Faria’ para entrar um passageiro e seguimos para a estação do ‘Couto de Cucujães’, completamente abandonada, mas inseparável do depósito e toma de água. Como o tempo vai passando, falta-nos ainda o apeadeiro de ‘S. Tiago de Riba-Ul’ e, finalmente, chegamos a ‘Oliveira de Azeméis’. Nos dias de hoje, a estação encontrase em boas condições e protegida de eventuais vândalos. Também nesta estação existiu, em tempos, um depósito de água que entretanto foi demolido. Ainda existe o edifício do


Arrifana - Estação

Faria - Apeadeiro

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Ramal de mercadorias para a Oliva

Couto de Cucujães - Estação

S. João da Madeira

Tiago de Riba Ul - Apeadeiro


Oliveira de Azeméis - Dormitório

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Oliveira de Azeméis

Vouzela

Ul Estação

Sernada do Vouga - A desgrafitar o comboio


Ponte de Jafafe - Sernada do Vouga

dormitório que servia de repouso e guarida aos ferroviários que aguardavam pelo novo dia de trabalho. Hoje nada disto é utilizável na rede ferroviária nacional. Também existe a placa giratória, equipamento de alguma monta e que dava muita importância, em termos de estatuto, e servia, como todos sabem, para manobrar as máquinas mudando-as de direcção. É este o percurso que actualmente mais movimento e utentes tem e o que foi inaugurado em 1908, portanto está prestes a fazer cem anos. Presentemente, a linha continua na direcção de Sernada do Vouga e daqui para Aveiro, não seguindo para Viseu, pois esse percurso foi desactivado em Janeiro de 1990, à semelhança do que aconteceu com as linhas de via estreita Mirandela/Bragança, Amarante/Arco de Baúlhe, Vila Real/Chaves e a totalidade da do Sabor desde o Pocinho a Duas Igrejas em Miranda do Douro. É importante que tenhamos presente que, aquando da construção da rede ferroviária nacional nesses tempos idos, o traçado muitas das vezes sofria alterações de última hora, movendo vontades e rivalidades de certa monta. Quem percorre nos dias de hoje os traçados existentes, estejam activos ou não, há passagens por locais que de facto só aconteceram por influência de alguma figura proeminente. Não obstante tudo isto, é incomensurável o desenvolvimento que o caminho-de-ferro trouxe às povoações por

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onde passou. Por via deste meio de transporte, tempos houve em que as famílias com mais posses das terras de Lafões a Viseu utilizavam o comboio e vinham a banhos para Espinho que passou a ter muita importância pela passagem de duas vias distintas e com percursos diversos. Não esquecendo o escritor Ferreira de Castro que, viajando de comboio, enalteceu e memorizou a sua primeira viagem por terras nunca dantes avistadas. Na estação de Oliveira de Azeméis, está lá uma lápide em homenagem a tão ilustre homem das letras. Apraz aqui e agora realçar uma iniciativa louvável da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, que, nas viagens pela minha terra, este ano, e pela primeira vez promove viagens de comboio desde a estação de “Villa da Feira” até à Sernada do Vouga com visita ao museu ferroviário em Macinhata do Vouga, a todas as pessoas do concelho com idades a partir dos sessenta e cinco anos. É este o meu testemunho de uma viagem que vale a pena fazer, não uma mas várias vezes, tornando viável aos responsáveis a manutenção e melhoria do comboio tão lindamente intitulado - Vouguinha.


1º Centenário do Vouga

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1º Centenário do Vouga

1º Centenário do Vouga

Semana Cultural 2008 - 100 Anos da Linha do Vouga


Estação dos Caminhos de Ferro de Arrifana de Santa Maria

publicando um curiosíssimo registo inserido num artigo do Dr. Aguiar Cardoso, do jornal “O Arrifanense”, edição nº. 18, datado de 18 de Março de 1925.

Augusto Telmo* A 22 de Outubro de 1907 foi aprovada uma portaria que aprovava o projecto para a construção da linha férrea entre Espinho e Oliveira de Azeméis, na extensão de 33 quilómetros. A 23 de Novembro de 1908, a sua construção havia sido iniciada em meados de Janeiro desse ano, a Companhia do Vale do Vouga vê esse primeiro troço de 33 quilómetros inaugurado festivamente pelo Rei D. Manuel II; aberto à exploração pela portaria de 21 de Dezembro de 1908. À passagem desse primeiro comboio por Arrifana, no qual seguia o Rei D. Manuel II, este fora efusivamente saudado por centenas de arrifanenses, junto ao apeadeiro em madeira aí existente.

«Um pouco a propósito, ocorre-me um espirituoso dito, que merece registo, dum representante, talvez o último na sua linha, da família de Bernardo Soares, matador do sobrinho do General Soult, acto que originou o massacre em Arrifana, a 17 de Abril de 1809. Esse bem original indivíduo, de nome José Soares Barbosa da Cunha, senhor de uma grande casa em Arrifana que desbaratou, beberrão emérito e libertino incorrigível, falecido não há muito, obrigou-se a pleitear quando da Apropriação para o assentamento da linha férrea do Vale do Vouga por uma empreza franceza que ele achava muito pouco escrupulosa na aquisição dos terrenos. E então dizia, José Soares, indignado: «Com mil demónios! Isto é a quarta invasão franceza!»

Desde a inauguração do apeadeiro, em madeira, da linha do comboio do V.V. em Arrifana, nesse 21 de Dezembro de 1908, que Arrifana aspira a ter uma estação, à semelhança da terra vizinha, então vila de S. João da Madeira.

Refira-se que a construção da linha férrea, esse 1º. troço de 33 quilómetros, fora executada pela firma francesa “Compagnie Française pour la Construction de Chemins de Fer à l’Etranger”.

Iniciamos esta série de registos históricos sobre a “Estação dos Caminhos de Ferro em Arrifana de Santa Maria”,

«Uma das aspirações maiores e mais antigas de Arrifana, é a Estação dos Caminhos de Ferro.

(*) Licenciado em Engenharia Civil. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial. Professor do Ensino Secundário. Director do Jornal “O Arrifanense”. Tem 3 livros publicados sobre a história local.

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Das maiores, a mais antiga e a mais justa, pois nasceu com a planta cadastral da via férrea do V. do V. onde está consignada. Já quando aquela via se construiu, se mobilizaram as maiores influências d’aqui para que a Estação não ficasse apenas no papel. Mas, ou porque outras influências se contrapozeram, ou porque imperasse o espírito de economia, ou porque d’ início já houvesse aquela má vontade super-abundantemente comprovada atravéz de 17 anos, os arrifanenses ficaram logrados nas suas pretenções. Sucederam-se os pedidos. Repetiram-se as representações. Comissões várias fizeram patrióticas diligências junto do Engenheiro Sr. Constantino Cabral, que, com o melhor dos sorrisos e as mais captivantes palavras os despedia sempre, habilmente as deixando ecoar esperanças que ao tarde definhavam e se convertiam em tristes desenganos. Na ânsia de realizar os seus intentos a freguesia dispôz-se aos mais penosos sacrifícios. Construir a Estação sob a planta elaborada pela Companhia e entregá-la graciosamente. Este oferecimento esteve para ser aceite mas condicionado de tal modo que nós tivemos a impressão de que se queria tratar a gente de Arrifana como se ela fosse totalmente destituída de senso, de entendimento, inteligência e perspicácia. A história d’esse episódio não a fazemos aqui, passa-la-hemos em claro, pois nada adeantamos em avivar acontecimentos que mais vincaram em nosso espírito a certeza de que arreigadas más vontades se empenhavam em continuar as pretenções da freguezia, acontecimentos que nos fizeram reconhecer o acerto da velha frase do velho filósofo: «quanto mais reconheço os homens, mais gosto dos animais» * Deparou-se-nos há dias no noticiário d’um jornal do Porto, «O Primeiro de Janeiro», cremos nós, a informação de que o Snr. Constantino Cabral abandonou o seu logar na Companhia do V. V. tendo sido substituído por um ilustre engenheiro «muito inteligente e recto». Ao nosso espírito ocorreu de súbito a ideia de que

era o momento de renovar junto de S. Eª. as démarches necessárias para o inteirar das aspirações de Arrifana e da justiça d’essas aspirações. Quem teima, vence. E nós temos, a animar a nossa teimosia, a instigar a nossa pertinácia e a justificar a nossa insistência uma tão grande soma de razão que, bem exposta, só por si ganha a causa que se defende. Quando se trate de interesses fundamentais da nossa terra aquelas animosidades que dividem os homens e os incitam uns contra os outros devem desaparecer. E nós cremos que, sendo o momento tão azado para uma tentativa séria em prol do conseguimento da Estação dos Caminhos de Ferro todos os valores de Arrifana se entenderão, e que é muito possível juntálos n’uma acção comum e para um esforço conjugado. Ponto é que se proceda com correcção e com aprumo, com franqueza e com lealdade. O momento solicita-nos. Lucrará a freguesia aproveitá-lo? Venha a resposta, dada por quem pode e deve dal-a.» (in jornal “O Arrifanense”, ano III, nº. 58, de 12 de Janeiro de 1927) A aspiração em construir uma estação em Arrifana é uma


aspiração quase tão antiga quanto a existência da linha, de tal modo que, em 25 de Julho de 1925, o jornal ‘Arrifanense’ rezava assim: «A Estação do Caminho de Ferro é a aspiração máxima desta freguesia que está pronta a fazer o sacrifício de construir a expensas suas o edifício para ela. Porém é necessário um entendimento prévio com a Companhia, a que esperamos se há-de chegar, mas que ainda não chegou.» Passados cerca de 31 anos, desde a inauguração do 1º. troço dos Caminhos de Ferro do Vale do Vouga, eis que, finalmente, a 7 de Julho de 1944, acaba de ser dada autorização para a construção da Estação do Caminho de Ferro em Arrifana. Notícia retirada do jornal “Correio da Feira” edição nº. 2388, de 15 de Julho de 1944, assinada por Vicente Reis, e que rezava assim: «Vai finalmente ser satisfeita a grande aspiração da nossa terra, esse sonho que ela vem vivendo, desde que se construiu a Linha do Vale do Vouga (há quantos anos!!) e que já desesperava de ver transformada em realidade. Trata-se nada mais, nada menos, da construção duma estação no actual apeadeiro. Foi a freguesia chamada a capítulo, pois de outra forma era irrealizável esse melhoramento, e a subscrição aberta entre arrifanenses e outras pessoas estranhas à terra, mas directamente interessadas no assunto, continua a acusar um interesse digno de nota. Já aqui se publicaram algumas verbas subscritas, e dentro em breve daremos a conhecer os nomes de novos subscritores. Os Serviços de Vias e Obras da Companhia começaram a fazer o aterro dos 729 metros quadrados de terreno comprado, e que vai servir de páteo da estação onde também será assente o desvio que dará acesso ao futuro cais de mercadorias ligado ao edifício projectado. Três comboios especiais diários andam a conduzir terras de Espinho para esse aterro. A planta da nova Estação, já superiormente aprovada nas suas linhas gerais pelo Conselho de Administração

da Companhia, encontra-se exposta à apreciação do público na actual bilheteira do apeadeiro. Será um edifício de linhas modernas, embora relativamente de pequenas dimensões, mas não é exagero afirmar-se que fica sendo, em todo o percurso das linhas do V.V., a mais interessante e regional das estações construídas até hoje. Estamos esperançados em que a Companhia executará esse projecto tal como está delineado. Em contrapartida ajudar-se-á a Companhia esticando-se a subscrição ao máximo. O resto será feito por ela que também deve vir ao encontro dos desejos da freguesia e dos seus interesses imediatos. Logo que a estação esteja construída, e tenho-o afirmado várias vezes aos seus dirigentes pessoalmente e por escrito, o rendimento actual dos despachos e do trânsito de passageiros, que é elevado, há-de duplicar ou até triplicar, escoando fatalmente para o novo cais farta mercadoria que vai agora directamente a despacho para a estação de Ovar ou segue outro rumo, descongestionando, até certo ponto, o movimento na vizinha estação de S. João da Madeira, já de si bastante sobrecarregada. Aos Ex.mos Srs. Engenheiros Ferreira de Almeida e Ricardo Gayoso devemos certamente todo o interesse e boa vontade por este grande melhoramento público que Arrifana lhes fica devendo. Ainda bem.» A subscrição para “Ajudar a construir a Estação do C.F.V.V., na nossa terra”, passou a estar “aberta” a partir do dia 16 de Janeiro de 1944; publica-se parte dessa notícia inserida no jornal “Correio da Feira”, edição nº. 2369, de 22 de Janeiro de 1944, e assinada por Vicente Reis, na qual se publicam os primeiros vinte e um subscritores, com montantes desde os mil escudos, dados pela Junta de Freguesia local e que encabeça essa lista, passando pelos quinhentos, duzentos, cem e cinquenta escudos, de um total a transportar de 5.150$00: «(…) Em tempos recuados já se fizeram tentativas, mas várias resistências entravaram o projecto gizado. Somos de parecer que a ocasião que agora se nos oferece não deve ser perdida, tanto mais que estamos plenamente convictos de que, ou se edifica agora

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a estação dos C.F.V.V. ou nunca mais ela será uma realidade na nossa terra. Desde 1939, que o assunto não tem sido descurado, apenas não tendo sido tomado mais a peito pela acumulação de trabalhos que aguardavam seguimento. A Direcção da Companhia do Vale do Vouga, por escrito em correspondência trocada com o signatário, está pronta a fazer alguma coisa de interessante em Arrifana. (…………)» A 25 de Fevereiro de 1944, as ofertas já totalizavam os 12.600$00, para, no jornal ‘Correio da Feira, datado de 31 de Maio de 1945, Vicente Reis escrever:

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«Ficou hoje, dia 18 de Maio, coberta de telha o novo edifício e vai entrar em rápido acabamento a ver se pode ser inaugurado no Verão com o luzimento que merece.» A subscrição na qual se publicam mais algumas dezenas de ofertas totaliza os 16.210$00. Refira-se que o total das despesas suportadas pela freguesia para que a Estação dos Caminhos de Ferro fossem uma realidade, terreno e construção do edifício, foram de 19.795$00, tendo-se apurado na subscrição feita em Arrifana, 18.628$00. A 25 de Janeiro de 1946, o jornal “Correio da Feira” indicava que a Estação dos C.F. de Arrifana estaria a finalizar. O edifício da Estação, juntamente com o cais de descarga anexo, foram finalizados durante o mês de Abril seguinte. Eis que o sonho de Arrifana se cumpria, passados cerca de 38 anos após a inauguração do 1º. troço da linha do V.V.a sua Estação dos Caminho de Ferro. Refira-se que o último Chefe da Estação dos Caminhos de Ferro de Arrifana foi Manuel da Silva Mendes, que exerceu o posto de 1965 a 1990. Actualmente o edifício da Estação dos C.F. e espaços envolventes estão sendo ocupados por uma colectividade de

Arrifana, a JUAT- N.D.C. de Arrifana, conforme protocolo feito e assinado na sede da Junta de Freguesia de Arrifana, na Rua Américo de Resende, a 28 de Julho de 1997 entre o Presidente da Junta de Freguesia de Arrifana, Dário Soares de Matos, e o Presidente da JUAT, José Carlos Pinho Faria.

Bibliografia consultada: - Jornal “O Arrifanense”, I e II séries; jornal fundado a 1 de Maio de 1924, em Arrifana, por Manuel José Pereira; -Jornal “Correio da Feira”; jornal fundado a 11 de Abril de 1897, em Sª. Mª. da Feira, por José Soares de Sá. - “Monografia do Vale do Vouga”, número único, Novembro de 1983, editado para comemorar os 75 anos da existência do Caminho de Ferro do Vale do Vouga. -JUAT- Núcleo Desportivo, Recreativo e Cultural de Arrifana (1979-2006) de Augusto Telmo e António Cerqueira, Fevereiro de 2006.


Progresso da Feira Órgão do partido progressista** Roberto Carlos* El-Rei na Feira Brilhantíssimas de pompa, de entusiasmo, as festas que aqui se realizaram em honra do Sr. D. Manuel II. Desde o alto do Cavaco até ao Rossio e daí até à estação do caminho-de-ferro, a vila oferecia um aspecto surpreendente. Grandes mastaréus embandeirados com troféus e escudetes com dizeres alusivos à régia visita ladeavam as ruas por onde tinha de passar o cortejo real. A meio do Cavaco levantava-se um caprichoso arco de onde as crianças lançavam flores, outro à Misericórdia não menos elegante que o primeiro tendo também crianças a espalhar flores. As casas ostentavam ricas colgaduras armadas a capricho, estando na sua maior parte embandeiradas a azul e branco. Muitas casas estavam ornamentadas com palmas e outros motivos decorativos, vendo-se em muitos prédios o retrato d’el-rei. A ornamentação geral da vila era maravilhosa. Todos os elogios que se teçam à bizarra comissão encarregada deste penoso e dificílimo trabalho não são excessivos. Houve-se à altura do seu mister e tanto para (*) Licenciado em História. Técnico Superior de História. Investigador. (**) Pesquisa e actualização de texto.

admirar quanto é raríssimo entre nós haver ensejo de meter em prova as aptidões, aliás apreciadíssimas, dos habitantes desta terra que se levantam no momento preciso à bitola dos mais competentes de qualquer meio maior. Desde a manhã que à vila começou a afluir grande quantidade de povo das freguesias rurais e avultado número de pessoas das povoações convizinhas. Quatro bandas, uma de Souto, duas de Ovar e a da força do 23, sob o comando de um capitão, que veio para fazer a guarda de honra punham no ar notas alacres dos hinos nacionais. A vila estava numa animação extraordinária. Aproximando-se a hora da chegada do régio visitante o povo ia-se dirigindo numa fila viva e ininterrupta para o alto do Cavaco onde El-rei dava entrada na vila. Carruagens e automóveis tomavam a mesma direcção. No largo onde El-rei se apeava foi improvisado um estrado para o receber. Tudo coalhado de povo e, pelas arvores, muitas pessoas tomavam posições para melhor poderem ver o desembarque. O povo era contido por uma patrulha de cavalaria da guarda municipal do Porto. Lembra-nos ter visto aguardando El-rei a Câmara Municipal com a sua bandeira, que era conduzida pelo Sr. Aníbal Huet, Dr. João de Magalhães, presidente e deputado, vereadores, Srs. conde de S. João de Ver, José Corrêa

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Marques, Manoel Pereira Granja, Domingos de Oliveira Pinto, António Cardoso Baptista, e o secretário, Sr. Benjamim de Pinho; juiz da comarca Sr. Dr. Luís do Vale, delegado, Sr. Dr. Mourisca, contador Sr. Dr. António Toscano, escrivães, Srs. José Carrelhas, José de Azevedo Vila Nova Vieira de Sousa, Manoel de Sá; administrador do concelho, Sr. Dr. Gaspar Moreira e seu secretário, Sr. Francisco Lima; conde de Águeda, governador civil do distrito, Dr. Adolfo Pimentel, governador civil do Porto, conde de Castelo de Paiva, conde de Paçô Vieira, visconde de Fijô e do Reboleiro, Dr. Ignacio Monteiro, juiz de Ovar, D. Fernando Tavares e Távora, conselheiros Manoel de Oliveira Costa e Manoel Bandeira; Drs. Cândido de Pinho, presidente da câmara do Porto, Roberto Alves, lente da Academia Politécnica do Porto, Vitorino de Sá, Eduardo Vaz, Crispim Borges de Castro, Manoel de Paiva, António de Andrade, Duarte Huet de Bacelar, Jaime Silva, Vaz Ferreira, Hermenegildo Tavares, Ferreira Pinto, vice-reitor do seminário do Porto, Francisco Xavier de Moura, Manoel Carlos de Sousa Brandão, e os Srs. tenente-coronel Domingos Canedo, comendador Pimenta da Fonseca, Manoel André Boturão, capelão Fidalgo, Henrique Brandão, Alcides Machado, João António de Andrade, Manoel Caetano de Oliveira, Adão Rodrigues, Joaquim José Pinto Valente, da «Gazeta Feirense», Manoel Alves da Cunha, Joaquim Pinto, António de Figueiredo Ferreira, António Bernardo Coimbra, Afonso Couto, Joaquim Pinto de Araújo, Tomás Relvas, José Soares de Sá, do «Correio da Feira», Américo de Resende, abade de Campanhã, Dr. Alfredo Cortês, Aquiles Gonçalves, Armando de Amorim, Manoel Vila Nova, Honório de Lima, Valério de Figueiredo, Virgílio Ribeiro, do «Informador», António Moreira Pimenta da Fonseca, Caetano Fernandes de Oliveira, P.º Tomás Fernandes Pinto, professor de Seminário dos Carvalhos, e Domingos Augusto de Sousa, etc., etc. Cerca da 1 hora da tarde, ouviu-se o silvo da locomotiva e logo as filarmónicas tocaram o hino nacional e estrondearam varias girândolas de foguetes. Parado o comboio Sua Majestade foi alvo de uma ovação ingente, assombrosa, fazendo lembrar uma tempestade, pela duração, pelo volume e pela intensidade. Não nos lembra de ter visto uma manifestação de agrado, de regozijo, de júbilo tão imponente e tão emocionante como a que assistimos quando el-rei se apeou na Feira. Daí seguiu el-rei para a estrada, tomando lugar, á frente, em automóvel descoberto sendo acompanhado pelos Srs.

presidente do conselho, conde de Tarouca e coronel António Costa, organizando-se aí O Cortejo Como dissemos o automóvel seguiu à frente, indo após mais de cinquenta veículos conduzindo os restantes dignitários, ministros, câmara municipal, administrador do concelho, governadores civis de Aveiro e Porto e demais pessoas que se encontravam á chegada de el-rei e iam no comboio real. A longuíssima fila de trens era cortada de espaço a espaço por magotes de populares e por bandas de musica, que se encontravam donde a onde. Ao passar o cortejo a meio do Cavaco, do arco triunfal que ali se erguia caía uma ininterrupta chuva de flores. Foi deslizando assim o cortejo com grande dificuldade, porque a aglomeração de povo era enorme, Eiras abaixo, sendo o monarca sempre freneticamente saudado pela multidão, e caindo sobre ele sempre, sempre uma profusão enorme de flores, que deixava, apesar da passagem sem interrupção de carruagens e de transeuntes, um vistoso tapete do mais brilhante matiz. As janelas, como dissemos, vistosamente engalanadas estavam repletas de senhoras, que numa verdadeira fúria de entusiasmo não deixavam um momento de lançar flores sobre o cortejo. Na Misericórdia, onde outro arco triunfal se recortava, elegante, no ar, e onde brilhava no topo uma coroa real a chuva de flores tornou-se mais densa e as aclamações mais intensas. Assim foi seguindo o cortejo até que el-rei deu entrada No paço A praça Velha, fronteira ao edifício onde mora o Sr. Dr. Mourisca e que para aquele efeito foi por sua Ex.ª gentilmente cedido, apresentava um aspecto impressivo. Ao centro, de um enorme mastaréu pendiam bandeiras em arco, e todos os mastaréus que adornavam o largo tinham troféus e escudetes com legendas alusivas á visita d’el-rei, encimando-os um bem lançado monograma em azul e branco que traduzia «Manoel II». A casa, primorosamente decorada no exterior com bandeiras e colgaduras, ostentava o pavilhão real.


O interior, faremos quanto podermos para dar aos leitores uma ideia aproximada de como estava disposta e da sumptuosidade com que estava ornamentada. A escada, de construção elegante, estava vestida de flores, que pendiam em caprichosos festões de balaústres do corrimão. Dois maciços de plantas caras aos cantos do patamar, e no vão da janela superior à porta que dá para o jardim um rico vaso da Índia ostentando belas plantas em flor. Eram cinco os compartimentos destinados ao serviço de El-rei. Um gabinete para a comitiva de Sua Majestade guarnecido a mobília antiga de pau-preto e couro lavradio, com um belo tapete ao centro de onde se levantava uma elegante mesa do tipo do restante mobiliário sobre a qual se via um precioso vaso da Índia com uma planta de preço. Belos quadros decoravam as paredes, completando o adorno do aposento plantas caras do Sr. Comendador Canedo. Todo o restante mobiliário era propriedade da ilustre família Corrêa de Pinho. A sala anexa mobilada a pau-preto moderno com rico estofo em seda de oiro, mostrava, pendentes das janelas formando sanefas em graciosos pregueados, ricas colchas de damasco da mesma cor da mobília. Plantas também da estufa do Sr. Comendador Canedo e o resto da mesma família Corrêa de Pinho As sanefas da sala antecedente eram formadas por preciosas colchas do Sr. Dr. Vaz Ferreira. A seguir àquela sala estava a sala do trono. Ao meio da sala estava um belo tapete fornecido pela amabilidade do Sr. comendador Canedo, elevando-se ao fundo um estrado coberto por um excelente tapete, propriedade do Sr. D. Fernando de Tavares e Távora, que sustentava uma preciosa cadeira de couro lavrado, propriedade deste mesmo cavalheiro, coberta por uma riquíssima colcha bordada, pertencente ao Sr. visconde de Fijô, como também a este cavalheiro pertencia a não menos preciosa que pendia do varandim da escada. Por cima um bem lançado dossel artisticamente formado por magníficas colchas de damasco antigo, vermelha. À direita do trono numa elegante e rica mesa doirada com taça de mármore, estilo antigo, via-se o precioso foral de D. Manoel. Um pequeno corredor, ao fundo do qual um magnífico espelho antigo, de moldura doirada, propriedade do Sr. D. Fernando de Tavora, chamava as attenções das mais

indiferentes a objectos de arte, separava das salas que descrevemos o gabinete destinado ao descanso d’el-rei e ao buffet. O gabinete estava decorado com tanto luxo como delicadeza. Sumptuoso sem ser pesado estava mobilado a capricho. Um magnífico lavatório de talha antiga com um excelente espelho sustentado por duas colunas de talha sobre as quais dois riquíssimos gamos de bronze e porcelana completavam o encanto desse valioso móvel. O serviço, todo de prata, pertença do Sr. comendador Canedo e o lavatório do Sr. Eduardo Vaz. Uma elegante mesinha de pau-preto, estilo antigo, propriedade da Sr.ª D. Emília Pedrosa, servia de secretária, tendo um magnífico tinteiro de prata e demais objectos de escritório, propriedade do Sr. Dr. Eduardo Vaz. Pelas paredes quadros preciosos do Sr. comendador Canedo e Benjamim Corrêa de Pinho. O resto do mobiliário, riquíssimo, de pau-preto estofado a damasco vermelho e amarelo era da propriedade deste cavalheiro, assim como uma preciosa cadeira da Índia, espécie de chaise-longue, que estava coberta de ricas almofadas de seda, pertencentes ao Sr. Dr. Mourisca. Cobrindo um móvel via-se um rico xaile de seda branca bordado a cor, pertencente à Sra. D. Joaquina Bandeira. Plantas, do Sr. Canedo. Por toda a parte, e dispostos com arte, ricos espelhos de talha, guéridons, pedestais e vários outros motivos decorativos, propriedade dos Srs. Dr. Eduardo Vaz, D. Fernando de Távora e Benjamim de Pinho. Seguia-se a sala destinada ao buffet. Sobre uma mesa deliciosamente ornamentada, ao meio da qual sobressaía um precioso centro de prata, do Sr. comendador Canedo, estava disposto um fino e delicado serviço, fornecido pela conhecida confeitaria Oliveira, do Porto. Nas paredes viam-se preciosas pratas, propriedade dos Srs. Drs. Ignácio Monteiro, Eduardo Vaz, Benjamim de Pinho e visconde do Reboleiro. Toda a ornamentação era de uma elegância irrepreensível e de um inexcedível bom gosto. O Sr. Benjamim de Pinho, a quem por mais de uma vez temos tido ocasião de apreciar as suas raras aptidões artísticas, na brilhante decoração que teve a amabilidade de executar, agora, mostrou duma maneira bem evidente, que nem só os profissionais são competentes para produzirem obras de valor.

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Sua Exa. é de uma notável competência em questões de arte decorativa, sabendo dar o maior relevo possível às exigências da estética. Teve um trabalho insano, uma fadiga extenuante, mas pode felicitar-se, porque o seu a todos mereceu os mais rasgados aplausos e as mais significativas demonstrações de apreço. Teve sua Exa. apenas como auxiliar o Sr. Dr. Vaz Ferreira, que é também uma dedicada organização de artista. El-rei era aguardado pela Câmara Municipal, autoridades, maioria do clero deste concelho e pessoas gradas. Pelas escadas, muitas senhoras, que ao passar el-rei lhe lançavam flores. Sua Majestade entrou no seu gabinete onde repousou um pouco. Alguns minutos depois, dirigiu-se à sala do trono, onde o Sr. Dr. João de Magalhães, Presidente da Câmara, deu as boas vindas a el-rei, fazendo a leitura da seguinte bem elaborada mensagem: SENHOR – Encontra-se Vossa Majestade a dentro da capital das antigas e históricas terras de Santa Maria, que sempre primaram pela sua fidalguia e pela sua dedicação à liberdade e ao trono. E se não é a vez primeira que um rei português se digna poisar os seus olhos sobre as formosas paisagens desta terra, como vosso augusto avô, o rei Artista, em 1852 dignandose visitar o nosso castelo com os então príncipes D. Pedro e D. Luís, é contudo, que nos recorde, a única em que o chefe do Estado, o rei de Portugal, vem honrar-nos com uma verdadeira visita a receber em terras da Feira as homenagens de respeitosa dedicação deste povo. SENHOR! – Nascida em remotos tempos, mais de 2000 anos antes de Cristo, a velha Lancóbriga atravessou e acompanhou o esplendor romano, decaiu, rejuvenesceu sobre a égide de esforçados cavaleiros, para ocupar durante largos séculos lugar proeminente entre as primeiras terras portuguesas. Orgulhosa dos seus vastos domínios, que se estendiam do Douro ao Vouga, ciosa das suas tradições e dos seus fastos, ainda hoje, em tão completa decadência, rememora todo esse brilhante passado e se compraz, com amargura é certo, na recordação desses tempos idos. Aqui nasceram, Senhor, os infanções de Portugal, honrosa distinção com que reis portugueses galardoaram os

seus vassalos dessa região. Tempos houve em que todos os peões eram cavaleiros, demonstração inequívoca da ligação íntima deste povo com os monarcas e prova indiscutível dos esforçados feitos dos nossos ascendentes. Ao conde D. Henrique mereceu a terra de Santa Maria a concessão de seu foral em 1093. Mais tarde, em 1270, D. Afonso III lhe deu novo foral. Mas é, Senhor, a um rei português que tinha o vosso nome e obteve na história o cognome de Venturoso, que a terra de Santa Maria mais deve pelos especiais cuidados que lhe mereceu. Reedificou-lhe o vetusto castelo, construiu-lhe essa ponte que ainda hoje aí se ostenta com as suas armas manuelinas e concedeu-lhe o foral, precioso de iluminuras, que aqui conservamos ainda a demonstrar e a recordar-nos sempre quão grata nos deve ser a memória desse rei feliz, em cujo reinado Portugal foi o grande empório do mundo. Hoje, Senhor, somos um povo decaído que vive apenas do passado. E dessas gloriosas tradições é padrão único do nosso orgulho esse velho castelo que além se ostenta altivo, recortando com os seus elegantes coruchéus o céu azul da nossa terra. Alimenta-nos, porém, a esperança que a presença de vossa majestade nos avigora, dignando-se assistir á inauguração de um caminho-de-ferro que, bafejando estas terras ubérrimas, nos abre novos horizontes no caminho da civilização e do progresso. Memorável ficará na história da Feira a data de hoje, data feliz em que vemos realizadas velhas aspirações e vemos a coroá-las a presença do moço rei, que logo no inicio do seu reinado se digna associar-se ao que para nós representa um ressurgimento e a estrada aberta a novas e gloriosas empresas. Senhor! – Subiste ao trono em bem dolorosas circunstâncias, mas na vossa viagem triunfal ao norte do país tendes tido ocasião de pôr á prova a dedicação e a lealdade do povo português. Com carinhosa solicitude temos acompanhado os vossos triunfos e nos temos regozijado com todas essas tão claras demonstrações da aliança íntima que em Portugal existe entre o rei e o povo. Congratulamo-nos, e não podíamos deixar de o manifestar, nós que muito amamos a liberdade e o progresso, com as


vossas tão preciosas afirmações de serdes um verdadeiro rei constitucional. Senhor! – Em nome do Município da Feira, que temos a honra de representar, em nome dessa instituição que tão precioso se torna fazer ressurgir em todo o seu esplendor, vimos apresentar a Vossa Majestade as homenagens do nosso respeito e leal dedicação. E se as galas com que vos recebemos não correspondem aos nossos desejos, nem podem traduzir o nosso entusiasmo e a nossa gratidão pela honra da vossa visita, acreditai, Senhor, que no coração de todos nós vai um intenso jubilo e um carinhoso afecto, que tudo vos dedicamos. Dignai-vos, Senhor, como esse outro rei de que usais o nome, ser também um protector desta terra, que muito em vós confia. Senhor! – Os mais ardentes votos por que tenhais um reinado feliz, para glória do vosso nome e progresso e prosperidade deste querido Portugal. Viva o rei! Com calorosas saudações foram acolhidas as palavras de el-rei, desfilando em frente do trono a Câmara Municipal, as sr.as D. Emília de Castro de Sousa Ferreira, D. Maria Luísa Vaz Ferreira, D. Ana e D. Henriqueta de Pinho, D. Ernestina Bandeira, D. Josefina de Azevedo, D. Ana Helena Vieira, D. Maria de Carvalho, D. Maria Carolina Campos, D. Adosinda Bandeira, D. Branca de Sousa Ferreira, D. Isabel de Azevedo, D. Maria Amélia Vaz Ferreira, D. Luísa Ribeiro, D. Emília Ferreira, D. Maria José de Moura, etc., etc. A menina Alcide da Cruz Homem, ofereceu a el-rei um delicado bouquet de flores artificiais. Desfilaram depois, autoridades, pessoas gradas, etc., etc. Daí passou el-rei à sala do buffet onde lhe foi servido e á comitiva um lunch, terminado o qual seguiu el-rei a pé pela rua Direita. Aí foi alvo de ruidosíssimas aclamações. Era um frenesi de vivas a el-rei, à família real, à pátria e à rainha D. Amélia. Das janelas, apinhadíssimas de senhoras, caíam numa profusão brilhante e densíssima, flores desfolhadas. As senhoras vitoriavam el-rei e davam palmas com delírio. Assim seguiu o brilhante cortejo, muito lentamente, porque a multidão era enorme; até que el-rei pôde conseguir entrar.

Na matriz Ao princípio do elegante e majestoso escadório que dá acesso à Igreja era esperado s. Majestade pelo rev. Abade, capelão real, Sr. Manoel André Boturão e muito clero, subindo até ao templo debaixo do pálio a cujas varas pegaram os Srs. vereadores até à porta da igreja. A vasta escadaria, em zig zag duplo, formando vários étages, oferecia um espectáculo deslumbrante pela grande quantidade de povo que o guarnecia; a ponto de el-rei, ao encará-lo, exclamar: «Que lindo!» Á porta da Igreja o reverendo abade levantou vivas calorosos a el-rei, que foram fartamente correspondidos por todos, e, entrando no templo dirigiu-se ao altar do Sacramento, onde fez uma breve oração. Terminada, passou a examinar o templo, que estava profusamente iluminado sem qualquer outra decoração. Esta Igreja é de uma construção arrojada e sumptuosa, toda em granito, sendo o friso do entabelamento sobre que se apoia a abóbada de precioso mármore de Carrara. Á entrada d’el-rei o órgão fazia ouvir o hino nacional tocado, por obsequiosa deferência para com o Sr. Abade, pelo Sr. Aguiar Cardoso. A Sua Majestade foram feitas as referências históricas a propósito do templo e dos túmulos dos condes da Feira, que estão na capela-mor, pelo nosso ilustre patrício Sr. Dr. Cândido de Pinho. Sua Majestade deixou a sua assinatura no livro dos visitantes a pedido do Sr. Abade, tendo o Sr. D. Manoel para este palavras muito cordiais e muitos penhorantes. Finda a visita, novamente se pôs o cortejo em marcha, em trens, seguindo estrada acima para dar entrada. No castelo Era aí esperado o Sr. D. Manoel II pelo Sr. Presidente da Câmara, Drs. Eduardo Vaz e Vaz Ferreira, conselheiro Bandeira e vários outros cavalheiros que lhe fizeram uma calorosa recepção. Tendo-se alvorado no castelo o pavilhão real com as armas de el-rei D. Manoel II, el-rei, ao vê-lo, exclamou: «Oh! é o primeiro que vejo com as minhas armas!». Logo à entrada os meninos Joaquim Vaz de oliveira e Roberto Vaz de Oliveira, filhos do Sr. Dr. Eduardo Vaz,

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ofereceram cada um a El-Rei um delicado bouquet de flores naturais que El Rei muito agradeceu, beijando-os. El-rei interessou-se muito por esse velho monumento histórico, visitando-o, ainda que muito rapidamente em todas as dependências do pavimento térreo. Como alguém observasse que a subida ao terraço da torre de menagem o fatigaria Sua Majestade disse: «Vou. Lá a cima é que eu quero ir». El-rei ficou deslumbrado com o panorama magnífico que dali se goza. Daí tomados os trens e automóveis seguiu o cortejo para A estação

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Oferecia um aspecto brilhantíssimo, o largo da estação do caminho-de-ferro. Milhares de pessoas aguardavam a chegada do cortejo real, sendo el-rei aclamadíssimo ao tomar a carruagem no comboio real. Essa ovação nada inferior á da chegada do soberano, prometia ser infinita se a máquina não apitasse e não pusesse o comboio em marcha. As senhoras davam palmas, o povo dava vivas num entusiasmo ensurdecedor e todos acenavam com lenços enquanto se não perdeu de vista o comboio que conduzia o chefe do Estado. Muitas pessoas que de Espinho acompanharam el-rei não saíram do comboio, estando entre essas o prelado da diocese que se não dignou honrar a Feira com a sua presença. Essa falta de atenção foi muito censurada, pois tendo o Sr. D. António Barroso ainda há pouco tempo aqui vindo, foi recebido por nós da forma mais respeitosa, mais atenciosa e mais fidalga que é possível. Não podemos acertar com o motivo porque s. Exa. assim procedeu para connosco, e demais fazendo esta terra parte da sua diocese. Também a Companhia do caminho de ferro do Vale do Vouga parece que ignorava que el-rei visitasse a capital deste concelho. Nem o menor adorno que indicasse que a Feira estava em festa. Pois tendo a Companhia sido a principal origem da vinda d’el-rei á Feira e devendo mostrar-se grata a el-rei pela honra que lhe conferia de vir inaugurar a sua linha, não fazia nada

demais em tomar parte nos festejos desta localidade, donde a Companhia só pode ter motivos de gratidão e recordações penhorantes pela soma de atenções que para com ela sempre os feirenses tiveram. Nem sequer à noite, no regresso de el-rei de Oliveira teve, a consideração de mandar iluminar convenientemente o recinto da estação. Foi preciso mandarem-se para lá archotes e lâmpadas de acetileno para que se pudesse fazer a manifestação a el-rei, em que alguns milhares de pessoas tomaram parte, e para se evitar qualquer perigo. Se não nos tivessem informado que as manifestações em honra de el-rei nas estações eram por conta da Companhia, nós teríamos tomado conta delas porque também lá chegávamos. Tiradas esta duas notas desagradáveis para nós, só nos cabe louvar com todo o calor as comissões dirigentes de todos os trabalhos, o serviço das autoridades e da força pública, que foram magnificamente dirigidos, com toda a cordialidade e com toda a solicitude. Para se apreciar a prudência, a ordem e o cuidado com que todos esses serviços, e o de polícia que em tais casos é espinhosíssimo, foram dirigidos, basta que numa multidão de mais de quinze mil pessoas não houve o menor desastre a lamentar. Ao Sr. Presidente da Câmara, ao Sr. Administrador do concelho, a todas as comissões as nossas mais veementes felicitações. À noite, a vila iluminou, produzindo um efeito encantador. As escolas municipais desta vila fizeram-se representar pelos seus professores e alunos e ainda outras do concelho. Notas dispersas Tendo o Sr. Dr. Vaz Ferreira telegrafado a Sua Majestade a Rainha, dando-lhe parte da chegada e da recepção feita a El-Rei, Sua Majestade respondeu-lhe com os seguintes telegramas: “Vaz Ferreira Muito do coração lhe agradeço notícias que mandou e suas felicitações. Amélia”. “Vaz Ferreira Muito lhe agradeço o seu telegrama e felicitações. Amélia”. El-Rei telegrafou a S.M a Raínha logo que chegou ao paço.


Ofereceram a Sua Majestade El-Rei produtos de sua fabricação os Srs. Afonso Couto e Augusto Maria Valente de Almeida, dois simpáticos industriais, que muito apreciáveis são entre nós. Aquele Sr. num elegante cofre, de castanho, estilo antigo, seus frascos de licor Castelão, que também foi oferecido no lunch real, e o Sr. Augusto de Almeida uma magnífica Fogaça, produto exclusivo da Feira, também encerrada numa elegante e preciosa caixa. El-rei agradeceu-lhes muito cordialmente a sua penhorante deferência. Margarida Borralho, quando el-rei subia para o seu automóvel tomou-lhe a mão, beijou-lha e passou-a para outras companheiras. Observando-se-lhe que não devia fazer isso, respondeu: “Eu quero beijar a mão ao meu reizinho, que é tão bonitinho!” À despedida, na estação, a proprietária da Loja Pila, exclamava: - “Ai! o meu rico reizinho! meu rico menino, que ele é tão lindinho! O meu regalo era agarrar nele ao colo e levá-lo para mina casa”. Uma velhinha a quem perguntaram se já tinha visto o Rei, respondeu: - «Vi. É lindo como uma flor, O meu consolo era poder beijá-lo”. No dia seguinte de El-Rei recebeu o Sr.. Presidente da Câmara o seguinte telegrama: «Ao Sr. Presidente da Câmara agradeço à Câmara Municipal e a todos os seus munícipes a brilhante recepção que me fizeram e da qual eu sempre conservarei a mais agradável impressão. - Manoel, Rei». Também o Sr. Dr. Mourisca recebeu o seguinte: »Delegado» do Procurador Régio agradeço a parte que tomou nos festejos em minha honra realizados nessa villa. Manoel, R.» Há-de ter-nos escapado mencionar aqui o nome de várias pessoas que acompanharam El-Rei a esta vila. Não o fazemos por propósito, mas porque nos foi impossível tomar nota dos seus nomes. Honraram-nos com a sua visita os Srs. Conselheiros Campos Henriques, ministro da justiça, Sebastião Teles, ministro da guerra, marquês de Lavradio e muitos outros personagens cujos nomes não podemos obter. Dessas involuntárias faltas pedimos que nos desculpem.

Em Arrifana Eram 3,20 quando nas alturas de Escapães se ouviu silvar o comboio real. Logo uma, salva de vinte e um morteiros anunciou a chegada de sua Majestade e Comitiva ao nosso apeadeiro-estação que fora caprichosamente ornamentada sob a direcção do reverendo abade Cid. Notou-se nas ornamentações das estacões da nova linha férrea do Vale do Vouga, a profusão de retratos de sua majestade. Na estação de Arrifana era onde o retrato de El-Rei mais «estava em destaque. Nesta estação o Sr. D. Manuel foi ovacionado pela enorme multidão, sendo-lhe lida pelo presidente da junta, o rev. Manuel Baptista Cid, a seguinte mensagem: Senhor - Em nome do povo desta freguesia de Arrifana venho saudar Vossa majestade na sua visita primeira através da terra de Santa Maria da Feira. Humilde povoação hoje, orgulha-se esta freguesia de ter sido cidade nos séculos XI e XII, com o ‘nome de cidade de Santa Maria. Ao receber, pois, a visita de v. Majestade este povo no seu lealismo monárquico apetece e deseja a vossa real pessoa tantos anos de feliz e venturoso reinado quantas flores, que este ramo encerra.» Ao acabar a leitura pela galante e simpática menina Flávia Nunes Corrêa, que se apresentou primorosamente vestida, foi oferecido a sua majestade um lindo bouquet de flores naturais com um laço de fitas azuis e brancas. El-Rei agradeceu, mostrando-se penhorado pela calorosa manifestação que lhe era feita e cumprimentando especialmente o Sr. Conselheiro Costa, e sorrindo gentilmente para o grupo de meninas, que vestidas de branco lançavam flores sobre sua Majestade. No largo da estação erguia-se um formoso coreto donde a música rompe com o hino da carta enquanto os foguetes estralejavam nos ares. A multidão apinhava-se em grande massa comprimindo-se numa ansiedade de ver de perto o jovem monarca. Entre a numerosa assistência destacavam-se as Ex.mas. sr.as Maria do Rosário, D. Henriqueta Baptista, D. Maria Isabel, D. Emília Moreira, D. Ana Moreira, D. Maria Moreira Silva, D. Maria da Fonseca, Júlia da Conceição, D. Lucinda Pereira, D. Amélia Ribeiro, D. Assumpção Ribeiro, D. Clementina Ribeiro, D. Maria Corrêa, D. Maria Baptista; etc. e Exmos. Srs. Santos, Moreira Garcia, Américo de Resende, Adão Pinhal, Padre João Rebelo,

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José Soares da Cunha, José Nunes, José Rebelo, José da Costa Pereira, Fonseca do Porto, Domingos Costa, e muitos outros cujos nomes é difícil citar. Quando o comboio voltou de Oliveira ajuntou-se muito povo que, com archotes, iluminava a gare parando o comboio para sair o sr. Conselheiro Costa e o Dr. Crispim, sendo nessa ocasião saudado sua Majestade El-Rei com vivas e muitos foguetes. Em seguida organizou-se uma marcha aux-flambeaux sendo muito aclamado o Sr. Abade Costa e outros cavalheiros da freguesia.

De Sanfins para Vila da Feira. 82

O cortejo no escadório de acesso à Igreja Matriz.


Foto cedida por gentileza da Casa da Quintã.

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D. Manuel II e Doutor Cândido de Pinho*. * Cândido Augusto Correia de Pinho, nasceu na Casa da Quintã, em Fornos no dia 5 de Setembro de 1853. Lente Catedrático da Escola Médico-Cirúrgica do Porto. Director da Faculdade de Medicina. Foi agraciado em 1908 com a Grã-Cruz da Ordem de Nª Sª da Conceição. Acompanhou El Rei na visita ao Porto e na inauguração da linha do Vale do Vouga.


A Viagem*

* Surrealismo tridimensional (3D) Imagem carregada de sinónimos do quotidiano, Tentando induzir um caminho diversificado com vários significados.

“Quando a Arte existe no sangue há uma entrega de corpo e alma” João Rodrigues explora os diversos métodos de pintura 84

e processos artísticos, através dos quais cria vários mundos Antagónicos, mas semelhantes na sua carga artística transmitindo uma intensa criatividade. A multifacetada faceta do João Rodrigues leva-o a ter obras com diferentes padrões e estilos artísticos, que vão desde o surrealismo tridimensional, abstractos, esculturas de cerâmica.


O Centenário do Caminho-de-Ferro do Vale do Vouga - 1908 – 2008 Francisco Azevedo Brandão* A Linha do Vale do Vouga, que ligava Espinho a Viseu, numa extensão de 140,489 Km., foi inaugurada com a presença do rei D. Manuel II em 23 de Novembro de 1908, com a abertura oficial do primeiro troço de 33 Km., entre Espinho e Oliveira de Azeméis, e a sua abertura ao público dar-se-ia quase um mês depois, a 21 de Dezembro. A construção da Linha O primeiro projecto para a execução desta Linha data de 1877 com um trajecto entre Estarreja e S. Pedro do Sul, mas tal projecto não se concretizou devido às dificuldades do terreno. Dois anos mais tarde um novo projecto foi apresentado, agora de Espinho a Torre de Eita, perto de Viseu. Os estudos e os trabalhos de campo foram concluídos em 1894, tendo sido o respectivo projecto aprovado em 1895. Um alvará de 23 de Maio de 1901 concedia a Frederico Pereira Palha a construção e exploração de uma linha férrea entre Espinho e Torre de Eita, confirmado pela aprovação do respectivo projecto em

Outubro de 1903. Mas, ainda desta vez, tal projecto ficou sem efeito devido a problemas técnicos e financeiros. Após alguns anos de estagnação, a Compagnie Française Pour la Constrution et Exploitation de Chemins de Fer à L’Étranger, com estatutos registados em Portugal e publicados no «Diário do Governo» de 29 de Janeiro de 1907, assinou um contrato de concessão da construção desta via férrea em 5 de Fevereiro de 1907, tendo os trabalhos começado em finais desse ano, com a aprovação dos tipos de via, edifícios e obras de engenharia, através de uma portaria datada de 2 de Janeiro de 1907. A construção realizou-se através das seguintes fases: entre Espinho e Oliveira de Azeméis, numa extensão de 32,750 Km., concluiu-se em 21 de Dezembro de 1908; entre Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha, (22,196 Km.), concluiu-se em 1 de Abril de 1909; entre Albergaria-a-Velha e Sarnada do Vouga, (6,638 Km.), concluiu-se em 8 de Outubro de 1911; entre Sarnada do Vouga e a Foz do Rio Mau, (4,700 Km.), concluiu-se em 5 de Março de de 1913; entre Bodiosa e Viseu, (11,209 Km.),concluiu-se em 5 de Setembro de 1913; entre a Foz do Rio Mau e Ribeiradio, (14, 215 Km.), concluiu-se em 4 de Novembro de 1913; entre Ribeiradio e Vouzela,(25, 695 Km.), concluiu-se em 30 de Novembro de de 1913; entre Vouzela e Bodiosa, (23,094 Km.), concluiu-se em 5 de Fevereiro de 1914.

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local. É autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

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A 7 de Julho de 1923, em assembleia geral, a empresa francesa passou a designar-se por Companhia Portuguesa para a Construção e Exploração do Caminho-de-Ferro do Vale do Vouga e em 1947 foi integrada na CP. Inauguração do Iº. troço, entre Espinho e Oliveira de Azeméis Como dissemos acima, este primeiro troço foi inaugurado a 23 de Novembro de 1908, com a presença do rei D. Manuel II, que na altura fazia uma digressão pelo Norte do país desde 6 de Novembro desse ano. A inauguração constou de uma viagem em comboio especial entre Espinho e Oliveira de Azeméis com recepções e diversas cerimónias em Espinho, Feira e Oliveira de Azeméis, que a seguir vamos recordar. Em Espinho

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D. Manuel chegou à estação de Espinho pelas 9,16 horas, num comboio especial que tinha partido de Campanhã, tendo-se deslocado até ali de automóvel desde o palácio das Carrancas, que serviu de Palácio Real na sua digressão pelo Norte do país. Na estação, que estava ornamentada com bandeiras, palmas e festões de verdura, aguardavam a sua chegada os ministros das Obras Públicas, Bispo D. António Barroso, conselheiro Severiano Monteiro, director das obras públicas, conselheiro Costa Couraça, general Tomás da Costa, do conselho superior das obras públicas, visconde de Vilarinho de S. Romão, visconde de Guilhomil entre outras personalidades, todos vindo do Porto, e ainda o presidente e vereação da Câmara Municipal de Espinho, governador civil de Aveiro, juízes das comarcas próximas, administrador do concelho, comissão de defesa de Espinho e muito povo. «Subiram ao ar girândolas de foguetes e a banda de música dos Bombeiros Voluntários do Porto tocou o hino nacional, no fim do qual reboaram vivas a el-rei e à família real».(1) Numa das salas da estação, o presidente da Câmara de Espinho, Henrique Brandão,(2) deu as boas-vindas ao rei nos

- “O Primeiro de Janeiro” - 24.11.1908. - A “Gazzeta de Espinho”, órgão do Partido Republicano, na sua edição de 29-11-1908, pela pena do seu director, Dr. Joaquim Pinto Coelho, criticava

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seguintes termos: «Senhor! A Câmara Municipal de Espinho vem tributar a vossa majestade o preito da sua respeitosa simpatia, e, saudando com verdadeiro Júbilo e comovida sinceridade o rei «amigo do povo» que trabalha, faz ardentes votos para que se estreitem e avigorem cada vez mais os laços que ligam o povo ao rei. As sentidas e entusiásticas manifestações que vossa majestade tem recebido nesta viagem triunfal, tem eco em todos os peitos onde pulsa um coração de português e são lenitivo à grande dor que cobriu o trono, alanceando a alma nacional. Estas ondas avassaladoras de amor e simpatia pela monarquia portuguesa que aqui como em todo o mundo civilizado se ergue em frémitos de entusiasmo, é testemunho frisante das altas qualidades que ornam vossa majestade, e são gratos augúrios de um reinado próspero e feliz. Permita vossa majestade que Espinho venha também manifestar-lhe a sua ardente fé monárquica, e depor nos degraus do trono, onde a sua bela figura juvenil resplandece aureolada do ofuscante brilho das suas virtudes, os mais ardentes votos para que o venturoso reinado de vossa majestade, traga a paz e a prosperidade à nossa querida Pátria. Viva o Rei! Viva Sua Majestade a Rainha! Viva a família real portuguesa!» Seguidamente o presidente da Comissão de Defesa de Espinho, Manuel Ribeiro Nunes leu a seguinte mensagem: «Senhor! Falo em nome da Comissão dos Amigos de Espinho que há meses se constituiu para defender os interesses morais e materiais desta linda e sadia terra e que Vossa Majestade honra hoje com a sua visita. Em nome dessa comissão saúdo Vossa Majestade. Bem-vindo sejais, real Senhor. A visita dos reis é gentileza, é estímulo, é projecção. Os corações dos vossos súbditos comovem-se de entusiasmo, vendo junto deles o do seu soberano; artes, comércio e indústria redobram a sua iniciativa, sentindo o calor do vosso aplauso que penhora; e os fracos que precisam de auxílio, e os esmorecidos que precisam o facto de ter sido Henrique Brandão a fazer a honra da recepção, uma vez que nesse mesmo dia tinha sido eleita uma nova vereação. A este respeito escrevia o seguinte: “A Câmara de Espinho tomou posse na segunda-feira, 23, dia de visita régia. Apesar disto, fora de lei, a vereação cessante fez a honra da recepção. Arrojou-se um poder e uma representação que não tinha a antiga vereação. A Câmara que se finou quer dar uma última prova de si... Ainda depois de morta, deitou asneira...!


de alento encorajam-se na luta da vida, certos de que o vosso favor lhes dá consolo e de que a vossa generosidade lhes traz ajuda. A todos é proveitosa a vossa visita que enche tantos corações que até os pobres se esquecem da sua pobreza com a alegria de vos ver! Esta terra de trabalho, é feudo, meu Senhor, de um amo arrogante e caprichoso que ora o enche de abastança, ora a empobrece. Este amo é o mar! O mar se é a sua principal indústria, é também o seu principal inimigo! Na calma, dá-nos a riqueza da sua pesca, é tónico das suas brisas, a beleza dos seus horizontes; mas na fúria, ameaça, depois avança, e por fim derrui. Nada o detém! Num momento destrói e engole igrejas, casas e palheiros. O rico perde parte dos seus haveres, o remediado torna-se pobre e o pobre fica sem abrigo e sem pão. É grande a miséria da classe piscatória desta terra, meu Senhor! As últimas investidas das ondas soberbas, levaram a norte desta praia as casas dos pescadores que mais viviam expostos às invasões do mar. Para estes desgraçados vimos nós hoje pedir a protecção de Vossa Majestade. Acudi-lhes, real Senhor, como há uns quinze anos vossa augusta avó – esse anjo de caridade – lhes valeu mandando construir um bairro inteiro onde se albergassem esses infelizes que, desde então, misturam nas suas rezas, de manhã e de noite, o nome dos santos com o de vossa benfazeja avó – a grande protectora dos mais fracos e dos pescadores. Vós, Senhor, que sois uma formosa esperança, e que, como rei moderno, tendes a alma tecida das mais puras liberdades e, portanto, deveis detestar todas as tiranias, defendei-nos contra um tirano que nos devasta! Vós, Senhor, que há semanas atravessais metade do país, entre palmas, as mais cordiais e festivas; vós que viajais por sobre um tapete de ternuras, que a vossa realeza, baptizada com lágrimas trágicas, criou em cada coração; vós, Senhor, que há semanas viveis entre pratas, ouros, riqueza, luxos e esplendores, não deixeis esta terra sem primeiro ver de perto a negra miséria destes casais em trevas, onde mora o desamparo e a fome! Não deixeis de os visitar para que os vossos olhos afeitos ao luxo se poisem na pobreza lúgubre e, comovidos, cravem na frescura do vosso juvenil sorriso, uma jóia nova, mas bela – a de dor pelos desgraçados. Ouvi, meu Senhor, a nossa súplica pelos pescadores de Espinho»

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- “O Primeiro de Janeiro” - 24.11.1908. - “Gazzeta de Espinho”, - 29.11.1908.

Visita à fábrica «Brandão, Gomes e Cª. Finda a recepção, D. Manuel dirigiu-se para o automóvel para em cortejo visitar a fábrica de conservas «Brandão, Gomes e Cª». Nas ruas embandeiradas e nas varandas das casas, ornamentadas com as melhores colchas, uma «grande multidão» dava vivas calorosos ao rei que lhe correspondia com um sorriso nos lábios acenando com a mão como agradecimento. «Mulheres e crianças lançavam flores sobre o automóvel que conduzia o monarca, que era constantemente saudado Junto da entrada do grande estabelecimento fabril e ao longo das ruas estava uma imensa massa de povo».(3) Contrariamente às reportagens dos diários nacionais que falavam em grandes multidões que assistiam à vista do rei, D. Manuel II, a «Gazeta de Espinho», como órgão do Partido Republicano, não deu a importância que merecia tal visita e com uma certa displicência escrevia na pequena reportagem que lhe dedicou as seguintes passagens: «A inauguração do caminho-de-ferro do Vale do Vouga atraiu muita gente dos arredores, envolto com curiosos e «habitués» que aproveitaram este ensejo para…dar férias ao trabalho diário». E mais abaixo continuava no mesmo tom: «Pairou em volta do régio automóvel um bando negro de seminaristas e padres que todos se derretiam em espontâneas manifestações. A população contida em filas pelas ruas do trânsito assistia, indiferente ou boqueaberta, ao desfilar do cortejo. Frieza glacial!»(4) E para descargo da consciência lá teve de acrescentar o seguinte: «Deve dizer-se que os espinhenses celebraram intimamente, com júbilo justificado, embora o não exteriorizassem ostensivamente, um facto da mais alta importância para o progresso e desenvolvimento económico desta terra – foi a inauguração do caminho-de-ferro do Vale do Vouga». De acordo com o tom da reportagem, na mesma edição da «Gazeta de Espinho», o Dr. Joaquim Pinto Coelho, como acérrimo defensor da República, no seu editorial, não se coibiu, a propósito da visita régia, de tecer algumas considerações acerca da monarquia: «…A causa da monarquia em Portugal está julgada. A sentença de morte fica impreterivelmente um libelo sem contestação. Já não há simpatia que a alente; pode haver piedade que compassivamente lhe espace o último transe. Uma questão política, um problema social desta índole, não se resolve pelo amor, não se redime pelo martírio.

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«Os infelizes podem merecer a nossa comiseração, mesmo o nosso respeito, mas seria absurdo levar a tolerância indulgente até ao extremo de, só por isso, nos submetermos ao seu domínio…A família portuguesa não pode, não deve deixar-se seduzir por estas fórmulas condenadas de criminoso sentimentalismo hipócrita. Ponhamos as coisas a sério, nos devidos termos. A nação precisa, mais do que nunca, de cuidar a sangue frio dos seus destinos. Triste espectáculo o de um povo que se deixe morrer abraçado a um ídolo».(5) Na fábrica de conservas «Brandão, Gomes e Cª». que se encontrava em laboração, o monarca visitou as várias secções «admirando a perfeição inexcedível das diferentes operações manuais e mecânicas por que passam as múltiplas variedades de legumes, carnes, peixes e azeite, até ao condicionamento em latas ou frascos».(6) No final da visita dirigiu-se ao gabinete da direcção onde um dos sócios da fábrica, Augusto Gomes, leu a seguinte saudação: «Senhor: a presença de Vossa Majestade nesta fábrica representa para a firma Brandão, Gomes e Cª. uma honra que ela não sabe nem pode agradecer devidamente. «O desvelado empenho de vossa majestade pelos progressos do trabalho nacional mais uma vez se demonstra neste momento em que vossa majestade se digna trazer novo e profícuo estímulo àqueles que, fundando há anos, esta fábrica, instalando em Matosinhos uma sucursal, dela tratando de criar agora outra sucursal em S. Jacinto, vão procurando ao mesmo tempo levar a todo o mundo os produtos esmeradamente preparados de uma indústria que representa um valoroso subsídio para o desenvolvimento da riqueza de Portugal. «Procurando dilatar o nome de Portugal por outros continentes, temos a firme convicção de que correspondemos, no limite das nossas forças, a uma das mais nobres e santas aspirações do ânimo generoso e da alma patriótica de vossa majestade.» «Praza aos céus que o auspicioso reinado de vossa majestade, firmado no caloroso amor da pátria do nosso rei, se dilate por longos e prósperos anos e represente para a indústria portuguesa uma era perene de triunfos, que constituirão a segura glória para o nosso querido Portugal».

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- “Gazzeta de Espinho”, - 29.11.1908. - “O Primeiro de Janeiro” - 24.11.1908.

No fim da leitura, uma orquestra, que se encontrava numa sala contígua, executou o hino nacional, seguido «de calorosos vivas ao monarca, sendo-lhe lançadas muitas flores».(7) D. Manuel agradeceu a homenagem que lhe tinham prestado e a recepção que ali lhe tinham feito, dizendo que aquela fábrica era admirável, regozijando-se por se encontrar num estabelecimento industrial tão importante para a economia portuguesa. Visita à praia À saída da fábrica o rei foi novamente aclamado com as operárias a lançar-lhe braçadas de flores. Formou-se então o cortejo de automóvel em direcção ao edifício da Assembleia de Espinho, onde seria servido o almoço. Quando chegou ao fundo da rua Bandeira Coelho (hoje rua 19), D. Manuel apeou-se e desceu à praia para se inteirar dos estragos que o mar tinha causado às casas dos pescadores. Aqui perguntou ao conde de Águeda que o acompanhava qual era a extensão do terreno envolvido e qual a importância aproximada dos prejuízos. Perante os esclarecimentos do conde, o rei prometeu envidar todos os esforços para ajudar a Câmara de Espinho, no sentido de defender a praia das invasões do mar. D. Manuel seguiu depois para a Assembleia, sempre saudado pelo povo em todo o trajecto. O Almoço na Assembleia de Espinho O edifício encontrava-se interiormente engalanado, tendo duas salas ricamente tapetadas e mobiladas, onde o rei recebeu os respectivos cumprimentos. À entrada havia uma guarda de honra feita por um batalhão de Infantaria 6 com banda de música. O almoço, oferecido pela companhia do Vale do Vouga, realizou-se no salão de baile, decorado com sanefas de cor azul e branca, com bandeiras portuguesas e francesas e ornamentado com dezenas de arbustos e flores exóticas. O almoço de 140 talheres constou do seguinte: consomé à la Royale, paté de foi-gras à la Périgord, coe de filet à la gastronome, chaudfroid de perdreaux à la diplomate, rôties au cresson. Salade Russe. Entremette-Glace â la Crème aux

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- “Gazzeta de Espinho”, - 29.11.1908.


noisettes pralinées. Dessert: gelée au marasquis, charlotte russe au café. Fruits e bonbons. Pâtiserie assortie. Vins: collares, esgueira, madère, port, moêt et chandon, café. Na mesa de honra, presidida pelo monarca, encontravase à sua direita, o presidente do concelho, bispo do Porto, ministro das Obras Públicas, presidente da Câmara de Espinho, conde de Paçô Vieira e conde de Tarouca; à sua esquerda, os ministros da Justiça e da Guerra, bispo-conde, conde de Águeda e conde de Castelo de Paiva. Aos brindes, o conde de Assentis devia ler um discurso que, dado o adiantado da hora para a inauguração da linha do Vale do Vouga, não o pôde fazer, pelo que o entregou por escrito ao monarca, limitando-se a saudá-lo e à família real, saudação acompanhada, de pé, por todos os presentes.

A Inauguração da Linha Terminado o almoço, D. Manuel, acompanhado dos ministros do reino, da justiça, da guerra e das obras públicas, membros do conselho de administração do Vale do Vouga, bispos do Porto e de Coimbra e outras individualidades, dirigiu-se para o comboio especial, constituído por três salões e a carruagem real que o aguardava na estação de Espinho, a fim de iniciar a viagem até Oliveira de Azeméis com paragem na Vila da Feira. «Este comboio saiu de Espinho ao meio-dia e 20 minutos, entre aclamações entusiásticas de uma multidão enorme, ao som do hino nacional por várias bandas de música e um continuado estourar de girândolas de foguetes. As senhoras, das janelas por onde passa aquela linha, associaram-se à ruidosa manifestação, acenando com os lenços…Num morro de areia que fica próximo daquela gare (estação do Vale do Vouga – Espinho), estava uma multidão enorme que irrompeu em aclamações à passagem do comboio».(8) Todas as estações e apeadeiros até Oliveira de Azeméis encontravam-se «belamente ornamentadas com profusão de arbustos, bandeiras, escudos, bandolins de papel, arcos triunfais, merecendo referência especial as estações de S. Paio de Oleiros, Paços de Brandão, S. João de Ver, Vila da Feira e Couto de Cucujães, onde se levantavam arcos triunfais onde a multidão era enorme, havendo bandas de música e um estrondear ensurdecedor de foguetes e morteiros».(8) (1)

- “O Primeiro de Janeiro” - 24.11.1908.

Na Vila da Feira O comboio parou no apeadeiro do Cavaco, onde D. Manuel e sua comitiva desembarcaram para tomarem os automóveis e carruagens em direcção à Vila da Feira. O apeadeiro estava engalanado com um arco triunfal e junto dele duas meninas vestidas de branco lançavam flores sobre o rei. Aguardavamno ali, além do presidente da Câmara da Feira, Dr. João Magalhâes, várias individualidades, entra as quais, o conde de S. João de Ver, visconde de Fijô, visconde de Reboleira, conde de Castelo de Paiva, conde de Águeda, governador civil de Aveiro, D. Fernando de Távora, Dr. Eduardo Vaz, Dr. Vitorino de Sá, conselheiro Manuel Bandeira, Duarte Huet, Henrique Brandão, Dr. Vaz Ferreira, visconde de Albergaria de Souto Redondo, Dr. Gaspar Moreira, etc. Pelo caminho D. Manuel II foi recebido com entusiásticas aclamações, acompanhadas com girândolas de foguetes e bandas de música. A população tinha sido sensibilizada para assistir e participar na recepção ao rei não só pela edilidade camarária mas também pelo jornal «Correio da Feira», órgão do Partido Regenerador, que ao acontecimento dedicou duas edições, uma antes da visita e outra após a inauguração. Na primeira, o seu director, José Soares de Sá, em editorial, escrevia: «Faz hoje precisamente quinze dias que Sua Majestade, deixando Lisboa, empreendeu a viagem ao norte do país, e desde então as manifestações, que hoje à partida recebeu, tem-se sucedido cada vez com mais brilho e calor, quer na rua ou nos teatros, nos quartéis e estabelecimentos de instrução e caridade, nas fábricas, nos hospitais, por toda a parte enfim aonde Sua Majestade se encontra no cumprimento da sua missão oficial, no louvável empenho de observar as necessidades e adeantamento dos povos. «Esta viagem, realizada sobre os melhores auspícios e na observância de um dever constitucional, transformou-se, por um conjunto de circunstâncias, de uma importância única, num verdadeiro passeio triunfal, cujo efeito, reflectindo-se no país e nas instituições, consolida estas e deve trazer àquela o sossego e tranquilidade de que muito necessita o seu desenvolvimento e progresso…ontem foi a Viana do Castelo, hoje Coimbra, e amanhã cabe a vez às Terras de Santa Maria, onde Sua Majestade vem inaugurar o troço da linha férrea do Vale do Vouga, entre Espinho e Oliveira de Azeméis,

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O cortejo junto ao escadório da Igreja Maztriz.

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melhoramento este que todos os povos ambicionavam pela facilidade de comunicação com os grandes centros e importância que lhe dá».(9) E mais adiante, com o subtítulo «Bem-vindo seja El-Rei», José Soares de Sá escrevia: «A visita de Sua Majestade a esta Vila, pelo facto da inauguração do Caminho-de-Ferro do Vale do Vouga, é para nós uma consideração que muito nos enobrece. Abrilhantando com a sua Régia Presença, tal solenidade vem, por um lado, iniciar uma nova era de progresso para o nosso concelho, de que muito necessita, e por outro lado, radicando mais o sentimento monárquico, estimula-o a fim de que nós, ainda atemorizados pela infame tragédia que enlutou a Pátria Portuguesa, concorramos para que o actual reinado seja de ordem e paz, indispensáveis factores de felicidade de um povo! «Senhor! Tendes sido até hoje alvo das mais sinceras aclamações em todo o vosso percurso pelas terras do Norte e demonstrações de regozijo; o que o nosso povo vos prepara, em nada desmerecerão daquelas a que tendes assistido; menos pomposas, é certo, mas se não superiores ao menos iguais na sinceridade, cujo característico lhe é tão proverbial e até hoje nunca desmentido. Viva S.M. El-Rei! Viva a Família Real! Viva a Pátria!».(9) A Câmara Municipal da Feira, por sua vez, afixou dois editais. Um para os moradores da Vila e outro para todos os (9)

- “O Correio da Feira” - 21.11.1908.

habitantes do concelho. O primeiro, do seguinte teor: «Dignando-se Sua Majestade, El-rei D. Manuel II honrar a sua visita à Vila da Feira no próximo dia 23 do corrente, por ocasião da inauguração do Caminho-de-Ferro do Vale do Vouga, convido todos os habitantes desta Vila a associarem-se às homenagens devidas ao chefe do Estado e manifestarem o seu regozijo, limpando as frontarias das suas casas, ornamentando-as e iluminando-as ao anoitecer, a fim de que S.M. possa ter a mais grata impressão do panorama desta Vila, no seu regresso. «S.M. desembarcará do comboio real, no alto do Cavaco, no ponto onde a linha férrea corta a estrada distrital, das 11 e meia para o meio-dia de 23. Seguirá de carruagem pela estrada até Praça Velha, onde, em casa apropriada receberá os cumprimentos oficiais. Depois, a pé, irá em visita à Igreja Matriz, e daí em carro ao Castelo, donde directamente para a estação, pela Lavandeira. Os habitantes da Vila, dos pontos onde não é possível passar o cortejo, e especialmente aos do Montinho, Ponte e Piedade, se pede instantemente para ornamentarem e iluminarem também as suas casas. A iluminação deverá ser posta às, 5,12 da tarde». O segundo edital dizia o seguinte: «S.M. El-Rei D. Manuel II digna-se honrar esta Vila da Feira com a sua visita no próximo dia 23 do corrente, por ocasião da inauguração do Caminho -de-Ferro do Vale do Vouga. Aos habitantes das diferentes freguesias do concelho se pede instantemente para acorrerem a esta Vila, a fim de se associarem às homenagens devidas ao Augusto Chefe do Estado e manifestarem o seu regozijo por tão honrosa deferência. «S.M. desembaracará do comboio real no alto do Cavaco, no ponto onde a linha férrea corta a estrada, das 11 e meia para o meio-dia. Seguirá de carruagem pela estrada até à Praça Velha, onde, em casa apropriada receberá os cumprimentos oficiais. Depois, a pé, irá em visita à Igreja Matriz e daí em carro ao Castelo, donde segue directamente para a estação pela Lavandeira». No apeadeiro do Cavaco, D. Manuel tomou então o automóvel descoberto que lhe estava destinado e iniciou o


cortiça, outras duas crianças deixavam cair flores à passagem de El-Rei. «Alguns grupos de crianças das escolas, acompanhados dos respectivos professores, aguardavam no Largo da Misericórdia a vinda do cortejo, acolhendo S. M. num coro de vivas».(10) No Paço

No eirado do castelo. Dr. Gaspar Moreira, Governador Cívil, D. Manuel II, Dr. João de Magalhães e Dr. Vaz Ferreira.

cortejo em direcção ao Paço (uma casa particular preparada para o efeito), seguido de várias carruagens, onde ia instalada a sua comitiva real constituída pelas seguintes personalidades: Fonseca do Amaral, presidente do conselho de ministros; Campos Henriques e general Sebastião Teles, ministros da Justiça e da Guerra; conde de Tarouca; coronel António Costa; marquês do Lavradio, D. Fernando de Serpa; D. Tomás de Melo Breyner; coronel Alfredo de Albuquerque e os secretários particulares do presidente do conselho e dos ministros da Justiça e da Guerra. Tomaram lugar também em carruagens as personalidades que tinham acompanhado o rei desde Espinho, a saber, governadores civis de Aveiro e Porto; conselheiro Oliveira e Costa; professor Cândido de Pinho, presidente da Câmara do Porto; Luís Vale Júnior; José Pinheiro Mourisca; Juiz e delegado da comarca da Feira; Drs Roberto Alves e Vitorino de Sá; Padre Manuel André Boturão, pároco da Feira, etc. «Durante o trajecto, o cortejo «correu por entre alas fechadas de povo, até ao centro da Vila, mas aqui era tão espessa a multidão que incompatibilizava qualquer regularidade. «Ao cimo da Estrada Nova, o cortejo desfilou por debaixo de um arco elegantemente disposto e nos extremos da curva deste, tomaram assento duas meninas, vestidas de branco, que cobriram de flores o jovem rei. «No Largo da Misericórdia, de um arco modelado em

Depois que chegou ao Paço Real, D. Manuel recebeu a Câmara Municipal, autoridades judiciais e administrativas e outras personalidades concelhias. Depois dos cumprimentos, o presidente da Câmara da Feira, Dr. João de Magalhães, leu a seguinte mensagem: «Senhor! Encontra-se vossa majestade dentro da capital das antigas e históricas terras de Santa Maria, que sempre primaram pela sua fidalguia e pela sua dedicação à liberdade e ao trono. E se não é a vez primeira que um rei português se digna poisar os seus olhos sobre as formosas paisagens desta terra, como vosso augusto avô, o rei artista em 1852, dignando-se visitar o nosso castelo, com os então príncipes D. Pedro e D. Luís, é contudo, que nos recorde, a única em que o chefe do Estado, o rei de Portugal, vem honrar-nos com uma verdadeira visita e receber nas terras da Feira as homenagens de respeitosa dedicação deste povo. «Senhor! Nascida em remotos tempos, mais 2100 anos A.C. a velha Lancobriga atravessou e acompanhou o esplendor romano, decaiu, rejuvenesceu sob a égide de esforçados cavaleiros para ocupar, durante largos séculos, lugar proeminente entre as primeiras terras portuguesas. «Orgulhosa dos seus vastos domínios que se estendiam do Douro ao Vouga, ciosa das suas tradições e dos seus fastos, anda hoje em tão completa decadência, rememora todo um brilhante passado e se compraz com amargura é certo, na recordação desses tempos idos. «Aqui nasceram, Senhor, os infanções de Portugal, honrosa distinção com que os reis portugueses galardoavam seus vassalos desta região. Tempo houve em que todos os peões eram cavaleiros, demonstração inequívoca da ligação íntima deste povo com os seus monarcas e prova indiscutível dos esforçados feitos dos nossos ascendentes. Ao conde D. (10)

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Henrique mereceu a terra de Santa Maria a concessão do seu foral em 1092. Mais tarde, em 1270, D. Afonso III lhe deu novo foral. Mas é, Senhor, a um rei português que tinha o vosso nome e obteve na história o cognome de Venturoso, que a terra de Santa Maria mais deve, pelos especiais cuidados que lhe mereceu. «Reedificou-lhe o vetusto castelo, construiu-se-lhe essa ponte que ainda hoje ali se ostenta com as suas armas manuelinas e concedeu-lhe foral, precioso de iluminuras que aqui conservam ainda a demonstrar e a recordar-nos sempre quão grato nos deve ser a memória desse rei feliz, em cujo reinado Portugal foi o grande empório do mundo. «Hoje, Senhor, somos um povo decaído, que vive apenas do passado. E dessa gloriosas tradições é padrão único do nosso orgulho esse velho castelo que além se ostenta altivo, recortando com os seus elegantes coruchéus, o céu azul da nossa terra. Alimenta-nos, porém, que a presença de vossa majestade nos avigore, dignando-se a assistir à inauguração de um caminho de ferro que, bafejando estas terras ubérrimas, nos abra novos horizontes no caminho da civilização e do progresso. «Memorável ficará na história da Feira a data de hoje, data feliz em que vemos realizadas velhas aspirações e vem coroá-la a presença do moço rei, que logo no início do seu reinado se digna associar-se ao que para nós representa um ressurgimento e a estrada aberta a novas e gloriosas empresas. «Senhor! Subistes ao trono em bem dolorosas circunstâncias, mas na vossa viagem triunfal ao Norte, tendes tido ocasião de pôr à prova a dedicação e a lealdade do povo Português. «Com carinhosa solicitude temos acompanhado os vossos triunfos e nos temos regozijado com todas essas tão claras demonstrações de aliança íntima que em Portugal existe entre o rei e o povo. «Congratulamo-nos, e não podíamos deixar de o manifestar, nós, que muito amamos a liberdade e o progresso com as vossas afirmações de serdes um verdadeiro rei constitucional. «Senhor! Em nome do município da Feira, que tenho a honra de representar, em nome dessa constituição que tão preciso se torna ressurgir em todo o seu esplendor, vimos apresentar a vossa majestade as homenagens do nosso respeito e leal dedicação.

«E se as galas com que vos recebemos não correspondem ao vosso desejo, nem podem traduzir o nosso entusiasmo e a nossa gratidão pela honra da vossa visita, acredite, Senhor, que no coração de todos nós vai um intenso júbilo e um carinhoso afecto que todo vos dedicamos. «Dignai-vos, Senhor, como esse outro rei de que usais o nome, ser também um protector desta terra, que muito em vós confia. «Senhor! Os mais ardentes votos para que tenhais um reinado feliz para glória do vosso nome e progresso e prosperidade deste querido Portugal. Viva O Rei!». Em resposta, o rei D. Manuel I agradeceu a recepção festiva que lhe acabavam de fazer e que ficassem com a certeza de que, como os seus antepassados, continuaria sempre, durante o seu reinado, a dispensar a sua protecção e a sua gratidão. Finda a recepção, foi servido um lanche que constou de filetes de ananás, sandes, bolos e champanhe, acompanhado com licor do castelo, fabricado por Afonso Couto, que no fim ofereceu ao rei, uma caixa desse licor, tendo-se-lhe também oferecido a tradicional fogaça. Pelas duas horas e um quarto saiu o cortejo em direcção à Igreja Matriz. Na Igreja Matriz Aqui, ao fundo da escadaria, era aguardado pelo abade, padre Manuel André Boturão, capelão real, párocos do concelho e outros eclesiásticos e professores. Sob o pálio, o rei entrou na igreja onde teve a ocasião de apreciar a rica talha dourada do antigo templo dos Lóios, enquanto o Dr. Aguiar Cardoso executava no órgão o hino nacional. Na sacristia, D. Manuel deixou inscrito o seu nome. Daqui seguiu para uma visita ao castelo. No castelo O rei e convidados visitaram todas as dependências do vetusto castelo, tecendo o monarca palavras elogiosas para as autoridades municipais pelo seu interesse em recuperar e conservar um monumento que testemunha o glorioso passado das Terras de Santa Maria. Finda a visita, seguiu em cortejo para a estação da Vila da Feira, onde embarcou novamente com destino a Oliveira de Azeméis, terminus desta viagem inaugural da linha férrea do Vale do Vouga.


«E por entre uma ovação geral, troar de foguetes e notas festivas do hino nacional pôs-se o comboio em marcha, desaparecendo na curva da trincheira do Farinheiro, eram aproximadamente três horas».(11) Em Oliveira de Azeméis Depois de uma pequena paragem em Arrifana onde se encontrava grande multidão, o comboio especial chegou à estação de Oliveira de Azeméis pela 4 horas da tarde. Esperavam o rei - a Câmara Municipal, autoridades, pessoas de destaque daquela Vila, centenas de pessoas e várias bandas de música. D. Manuel tomou então o automóvel e seguiu até à Câmara Municipal. Pelo caminho «o trânsito fazia-se com dificuldade em virtude da multidão que havia pela estrada e ruas da Vila; foi assim num triunfo de aclamações e coberto de flores até à casa da Câmara». No salão nobre, o presidente da Câmara leu uma mensagem de saudação, à qual o rei respondeu, agradecendo as palavras da Câmara, acrescentando «ter muita satisfação nesta visita, tanto mais que o tinha levado ali a inauguração da linha férrea do Vale do Vouga, que era para aquela Vila um elemento de desenvolvimento». Finda a cerimónia de boas vindas o rei e comitiva seguiram de automóvel rumo à Fábrica de Papel do Caima. Na Fábrica do Caima À entrada da fábrica erguia-se um arco triunfal com decorações em papel das cores nacionais e o edifício encontrava-se completamente iluminado a luz eléctrica, estando em plena laboração, com as dependências ornamentadas com bambolins de papel, bandeiras e troféus. Aqui foi recebido pelo proprietário, Bento Carqueja que também era proprietário do «Comércio do Porto», que leu uma mensagem de boas vindas, acompanhando-o depois na visita a esta importante empresa industrial do Distrito de Aveiro, mostrando as várias secções da fábrica e explicando ao monarca as várias fases do fabrico do papel. O rei, vivamente bem impressionado com o que viu, assinou o livro dos visitantes e presidiu a uma simbólica (11)

- “Primeiro de Janeiro” - 24.11.1908.

cerimónia: colocou ao peito do director técnico da fábrica, Manuel Rodrigues de Sá, a medalha de Oficialato de Mérito Industrial. Em seguida foi servido um serviço de chá, doce e vinho do Porto, no fim do qual Bento Carqueja fez uma saudação ao rei, que muito agradeceu. O Regresso ao Porto Finda a visita, D. Manuel embarcou novamente no comboio especial que saiu da estação de Oliveira de Azeméis eram 6 horas da tarde. O jornal «Primeiro de Janeiro» relatava assim o regresso desta viagem inaugural do caminho-de-ferro do Vale do Vouga: «Na estação de Oliveira de Azeméis e outras estações a multidão empunhava archotes, o que produzia um efeito feérico. A de S. João da Madeira tinha uma brilhante iluminação com serpentinas e renques de luz de acetileno. A de Cucujães, uma bela iluminação de balões venezianos. A Vila da Feira era de um efeito deslumbrante pela profusão de iluminações. Em Espinho, havia magníficas iluminações em vários prédios e nas avenidas Serpa Pinto e Bandeira Coelho (actuais avenida 8 e rua 19). O efeito da gare, desde a estação do Vale do Vouga era feérico pelos fogos de bengala que se queimaram e a quantidade de archotes acesos. À passagem da Granja queimou-se também muito fogo de bengala na casa de João Ribeiro de Mesquita. O comboio real chegou ao Porto às 8 horas e 35 minutos da noite, desembarcando el-rei em Campanhã e seguindo em automóvel para o paço» Bibliografia «A Monarquia Portuguesa – Reis e Rainhas na História de um Povo», direcção de Maria Antónia Vasconcelos. Edição de Selecções do Reader’s Digest, 1999; Brandão, Francisco Azevedo, «Anais da História de Espinho (9851926)», I.º vol. Edição da Câmara Municipal de Espinho e Junta de Freguesia de Espinho, 1991; Silva, José Ribeiro da, e Ribeiro, Manuel, «Os Comboios em Portugal», III vol. Edição Terramar, 2007; «Boletim Cultural de Espinho (1979-1982). Edição da Câmara Municipal de Espinho; «Correio da Feira», 21.11.1908 e 28.11.1908; «Gazeta de Espinho», 29.11.1908; «Primeiro de Janeiro», 24.11.1908.

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Hino do Caminho de Ferro do Vale do Vouga

I Desde a beira-mar à Serra, Galgando vales e montes E rios por lindas pontes, Correndo de terra em terra, Sem descanso noite e dia, Espalhas por toda a parte Indústria, comércio, arte, Vida, fortuna, alegria.

III Que uma aventura ideal Doire a vida desta Empresa Tão bela, tão portuguesa, Por honra de Portugal! E a família ferroviária Do Val do Vouga mantenha A união como senha, Com seus chefes solidária.

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II Gentil caminho de ferro Do Val do Vouga famoso Caminho sempre frondoso Onde canta o cuco e o melro, Nós te cantamos também Um hino de gratidão Dos povos da região, Reconhecendo seu bem.

Do livro de Roberto Vaz de Oliveira “Dr. António Augusto de Aguiar Cardoso” 1970 * Médico. Escritor. Natural de Santa Maria da Feira. 14-04-1862 • 02-03-1937

Letra do Dr. Aguiar Cardoso*


Uma carta de Belchior Cardoso da Costa* Casa da Praça 15/02/1986

Meu Caro Dr. Celestino Portela Passei um bom bocado da tarde a ler os opúsculos, editados pela “LAF”, que o meu caro Dr. Portela teve a dupla gentileza de me oferecer, e de aqui me mandar hoje, ligados à personalidade e á memória, sobretudo poética, desse fascinante e mágico transformador de pessoas e de imagens que foi Fernando Pessoa cuja presença e figura física ainda tenho (graças à Providência que tão benevolamente me tem conservado e as faculdades) bem vincada na lembrança – assim pendurado nas calças curtas, como que arregaçadas, e embrulhado numa gabardine incaracterística e talvez incolor, coberto com o seu conhecido chapéu e servido pelos seus óculos de míope, sozinho, alheado do movimento, a descer, num fim de tarde de Outono, com uns papeis debaixo do braço (livros, jornais?) numa rua da baixa de Lisboa, lentamente, talvez a caminho do Martinho da Arcada, seu poiso habitual, tal qual o vi (e fixei), pela 1ª. vez, já lá vão perto de 60 anos – uma vida. Estava, então, Pessoa a começar a ser conhecido, mas * Advogado. Político. Dirigente Associactivo. 09.02.1904 - 02.04.1996

para alguns dos mais devotos do seu culto ele era já então um menino Deus a revelar-se... Talvez por isso, alguém que comigo subia a mesma rua de Lisboa, logo me disse: “Olhe, vai acolá o Fernando Pessoa”. Era pertinente a advertência, pois mal se dava por ele – tão apagada e tão recolhida a sua imagem física quão grandiosa se veio a revelar a sua multiplice e extraordinária personalidade literária (e não só). O meu caro Dr. Portela que também é devoto do mesmo culto (e por certo muito mais assíduo e fiel do que eu) compreenderá (e aceitará certamente), por isso mesmo, que eu traceje aqui este fraco retrato da figura humana do poeta como introdução às palavras que lhe devo, por breves que sejam, de agradecimento muito penhorado pela oferta que me fez e pela agradável leitura que me proporcionou – agradecimento este extensivo, naturalmente, à Liga dos Amigos da Feira de que o Senhor é, e tem sido, um dos grandes, se não mesmo o maior dos impulsionadores. Lembra-se com certeza, o meu Amigo, que por amável convite vosso fui assistir, no Salão Nobre da Câmara, à conferência do Prof. Salvato Trigo; mas, ou fosse pelo desconforto e más condições acústicas da sala, ou em consequência, então, do meu estado semi-gripal, ou, finalmente (última hipótese, seguramente a mais improvável) por o conferente não ter conseguido aquela relação de perfeita sintonia com o seu auditório, a verdade é que, na altura, não

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consegui sentir a mensagem de actualidade e de presença do Poeta que o Autor do trabalho se propôs (ou propunha) infundir nos seus ouvintes; mas agora que por deferência do meu caro colega tive ensejo, antes de a enviar ao seu destinatário efectivo, de ler a apresentação inteira, sem distracções nem hiatos, pude apreciá-la devidamente e posso, portanto, dizerlhe, sem a mínima lisonja, que o Dr. Salvato Trigo nos deu neste seu estudo, além de uma bela lição pessoana uma embora pequena mas verdadeira obra de arte. E é bom, e é necessário que se apresente e reavive, de vez em quando, a presença e a actualidade do vulto do grande Poeta para que jamais se perca a sua mensagem de vivência universal (e não apenas a sua “Mensagem” – espécie de rosário de glórias da Pátria -) enquanto o seu nome e o seu estro se não afundem definitivamente no universo da ficção e da lenda envoltos nos fumos do 5º. Império e escondidos pelos nevoeiros do “encoberto”... Sobretudo para edificação das novas gerações é preciso que Fernando – Pessoa viva-vivo. Foi, pois, um regalo para mim ler e meditar este belo texto daquele Professor; e também saborear os versos laudatórios da “Silva Poética” e o mais que me encantou. Por isso, e mais uma vez, lhe expresso o meu “bem-haja” e felicito os seus autores. Especialmente, felicito a “LAF”, e os seus responsáveis pelas suas iniciativas e pelos seus sucessos. Na minha avançada idade já pouco ou nada se pode dar de amizade a alguém, mas é também nesta minha altura da vida que mais se estima e se agradece recebê-la. E a “LAF” tem sido sempre amável e generosa para comigo, muito obrigado a todos e especialmente a si. “ Ó… Prá frente Santa Maria da Feira”. Creia-me, amigo, atento e admirador grato,


Cultura, factor promocional dos povos David Simões Rodrigues* Nota prévia. - Porque problemático o tema, facilmente subjectivável e ideologisável, porque sujeito a multividências cuja comparatividade tem no olho prismático do gafanhoto a sua expressão mais aproximada, preferimos seguir a via interrogativa concitando mais a reflexão que produzir asserções de magister dictat. 1. O tema, definição, dificuldades, implicações. Cultura, no entender de André Gide, será: «O que fica sedimentado no espírito do muito que se aprendeu depois que quase tudo se esqueceu (dic 105) O afirmado, que circula por toda a parte, parece verdade, mas não o é de todo, porque redutora, simplista e confinativa a uma ínfima parte da questão, na medida em que envolve apenas o conhecer, ou o conjunto dos multifacetados conhecimentos de alguém e Cultura é muito mais. Esta cultura é individual. Nas ciências antropológicas, Cultura, será o «conjunto de crenças, dos conhecimentos, dos ritos e dos comportamentos tradicionais de uma dada sociedade.» Juntar-lhe-íamos as formas particulares de expressão humana e de relacionamento com o meio natural. A nossa abordagem do

tema será produto de madura, realista, prática reflexão sobre a cultura que nos rodeia, reflexão quiçá não simpática a certa cultura política de avestruz ambliópica. Tema vasto, complexo, susceptível de polémica, mas sério, muito sério, raras vezes tratado com a grave seriedade que resulta da capital importância social, moral, espiritual, e sobretudo da sua relação directa com a paz e a guerra, com a felicidade e a desgraça, com a vida e a morte, com a própria sobrevivência de uma humanidade que se deseja globalmente feliz. Tema polemizável, seja pela natureza das abordagens do objecto, seja por conveniências dos interessados na manutenção dos «status quo» do tempo. Cada homem tem «o seu tempo», feito da cultura ideológica, económica, monetária, política, sociológica, etnográfica, literária, histórica, porque de tudo isto se faz, ou desfaz, a cultura, de dentro e de fora deste mundo MacLuano, cada vez mais «aldeia global». Cultura humana, cultura de cada continente, de cada país, de cada terra, construída no devir do tempo e no espaço em que se projecta deixando marcas distintivas desse mesmo tempo e desse mesmo espaço. Cultura Grega, Cultura Romana, Cultura Portuguesa, cultura da Feira.

* Licenciado em Filologia e Literatura Grega e Latina, Clássicas, com as variantes de Literatura Brasileira e Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa. Diplomado em Histórico e Filosófica. Curso de Teologia. Dedica-se à investigação Histórico-Científica.

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Perante a complexidade, diversidade, implicabilidade da existência Humana, sentimos que Cultura mais que definível se apresenta entendível por referências dos elementos característicos que a especificam. Se tema movediço e complicado existe, este é um dos principais, tanto assim que alguns autores sob a influência do alemão «Kultur» tendem a confundir, na sua junção, Cultura e Civilização. Que fronteiras os separam? O que têm de comum? Abramos «cultura».

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o

dicionário

enciclopédico.

Vejamos

- Cultura – «Conjunto dos conhecimentos adquiridos – instrução, saber.» - Conjunto das estruturas sociais, religiosas, políticas, que caracterizam uma sociedade. Por isso, cultura, forma própria de ser distintiva de comportamentos colectivos, de colectividades alargadas, deixadas as suas marcas no meio ambiente. Peguemos num caso paradigmático do que vimos dizendo: Rio de Onor Português/ Rio de Onor Espanhol, o mesmo estreito rio, a terra comum, as famílias do mesmo tronco. Não há ali nada que naturalmente divida. Nem muros, tudo amplo e livre como o ar. Apenas um marco diz que de um lado é Portugal e do outro é Espanha. E, coisa singular, a partir daí, tudo que é o mesmo, aparece tão diferente: língua, igreja, cemitério, casas, organização comunitária, vestir, economia, escola. Uma só a terra, uma só a família, um marco de pedra, divididas por dois países, costas com costas, e, logo ali mesmo, no mesmo Rio de Onor, duas culturas. - Cultivar: conjunto de trabalhos próprios para tornar a terra fértil. Naturalmente fertilidade de frutos que sejam fonte de vida, tranquilidade, progresso, harmonia. E assim vai ser uma vez mais nesta SEMANA CULTURAL, manifestação de cultura e consequentemente promotora de cultura, de progresso, criadora de prazer estético, de bemestar, de paz, de gosto pela vida. Porém, cultura não promotora da vida na paz, será tudo o que se lhe quiser chamar, menos cultura promocional no sentido que lhe é conveniente.

2. Cultura e Semana Cultural Cultura e pensamento lúcido. Só ele ilumina e liberta e distingue a vontade do acto, aceita ou recusa, para isso há que distinguir, separar, optar, operações que pressupõem saber, conhecimento cultivados. (Também as charnecas têm as suas culturas, e aí não se colhe trigo). Cultura e aprendizagem. Nas selvas os animais vivem entre a vida e a morte que se apresentam na variedade de elementos que crescem oferecendo vida e morte. De pequenos, dos pais recebem a aprendizagem da opção pela vida na oferta da morte. Toma e come, diz o comestível de morte. Mas o animal passa, «ouve», distingue, aceita ou recusa, mas escolhe sempre a vida, porque «sabe» que ali encontraria a morte e o instinto grita-lhe a vida. Culturalmente o mundo se transformou em vasta e perigosa selva. Mais que nunca há que aprender a sobreviver aos predadores e às ofertas de morte, embrulhada em coisas tão sedutoras. Tróia e o seu cavalo estão aí. De todas as formas, encontraremos mais nas florestas que nos livros. Os animais; as árvores e os rochedos ensinamnos coisas que nenhum mestre nos dirá. Cultura formativa que não forma disforma, é anormal, gera anormalidade. Cultura normativa que não normaliza anormaliza, gera disformidade. Tomamos em mãos o desdobrável desta «Semana Cultural» e deparamos com vários eventos e acções de vária ordem, eles próprios provenientes de associações, organizações, colectividades, instituições várias de origem vária e vária finalidade, diferentes mas todas provenientes da mesma sociedade e destinadas à mesma sociedade que lhe serviu de matriz. E nenhuma é pura, porque todas «contaminadas» por influências de origem diversa disseminadas pelos diversos meios de comunicação, elas próprias influências «contaminadas» das filtragens dos respectivos canais, como as águas subterrâneas ainda que substancialmente águas, e que partindo do mesmo centro, ramificando-se, se vão carregando dos elementos minerais e tornando diferentes até à nascente. Águas iguais na origem, diferentes no final, diferença adquirida nos diferentes espaços por que se foram ramificando e atravessando camadas geológicas de natureza diferente


arrastando consigo as características do meio atravessado até serem consumidas. Este é o complexo hidromineral. Metaforicamente, esta a realidade da cultura de consumo. Acção cultural cujos benefícios, ou malefícios, são produto de consumo para receptores por sua vez depositários de muitas partículas culturais que, mais ou menos marcadamente interiorizadas, assimiladas, mais ou menos visivelmente modificam os comportamentos individuais e colectivos e as formas de visão de si próprios e de relacionamento com o meio das suas vivências. Exemplo a esmo. Passemos pelo país fora, olhemos a paisagem envolvente. Salpicos de pinceladas de países de emigração logo gritam à vista e à sensibilidade construções modificadoras da paisagem nacional. Abramos um canal televisivo, uma revista e logo se vê o que é português e o que tem de estrangeiro à mistura, não falando dos grupos musicais. Audiência da cultura da fama e do dinheiro. E ordinário atrai ordinário. Por qualquer um deles hoje se «vende a alma ao diabo.» Olhemos para os «reality show.» Em troca de quê? - Dinheiro e fama. No fim de contas culturopatia do complexo de mosca varejeira que transporta nos seus genes a atracção coprofágica e necrofágica. Ordinariamente denunciadores sinais não do que de melhor mas do que de mais ordinário se faz lá fora. Como os romances ou notícia de manchete feitos de um caso aberrante, dando visibilidade, não ao excepcionalmente bom, mas ao excepcionalmente mau, não importa a que preço gravoso sobretudo nas várias camadas sociais ainda em formação. Não importa que o abismo atraia abismo até aos crimes de natureza diversa. Em obediência à tirania da audiência irmã da tirania do metal. E as famílias conscientes do seu papel de formadoras, a angústia que sofrem na invasão dos lares por toda a classe de facilidades, deformações, sabendo perdido tanto do seu esforço e tão onerado o seu papel, pela cultura do «abismo que atrai abismo», sabendo que «à virtude, à glória, à felicidade não se ascende senão vencendo grandes dificuldades» («Hernâni», 4º

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acto, de Vítor Hugo), «porque tanta força têm os bons hábitos desde criança» («Geórgicas», Vergílio»). Muito difícil a cultura de construção. Muito fácil a cultura de destruição. Mas quem semeia ventos colhe tempestades. Trágico é que as tempestades, cegas, justiçam culpados e vitimizam inocentes. Aí a perversidade do sacrifício dos inocentes às mãos das violências de quem se aproveita de aparentemente inofensivas formas de expressão de acções agressivas à sombra da liberdade que não respeita a liberdade dos outros.


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Das mais elementares formas de exercício da liberdade é que a minha termina quando começa a do outro. E se há queixas, vem o rótulo de «pais góticos», bota de elástico, lembrando avarentos segundo quem para os outros sete palmos de terra bastam para se locupletarem com a terra que aos outros vão roubando. Este nosso mundo moderno globalmente chegou a um estado em que morreria do que afirma, mas continua a viver do que nega. Mas, até quando? Não se diga que a tragédia de Schernobil e outras nos mares se deram em qualquer sertaneja senzala ou com qualquer pré-histórica piroga. Tudo Estados de muita cultura, sem ironia, muito cultos, muito desenvolvidos, que até têm andado na Lua. Que cultura? Homens e Estados cultos, conscientes do perigo desta moderna cultura inconsciente fizeram o tratado de Kioto. Mas o «buraco do ozono» e o efeito de estufa continuam perigosamente a aproximar-se do seu acmê de irreversibilidade, gerando condições propícias aos momentos apocalípticos. Mais alto grita o lucro pelo lucro. Bem gritam os ecologistas que há apenas esta terra para se viver. Paralelamente, no universo social, perversamente indivíduos e grupos de todas as formas e por todos os meios vão lançando muito lixo moral com por demais evidentes objectivos de destruição de valores essenciais do equilíbrio da sobrevivência da humanidade, abrindo aqui também perigosamente fossos da mesma natureza que levaram impérios à ruína. Mas, até quando? E os intencionalmente agredidos e espoliados do seu espaço de liberdade de ser, olham, sentem a agressão baixa, o perigo, a revolta do insulto público, a punhalada clara e insolente, comentam a mixórdia, detêm o vómito, transpõem a esquina próxima, e tudo se foi. Vai-se o dia, a noite chega, o repouso, talvez um comentário aqui e além, a medo, e os impunemente enxovalhados deixam em paz a cultura do nojo. Mas, até quando este equilíbrio permitirá reversibilidade, nesta perigosa progressão? 3. Cultura, Felicidade e Paz O fim da cultura é assegurar ao Homem, no sentido mais profundo e genuíno do termo, vida humana, num

desenvolvimento humano cada vez mais completo e numa vivência harmoniosa e fecunda cada vez mais feliz na paz e harmonia. Paz sem desenvolvimento, desenvolvimento sem paz, que serão? Na vida dos indivíduos e das sociedades desequilíbrios quanto mais profundos mais geradores de deformações que podem raiar a monstruosidade orgânica e moral. Vejamos as monstruosidades de toda a espécie que nos entram diariamente pelos media. Quereis mais sentido prático do que vimos lembrando? Mas não será uma cultura moldada à imagem e semelhança do Homem moderno que se não a criou inteiramente a aceita e alimenta de muitos e variados modos? Hoje o indivíduo em face da pressão social instalada age e reage de acordo com os juízos de valor que lhe traçam tornando-se cada vez mais robot, presa de outros que pensam por ele. Já se não pensa, não se delibera, tudo se encontra marketingueficado. Porque este está concebido a substituir a cabeça e a decisão do outro. Nada mais irracional e veja-se numa sociedade tão culta que se reclama de tão racional. A complexidade contraditória da natureza humana explica em parte esta humilhante desarmonia da coabitação do racional e do irracional, da consciência forte e da vontade fraca de uma inteligência fraca que nem sempre percebe as implicações mais ou menos longínquas, implicações em si próprio ou nos seus descendentes, e as ressonâncias práticas de uma doutrina ou de formas irresponsáveis de cultura niilista. O que vem demonstrar-nos que o processo pelo qual uma concepção da vida entra gradualmente a informar os diferentes órgãos de uma cultura, não é constante porque obedece às contingências variáveis da história… (Leonel Franca 60 e 61) O escol social, muitas vezes escória, e «a alma da massa, penetra-lhe toda a extensão; vive em continuidade com ela e transforma-a insensivelmente como fermento». Assim, paulatinamente, as instituições familiares, sociais e culturais vão experimentando as influências dessas subreptícias formas de levar a água ao seu moinho, apodrecer para destruir e sobre os escombros construir à sua imagem e semelhança a sociedade que premeditaram. Tantos produtos e meios de cultura destruidora de cultura pululando como cogumelos docemente mortais, filmes, teatros, revistas, livros, intervenções mais ou menos particulares, mais ou menos


O Senhor Presidente da Junta de Freguesia, Fernando Leão, agradece ao orador e aos demais presentes.

gerais, políticos os envergonhados e os desavergonhados das suas ideias publica e ostensivamente expressas e muitas outras formas mais ou menos encapuzadas, numa luta assumida e consertada de destruição da doutrina metafísica do homem e dos seus indispensáveis fundamentos espirituais que tem no Cristianismo o seu principal suporte e fora do qual o homem dificilmente conservará o segredo da sua força e a paz da sua felicidade. Por isso de todas as formas intencionalmente fomentando a ridicularização da incómoda Igreja Cristã. Pode o cavalo morder o incómodo freio. Mas nele, por incómodo, está a sua salvação e do cavaleiro. E afinal foi a Igreja Cristã, com a sua cultura elevando da sociedade pagã do Império Romano a dignidade do Homem até à condição de filho de Deus. E foi ainda esta cultura cristã que nas invasões bárbaras salvou da derrocada e caos totais este mesmo Império e que como fermento o revitalizou humana e socialmente até nas suas estruturas administrativas. «O elemento capaz de introduzir entre duas culturas uma distinção desta natureza (distinção formal) é o que chamamos

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a concepção ético-metafísica do homem, da vida e dos seus supremos destinos, que a cultura do animal desconhece.» Que também os animais têm a sua cultura própria e quanta cultura o irracional não ensinam aos racionais! (Leonel Franca, 69) Se eu digo que no meu jardim faço cultura de rosas e lá se encontram urtigas, algo não está bem na cabeça do próprio ou na sub-reptícia maldade de qualquer perverso vizinho. Aproveitando-se da noite, veio o homem inimigo e semeou coisas contrárias. (Do Evangelho) Cultura que não promova desenvolvimento harmonioso dos povos, que não promova estados de segurança, de paz, de tranquilidade, de felicidade de viver e conviver ainda que dificuldades surjam, não será cultura de progresso, não é o jardim das rosas sonhado, mas das urtigas incómodas e detestáveis, de agressividade, de sofrimento, e de morte. Abram-se revistas, jornais, telejornais. Que felicidade poderá encontrar esta Humanidade quando as guerras pululam por todos os continentes e países criando gigantescas tragédias humanas?


E os Camicazes imprevistos em cada mercado, cada rua, cada transporte, cada estrada? E a bomba escondida num comboio, num mercado, numa estação? Mas que cultura promocional moderna é esta criando oceanos de insegurança, de angústia, de morte, e o sentimento de uma Humanidade em estado de naufrágio? «Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme e se indigne o céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno?» Lusíadas,I, 106

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Que cultura promocional da paz e da felicidade é esta, quando dezenas e dezenas de mortos, centenas e centenas de feridos, muitos em estado grave, diariamente chegam até nós embrulhados nos noticiários? Por esse mundo fora, em nações sem guerras declaradas uma ilusória paz esconde vulcões sociais e políticos prontos a explodir a todo momento criando hecatombes de vítimas inocentes, porque nos inocentes reside o lado mais trágico dessas mortíferas convulsões. Mas estas tempestades resultam de ventos semeados por essas formas de cultura com a aquiescência, por omissão, também dos próprios inocentes. Tantas escolas, tantos livros, tantos estudantes, tanta gente formada (?), tantas formas de aculturação, de saber, de conhecer, tanta técnica, tantos meios, tantas facilidades, tantas leis, tantos tribunais, e tanta doença, tanta pobreza, tanta insegurança, tanta morte, tanta polícia, tanta revolta, tantos ferrolhos, tantas fechaduras impotentes, tanta droga, tanta miséria, tanta violência, tanta destruição, tanto crime organizado, tantos gangs, tanto sangue, tantas lágrimas de inocentes, tanta exploração de gente indefesa. E quem pára para reflectir e se interrogar? Mas que cultura será esta com tudo isto à vista de toda a gente? Que cultura é esta capaz de promover o progresso dos Povos? E o tema proposto foi a «cultura factor de promoção, de desenvolvimento dos povos». 4. Cultura e Felicidade na Satisfação, resultante da promoção (171 e 339)

Estamos na terra. Um dado adquirido pela antropologia cultural aliada à geografia histórica leva à conclusão de que a marcha humana em todas as suas multímodas formas de relacionamento entre si, os vários grupos e o meio, ainda que anómalas, se fez sob o aspecto de felicidade e satisfação duradoiras, construtivas, por isso se diz «factor de promoção» e promoção é elevação, «…no sentido de desenvolvimento no conjunto das condições reais humanas socorrendose da confluência dos adjuvantes próprios e adequados». É da linguagem científica de toda a Europa. Assim o processo do progresso contém o sentido positivo, melhoria de uma escala de valores de qualquer coisa, embora tomado de forma absoluta, signifique sempre o das ciências e das técnicas. Mas sobretudo estas, as técnicas, comportam muito de cultura própria de cada meio na medida em que outra coisa as técnicas mais não são que ciência tornada pragmática, prática, consumível no sentido utilitário do termo. Estranho!?... Sendo o estado máximo de felicidade a cultura da paz, foi sempre a guerra forma de cultura perversa geradora de desenvolvimento no campo do saber e da técnica, fazendo jus ao princípio de Lamarck, que explica o desenvolvimento melhorativo da humanidade na «struggle for life», a luta pela sobrevivência, e no princípio romano «intelectus apertatus discurrit». Sempre, em caso de vida ou de morte impera a lei da sobrevivência, se não há inventa-se, há que se desenrascar. E aí vem o progresso na medicina, transportes, ordenamentos urbanos, engenharias, descobertas impensáveis, testes por sua vez geradores de novos inventos assentes nas experiências necessárias ainda que perversas. É nesses momentos lamarkianos que os laboratórios de toda a espécie se transformam em formigueiros agitados de pesquisas. A consciência instintiva da sobrevivência suplantando o adversário geram impensáveis forças, estranhas formas de trabalho e o aparecimento de novas formas dessa mesma sobrevivência que, terminados os conflitos bélicos, se reconformam à sua utilidade no bem-estar da sociedade. Espectacular a aviação e a 1ª e a 2ª guerra mundial. O sistemas de segurança na detecção e defesa do inimigo aplicado hoje aos assaltantes, ressuscitando as hordas


medievais especializadas no saque de castelos, aldeias e cidades a par de avanços de autêntico e verdadeiro Renascimento à sombra dos conventos promotores dos geniais monumentos de arquitectura por toda a Europa, expressão de uma cultura buscando o divino. E de tal sorte que perante esses etéreos monumentos se fica extasiado por tanta beleza de ritmo, harmonia, leveza e encanto de pessoas e de objectos. A arte faz mais que dar às coisas individualidade e depois perfeição (que é a beleza), «dá-lhe a graça, que as torna amáveis, fazendo com que pareçam amar.» (Schelling). Mas isto é cultura, expressão estética do conhecimento que a estética coloca ao alcance de todos, trazendo mais encanto à Vida. Porque assim, «A vida não me decepcionou. Pelo contrário, de ano para ano a acho mais rica, mais desejável, mais misteriosa, a partir do dia em que me ocorreu este pensamento – que a vida podia ser uma experiência daquele que procura o conhecimento» Nietszche: Mas isto é Cultura, experiência e hermenêutica do saber. As leis de Keppler, a mecânica de Galileu, o sistema circulatório de Harvey, a geometria de Descartes, a geologia de Stenon, a astronomia de Newton, e tantos outros, partem do seu mundo fechado e lançam-se na aventura, a si e à Humanidade, projectando-se num universo infinito e abrem novos mundos da Cultura e à Cultura centrados na industrialização, por sua vez passando por renovadas formas de aproveitamento das energias ao serviço da competitividade gerando cortejos de terríveis contrastes em todos os domínios da expressão da vida económico-social. Desde os finais do século XVIII aos finais do século XIX, na era da industrialização mecanizada, os milhares de pequenosgrandes inventos melhorando a produção e os preços, produtos mais baratos, universalizando o seu consumo, criando gigantescos centros fabris, exigindo mais transportes de aporte e transporte. Os centros de exploração das matériasprimas. Euforia geral. Sim. Mas. Sob esta cultura um novo mundo feito de escravos surgia ressuscitando os Impérios Antigos, com particular relevância o Romano.

Milhares de famílias apinhadas em abarracamentos nas periferias industriais presas da fome e da vérmina, abandonados os doces lares e os saudosos campos. Mulheres, crianças, velhos, doentes, doentes mentais. Cada vez mais numerosos, cada vez mais sobrantes da máquina aperfeiçoada. Cultura industrial cuja ruptura económica e social teve o seu epicentro em 1845. Quanto não havia a explorar num campo de cultura feita de vida de poucos à custa da vida de milhares. 5. Cultura, promoção e Paz A himalaite, as pedreiras do fresco Minho, a conquista de solo arável a famílias crescentes em reduzido espaço sobradas da emigração do Brasil principalmente. Explosivo barato, rural afinal aproveitado para a 1ª Grande guerra. No testamento o seu inventor declararia que as suas descobertas se destinavam à agricultura e outras actividades produtivas para criar condições de melhoria da vida dos lavradores e gente humilde. «Quis trabalhar para ajudar a melhorar a sorte do povo.» A energia atómica, os baixos preços energéticos, as facilidades para uma humanidade com energia ao seu alcance reduzindo preços e encontrando outras respostas para a sua cultura de bem-estar. Não pode dissociar-se do pesadelo e arrependimento de Eineststein e da tragédia de Hiroshima e Nagasaki. E este resultado de um momento de cultura continua hoje como espada de Dâmocles sobre o pescoço da Humanidade. Será lugar demasiado comum lembrar que o destino, a preocupação, a acção de cada Homem na terra é a felicidade e a sabedoria. Desde o berço à tumba vive sob a aspiração da felicidade. Mas que felicidade? Esta começa e acaba por ocupar e preocupar todas as escolas de filosofia. E a mais saliente feição da felicidade é a paz. Mas que paz? A paz do granito e do cadáver? A dilatação de todas as forças de um ser que vive, que sente, que pensa? Anormal o sentimento da solidão como forma normal de existência. Razão por que os homens desde os tempos primitivos, no seu processo de humanização, fundam cidades, constituem sociedades, fazem reuniões, concorrem aos passeios, sustentam ligações afectivas entre si, as quais foram aperfeiçoando pelos tempos fora de modo a criar condições ao desenvolvimento e conservação do amor, ao

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qual Platão, o grande filósofo do amor, não hesitou em chamar entusiasmo e delírio ensinado pelos deuses. Nasceram assim formas de cultura, ou formas de estar no mundo e de o transformar à sua imagem e semelhança agindo e reagindo numa espécie de diálogo dialéctico e à vez um sobre o outro em obediência a leis próprias. Este o processo de criação do complexo que define a Cultura como envolvendo, «ao mesmo tempo, ciências, crenças, artes, ética, leis, costumes e quaisquer outras faculdades ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de qualquer sociedade», (Edward B. Tylor) ou mais simplesmente, «o conjunto das tradições sociais.» (Wisseler) O mesmo é dizer, «ideias, sabedoria, atitudes, técnicas, equipamento material, padrões de comportamento, literatura oral, danças, música, crenças mágicas e religiosas que caracterizam qualquer sociedade e constituem o seu património social.» E tudo sob o aspecto de Paz e Felicidade. Mas será que se é mais feliz e se vive mais em paz? Olhemos todo este mundo que nos rodeia, e até o nosso mundo, partindo até do micro-universo da família. 6. Cultura e tempos modernos Será a cultura moderna cultura ou contracultura? Pertinente a interrogação à luz das reflexões de Heidegger e de Husserl. Vivemos rodeados de uma cultura marcada fundamentalmente pela «angústia» cujos fenómenos se não podem esconder nem negar. Dir-nos-íamos mergulhados na cultura da precariedade sua geradora. Vive-se cada vez mais de anti-depressivos sob a muleta do psicólogo, do neurologista, do psiquiatra. O corrupio que por aí vai para a cultura astral de forma inconsequente, irracional panaceia para essas angústias, a par da cultura do bruxo, do vidente, da seita. Sintomas de crise profunda. Da empáfia de tanta racionalidade se acaba a rastejar de irracionalidades. Não apenas a gentinha inóspita. Altos catedráticos. As flores do jardim têm vindo a cortá-las o homem nocturno e foi deixando abrolhos. É certo que os astros «conduzem mas não obrigam», e que «Guiam aqueles que neles confiam, mas puxam os outros pelos cabelos». (Séneca).

As seitas de todas as formas e origens pressentindo clientela fácil nestes perdidos de si próprios enxameiam as grandes urbes; o satanismo e os exoterismos lançam-se na aventura de arrebanhar. O suicídio é remédio que tomam as sociedades demasiado fartas de cultura de matéria e vazias de cultura do espírito. E não se pode dizer que sejam sociedades incultas. O contraste do africano de rosto impressionantemente sereno, morrendo de fome e de carências mil, que espera a morte na colheita. Como possível a cultura da fartura se desfaça do mais precioso bem, fonte de todos os bens, produzindo o absurdo do suicídio enquanto a miséria espera que o facto naturalmente se consuma. Como é possível que no centro de selvas grupos de negros sem escolas nem conservatórios se exprimam tão harmoniosamente sem maestros, como não conseguem europeus altamente escolarizados? 7. A cultura do abismo do edonismo desenfreado dos canais televisivos cada vez mais desintéricos na intencional apologia descarada de aberrações e monstruosidades; a exploração por todas as formas, o tráfico de crianças e de mulheres em redes organizadas ressuscitando a pior das escravaturas em pleno século XXI que se reclama de avançado, de muita cultura, muito civilizado, da droga, do crime organizado entregue e prisioneiro de máfias assustadoras. Uma vez mais entre os grandes responsáveis, é da História, pela ruína de grandes impérios, e grandes convulsões sociais. Estas manchas negras alastram cada vez mais pelos continentes, nações e províncias, como polvo estende os seus tentáculos prendendo. Cada indivíduo, cada sociedade colhe do que semeia. E raptos em cadeia, pedofilia, assassinatos, assaltos em pleno dia? E a angústia de nem foragido no próprio lar poder usufruir da tranquilidade da segurança? Mas como compreender a situação se Cultura que se preza de cultura humana gera paz, tranquilidade, transita de lado para lado sem perigo de vida e seguro dos seus bens, deixando as portas abertas? Esta a cultura de paz e felicidade? Na terra onde vivemos, de noite e de dia, os carros, os armazéns, as casas, os cafés, e os mesmos de tempos a tempos gritam «agarra que é ladrão». E aí está a cultura do alarme nesta cultura que quanto mais polícia, mais insegurança, e quanto mais meios e bombeiros mais incêndios num país mais em


cinzas que de verde o despiram e de negro o vestiram. Tanta técnica, tanta escola, tantos «formados», tanto bem-falante, tanto livro, tantas acções culturais, tantos simpósios. Como tanto cada vez mais vai gerando neste nosso mundo tanto cada vez menos? Será que à moderna cultura lhe falece a alma da educação para os Valores? Que Valores? «Vamos à caça das nossas recordações quando estas nos escapam... Mesmo no inconsciente todo o pensamento está associado ao seu contrário» (Demócrito). Há três dezenas de anos, a tranquilidade de Lisboa, a aldeia grande que era o Porto. Com maior força de razão as nossas cidades, vilas e aldeias suburbanas. A nossa terra, por à beira das estradas que se postassem as casas, dormiam a sono solto de trabalho as noites de portas sem fechadura e tudo ficava ao luar, e nada desaparecia. Nesses não recuados tempos, crianças, meninas, senhoras, toda a minha santa gente vencia distâncias, a qualquer hora do dia atravessava pinhais e pinhais, tranquilos e nunca se ouviu dizer, a mais pequenina coisa preocupante. Hoje? Nem Escolas, nem casas, nem igrejas escapam à rapina. E esta pacífica Feira, até em pleno dia? Hoje, volvidos escassos trinta anos, até as mais inóspitas aldeias, os mais simples concidadãos, que segurança? Assaltos, mortes, violências. E vem surgindo na felicidade da paz e da liberdade hipotecadas por um prato de lentilhas. E vem surgindo a evocação da «Fábula do sapateiro pobre» devolvendo a bolsa da discórdia familiar, saudoso da paz da sua pobreza e ainda a do «Rato magro» fugindo para o seu campo pobre, rico de paz e segurança, enquanto o «rato gordo» servia de festim ao gato nocturno. E aumentou a cultura, diz a política. Que povo inculto de antigamente que nem roubar e assaltar sabia! Povo que me dizia «vai-te ganho que me dás perda.» E aqui entra o senso do economista que não cruza os braços mas pesa perdas e ganhos e muda racionalmente se perde. Será cultura de felicidade esta cultura geradora de «cuidados» aprisionando o pobre, o fraco, o indefeso, a criança, a jovem, o idoso, nas suas pessoas e nos seus bens? Uma cultura que aprisiona a virtude e deixa livre o crime e o deboche, em que a justiça prática vem reflectindo cada

vez mais a moldagem das leis, já de si produto das culturas correntes, às culturas dos que as aplicam? E vai-se gerando e instalando uma cultura que faz questionar seriamente sobre que decisão deliberar sobre como impedir que muitos responsáveis sejam presas fáceis de alguns agentes de angústia, de cuidado e de terror. Quase sem dar-se por isso, esta «cultura» tem um particular, é que aponta «Nós não queremos, mas queremos fazer, e se nós quiséssemos querer, quereríamos querer, e assim sucessivamente até ao infinito», o mesmo é dizer sem chegarmos a uma conclusão término da desgraça desencadeada. Leibnitz. «… é em vão que se procura longe a felicidade, quando se olvida o seu cultivo, em si mesmo, a sua cultura, porque é inútil vir do exterior, se não encontrar dentro uma alma pronta a saboreá-la» (Rousseau). É preciso ter-se consciência disso, no sentido de notar as coisas, vê-las, e para isso há que conhecer, ter cultura adquirida na aprendizagem, pela simples razão de que ninguém vê o que desconhece, nem deseja o que não sabe. Não se sabe, aí se não vê. Pode saber-se muito de muita coisa, mas ignorar o imediatamente necessário e salvador. Passeava pobre pescador em frágil barco, rico e sábio turista em ameno lago. Paisagem deslumbrante. O turista ia-lhe atirando à cara a sua ignorância de terras e ciências «o senhor perdeu quase toda a sua vida». Surge repentina tempestade. Não consegue o pescador segurar o barco. Perdida a esperança de o aguentar e na iminência do naufrágio dirige-se ao companheiro: «Senhor, sabe nadar»? - «Não.» «Então perdeu toda a sua vida, adeus.» Este é o nosso tempo da nossa Cultura. Será racional a conclusão sombria que é feliz quem se resigna, como que furtivamente, a uma vida de negrura «nas páginas brancas da História»?. (Hegel). É certo que Nietzsche e mesmo Rimbaud consideram o desejo da felicidade uma fatalidade, «o seu dente cruel». Mas também verdade é que a felicidade saboreia-se, não se ensina, e sobretudo cultiva-se como um jardim de flores com atenção às ervas daninhas mais que muitas sem esforço, de um dia para o outro.

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CONCLUSÃO Senhoras e senhores ouvintes. Obrigado pela vossa amável atenção. Em nome do respeito por ela, impõe-se o fim desta digressão pelo «nosso» mundo da Cultura promotora do Progresso dos Povos. Cada termo sublinhado dava para muitas conferências. Procurámos, reflexivamente, apontar, no possível, alguns postais, luzes e sombras, alturas e abismos dos termos da prática do tema proposto. Abordámos o assunto com os «nossos olhos» feitos de tempo, de experiência prática e livresca, do realismo e da séria reflexão, da objectividade e da nossa inelutável subjectividade, no sentido de que não podemos descartar-nos das nossas impressões digitais, elas próprias carregadas da nossa cultura individual, no mais lato sentido do termo. Sabemos que os interesses particulares e mesquinhos hão-de tentar sempre sobrepor-se aos mais sagrados e universais mercê da cultura do egoísmo. Os Estados Unidos, não obstante conhecerem os gravíssimos perigos para si próprios e para a Humanidade inteira, não assinaram Kioto, reeditando o macaco de mão cheia de milho que não larga, acabando por perecer, vítima da sua avidez.

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Nesta exposição na abertura desta Semana Cultural de Santa Maria da Feira sobre Cultura e desenvolvimento gerador de felicidade dos povos, mais que duas ideias fundamentais, ficam duas grandes forças da Cultura promotora do progresso: «A Liberdade que responsabiliza a acção de cada um em particular, o Amor que produz a solidariedade de todos». Mas esta Liberdade responsável e este Amor solidário, que tem presidido à história dos homens de todos os séculos foram edificados e conservados solidamente para o tempo e para a eternidade sobre a Virtude que hoje já quase ninguém sabe o que seja e muito menos dela fala e, pior ainda, se envergonha de pronunciar. Mas ainda é ela que sustenta a cultura que faz com que este «… mundo moderno que morreria do que afirma, continue a viver do que nega.» (Leonel Franca, «A Crise do Mundo Moderno») Queiramos ou não, «Só as suas obras são imortais. A morte passa por elas desarmada, o tempo inclina-lhe, reverente, a fronte encanecida pelo gelo dos séculos e a posteridade recebe-as como única herança que lhe pertence, porque somente aceita o que escapa à lima do tempo e à foice da morte.» (Malhão, 145). Antes Cultura de prisões que libertam do que liberdades que aprisionam. Esta a Cultura verdadeiramente garantia de toda a Liberdade, geradora da Paz e promotora da sólida Felicidade em todos os Povos. Auditório da Junta de Freguesia, Feira, 25 de Maio de 2007


Dr. António Toscano, para mim e sempre, Toninho Toscano: Serafim Guimarães* Viemos aqui celebrar a amizade, num dia de festa. Para lembrar e enfatizar essa forma privilegiada de comunicação e de encontro entre pessoas, esse sentimento que, normalmente, não se confessa, mas que se exprime vivendo-o e que continua a ser um dos grandes valores do mundo e a ser possível, apesar das contínuas e surpreendentes crises no crédito de quase tudo; apesar de alguns falsos optimismos e de todas as descrenças. Pelo meu lado, disse que sim a um convite honroso, não por ser cronista para registar e comentar uma ocorrência feliz, nem por ser biógrafo para acrescentar, por escrito, mais uma página a um belíssimo curriculum, que, embora praticamente feito e vivido fora da Feira, é de um feirense e, por isso, nos pertence e honra. Estou aqui apenas porque sou amigo, um amigo antigo, protagonista privilegiado de uma amizade natural, fácil, educada, muito verdadeira e que é do melhor que dois homens do norte têm para partilhar! Tem graça que o Toninho Toscano e eu nunca convivemos muito nem, aparentemente, com grande intimidade. Tenho pensado nas razões que deram profundidade ao nosso * Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

relacionamento, porque ele foi e é tão grato e ao mesmo tempo tão particular nas suas feições que se torna difícil de interpretar. É tão especial que até, também, nunca se fundamentou nem nunca exigiu qualquer comunhão de valores, qualquer similitude confessional, qualquer convergência de interesses ou qualquer tipo de coincidência de opiniões. Se alguma identidade existe nos fundamentos que a sustentam, e existe, foi por espontaneidade do acaso! A lógica da nossa amizade advém de uma pura consanguinidade de espírito! No criar de uma amizade, como no processo de educação dos filhos não é a frequência nem a duração, mas a qualidade da presença que dita o sucesso. Não é preciso estar muito, mas estar bem. Com o Toninho Toscano estive sempre bem. E tem sido fácil! Se eu tivesse de definir o Toninho Toscano numa frase curta, eu diria: É um cidadão com todos os atributos de uma cidadania limpa: geneticamente são; culturalmente civilizado; socialmente exemplar. Por falta sua nunca nenhuma amizade correrá riscos. As invejas, as emulações, as deslealdades, as simulações, todas essas fraquezas da inteligência e preguiças do carácter, de que se nutrem os amuos e se abrem as portas às zangas não fazem parte do seu dicionário de atitudes.

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Fado: Carlos Carranca, Luis Gois, Teotónio Xavier, Carlos Couceiro e António Toscano.

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Em alguns momentos daquele cansaço feliz que a gestão da teia de relações com filhos e netos, tecida no dia a dia, implica, a minha Mulher costuma dizer: custa muito ser família. É tão dura como doce a sinceridade desta expressão. Mas é tão verdadeira! Porque manter tanta heterogeneidade em equilíbrio saudável não é tarefa fácil.

Os meus contactos com o Dr. António Toscano, com o Toninho Toscano, não têm sido muitos frequentes nem muito demorados, mas têm tido sempre a autenticidade daquilo que nasce puro e não se estraga no caminho – e quase só por mérito dele. Assim, sem retrocessos nem hesitações, o tempo foi gerando uma empatia e uma amizade que, sendo já antiga e muito grande, não é para ficar por aqui.

Ter amigos, gerir amizades, tem muito de semelhante e às vezes é difícil. Não acontece de graça. Tem preço.

Vivo com expectativa e grande esperança a decisão que o há-de trazer a esta linda terra, mais vezes e com mais demora.

Com o Toninho Toscano não foi, nem é assim.

“Parabens a você”


A amizade também se nutre. E estes actos funcionam como uma estação de serviço, onde se abastecem os depósitos da admiração, do afecto, da ternura. Por isso aqui estamos, como aqui já estivemos e como aqui estaremos sempre que uma data, um acto, uma notícia, um triunfo marquem um tempo para deixar memória na história de um amigo. O que é que temos de comum? Somos dois feirenses de raízes, de memórias e de brios. Ambos nascemos nesta terra cheia de história e de gente que preza a sua origem. Mas nem sempre a história ou a nobreza das terras chega para que nelas se possa dar resposta a tudo. E a Vila da Feira doutros tempos estava longe da Santa Maria da Feira dos nossos dias; e a história recorreu à geografia. Nesses já recuados tempos dos anos quarenta do século passado, Espinho tinha aquilo que a Feira não nos podia oferecer: um estabelecimento de ensino onde se podia acrescentar alguma coisa ao que a escola primária, aqui, nos tinha dado. E foi o Colégio de S. Luís de Espinho a estação mais próxima onde, para esse fim, parava o Vouguinha. Foi o Vouguinha que, com os seus sufocos e baloiços, durante anos, nos levou e trouxe e foi no Colégio de S. Luís, sob o olhar controlador do mestre Américo – o Môcho – esse perfeito – em nenhuma forma verbal mais que perfeito – , e sob os auspícios do

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A intervenção de J. M. Cardoso da Costa

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Padre Costa, do Dr. Pinto Correia, do Dr. Neves – António Nunes das Neves –, do Dr. Marmelo e Silva, só para apontar alguns dos mais sonantes e marcantes nomes desse tempo – e marcantes no duplo significado da palavra (deixaram-nos marcas nos espíritos e nos corpos), que lá fomos dando os segundos passos. Estávamos em 1944-45. Mais de sessenta anos já passaram e alguma poeira caíu sobre pessoas e factos – mas o que a apaga o pormenor realça o essencial!

Nesse tempo o arcaboiço cultural da Feira passava muito por Espinho. As salas do seu Colégio eram invadidas, todos os dias, por um Mundo de gente ido dos nossos lados: o Zé Luís, os dois Toscanos, os Gaios e os Troviscos de Paços de Brandão, o Terrinha, o Zé Valente, o Plácido, os meus dois primos, o Serafim e o Manuel, e vários outros mais que, de S. João de Ver a Oleiros, iam enchendo as duas carruagens da formação nos dias normais da semana.

Fado: Carlos Carranca, Teotónio Xavier, calos Couceiro e António Toscano.


Aguardando os fados.

Foi, assim, fora da Feira, que se deu o nosso primeiro encontro de que me lembro. Mas, nesta saída do berço, foi só o ar que mudou. Nunca nos desenterrámos do chão onde fomos plantados, porque nunca deixámos morrer a criança que fomos. Estou a ver o Toninho Toscano sentado num banco do Vouguinha encostado à janela, de costas voltadas para um letreiro em que se lia: os briquetes Pijão: ardem bem, duram muito e custam pouco! E, do outro lado, as canastras vazias das segundas-feiras que, em rimas e em equilíbrio instável nas estreitas prateleiras, nos ameaçavam em cada arranque e em cada travagem, atitudes bruscas que a máquina número 8 transmitia às pesadas carruagens do comboio, nesse dia da semana.

futebol que envolviam a Siol e a Fosforeira. O Terrinha faltava às aulas para assistir a esses prodigiosos jogos entre essas prestigiadas equipas. São imagens que a memória se recusa a descartar, tão natural e vivamente chegaram à consciência e que, hoje, apesar de já esbatidas, aí se mantêm a contribuir para a conformação da estrutura mental daquilo que somos. As crianças grandes que queremos continuar a ser, eram pequenas, nessa altura. Eu tinha 11-12 anos e o Toninho Toscano cerca de dois mais.

Nesses preciosos anos, o Vouguinha era a grande casa comum que nos dava abrigo nas mais saborosas horas do dia. Quem é que se não lembra desses momentos dourados em que o Terrinha discorria sobre as suas divergências com o latim do Padre Lírio ou fazia as suas criteriosas análises futebolísticas. O refinamento desportivo do Waldemar da Silva Terra era de tal ordem que as disputas entre os Portos e os Benficas eram ninharias para ignorantes desportivos. Importantes eram os pormenores dos encontros dos campeonatos corporativos de Fado: Serafim Guimarães, Teotónio Xavier, Carlos Couceiro e António Toscano.

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112 Silêncio...

Então, o que me ligava ao Toninho Toscano era a proximidade respeitosa de um miúdo, que olhava para os mais velhos com aquele misto de receio, pudor e gratidão pelo favor de uma atenção desejada. É que dois anos nessa idade distanciam muito. São dois anos que fazem a ronda pelos mistérios da adolescência. Depois de Espinho, foram muito diferentes os nossos itinerários: Coimbra, formatura em direito e depois Fundação Gulbenkian e Lisboa, por um lado; Porto, formatura em Medicina, Universidade, por outro. Mas, apesar das fronteiras dos nossos horizontes passarem a ser outras e andarmos por longe, nunca a verdade do sim afectuoso do primeiro encontro sofreu com essas lonjuras. Até que, mais tarde, veio a canção de Coimbra e com ela um reencontro, ou melhor o encontro verdadeiro, profundo e descuidado, reconhecidamente recíproco, sem cerimónias, sem pés atrás, a valer para sempre. Não sei se é nobre se é pobre o conteúdo artístico da canção coimbrã que, de forma tão imperativa contribuiu para a nossa aproximação e a anima. António Toscano e Artur Brandão


Manuel Tavares, Luis Gois. Alberto Camboa, Joaquim Pinto e Vitor Fontes.

Sei que não interessa pedir à razão ou à ciência para decidir nestas matérias! E peço aos críticos que se preocupem com outras coisas! Sei e para mim chega, que a canção de Coimbra vá buscar perfume aos mais antigos redutos da natureza lusitana, exprima da forma mais luminosa e próxima a essência da alma portuguesa, e se confunda com o mais puro lirismo da poesia escrita, em prosa ou em verso e vertida, com paixão, nos sons das guitarras e das vozes. Não sei separar o fado de Coimbra da saudade aguda da ausência poética agrária e pastoril de Miguel Torga, da memória do lirismo satírico e boémio de Augusto Gil, ou

O ambiente.

da recordação sempre distante e sempre aqui da tristeza magoada dos versos de António Nobre. Sei que o fado de Coimbra nos lembra disso e nos deleita. Sei que o Toninho Toscano é um dos mais destacados representantes dessa entidade real e mítica, quer como criador, quer como intérprete. A ele devemos muitos dos mais belos momentos traduzidos nessa língua sublime que o nosso sentimento tão bem entende. Sei que me sinto ligado a esse ramalhete musical de que o Toninho faz parte e que tem no Luís Góes, no Carlos Couceiro, no Carlos Carrancas outros aristocratas do espírito, príncipes da sensibilidade e da cultura, que trazem para o

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114 António Toscano e Alfredo Henriques.

Mundo que também constroem, a riqueza do seu humanismo activo, veículos de beleza que mostram, a cada um, o Apolo que busca. O Toninho Toscano é, assim, sem dar por isso, agente dessa capacidade que não se aprende, autor de ecos em nós de encantamentos distantes, como diz Pessoa. Agente dessa forma de poesia que ele sonha e nos agita, que ele cria e nos seduz, que ele exprime e nos embala. E é lindo saber, e a Feira não o esquece, que as raízes que o alimentam ainda cá estão: À minha Vila da Feira Uma prenda eu queria dar Era arranjar a maneira De levá-la a ver o mar É linda a letra, é soberba a música, é perfeita a expressão que as interpreta. Mas o Toninho Toscano não é só isto. Eu não tenho, nem posso ter a veleidade de pretender apresentar, aqui, a biografia do nosso querido homenageado.

Limitei-me a articular umas notas que, apesar do esforço para as ligar e harmonizar, continuaram soltas e vadias. E o que saiu foi uma rapsódia de momentos e sentimentos que se situa muito aquém da melodia justa e com compasso certo que o momento exigia e a pessoa merece. Mas no horizonte que a nossa memória abrange e o sentimento regista, o que conta não é a altura do planalto por mais elevado que seja, e elevado é, mas os picos que dele se destacam, que se veêm de longe, que distinguem e que dão nome à montanha. Eu não sei como agradecer a Deus o favor das amizades como esta! Sei, finalmente, Toninho, que a íntima humanidade que te atravessa e nos atinge, tem, a envolvê-la e a coroá-la o perfume da Clarisse e dos teus filhos. Santa Maria da Feira, 29 de Setembro de 2007


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Foram condiscípulos há 60 anos: Celestino Portela, Serafim Guimarães, Artur Brandão, António Toscano, António Sousa Lamas e J. M. Cardoso da Costa.

Carlos Carranca e Luis Gois - Trova da Vila da Feira.


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As felicitaçþes da esposa, Maria Clarisse.


Na Feira, até completar, aos 10 anos, a instrução primária, na Escola do Conde de Ferreira, que dista da, outrora, minha velha casa do largo das Eiras, uns escassos 200 metros. Por aquele nível de instrução se quedavam então as possibilidades na terra. Depois, 7 anos, em Espinho, para frequentar o curso liceal no Colégio de S. Luiz, que por mérito e excepcional dedicação dos seus directores, foi durante muitos anos um importante pólo regional de formação da juventude estudantil. Em 1950 rumei a Coimbra, de onde saí, terminado o Direito, para Lisboa, em 60, com alguns anos, pelo meio, de serviço militar, dois deles passados em Goa e em Diu.

Meus amigos Convívios no Clube Feirense Associação Cultural/Liga dos Amigos da Feira já tiveram, certamente, motivos relevantes. Neste, por iniciativa honrosa dos seus promotores, a quem fico grato, a particularidade é tão-só os meus 75 anos. A situação deixa-me embaraçado... mas contente: valha como pretexto para rever amigos, viver a alegria do momento e trocarmos afinal votos de felicidades. Por detrás das palavras, em que não queria alongar-me e que podem não traduzir fielmente o que me vai na alma, há a emoção, há o pensamento. A emoção pela data e pelos afectos que lhe quisestes associar com a vossa presença amiga, que, desde já, agradeço, a todos e a cada um de vós, aos da casa e aos que aqui se deslocaram; a todos, por igual, sem distinguir nomes, reconhecendo e respeitando, naturalmente, as singularidades próprias. O pensamento, esse vai buscar na memória os rastos de um percurso de vida que fluiu – ora mais branda ora mais tumultuosa, como é humano que aconteça – ao longo destes três quarteirões de anos.

A vivência da academia coimbrã perfez a minha formação, apurando o sentido da liberdade, da solidariedade, da responsabilidade, enfim, de tudo o que aprofunda no homem a cidadania. Por largo tempo vivi em Lisboa com os meus Pais. Advoguei pouco; trabalhei na TAP e depois na Fundação Calouste Gulbenkian, durante 26 anos, até 1995. Finalmente, de há 20 anos para cá, fixei a residência da família em Cascais. Daí saio em férias ora para Tavira, terra da minha mulher, ora, menos do que a minha natureza reclama, para esta minha pátria. Eis, em suma, o que foi até ao presente a vida deste feirense. Depois de referir tantas estadas e de pensar nas incontáveis peripécias por onde passei e nas inúmeras digressões pelo país e por outras partes de diversos continentes, com a viola às costas e a canção de Coimbra dentro dela – muitas vezes em actividades da minha Associação dos Antigos Estudantes de Coimbra em Lisboa, ou por sua iniciativa – já não tenho a certeza de ter só 75 anos, ou antes, como os patriarcas bíblicos, séculos de existência. Todavia, os tempos da Feira, na minha infância e depois durante os longos períodos de férias aí passados na casa da minha avó materna com os meus pais, irmão e tias, foram –

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sinto-o agora – os que mais estrutural e definitivamente me marcaram, ligando-me indelevelmente à terra, à rusticidade. A Feira era, então, rural. Espinho e Coimbra deixaram-me fantásticas recordações e amizades que perduram, para além do que aí aprendi, e foi muito. A Feira foi, porém, o cenário único das brincadeiras inocentes e das travessuras que só podem ocorrer na primeira idade; tempo em que pude desfrutar do insubstituível amor e ternura dos meus pais, e em que podia encontrar abrigo franco e carinhoso nos meus familiares mais próximos, avós, tios e primos, atitude esta que permanece naqueles, já poucos, que à vida continuam a dizer presente.

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A meninice correu sem cuidados no convívio familiar e dos companheiros de escola; cada dia era uma festa, a alegria andava à solta. Não a ensombravam os insucessos de alguns episódios, como quando, a jogar à pinchadeira (moeda antiga a que dávamos a forma côncava), perdi todos os botões do calção, o que me obrigou a entrar em casa, à socapa; ou quando, com os companheiros, fomos todos corridos pelo feitor de um pomar onde andávamos às maçãs; ou quando deixei escapar, de uma armenha que fiz com varas de vime, um lindíssimo melro... melhor sorte teve que o de Guerra Junqueiro; ou ainda quando fiquei entalado pela cintura numa seteira do Castelo, onde, em noite pouco iluminada, quis entrar, para ouvir de perto uma serenata do nosso conterrâneo, o guitarrista Paulo de Sá, acompanhante em Coimbra de António Menano. Como são tão vívidas estas recordações, e tão próximo o que já é tão distante! Mas a Feira representou muito mais do que estas diversões e disso vim a tomar consciência já rapaz feito. Não vou – como o meu parente Vaz Ferreira – pôr fora de dúvida que “Aqui nasceu Portugal”, tese, contudo, recentemente abordada pelo historiador, e reconhecido medievalista, José Mattoso.

Certo é que a Feira se fez notar e cativava pelo civismo das suas gentes; pelo culto do respeito mútuo e da lealdade, e até da amizade mesmo entre aqueles que tinham posições ideológicas e políticas diferentes. Seja-me lícito referir a este propósito um feito paradigmático passado com meu avô, o velho Dr. Toscano, grande referência cívica do Concelho, como vem citado no jornal “República” que noticiou, em 09.09.58, a sua morte: por designação do seu amigo e contemporâneo em Coimbra, mais tarde Presidente da República, António José de Almeida, foi ele quem hasteou pela primeira vez na Câmara da Feira a bandeira da República; antes, porém, mandou enrolar a bandeira da Monarquia que, respeitosamente, fez chegar ao seu adversário político, Eduardo Vaz de Oliveira, seu primo. Sei que estou a exceder-me nas palavras, para o que peço a vossa paciência e compreensão. O meu propósito é, além de vos agradecer a oportunidade deste convívio, dar-me a conhecer e ao que me vai no íntimo. Elas têm como destinatários especiais os meus filhos, o António e o Manuel Bento, e a minha mulher, companheira que exemplarmente os tem apoiado na sua formação. São expressões últimas do que lhes queria dizer... e o tempo para mensagens vai-se-me encurtando. Colham delas o que servir à melhor percepção da sua identidade, aproveitando do passado o que for útil para o aperfeiçoamento da sua cidadania, paralelamente, e muitas vezes em contraponto, com o que se passa neste, para já incontornável, mundo globalizado, prosélito planetário convertido a um relativismo integral que faz tábua-rasa dos princípios e valores éticos. Um último pensamento e uma última palavra vão para aqueles nossos especiais livros de memórias, que não mais podemos consultar: os nossos entes queridos que já transpuseram a barreira da vida. Respeito pela sua memória, gratidão pelo seu legado. Seja-me relevado algum excesso de sentimentalismo, que penso ter parado no limiar da pieguice e do ridículo. Bem... basta de considerações e de passado. Reafirmo contudo que é nestas terras que, não obstante as vicissitudes


da vida, teimam em mergulhar e remoçam as minhas raízes; não nas minhas terras que já as não tenho, mas na Terra de Santa Maria, renovada por impulso daqueles que acharam por bem modernizá-la, dar-lhe feição urbana, e a que deram o nome de Santa Maria da Feira, onde me sinto um ramo já antigo mas reverdecido. E agora venha a festa, venha alegria, venham as canções; delas vão tomar conta os de há muito meus queridos companheiros. Outros, das mesmas lides, aqui não presentes, a quem me ligam iguais laços de afecto, recordo neste momento. Vão estar na guitarra o Carlos Couceiro e o Teotónio Xavier, na viola eu próprio, na poesia o Carlos Carranca, no canto o Carranca ainda e o mítico Luiz Goes, a quem os deuses, por artes que só eles têm, para seu proveito, mas nosso também, conservaram a sua esplendorosa voz, depois de fados adversos movidos, sem êxito, por deuses contrários, o terem ameaçado. O Serafim Guimarães há-de dar-nos a honra de nos ajudar nestas funções. E não sei se é caso de o Fernando Xavier fazer o mesmo. Celebremos, pois, a Vida e a Fraternidade que lhe dá sentido. A todos muito obrigado e... o pedido de silêncio enquanto correr a música e a poesia. António Simão Toscano 29 Set. 2007 119

Parabens a você... Para o menino Toninho, uma salva de palmas...


Fotografia de Flávia Pedrosa Reis*

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* É natural de S. João de Ver, mas reside em Santa Maria da Feira (Avenida Sá Carneiro). É estudante na Escola Secundária Artística Soares dos Reis, no Porto. Tem 6 anos de Formação Musical incluindo aulas de piano. Também tem estudos em Pintura e Desenho. Mas uma grande paixão sua é a fotografia. Participou na exposição de fotografia na galeria Servartes. Já viu publicada uma fotografia sua na revista Super Foto Prática. Tem colaborado em alguns trabalhos de montagens de montras.

(Foto obtida no interior do restaurante Rossio com Alma, em Santa Maria da Feira, onde surge uma inscrição com um poema de Anthero Monteiro, alusivo aquele espaço - ver texto na pág. 192.)


Itinerário da Vida de um Homem Comum** Manuel de Lima Bastos* Aprende-se em Aquilino Ribeiro que o mostajeiro é uma árvore da Beira Alta cujo fruto, o mostajo, amadurece com os frios e as neves do fim do ano, é pequenino como as cerejas e tem uma bonita côr vermelha dourada. Com licença de minha mulher, que sabe perfeitamente que os vínvulos do sangue são tão fortes como as amarras do amor, aqui trago aos meus filhos, Manuel Ângelo, Maria Manuel e Maria Vânia esta cestinha de fruta que amadurou quando, no tarde da vida, já me entraram os frios do inverno. Invocação dos Vivos Todos os imbecis estão convencidos que a história do seu trânsito pela terra daria pano para mangas, isto é, pelo menos para um romance ou um filme.

(e de que, vaidade das vaidades, não me arrependo salvo um que outro incidente de percurso) e também no pouco de bem que pratiquei. Não carrego morte de homem nem esfaqueei o próximo pelas costas. Tenho a presunção de pensar que nunca calquei o fraco para servir o forte, humilhar o desvalido para agradar ao poderoso ou sacrificar a consciência em troca de pecúnia apesar do ingrato ofício de advogado que exerci. Ofereço estas memórias em primeiro lugar a minha mulher Dália, companheira dos altos e baixos de quase cinquenta anos de vida partilhada pelo amor invariável que, mesmo nos meus desatinos, sempre me demonstrou; aos meus filhos Manuel Ângelo, Maria Manuel e Maria Vânia pelo mesmo amor e pela vida remediada mas decente que têm levado e que nunca me deram um desgosto sério; aos meus netos Eduardo Luís, Manuel Maria, Guilherme e Tomás, e mais algum que por aí venha, quatro machitos cada um bonito à sua maneira e que são a luz dos meus olhos.

Não é o caso. A razão que me levou a coligir memórias e alguns textos – poucos – que engendrei ao longo dos anos prende-se unicamente com o desejo de que a minha família saiba donde vem, conheça melhor quem sou no muito de errado que fiz

Finalmente, a meu irmão, Ângelo de Lima Bastos, sobrevivente como eu da família original, que me ajudou e corrigiu muitas lembranças e, com minha mulher, pode entender o que vou contar e, melhor ainda, o que não vou contar.

* Advogado. Devoto Aquiliniano ** N.R. - Este trabalho do nosso distinto colaborador é constituído por vários capítulos que serão publicados nos números seguintes.

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Entrada da Casa das Levadas. 122

In Memoriam dos Mortos A morte não me assusta particularmente mas penso nela. Recordo que o ditador Franco esteve quase um mês a agonizar e que as suas últimas palavras foram: “Nunca pensei que fosse tão difícil morrer”. Espero ter a sorte de adormecer pensando nos meus e atravessar as alpodras para a outra margem do rio Letes sem dar conta. Por outras palavras, aspiro a uma morte de primeira classe. Não sei o que me espera embora a minha razão cartesiana me diga que atingi o nihil; mas outra espécie de razão me diz que, se nada mais há, o transcurso do ser humano não faz grande sentido. Conta-se a história, que não sei se é verdadeira, dum jovem sacerdote secretário dum papa que, certo dia, ajoelhou aos pés do pontífice, beijou-lhe o anel de S. Pedro e disse soluçando: “- Santo Padre, tenho um grave problema, sinto que estou a perder a fé. Que hei-de fazer?” Respondeu o papa que de estúpido não tinha nada: “Finge!” Quer isto dizer que todos, mesmo os crentes assumidos, têm a sua crença temperada pela dúvida perante o mistério da existência duma outra vida. Que dizer de mim, pobre ser humano desprovido de grandes convicções neste particular? Lembro que Mestre Aquilino Ribeiro, em “Um Escritor Confessa-se”, afirmou quando, nos seus vinte e tal anos,

perdeu a fé que o que mais lhe doeu foi ter a certeza de que nunca mais veria a sua santa mãezinha e a sua querida primeira mulher, a alemã Greta Tiedemann. Por minha parte, declaro-me agnóstico – ou seja, em crise de conhecimento sobre a questão insolúvel, pelo menos para mim, da eternidade – mas aberto e na esperança de que, até ao último momento, os meus olhos divisem a luz. Estamos nisto mas não há dia nenhum que no meu teatro das ilusões não chame ao palco das memórias os mortos que me são mais queridos e cuja lembrança me visita a cada momento. Como não podia deixar de ser, começarei por invocar meu pai, homem íntegro duma bondade e paciência franciscanas que, sem grandes razões que não fossem as do coração, tinha um orgulho desmedido pelos filhos; minha mãe, mulher de poucas letras mas sábia da vida, trabalhadora infatigável da casa que por todos zelava e a tudo provia. Ambos nos deixaram o exemplo de fazer aos outros o que queremos que nos façam, a par do afecto inquebrantável. Minha irmã, estudante de Germânicas em Coimbra, falecida aos dezanove anos duma tuberculose ganglionar, doença de que na época já ninguém morria mas que foi vítima duma clara negligência médica, exactamente no ano em que casei, 1964. A mulher de meu irmão, Maria Clara, falecida com cinquenta e tal anos vítima de doença implacável, com quem entretive relações de amizade e cordialidade jamais empanadas pela mais leve questiúncula. Tenho até a intuição de que foi muito mais benevolente e compreensiva com as loucuras dos meus verdes anos do que o meu próprio irmão. As avós de minha mulher, de quem era a neta adorada, e que para mim transferiram a mesma amizade e carinho até antes de casarmos; e meus sogros, que praticamente nos criaram os filhos mais velhos e a quem retribuímos tendo-os na nossa companhia até ao fim dos seus dias. Agora alguns amigos: o Dr. Luís Clemente, director da Caixa Geral de Depósitos, cujo filho foi a bem dizer criado com os meus, convivendo quase todos os fins de semana e fazendo férias juntos durante cerca de trinta anos. Eu tenho um irmão a quem quero muito. Pois não queria menos ao Dr. Luís Clemente a quem, a par da amizade, devo a bondade de aturar pacientemente o meu génio assomadiço e irregular. O tio de minha mulher, Amílcar Borges do Amaral, árbitro das elegâncias das noites do Porto, sempre na sua invariável


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Os meus avós paternos, Quintino e Rosa, e os seus doze filhos.

pose britânica, e que na minha juventude – como diria Jorge Amado – me ensinou a pastorear a noite. Quero ainda recordar o meu amigo Manuel Pinto Ferreira Avelar que, como todos os homens verdadeiros, era capaz do melhor, do pior e de todas as delicadezas, de quem sou devedor de cuidados e atenções que provavelmente não retribuí como merecia. Finalmente o meu primeiro e grande amigo, companheiro de infância e de juventude, o Dr. Alcino da Silva Casimiro, com quem vivi as pequenas e grandes coisas da fase da vida que conforma para sempre a nossa maneira de ser e que, tendo sido um estudante medíocre e boémio, foi depois um médico excelente devido à queda para o ofício servida pelo dote de uma grande e arguta inteligência.

Toda esta gente e alguns outros – personagens menores – vivem na minha memória, sobem ao palco vestidos a preceito e vêm representar o seu papel na peça de teatro, meio drama, meio comédia, que foi a minha vida. Se pudesse, talvez emendasse algumas deixas mas nada de verdadeiramente importante. Quando o pano descer ninguém será chamado ao palco pelos aplausos do público. Não me recordo quem disse que viver é tão bom que seria capaz de viver para sempre neste planeta que, visto do espaço, é tão belo que somos levados a perguntar pelo seu criador. Eu também seria mesmo sabendo que incúria e a cupidez de uns tantos o vai conduzir à irremediável destruição.


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Os meus avós maternos, António José e Margarida, e os seus treze filhos.

Não sendo possível, e faltando apenas percorrer os últimos metros da corrida de fundo que é a vida, só posso concluir: viveu-se e é tudo.

Capítulo Primeiro Eu e a minha família Nasci na Casa das Levadas, lugar de Chão do Rio, freguesia de Fiães, concelho da Vila da Feira (que era cabeça

duma vasta região denominada “Terras de Santa Maria” a qual englobava vários outros concelhos) numa madrugada fria e chuvosa a 13 de Janeiro de 1940, hora de todo em todo inconveniente. Talvez devido a essa circunstância tornei-me, ao longo dos anos, num especialista em inconveniências com entradas e saídas do palco da vida a destempo. A segunda guerra mundial tinha começado alguns meses antes e, apesar do país ter assumido uma posição de neutralidade, a penúria e até a falta de bens essenciais impusera um regime de racionamento dispondo as famílias dum escasso número de senhas que permitiam adquirir


esses produtos. Essas senhas eram também transaccionadas no mercado negro por aqueles que, por portas travessas, tinham relações privilegiadas com os importantes do Estado Novo salazarista, sobretudo as que davam direito a adquirir combustíveis como o petróleo – fonte iluminante em muitas casas que ainda não dispunham de electricidade – e gasolina para a locomoção das viaturas. Disto me recordo por mais tarde me ter sido contado já que, ao contrário de Salvador Dali – louco genial que escreveu um livro relatando as suas memórias intra-uterinas – só conservo uma muito difusa memória embora, quando a guerra terminou, já tivesse quase seis anos de idade. Meu pai, Manuel António da Silva Bastos, também natural de Fiães, nascido a 23 de Janeiro de 1908, era médico (a ele dedicarei um capítulo destas memórias) e, em idade, meão de doze irmãos, sete senhoras (Palmira, Angelina, Amélia, Maria, Dália, Maria Amélia e Margarida) e cinco varões (Ângelo, meu pai, Arcanjo, Joaquim, que veio de África tuberculoso falecendo muito novo, e Flávio). Isto sem falar em dois ou três anjinhos que foram para o céu mal acabados de nascer e que lá estão a rezar ao Pai da vida pelos que cá ficaram. Como adiante melhor contarei, os nomes próprios Manuel e Ângelo eram nomes de tradição e culto na família, que meu pai deu aos dois filhos e à filha Maria Manuela e eu dei ao único filho que tenho e a que a minha filha mais velha também não escapou pois foi baptizada Maria Manuel. O seu filho mais velho seguiu a tradição com o nome ao contrário do da mãe, Manuel Maria. Meu avô paterno, Quintino Soares de Bastos, nasceu a 23 de Janeiro 1872 e morreu a 27 de Março de 1946 quando eu tinha seis anos de idade. Vendia vinhos Borges percorrendo os concelhos da Feira, Oliveira de Azeméis, Arouca e Castelo de Paiva montado no seu cavalo e parece que era um tunante de alto lá com ele. Pelo menos falava-se na família, à boca pequena, que entretinha relações não comerciais com várias fulanas, generosas das suas graças, pelas aldeolas que visitava nas viagens de negócios. Minha avó paterna, Rosa Pereira da Silva, a quem chamávamos “mãe Rosa”, nasceu a 14 de Fevereiro de 1878 e faleceu a 26 de Abril de 1966. Era uma mulher pequenina de olhos de um azul líquido de água marinha – que ainda aparecem em alguns bisnetos como nos da filha de meu irmão, Joana, ou trinetos como nos do meu neto Tomás – que, quando não estava ocupada em parir, governava a vida

da casa, da quintarola murada contígua e de uns campos fora de muros junto ao ribeiro pois também eram lavradores remediados. Minha mãe, Margarida de Almeida Lima, natural da freguesia vizinha de Lourosa, nasceu em 19 de Novembro de 1913 e faleceu a 21 de Novembro de 1998 casando com meu pai em 1939, um pouco já no tarde para os costumes da época por razões que a seu tempo serão explicadas, na Igreja de La Salette de Oliveira de Azeméis em cerimónia oficiada pelo então abade de Fiães, Manuel da Silva Pereira. Este santo homem, sacerdote culto e exemplar, de quem conservo a mais agradecida das memórias, foi mais tarde abade do Bonfim no Porto. Além de casar os meus pais, baptizou-me a mim e aos meus dois irmãos, com ele os três fizemos a comunhão solene e, apesar de então já estar colado no Bonfim, celebrou o meu casamento na Igreja de Arcozelo, Vila Nova de Gaia, (com autorização do pároco respectivo, Padre Branco, que ainda hoje rege a paróquia). E baptizou no Bonfim os meus dois filhos mais velhos e não baptizou a cadeta, que veio aos trambolhões quase dezasseis anos depois dos outros (e que são os seus padrinhos), por entretanto ter sido chamado a espalhar a sua bondade pastoreando uma paróquia situada num outro reino. A família de minha mãe era ainda mais prolífica que a de meu pai. O meu avô materno, António José de Almeida Lima, nasceu a 27 de Julho de 1881 e faleceu em 2 de Agosto de 1946; minha avó materna, Margarida Coelho de Jesus, nasceu em 15 de Março de 1882 e faleceu a 31 de Dezembro de 1966. Tiveram seis filhas – Palmira, Conceição, Rosa, Margarida, Isaura e Celeste – e sete filhos – Manuel José, Joaquim José, José, Amaro José, António José, Carlos José e Moisés José – todos José como o pai talvez por devoção pelo carpinteiro de Belém. Desses meus vinte e três tios só duas senhoras (Margarida, do lado do meu pai e Celeste, do lado da minha mãe) ficaram solteiras e sem descendência e uma outra, Maria, casou mas também não teve filhos. Todos os demais casaram e tiveram proles numerosas com excepção de meus pais que só tiveram três filhos. Por isso, incluindo os respectivos cônjuges, tive quarenta e quatro tios e tias entre directos e afins. Já foi feita a contabilidade da família Lima que, com filhos, netos e bisnetos das doze estirpes, atira para umas largas centenas de pessoas, sendo considerada a família mais numerosa do distrito de Aveiro. Os primos ainda os vou

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conhecendo, agora os segundos primos já poucos identifico embora muitos deles os tire pela pinta. Meu irmão Ângelo e eu, que pertencemos e somos os únicos elos de ligação entre os Limas de Lourosa e os Bastos de Fiães, temos uma parentela quase tão numerosa como as areias do mar e provavelmente constituiremos a maior família de todo o Portugal. Esse meu avô de Lourosa, António José de Almeida Lima, provinha duma família chamada dos “Tanoeiros”. De modo que era conhecido como o António Tanoeiro. A alcunha foi atribuída a seu pai, meu bisavô, natural de Romariz, freguesia do concelho da Vila da Feira, e mestre-escola. Por razões políticas teve de se refugiar em Vila Nova de Gaia onde aprendeu a arte de tanoeiro fabricando pipas para as caves de vinho do Porto na beira Douro. Como era muito habilidoso de mãos parece que também fazia gaiolas de madeira para pássaros não voltando mais a exercer o professorado. Esse meu avô explorou uma indústria de manufactura de rolhas de cortiça – actividade quase exclusiva na zona a par da agricultura de subsistência – dalguma dimensão, nela laborando os filhos varões e mais alguns obreiros. A cortiça vinha do Alentejo em vagões da CP até Esmoriz e daí era levada em carros de bois para as fabriquetas de Lourosa, Lamas, Paços de Brandão e arredores. Ainda novo, na casa dos cinquenta anos, sofreu um “ataque cerebral” que o imobilizou na cama reduzido a uma vida vegetativa. Dizia minha mãe que, de Fiães onde casara e vivia, o ia visitar duas ou três vezes por semana calcorreando, quase sempre a pé, a meia dúzia de quilómetros de distância, apesar do seu estado, me reconhecia e pegava ao colo por uns minutos. O seu calvário arrastou-se por mais de meia dúzia de anos até falecer. A minha avó Margarida, chamada pelos filhos e netos “a mãezinha”, era uma mulher muito doente, sempre apoquentada pelas suas queixas. Os filhos não olhavam a gastos para a tratar e penso que foi numa visita profissional que meu pai conheceu a minha mãe. Além disso não tinham conta os médicos de fama do Porto, quase sempre catedráticos da Escola Médico-Cirúrgica, que eram requisitados para a assistir. Corroborando o ditado “mulher doente, mulher para sempre” morreu perto dos noventa anos rodeada de atenções e cuidados.

Era sobre o anafado, com uma cara de lua cheia sem uma ruga apesar da idade, da qual transpirava calma e bonomia. O que era um perfeito engano pois, sob essa capa de beatitude, encobria um feitio duro e autoritário talvez resultante de se ver com treze filhos e um homem inválido e reduzido a um estorvo. Lembro-me que, sendo um pouco corpulenta e tendo dificuldade em mexer-se, passava a maior parte do tempo num cadeirão de verga almofadado, a meio da cozinha e casa de jantar, e a tudo deitava o olho inquisitorial. As filhas giravam de manhã à noite na lide doméstica, sobretudo a cozinhar, que os filhos chegavam para almoçar e jantar da fábrica de rolhas anexa e a comida tinha de estar a horas na mesa. Tinha ao lado do cadeirão e ao alcance da mão disciplinadora uma vara de vime comprida de mais de três metros. E porque alguma filha não fosse tão diligente como entendia ou à mesa alguém, mesmo filhos que já faziam a barba, dissesse alguma coisa que lhe não agradasse, a vara caía-lhes justiceira no toutiço ou pelas orelhas abaixo. Todos os meus tios maternos, e até algumas tias, meteram-se na indústria da cortiça. Alguns fizeram fortuna e outros lá foram vivendo remediadamente, ricos sobretudo da graça de Deus e da sombra dos caminhos. Recordo o mais novo, Moisés, flor de homem que, vindo do Alentejo onde tinha ido comprar cortiça, depois de percorrer algumas centenas de quilómetros na viagem de regresso, veio morrer num estúpido desastre de viação quase ao pé da porta de casa deixando viúva e uma ranchada de filhos pequenos. Era tão devoto (como aliás a maioria dos irmãos e irmãs) que, estabelecido com a sua fábrica de rolhas, obrigava o pessoal, sem interromper o trabalho, a rezar o terço a meio da manhã e a meio da tarde. A encarregada dizia a primeira parte da “avé maria” e os restantes salmodiavam em voz alta a segunda parte. A isto assisti eu por mais duma vez. O meu tio Joaquim que, segundo contava a minha mãe, por ser o mais enfermiço, estava dispensado do duro trabalho de operário na fábrica, tinha o privilégio de ler diariamente o jornal o que o tornava no “doutor” da casa com grande raiva dos demais. O meu tio José (apenas José), que não sei se era mais ou menos inteligente que os irmãos, mas que sei que era o mais astuto e dotado para o negócio, dando gosto ouvi-lo contar as suas artimanhas e proezas, pois era um conversador que se escutava com prazer e proveito. Era


com ele que o meu pai mais convivia divertindo-se com as historietas e patranhas de que era fonte inesgotável, sem prejuízo de ser homem que pensava pela sua cabeça e ter deixado um património considerável. O meu tio António que, sendo um triste figura, só pele e osso, e usando óculos com umas lentes de míope grossas como fundos de garrafa, era um contador de anedotas com uma graça e um sainete tais que, quase todos os dias ao fim da tarde, juntava uma roda de curiosos num café da terra para o ouvirem. Conta-se até que, certo dia, um labrego vindo do lugar do Bóco – que era o mais atrasado e incomunicado da freguesia – tirou-se dos seus cuidados e subiu até à Estrada Nacional nº1 onde ficava o tal café. Parou em frente desse meu tio António, olhou-o, cheirou-o por todos os lados e acabou por lhe perguntar: -“Tu é que és o filho do António Tanoeiro, o tal que dizem que tem muita piada?” É claro que o meu tio ficou desarmado e encavacou. O matarruano deu mais uma volta, olhou-o e cheirou-o outra vez e acabou por dizer: – “Raios me partam se te acho alguma piada”. Deu meia volta e foi à sua vida. Já o meu tio Amaro, que sempre morou em Espinho, nunca quis ser industrial de cortiça. Mas dizem os entendidos que não havia outro como ele para cubicar (calcular a arrobagem) uma pilha de cortiça no mato e estimar a sua qualidade e valor. Porque o segredo de empilhar a cortiça reside basicamente em esconder a fraca e exibir a boa por forma a enganar o comprador. Contou-me um velho industrial de cortiça, Edmundo Alves Ferreira, que começou do nada e deixou uma das maiores fortunas da zona e era duma finura e dum talento para o negócio incomparáveis, que o meu tio Amaro tinha sido a única pessoa que conseguira ludibriá-lo numa compra de cortiça. A partir daí, passou a socorrerse dos seus serviços como avaliador em certas compras. Foi talvez o tio mais amável de todos e de quem eu mais gostava – embora de nenhum tenha razão de queixa – com uma admiração imoderada por eu na época andar a estudar em Coimbra ou a fazer que estudava. Morreu ainda novo, por volta dos sessenta. Que descanse em paz pois foi do melhor que a família produziu. Agora uma historieta um tanto ou quanto escabrosa: diziase que um dos meus tios, dos que enriqueceram, já homem feito, tinha uma amásia nas redondezas e da qual terá colhido as primícias. A relação acabou passados uns anos e a fulana tornou-se liberal do seu corpo com quem calhava e calhava frequentemente. Parece que teve então uma relação ocasional

com outro dos meus tios mais novos, irmão do que a estreara. No fim perguntou-lhe com toda a seriedade: “-Não és irmão de fulano?” E como esse meu tio mais novo respondesse que sim, ela explicou a razão da pergunta: “É que és igualzinho a ele!”, referindo-se obviamente a certo órgão da anatomia masculina. “Si non è vero è bene trovato” mas conservo, de Catão, o prudente silêncio e omitirei os seus nomes. O meu irmão, Ângelo de Lima Bastos, nasceu em 15 de Julho de 1941 já não na Casa das Levadas dos meus avós paternos (onde os meus pais residiram nos primeiros anos de casados) mas numa casa temporariamente arrendada na vizinhança enquanto construíam uma ala norte da Casa das Levadas para residência própria e independente embora comunicante pelo interior com a casa velha. E, logo de seguida, foi construído no pomar também a norte o consultório do meu pai com uma pequena ponte em cimento que permitia o acesso directo da casa ao terreno do pomar e ao consultório onde passou a exercer, pelas manhãs, a sua actividade de médico. Recordo-me que a construção desse consultório ficou por dezasseis contos, isto por volta de 1946. Meu irmão e eu temos, e sempre tivemos, feitios completamente diferentes para não dizer mesmo, em alguns aspectos, antagónicos. Sem nunca estar em causa a amizade e o bom relacionamento, tivemos os nossos dares e tomares que o amadurecimento da meia-idade e aceitação da diferença de temperamentos pôs fim para todo o sempre. O meu pai, que era um génio para pôr alcunhas que assentavam como uma luva aos visados, chamava ao meu irmão “o mata-carochas”, vá lá saber-se porquê. E inventava-lhe namoradas e até casamentos, isto quando ele tinha cinco, seis ou sete anos. Como era um pouco sobre o tímido e muito reservado e discreto no que se relacionava com o belo sexo, ficava logo de lágrima ao canto do olho. O meu pai, que não perdia ocasião de o arreliar, um belo dia ao almoço, comunicou-lhe que já tinha tratado o casamento dele com a D. Amélia. Esta excelente senhora, celibatária e sessentona, era a professora primária das raparigas na escola situada no monte fronteiro às Levadas e onde eu e os meus irmãos fizemos toda a instrução primária. Era alta e magra em demasia. A beleza tinha passado por ela sem se deter para não dizer que era um estafermo sem qualquer préstimo

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do ponto de vista físico, embora simpática e bondosa com as alunas. E o meu pai continuou com toda a seriedade a dizer que era preciso começar a preparar o enxoval e por aí fora. As lágrimas caíam, grossas como punhos, dos olhos do meu irmão até que a minha mãe interveio e pôs fim à pouca vergonha. Comigo ninguém brincava com estas coisas de namoros e casamentos, fartos de saberem o gozo que me davam, pois desde muito novo tive sempre uma descarada atracção por tudo que metesse saias e fui um namoradeiro volúvel e inconstante. A minha mãe confidenciava a quem a queria ouvir, com alguma tristeza – que eu agora suponho fingida – a opinião a meu respeito: – “É muito leviano”. E estava tudo dito. A infância de meu irmão foi marcada por um facto relevante: por volta dos oito, nove anos, adoeceu dum mal incurável e mortal chamado pericardite aguda e que julgo tratar-se duma infecção do pericárdio, a membrana que envolve o coração. Os antibióticos da época eram totalmente ineficazes e não havia outro remédio. O meu pai chamou quantos luminares da ciência médica conhecia no Porto, em particular o Dr. Cerqueira Gomes que se deslocou várias vezes a Fiães e, embora impotente para debelar a doença, acompanhou devotadamente esses supostos últimos dias de vida do paciente. Na última visita, desenganou delicada mas peremptoriamente a minha mãe, dizendo-lhe apenas: “- Sei que é crente. Reze, às vezes acontecem milagres”. E virou as costas. Com a coragem das donas que governam uma família e a tudo têm de atender apesar da dor e do desespero, começou a preparar as roupetas com que vestir o defunto anunciado. O meu pai estava num tal estado de prosternação que apenas deambulava pela casa como um sonâmbulo. E eis que tocou o telefone e o Prof. Dr. Cerqueira Gomes pediu para falar com o meu pai. “ – Colega, tive a informação que apareceu um medicamento novo que poderá dar algumas esperanças. Que acha que devemos fazer?”. O meu pai só disse para fazer tudo o que achasse conveniente, custasse o que custasse. O que agora vou dizer não garanto que seja exacto mas é a memória que conservo: veio o tal medicamento de avião dos Estados Unidos da América para Lisboa conservado em gelo e transportado sem demora para Fiães. Foi o próprio Professor Cerqueira Gomes quem fez as primeiras aplicações. Foi como quem deita água no lume:

ao fim de dois ou três dias estava melhor e, pouco depois, completamente curado e sem sequelas. O fármaco milagroso era a cortisona, sintetizada em 1949, e o meu irmão foi das primeiras pessoas, se não a primeira, a utilizá-lo em Portugal e a salvar a vida. Isto passou-se em 1950 estando eu em Braga no primeiro ano do liceu. E como não há males que não tragam algum bem, os exames comprovativos da terrível doença serviram depois, em 1961, para o livrar da tropa já com o país envolvido na guerra colonial em Angola. Mais tarde foi novamente chamado ao serviço militar após ter concluído a licenciatura em medicina mas, como estava a tirar a especialização em dermatologia e havia falta destes especialistas na guerra colonial, concederamlhe adiamento até conclusão. Foi então mobilizado para frequentar o curso de aspirantes milicianos em Mafra com guia de marcha para África daí a uns meses. Livrou-o da guerra injusta e sem razão outro fármaco prodigioso: o 25 de Abril de 1974. Minha irmã, Maria Manuela de Lima Bastos, veio ao mundo em 15 de Maio de 1945 e, tal como os irmãos, o parto ocorreu em casa. Eu já tinha cinco anos e o meu irmão ia nos quatro. Tenho a ideia de que fomos despachados para a casa dos meus avós nas Levadas, onde eu passava a maior parte do tempo e até dormia regularmente, e só regressamos depois da situação estar normalizada e a recém-nascida choramingar calmamente no berço. No mundo dos nossos dias, pelo menos naquele que se convencionou chamar o mundo ocidental, tão diferente daquele em que nasci e me fiz homem, a abundância de bens materiais, desde o vestuário à alimentação, da diversão ao ócio e da cultura à informação, é tão ostensiva, e diria até tão excessiva, que as pessoas passam pelas coisas e pelas ideias sem as fruírem verdadeiramente e sem se darem conta do capital humano de saber e de trabalho nelas incorporado. Veste-se hoje uma camisa e amanhã já não presta por não estar na moda; um livro ou um filme de sucesso lê-se ou vê-se agora e no próximo mês já quase ninguém se lembra deles. As crianças têm acesso a um mare magnum de brinquedos, maquinetas, engenhocas e quejandos sofisticadíssimos e logo vão para o lixo porque apareceu qualquer coisa mais moderna. A praia ao pé da porta não presta para fazer férias e há que ir gozá-las cada vez mais longe e quanto mais exóticas melhor. O antigo, o já lido, o já visto não têm mais serventia, o


ser humano é considerado velho aos trinta e cinco anos para arranjar um emprego. Não tenho nada contra isto, ou melhor, tenho mas já pouco me preocupa. Os meus netos é que terão de viver neste novo mundo rodeados de desumanização por todos os lados. O que não vejo é que as pessoas sejam mais felizes ou mais sábias do que noutros tempos. Vem a arenga a propósito de agora acontecer frequentemente, segundo me contam, que muito menino ou menina sofre um trauma quando é brindado com um maninho ou maninha e deixa de ser o centro das atenções do cosmos familiar porque o recém-chegado lhe disputa o protagonismo e o exclusivo dos mimos e cuidados. E, para superar o choque emocional, é preciso assisti-lo com tratamento de pedopsiquiatras, psicólogos e outros curandeiros de má morte. Eu falo por mim mas acho que também posso falar pelo meu irmão: caramba, o nascimento da nossa irmã não nos afectou minimamente aceitando de bom grado que, sendo a mais novinha, tivesse a fatia maior de atenções. Foi mais um vivente do nosso sangue que veio habitar connosco e a vida seguiu o seu curso com toda a normalidade. Passou a ser ela que, antes de jantar, o meu pai sentava no colo, com quem brincava e quem dava todos os mimos. Eu e o meu irmão éramos o público complacente e agradado com o espectáculo por ser o membro da família mais novo, por ser menina, por ter sido sempre a que tinha a saúde mais débil e fizemo-nos gente sem traumas nem angústias existenciais. Ainda no berço, já meu pai a crismara: Maria Cachuxa! Mas quando cresceu e passou a compreender algumas coisas, odiava que a tratassem por tal nome. A minha mãe entendeu que tinha razão por o vocativo ter o seu quê de desprimoroso. Foi abolido para sempre e passou a ser a “Lela”. Só eu e o meu irmão, à socapa e quando a queríamos arreliar, lhe chamávamos “cachuxa”. E lá ia ela numa gritaria fazer queixa à mãe o que nos valia, vez por outra, um puxão de orelhas bem merecido. Tinha uma constituição física muito frágil e estava frequentemente acamada. Ainda tenho gravada bem viva na memória a palavra abracadabrante e assustadora que ouvíramos ao nosso pai: “- Tem escrófulas”!

Nas nossas brincadeiras de rapazes, por vezes mais desatinadas, lá vinha o aviso peremptório: “- Cuidado com as escrófulas da menina”! Diga-se em abono da verdade que a nossa irmã também sabia utilizar esse passaporte diplomático para nos aborrecer com total impunidade. Lá foi seguindo a sua vida: instrução primária com a tal professora D. Amélia que esteve para casar com o meu irmão, liceu como aluna externa no Colégio da Bonança de Vila Nova de Gaia e estudante de Germânicas na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra sendo geralmente estimada por ter bom feitio, ser educada e prestável, o que até era verdade. Em 1964, ano em que casei e passei a residir em Arcozelo, Vila Nova de Gaia, veio passar connosco duas ou três semanas no mês de Agosto para fazer praia na Aguda que ficava a umas poucas centenas de metros da nossa casa. A partir desta altura o seu estado de saúde agravou-se rapidamente. O meu pai alarmado com os sintomas socorreu-se dum velho amigo professor da Faculdade de Medicina do Porto, médico e cirurgião de fama em quem o meu pai confiava cegamente e cujo nome não revelo para não ferir susceptibilidades da família ainda hoje ligada às ciências médicas. Padecia a minha irmã duma tuberculose ganglionar, doença na época perfeitamente curável se tratada devidamente. Mas foi piorando progressivamente por falta de tratamento adequado, negligência imperdoável desse médico que a assistiu. Tivera um ou dois anos antes um acidente de viação de que foi o condutor responsável e no qual a esposa perdeu a vida. A partir de então vestia-se sempre de luto carregado e desinteressou-se de tudo e de todos à sua volta. Não teve a lucidez nem a caridade de recusar a incumbência e encaminhar a paciente para um pneumotisiologista. Foi andando com paliativos e, em meados de Setembro, vendo a gravidade a que o caso chegara, deitou as mãos à cabeça e internou a minha irmã no Hospital da Ordem Terceira de S. Francisco no Porto onde operava e era o senhor todo poderoso. Aconteceu que um primo de minha mulher, que cursava na altura o último ano de Medicina, foi visitar a minha irmã como amigo da família. Esteve durante algum tempo no quarto conversando e, passados uns momentos, levou-me para o corredor e disse-me apenas: “- Eu não posso darlhe conselhos mas, se fosse minha irmã, ia já procurar um pneumotisiologista porque a situação é desesperada”. Pedi-

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lhe que me indicasse o melhor que conhecesse. Nem meu pai nem minha mãe estavam nesse momento no hospital. Indicou-me o Dr. Francisco Campos com consultório no edifício do Rialto na Praça D. João I. Esse favor fiquei a dever ao primo de minha mulher, Dr. Raúl Cardoso, excelente clínico que ainda hoje nos assiste, a mim e aos meus, nos achaques que vão surgindo. Lá fui procurar o Dr. Francisco Campos que me atendeu imediatamente e a quem pus ao corrente da gravidade da situação e da urgência em examinar a minha irmã. Limitou-se a despir a bata, pegar na maleta do ofício e a dizer-me: “- Vamos”.

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Chegados a S. Francisco fomos interceptados na entrada por duas freiras a quem informei que o Dr. Francisco Campos ia examinar a minha irmã. Responderam-me que não podiam autorizar porque o Sr. Professor ia ficar muito zangado. Disse-lhes apenas: “– As irmãs ou saem da minha frente ou vão as duas pela escada abaixo”. Afastaram-se para o lado e eu passei com o Dr. Francisco Campos atrás e que não pronunciara uma só palavra. No quarto examinou demoradamente a minha irmã, lavou as mãos e saímos para o corredor. Disse-me apenas: “- Estão a tratar esta menina, que está a morrer, com aspirinas”. Percebi que a palavra aspirinas significava apenas que não tinha sido tratada como devia. Concluiu: “- Lamento mas agora nada há a fazer”. Quis satisfazer-lhe os honorários mas recusou receber. Não é por isso que lhe estou grato mas sim, e para sempre, pela compaixão e pela coragem de desafiar a ira estúpida e mesquinha dum professor de medicina. Só pelo que fez a um desconhecido mostrou a inteireza de carácter e estou certo que, também só por isso, todos os pecados lhe serão perdoados. A luzinha, bruxuleante como a de uma candeia, da vida da minha irmã apagou-se no dia seguinte ao princípio da tarde, 19 de Setembro de 1964. Tinha dezanove anos. Transportei os meus pais do hospital para Fiães e durante toda a viagem não foi dita uma única palavra. Foram as horas mais amargas da vida deles e da minha. Escreveu Hemingway que, quando um ser humano é quebrado por dentro, a vida encarrega-se de soldar a fractura e de o tornar mais forte que antes. Foi o que aconteceu comigo que tinha vinte e quatro anos e a vida para viver. A minha mãe resistiu melhor ao golpe suportada pela fé inabalável de que estamos neste mundo apenas de passagem e reencontraria mais tarde a filha. Creio que meu pai nunca recuperou da provação e, no íntimo, se recriminava atribuindo-se a culpa da tragédia. Pobre coitado que nunca saiu para lado nenhum sem a companhia da mulher e viveu uma vida inteira para os filhos a quem daria o sangue dos braços se fosse preciso. Olhei os meus pais que à época tinham cinquenta e tal anos e vi, subitamente, que se tinham tornado dois velhos. É sabido que a natureza não permite aos velhos que as suas fracturas voltem a soldar, sobretudo as do coração.

(Continua)


Aspectos Históricos de Arnelas Manuel Leão* Apesar de ser um lugar ribeirinho de Olival, no concelho de Gaia, Arnelas conquistou mais notoriedade do que a freguesia, principalmente até ao século XIX, porque se tornou num entreposto comercial interno, exercendo essas funções na região a que pertencia. Era um dos portos fluviais de saída para montante e jusante dos produtos a sul do Douro: linhos das terras da Feira, sal de Ovar e Aveiro, vinhos verdes das terras da Feira, vinhos maduros do Douro, vinhos concorrenciais da Bairrada, para abordarmos apenas os produtos mais em evidência pelas suas quantidades. Havia mesmo uma parte significativa da população que vivia do rio; tantos são os arrais de barcos. A construção da capela de S. Mateus tem algo a dizer sobre a evolução histórica de Arnelas. Em 1660(1), os paroquianos moveram um processo judicial contra o abade, que era Marcos Vieira. A demanda iria correr os seus trâmites no tribunal eclesiástico do Porto. A freguesia queria neutralizar uma disposição imposta pelo visitador canónico. O bispo diocesano, nessas épocas, não tinha possibilidade de cumprir por si a obrigação imposta aos bispos de visitar as paróquias da sua diocese, num período de cinco anos. Por isso, as (1)

ADP (Arquivo Distrital do Porto) Po 50, 1ª série, 61, 75v-76v.

dificuldades logísticas eram ultrapassadas pela nomeação de visitadores. A missão fiscalizadora dos visitadores era ingrata, porque ia ao arrepio das conveniências do povo e dos párocos ou dos seus apresentadores, que podiam ser o Cabido, ordens religiosas ou algum nobre que tivesse herdado esse direito. O visitador examinava paramentos, baptistério, estado de conservação do templo e da sacristia e ainda da residência, a missão pastoral do pároco, quanto a ensino dos fiéis e administração de sacramentos, registo paroquial. A tradição negativa desta actividade eclesiástica ficou consagrada num provérbio: fome, peste, guerra e bispo na nossa terra. Os livros das visitações têm muito interesse histórico tanto para a evolução do estado das paróquias como para a situação e origem de muitas obras de arte. Poucos restaram. Ora o visitador que tinha sido o cónego Manuel da Silva escreveu no seu relatório que os paroquianos deviam assumir metade dos encargos resultantes da construção da ermida de são Mateus de Arnellas, mas os paroquianos queriam ir ao tribunal provar que as obras eram somente obriguasão do dito abbade. Isto significava que os rendimentos paroquiais recebidos, em Arnelas, seriam suficientes para a construção da capela. A capacidade reivindicativa dos moradores do lugar não ficou por perto. Em 1734 (2) , os moradores de Seixo Alvo e Arnelas passaram procuração para o Porto para questão que (2)

Ibid. Po 2, 253, 257.

* Natural de Milheirós de Poiares, concelho de Santa Maria da Feira, fez os seus estudos no Porto, tendo concluído o curso de Teologia e sido ordenado presbítero, na Sé do Porto, em 1943. Dedicou-se à educação e ensino, dirigindo o Colégio de Gaia, durante décadas. Esteve ligado à Fundação do Instituto Superior Politécnico de Gaia e Escola Profissional de Gaia, a cujas direcções pertence. Tem publicado numerosos estudos sobre história cultural do Porto e Vila Nova de Gaia, com incidência nos domínios da arte, da actividade livreira e do teatro portuense antigo. Tem promovido várias iniciativas de carácter social. Criou, em 1996, a Fundação Manuel Leão, com fins culturais e sociocaritativos.

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“correm com o Juiz dr dito couto de Crestuma Pedro Gomes pellos obrigar a concorrerem com serviço de boys e carro para os caminhos do lugar de Arnellas”. Tratava-se duma espécie de imposto camarário que os lavradores tinham de pagar. Quem não tivesse bois e carro, pagava em dinheiro o correspondente a trabalho braçal. O estado das vias de comunicação era tão precário que não convencia nenhum morador a contribuir sem repugnância para melhoria delas. Em l755(3), ano do terramoto de Lisboa, foi lavrada e assinada uma escritura, no lugar de Arnelas, abaixo do ribeiro, em Avintes. De facto, na freguesia de Avintes também existe o lugar de Arnelas, mas os outorgantes eram da freguesia de Olival. Juntaram-se na casa de Veríssimo de Sousa Barros. O interesse nesta lista numerosa está em dar a conhecer o número de fogos que constituíam o vasto lugar de Arnelas. Por esta razão, transcrevemos os nomes: José dos Santos e mulher Ana Maria Manuel de Sá e mulher Antónia Laurinda Maria de Sousa, viúva Ana Luís, viúva João Coelho, viúvo Manuel Rodrigues Sobreiro, viúvo José de MeIo e mulher Justa Maria de Sousa João Coelho de Sousa e mulher Maria Teresa Coelho José de Sousa Camarão e mulher Maria Angélica Isabel da Costa, solteira Joana Teresa, viúva António Francisco e mulher Antónia dos Santos Faustino de Melo, solteiro João de Oliveira, viúvo Guilherme de Sousa e mulher Maria Luísa José da Fonseca e mulher Antónia de Sousa Domingos de Sousa Camarão, viúvo Mariana do Couto, solteira Maria de Sousa Pereira, solteira Maria dos Santos, viúva Manuel Gomes e mulher Ana Teresa Maria Joaquina, solteira João Ferreira e mulher Rosa Clara de MeIo Francisco Fernandes e Isabel Antónia Conceição de Sousa, solteira Serafim de Sousa e mulher Maria de Sousa Manuel Dionísio e mulher Quitéria Pereira (3)

Ibid. Po 9, 3ª s., 119, 138-139.

Francisco de Sousa, viúvo João Alves, viúvo Lourenço de Oliveira Lopes e mulher Maria Fernandes Severino Coelho e mulher Maria de Fontes Manuel Guedes Dias e mulher Maria das Neves José Bernardo de Miranda e mulher Amélia Joaquina de Miranda Maria Josefa, viúva Maria da Costa, viúva António de Oliveira Guedes e mulher Maria Josefa Catarina das Neves, viúva Alferes António José Pereira e mulher Catarina Josefa Sebastiana Teresa, solteira Pantaleão José da Costa Cirne e mulher Joana Tomásia José Franco, solteiro José da Costa e mulher Maria de Sousa Leandro Pereira Campos, viúvo António Maria de Pinto, solteiro Francisco de Oliveira e mulher Patronilha Dinis Teresa Jacinta, viúva Capitão Manuel de Oliveira Assunção e mulher Dionísia Clara Maria Teresa, viúva. Ficaram mandatadas várias pessoas do lugar para que se colloque na capella de São Mateus deste dito lugar o Santíssimo Sacramento. Eram vulgares estas representações colectivas dos aglomerados populacionais, onde os fiéis pretendiam criar lugares de culto regular. Primeiro havia um compromisso de criar condições de sustentação no que dizia respeito ao arranjo do templo, à obrigação de manter dia e noite acesa uma lâmpada de azeite, sinal evidente da presença eucarística. Tornava-se um encargo para a pessoa que abria e fechava a capela. Os párocos não gostavam de abrir novos centros de culto, por desviarem da igreja matriz muitos fiéis e ainda lhes acarretarem encargos canónicos. Portanto, todas as capelas, em princípio, tinham de conseguir dote, para obterem licença de construção. Há muitos processos no arquivo diocesano relativos a capelas espalhadas pela diocese, muitas das quais já nem existirão. Para obterem licença de sacrário, como foi o caso de Arnelas, bastaria o compromisso dos moradores que, anualmente, acudiriam à satisfação dos encargos.


Alfinetes Jorge Augusto Pais de Amaral* Desde tempos muito recuados até aos nossos dias se tem ouvido proferir a cada passo a palavra “alfinetes” com o significado de “pequena quantia de que uma senhora pode dispor para as suas despesas particulares”. Não haverá certamente ninguém que nunca tenha lido ou haja ouvido frases como estas: “trabalhava pouco, mas chegava-lhe para os seus alfinetes”; “tinha duzentos escudos por mês para os seus alfinetes”; “o pai reserva-lhe uma mesada para os alfinetes”. Alguns renomados escritores fizeram referência a esta expressão atribuindo-lhe esse mesmo significado. Entre eles podemos apontar Camilo Castelo Branco que, na sua obra “A Corja”, escreveu a dado passo: “dava-lhe dois pintos para alfinetes, quando ela cozinhava nabos”. Em suma, a expressão é, podemos dizer, muito conhecida e até vulgarizada. Mas o que certamente nem todos saberão é que esse vocábulo, com o referido sentido, mereceu as honras de consagração legislativa. Na verdade, o Código Civil de 1867, no seu artº 1104º dispunha o seguinte: “A mulher não pode privar o marido, por convenção antenupcial, da administração dos bens do casal; mas pode reservar para si o direito de receber, a título de alfinetes, uma parte dos rendimentos dos (*) Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça.

seus bens, e dispor dela livremente, contanto que não exceda a terça dos ditos rendimentos líquidos.” Sendo certo que a administração da totalidade dos bens do casal pertencia ao marido, pode falar-se em uma pequena conquista da mulher, visto que lhe era facultado reservar para as suas pequenas despesas uma parte do rendimento dos seus próprios bens. Analisemos um pouco mais pormenorizadamente essa pequena conquista. A convenção antenupcial tem de ser, como o próprio nome indica, anterior ao casamento. Trata-se da possibilidade que os nubentes têm de escolher o regime que deve ser observado quanto aos bens do casal. É certo que muitas vezes não faziam a tal respeito qualquer convenção. Várias razões podem estar na origem dessa inércia. Uma delas derivava do facto de os noivos praticamente nada possuírem e de nem sequer acalentarem a esperança de algum dia vir a adquirir alguns bens de valor significativo. Para os casos em que não havia convenção antenupcial, era aplicável o regime supletivo, previsto na lei, como acontece ainda hoje. A legislação relativa aos regimes de bens do casamento e à respectiva administração foi mudando ao longo dos tempos. Também foi variando com os tempos o regime supletivo. No direito romano antigo, os casamentos começaram por ser celebrados cum manu. Os bens da mulher, designados

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como dote qualquer que fosse a sua origem, ficavam sendo propriedade do marido. Quando os casamentos passaram a ser celebrados sine manu, o regime de bens passou a ser o de separação. Em Portugal, desde os primeiros tempos, foi seguido o regime de comunhão geral de bens, que era aquele que permitia aos cônjuges “dividir entre si fortuna e miséria”, como frequentemente se ouvia dizer. Este regime, umas vezes tinha de ser convencionado, de onde a expressão “por carta de ametade”. Outras vezes, era considerado como nascido do facto de os cônjuges viverem em economia comum por um período de um ano e dia, dizendo-se então “segundo o costume do reino”. Ambas as expressões se encontram nas Ordenações Afonsinas, livro IV, título 12. Nas Ordenações Manuelinas foi convertido o costume em lei, o que foi mantido nas Ordenações Filipinas, onde se diz no livro IV, título 46: “Todos os casamentos feitos em nossos reinos e Senhorios se entendem serem feitos por Carta de ametade, salvo quando entre as Partes outra cousa for acordada”. Esta era a lei vigente ao tempo da entrada em vigor do Código Civil de 1867.1 Segundo dispunha o artº 1096º desse diploma, “é lícito aos esposos estipular, antes da celebração do casamento, e dentro dos limites da lei, tudo o que lhes aprouver relativamente a seus bens”. “Na falta de qualquer acordo ou convenção – determinava o artº 1098º - entende-se que o casamento é feito segundo o costume do reino…” Os regimes à escolha dos nubentes eram os seguintes: a) comunhão geral de bens; b) separação absoluta; c) separação com comunhão de adquiridos; d) regime dotal. Como já vimos, através da convenção antenupcial, a mulher não podia privar o marido da administração dos bens do casal, mas podia reservar para si uma parte dos rendimentos dos seus bens, a título de alfinetes. A administração dos bens do casal, “sem excepção dos bens próprios da mulher, pertence ao marido”. “A mulher só pode administrar por consentimento do marido, ou no seu impedimento ou ausência”, conforme dispunha o artº 1117º (no mesmo sentido, cfr. artº 1189º). A convenção que permitia à mulher reservar para si uma parte dos rendimentos dos seus bens, a título de alfinetes, 1 - Cfr. Tratado de Direito Civil, de Cunha Gonçalves, vol. VI, páginas 281 e seguintes.

só era concebível quanto aos bens parafernais ou dotais, ou quanto aos bens comuns. Não podia incidir sobre os bens próprios do marido. Como resulta do que fica exposto, o valor dos “alfinetes” teria sempre de ser pago à custa de uma parte dos rendimentos dos próprios bens da mulher, isto é, dos bens dotais ou que levou para a comunhão. Apesar disso, tal faculdade, já constitui um avanço que se traduz numa conquista no que concerne aos direitos da mulher.

Casamento de D. Manuel I (1531), óleo sobre madeira 178x135 cm Museu de S. Roque, Lisboa, Portugal


Oliveira Guerra e os Seus Sonetos Anticlericais (102 anos após o seu nascimento) Anthero Monteiro* Completou-se, em Agosto de 2005, o primeiro centenário do nascimento do poeta Manuel de Oliveira Guerra e terão sido muito poucos os que deram por isso. Uma das excepções neste campo reside no ensaio «Sátira anticlerical e poesia de protesto» que Luís Machado de Abreu, antecipando a homenagem a que o poeta deveria ter direito ao menos pelos seus 100 anos, incluiu nos seus Ensaios Anticlericais1 de 2004: um estudo breve de quatro páginas, mas que, pela profundidade com que trata o assunto, fará destas outras um trabalho redundante e certamente desprovido de interesse. É sobretudo o facto de ainda não ter passado muito tempo após essa efeméride o que nos leva a insistir no assunto. Tratando-se, pois, de um poeta entretanto esquecido (omissão que a filha, também poeta, Maria Virgínia Monteiro, empenhada e insistentemente tem tentado contrariar2), 1 - Luís Machado de Abreu, «Sátira Anticlerical e Poesia de Protesto» in Idem, Ensaios Anticlericais, Lisboa, 2004, p.145-148. 2 - Maria Virgínia Monteiro acaba de publicar uma belíssima antologia de sonetos do pai, a que deu o título de Caminho Longo, prefácio de Salvato Trigo, posfácio de Jorge Listopad, Papiro Editora, Porto, 2006. A apresentação dessa colectânea foi feita pelo autor deste texto em 12 de Setembro 2007 na Biblioteca Municipal de Espinho.

justificar-se-ia uma resenha biográfica mais ampliada, se não considerássemos prioritário lembrar a obra. Assim ficamos pelo nascimento em 24 Agosto de 1905 em Oliveira de Azeméis, filho de um industrial vidreiro republicano, pela publicação, aos 27 anos (1932), de um livro de sonetos, intitulado Padre… Nosso, de teor altamente anticlerical, com prefácio de Ramada Curto que se esgotou em duas semanas, pelo abandono da vida literária pública durante 30 anos, devido a pressões da Igreja, por causa do êxito do seu livro, pelo regresso à publicação em 1960 (Ave Maria é o livro de sonetos seguinte e é do mesmo teor do anterior), pela criação da revista de aproximação luso-galaica Céltica – Cadernos de Estudos Galaico-Portugueses (4 volumes), pela tentativa de criação, em 1961, do Círculo de Estudos Galaico-Portugueses, e pela sua morte, aos 59 anos, ficando a descansar das agruras da vida em Espinho, perto de dois irmãos na desgraça: o suicida Manuel Laranjeira e o perseguido e clandestino Soeiro Pereira Gomes (ele abrigou alguns em sua casa). Sobre as motivações das suas opções anticlericais ele próprio se pronunciou: dizia-se movido, não de ódios vesgos, mas de um forte anseio de verdade, que o faz «avesso a tudo o que represente a hipocrisia e mentira, e, por consequência, avesso ao clericalismo», porque «vivera, desde criança, num ambiente absolutamente desfavorável à religião católica ou a qualquer outra que não seja a religião do Bem e do Trabalho»: o pai, que fora o seu melhor guia, era «republicano intransigente da velha guarda e intransigente anticlerical» e a

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor, de múltiplas obras poéticas, didácticas e ensaísticas. A última que editou intitula-se “A Canção de Guerra Contra a Guerra”, Vila Nova de Gaia, Corpos Editora, 2008. Organizador de várias tertúlias poéticas, começou recentemente a coordenar as Quartas Mal - ditas do Clube Literário do Porto.

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mãe, ainda que educada religiosamente, deixara de praticar após o casamento, pelo que, perante a convicção de um dos progenitores e a indiferença do outro, não sentia qualquer necessidade da crença religiosa. Autodidacta desde muito cedo, estudara e convivera com livres-pensadores, e vira que os «dogmas estúpidos» da Igreja levaram os seus ministros a cometer indignidades e era isso o que ele denunciava. Narra depois o caso que mais o terá marcado, porque envolve «um parente seu, padre católico, a quem «a Santa Igreja e seus sequazes» terão imposto que abandonasse «ao deus dará da misericórdia, uma filha, fruto da Vida». O sacerdote fora assim vítima de «perseguição infame, verdadeiramente jesuítica», o que constitui «matéria de sobra para que possamos condenar formalmente a Igreja como instituição que tem de acabar por perniciosa e atentatória dos direitos humanos e lesadora da Civilização». O caso servir-lhe-á mesmo de tema para o soneto «Pai» incluído em Padre… Nosso3, no qual homenageia o padre pela recusa em obedecer ao Bispo. Mas a este ressentimento, haverá que acrescentar outras polémicas em que se envolveu com um recém-chegado pároco oliveirense, a quem acusava de falta de «imparcialidade

política» e de utilizar o confessionário, o altar e a sacristia para apoiar uma facção partidária. Oliveira Guerra era extraordinariamente vulnerável às contradições de um mundo feito de injustiça e desigualdade e indignava-se facilmente com as incoerências do que se designa por civilização cristã. E, porque a indignação não é compatível com a resignação cristã e porque a defesa dos oprimidos não é monopólio de credos ou de ideologias, achou que também ele tinha uma palavra a dizer nesta luta pela dignificação do Homem. Oliveira Guerra foi um poeta meteórico: estalou de repente, incendiou a noite, deixou um rasto de luz e logo se apagou. Já ninguém sabe que, em dado momento, ultrapassou o brilho de uma estrela de primeira grandeza. Ele próprio tinha consciência de que não era um astro de eleição: dizia-se rude e que nos seus versos «rouquejava a voz do povo sofredor», que apenas sentia precisão de se expressar e de «fazer arte fácil e singela», sentindo mais tarde o orgulho de ter contribuído para um «património de Arte Social».4 Daí decorre certamente o registo coloquial e popular da linguagem utilizada na sua poesia, desprovida de artifícios e de imagens, mas simultaneamente incisiva e, como diz

3 - Oliveira Guerra, «Pai» in Padre… Nosso, p.97.

4 - Id., “Aspiração” in Ibid., p.34.


Ramada Curto, em relação ao Padre… Nosso, uma «poesia de combate, frondista, cutilante, agressiva», quase junqueiriana. Mas o teor propagandístico da «Arte Social», exige, não apenas a comunicação, mas a persuasão. E a forma mais utilizada pelo poeta foi, sem dúvida, o soneto, que ele soube manejar com uma mestria que lhe deu uma aparência de fluência e de agradável facilidade, virtudes que não abundam nas suas demais composições poéticas. O soneto ultrapassa claramente os 50% da sua produção poética. Contámos, num conjunto de 321 poemas5, salvo erro, 173 sonetos, sendo 68 os sonetos de conteúdo anticlerical ou anti-religioso, ou seja 21% do total de composições, praticamente 40% no total de sonetos. E não terá sido por acaso que, na busca da persuasão, o poeta tenha escolhido essa forma poemática, que, como sabemos, obedece a duas características essenciais – a brevidade e a organicidade. Relativamente à primeira – a brevidade, que é de âmbito material – lembremos o que escreveu o poeta brasileiro Menotti del Piccchia: «Soneto! Mal de ti falem perversos / que eu te amo e te ergo no ar como uma taça. / Canta dentro de ti a 5 - Não foi considerada, nestas contas, a colectânea póstuma Escritos - Dois Contos e Alguns Poemas, por se tratar de uma antologia, ainda que contendo alguns (poucos) poemas inéditos.

ave da graça / na gaiola dos teus catorze versos». Isto mesmo diria Charles Baudelaire de forma mais concisa: «Parce que la forme est contraignante, l’idée jaillit plus intense». É esta característica que Oliveira Guerra aproveita, no conjunto sequencial dos vários sonetos, sobretudo, de Padre… Nosso e de Ave Maria, para transmitir a ideia de que eles constituem um painel ou um conjunto de quadros6 de uma exposição abordando os vários temas e questões de uma temática mais geral. Funcionam, assim, como os breves flashes publicitários televisivos, mais capazes de prenderem a atenção do que longos filmes indutores do sono. E, se a prisão acanhada dos catorze versos não impede a inspiração do poeta, antes constitui um desafio às proezas do pássaro para entretecer o seu canto, ele soube também aproveitar a outra característica do soneto – a organicidade, de índole espiritual – que traduz o conjunto de regras a que o esquema canónico petrarquiano deve obedecer: um modelo estrutural triangular, considerado por muitos uma fórmula mágica perfeita para sustentar e comprovar um raciocínio ou demonstrar um teorema, com base numa primeira premissa ou tese (as quadras) e numa segunda premissa ou antítese (os tercetos) que irão culminar numa conclusão, síntese ou “chave de ouro”. Há, pois, nessa forma estrutural algo em comum com o silogismo, o que é recordado por muitos autores e até pelo poeta Glauco Mattoso, que escreveu: «Não vejo, entre o soneto e o silogismo / nenhuma diferença de proposta: / são ambos adequados a quem gosta / de converter palavra em algarismo.» O esquema clássico da rima, em que não é permitido qualquer verso solto, ou seja, sem ela, e o facto de se duplicarem as rimas das quadras e de se urdir uma trama rimática com os versos dos tercetos, tudo isso contribui para a coesão daquela estrutura e para a sua adequação ao raciocínio lógico. Embora existam em Oliveira Guerra sonetos que recorrem ao silogismo7, a sua técnica mais utilizada não é essa, mas algo em que ele estará subentendido. É que os sonetos de Oliveira 6 - O autor da crítica a Padre…Nosso, no jornal A Verdade (de 17/12/1932) tinha reparado nisso mesmo: «Cada soneto representa um quadro, um episódio observado em plena realidade miserável.» Pelo mesmo diapasão afina João da Silva Corrêa, na sua apreciação inserta no Regional, de S. João da Madeira (Novembro de 1932): «...de página a página os quadros sucedem-se, cada qual o mais imprevisto, cada qual o mais espontâneo e preciso (…) numa policromia de cambiantes e de situações verdadeiramente estonteante (...).» 7 - Cf., por exemplo, Oliveira Guerra, “Anelo” in Ave Maria, p.107.

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Tudo se prepara assim para que a oposição se reforce também, simultaneamente, dentro do conteúdo: à situação inicial, explicitada nas quadras, é contraposta, nos tercetos, uma situação antagónica, conflito cuja solução pode encontrar-se ou subentender-se na chave de ouro. Em suma: tese, antítese, síntese. E, sendo cada soneto uma narrativa, também isso se adequa à correspondente estrutura: uma situação inicial de equilíbrio, a que se segue uma situação de desequilíbrio e que pode resolver-se ou não, depois, no reequilíbrio final. E isso reflecte-se necessariamente a nível sintáctico: se analisarmos as primeiras palavras do primeiro terceto dos sonetos, concluímos que essa oposição é sublinhada, em muitos casos, até nas conjunções utilizadas: não terá sido por acaso que, nos 90 sonetos que constituem Padre… Nosso e Ave Maria, detectámos que a mudança na cena ou na acção, se faz com, pelo menos, 19 “mas”, 1 “contudo”, 7 “e” com valor adversativo (e não copulativo) e uma série de orações também com valor adversativo ou outras conjunções ou expressões que estabelecem alguma forma de oposição: “enquanto”, “depois”, “apesar disso”, “infelizmente”, “finalmente”, “enfim”, etc. Um exemplo – o soneto “Justiça”:

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Guerra, não sendo filosofia, são, em grande maioria, poemas narrativos: quadros comprovativos das indignidades praticadas pelo clero ou das injustiças engendradas ou permitidas pela civilização cristã, contam, cada um, um episódio ou uma história em que se movem, quase sempre, as personagens antagónicas dos exploradores e dos explorados. Em Oliveira Guerra há um aproveitamento nítido da relação dialéctica que pressupõe aquele conflito e se realiza, numa primeira instância, dentro da forma: aquela pausa maior existente, por norma, no soneto clássico, entre as quadras e os tercetos, e que implica um corte sintáctico e conceptual, é, no caso de Padre… Nosso e de Ave Maria, evidenciado pela mancha gráfica: fica-se com a nítida impressão de que cada soneto é uma medalha de duas faces: em todos os casos, o anverso, ou seja, a página ímpar, abriga as quadras, e o reverso, ou seja, a página par seguinte, acolhe os tercetos.

«Nunca ninguém no mundo pecou tanto como pecara aquele desgraçado que fez chorar caudais sem fim de pranto e sempre andou com o Mal de braço-dado… Tudo o que existe de mais puro e santo por ele foi, sem pejo, conspurcado; e não sei bem que poderoso encanto o livrou sempre do castigo azado… Mas se à justiça humana e mentirosa ele fugiu, por forma milagrosa, escarnecendo as suas leis postiças, o mesmo com certeza não se deu quanto à justiça nobre lá do céu, pois não deixou dinheiro para missas.»8

8 - Oliveira Guerra, “Justiça” in Ave Maria, p.59.


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E, se nos entregarmos ao exercício de resumir numa frase cada um dos sonetos anticlericais, podemos claramente assegurar-nos da existência obsessiva desta oposição que faz deles recortes vivos da história de contrastes e conflitos da instituição eclesiástica e daquelas personagens que vivem à sombra da Igreja e dos seus templos. Ali surge o próprio Cristo explorado de todas as maneiras: foi assassinado pela escória da Humanidade, mas hoje sêlo-ia pelo clero e pelos mais ricos; ou, então, vai dobrado ao peso da cruz, mas vê o seu representante na terra levado em ombros pela Nobreza e com guarda de honra; foi lição de humildade e amor, mas é agora servido por ministros que comem o pão dos pobres; no altar, sente-se orgulhoso do seu poder, mas deixa-se tomar de desdém pelos desgraçados que vão à Igreja e não lhe deixam nada; vê-se acossado pela fome, mas, por isso, é obrigado a roubar objectos de arte na Igreja para sobreviver; enfim, um Cristo que, um dia, regressa

à terra, mas não é reconhecido pelos cristãos, nem sequer pelo padre. Ali surge também o seu pai, José, o carpinteiro, que com o seu trabalho e ferramenta, garantia, naquele tempo, o pão, para os seus, mas que, hoje, com a máquina ao serviço dos senhores, ver-se-ia na miséria. Desfila por ali também o Clero, sempre com o estatuto de explorador, desde o Papa, como já vimos, passando pelo cardeal que incita o clero a imitar Cristo na pobreza, mas traz ao peito uma cruz de pedrarias; continuando no Bispo que anda em peditório de Caridade, mas de anel de ouro e brasão no dedo; e, ainda, o Abade que faz o compasso, mas sempre com o olhos postos na moeda já pronta em cima da mesa da visita pascal; ou que faz a cerimónia do lava-pés, como símbolo de humildade, mas que amaldiçoa os pobres que emprestaram os pés e o fedor; e, também, o confessor que não tem tempo para ouvir a confissão da pecadora, mas que


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a convida a voltar lá mais para a noitinha… Vêm atrás as noviças, a definhar na monotonia do convento, mas, de repente, remoçadas pelo alvoroço da chegada de um novo, desta vez jovem, confessor. Há os cidadãos mais abastados que se aproveitam também da religião: o cristão que, ao ver um incêndio ao longe, pede a Deus que não seja em sua casa, mas em casa do vizinho que tem poucos bens a perder; o crente que faz a sua oração, mais uma vez interesseira, pelos pobres, mas também para que eles não lhe assaltem as suas propriedades; ou aquele que respeitosamente se descobre ao passar à igreja, mas que foi acusado de roubar a sua confraria; e, ainda, o Sr. Pires que faleceu, mas deixou fortuna suficiente para comprar o céu. O povo mais humilde também ali comparece, mas sempre como vítima explorada: uma mãe que tudo fará para salvar a alma do filho, mas a quem o padre pergunta quantas missas

poderá pagar; o pai que se recusa a gastar dinheiro com os remédios para o filho doente, mas prefere, para o curar, pagar os enfeites de um altar ou ir a Fátima, nem que tenha que vender o gado; o criminoso, impune em vida, mas castigado apenas no outro mundo, por não ter deixado dinheiro para missas; um pobre que pede esmola por S. Vicente de Paula, mas que lhe é recusada porque, estando amancebado, nada deveria querer do santo; o humilde lavrador que vê os seus sonhos desfeitos pelo temporal, mas que, louvando a Deus pela sua bondade e omnipotência, se resigna à fome; uma tísica ainda esperançada em viver, mas que perece de medo quando o padre vem dar-lhe os últimos sacramentos; os enfermos à morte para quem o toque dos sinos podia ser lenitivo, mas é afinal tormento e mau presságio; os pagadores de promessas que as cumprem entre rezas e farnéis, mas que passam o resto da semana entre ralhos e privações; os alegres figurantes das festas religiosas e das procissões, mas que surgem sempre acompanhados por um friso de mendigos pustulentos por ali a pedinchar; finalmente, as prostitutas visitadas por burgueses e párias, mas também pelos ministros do Senhor. Tudo nos sonetos de Oliveira Guerra concorre para o mesmo fim: o de salientar a oposição ou antagonismo que temos estado a analisar. E o recurso à ironia, que é também um jogo de contrários, em que ele é exímio, é mais um poderoso contributo nesse sentido. A verve satírica do poeta deixa quase sempre para o final alguma surpresa, o que, com aquele prosaísmo de expressão, sem ornatos retóricos, chega mesmo a fazer lembrar certos quadros da poesia de Nicolau Tolentino. Veja-se se o último terceto deste “Jantar de Festa” não tem um sabor muito próximo da última estrofe do soneto tolentiniano «Chaves na mão, melena desgrenhada…»:

«Lauto jantar de festa em que a alegria estoira das garrafas com fragor… Uma só nuvem de melancolia embaça um tanto aquele vivo ardor… De manhã cedo, ao levantar do dia, o sr. Cura, embora custe um ror, tem de rezar a missa e – que arrelia – à meia noite foge o comedor…


Este jejum que o sacrifício santo impõe aos pobres mortifica-os tanto!… Mas que fazer, senhores? É duro? Embora… Nisto a servente, esperta e sorrateira, vai de mansinho, sobe a uma cadeira, e atrasa o carrilhão três quartos de hora…

A presença constante destes contrastes e antinomias tem, sem dúvida, a função de denúncia de uma Igreja adulterada e dos seus ministros, de tal modo que parece querer dar-nos a ver duas realidades contrárias para que possamos saber fazer a devida opção. Como diz Antero nas Odes Modernas: «Sim! que afinal se saiba tudo isto, / E se veja o caminho aonde vamos. / Ver e saber – para que enfim possamos / Escolher entre o Padre e entre o Cristo.»9 O procedimento utilizado na maior parte dos sonetos anticlericais de Oliveira Guerra é, pois, também o do recurso ao «argumento dos dois catolicismos» que Machado de Abreu incluiu na sua tipologia de mecanismos argumentativo do “discurso do anticlericalismo português”10 entre 1850 e 1926, período que não será abusivo prolongar mais 6 anos para incluir os dois primeiros livros do poeta oliveirense. Os próprios temas versados pelo autor convergem, na maior parte dos casos, na apologia do cristianismo primitivo11 vs. um cristianismo espúrio que a Igreja foi adulterando com as suas leis, dogmas e práticas voltadas para a intolerância, para a ostentação, para a exploração e crescente intromissão na esfera temporal. Muitos dos sonetos delatam os casos de ganância e de preocupação pelo dinheiro e pelos haveres dos ministros da Igreja, enquanto, do outro lado, subvivem os miseráveis e o próprio Cristo vagueia, clandestino e pedinte, chegando a roubar para sobreviver. Em vez de uma religião da comunidade, que divide os bens, é a religião do dinheiro, que se multiplica, aquilo a que Junqueiro se referia nestes termos: «E toda essa riqueza imensa acumulada / Por tantos financeiros, / O que é 9 - Antero de Quental, “Pater” in Idem, Odes Modernas, 3.ª edição, Porto, Livraria Chardron, 1898 (1865), p.46. 10 - Cf. Luís Machado de Abreu, “O Discurso do anticlericalismo português (1850-1926)” in Idem, Ensaios Anticlericais, Lisboa, Roma Editora, 2004, p.65. 11 - Cf. “Os Temas do Discurso Anticlerical” in Idem, ibidem, p.47ss.

economia, ó Deus! foi começada / Só com trinta dinheiros!»12 Soneto paradigmático para ilustrar esta questão, até pelo título – “Ontem e hoje”, é aquele em que se exalta o Cristo primitivo que amou «os pobres e os desprotegidos» e se insurgiu «contra os poderosos» e hoje (aí vem o contraste) vê a «opulência de luzes, de cristais, de joalharia e de arte pura» da sua igreja, levando o sujeito poético a comentar ironicamente: «…Só falta que te tratem de “Excelência” / p’ra que pertenças à aristocracia…»13 O mesmo acontece com o soneto “Mutação” em que, como já se referiu atrás, os algozes de Cristo de outrora, que são identificados com a escória da sociedade, são hoje o Clero, a burguesia e a fidalguia «que as leis da Igreja aclamam e acatam».14 Depois, ao Cristo humilde e simples é contraposto o Padre, que, para ter êxito no seu múnus de «servir a Deus condignamente», não precisa de ser inteligente, mas essencialmente «esperto»15. O Cristo manso e pacífico, que se deixou matar, é confrontado com o cruzado rancoroso que trespassa o mouro à espadeirada.16 O Cristo puro e casto dos evangelhos é apagado pela imagem torpe do sacerdote que seduz a criada17 ou as suas confessadas18 e frequenta o lupanar (nada que não figurasse já na Velhice do Padre Eterno, quando Jesus convidado a visitar a terra, encontra «uns padres sem batinas» num local semelhante («Decerto não virão pregar às concubinas / o 6.º mandamento!19»). Finalmente, a religião daquele que exaltou a justiça e a equidade é contrariada por uma religião de discriminação, que proíbe aos humildes ocupar um lugar no templo, ao lado dos ricos20, ou ao pobre receber esmola, no caso de viver em mancebia21. A religião que deveria libertar é substituída pela que condiciona a liberdade individual (os sinos que acordam a aldeia, o padre que aparece à hora em que se está mais debilitado) ou pela que explora até pela resignação que tanto enaltece. Para perpetuar este status, a oração revela-se sempre egoísta e o obscurantismo (aquele «búfalo de pedra às cornadas na aurora», de que fala Junqueiro) é uma besta 12 - Guerra Junqueiro, “O dinheiro de S. Pedro, in A Velhice do Padre Eterno, Porto, Lello & Irmão Editores, 1967 (1885), p.94. 13 - Oliveira Guerra, “Ontem e hoje…”, in Padre…Nosso, p.53. 14 - Oliveira Guerra, “Mutação”, in Ave Maria, p.91. 15 - Oliveira Guerra, “Condição essencial”, in Padre…Nosso, p.57. 16 - Id., “Propagação da fé”, in Ave Maria, p.21. 17 - Id,”Vida santa” in Padre…Nosso, p.61. 18 - Id,”Confissão” in Ibid., p.79. 19 - Guerra Junqueiro, “A semana santa” in Op. cit.., p.59. 20 - Guerra Junqueiro, “Decoro” in Padre…Nosso p.49. 21 - Oliveira Guerra, “Caridade vicentina”, in Ave Maria, p.47.

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colossal e arqui-secular, contra a qual não adianta, de facto, o poeta insurgir-se com sonetos que denunciam a contaminação do sagrado pelo profano, ou a compra de um lugar no céu com o maior número de missas, ou, ainda, a transformação do templo numa botica e de Deus num boticário, como diz o poeta que o terá inspirado em A Velhice do Padre Eterno, sobre as benzeduras milagrosas com a água de Lourdes. Enfim, a Igreja que o poeta acusa de dedo em riste é aquela que adora a imagem de Cristo, que «refulge no altar», enquanto verdadeiro modelo é esquecido e perseguido.22 Oliveira Guerra parte quase sempre de um quadro, uma espécie de instantâneo da vida, a que tenta emprestar autenticidade, para a habitual generalização mil vezes utilizada pelo discurso anticlerical. Os topos do luxo e do tesouro temporal da Igreja, da mulher seduzida, da boa mesa, da «vida santa» e da quebra do voto de castidade por parte dos clérigos, das imoralidades nos conventos, da oração do «venha-a-nós», da incoerência da pregação com a prática, tudo isso fora sendo já repetido e, enfim, banalizado por muitos, incluindo o seu virulento modelo junqueiriano. O poeta de Padre…Nosso e Ave Maria revela-se um crente anticlerical militante, talvez muito pouco imparcial, porque também ele detentor de uma verdade, que praticamente não admite excepções. Tudo na Igreja assume o carácter de baixeza e de imoralidade, todas as personagens humanas com ela relacionadas são indecorosas e a única que foge à regra e denota dignidade é a figura daquele sacerdote que, recusando livrar-se da filha, se redime do acto imoral que a originou. O sucesso de Padre…Nosso (não será fácil dizer o mesmo de Ave Maria, dada a sua publicação tardia em época mais vigiada pela censura e apesar do grau de maior apuro da escrita de Oliveira Guerra) ter-se-á também ficado a dever, não apenas à polémica que originou na imprensa, mas também à «solidez» e facilidade comunicante do estereótipo, ao seu carácter esquemático, caricatural e simplista, facilmente transmissível.23 E se o estereótipo facilita a comunicação, por ser «discurso previsível» (Roland Barthes), mas simultaneamente a depaupera, porque nada acrescenta à mensagem e lhe rouba frescura, tem, pelo menos o condão, como observa Sami-Ali, ao falar do banal, de conservar, ainda que «em esquema simplificado ao máximo e o mais palpável possível, o conteúdo da experiência humana»24. 22 - Cf. Oliveira Guerra, “Sonho II” in Ave Maria, p.51. 23 - Cf. Luís Machado de Abreu, “Os estereótipos na prática discursiva do anticlericalismo” in op. cit., p.135-143. 24 - Cf. Mahmoud Sami-Ali, Le Banal, Paris, Gallimard, 1998.

Isso significa que a espessura do estereótipo pode subtrair novidade à informação e introduzir-lhe a fadiga, mas não lhe retira verdade, porque é «concreção» e «palavra congelada»: «aquele que não tolere a consistência fecha-se a uma ética de verdade», escreve Roland Barthes25. Significa tudo isto que Oliveira Guerra empreendeu esta luta de boa-fé e inspirado na realidade do que viu e soube («Vemos, ouvimos e lemos», como diz Sophia): ainda que tenha escamoteado as imensas virtudes de tantos sacerdotes zelosos e excepcionais e de cristãos exemplares e heróicos ou o papel edificante da Igreja em múltiplos aspectos da sociedade, o que terá pretendido dizer é que aquela «instituição multi-secular» que é imune aos seus ataques, como insinuou o Notícias Ilustrado em 1932, é também uma instituição com as suas verdades, que não admitem excepções, com as suas concreções e espessas estereotipias que fizeram dela algo que só muito esporádica e parcelarmente correspondeu à transformação profunda que dela se esperava e que o seu fundador projectou. Se o autor pode ser acusado de algum facciosismo, disso mesmo se redime ao alargar o âmbito da sua crença. Convém lembrar que, apesar de tudo, o número de sonetos anticlericais da sua obra é claramente ultrapassado pelo número de sonetos que não assumem essa feição. E é aí que se verifica mais claramente a positividade do seu anticlericalismo, inserido num objectivo mais lato que é o de dar voz a quem a não tem: os oprimidos, os explorados, os que são vítimas da discriminação, todos os que sofrem no corpo e na alma, todos os que, esperando ser libertos, são pelo contrário espezinhados. Padre… Nosso, no soneto inaugural, é dedicado «aos pobres e oprimidos», aos humildes, aos sem-pão, que «mercê da devoção vivem felizes, mansos, dia a dia». Por isso, como já vimos, o sujeito poético diz em Ave Maria que é revolucionário por desejar o pão, a cultura e a felicidade para todos. Há, pois, uma proximidade de intenções com os ideais cristãos que poderá fazer supor que o seu anticlericalismo é interior, ou seja, decorre das preocupações de um cristão, como se pode depreender dos mecanismos argumentativos já aduzidos, em ver reconduzidos esses ideais à primitiva pureza.| Por outro lado, o primeiro soneto de Ave Maria é um credo de ateísmo: o sujeito poético quis acreditar em Deus, mas 25 - Cf. Roland Barthes, Roland Barthes por Roland Barthes, Lisboa, Edições 70, 1976 , p.70.


isso tornou-se inviável perante «um mundo pobre e triste e desvairado, um mundo que foi mal edificado / ou que logo a seguir degenerou.»26 Já em Padre… Nosso se entendera que o seu Deus era, como no Antero das Odes Modernas, a Natureza: «o Céu profundo é um templo colossal, / a terra, em volta, é um salmo divinal / e a lua é um cristalino lampadário.»27 No entanto, o texto poético de abertura de Ave Maria, que não é soneto e que muito possivelmente foi inserido depois de estabelecida a colectânea, é uma invocação a Maria de Nazaré e termina assim: «És tu, Maria, mais do que a paixão / do mártir, do teu filho, és tu, oh! Mãe,/ o que me faz cristão/ e poeta também.»28 Temos, assim, o caso particular de um poeta ateu, que se diz cristão, até pelo respeito com que é tratada, na sua obra, a figura de Cristo-homem. Pode, pois, dizer-se que o seu anticlericalismo tem algo de interior e que, embora não acreditasse em Deus, acreditava ser Cristo um homem especial, traído, afinal, pela sua Igreja e pelos seus seguidores.

Bibliografia Bibliografia Activa GUERRA, Oliveira, Padre… Nosso, Porto, [s.e.], 1932 GUERRA, Oliveira, Ave Maria, Porto, [s.e.], 1960 (1932) GUERRA, Oliveira, Caminho Longo (Contos), Porto, Edições da Céltica, s/d (1963) GUERRA, Oliveira, Algemas (Poemas), Porto, Edições da Céltica, s/d (1963) GUERRA, Oliveira, Coisas desta Negra Vida (Poemas Porto, Edições da Céltica, s/d (1963) GUERRA, Oliveira, Esta Cidade Que Eu Amo, 2.ª edição, Porto, Edição de Maria Virgínia Monteiro, 1999 GUERRA, Oliveira, Escritos - Dois contos e alguns poemas, Oliveira de Azeméis, Edição do Jornal “A Voz de Azeméis”, 2001 GUERRA, Oliveira (organização literária e editorial), Céltica – Caderno de Estudos Galaico-Portugueses, n.os 1 a 4, Porto, s/d (1960 – 1963) GUERRA, Oliveira, Caminho Longo – Antologia de Sonetos de Manuel Oliveira Guerra, organização de Maria Virgínia Guerra, Prefácio de Salvato Trigo, Posfácio de Jorge Listopad, Papiro Editora, Porto, 2006.

Bibliografia Passiva ABREU, Luís Machado de, Ensaios Anticlericais, Lisboa, 2004. 26 - Oliveira Guerra, “Razão” in Ave Maria, p.9. 27 - Oliveira Guerra, “Templo” in Padre… Nosso, p.75. Cf. também Antero de Quental, “Pater” in op. cit., p.47, onde «o livre oceano / [é] o salmista das vastas solidões […] / A aurora é o sursum-corda do Universo; / A luz é oremus, porque é hóstia o Sol», etc. 28 - Oliveira Guerra, “Maria” in Ave Maria, p.7.

CORRAL, Concepción Delgado, “Manuel Oliveira Guerra e a revista Céltica no camiño da irmandade galego-portuguesa”, Separata do Anuário Brigantino n.º 27, 2004. CORTES, Cristino, “Uma aventura literária há 40 anos: a Céltica de Oliveira Guerra” in Das Artes e das Letras - O Primeiro de Janeiro, 14, 21 e 28 de Março 2005. GUIMARÃES, Newton Sabbá, “Um poeta esquecido: Oliveira Guerra”, in Das Artes e das Letras - O Primeiro de Janeiro, 4 de Abril 2005. JUNQUEIRO, Guerra, A Velhice do Padre Eterno, Porto, Lello & Irmão Editores, 1967 (1885). MANCELOS, João de, Latitude, Suplemento Cultural de O Aveiro, n.º 9, Outubro 1996, número especial sobre o escritor Oliveira Guerra. MATTOSO, José (direcção), História de Portugal, Vol. VII, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994. MINOIS, Georges, História do Ateísmo, Lisboa, Teorema, 2004. ROCHA, Ilídio (coordenação), Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. IV, Mem Martins, Publicações Europa-América, 1998. TEIXEIRA, Ramiro, “Contos e poemas de Oliveira Guerra”, in Das Artes e das Letras - O Primeiro de Janeiro, 23 de Dezembro 2002. VIEIRA, Joaquim, Portugal Século XX – Crónicas em Imagens, Vols. 1920-1930 e 1930-1940, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998.

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11 de Setembro 2001* * Surrealismo tridimensional (3D) O fatídico dia é representado como uma ferida aberta no coração do Mundo - a desigual luta entre o bem e o mal, ou o correcto e o errado do Mundo actual.

Surrealismo tridimensional (3D) Corrente Artística que através das suas imagens 144

momentâneas, propõe transportar o observador para um mundo actual com diversos temas propondo viajar pelo quotidiano de cada um de nós, através de objectos. A imagem obtida é sempre uma imagem consinta e simples, sendo essa simplicidade o resultado de uma direcção concreta entrelaçando a imagem com o próprio tema. A utilização de diversos métodos e técnicas, passando por uma reciclagem de materiais diversos que só por si têm uma força directa e intrínseca escolhidos no acto consinto de imagem. Acompanhada por uma força anímica, as imagens como um só.

* João Rodrigues explora os diversos métodos de pintura e processos artísticos, através dos quais cria vários Mundos Antagónicos, mas semelhantes na sua carga artística transmitindo uma intensa criatividade. A multifacetada faceta do João Rodrigues leva-o a ter obras com diferentes padrões e estilos artísticos, que vão desde o surrealismo tridimensional, abstractos, esculturas de cerâmica. www.jrartistaplastico.com


As Máscaras do Preste João Maria da Conceição Vilhena* 1. Preste João é uma misteriosa personagem medieval. É mito. É história. É literatura. Nasce, cresce e morre, como sucede a qualquer criatura. É referido num grande número de documentos, que vão do séc. XII ao séc. XVI; e sobre ele existem duas obras que utilizamos neste trabalho: La Lettre du Prête Jean, da Literatura medieval francesa, cuja autoria é atribuída ao próprio Preste João; e a Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias, da autoria do P.e Francisco Álvares, que se integra na nossa literatura da expansão. 2. Mas antes de entrarmos propriamente no assunto das máscaras, façamos um rápido comentário ao significada da expressão «Preste João». Não se trata de um antropónimo, mas de um título, o mais honroso, o mais nobre e o mais elevado que se possa imaginar. Preste significa sacerdote; e é derivado do grego «presbyteros», através de forma latina «presbyter», que deu em francês arcaico «preste», a que corresponde prêtre, no francês contemporâneo, isto é, padre ou sacerdote. Quanto a João, também não se trata de modo algum de um pronome, mas de um designativo de soberania. A sua origem é problemática e têm sido propostas algumas formas

de línguas orientais, como Juhanam, do siríaco. Também se admite ser derivado de Vizan, nome indiano do sucessor de S. Tomé. A rainha Helena, que se correspondeu com D. Manuel, era um «Preste João», como nos diz o P.e Francisco Álvares. 3. Omito do Preste começa a delinear-se no meio das comunidades cristãs espalhadas pelo Oriente. O Preste João é então uma personagem sem contornos definidos, mas já com duas características fundamentais, imprescindíveis − é cristão e é poderoso. É portanto aquele desejável aliado, sonhado pelo Ocidente Cristão, para o ajudar na luta contra os infiéis. A ideia das Cruzadas surge na Europa do séc. IX; e prosseguem as expedições a partir do séc. XI, com vista a arrancar os Lugares Santos das mãos do muçulmanos. As vitórias sucedem-se inicialmente, mas muito em breve começam a alternar com as derrotas. Edessa é tomada pelos infiéis em 1144; e é grande a emoção entre os cristãos por se tratar da capital do principado cristão, fundada por Godofredo de Bulhão, após a conquista de Jerusalém, em 1099. Assim se torna cada vez mais premente a necessidade de um aliado que ataque o Islão pela retaguarda. Ora os peregrinos vindos de Roma e Jerusalém, bem como mercadores e aventureiros, vindos de Constantinopla, dão notícia de um poderosíssimo rei cristão, situado inicialmente algures na Ásia − China e Índia, ou na Arménia, na Mesopotâmia, na Arábia, sempre em lugar incerto. A mais antiga notícia sobre o Preste João, foi dada na corte do Papa Eugénio III, em 1145, por um bispo

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

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sírio de origem francesa, que vinha pedir auxílio, após a queda de Edessa, em 1144. O império do poderoso rei-sacerdote de quem fala, situa-se a leste da Pérsia e da Arménia. É descendente de um dos Magos, cristão nestoreano, vencedor de Medos e Persas, e tenciona libertar Jerusalém. A primeira máscara atribuída ao Preste João é a de um Cruzado, valente e corajoso, pronto a esmagar o poderio muçulmano e a libertar os Lugares Santos. 4. Por volta de 1165 surge então uma longa carta, em latim, que teria sido enviada pelo Preste João ao imperador de Bisâncio, Manuel Coménio; e que logo foi traduzida para francês por um clérigo que assinou Rauau d’Arundel. Trata-se de uma carta apócrifa, que conheceu um sucesso enorme, de que é conhecida uma centena de versões manuscritas, em várias línguas, em cada uma delas tendo sido intercalado o que parecia mais conveniente. Daí ser um texto fantasioso e belo, testemunha de uma imaginação rica, capaz de criar um ambiente feérico, paradisíaco, de um exotismo hiperbólico e maravilhoso, numa excelente amálgama de horror sublime e delicioso. Com efeito, no texto desta carta deparamos com os mais variados monstros e riquezas mais apetecíveis − amazonas e centauros, homens com cabeça de cão, homens anfíbios, unicórnios e aves sanguíneas, leões vermelhos e verdes, liliputianos e gigantes, enfim tudo o que uma imaginação fértil é capaz de criar. Há, no reino do Preste João, rios que nascem no Paraíso Terreal e cujo leito é coalhado de pedras preciosas. A água das fontes é miraculosa. Nos palácios, de mármore e bronze, abunda o ouro, a prata, o estanho e o marfim. E não se trata só de beleza, mas também de riqueza, pois no reino do Preste João há pimenta, a tão almejada especiaria que movia reis e mercadores a procurá-la tão ansiosamente. Mas a carta exprime sobretudo a sedução dos europeus pelas riquezas orientais: pela decoração requintada dos palácios, as maravilhosas obras de arte, a riqueza dos materiais, a vivacidade das cores, a suavidade dos tapetes, a sedutora magia de deslumbrantes peças de um extremo e original bom gosto. Uma tradição de luxo e requinte, de preciosa qualidade, que produzia nos europeus (por vezes rudes) um encantamento irresistível. É essa atracção pelo luxo oriental que leva o autor da carta a descrever o país do Preste João, como faziam os poetas franceses de então. Lembremos apenas a canção de gesta Le Pelerinage de Charlemagne onde o palácio do imperador de Constantinopla é de grandeza, luxo e esplendor

igual ao do Preste João. Aliás La Lettre de Prête Jean, na Literatura Francesa Medieval figura como uma chanson courtois. Porquê uma tal sedução pelo luxo oriental no séc. XII? Como surgiu? Ora foram precisamente os cruzados que o descobriram e que, regressando deslumbrados, divulgaram o seu conhecimento e levaram o Ocidente cristão a desejar imitá-lo. Também os mentores das cruzadas, que tanto desejavam encontrar aliados fortes e poderosos, ajudaram nessa divulgação. O Preste João surge assim como o fruto do desejo e da esperança, da confiança na vitória. Um mito que vai dar coragem para o risco do empreendimento. Criando-o, encontrou-se a audácia necessária para a loucura do perseverar. O autor da Carta empresta, pois, ao Preste João a máscara do grande senhor, que vive rodeado de luxo, tranquilamente mergulhado no maior conforto. Uma máscara ao inverso daquela que seria a do herói guerreiro audaz, feroz e sanguinário, como deveria ser a do aliado procurado, para ajudar a destruir o Islão. 5. Passa o tempo e seguem-se as máscaras. Um tempo devorador e criador de reinos, de vitórias e calamidades. No séc. XIII, o Preste João vai encarnar várias personagens históricas. Logo no início do século, ele é judeu, pai de David, ao qual alguns textos se referem como Rex Judaeorum, uma comunidade escondida para lá do mar Cáspio. Tiago de Vitry, bispo de Acre (± 1221), fala de um outro David, rei das duas Índias, que seria o próprio Preste João, cujo auxílio seria precioso aos cristãos, pois havia no seu reino homens canibais que devoravam os muçulmanos. O Preste João foi também identificado com outro David, rei da Geórgia, de quem se diz que defendia as «Portas de Ferro» contra os detestados povos de Gog e Magog. E foi ainda confundido com Gengis-Khan, fundador do império dos Tártaros, unificador de tribos Mongóis, conquistador de uma parte da China. Gengis-Khan (1155 - 1226) era realmente poderosíssimo, o seu reino ia da Pérsia ao Afeganistão, mas foi o terror tanto dos muçulmanos como dos cristãos. Mas, houve mais ainda. Uma variedade de máscaras, tantas quanto produzir pode a imaginação de homens exaltados e assustados, em procura de socorro. Lá, onde se dizia haver um rei poderoso, e cristão, imediatamente os cristãos julgavam ter descoberto o verdadeiro Preste João. Marco Polo (1271-1296) faz referência a Vang-Khan, rei turco-mongol que se teria convertido e que, após o baptismo,


teria tomado o nome de Presbyter Johan. A sua localização era vaga, indo do Gram Cataio (China) até à África. Temos, pois, um rei-sacerdote que é turco, arménio, chinês, herói da Tartárea, imperador das Índias… Esta designação foi a que finalmente prevaleceu. O P.e Francisco Álvares, após a sua longa estadia na Etiópia, dá, ao livro que escreve, o título de Verdadeira Informação das Terras do Preste João das Índias, apesar de já então se considerar o imperador etíope como o verdadeiro Preste João e de já se saber que este reino se situava na África Oriental. 6. Conheciam os portugueses o mito do Preste João? Sim e desde muito cedo, o que nos é atestado por vários documentos. Luís de Albuquerque refere-se a uma versão da Carta, em latim, num manuscrito trecentista, incluído nos códices alcobacenses, sob a epígrafe «Da Índia e dos milagres» citando logo mo início «Presbiter Johannes …» Como terá a notícia chegado a Portugal? Talvez através dos Cruzados que contornavam a costa portuguesa, a caminho da Terra Santa. Talvez através dos trovadores que palmilhavam a Europa, de corte em corte, e que conviviam com trovadores provençais, sobretudo vindos acompanhar os peregrinos a Santiago de Compostela. Talvez através de D. Henrique, conde de Borgonha, pai de D. Afonso Henriques. O Preste João foi, para os portugueses, como a luz do farol longínquo que intriga e atrai; aquela luzinha que aponta um caminho incerto, mas que é estímulo e dá a força indispensável ao prosseguimento da empresa. Mudava de campo o combate (das cruzadas ia-se agora para as descobertas), mas não mudava o projecto. Cruzavamse ou sobrepunham-se a esperança e o desespero, mas a procura daquele poderoso rei-sacerdote continuava. Como escreveu Vauvenarques, a paciência é a arte de esperar; e a dúvida, uma homenagem prestada à esperança. Apesar dos sucessivos desastres e das dúvidas, os reis portugueses alimentavam a confiança na esperança de vir a encontrar o Preste João. 7. Desde quando procuravam os portugueses descobrir o reino do Preste João? Desde o tempo do Infante D. Henrique; e estavam nessa altura convencidos de que esse reino se situava na costa ocidental da África. De chinês, indiano e árabe, o rei-sacerdote tornava-se agora africano. Como os conhecimentos geográficos eram ainda muito deficientes, não se estabelecia então qual a distância que separava as Índias da Etiópia; e é difícil imaginar que feições seriam

atribuídas ao Preste João, se algum pintor tivesse decidido pintar o seu retrato. A obra de arte surge no seu tempo e do seu tempo, sem contar com a voracidade do tempo, a consumir idades e rostos, sem se dar conta das alterações sofridas. Em portulanos e cartas do séc. XIV e XV, o Preste João aparece representado de mitra e báculo, de acordo com a condição eclesiástica que se lhe atribuía. No portulano catalão da Biblioteca de Florença (1433), há uma legenda em que se lê: «Nesta região reina um grande imperador, o Preste João, senhor das índias, que são negros por natureza». Num outro, há homens com cabeça de cão, o que, segundo a Carta, havia no reino do Preste João. E, numa legenda ao lado, podemos ler: «Núbia, país dos cristãos do Preste João, cujo império vai das proximidades do estreito de Cádis para sul, até ao rio do Ouro». O Preste João está agora a residir em África, e será aí a sua última residência. Presente e passado se confundem e assimilam; e, assim, nessa fusão, permanecem como informação para o futuro. O Preste João, se tivesse sido retratado, aparecer-nos-ia hoje ora nos traços fisionómicos de um chinês, ora nos de um indiano. E, nos séc. XIV e XV, ele teria sido representado como um negro de carapinha. Segundo uma carta régia de D. Afonso V, de 1454, o Infante D. Henrique mandara conquistar «as praias da Guiné, da Núbia e da Etiópia»; e D. João II identificara o Preste João com o Ogané, um poderoso rei africano de que falavam os negros de Benim. É só depois de ultrapassado o Cabo da Boa Esperança que os portugueses começam a admitir um outro rumo para atingir o reino do Preste João: agora já identificado com a Etiópia, ele deveria ser procurado através do Mar Vermelho. 8. Entretanto a Etiópia cristã, afastada desde há séculos dos países europeus, deseja reatar contactos com os seus irmãos na fé. Sucedem-se as embaixadas a Itália, a França, a Aragão… cujos membros se deslocam, por vezes, até Portugal. Embaixadas que são bem recebidas e retribuídas. O célebre embaixador Mateus, que chegou a Lisboa em 1514, é portador de uma carta da rainha D. Helena, regente, para o nosso rei D. Manuel. Ao partir, Mateus, em 1515, na armada em que seguia Lopo Soares de Albergaria, sucessor de Afonso de Albuquerque, com ele vai uma embaixada portuguesa, de cuja comitiva faz parte o P. Francisco Álvares. Depois de muitas agruras, demoras, lutas e intrigas, só a 7 de Abril de 1520, cinco anos depois da saída de Lisboa, é

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que os portugueses chegaram às terras do Preste João. E o Preste João veste a sua última máscara: a da realidade. Na primeira tradução francesa da Carta apócrifa, o próprio Preste João diz ao seu destinatário possuir 72 reinos. Na tradução francesa seguinte, os reinos já são só 42. Segundo o dominicano Guilherme Adam, autor da obra Sobre a maneira como destruir os Sarracenos, de 1217, os cristãos etíopes são «um povo poderoso que possui cinco reinos, incluindo o país a que se chama Núbia».De 72 reinos desce-se para 42, os quais depois se reduziram a 5. Tratar-se-á de uma grandeza decrescente em ritmo acelerado, num espaço de tempo que não chega a dois séculos? Ou não será antes o caminhar do mito em relação à realidade? O sonho exalta, o real restringe… 9. Aquele rei-sacerdote, em que se reunia a grandeza máxima do poder − o poder terreno da realeza e o poder divino do sacerdócio − que habitava num palácio esplendoroso, surge-nos agora como um rei nómada, a habitar numa simples tenda, que muda de lugar ao sabor dos seus caprichos. Tenda de panos, que desconhece os mármores, o bronze, o ouro e a prata, apregoados na Carta. É que a Etiópia era então um país subdesenvolvido, obstinado no seu atraso, pobre, decadente, a precisar do auxílio de Portugal. Era um país cristão, mas de um cristianismo desviado da ortodoxia romana. Segundo os rigores tridentinos, seria um país de hereges. Os etíopes praticavam o roubo e o crime, como quaisquer outros povos. A justiça era bárbara e as pessoas pobres e infelizes. O P.e Francisco Álvares não detectou na Etiópia nenhum dos ingredientes fabulosos apregoados pela carta do séc. XII Em vez da magnanimidade própria de um grande senhor, que tem o prazer da delapidação e da liberdade, o Preste João da Etiópia aceitou a humilhação de pedir o auxílio aos portugueses na luta contra os turcos otomanos. E nessas lutas lá morreu o filho de Vasco da Gama. No verdadeiro imperador da Etiópia não se conheciam e nem se fundem os dois expoentes máximos do poder: é rei mas não é sacerdote. Tem na mão o gládio do poder temporal, mas falta-lhe o báculo do poder espiritual. Ele tem, no seu país, a máxima força do poder terreno, mas falta-lhe a força da riqueza. O Preste João etíope não é aquele aliado que poderia ajudar na dilatação da fé e do império. Como ele próprio diz, numa carta a D. Manuel, em matéria de navegação, não possuía a mínima capacidade.

A Ilusão foi bela, mas agónica, porque a força do verídico se revelava inconciliável com a lenda. O mito estacionara na fronteira da verdade. Pela literatura fora divulgada a sua grandeza. Pela literatura se anuncia agora a falência dessa mesma grandeza. O mito tinha os pés de barro e desmoronara-se. Morreu de morte natural, serenamente, ao entroncar na história. Morreu pela mão do P.e Francisco Álvares, ao descrever, sem fantasias, tudo o que viu e ouviu. Quebrara-se o encanto, embora os etíopes tentem ainda recuperar a sua hipotética grandeza do passado, declarando-se descendentes do filho que Salomão tivera da Rainha do Sabá, e a quem entregara as doze tribos de Israel. 10. Quem é afinal o Preste João? Um só nome com várias características e várias localizações, atribuídas ao longo das épocas, de acordo com a ética do momento, de base religiosa e política, a reforçar os interesses da cristandade. A viagem desta personagem errática sob diferentes disfarces, mas sempre fantástica, é o fruto da fantasia a travessar corpos e almas e regiões, em vários tempos, conduzida pela necessidade do abraço fraterno e ambíguo, interesseiro e perturbador, firmado num ambicioso projecto de reciprocidade. Partido do irreal, ornado pela noção de «cristandade unida», ele é recorrência de procura de um fugidio inquietante. Foram díspares experiências, e, por vezes, frustradas estratégias de acção e reacção, só pelos portugueses levadas a cabo. Numa exasperada abrangência de esforços e projectos que exigiram grandes sacrifícios, realizámos finalmente aquele programa do alargamento da fé, a que se juntava a dimensão mercantil, impulsionados sem dúvida pelo mito do Preste João. Frustração, desilusão e decepção, eis os frutos colhidos por Portugal ao contactar aquilo que julgava ser um reino paradisíaco, onde o lobo dormira com o cordeiro. O mito do Preste João ficou na história e na literatura como um produto do imaginário medieval, mascarado pelo tempo; elmo de protecção a uma ideologia; força estimulante da esperança e da coragem, impulsionadora de aventuras; um paradoxo perturbador e espectacular, carregado da força do sonho. Esvaziou-se o mito, mas ficou o fruto. Como dizia Georges Duhamel, «La vérité légendaire est aussi authentique que la vérité historique».


“Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria” Augusto Telmo (*) Na sequência de três artigos anteriormente publicados pela nobre revista ‘Villa da Feira – Terra de Santa Maria’ com a mesma temática, registamos nova peça com vários escritos que farão parte integrante do livro que irá ser publicado aquando das comemorações dos 200 anos das Invasões Francesas e do Massacre de Arrifana, ocorrido a 17 de Abril de 1809, perpetuado pelo belo obelisco em granito existente em pleno coração de Arrifana, o ‘Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria’. “Um dia antes da inauguração do padrão histórico em Arrifana de Santa Maria, em 18 de Abril de 1914, sábado, o jornal ‘Correio da Feira’- Órgão Filiado no Partido Republicano Portuguez, edição nº. 874, jornal semanal, que ainda se publica na sede do concelho, publicava, na sua 1ª. página, a seguinte peça intitulada, ‘O morticínio de 17 de Abril de 1809, na Arrifana’: «Oh! mas o motivo da solenidade que Arrifana amanhã realiza? (*) Licenciado em Engenharia Civil. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial. Professor do Ensino Secundário. Director do Jornal “O Arrifanense”. Tem 3 livros publicados sobre a história local.

Porque se ergue ali, no coração da nossa terra, aquele obelisco tão elegante? Vós sabei-lo bem. Passara a primeira invasão. Os grilhões haviam sido partidos na Roliça e no Vimieiro. Mas os franceses voltam de novo. As milícias e o batalhão académico portugueses, sob o comando de Trant, deteem-nos para aquém do Vouga. A desgraça abre as suas azas negras apenas sobre as povoações do norte. Mas ninguém descrê na libertação. A Arrifana espera também. Um dia, porém, acorda cercada pelo inimigo. Visão cruel, horrível! Sonho desfeito! Impossível a fuga e a resistência. Acorrem todos em tropel, em confusão ao templo (Igreja Matriz de Sª. Mª. de Arrifana).. Na casa de Deus, ninguém ousaria, de certo, molestá-los. Enganosa ideia. Ingénua ilusão. Os soldados que os espreitam não teem Deus. Os bandidos, os facinoras não teem fé! O adro, tão lindo, aparece eriçado de baionetas. Os scelerados invadem o templo. Cruzam o espaço mil gritos de terror. Aqui e além, a indignação referve, explude. São quintados (o quinto a ser contado é separado) os desgraçados. Amarrem as vítimas.

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Esboçam-se lutas, delineam-se duelos. Lampejos de heroísmo, de revolta. Os ousados caem banhados em sangue. Conduzem os infelizes que a sorte designou (os quintados, o número cinco era fuzilado, escapando apenas algum velho ou aleijado) para serem imolados à ira dos tiranos ao campo da Buciqueira, onde numa nuvem horripilante de fumo, à voz sinistra do comando, as balas assassinas lhes ceifam as vidas. (O dia estava ora chuvoso, ora de sol. O morticínio deuse pelas duas horas da tarde, e terminado mesmo que foi, os mesmos soldados incendiaram a aldeia, levaram sete cadáveres que penduraram nas árvores do largo da Feira e outros sete que exposeram no sitio de Carcavellos, na freguesia de S. Thiago de Riba’Ul, local onde a guerrilha oriunda de Arrifana assassinou alguns soldados francezes, incluindo o general Lameth. Os nossos patrícios sobreviventes, aterrados, com esta scena de sangue, só dias depois é que vieram dar sepultura a tantas victimas- in jornal ‘Commércio do Porto de 12 de Maio de 1909).

O saque e o incêndio completam o funestíssimo quadro.» O ‘Jornal de Notícias’, sediado na cidade do Porto, do mesmo dia 18 de Abril de 1914, sábado, dava à estampa na sua 1ª. página, a seguinte peça, intitulada, ‘Em Arrifana- Um padrão Histórico’: “É amanhã que, na povoação de Arrifana, concelho da Feira, se inaugura um monumento que vae perpectuar o sentimento dos arrifanenses, seus patrícios, victimas das maiores barbaridades praticadas pelos francezes, por ocasião da invasão, em 1809, n’aquela encantadora povoação. O padrão mede 18 metros de altura, sendo erguido a expensas dos habitantes daquela localidade, com o concurso da Comissão do Centenário da Guerra Peninsular, de Lisboa, que se fará representar naquela festa. Ao descerramento das lápides do monumento assistem ainda as auctoridades administrativas do concelho e pessoas e pessoas de representação. Serão pronunciados discursos e poesias alusivas ao acto. Abrilhantarão ainda a festa duas bandas de música (a


de Arrifana e a de S. João da Madeira), um grupo musical da localidade (a Tuna Arrifanense) e três pyrotechinos de nomeada. Os festejos principiam às 8 horas da manhã e as bandas de música percorrerão as ruas executando um variado reportório. Commemorando a inauguração d’este monumento, appareceu hontem à venda n’esta cidade (do Porto) um magnífico número único (A Tradição), com photographias reproduzindo o padrão e retratos do General Rodrigues da Costa, etc.. Este número, que custa 5 centavos, insere collaboração, distinctíssima dos srns. D. Fernando Tavares e Távora, D. Maria Fayo, D. Maria da Luz Albuquerque, Manuel Ramos, tenente-coronel do estado amior; Conde de Samodães; Dr. Vaz Ferreira; Dr. Álvaro de Azevedo, Visconde de Castelões, Maximiano Ricca, Dr. Eduardo Pimenta, Júlio Vicente (um dos mais ilustres generais e litteratos), Dr. José Belleza, Saul Rebello Valente, Vicente Rebello de Sousa Reis, etc., etc.” A descrição do que se passou no dia da inauguração do ‘Monumento da Guerra Peninsular em Arrifana’, realizado no dia 19 de Abril de 1914, no local chamado da Buciqueira, descampado onde teriam sido fuzilados os infelizes Arrifanenses, em 17 de Abril de 1809, é feita a seguir com excertos de reportagens publicadas pelos seguintes jornais : no ‘Jornal de Notícias’ do Porto, na sua edição de 29 de Abril de 1914; no jornal ‘O Século’ de Lisboa, na sua edição de 23 de Abril de 1914; no jornal ‘Diário de Notícias’ de Lisboa, na sua edição de 21 de Maio de 1914; no jornal ‘Primeiro de Janeiro’, do Porto, de 24 de Abril de 1914; no jornal ‘Commércio do Porto’, do Porto, na sua edição de 21 de Abril de 1914: “Realizou-se no dia 19, com o maior luzimento, o descerramento solemne das lápides de um padrão monumento, erecto em Arrifana, concelho da Feira, commemorando o morticínio de um punhado de bravos, pela tropas francezas, no anno de 1809, no dia 17 de Abril. Não obstante na véspera e no próprio dia haver chovido torrencialmente, o meio dia de domingo trouxe, com os benéficos raios do Sol, calor, vida, movimento, alegria. Às nove horas e onze minutos da manhã desembarcava no apeadeiro, em Arrifana, vindo no comboio do Valle do Vouga, o major Sr. José Pires, representante do Sr. Ministro da Guerra, acompanhado do seu ajudante, Sr. Silva Marques e

de uma força de infantaria 24 aquartelada em Ovar, composta de 28 praças, sob o comando do alferes José Cudinot e de um sargento (Durilio da Silva Marques), por ordem do Ministério da Guerra. Como o tempo não permitisse não lhe foi feita uma recepção como estava planeada. No entanto compareceram ao desembarque o Presidente da Junta da Paróquia (de Arrifana), Sr. José Maria Rebello e Sousa, os restantes membros da junta e outras pessoas de distinção. Entre o estralejar dos foguetes chegou a força em frente à praça do monumento, onde a banda arrifanense tocou o hymno nacional à sua chegada, dispersando d’ahi a pouco, e espalhando-se pela aldeia a visitar os pontos mais dignos de atenção. Os distintos oficiais foram recebidos em casa do presidente da comissão (de construção do monumento) Sr. Saúl Eduardo Rebello Valente, que lhes ofereceu, bem como ao Sr. Dr. Vitorino Correia de Sá, digno Presidente da Comissão executiva da Câmara Municipal do concelho, Dr. Gaspar Moreira e José Rodrigues (Vereadores da Câmara Municipal), assistindo o Juiz da Comarca Sr. Dr. José Mattoso e Delegado do Procurador da República, Sr. Dr. Carneiro Lopes, Sr. Dr. João de Magalhães, em representação do General Rodrigues da Costa, Presidente da Comissão do Centenário da Guerra Peninsular, um almoço, em que se trocaram affectuosas saudações. Às 13 horas e trinta minutos, as duas escolas oficiais de Arrifana (a masculina e a feminina- da Escola Gomes Rebelo, na Rua), com o seu bello estandarte e dignos professores (D. Maria da Luz e Albuquerque e Sr. Fernando de Castro Sousa maia) saindo das escolas, e acompanhadas pela Junta da Paróquia, por muito povo, pela Tuna Arrifanense e por uma Banda de Música (a philarmónica de S. João da Madeira, de que é Regente o grande Maestro e Compositor, official reformado, Souza Moraes), seguiram para a magnifica residência do Vice-Presidente da Câmara da Feira (casa que existiu em frente ao Centro Social e Paroquial de Arrifana, na actual Rua Saul Eduardo Rebello Valente), para cumprimentarem as distintas individualidades ali presentes, continuando d’ahi em direcção à praça do Monumento da Guerra Peninsular, seguidas de todas as pessoas que estavam na dita residência. Na Praça bellamente engalanada, foi o cortejo recebido festivamente pela Banda de Música de Arrifana e com girandulas de foguetes.

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Chegados ao Pavilhão de Honra, principiou a disposição dos diversos elementos, sendo o pavilhão destinado às senhoras e cavalheiros, às creanças das escolas que ocupavam a frente, ao lado direito, e à presidência, Junta e Câmara para quem estava reservado o centro, tomando também logar a comissão, em companhia dos ilustres oficiaes do exército e dos convidados. A força formou do lado norte do monumento. Serenado o reboliço, tomou a presidência ao acto, pelas duas horas da tarde, a convite do Sr. Saúl Rebello, em nome da Junta da Paróquia, que principiou por dizer qual o motivo por que se realiza aquella festa em Arrifana, o representante do Ministro da Guerra, Major José Pires. Tomando novamente a palavra Saúl Eduardo Rebello Valente, em palavras repassadas de belo colorido, falou sobre a história, a largos traços, do acontecimento. Deveras commovido, diz que não pode deixar de fallar em um nome, que apesar de não pertencer ao número dos vivos, no entanto está bem gravado pela gratidão e saudade no coração de todos os arrifanenses, Américo de Resende (principal mentor e primeiro Presidente da Comissão que erigiu o monumento). Faz o elogio d’esse cidadão arrifanense, que tantos sacrifícios fez, que tão afanadamente trabalhou para o engrandecimento da sua alceia. Lastima que elle não chegasse a ver concluída a sua obra. Refere-se também a um outro nome illustre, dizendo que se não tem pergaminhos, que muitas vezes só servem para encobrir crimes, tem um caracter diamantino, uma alma nobre, um espirito lúcido, um amor estranhado à sua aldeia, é o sr. José Adão Rodrigues Pinhal. Lê a seguir diversas cartas, do Sr. Dr. José Belleza dos Santos, filho d’esta terra, do Sr. Dr. Elisio Pinto d’Almeida e Castro, illustre Senador da República e do sr. General João Carlos Rodrigues da Costa, Presidente da Comissão Official Executiva do Centenário da Guerra Peninsular, pedindo a todos desculpa de não comparecerem por motivos de força maior. O Sr. General João Carlos Rodrigues estava representado pelo Sr. Dr. João Pereira de Magalhães, vereador da Câmara da Feira e antigo Deputado (da República). É lido também um telegrama do mesmo general. Terminando sua Exª. convida para descerrar as lápides o Sr. Major José Pires, como representante do Ministro de Guerra, que presidiu ao acto inaugurativo, o Sr. Dr. Victorino

José Correia de Sá, Presidente da Comissão executiva da Câmara da Feira e o Sr. Dr. Pereira de Magalhães em nome do General João Carlos Rodrigues da Costa, secretários do acto. Depois Saúl Eduardo Rebello Valente convidou a sr. Major José Pires, o Dr. Victorino de Sá e o Dr. João Pereira, para descerrarem as bandeiras nacionais que encobriam as três lápides em mármore do monumento com os dizeres e datas históricas. E o antigo retábulo, coevo do massacre das victimas e do incêndio da povoação, foi descerrado por duas crianças dos dois sexos, das escolas officiaes. No solene momento o Sr. Major Pires levantou calorosas vivas à Pátria e à Republica Portugueza, os quais foram entusiasticamente correspondidos pela enorme multidão que enchia a praça. A força militar apresentou armas, as bandas e a Tuna Arrifanense tocaram o Hino Nacional e subiram ao ar muitas girandolas de foguetes. Foi um momento solene de viva e intensa comoção. Voltando ao pavilhão tomou a palavra o Sr. Major Pires e, todos de pé ouvem em religioso silencio as palavras cheias de verdade e sensatez do illustre official, que n’um belo e sugestivo improviso, rememorou alguns dos episódios das invasões francezas, destacando como um dos mais dolorosos, de entre eles, o morticínio de Arrifana. Dirige-se às creanças das escolas e n’um bello rasgo de oratória e carinho incita-os no amor à sua Pátria, à sua aldeia. E fallando ao povo pede-lhes para que todos ao passarem junto a esse monumento se descubram, porque elle é mais um altar levantado à Pátria onde os seus filhos se sacrificaram e deram a sua vida por ella. Termina por erguer um viva à Republica, à Pátria, e à Arrifana, viva que centenas de peitos não podem calar e se associam, cobrindo o orador com uma quente salva de palmas. Foi muito cumprimentado. Em seguida a menina Maria Lucília Toscano, aluna da escola primária feminina, recitou um lindo trecho patriótico do falecido cónego Alves Mendes, e o menino Ramiro Leite, da escola primária masculina, uma comovente e bem elaborada poesia do Sr. Saúl Rebello, intitulada «Em Memória» e dedicada ao General Rodrigues da Costa, escrita propositadamente para o acto, a qual muito agradou, sendo as duas crianças muito abraçadas e beijadas pela maneira hábil e correcta como se houveram.


Falla depois a digna e muito ilustre professora official de Arrifana, D. Maria da Luz Albuquerque, que n’um belíssimo discurso faz vibrar todas as cordas do sentimento, e d’um sentimento principal - o amor da Pátria. Usa depois da palavra, o digno professor official de Arrifana, Fernando de Castro Sousa Maia. A sua oração foi bella e extensa e por isso não é fácil, nem o espaço o permitte, alongar-me em considerações. Fala depois José Castro Souza Maia, professor de Milheirós de Poares, freguesia próxima, que falou também muito bem. Levanta-se depois, o Sr. Dr. Victorino de Sá, que fala demoradamente das invasões francezas, dos seus resultados funestos, dos horrores praticados pelo soldado francez. A seguir o Sr. Dr. Pereira de Magalhães fala em nome do general (Rodrigues da Costa). Discursou largamente, sendo também muito felicitado. Fala depois o jovem e esperançoso académico, Vicente Sousa Reis, que n’um bem elaborado discurso descreve bellamente as invasões e os infortunios de Arrifana. Por último torna a falar o Sr. Saúl Eduardo Rebello Valente, agradecendo a todos e dando ao Sr. Dr. João de Magalhães uma artística pasta em couro com um escudo em prata cinzelada, trabalho muito mimoso da casa Miranda Filhos, do Porto. Dentro ia um auto da inauguração do monumento, assinado por todos os cavalheiros presentes, como prova de gratidão a que sua exª. fez jus pela orientação e pelo auxilio pecuniário prestado à comissão do monumento no desempenho da missão que esta se impôs, em pergaminho feito pello calligrapho, Sr. Hugo de Noronha. Esta pasta é oferecida ao Sr. General. Em seguida procede-se à assignatura do acto da inauguração, sendo assignado pelo major, pelo sargento Durilio da Silva Marques, pelo alferes José Cudinot, por todos os membros da mesa, junta da paróchia e por outros cavalheiros presentes. O Sr. Major Pires fecha a sessão, agradecendo em nome do illustre Ministro da Guerra, o concurso prestado por todos a esta festa, congratulando-se com a freguesia pelo brilhantismo que ela atingiu e dando um viva enthusiatico à Arrifana e à República, vivas que são correspondidos com delírio. Todos os oradores foram muito aplaudidos. Assistiram a esta solenidade, abrilhantando-a com a sua

presença, além das pessoas referidas e de muitas outras de que não nos foi possível tomar nota, os Srs. Drs. José Maria de Moura Matoso de Vasconcelos, meritíssimo juíz de direito da comarca; Augusto Lopes Carneiro, delegado; António Toscano Soares Barbosa Júnior, contador e Gaspar Alves Moreira, advogado. No fim da sessão solene fez-se ouvir nos seus lindos hinos e canções, habilmente ensaiados e redigidos pelo professor oficial de Milheirós de Poiares, Sr. José Augusto de Sousa Maia, o orfeon escolar infantil daquela freguesia, que a convite da comissão da festa e a pedido também do professor official de Arrifana, irmão d’esse professor, veio assistir à inauguração do monumento. O povo espalhou-se pela Praça enquanto as músicas tocavam nos coretos trechos dos seus variados reportórios. À noite houve iluminação de acetilene, apresentando a Praça um aspecto feerico. Até à meia noite tocaram as bandas, merecendo rasgados elogios não só a banda sanjoanense como a de Arrifana, que se portou à altura dos seus brios. Tanto a banda como a Tuna Arrifanense tocaram o hino arrifanense, composto pelo distinto médico e amador de música Sr. Dr. Aguiar Cardoso, e cuja letra é do sr. Saúl Eduardo Rebelo. Agradou muito sendo calorosamente aplaudido. Entre todos os que trabalharam para o máximo esplendor das festas, é digno de especial louvor o Sr. José Adão Rodrigues Pinhal, que foi de uma iniciativa incansável. A elle se deve a publicação do número único que tantas dificuldades lhe trouxe, mas que elle enfim soube aplanar.

Narrativa do ‘Acto de Inauguração do Monumento da Guerra Peninsular’ Narrativa do acto e cerimónias solenes da inauguração do ‘Monumento da Guerra Peninsular’, que comemora o morticínio praticado pelas tropas francezas n’esta freguesia em dezassete de Abril de mil oitocentos e nove, realizada a dezanove de Abril de mil novecentos e catorze, feita pelo Presidente da Comissão para a erecção do monumento, Saul Eduardo Rebelo Valente. “Fica junto a esta narrativa o auto oficial da inauguração assinado por todas as entidades oficiaes e

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outras pessoas de representação presentes ao acto; com a data de dezassete de Abril, pois que foi em dia d’essa data e no ano de mil oitocentos e nove que se deu o fatal acontecimento e também por coherência porque n’uma inscripção no monumento de diz- ‘solenemente inaugurado a 17 de Abril de 1914. Foi resolvida esta transferência de dous dias, em consequência do desejo manifestado por toda a freguezia, visto que o dia 17 era uma sexta feira, dia de trabalho e o próximo 19 um Domingo e assim a solenidade resultaria mais festiva e a concorrência de povo muito maior. Não quis porém a Junta e a Comissão do Monumento anuir a este desejo da freguesia sem autorização da Comissão Oficial Executiva do Centenário da Guerra Peninsular, e essa autorização foi concedida como consta em correspondência trocada. Por essa correspondência também se mostra que esta digna Comissão do Centenário generosamente contribuiu para o costeio das obras com o Monumento com a quantia de duzentos escudos, sendo cem escudos no início das obras e cem agora para a sua conclusão. Nunca deverá esquecer a freguesia quanto deve a esta comissão Oficial. Empenhandose a Junta e a comissão do Monumento, em dar a este acto solene e festivo todo o possível brilho, resolveu abrir uma subscrição na freguesia que foi muito bem acolhida e até com sacrificio para muitos e essa lista que é um documento de apreço, aqui ficará junto a todos os outros documentos relativos à inauguração para que os vindouros saibam quem tão generosamente concorreu com o seu obulo para a realização da solenidade. Foram os preparativos para o festival da inauguração grandemente prejudicados por uma semana de quasi constante chuva e por isso não foi possível ornamentar convenientemente o pavilhão levantado para o acto da inauguração. Como entidade oficial a Junta oficiou ao Ex.mo Ministro da Guerra, General (António Júlio da Costa) Pereira D’Eça, ao Presidente da Comissão Oficial Executiva do Centenário da Guerra Peninsular, Senhor General J.C. Rodrigues da Costa, à Câmara Municipal, à Administração do Concelho, ao Juiz da Direito e ao Dr. Delegado do Procurador da República; pedindo a sua comparência ou sua representação. No comboio das 9 horas e 11 minutos chegou ao apeadeiro o sr. Major José Pires comandante do 3º. Batalhão aquartelado em Ovar, do Regimento 24 de Infantaria que representava o

Sr. Ministro da Guerra e se fez acompanhar dos alferes Silva Marques e Oudinol, sendo este o comandante da força de 28 praças do mesmo regimento que veio fazer Guarda de Honra do Monumento no acto solene da inauguração. Foi esta força devidamente acolhida e os Sr.s Oficiais recebidos em casa do Presidente da Comissão do Monumento onde almoçaram. Pelas treze e meia horas chegaram a casa do Sr. Saul Rebello as crianças das duas escolas em cortejo trazendo na frente o seu pendão e acompanhadas dos seus professores, a Srª. D. Maria da Luz Albuquerque e Fernando Maia, da Tuna Arrifanense e d’uma banda de música e de muito povo. Aqui se trocaram cumprimentos e se levantaram vivas, com música e foguetes, seguido este cortejo com todas as pessoas que se encontravam em casa do Sr. Saúl Rebello para o largo da Guerra Peninsular onde está erecto o monumento que se inaugurava. Ali subiram todos ao pavilhão juntamente com outras pessoas de representação que se achavam presentes, ficando formada a força (militar) entre o pavilhão e o monumento deixando um espaço vazio. A esta hora já no largo se encontrava muito povo. Levantou-se então o Sr. Saúl Rebello e principiou por justificar-se de ser o primeiro a falar dizendo que era um encargo honroso que lhe tinha cometido a Junta e a Comissão do Monumento para representar a freguesia n’este acto e fazer as honras da casa aos hóspedes de algumas horas. Em seguida citou o facto histórico e trágico que o Monumento recordava fazendo referências às invasões francezas e ao estado decadente e até de aviltamento a que tinham chegado todas as classes e o exército; situação deprimente de que se tinham nobremente levantado, Povo e Exército dos que fez em seguida a apologia. Depois relembrou o grande dever de gratidão que a freguesia tinha contraído com o sr. General Rodrigues da Costa como Presidente da Comissão Oficial do Centenário e todos os seus membros, bem como, com a memória do falecido Américo Rezende, como promotor e principal iniciador do Monumento. Apresentou também cartas dos Sr. General Rodrigues da Costa, Senador Dr. Elysio de Castro e do Sr. Dr. Belleza dos Santos; pedindo desculpa e sentindo não lhes ser possível comparecer; tendo o Sr. General enviado também um telegrama de congratulação pela solenidade da inauguração. Em seguida convidou para a presidência do


acto da inauguração o representante do Ministro, o Sr. Major José Pires e para descerrar as três lápides de mármore com dizeres referentes ao acontecimento de 17 de Abril de 1809 o mesmo Sr. Major, o Sr. Dr. João Pereira de Magalhães, que representava o Sr. General Rodrigues da Costa e o Sr. Dr. Victorino Correia de Sá, Presidente da Comissão Executiva da Câmara Municipal. Dirigiram-se estes Cavalheiros acompanhados de outras pessoas ao Monumento dentro de cujo gradeamento entraram, sendo então descerradas aquelas lápides que estavam cobertas por a bandeira nacional. O retábulo antigo na face norte do Monumento foi descerrado por uma menina e um menino alunos das escolas. N’esta ocasião solene o Sr. Major Pires levantou entusiásticos vivas calorosamente correspondidos, à República, à Patria e a Arrifana, tocando a Tuna e as duas músicas o hino Nacional; a força apresentou armas e queimaram-se muitos foguetes. N’esta ocasião também os alunos das escolas depuzeram uma coroa de ferro representando folhas de carvalho enlaçadas por uma fita que tem numa das pontas a palavra ‘Arrifana’ e na outra as duas eras ‘1809-1914’. Voltando todos ao pavilhão, tomou então a Presidência o Sr. Major Pires e n’um belo improviso que muito agradou, citou em resumo os factos notáveis da história Pátria nas invasões francezas e teve palavras cheias de patriotismo e de louvor para com Arrifana, por ter levado a efeito tão bela ideia. Foi muito aplaudido. Em seguida a menina Lucilia Toscano recitou um discurso que aqui fica junto n’uma cópia por ela assinada; depois o menino Ramiro Leite recitou a poesia “Em Memória”, que vem publicada na “Tradição”; depois falou a Srª. Professora, cujo discurso vem publicado no “Correio da Feira”, aqui também junto; depois falou o Sr. Dr Victorino de Sá que produziu um belo discurso que muito agradou; depois o Sr. Dr. João de Magalhães como representante do General Rodrigues da Costa; depois o Sr. José de Sousa Maia, professor de Milheirós de Poiares cujo discurso aqui também fica arquivado e depois o Sr. Vicente dos Reis Maia cujo discurso foi parte do seu artigo publicado na “Tradição”. Todos muito aplaudidos. Levanta-se ainda o Sr. Major Pires e louvando novamente Arrifana pela redacção de tão nobre ideia como era a erecção d’aquele Monumento e brilhante solenidade da inauguração, agradece em nome do Sr. Ministro que tinha a honra de representar, a quem de tudo faria ciente, a maneira tão

obsequiosa como tinha sido recebido n’esta terra da qual levava as melhores recordações e impressões. Por último toma outra vez a palavra o Sr. Saul Rebello e entrega nas mãos do Sr. Dr. João de Magalhães uma pasta de couro com escudo de prata em que estão gravadas as palavras de oferta d’esta freguesia ao Sr. General Rodrigues da Costa como prova da sua gratidão; levando esta pasta um auto em duplicado do acto da inauguração, que todas as pessoas de representação que se tinham dignado comparecer e assim como ao público em geral; agradece com muito reconhecimento e em nome da freguesia a comparência de todos e dando por finda a cerimónia. Voltando a casa o Sr. Saúl Rebello os Srs. Oficiaes, seguiram pouco tempo depois acompanhados por muitas pessoas ao apeadeiro do Caminho de Ferro, sendo muito afectuosamente despedidos assim como todas as praças do 24 que compunham a força. A tuna e a banda de Arrifana, tocaram pela primeira vez, o hino da terra cuja música é do Ex.mo Sr. Dr. Aguiar Cardoso e letra do Saúl Rebello. Continuou depois o festival popular abrilhantado pelas bandas de Arrifana e de S. João da Madeira com muito fogo no ar até adiantadas horas da noite. Teve um sucesso o jornal único “A Tradição” que se deve ao patriotismo do grande filho de Arrifana, José Adão Rodrigues Pinhal. Ainda antes das últimas palavras do Sr. Saúl Rebello de agradecimento e encerramento da sessão; se levantou o Sr. Major Pires e louvando novamente Arrifana pala realização de tão nobre ideia com era a erecção d’aquele monumento e brilhante solenidade da inauguração, agradece em nome do Sr. Ministro que tinha a honra de representar, a quem de tudo faria ciente, a maneira tão obsequiosa como tinha sido recebido nesta terra da qual levava as melhores recordações e impressões.

“ Auto de inauguração” A dezassete dias do mês de Abril do anno de mil novecentos e catorze, n’este lugar do Outeiro, da freguesia de Arrifana, concelho da Feira e districto de Aveiro, com a assistência das autoridades e individualidades de destaque, se procedeu, com toda a solemnidade, à inauguração de um Padrão comemorativo do luctuoso acontecimento ocorrido

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a dezassete de Abril de mil oitocentos e nove: - incêndio d’esta freguesia e fusilamento de muitos dos seus habitantes, ordenado pelo comando das tropas francezas invasoras, contra as quaes valorosamente investiram os ilustres Arrifanenses, no desejo ardente de verem a sua querida Pátria liberta do jugo estrangeiro. E porque foi n’este lugar - como consta das crónicas do tempo - que se travou uma das mais sangrentas luctas parciais, na qual encontraram a morte alguns Arrifanenses, tendo sido seus corpos pendurados num sobreiro, outrora aqui existente, n’este mesmo lugar, foi erecto o Padrão que assignala tal morticínio, em holocausto da Pátria invadida, e testemunha o Amor da independência, o culto da liberdade e a veneração aos ascendentes pelos filhos d’esta terra. Assinaram o “Auto de Inauguração”, as seguintes individualidades: 156

Como representante de Sua Exª. o Ministro da Guerra: José Pires, Major do 24; Como representante da Exma. Comissão do Centenário da Guerra Peninsular: João Resende de Magalhães; Victorino Joaquim Correia de Sá – Presidente da Comissão Executiva Municipal; José Maria de Moura Matoso Vasconcelos, Juiz; Augusto Lopes Carneiro, Delegado; António Toscano Soares Barbosa, Dr. Contador; Saúl Eduardo Rebello Valente, Vice- Presidente da Câmara e Presidente da Comissão do Monumento; Gaspar Alves Moreira, vereador e advogado; José Rodrigues, vereador; Durilio da Silva Marques, Alferes do 24; Pe. João António Leite Rebello, da Comissão do Monumento; Alfredo Eduardo Rebello e Sousa, da Comissão do Monumento; Conselheiro Manuel d’Oliveira Costa, Padre Caetano Fernandes d’Oliveira, vereador; Alberto Augusto Dias Milheiro, proprietário; José Reynaldo Cudinot, Alferes do 24; António Bernardo Coimbra, negociante; José Maria Rebello e Sousa, Presidente da Junta; Francisco Leite Soares de Rezende, membro da Junta; Manuel Nunes d’ Azevedo, membro da Junta;

Maria da Luz Albuquerque, professora; Fernando de Castro Sousa Maia, professor; José Adão Rodrigues Pinhal, da Comissão do Monumento; Adolfo Amândio Rodrigues, membro da Junta; Manuel Balduíno Gomes dos Santos, farmacêutico e da Comissão do Monumento; Manuel d’Almeida e Silva, Abade da freguesia; Alfredo Rebello Valente, negociante; José Francisco da Costa, da Comissão do Monumento.” E assim fez-se um pouco mais de luz sobre a grande quantidade de inéditos, que versarão, somente, o ‘Padrão Histórico em Arrifana de Santa Maria’, e que irão ver a luz da publicidade, aquando do 200º. Aniversário do ‘Massacre de Arrifana’ no próximo dia 17 de Abril de 2009. Na próxima edição da revista ‘Villa da Feira – Terra de Santa Maria’, far-se-á ainda uma publicação mais alargada de inéditos.


Dicionário Biográfico De Personalidades Feirenses Franscisco Azevedo Brandão* BRANDÃO, Carlos (? - ?). Ou Charles Blandon, cavaleiro normando que com o seu irmão Fernando Brandão veio na hoste do Conde D. Henrique, em 1095, para lutar contra os muçulmanos a pedido de Afonso VI, rei de Leão e Castela. Segundo crónicas antigas viveu em Rio Meão, faleceu solteiro e foi sepultado no Mosteiro de Grijó. Bibliografia Frei Marcos da Cruz, Crónica do Mosteiro de Grijó, século XVII. Jacinto Leitão Manso de Lima, Famílias de Portugal, tomo VII. Nobiliário do Conde D. Pedro. Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços e Brandão. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995. BRANDÃO, Fernando (? - ?). Ou Fernand Blandon, cavaleiro normando que com o seu irmão Carlos veio na hoste do Conde D. Henrique, em 1095,

para lutar contra os muçulmanos, a pedido de Afonso VI, rei de Castela e Leão. Nesse mesmo ano entrou como donatário de uma terra, até ali denominada de Villa Palatiolo, e desde então até hoje ficou a ser conhecida como Paços de Brandão. Aqui construiu o seu palácio com torre, como é timbre dos Brandões, onde hoje se encontra o edifício da Junta de Freguesia. Tomou parte da hoste de D. Afonso Henriques, na batalha de S. Mamede, contra os partidários de sua mãe e do Conde de Trava e foi testemunha do lançamento da primeira pedra e doação de bens ao Mosteiro de Lorvão a 28 de Junho de 1131. Casou e teve dois filhos: Martim Fernandes Brandão, que foi Alcaide-Mor de Évora ao tempo de D. Sancho I, casou com D. Sancha Pais e teve descendência; e Pedro Fernandes Brandão. Faleceu em data incerta e encontra-se sepultado no Mosteiro de Grijó. Os reis das primeiras dinastias escolhiam membros dos Brandões para aios escudeiros, alcaides-mores, regedores e fronteiros. Bibliografia Frei António Brandão, Monarquia Lusitana, livro IX, capítulo XXIIII. Imprensa Nacional. Frei Marcos da Cruz, Crónica do Mosteiro de Grijó, século XVII. Jacinto Leitão Manso de Lima, Famílias de Portugal, tomo VII. Nobiliário do Conde D. Pedro. Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de

* Licenciado em História pela Universidade do Porto e Bacharel em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. Historiador local. É autor de Anais da História de Espinho, O Associativismo em Espinho, Joaquim Pinto Coelho, um político de Espinho, O campo de Aviação de Espinho, O culto de Nª Sª da Ajuda em Espinho e Manuel Laranjeira, por ele mesmo.

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Paços de Brandão. Edição da Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995.

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BRANDÃO, Francisco José de Azevedo Aguiar (1796-1872). Nasceu a 10 de Abril de 1796 na Casa da Torre ou da Capela em Paços de Brandão. Era filho de Manuel José de Sá Pereira Brandão Azevedo Aguiar e Melo e de D Maria Pais dos Santos. Casou a 9 de Novembro de 1837 com D. Maria José de Portugal Vasconcelos, filha de António Bernardino Vasconcelos, tenente-coronel do Regimento de Milícias da Vila da Feira (1823) e vereador da Câmara da Feira (1836). Do seu casamento houve uma filha, Rosina, que faleceu criança. Francisco José divorciou-se de sua mulher em 1845, depois de um longo processo litigioso. Industrial e político, foi proprietário de fábricas de papel em Riomaior, Paços de Brandão e um acérrimo defensor da Causa Liberal. Sobre a sua actividade política, Maria José Ferreira dos Santos, no seu livro «A Industria de Papel em Paços de Brandão e Terras de Santa Maria (Séculos XVIIIXIX), diz o seguinte: «…Os princípios liberais que norteavam Francisco José de Azevedo levaram-no a uma participação activa na guerra civil, colocando-se, sem medos, ao lado da facção progressista. Durante o cerco do Porto afirmou-se como um liberal concorrendo para o bom êxito da Causa da Rainha e da liberdade da Pátria e por íngremes e espinhosos caminhos e com perigo da sua própria vida e bens deu as mais exaustas notícias e movimentos do exército sitiante, escritas pelo seu próprio punho (…), palavras do Marquês de Saldanha, a quem Francisco José de Azevedo Brandão, a 6 de Outubro de 1834, enviara uma petição para que lhe fossem atestados os serviços que prestara à Causa Liberal, durante o cerco do Porto, dando parte de todos os movimentos rebeldes. Neste contexto de guerra civil, Francisco José de Azevedo foi correspondente dos jornais liberais «Chronica Constitucional do Porto» e do «Periódico dos Pobres do Porto». Finda a guerra em 1835, o editor da «Chronica Constitucional do Porto», João Nogueira Gandra, dando testemunho do papel deste grande industrial de papel em favor da Causa da Rainha D. Maia II, declara ter sido Francisco Azevedo (…) «o correspondente para apontar e enviar os papéis impressos do inimigo, para se haver conhecimento delles, e

refutar as doutrinas, mandando-se-lhe os nossos periódicos para passarem por aquellas paragens». Reconhecendo os relevantes serviços prestados à Causa Liberal, D. Maria II agraciou-o com o grau de cavaleiro da Ordem Militar de Cristo (28 de Abril de 1837). Francisco José de Azevedo foi vereador da Câmara Municipal da Feira (1846) e fundador das fábricas de papel de cima e de baixo, em Riomaior, Paços de Brandão, tendo participado na Exposição Nacional das Indústrias Portuguesas, realizada em Lisboa em 1868, tendo sido distinguido com a medalha de cobre pela qualidade do papel de escrita produzido nas suas fábricas. De Teresa de Jesus, solteira, de Paços de Brandão, teve três filhos: Maria José de Azevedo Brandão, Francisco de Azevedo Brandão e José de Azevedo Brandão a quem perfilhou por escritura de 27 de Janeiro de 1860. Faleceu na sua casa de Riomaior a 6 de Maio de 1872. Bibliografia Francisco Azevedo Brandão, «Família Azevedo Aguiar Brandão», Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. Padre Joaquim Correia da Rocha, «Recordar 900 Anos de Paços de Brandão» Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995. Maria José Ferreira dos Santos, «A Indústria de Papel de Paços de Brandão e Terras de Santa Maria (Séculos XVIII-XIX), C.M.F., 2004. «Chronica Constitucional do Porto». «Periódico dos Pobres do Porto». Livro de Assentos de Paços de Brandão, fls 40. BRANDÃO, Francisco Maria de Sousa (1818-1892). Nasceu na Casa da Murtosa, freguesia de Mosteiro, concelho da Feira, em 11 de Maio de 1818. Era filho de Manuel de Sousa Ferreira Brandão. De família liberal lutou na sua juventude ao lado das tropas liberais instigado pelos tios padres, um deles, José Maria de Sousa Brandão, fuzilado em Viseu e o outro, Pantaleão de Sousa Brandão, aconselhou-o a seguir a carreira das armas e defender a causa da Liberdade. Assentou praça como voluntário em 26.2.1834 e entrou nos combates de Santo Tirso, da Ponte de Amarante, da Barra do Pocinho, da ponte de Castro Daire e na batalha de Asseiceira, na Divisão do conde de Vila Flor que acompanhou


até à Convenção de Évora Monte. Foi promovido a alferes em 28.1.1837 e nesse mesmo ano matriculou-se na Academia Politécnica do Porto que frequentou até 1840. Passou depois para a Escola do Exército onde concluiu o curso de EstadoMaior em 21.1.1842, ano em que também fez exame da 10ª cadeira – Economia Política e Direito Administrativo e Comercial na Escola Politécnica de Lisboa. Promovido a tenente em 21.9.1843, foi demitido a 10.2.1844, pelo duque da Terceira, por ter participado na revolta de Torres Novas tendo emigrado primeiramente para Espanha e depois para França, onde se matriculou na École de Ponts et Chaussées, terminando o curso em 1847. Entretanto tinha sido integrado no exército português em 30.5.1846 e quando regressou a Portugal em 14.1.1848, apresentou-se na 1ª Divisão Militar. A 2 de Agosto de 1849, foi em comissão para o Ministério do Reino, como encarregado das obras públicas em Trásos-Montes e no distrito de Viseu e três anos mais tarde, a 18.12.1852, fez parte da comissão de estudo da directriz da linha férrea do Porto a Lisboa. Em 1854 foi nomeado director das obras públicas do distrito de Vila Real e no ano seguinte, encarregado de elaborar o projecto do caminho-de-ferro de Coimbra ao Porto. Elaborou também os estudos do projecto definitivo do caminho-de-ferro da Beira Baixa e deslocouse a Madrid para estudar com os engenheiros espanhóis o ponto de junção das linhas-férreas dos dois países. Ao mesmo tempo que desempenhava a sua actividade como engenheirochefe de 1ª classe no Ministério das Obras Públicas, Sousa Brandão prosseguiu a sua carreira militar. Em 29.4.1851 era capitão, em 15.12.1868, foi promovida a major efectivo do Corpo do Estado-Maior, em 15.4.1874 a tenente-coronel, em 21.1.1876 a coronel e em 5.3.1890 a general de divisão. Foi vogal da Junta Consultiva das Obras Públicas e Minas e fez parte do Grupo do Páteo do Salema e foi um dos convivas no banquete que teve lugar em 25.3.1876, num palacete da Rua do Alecrim, considerada a primeira sessão solene do Partido Republicano. Foi, assim, um dos fundadores deste partido e eleito duas vezes, para o seu directório, uma em 3.4.1876, outra em 22.12.1887 e para a junta consultiva em Janeiro de 1891. Foi eleito deputado pelo círculo da Feira para a legislatura de 1865-1868 (juramento em 26.8.1865). Sousa Brandão vem mencionado no «Dicionário Biográfico Parlamentar, 1834-1910, vol.I (A-C)», de Maria Filomena

Mónica, no verbete assinado por Maria de Lurdes Silva. Falando da sua vida parlamentar diz o seguinte: «Integrou a Comissão de Verificação de Poderes (1865) e de Obras Públicas (1865, 1867). No desempenho das funções que exerceu no Ministério das Obras Públicas como engenheirochefe de 1ª classe, fora encarregado de estudar uma nova directriz da linha férrea do Porto à Régua, trabalho julgado incompatível com as sua funções de deputado, por ter de se ausentar da Câmara com frequência. Além disso, Sousa Brandão discordava do traçado da linha pelo vale do Sousa, por ser um percurso mais longo, tendo sobre o assunto sustentado diálogo com vários deputados, acabando por dizer que estimaria que o ministro entregasse o trabalho a quem merecesse mais a confiança dos interpelantes, o que viria a acontecer em Março de 1866. Participou na discussão de vários projectos de lei, especialmente nos que diziam respeito a caminhos-de-ferro, mas também mereceram a sua intervenção os relativos ao Orçamento de Estado. Votou contra a renovação do contrato do caminho-de-ferro de Sueste porque o achava desfavorável para o Governo, implicando encargos muito elevados e obrigando a despender duas vezes mais do que o necessário para a sua construção (1865). No debate do projecto de lei sobre a construção das linhas férreas do Porto à Galiza e do Porto ao Pinhão, teceu vários comentários de natureza técnica e, embora, como afirmou, «não fosse amigo do Governo», concordou com o projecto nos principais aspectos apresentados pelo ministro das Obras Públicas, mas não deixou de fazer uma proposta relativamente ao traçado e à construção (1857). Na discussão do orçamento do Ministério das Obras Públicas em 1866, interveio criticando, sobretudo, a forma como fora apresentado o Orçamento Geral do Estado. Se alguma qualidade faltava ao Orçamento era a classificação das despesas em todos os ministérios, e dos seus capítulos, raros eram os que satisfaziam uma verdadeira classificação. Apresentou então uma proposta de divisão dos serviços deste Ministério e respectivos capítulos orçamentais. No ano seguinte, quando de novo se discutiu o Orçamento Geral do Estado, lembrou as reflexões feitas no ano anterior, por entender que o Orçamento apresentava as mesmas deficiências na elaboração. Considerava o orçamento o livro que continha todos os actos materiais e morais de um Governo e lamentava que dele se não fizesse maior distribuição, inclusive pelos jornais. Apresentou também uma proposta com

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algumas medidas que, além de visarem a redução da despesa, procuravam melhorar e tornar mais clara a descrição da receita e fixar o prazo do julgamento do exercício de cada ano, pelo Tribunal de Contas (1867). Interveio na discussão do projecto de lei que aumentava o imposto de viação do ano 1867 com mais 20% sobre a contribuição predial, industrial e pessoal e 30% sobre a décima de juros, com duras críticas ao Governo pela falta de organização racional dos serviços públicos, a tendência para aumentar os empregos públicos ainda que à custa da «complicação do expediente». Ao mote “o povo pode e deve pagar mais” há outra fórmula para responder “o serviço público pode e deve custar menos”, e fazia notar que o País se insurgia contra as medidas do ministro da Fazenda, que pretendia salvar as finanças com mais impostos sobre as forças produtivas e sobre os pobres. Defendeu ser necessário organizar um partido verdadeiramente progressista e liberal que prosseguisse sobretudo o desenvolvimento racional do País, que não tivesse outro interesse e outra ambição que atender ao bem geral (1867). Apresentou um projecto de lei que estabelecia novas regras para o recenseamento e sorteio dos indivíduos para o recrutamento naval e subscreveu outro que extinguia o imposto de 6% criado pela Lei de 10.7.1843, substituindo-o por uma contribuição industrial (1867). A sua última intervenção, em 21.6.1867, foi sobre o projecto de lei que autorizava o Governo a prorrogar os prazos para troca e giro das moedas de oiro e prata retiradas da circulação pela Lei de 29.7.1854, fazendo uma proposta no sentido de vir a possibilitar a adesão à convenção internacional para a unificação da moeda. Sousa Brandão dedicou-se também à vida associativa do operariado, tendo sido um dos fundadores da Associação dos Operários em 27.6.1850 e que mais tarde se transformou no Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, cujos estatutos foram por ele elaboradas e aprovadas em 16.6.1853. Foi fundador, com Lopes Mendonça e Vieira da Silva, do «Eco do Operário», cujo primeiro número apareceu em 28.4. 1850.Colaborou ainda no «Progresso», que ajudou a fundar. Foi o primeiro em Portugal a abordar o tema de economia social no seu livro «O Trabalho». Sousa Brandão casou com Maria do Carmo Almeida, filha de Luís António Rebelo de Almeida, negociante em Lisboa, deputado da Junta de Comércio, Agricultura, Tabacos e Navegação e deputado às Cortes de 1826, e com Maria

Benedita de Brito Cabral de Abreu Campos. Deste casamento houve dois filhos: Vicente Carlos de Sousa Brandão que mais tarde foi um notável mineralogista e petrógrafo e Manuel Carlos de Sousa Brandão. Francisco de Sousa Brandão faleceu em 26 de Maio de 1892. Bibliografia Enciclopédia Verbo – Luso-brasileira de Cultura. Ed. Século XXI, Verbo, 1997. Henrique Vaz Ferreira, Ferro Velho, «Correio da Feira», 4.5.1943. Maria Filomena Mónica, Dicionário Biográfico Parlamentar, 1834-1910, Iº vol. (A-C), 2004. BRANDÃO, João de Azevedo Aguiar (1830-1885). Nasceu a 19 de Agosto de 1830 em Paços de Brandão. Era filho de João José de Azevedo Aguiar Brandão, e de D. Inácia dos Anjos Athaíde de Sousa. Foi fidalgo da Casa Real, Comendador da Ordem Militar de Cristo, vereador da Câmara Municipal da Feira (1876), procurador da Junta Geral do Distrito de Paços de Brandão, senhor das Casas do Engenho Novo e da Torre ou da Capela em Paços de Brandão. Foi tesoureiro de uma comissão para a construção da 2ª capela de Nossa Senhora da Ajuda, em Espinho, em 1869. Dirigiu a fábrica do Engenho Novo em vida de seu pai, pois este havia-lhe dado sociedade conforme consta do testamento de João José de Azevedo (Livro de Registos de Testamentos, 1866,fls. 12 a 25) – Arquivo Histórico de Santa Maia da Feira. Pinho Leal no seu livro Portugal Antigo e Moderno (pág.395), referindo-se à fábrica do Engenho Novo, escreveu: «Há nesta freguesia vária fábricas de papel, sendo a mais notável a do lugar do Engenho Novo, do senhor João d’Azevedo Aguiar Brandão, por ser a mais importante, em todo o concelho.». João de Azevedo faleceu solteiro na Casa do Engenho Novo, a 3 de Fevereiro de 1885, legando a fábrica a seu sobrinho, Augusto de Azevedo Pinto de Almeida. Bibliografia Francisco Azevedo Brandão, «Família Azevedo Aguiar Brandão. Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. Francisco Azevedo Brandão, «Anais da História de Espinho (985-1926)» C.M.E. 1991;


Padre Joaquim Correia da Rocha, «Recordar 900 Anos de Paços de Brandão», Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995. Maria José Ferreira dos Santos, «A Indústria de Papel em Paços de Brandão e Terras de Santa Maria (Séculos XVIIIXIX)», C.M.F., 1997. Pinho Leal, «Portugal Antigo e Moderno». Livro de Assentos de Paços de Brandão, fls. 232. Livro de Registos de Testamentos, 1866. BRANDÃO, João José de Azevedo Aguiar (1793-1866). Nasceu a 31 de Dezembro de 1793, na Casa da Torre ou da Capela, em Paços de Brandão. Era filho de Manuel José de Sá Pereira Azevedo Aguiar e Melo e de D. Maria Pais dos Santos. Foi o iniciador da Casa do Engenho Novo e senhor da Casa da Torre ou da Capela, das Quintas da Brévia e do Matoso, em Paços de Brandão Foi bacharel formado em filosofia e medicina pela Universidade de Coimbra, fidalgo da Casa Real, comendador da Ordem Militar de Cristo e cavaleiro da Ordem Militar da Torre e Espada por serviços distintos prestados quando grassava em Portugal a epidemia da febre amarela e da cólera morbus (1845). Foi vereador da Câmara Municipal da Feira (1836), juiz de paz do Distrito de Anta, comarca da Feira e deputado às cortes (1860-1861). Como parlamentar vem mencionado no «Dicionário Biográfico Parlamentar, 1834-1910, vol.I A-C, pág. 265, de Maria Filomena Mónica, com verbete assinado por Maria José Marinho, nos seguintes termos: «Em 1861 foi nomeado, por um ano, substituto do juiz de Direito da Vila da Feira. Deputado em duas legislaturas, ambas pela Vila da Feira, 1860-1861 (não consta o dia de juramento) e 1861-1864 juramento a 10.6.1861.Subscreveu duas propostas, uma, com mais 27 deputados, para renovar a iniciativa do projecto de lei, apresentado a 25.1.1859, para que se pagassem, por inteiro, aos egressos das extintas ordens religiosas, as prestações que lhes eram devidas, revogando o Decreto de 22.8.1843, outra para alterar o projecto da estrada de Arouca a Oliveira de Azeméis. Enviou para a mesa vária representações relativas ao concelho da Vila da Feira, entre as quais: dos proprietários de fábricas de papel contra a proposta de lei de contribuição industrial cujo cálculo os punha em risco de pagarem um tributo que excedia o rendimento; da Câmara Municipal

pedindo nova lei do recrutamento porque os lavradores não achavam quem trabalhasse para eles; do povo da Vila da Feira apoiando o de Ovar e Oliveira de Azeméis, requerendo ramal de estrada que, partindo de Ovar, entroncasse com a do Porto a Lisboa. Ainda a propósito da rede viária interpelou o ministro das Obras Públicas sobre a urgente necessidade de mandar construir um ramal de estrada que ligasse a estação do caminho-de-ferro de Esmoriz à estrada real do Porto a Coimbra. Como membro da Comissão de Revisão das Pautas, subscreveu os projectos de lei que autorizavam o Governo a alterar a cobrança de direitos de portagem na ponte que, em Vila Meã, atravessava o rio Odres e o que atribuía uma nova pauta à Alfândega do Funchal. Subscreveu um projecto de lei que fixava os ordenados aos procuradores da Coroa em 1.200$00 réis anuais e o que criava novas cadeiras na Academia Politécnica do Porto, possibilitando aos alunos que as cursavam o acesso aos diferentes cursos das escolas do Exército e Marinha. Foi, em 1864, um dos deputados designados para fazer parte da deputação que iria apresentar ao rei alguns autógrafos dos decretos da Câmara. Integrou as comissões de Revisão das Pautas Alfandegárias (1860-1851) e Comércio e Artes (1861-1864)». Para além de médico e político foi também um grande industrial com a sua fábrica de papel do Engenho Novo, do Zabumba e da Azenha de Baixo. As duas primeiras chegaralhe às mãos pela bondade do Padre José Pinto de Almeida, tendo fundado a terceira em 1844. É que João José de Azevedo foi o principal herdeiro daquele sacerdote, através do seu casamento com D. Inácia dos Anjos Athaíde de Sousa, viúva do capitão Custódio Pinto de Almeida, realizado a 25 de Dezembro de 1822 e de quem teve quatro filhos: Maria Augusta de Azevedo Aguiar Brandão, Josefina de Azevedo Aguiar Brandão, José de Azevedo Aguiar Brandão e João de Azevedo Aguiar Brandão. João José de Azevedo Aguiar Brandão faleceu na sua casa do Engenho Novo a 26 de Janeiro de 1866. Bibliografia Francisco Azevedo Brandão, «Família Azevedo Aguiar Brandão». Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. Padre Joaquim Correia da Rocha, «Recordar 900 Anos de Paços de Brandão», Junta de Freguesia de Paços de Brandão, 1995.

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Maria Filomena Mónica, Dicionário Biográfico Parlamentar, 1834-1910, v (A-C), 2004. Maria José Ferreira dos Santos, «A Indústria de Papel em Paços de Brandão e Terras de Santa Maria (Séculos XVIII-XIX), C.M.F, 1997. Livro de Assentos de Paços de Brandão, fls 31 v.

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BRANDÃO, José de Azevedo Aguiar (1851-1925). Nasceu na Casa de Riomaior, Paços de Brandão a 25 de Janeiro de 1851. Era filho de Francisco José de Azevedo Aguiar Brandão e de D. Teresa de Jesus Pereira. Foi Comendador da Ordem Militar de Nossa Senhora de Vila Viçosa (Decreto de 21 de Novembro de 1907, publicado no «Diário do Governo nº 275 de 25 de Dezembro de 1907), vereador da Comissão Administrativa Municipal da Feira em 1908. Em 1905 fez parte da Comissão de Beneficência de Paços de Brandão e, em 1908, como proprietário em Espinho fez parte de uma comissão de cidadãos daquele concelho que se deslocou a Lisboa para solicitar junto do governo medidas urgentes para a defesa da Costa de Espinho que tinha sido invadida pelas ondas do oceano e tinha destruído quase todas as casas dos pobres pescadores. Como industrial, foi proprietário e fabricante de papel na sua fábrica do Zabumba e mais tarde, à morte do seu irmão Francisco, em 1981, nas fábricas de cima e de baixo, em Riomaior, Paços de Brandão. José de Azevedo casou em Ovar a 5 de Agosto de 1897 com D. Margarida Ferreira dos Santos, filha de Francisco Gomes Pinto, alferes de Milícia de Ovar e vereador da respectiva Câmara Municipal e de sua mulher, D. Maria Ferreira Pinto. Deste casamento houve seis filhos: José dos Santos, Manuel dos Santos, Irene da Conceição, José Augusto, Ana Arménia e Jaime dos Santos. José de Azevedo Aguiar Brandão faleceu na sua casa de Riomaior a 14 de Fevereiro de 1925. Bibliografia Francisco Azevedo Brandão, «Família Azevedo Aguiar Brandão», Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. «Correio da Feira». «Diário do Governo nº 275 de 25 de Dezembro de 1907. Padre Joaquim Correia da Rocha, «Recordar 900 Anos de Paços de Brandão», Junta de Freguesia de Paços de Brandão 1995.

BRANDÃO José de Sá Pereira (? - ?) Vivia em 1771, segundo Carta de Familiar do Santo Ofício que lhe foi concedida nessa data e que a seguir se transcreve: «que vivia das sua fazendas; natural da freg. de St.ª Maria de Lamas, Feira, e morador na sua quinta da Torre da freg. de S. Cipriano de Paços de Brandão, Feira; filho de Manuel de Sá Moreira e de Brites de Jesus Pereira, naturais de Lamas e moradores em Ponte Nova, Lamas; neto paterno de João de Sá, natural de Santiago de Rio Meão, Feira, e de Cezília Jorge, natural de Lamas, e moradores em Ponte Nova, e materno do Pe. Simão Martins Pereira, abade da freg. de St.ª Maria de Lamas, natural da freg. de Paços de Gaiolo, Benviver, e de Maria Lopes, mulher solteira, natural de Lamas, e aí moradores; casado com Jacinta Luísa de Azevedo e Melo, natural de Paços de Brandão, filha de Eusébio de Azevedo e Aguiar, natural de Paços de Brandão, e de Bernarda Caetana de Melo Teixeira, natural da Vila da Feira, freg. de S. Nicolau, e moradores em Beire, freg. de S. João de Ver, Feira, neta materna do capitão João de Azevedo da Costa, natural de Alpossos, Rio Meão, e de Leonarda de Aguiar, natural de S. Martinho da Várzea do Douro, moradores em Paços de Brandãio, e materna do Lc.º Matias Soares e de Jacinta de Melo Teixeira, naturais e moradores na Vila da Feira. Carta de Familiar do Santo Ofício de 12 de Janeiro de 1771. A.N-T-T- .José – m.126, n.º 2662» Bibliografia Jorge Hugo Pires de Lima, O Distrito de Aveiro nas Habilitações do Santo Ofício. Revista «Arquivo do Distrito de Aveiro», n.º143 (Julho, Agosto e Setembro), 1970. BRANDÃO, Manuel de Souza (?- 1934). Natural da freguesia de Mosteirô, foi funcionário do Ministério do Comércio. Era formado em engenharia civil por uma universidade estrangeira. «Ao engenheiro Souza Brandão deve a freguesia de Mosteir relevantes serviços, pois foi devido à sua personalidade perante os poderes públicos que a freguesia é hoje (1934) atravessada pela estrada que liga à sede do concelho» Faleceu na sua casa de Mosteirô a 15 de Abril de 1934. Bibliografia Jornal «Tradição», 21 de Abril de 1934.


BRANDÃO, Manuel José de Azevedo (1783-1934). Nasceu na Casa da Torre ou da Capela, em Paços de Brandão a 7 de Dezembro de 1783. Era filho de Manuel de Sá Pereira Brandão Azevedo Aguiar e Melo e de D. Maria Pais dos Santos. Capitão, graduado em Major de Milícias da Vila da Feira, senhor da Casa da Torre ou da Capela, em Grijó, casou na dita capela, em 4 de Agosto de 1805, com D. Maria Rita Máxima de Castro, do lugar de Curveiros, filha do Dr. Amaro Moreira do mesmo lugar e de sua mulher, D. Mariana Peniche da freguesia de Perosinho, concelho de Vila Nova de Gaia. O Major de Milícias da Feira, Manuel José de Azevedo Aguiar Brandão foi aprisionado pelas tropas miguelistas e encarcerado com outros liberais no Castelo de Vila Viçosa durante cinco anos. O juiz de fora Goulão, por ódio partidário, conseguiu transferir os detidos para o castelo de Estremoz, onde foram selvaticamente assassinados pelo povoléu, na presença de tropas miguelistas de Cavalaria 2, em 1833. Este episódio vem descrito no jornal «Periódico dos Pobres do Porto», nº 136 de 24 de Junho de 1834 com o título «Horrorosa Mortandade», no livro «Portugal Contemporâneo», de Oliveira Martins, publicado em 1881, no romance histórico «Os Salteadores do Norte», de Eduardo de Noronha, em 1925, no «Correio da Feira» através de um artigo de J. D. Milheiro Fernandes, em 28.2.1948; e numa crónica de Joaquim d’Estremoz (prof. Joaquim José Vermelho), publicado no jornal «Brados do Alentejo, com o título «Uma página de Sangue e Vergonha», editada com outra crónicas num livro com o título de «Nas Lavras do Tempo, Sementes e Raízes, pelas edições Colibri e Câmara Municipal de Estremoz. Ainda hoje (2005) o episódio é recordado em Estremoz, através de publicações turísticas referentes ao castelo, editadas pela Câmara Municipal e pelo Grupo Pestana, concessionário da Pousada Rainha Santa Isabel, estabelecida naquele castelo. Do casamento de Manuel José com D. Maria Rita houve três filhos: Arnaldo de Azevedo Brandão, Camilo de Azevedo Brandão e Ana de Azevedo Brandão. Bibliografia «Correio da Feira» Eduardo de Noronha Os Salteadores do Norte, Ed. O Primeiro de Janeiro, 1925. Francisco Azevedo Brandão, Família Azevedo Aguiar Brandão. Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006.

Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 9oo Anos de Paços de Brandão, C. M. F., 1995. Joaquim José Vermelho, Nas Lavras do Tempo, Sementes e Raízes, Ed. Colibri e Câmara Municipal de Estremoz, 2003. Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, Lisboa 1881. O Periódico dos Pobres do Porto, 1834 BRANDÃO, Manuel dos Santos Azevedo, (1899-1979). Nasceu na Casa de Riomaior, em Paços de Brandão a 23 de Agosto de 1899. Era filho de José de Azevedo Aguiar Brandão e de D. Margarida Ferreira dos Santos. Licenciou-se em Direito na Universidade de Lisboa, tendo sido condiscípulo, na Universidade de Coimbra, do Dr. Belchior Cardoso da Costa, de S. Paio de Oleiros e feito estágio de advogado com o Dr. Paulo de Sá, da Vila da Feira. Foi editor do semanário «O Povo Feirense», fundado a 1 de Abril de 1938 por Ernesto José Correia, tendo assumido a sua direcção após a morte do Dr. Paulo de Sá. O jornal tinha como subtítulo «Jornal Nacionalista», defendendo a doutrina do Estado Novo de Oliveira Salazar. Foi presidente da comissão política da União Nacional, em Paços de Brandão, vereador substituto da Câmara Municipal da Feira no mandato do Dr. Roberto Vaz de Oliveira (1941-1945, secretário da Associação de Futebol de Aveiro, fundador e atleta do Paços de Brandão Futebol Club, onde criou a primeira equipa feminina de futebol do Distrito de Aveiro em 1935. Casou com D. Maria Pereira do Couto, de quem teve dois filhos: Francisco Manuel do Couto Azevedo Brandão e Maria Manuela Pereira do Couto Azevedo Brandão. Manuel dos Santos Azevedo Brandão faleceu em Espinho a 6 de Fevereiro de 1979, estando sepultado em Paços de Brandão. Bibliografia Francisco Azevedo Brandão, Família Azevedo Aguiar Brandão, Revista Villa da Feira – Terra de Santa Maria, n.º 14, 2006. Padre Joaquim Correia da Rocha, Recordar 900 Anos de Paços de Brandão, 1995. Correio da Feira O Povo Feirense

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BRANDÃO, Vicente Carlos Correia de Sousa (1799-1878). Nasceu na Casa da Murtosa, freguesia de Mosteirô, concelho da Feira em 1799. Era filho de Manuel de Sousa Ferreira e irmão do general Francisco de Maria de Sousa Brandão. Foi bacharel em leis pela Universidade de Coimbra. Foi magistrado e genealogista. Foi provedor do concelho da Feira em 1833 e 1º. Administrador do mesmo concelho até ser exonerado em 3 de Outubro de 1836. Os seus estudos genealógicos incluem «Genealogia da Família dos Amarais na Terra da Feira» (1838), «Almeida da Ínsua da Freguesia da Carregosa da Comarca da Feira», «Ossela», s/d, «Brandão de Ossela» (com base numa memória de 1761, do Padre M R. Vieira de Macedo). Publicou em 1864, no jornal de Aveiro «O Campeão das Províncias», uma memória sobre Aveiro, escrita em 1687 pelo bacharel Cristóvão de Pinho Queimado, actualizou a genealogia dos Sousas de Arrifana de Santa Maria na Comarca da Feira, de M. de A. de Pinho Tavares e escreveu um artigo sobre o Castelo da Feira na revista «Panorama», de 20 de Novembro de 1844. Um irmão dele, José Maria de Sousa Brandão foi fuzilado em Viseu por ser liberal. Faleceu em Ovar a 12.2.1878.

BRITO, José Peixoto de (? - ?). Natural de S. Pedro de Roriz, arcebispado de Braga, este padre foi assistente na Quinta da Paredinha, Rio Meão. Por testamento verbal nomeou seu herdeiro José Pais, do lugar de Gondufe, S. João de Ver. Faleceu em 19 de Agosto de 1795. Bibliografia David Simões Rodrigues, Rio Meão – A Terra e o Povo na História. Edição da Junta de Freguesia de Rio Meão, 2001. BUGALHO, Domingos Martins (? - ?). Eclesiástico, foi Superior do Mosteiro de Canedo, de 1327 a 1336. Bibliografia Padre António Ferreira Pinto, S. Pedro de Canedo – no concelho da Feira. «Arquivo do Distrito de Aveiro», n.º 15, 1938.

(Continua) Bibliografia A. A. Banha de Andrade, Enciclopédia Verbo LusoBrasileira de Cultura, Ed. Século XXI, Lisboa, 1997. Correio da Feira, 1.10.1955. BRITO, Benjamim Tiago Valente de (1900-1951). Nasceu na Vila da Feira em 1900. Formou-se em Medicina pela Universidade de Lisboa em 1923 e logo a seguir montou consultório na Vila da Feira. Foi Delegado de Saúde da Feira e aqui exerceu vários cargos públicos: foi vice-presidente da Câmara Municipal, provedor da Santa Casa da Misericórdia, presidente dos Bombeiros Voluntários, presidente da Comissão de Vigilância pela Guarda e Conservação do Castelo e presidente da direcção do Clube Feirense. Era casado com D. Judite Fernandes de Brito, de quem teve os seguintes filhos: Maria Albertina, Maria Alzira e António Fernandes de Brito. Faleceu em 8 de Outubro de 1951. Bibliografia Francisco Neves, Do Alto da Piedade. Edição da LAF – Liga dos Amigos da Feira. 2003.


Vexames e Razões do Colonialismo Ibérico no Brasil António Mesquita* II PARTE II.I - O Domínio Espanhol e a Exclusao Social “Não se veja a Restauração como o protesto de um reino que o domínio espanhol tornara decadente. Pelo contrário1.” Com o movimento vitorioso da Restauração de Portugal, em 1640, e as lutas pela consolidação da independência com a Espanha, que se arrastaram por vinte e oito anos, em cuja origem e prossecução foi notório o envolvimento dos missionários da Companhia de Jesus2 e necessariamente do padre António Vieira, por suspeitarem que o Poder centralista Filipino se preparava para lhes retirar a influência temporal do Brasil, com o seu comércio, exploração marítima privada, exploração pecuária e indústria sacarina, consolidou-se a hegemonia dos Jesuítas nos actos políticos, religiosos e culturais no país restaurado, exacerbando1 - Prof. Dr. Joaquim Veríssimo Serrão, presidente da Academia Portuguesa da História, in História de Portugal, vol. IV 2 - “Situação do Império Colonial Português depois da Restauração”, Alfredo Pinheiro Marques in Portugal no Mundo, ed. Alfa, vol. 5 * Jornalista e Investigador Histórico.

se os parâmetros estruturais da sociedade portuguesa. Vector que precipitou o envolvimento da Companhia de Jesus, instigada pela Diplomacia da Corte Francesa, foi a determinação de El-Rei D. Filipe III, em 1635, que na derrama do “Real de Água”, lançada para fazer face à defesa dos ataques holandeses no Brasil, não fossem dispensados de contribuir a Nobreza e o Clero portugueses, que se mantinham isentos de pagar impostos, gerando uma repulsa imediata nestas duas classes. Num Reino em que cerca de um quinto do território pertencia ao Duque de Bragança e um terço às Ordens Religiosas, era inconcebível que o Orçamento do Estado e os Impostos Extraordinários recaíssem somente sobre os Oficiais Mecânicos e a plebe. Focos de revolta se seguiram, com origem nos Sacerdotes e Nobres, primeiro nas mais pequenas e díspares povoações do antigo Reino e depois concentradas num motim altissonante, que ficou conhecido como do “Manuelino de Évora”, precursor da Revolução de 1640. Ratificou o insuspeito presidente da Academia Portuguesa de História3 que essa revolta, subscrita por um indigente e louco da cidade de Évora, “apenas cobria ocultas forças sociais que era a alma do movimento. Tal circunstância permite supor a participação dos mestres da Universidade”, já que revelava “uma preparação “intelectual”, de base religiosa, como motor das alterações”, identificando-se o jesuíta Sebastião Couto, como principal líder. “Ao contrário do que ainda por vezes 3 - Prof. Dr. Veríssimo Serrão, idem, ibidem

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se defende, o povo não participou na conjura, sendo esta orientada pelo referido estrato da nobreza, com agentes da sua privança”- explica o jubilado catedrático. Apelidando de descendentes de Judeus e partidários da União Ibérica os portugueses que se mantiveram activos no comércio e noutras actividades económicas, giro de capitais ou cobranças régias durante os sessenta anos de Portugal como província de Espanha, os padres Jesuítas, autodenominandose directos obreiros do Santo Padre e “estabelecidos por uma particular providência divina para exaltar a Igreja humilhada pelos hereges”4, exploraram como meio catalisador da 4 - Ponto 6., Cap.XVII, da “Secreta Monita –Societatis Jesu”, cuja 1ª. edição latina data de 1614, atribuída a um dissidente Jesuíta

independência nacional o sentimento neomessiânico, a depuração dos quadros da administração civil e religiosa com a “Pureza de Sangue” e a mítica de um “Quinto Império”, que a Divina Providência teria reservado a Portugal no Mundo. O plano concebido para dar agressividade guerreira aos portugueses, acomodados a sessenta anos de subserviência política ao estrangeiro e à estabilidade económica resultante da integração no mercado global ibérico, omitida nos


compêndios históricos da Educação Nacional, com reflexos directos na estabilização dos preços do trigo e géneros de primeira necessidade tão do agrado dos consumidores de menores recursos, não deixou de ser uma epopeia megalómana desesperada com final feliz, atendendo aos poucos recursos humanos, inexistência de Marinha, Cavalaria, Armas ligeiras e canhões de que tinham sido espoliados pelas tropas invasores do mais poderoso Império Europeu da época, detentor duma reconhecida Infantaria devastadora, ainda que a rebelião portuguesa contasse a seu favor com uma conjuntura internacional favorável e poderosos vectores psicoreligiosos internos, experimentados no século anterior, que estavam longe de serem desconexos, inéditos e inofensivos. A Companhia de Jesus ao tomar a direcção da Universidade de Coimbra e o monopólio do Ensino no Reino no séc. XVI rodeara das maiores cautelas não só a docência, mas também os discentes de quaisquer ingerências estranhas, coagindo os habilitandos universitários a jurar as regras Tridentinas, Antijudaicas e Antiprotestantes, tão subtilmente disfarçadas nos cerimoniais universitários que resistiram à Reformulação Pombalina, depois à depuração do Regime Liberal e só expurgadas com a implantação da República, em 19105! Os quadros pedagógicos do Ensino Superior sofreram uma cuidadosa clivagem cultural e ideológica em curto prazo, utilizando um formulário de averiguação sobre a “Pureza de Sangue”, extensiva aos estudantes da Faculdade de Medicina e Boticários a partir de 15696, de modo, que em 1590, quando se reclamou a legitimação jurídica, ao nível das instâncias judiciais do Reino, da candidatura régia do neto do Rei D. Manuel I, D. António, Prior do Crato, à sucessão do ReiCardeal D. Henrique, todos os professores da Universidade a vetaram, com excepção de três catedráticos7, com o fundamento na infâmia ou linhagem infecta, ou seja, na falta da “pureza de sangue” de nascimento da sua mãe, como se a Alta Nobreza e os dignitários da Igreja tivessem sido em todo o tempo incorruptos à beleza das mulheres judias e mouras ou às riquezas ou sabedoria destes povos. Os jurisconsultos portugueses estavam jurídica e profissionalmente manietados pelos princípios ideológicos da Companhia de Jesus, calando por acomodatícia, 5 - “Universidade em Portugal – Marcos da sua História”, Prof. Dr. Manuel Rodrigues 6 - O arquivo histórico da Universidade dispõe dos discentes seiscentistas de Medicina e Boticários os vários processos de “Pureza de Sangue” 7 - VERBO-Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, vocábulo “Universidade de Coimbra”, subscrito pelo Prof. Dr. Veríssimo Serrão, presidente da Academia Portuguesa da História

coação ou orientação teológica a sábia coabitação étnica e racial que remontava aos Soberanos nacionais da 1ª e 2ª Dinastias apostados no engrandecimento da Nação, que se caracterizaram por conciliar, desde os primórdios da nacionalidade, as três religiões existentes no território nacional: Hebraica, Muçulmana e Cristã, responsáveis pelo congénito pendor conciliatório que perdura ainda hoje na generalidade do povo português. Foi, pois, com argumento inconsistente e na óptica dos legistas de Sua Majestade D. José I até infundado, consequente da inata habilidade na manipulação das emoções humanas numa conjuntura de risco derivada do desastre de Alcácer Quibir, onde não faltou a corrupção exógena com distribuição de alvíssaras pelas mais diversas personalidades sociopolíticas e religiosas do Reino8, que os padres de vestes negras, da Ordem fundada pelo espanhol Santo Inácio de Loyola, lançaram Portugal num estado de guerra civil e intervenção bélica internacional e perda, em 1580, da independência e império colonial. O neto de D. Manuel I, aclamado Rei de Portugal, com toda a legitimidade hoje reconhecida sem quaisquer dúvidas, D. António, o Prior do Crato, sucessor do Cardeal-Rei D. Henrique, auxiliado por 3.000 escravos negros da cidade de Lisboa - e foram diversas as intervenções dos Negros e Escravos, como em Tomar, para protestar contra a invasão espanhola! -, foi derrotado na “Batalha da Alcântara” pelas forças terrestres do Duque de Alba e marítimas do Almirante Santa Cruz, redundando num massacre do pequeno exército nacionalista, literalmente varrido pela artilharia e cavalaria adversárias, porquanto o Vice-rei castelhano mandou fechar as portas das muralhas que rodeavam a cidade, obrigando a fugir, ferido El-Rei D. António, para Coimbra, Aveiro e, depois, para o Porto, onde, rejeitado pela população nortenha, é definitivamente batido pelo exército espanhol capitaneado pelo general Sancho de Ávila, estacionado no Norte. Em 1589, com o apoio duma armada comandada pelo Sir Drake e tropas inglesas, insistiu El-Rei D. António em invadir Lisboa, embora infrutiferamente, com um exército terrestre de 1.600 peões e 200 cavaleiros, bloqueando a cidade por mar, sendo, mais uma vez humilhado face às numerosas forças adversárias, devendo denunciar-se a pérfida atitude do seu primo, o Duque de Bragança, sucessivamente designada 8 - A. Magalhães Bastos, in História da Stª. Casa da Misericórdia do Porto

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esta Casa Ducal em todos os transes da História Pátria como reserva da Portugalidade!, que surgiu à frente do seu exército particular, constituído por mais de 6.000 homens, em socorro do Vice-Rei de Portugal nomeado por Espanha, o Cardeal-Arquiduque Alberto, e, logo depois, reforçando o auxílio anterior com um contingente de 7.000 homens numa perfeita ostentação do seu senhorio incomensurável das terras portuguesas9, tipificando, como tantos outros, a página ignominiosa da perda da independência a troco de alvíssaras e lugares eminentes na Corte de Madrid. Para se conhecerem os principais nomes das altas personagens e dignitários traidores da Nação Portuguesa, em 1580, consulte-se, por exemplo, o historiador A. Magalhães Bastos10, um símbolo da cultura da cidade do Porto. 9 - Oliveira Martins, in História de Portugal, vol. II 10 - A. Magalhães Bastos, ibidem, Capítulo “D. Lopo de Almeida”, que cita o Prof. Queirós Veloso, Pinheiro Chagas, Rebelo da Silva e outros.

Tão profundo foi o empenhamento dos teólogos da Contra-Reforma fazedores de novas mentalidades, que cavaram o “1580” e se associaram ao inimigo, vinte/trinta anos depois da entronização de D. Filipe II de Espanha no cobiçado Reino de Portugal, as crianças da tristemente célebre “Confraria da Doutrina”, do núcleo doutrinário jesuíta por excelência no Ocidente, a emblemática Casa Professa de S. Roque, recitavam pelas ruas de Lisboa os hinos litúrgicos em língua Castelhana11 como se a Língua Portuguesa tivesse sido postergada. O Rei D. José I, com acesso privilegiado às fontes documentais dos quadros históricos, muitas das quais se consumiram nos incêndios do “Paço Real da Ribeira das 11 - “Relaçam das Festas que a Religiam da Companhia de Iesu fez...em 1620”, Dr. Jorge Cabral, S.I.


Naus” e do arquivo nacional da “Torre do Tombo” aquando do Terramoto de 1755, resume a intervenção da Companhia de Jesus no escandaloso processo de capitulação portuguesa aos Reis de Espanha nestes termos: “...tendo maquinado os denominados Jesuítas; não só fazerem passar a mesma Coroa a Domínio estranho com a collusão, que foi manifesta por todas as Historias; mas tambem dividiram, e dislaceraram todas as Classes, Ordens, e Gremios do mesmo Reino; com o outro objecto de assim lhes tirarem as forças, com que virão que havião de procurar resistir aos seus enormissimos attentados”, ao introduzirem “aquela Reprovada Distinção, já inventando que Violante Gomes, Mãi do sobredito Dom Antonio, tinha sangue dos ditos “Novos Convertidos”, para inhabilitá-lo por “Cristão Novo” 12. Se o temor ao infecto do sangue propagado pelos sacerdotes da Companhia de Jesus rapidamente se instalou na sociedade portuguesa com a ajuda das posições centralistas do governo de Madrid e durante dois séculos continuada como obsessão paranóica, o medo dos calabouços da Inquisição, os 12 - Lei de 25.05.1773

interrogatórios intermináveis sob tortura fundamentados em vulgares denúncias anónimas, acusações sem contraditório, sancionadas por sentenças sem probatório e sem recurso, criaram um Império Colonial alienante e corrupto. A Irmandade da Misericórdia de Lisboa e a sua imensa rede das instituições similares, no Continente e ilhas, Brasil, África e Índia, que por deliberação Filipina passaram a adoptar em comum o Compromisso ou regulamento interno da instituição-referência de Lisboa de 1618, tinham imposto, a partir de 25.05.1598, aos confrades e respectivas esposas um currículo de Limpeza de Sangue “sem alguma raça de mouro ou judeu”, aplicando aos seus mais modestos serventuários administrativos o grau de pureza semelhante ao requerido aos respectivos confrades ou utilizando a pitoresca linguagem da época - “sem raça”13. Os “Cristãos Novos” foram riscados dos cargos de Mesteres do Senado Municipal de Lisboa por Provisão de Filipe II, de 22.10.1597, medida depressa generalizada em todo o Reino, que aparece transcrita no Livro da Casa dos Vinte e Quatro, de Coimbra14. Provisões reais dirigidas aos Senados Municipais do país como as que se encontram registadas no Senado da cidade de Coimbra, datadas de 14.03.1615 e 08.06.1616, alargam a sua aplicação a todos os oficiais mecânicos e seus descendentes, até a geração de netos, renovando, taxativamente, o impedimento de serem eleitos para quaisquer cargos das Câmaras Municipais. Não bastando esta terrível depuração genealógica destabilizadora da sociedade portuguesa, adicionou-se uma selectiva Provisão, com data de 20.05.1617, que determinou, explicitamente, que nas comissões de trabalho onde entrassem “os Principais” senhores da cidade não figurassem os oficiais mecânicos! Outra Provisão de El-Rei de Madrid, de 21.08.1618, mandou acumular novos impedimentos socioprofissionais à nomeação dos cargos de Almotacé15. Enfatizou-se no compromisso-referência da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa de 1618, na admissão de confrades dos ofícios mecânicos para igualar o número dos associados Nobres, porque era necessário haver quem realizasse as tarefas de que não era digno aos elementos da Nobreza executar nas tarefas diárias da instituição, uma hierarquia 13 - “Compromisso da Stª. Casa da Misericórdia de Lisboa”, de 19.05.1618 14 - J. Pinto Ferreira, in Casa dos Vinte e Quatro de Coimbra 15 - Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, José J. Andrade e Silva, 1855

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de Mestres abastados, com assalariados a seu cargo, que os dispensasse dos trabalhos “de mãos”, num incentivo promocional à escravatura pelos mais ricos e à exclusão das Casas da Misericórdia dos mestres menos afortunados ou mais humildes, que vai promover a tradicional altivez, pretensamente fidalga, do Varão Ibérico, que ainda hoje se projecta na sociedade mais profunda do interior da Península Ibérica. Sucedem-se, então, diversos diplomas discriminatórios, visando condicionar os portugueses dos sectores sociais modestos, impedindo-os de ascender ao grau de “Cidadania” por carência de riqueza ostensiva ou de proeminência na carreira de Armas ou Eclesiástica, englobando tanto Homens Brancos, quer de reconhecida descendência de “Cristãos Velhos”, quer daqueles apontados de terem antepassado Judeu, Mouro ou Negro ou pele ou alma menos branca - os “Cristãos Novos”. O Alvará de 20.10.1621 encerrou no Ofício dos Ourives não só o exercício da profissão a “Negros, Mulatos e Índios”, mas também a sua aprendizagem16. A Provisão de 27.10.1627 vedou a eleição dos “Boticários” e doutras pessoas mecânicas para Procuradores do Concelho, em Tomar17, mas que se transforma em Lei comum do Reino. Impressionados com o peso do labéu de Pessoa Infecta, os Juízes do Ofício dos Confeiteiros de Lisboa reúnem-se para deliberar a supressão na estrutura do seu antigo Regimento, elaborado numa época de entendimento e tolerância cristãs, as designações de “Juízes Cristãos Novos” e “Juízes Cristãos Velhos”, dado que “hoje não é conveniente ao ofício que haja nele tal Regimento porque quase todos os oficiais daquela rua são Cristãos Velhos e assim havendo-se de eleger necessariamente Cristãos Novos para Juiz será forçado serem sempre os mesmos Juízes quanto mais que todos os oficiais da rua afrontados com o dito Regimento feito naquela forma porque pelo mesmo caso que se elege homem em lugar de Juiz de Cristão-novo fica infamado e sua família”18. Ignorando a evidência duma tolerância étnica e cultural num vasto período civilizacional que se alongou até o Renascimento e que se pontuou, sob a tutela directa dos soberanos, pela conciliação em Portugal duma tripla prática

religiosa hebraico-mussulmana-cristã, veio uma minoria de investigadores contemporâneos admitir uma certa convergência dum sentimento esclavagista congénito da sociedade portuguesa contrastante com o da vizinha nação de Espanha, que seria mais humanista, dando como fundamento o debate de Bartolomeu de Las Casas e Jean Ginás Sepúlveda, conselheiro e jurista de Carlos V, em 1550, na cidade de Valladolid, sobre a natureza e alma dos Índios, e o argumento de que em Portugal os “colonos, nem capitães dos navios, negreiros, nem clero, têm a menor dúvida a respeito das condições inferior, animal por assim dizer, dos escravos, índios ou africanos. Tal como são escravos os mestiços resultandodos cruzamentos registados entre os vários grupos populacionais”19. Atente-se, todavia, que o Bispo Frei D. Bartolomeu de Las Casas, que absorveu a sua formação humanística e sacerdotal da Ordem Dominicana, então a promotora na época, na cidade cosmopolita de Lisboa, das Confrarias do Rosário dos Homens Pretos e Pardos, que defenderam parâmetros sociais, humanistícos e religiosos, um lenitivo ao contexto da escravidão, o dignitário Las Casas surgiu como voz duma minoria sem intervenção política na Castela Quinhentista, mesmo agora escamoteada pela sua intrépida denúncia do massacre horroroso das civilizações autóctones do Sul-América perpetrado pelas tropas espanholas, que, incómoda à historiografia castelhana, condiciona a deficitária divulgação pela Espanha de hoje de toda a sua extensa bibliografia e, necessariamente, do seu testemunho no apostolado no México e demais países americanos. Entendemos, por isso, haver um juízo de valores não enquadrado no tempo ou um pretenso sentimento de auto flagelação nacional quando se admite existir em Quinhentos um generalizado sentimento esclavagista da sociedade portuguesa, período em que decorre a discussão teológica espanhola invocada por aquele casal de investigadores20, porquanto todos os documentos históricos acessíveis, particularmente sobre os ascendentes da xenofobia e discriminação social, coincidem ou determinam emergência, agudização e institucionalização com a suserania espanhola da Nação Portuguesa, de 1580 a 1640. Desta conclusão comunga o britânico Charles C. Boxer, que atribui aos Habsburgo espanhóis, a partir de 1580, a proibição

16 - Franz-Paul Langhans, ibidem 17 - José J. Andrade e Silva, ibidem 18 - Assento de 26.11.1629 in “As Corporações dos Ofícios Mecânicos”, ibidem

19 - Isabel Castro Henriques e Alfredo Margarido, “Inferno Negro, Paraíso Branco”, in Factos Desconhecidos da História de Portugal, 2004 20 - Idem, ibidem


“mais rígida e absoluta” de os Cristãos-Novos ocuparem os cargos municipais. Acrescenta o autorizado Historiador, que em 1656, os vereadores de Luanda lembravam à Coroa o impedimento dos Cristãos-Novos de terem sido proibidos de ocupar os cargos no Conselho Municipal e da Magistratura desde o tempo do rei Filipe de Castela21. Decorria ainda a ocupação espanhola em Portugal quando na cidade alentejana de Beja, num cúmulo jurídico das agravadas segregações cronológicas, se toma a resolução, em forma de postura, com data de 163022, invocando a “virtude do pouco serviço de Deus”, de se proibir aos Escravos, Criados, Moços com mais de 14 anos e Oficiais Mecânicos o jogo da bola aos dias da semana, tão rapidamente alargada a todo o território português. A postura do Senado municipal de Beja foi o rastilho dum ostensivo plano político global de exclusão social lusocastelhano, que vai radicar-se na cultura portuguesa nos anos seguintes, separando a classe dos mais fortes e poderosos duma maioria fragilizada constituída de trabalhadores, que viviam do seu salário ou da profissão manufactureira ou de qualquer trabalho de mãos, quer fosse de tez branca ou tez mais queimada, quer fosse cristã-velha ou cristã-nova. Mas a História não pode atribuir, em boa verdade, exclusivamente à tutela ou influência castelhanas e às respectivas cabeças coroadas a implantação das discriminações na sociedade portuguesa. O regime da exclusão humana tem de ser repartido pela cumplicidade dos cinco governadores que compuseram o Conselho de Estado que funcionou em Lisboa durante os sessenta anos da ocupação inimiga na coordenação dos despachos do Paço de Madrid e da junta de administração das colónias ultramarinas, cujos membros nunca se libertaram da hegemonia ditatorial religiosa dos Teólogos da Companhia de Jesus, dominantes e fiscalizadores do espiritual das populações portuguesas pelo sagaz Mandamento da Confissão23, que controlava a alma e as acções das pessoas por mais afastadas que se encontrassem da periferia dos seus “Colégios”. Formalizada a Confissão como Desobriga anual, pela Quaresma, passou rapidamente a ser inventariada nos cartórios das Paróquias de todo o Reino, sob o nome generalizado de “Róis dos Confessados”, de alcance inconfessável no suporte

do aparelho policial e jurídico do “Santo Ofício”, nome dantesco porque era conhecida a Inquisição. A superioridade dos religiosos, dos descendentes da Aristocracia, da oficialidade do ramo das Armas e dos elementos da Riqueza, ficaram separados por um fosso intransponível dos homens do povo da sociedade hispanoportuguesa. Abaixo daquelas classes sociais, massificando os empregados domésticos e os próprios agentes económicos dos quais dependia o Orçamento Geral do Reino, os conhecidos “Mecânicos”, generalizou-se nas consciências dos pseudoaristocráticos o “lixo social”, igual ao estatuto de Escravatura, que uma réstia de decência religiosa impedia de apor grilhões visíveis no território europeu. As coimas dos regimentos profissionais das artesmecânicas e as penas judiciais do Reino iniciaram (séc. XVII/XVIII) a prescrever o desterro dos infractores para o território ou costa de Angola, região conhecida como possuidora da melhor qualidade de seres humanos preferencial da escravatura internacional. Quando se esperava, com o Portugal Restaurado, se retomasse os anteriores valores de tolerância e amor cristãos, a cabeça coroada recaiu nos “Duque de Bragança”, ramo genealógico alternativo ao Poder Reinol, que só assimilaria o mau das discriminações do Interregno Patriota, como se deduz do Alvará, de 04.07.1659, promulgado pela Rainha-Regente por viuvez do seu marido ex-Duque de Bragança, também de linhagem directa e cultura espanholas, que confirmou o impedimento, na Câmara de Elvas, das nomeações para Tesoureiros Municipais dos infortunados “Mecânicos” e “Cristãos Novos”24. Em 1662, na Capela Real do Paço da Ribeira, no chamado “Terreiro do Paço” junto ao Rio Tejo, o persuasivo, melífluo e sentencioso embaixador todo poderoso da Congregação da Companhia de Jesus, o mulato padre António Vieira, nas suas evangélicas predicações da Epifânia, afirmava à Rainha-Regente D. Luísa de Gusmão e Bragança, ao Príncipe-Herdeiro, às açafatas e restante Corte reunida em oração: -“Não é minha tenção que não haja escravos; antes se declarassem, como se declararam, as causas do cativeiro lícito. Nós queremos que tenham escravos, mas sem demónio” 25.

21 - “O Império Marítimo Português 1415-1825” 22 - A. Viana, in Arquivo de Beja 23 - Pedro Gomes Barbosa, “Companhia de Jesus”, in Dicionário Enciclopédico da História de Portugal

24 - Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, ibidem 25 - Pe. António Vieira, in Sermões, Vol. II, pág.49, edição da Livraria Lello & Irmão, Porto, 1945

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Sub-reptício surgiu o alvará do soberano a seguir entronizado, D. Afonso VI, de 11.12.166626, que requalificou que as raças de Cristãos Novos, Mouros e Mulatos não podiam ser escolhidas para as estruturas administrativas da Nação. Concludente do assumir definitivo da xenofobia pela jovem Dinastia Brigantina, revela-se o paradigmático diploma de Agosto de 1671, da regência de D. Pedro II, príncipe que mantém refém nos Açores e depois em Sintra o seu irmão e monarca destituído do Reino e da sua própria esposa, reiterando quem fosse possuidor de Sangue Judeu, Mourisco ou Mulato ou casado com mulher nestas condições não podia exercer funções públicas27. Assiste-se depois no Reino a um afã preocupante dos juristas do Desembargo do Paço em enviar às principais vilas e cidades provisões do teor como as que a Câmara de Abrantes regista nos seus arquivos - o rei D. Pedro II circunscreve aos Nobres os lugares de chefia do Senado da Câmara, que el-rei D. João V retoma em 12.10.1745, ordenando que só “as pessoas da Nobreza” podiam servir nos cargos do Senado Municipal 28. Imediatamente antes da ruptura dos irmãos D.Afonso VI/D.Pedro II, assegura o insuspeito nesta matéria, o sacerdote jesuíta António Vieira, promovera-se um congresso da Companhia de Jesus para estudar e decidir dos rumos políticos e filosóficos do país, pesando os prós e os contra das personalidades soberanas que melhor serviam os interesses do Neomessianismo29, que redundou na devassa da vida sexual do Rei e da Rainha, levando à destituição e prisão perpétua do rei D. Afonso VI e ao acasalamento da Rainha com o seu cunhado elevado a Regente do Reino e depois aclamado rei com o título de D. Pedro II - a direcção política do emergente império português não recaía nas Cortes ou nas Leis de Sucessão, mas dependia do directório dos padres das vestes negras, numa coincidência aterradora com as instruções dum virtual núcleo duro e secreto da Companhia de Jesus, apostado a decalcar as directrizes do ponto 8 do capitulo XVII do controverso Livro Negro dos Jesuíta, conhecido como “Monita Secreta”: “…é necessário que haja escândalo, deve-se oportunamente subverter a situação política e incitar todos os

Príncipes amigos dos nossos a fazerem mutuamente guerra sem tréguas, a fim de que em toda a parte se implore o auxílio da Companhia e o empreguem na reconciliação pública como garante do bem comum e seja remunerada com os principais benefícios e dignidades eclesiásticas”. A escassa bibliografia do início do séc. XVIII não escamoteia que as Ordens Religiosas só seleccionavam para praticantes, quer para cavaleiros quer para o sacerdócio30, indivíduos de Raça Branca que comprovassem, em três gerações consecutivas, que os seus progenitores não obstante católicos “velhos” não dependiam, económicamente, da prática das Artes-Mecânicas, como que o trabalho de mãos infectasse a alma ou a religião de Jesus Cristo. A sociedade nacional estava estratificada como a “Nobiarchia Portugueza”, de António Vilas Boas, editada em 1727, apresenta e que tem sido seguida, na generalidade, em Portugal para a atribuição ou reconhecimento do sangue azul dos seus concidadãos: “… filho para ser Nobre lhe basta ter avô, que o seja, posto que a filha desse avô perdesse a natureza”. Os Lavradores que cultivem as suas herdades próprias não perdem a sua natureza; porém se trabalharem por jornal ou outro interesse perdem a Nobreza e o privilégio de que por razão dela gozavam”. “Os Mercadores de tenda aberta não gozam de nobreza alguma, posto que a tenham.” “Entre os Mecânicos e os Nobres há uma classe de gente que não pode chamar-se Nobre”, apontando que a classe dos Pintores, Cirurgiões e Boticários, “que fazem um estado distinto de plebeus; porém é necessário que ande(m) a cavalo e se tratem bem, porque a arte somente por si não basta a privilegiá-los.” O crescendo da segregação instaurada no Reino levou, com o beneplácito da Casa Real, à formação dum movimento ultra-sigiloso que visava dividir a própria Nobreza, a coberto da Irmandade do Santíssimo Sacramento de Santa Engrácia, de Lisboa, que ficou conhecido como das “Famílias Puritanas”, “como se fosse necessário ser mais puro no sangue do que os ministros dos Tribunais da Fé e das Ordens Militares”, conforme revelará o diploma pombalino, secreto, de 05.10.176831, ao pôr cobro ao refinado movimento sigiloso da alta aristocracia.

26 - J. Pinto Loureiro, ibidem 27 - O Império Colonial Português, de C. R.Boxer 28 - Memória Histórica da Notável Vila de Abrantes, de Manuel António Morato 29 - Carta de 03.03.1664, do Pe. António Vieira a D. Rodrigo de Meneses, citado por J. Lúcio de Azevedo, in A Evolução do Sebastianismo

30 - Deffinicões & Estatutos dos Cavalleyros, e Freyres da Ordem de Nosso Senhor Jesu Christo, 1717 31 - Ayres de Sá, ibidem


Mas o quadro sócio-político da Restauração não fica, totalmente, descrito sem a complementaridade dos condicionantes económicos criados pelos tratados internacionais, subscritos para possibilitar que o ex-Duque de Bragança pudesse manter a Cabeça Coroada, que viveu os últimos anos de soberano num terror patológico por considerar imoral cingir os símbolos da realeza duma Nação que os seus progenitores ajudaram a extinguir sessenta anos atrás, pelo que foi necessário aplicar-lhe na confissão os seus assistentes espirituais penitência de legar a Coroa ao altar mariano da Igreja Matriz da sede do Ducado, Vila Viçosa, nascendo daqui o mito da consagração religiosa de Portugal a Nossa Senhora da Conceição. Em 1654, D. João IV sela com a Inglaterra, em contrapartida do apoio militar contra a Espanha, o monopólio destes velhos aliados negociarem directamente com as colónias portuguesas da Índia, África e Brasil; o gravame dos portugueses ficarem obrigados a fazer os seus transportes através dos mares com os navios ingleses, enquanto não houvesse capacidade de o fazer por navios nacionais; pautou os impostos a tributar nas alfândegas nacionais pelo fornecimento dos artigos ingleses em 23% do valor atribuído na origem; e para dirimir os conflitos ou incidentes com os ingleses em Portugal, foi criada uma autoridade de Juiz-Conservador privativo, a designar pela Inglaterra32. Tais desastrosas condições negociadas com a Inglaterra surgem imediatamente a seguir ao Acordo de 21.06.1641 de D. João IV, que por pressão dos Jesuítas foi firmado com os Holandeses, “que até então nos roubava como inimigo, ia agora espoliar-se como bom amigo; e em nome de uma promessa falaz de socorro, o rei vendia o melhor do seu reino”33, em troca de uma esquadra de 40 navios, dois regimentos de cavalaria, armas e munições, que chegou a estar ancorada no Tejo, mas que se pôs em fuga quando se oficializou a traição holandesa sem que as forças portuguesas esboçassem as mais elementares tentativas de as penhorar34. Por ironia, o Tratado Holandês aparece vingado pelos aborígenes de Angola e do Brasil, que os rechaçaram dos seus solos pátrios, infringindo tão profundo e “natural desgosto aos Holandeses por terem perdido o Brasil “neerlandês” (que) foi grandemente acrescido pelo facto de haverem compreendido

que tinham sido derrotados por um exército sobretudo de cor”35. No entanto, as virtuais ajudas e tréguas negociadas com a Holanda não se limitaram ao óbvio, mas geraram o burlesco compromisso, escamoteado da História de Portugal como Segredo de Estado, divulgado, recentemente, pelo historiador luso-alemão Rainer Daehnardt, de que Portugal acabou por comprar por um novo Tratado de Paz, de 06.08.1661, todos os direitos holandeses sobre o Brasil: - “Os portugueses satisfaçam, como indemnização pelo Brasil, a quantia de quatro milhões de cruzados, ou seja, oito milhões de florins holandeses” 36, pagos num prazo de dezasseis anos em dinheiro de “contado” ou em “assucar”, tabaco ou sal de Setúbal, bem como a devolução de todas as peças de artilharia que lhes tinham sido tomadas! Com respeito ao tratado Anglo-português, de 1654, foi descrito pelo investigador inglês Charles R. Boxer, da Bristish Academy e da Academia Portuguesa da História de Lisboa e grande autoridade em História Portuguesa, como o “mais pernicioso que jamais foi feito com uma cabeça coroada”37, que originou a impunidade do contrabando, punido por Lei interna com a pena de morte, do ouro luso-brasileiro através dos barcos de guerra e da carreira semanal de passageiros de Lisboa-Londres via Calais, que ficaram isentos de quaisquer buscas das autoridades portuguesas, ao ponto das moedas de ouro luso-brasileiras de 4000 réis e 6400 réis, conhecidas nos países anglo-sexões como “Joe”, assumirem-se como dinheiro corrente e exclusivo das possessões da América, Inglaterra e da França antes de 1778! O contrabando histórico não se limitou, todavia, só à moeda-ouro, mas também ao ouro em barra e remontava ao Ciclo do Açúcar, pois, nos fins do séc. XVI, no período Isabelino, o preço de venda ao público do açúcar era mais barato em Londres do que em Lisboa ou na capital açucareira do Brasil - S. Salvador da Baía! Como causa provável desta incongruência, acrescentamos que, em três anos 1589, 1590 e 1591, foram capturados e saqueados pelos corsários ingleses 69 navios do comércio Brasil-Lisboa na maior impunidade38. Infelizmente para a auto-estima dos portugueses, a plurissecular Aliança com a Inglaterra tem tido, em todos os períodos históricos, uma interpretação unilateral

32 - Oliveira Martins, in História de Portugal, vol. II 33 - idem 34 - idem

35 - O Império Marítimo Português - 1415-1825. ibidem 36 - Páginas Secretas da História de Portugal, pág, 53 37 - idem 38 - Charles R. Boxer, ibidem

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em total desprezo pelas mais elementares normas do Direito Internacional, como já denunciou, pedagógica e amargamente, o professor Britânico Charles C. Boxer, dando relevo a um episódio ocorrido no reinado de D. João V, entre o Duque de Newcastle, secretário de Estado para os Assuntos Estrangeiros e o embaixador nacional acreditado em Londres, em que aquele dignitário entendia que “sendo D. João V um monarca absoluto estava preso à letra dos tratados anglo-portugueses, enquanto o Rei Jorge II, sendo um monarca constitucional, podia ser obrigado pelo Parlamento a modificar os pormenores da sua aplicação”39 ! … O quadro macro-económico então existente aparece sintetizado em Oliveira Martins40, um dos poucos historiadores do passado a promover uma precursora filosofia da história, quebrando o tradicional tabu nacional em questionar o conhecimento dos portugueses em que ninguém “sabe mais do que é meramente necessário para si”41: 174

- “O Inglês sentava-se com ele (El-Rei D. João V) à mesa e aplaudia os desperdícios, porque todo o ouro do Brasil passava apenas por Portugal indo fundear em Inglaterra, em pagamento da farinha e dos géneros fabris, com que ela nos alimentava e nos vestia. A indústria nacional constava de óperas e devoções”42. O ouro que afluía fácil e em aluvião na região das Minas Gerais e que rapidamente inundou os mercados europeus por vias paralelas às finanças públicas de Lisboa, gerando êxodos das populações e alimentando fundadas esperanças de enriquecimento global e perspectivas de reestruturação da política social do Reino, com incidência preferencial da classe social vegetativa demograficamente dominante, seriam reduzidas numa “Pragmática de D. João V”, datada de 1749, reconhecendo “grandes inconvenientes que resultam nas conquistas da liberdade de trajarem os negros e os mulatos, filhos de negro ou mulato, ou de mãe negra, da mesma sorte que as pessoas brancas”, fixou o não uso das “sedas mas também de tecidos de lã finos (…) e muito menos lhe será lícito trazerem sobre si o ornato de jóias, nem de ouro ou prata, por mínimo que seja”43… 39 - idem 40 - “História de Portugal”, ibidem 41 - Embaixador inglês Francis Parry em Lisboa, em 1670, citado por C. R. Boxer, ibidem 42 - História de Portugal, vol II, edição Livros de bolso Europa-América 43 - Vitrine Colonial, de Cláudia Cristina Mól, in Nossa História, Setembro de 2005, RJ

Contextualizada toda a emblemática político-religiosa portuguesa, seria temerário que a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Porto, detentora do medieval “Hospital dos Palmeiros”, muito conhecido pelo apoio da Rota do Sul dos peregrinos de Santiago de Compostela, não convocasse uma assembleia-geral, para o dia 20.06.1670, com o objectivo de alterar o Compromisso, a fim de possibilitar a expulsão imediata do quadro social dos confrades de todos os mestres Sapateiros, Curtidores e dos ofícios afins que fossem Negros e Pardos e que nunca mais fosse possível aceitar como irmãos as pessoas destas “infames” características! Este averbamento no regimento interno do Ofício dos Sapateiros foi autorizado pelo Senado da Câmara da cidade do Porto, em 04.03.1673, que submetido ao Desembargo do Paço foi ratificado pelo Regente e futuro soberano D. Pedro II, em pouco mais de um mês - 12.04.167344. O Regimento do “Ofício dos Formeiros e Salteiros de Lisboa”, arte mecânica complementar do Ofício dos Sapateiros, aprovado por El-Rei em 23.07.1725, interpretando o conceito generalizado, prescreve no Capítulo 15, que nenhum mestre poderia ensinar “Preto nem Mulato só sendo seu escravo” e na condição de que se ficasse forro ou se fosse vendido a outro oficial de ramo diferente não poderia ter loja aberta nem fazer obra por sua conta. A lufada da decência só surgirá na década dos anos 70 do séc. XVIII, com a subida ao poder de El-Rei D. José I, ao abolir a dicotomia de Cristãos Novos e Cristãos Velhos, extinguindo a discriminação religiosa45 e anulando o impedimento étnicoreligioso de acesso ao emprego e aos meios de produção. Reflectindo os ensinamentos apostólicos, é decretado o fim da Escravatura46, parecendo liberalizar-se pela primeira vez no Reino de Portugal o exercício patronal na pré-indústria e no comércio, criando condições de igualdade de oportunidades profissionais a Brancos, Negros e Mulatos. Mas a intolerância religiosa reavivar-se-ia com a morte do rei D. José I e a entronização da sua filha D. Maria I, reacendendo-se os hediondos fogos dos “Autos de Fé Humanos” em Coimbra e em Évora, logo em 1781, numa antevisão do canónico Fogo do Inferno que Dante imortalizou literariamente, enquanto o Marquês de Pombal, condenado 44 - “6ª. Adição ao Compromisso”, in O Officio de Çapateyro ..., de António Mesquita 45 - Lei de 25.05.1773, ibidem 46 - Leis de 19.09.1761 e de 16.01.1773, ibidem


sumariamente, é desterrado da Corte para a vila de Pomba com o fundamento de se ter servido, influenciado e exorbitado nas suas funções junto do pai da soberana. Em 5 de Janeiro de 1785 a Rainha extingue no Brasil as fábricas, trava as manufacturas dos ofícios mecânicos e teares e o surto demográfico e económico sustentado pela economia mercantilista do Marquês do Pombal, que já havia possibilitado, no Rio de Janeiro em 1760, o estabelecimento de uma fábrica de sola e outros curtumes de Feliciano Gomes Neves; e concessionado, em 08.04.1776, a Manuel Luís Vieira e Domingos Lopes Louro, na mesma cidade, uma fábrica de descasque de arroz. Outros alvarás tinham sido concedidos para estabelecimentos fabris, em S. Salvador da Baía, em 1767, a José Ferreira Leal, para fabricação de enxárcias e lonas, e, em Pernambuco, em 27.02.1765, a Luís da Costa Monteiro, para atanados, sola e curtumes47 . Em 18.07.1792, D. Maria I, no continente, pelo “Regimento do Ofício dos Surradores de Lisboa”, retoma a pecha racista que a “nenhum Mestre lhe será lícito ensinar ofício a Homem Preto, nem Pardo que seja cativo, seu ou alheio”48, aliando à implantação de um estado policial subordinado ao intendente Pina Manique a recidiva da escravatura, xenofobia e perseguição religiosa extintas pelo regime anterior. Em 1816, já no paço da Corte do Rio de Janeiro, reflectia o pintor francês Jean Debret49, favorito de altos dignitários e da Coroa, que apesar da humanidade, religião cristã e a Lei serem favoráveis aos Negros, que permitia aos pretos com dez anos de escravatura serem resgatados com certidão de alforria pelo preço equivalente à sua aquisição mediante requerimento a Sua Alteza o Regente, havia escravos com mais de vinte e trinta anos de cativeiro. Se o infortúnio comum pode, de algum modo, servir de conforto colectivo ao povo anónimo, banido dos direitos, liberdades ou de quaisquer garantias sociais mais básicas, independentemente de ser da Raça Branca ou da Raça Negra, fruto gerado por uma civilização que exteriorizava magnificência nos Palácios, Solares e Igrejas que constituem hoje ostentoso Património da Humanidade dividido pelo mar Atlântico, as estatísticas de peritos estrangeiros revelavam, na primeira década do séc. XIX, ou seja, no apogeu da Regência do Príncipe D. João e no período da demência de D. Maria I e caracterizado pela contestação à política reformadora do 47 - A Relação das Fábricas de 1788, de Luís Fernando Carvalho Dias 48 - Franz-Paul Langhans, ibidem 49 - Pintor de História Jean Baptiste Debret, ibidem

primeiro-ministro de D. José, na metrópole do vastíssimo Império de Portugal, cerca de 85,36% da população50 continuava a viver nos mais baixos níveis de pobreza e fora dos grandes centros populacionais e, necessariamente no campo, os pequenos lavradores e jornaleiros, compelidos pelos “Dízimos”, “Jugadas” dos votos de Santiago, “Terças” e outros “Foros” dos donatários das terras, atingiam parâmetros de sobrevivência miserável, semelhantes aos antigos servos dos Czares da Rússia51…Com a vigência duma economia de mercado, estrutura fiscal e social obsoletas, assentes na corrupção, compradio e fuga aos impostos, outra coisa não se podia esperar senão o atropelo à dignificação humana desse Antigo Regime, como ficou conhecido. Os trabalhadores e as Artes Mecânicas continuavam a suportar a manutenção do erário público, que fluía por uma economia paralela; os Eclesiásticos, possuidores de um terço patrimonial do território, continuavam isentos de impostos, como isentos se mantinham os Nobres, o Ducado de Bragança e Casa do Infantado, que correspondiam a mais de um quinto do território continental. O Império Português, acumulado de tantas incongruências sociais e políticas mas anestesiado da realidade, pairava na História como um enorme e desconexo edifício em altura, alheio aos inúmeros pontos de ruptura, a aguardar o momento da implosão. I.II - A Pureza do Sangue na Actividade Empresarial Retrocedendo no tempo, na Colónia do Brasil, a poderosa Companhia de Jesus consolidava a tripartição da sociedade, com o seu dirigismo e o culto Mariano nos seus “Colégios” e Igrejas, escolhendo a “Confraria da Nossa Senhora da Conceição para agregar a Nobreza; a “Confraria da Nossa Senhora da Paz para massificar patrões e empregados das lojas fabris com os das lojas comerciais, designados por “Oficiais Mecânicos”, com o ramo dos Comerciantes de Grosso e Burgueses; e a “Confraria da Nossa Senhora do Rosário dos Pretos”, agrupando a gente negra forra e esclavagista, com as quais se legitimou o distanciamento das classes sociais. A missionação das Ordens Religiosas na colónia, 50 - Com base no quadro da população continental portuguesa, num Censo de 3.140.000 habitantes, classificada por diferentes condições e emprego, só havia um sector activo remunerado/ou com rendimentos de 459.800 indivíduos –in “Essai Statisque sur le Royaumes de Portugal et l´Álgarve,comparé aux outres Etats de l´Éurope”, de Adrien Balbe, 1822 51 -Adrien Balbe, ibidem

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onde o predomínio dos sacerdotes jesuítas se revelava pela existência de 400 para um conjunto de 29 padres de outras congregações52, radicava o impedimento do casamento do Branco com a mulher nativa, obstruindo ou atrasando a miscigenação53, considerada infamante e pecaminosa pela Teologia da Companhia de Jesus dominante do Reino. No continente, julgando-se insuficientes os inúmeros funcionários do Tribunal da Inquisição e os muitos milhares de voluntários dispersos por toda a parte sobre a designação de Familiares do Santo Ofício, a constituir um quadro de denunciantes e zeladores de ideias e costumes e hoje confundidos em certos estudos de genealogia como “Estatuto de Enobrecimento”, dinamizaram-se, nas igrejas paroquiais, os já assinalados “Róis de Desobriga”, que relevantes fontes históricas contemporâneas pela riqueza de elementos demográficos, não deixavam de se assumir como virtuais indiciários das “delinquências” e “crimes” a ter em conta nos sigilosos processos julgados pelos magistrados privativos do Tribunal da Inquisição. Com as dificuldades inerentes ao segredo que envolvia os processos da “Pureza de Sangue”, o historiador Adriano Vasco Rodrigues 54 resume o modus faciendi dessas acções de averiguação com base nos “Estatutos da Ordem de Cristo”, reformulados de acordo com as observações introduzidas pela Carta de Lei de D. Filipe II, de 29.02.1604, que ordenava “se guarde nisso inviolavelmente a forma de Regimento”. O documento que inocentava o titular da suspeição ignominiosa de impureza de sangue era concedido depois de um interrogatório directo de um mínimo de doze testemunhas, que eram aconselhadas a manter segredo sob pena de procedimento judicial, centrado nas seguintes questões: a) conhecimento do pretendente: pai, mãe, avós paternos e maternos, naturalidades e modo de vida de cada um deles; b) relacionamento pessoal com o inquirido: amigo, inimigo ou criado; c) estado do inquirido: se era nobre, nascido de matrimónio legítimo, filho ou neto de herege; se tinha raça de Mouro ou Judeu; e se possuía bens ou dívidas; d) no caso do habilitando ser clérigo, indagava-se ainda sobre eventuais aleijões ou deformidades físicas. O Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Lisboa 52 - João Paulo Costa, ibidem 53 - Conquista e Colonização da Amazónia, de Manuel Nunes Dias, in Portugal no Mundo 54 - Inquérito à Pureza de Sangue

preserva dezenas de milhar de processos da habilitação dos Familiares do Santo Ofício, onde perpassa a complicada tramitação processual. Iniciada pelo requerimento, donde constava para além do nome do requerente, a naturalidade, residência, filiação detalhada de pais e avós, depressa o tribunal jurisdicional do Santo Ofício nomeava um “Comissário Sacerdote”, com poderes instituídos para requisitar um sacerdote da sua confiança para lhe servir de “Notário”, a quem dava ajuramentação sobre os Sagrados Evangelhos”, que prosseguia com as diversas fases de inquérito, que levavam o Inquisidor e o escolhido notário aos mais díspares lugares. Antes de se dar o processo como “Concluso”, o Comissário Sacerdote elaborava um relatório circunstanciado sem o conhecimento do seu “Escrivão-notário”. O acórdão era votado em colectivo de juízes do respectivo Tribunal da Inquisição. As despesas com este tipo de processo a cargo dos habilitandos não deixavam de ser relevantes, proporcionais às custas das deslocações do Inquiridor e do Notário, que utilizavam preferencialmente os cartórios das Igrejas Matrizes para apoio e audição das testemunhas com dupla finalidade: facultavam a consulta imediata dos registos biográficos de identificação civil dos depoentes, então atribuídos às Paróquias e as “informações” detidas pelos respectivos Párocos. Havia um impresso-tipo, pelo menos no período final da existência dos Familiares do Santo Ofício, que sistematizava os diversos itens do interrogatório, que muito facilitava a orientação e elaboração dos autos, que reproduzimos na parte Documental – III55. O formulário tipográfico era obrigatoriamente devolvido ao Tribunal da Inquisição e proibido reproduzir-se, porque é raro encontrar-se nos processos das habilitações. A Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa, que pela implantação dos seus padroeiros nos principais centros de manufactura de calçado e curtumes da Europa avocava argumento inamovível da estrutura corporativa do Reino, não cedia à inovadora Confraria dos Oficiais Mecânicos proposta pelos Jesuítas, depressa foi vítima duma subtil campanha de despersuasão centrada nas canónicas figuras dos dois Irmãos-mártires italianos com fundamento na auréola forjada duma visionária personagem do séc. XVI, conhecida por “Sapateiro Santo”, um modesto e simplório homem de nome Simão Gomes, sem reconhecimento profissional de sapateiro 55 - Documento Nº. 7, Parte III


mas que tinha sido guarda, mais de uma dezena de anos, do Colégio jesuíta de Évora. Nos tribunais eclesiásticos, por sua vez, a Mesa da Irmandade do Ofício dos Sapateiros viu-se confrontada com acções interpostas pelos sucessores do Prior e Beneficiados da Igreja Paroquial de S. Mamede, da baixa de Lisboa, que contestavam os privilégios outorgados na sua fundação pelo assessor religioso do Cardeal-Rei D. Henrique. A Capela-sede do culto dos SS. Crispim e Crispiniano havia sido construída, com uma certa sumptuosidade, na entrada do Castelo-Residência Real de S. Jorge, em terreno cedido pelo sobrinho do Metropolita de Lisboa numa demonstração ostensiva não só do beneplácito da Regência do Cardeal D. Henrique, mas também da Igreja tradicional, com a qual a Congregação de Layola nem sempre manteve relações perfeitamente pacíficas. O Tribunal Apostólico veio a confirmar a legitimidade das prerrogativas dos confrades sapateiros de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa, reconhecendo válidos os favores outorgados pelo Cardeal-Rei e verberou a atitude do Prior e restantes sacerdotes contestantes, considerando-os litigantes de má-fé. A corrente popular a favor do Sapateiro Santo atingiria, entretanto, a raia do histerismo em Lisboa e a Companhia de Jesus, no cerne da contestação a S. Crispim e S. Crispiniano como patronos religiosos dos Sapateiros, disponibilizou um famoso teólogo e historiador da sua Congregação56 para enaltecer em livro a biografia da mentecapta figura de Simão Gomes, a que lhe foram dadas três edições, pelo menos oficializadas. A persistência do panegírico dos Jesuítas pelo seu ex-serviçal, que passou aos compêndios de história como “Sapateiro Santo”, só terminará com o Auto de Fé dos livros existentes da sua popularizada bibliografia, exemplares da primeira edição ou das sucessivas reproduções ou versões, pela “Mesa Censória”, em 1768, na fase Pombalina. O culto de SS. Crispim e Crispiniano, que nasceu e permaneceu protegido pela Hierarquia do Bispo de Roma, defrontaria também outra frente de destabilização protagonizada por uns poucos Sapateiros arruados na antiga Rua da Padaria, de expressão numérica diminuta face ao 56 - Pe. Manuel da Veiga, SJ , in Treslado da Vida,Virtudes e Doutrina Admirável de Simão Gomes, edição de 1673, Biblioteca Nacional de Lisboa, Reservados 4967; O SJ António Lopes, in Enigma Pombal, 2002, atribui a autoria da “Vida do Sapateiro Santo Simão Gomes” ao P. João de Vasconcelos, editado em 1759, o que reforça a denúncia da intensa manipulação teológica no Antigo Regime

número elevado de lojas de mestres disseminadas pelas principais artérias comerciais de Lisboa, mas reconhecidos no regimento destes oficiais-mecânicos como produtores de um tipo de calçado grosseiro e económico, em cujo arruamento estava estabelecida a Capela/Oratório de S. Sebastião do Senado Municipal, elevada a sede do Departamento de Saúde de Lisboa e como tal alimentada pela Coroa no período de Quinhentos, onde era rezada uma missa diária e em cuja “Prática” ou homilia eram alertados os surtos das doenças estranhas ou suspeitas de epidemias da cidade ou dos viajantes dos portos marítimos intercontinentais de Belém e Ribeira. Na primeira visita de D. Filipe II a Lisboa como soberano de Portugal e na procissão organizada em sua honra pela Irmandade do Santíssimo da matriz de S. Julião, em 02.09.158257, foi com o andor e imagem de S. Sebastião desta Rua da Padaria que os Sapateiros apareceram representados. Se a circunstância teria como objectivo influenciar directamente Sua Alteza Real o Imperador das Espanhas para alterar a institucionalização dos padroeiros S. Crispim e S. Crispiniano em prol da tese do “Sapateiro Santo” parece não ter alcançado os seus fins, porque o registo histórico calou o incidente, não obstante ter existido ainda com esta imagem sagrada uma “situação anómala” muito ao gosto dos métodos dos Padres Jesuítas. A verosimilhança desta factualidade religiosa só aparece referenciada mais de um século depois, propriamente em 1758, pelo Cura Joaquim R. de Carvalho, relator da freguesia de Santa Maria Madalena, em resposta ao celebrizado questionário que ficou conhecido como Memórias Paroquiais58, que arrola o milagre que se dizia relacionar-se com aquela e belíssima estátua de S. Sebastião, de origem francesa, que, ao pretender transferir-se para o novo templo de S. Vicente de Fora de traça Filipina com que se assinalou a vinda do dito Imperador das Espanhas a Lisboa, com toda a pompa e circunstância, ao abandonar a Rua da Padaria, “não foi possível passar adiante, não obstante as grandes diligências, com que se conheceu ser gosto do mesmo Santo ficar ali”. Não deixa de ser intrigante que, nos meados do séc. XVIII, sem qualquer deliberação ou explicação constante dos livros do arquivo da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa, a imagem de S. Sebastião passasse a constar do 57 - Joaquim Roberto da Silva in Relaçam da Solemne Procissam do Corpo de Deos, etc., 1731 58 - Lisboa em 1758, de Fernando Portugal e Alfredo de Matos

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seu património religioso exposto e venerado na Ermida-sede dos ditos Sapateiros e a receber em conjunto as prerrogativas inerentes aos padroeiros, as honras e as festividades programadas para o dia 25 de Outubro de cada ano. Convém trazer à colação que, em 1592, dez anos decorridos da recepção oficial de Lisboa a D. Filipe II e na assunção, pelos Sapateiros da Rua da Padaria, com o andor e a imagem de S. Sebastião na representação dos Sapateiros e Curtumes da capital, um estranho preâmbulo do Compromisso dos Sapateiros da cidade do Porto que relevava a grande preocupação expressa no seio destes profissionais do Norte pela existência e futuro da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, reflectindo os “estatutos, e Compromisso, e bem assim os Irmãons se tractou que para conservação desta Santa Irmandade era necessário fazerem-se estas Institucioens, e Compromisso o qual prometerão todos em commum consentimento em seus nomes e dos mais Irmaons que ao diante forem, e comprirem e guardarão inteiramente como nelle contem sem em tempo algum irem contra isso o qual Compromisso he aqui adiante se segue”. O Compromisso dos Sapateiros do Porto, do fim dos anos Quinhentos, é valiosíssimo, não só pela sua antiguidade e raridade no contexto corporativo de Portugal e da Península Ibérica, mas também e, principalmente, pela beleza das suas páginas de pergaminho iluminado59. Na defesa da manutenção e difusão do culto dos SS. Crispim e Crispiniano esteve pessoalmente envolvido o Arcebispo Metropolitano de Lisboa, quer pela sua intervenção directa para a cedência do terreno pelo seu aristocrático sobrinho, Conde de Penela, para construir a capela no local onde foi feita, quer pela afixação dumas lápidas na Sé Patriarcal, ainda hoje remanescentes com todo o mistério científico na galilé deste templo sagrado, de caracteres apócrifos, num apelo directo à fé e bairrismo da população da cidade, insinuando que os santos Crispim e Crispiniano tiveram intercessão directa na milagrosa conquista de Lisboa aos mouros por D. Afonso Henriques, o que é de todo inexacto60, mas que não impediu, pela envolvência das massas, de 59 - Cartório da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Porto, na Rua Santos Pousada, Porto 60 - Os Sapateiros no Contexto Económico, Político e Religioso do Reino, António Mesquita, 1996. Recentemente, in Corpus Epigráfico Medieval Português, Mário J. Barroca, 2000, reafirma que a lápida remonta ao séc. XIII ou XIV, mas admite “que os seus autores devem ter sido membros do Canónico da Sé de Lisboa”. O primeiro autor, contextualizando a lápida no culto de S. Crispim, introduzido em Portugal pelo Cardeal D. Henrique, dá a lápida como apócrifa e sustenta ter sido escrita entre 1562/1574 com a cumplicidade do Arcebispo de Lisboa.

fomentar uma corrente histórica a defender que S. Crispim e S. Crispiniano tinham sido os primeiros padroeiros da cidade e um movimento canónico a favor da beatificação do reifundador de Portugal nos meados do sec. XVIII61, lançando no esquecimento, em contraponto, a figura do remendão Simão Gomes, o Santo Sapateiro protegido dos Jesuítas, cujo objectivo passava por atrair as forças produtivas e económicas da Nação às aleatórias “Confrarias dos Ofícios-Mecânicos”. O Bispo de Portalegre, D. Frei Amador Arrais, amigo pessoal do Cardeal D. Henrique, iniciado na sua carreira episcopal como Auxiliar do Arcebispado de Évora com a dignidade de Bispo de Adrumeto, consagrou na Sé Episcopal alentejana uma capela aos Santos Crispim e Crispiniano adornada dum retábulo de soberbas dimensões com a vida dos Mártires. Numa predela, ao nível do altar, estão representadas as efígies de um Papa, um Cardeal e dois Bispos, toda uma hierarquia apostólica romana, num claro apelo à moderação e disciplina Cristãs da instituição religiosa que não respeitava o culto dos Santos Mártires. O Missal Romano mantém como “Santoral”, ainda hoje, o dia 25 de Outubro de glorificação dos Mártires na Arquidiocese de Évora e Diocese de Beja. Diluída pelo tempo a disputa da unicidade de uma megalómana confraria da Indústria e Comércio na capital do Reino, os confrades da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa, deslumbrados com a projecção da Santa Casa da Misericórdia, que disseminou organizações similares em todos os continentes e, sobretudo, pelo ritual e circunstanciado do seu compromisso, não resistiram, na década dos anos trinta do séc. XVIII, a reformular o seu primitivo regulamento, tomando como modelo os “Estatutos de Nossa Senhora da Doutrina”, da emblemática Casa Professa de S. Roque da Companhia de Jesus, ultrapassando as mágoas antigas. Os famigerados “Estatutos da Nª. Srª. da Doutrina” são os únicos que se dão hoje como desaparecidos entre todos, que são alguns, dos regimentos elaborados pela Casa Professa de S. Roque, que transitaram com o acervo monumental e artístico, pela extinção da Companhia de Jesus, para os bens patrimoniais da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Não pode considerar-se factual ou inocente que a reformulação estatutária da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa, efectuada entre os anos de 1733 a 1736 inspirada nos moldes da Companhia de Jesus, se tivesse mantido sem aprovação régia cerca de oitenta anos – 61 - Virgílio Arruda, in Santarém Setecentista


só veio a ser ratificada pelo Desembargo do Paço, em 1817, então sediado no Rio de Janeiro e no período já conturbado que antecedeu as lutas liberais62. O compromisso ou regulamento setecentista da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa está eivado de subtilezas discriminatórias socioprofissionais inspiradas no modus faciendi da instituição religiosa dos Jesuítas, mas sobreviveu, pela prática do sigilo que se começou a praticar em obediência aos capítulos que o compunham, à argúcia dos juristas do Marquês do Pombal, que foram muito activos na rectificação dos Compromissos das Misericórdias nos mais dispersos pontos do império. Com a vitória de D. Pedro e o Regime Liberal o compromisso do fundamentalismo jesuítico dos Sapateiros acabou por ser apreendido e destruído pelo Governo Civil de Lisboa, nos inícios de 1835. Recentemente, pela sua importância documental, foi recuperado o histórico manuscrito com base numa cópia escrita por um sobrinho dum antigo Prefeito da Irmandade63. A admissão dos Mestres Sapateiros na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa, com a celebrada reformulação estatutária setecentista, passou a condicionar a inscrição dos profissionais aos valores de riqueza, de sorte que possam acudir ao serviço da congregação sem prejuízo das suas famílias; a par de comprovada boa vida e costumes e livres de todo o defeito por Lei infamados, qualidades a examinar em inquérito sigiloso por confrades de carácter ortodoxo, designados por “Informadores”, numa evidente analogia com a tramitação dos “Familiares do Santo Ofício”. Obrigava igualmente o novo compromisso ao Voto de Segredo e ao Voto de Obediência, jurados sobre os Santos Evangelhos para as coisas, negócios e deliberações da Irmandade como se de uma organização de maçonaria se tratasse; e impunha um inquérito interno anual por confrades “Definidores”, respeitando um transunto, sobre o procedimento dos associados e cuja avaliação e disciplina ficava à responsabilidade do Irmão Prefeito/ Provedor. O ingresso na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano passava por uma primeira selecção, a legitimidade do “Exame” ou título de “Mestre” ou “Oficial Examinado”, no pressuposto de que o candidato não era judeu nem professava outra religião que não fosse a católica apostólica romana e não

descendia de Negro ou Mulato, condicionantes passíveis de serem classificados como “avaliação subjectiva impeditiva”, valores, aliás, vertidos na legislação do Reino. A Lei geral portuguesa autorizava que a repetição do exame do candidato reprovado por inépcia profissional pudesse ser feita no prazo de seis meses, mas uma observação negligenciada numa acta da Irmandade de 08.08.183064, deixa entrever, contra o que estava legislado e que decorria do Voto de Segredo das cláusulas do Compromisso Setecentista, que os Juízes Examinadores, cedendo às pressões dos Mesários, joeiravam previamente a admissão dos candidatos, manipulando as provas práticas e dilatando a permanência na categoria de “Obreiro”, impedindo-os de abrir um estabelecimento próprio. Outras vezes, os ditos Mesários, com base na mencionada “avaliação subjectiva impeditiva”, concediam uma certidão de “Examinado para a Profissão”, prevista no capº. 41 do Regimento dos Sapateiros, a que se recorria para dar cobertura legal à actividade de sapateiros e luveiros estrangeiros em serviço da Corte, ficando então o “Mestre” ou “Oficial Examinado” coarcto a contribuir com as quotas para a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano sem os direitos e regalias dos Confrades. Enfim, só os Confrades de S. Crispim e “Correntes” dos livros da Irmandade podiam ocupar os cargos laicos de homologação corporativa: Examinadores, Juízes ou Escrivão do Ofício, deputados à Casa dos Vinte e Quatro e Mesteres junto da Vereação do Senado Municipal ou as inerências do quadro interno da componente religiosa da Irmandade, como Prefeito, Tesoureiro, Procurador, Escrivão ou Mordomos.

62 - A homologação do Patriarcado tem a data de 05.06.1741 e Régia de 07.02.1817 63 - António Mesquita, ibidem

64 - idem, ibidem, pág. 133 65 - Livro 3º dos 24, fls. 86, in Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa

II.III - Do Liberalismo ao Abolicionismo e Emigração A transformação humanística e política da sociedade portuguesa na época Pombalina, descomprimindo tensões de acumulação secular reprimidas com elevados sacrifícios, essencialmente da camada popular, fornecedora preferencial da matéria imolante das bárbaras fogueiras dos “Autos de Fé” do Tribunal da Inquisição, permitiu conhecer um requerimento de um Homem Pardo, de nome Bento Joaquim, registado no ano de 177265, cuja divulgação e estudo ficaram omissos na

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historiografia, ainda que há alguns anos tenha sido inventariado num tentame da bibliografia corporativa nacional66. A aludida petição, impropriamente chamada de “requerimento”, é, na realidade, um invulgar Acórdão, produzido pela real “Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa”, a culminar recurso hierárquico dum humilde oficial mestiço face aos obstáculos que se lhe opuseram na estrutura orgânica da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa para a obtenção da Carta de Exame para abrir uma oficina para exercer a actividade de Sapateiro por sua conta, bem revelador da política de exclusão social e monopólio económico prosseguidos pela Corte portuguesa no período imediatamente antes do memorável Terramoto de 1755, que levou a considerar a catástrofe em certos extractos da sociedade portuguesa como um aviso ou castigo de Deus. O “Honrado Juiz do Povo”, presidente da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa, num primeiro despacho, em consenso com os demais procuradores, levianamente considerou que esta digna câmara corporativa, constituída por representantes dos diversos Ofícios ou Bandeiras, “nada tinha em comum com a Irmandade (dos Sapateiros) porque esta se governava pelo seu diverso Regimento e segundo as Provisões Régias que tinha” 67. A reacção dos procuradores corporativos, que transparece deste texto da principal Câmara Corporativa portuguesa, corrobora o que já temos, por algumas vezes, realçado sobre o prestígio e influência da Bandeira dos SS. Crispim e Crispiniano no contexto político-corporativo do Reino, que eram considerados dos mais preponderantes sectores económicos do país. Todavia, o anónimo Homem Pardo, vivendo a revolução da ideologia e direitos Pombalinos e convicto de que as instituições e os poderosos não mais poderiam sobreporse às leis de libertação humana em vigor, replicou numa espontaneidade que o Juiz do Povo não conteve de criticar: “…a liberdade que mostravam os termos com que se escreveu a sua resposta, chega de imposturas e ditos estranhos a toda a credibilidade”. Não se reproduziram, propriamente, os argumentos apresentados pelo mestiço Bento Joaquim, mas o Acórdão reconhece que o magistrado corporativo, em conjunto com os seus pares, que o Capítulo 41 do Regimento dos Sapateiros dispunha que todo aquele que se quisesse examinar e não 66 - “As Corporações dos Ofícios Mecânicos”, vocábulo “Sapateiros”, ibidem 67 - Livro 3º dos 24, ibidem e transcrito como Documento Nº 6, na Parte III

pudesse ser irmão da Irmandade de S. Crispim por alguma coisa podia submeter-se a exame, dando à respectiva irmandade a esmola habitual, estando, porém, impedido de votar e ser provido em qualquer cargo do Ofício. Este pouco divulgado acórdão do Juiz do Povo termina num tom agastado: “... atentas também as terminantes expressas Ordens Régias registadas nesta Casa, vão delas excluídas as pessoas de Qualidade deste suplicante, para não serem admitidas, nem aceites na dita Casa”. Para quem – como alguns distintos historiadores, erradamente, persistem em divulgar – considera o Juiz do Povo porta-voz do Povo, dos assalariados e do universo impessoal das populações, na formulação social do Terceiro Estado, a final do texto transparece uma animosidade, antagonismo e incoerência inqualificáveis pela classe que representava... Por rigor histórico, não se devia insistir nos Programas de Ensino que no Antigo Regime de Portugal a sociedade estava dividida em Nobreza, Clero e Povo, porquanto a dita designação de “Povo” não identifica os agentes económicos ou entidades patronais corporativas conhecidas depreciativamente por “Mecânicos”, seleccionados por prévios exames profissionais e depurados da “Pureza de Sangue”, nem tão-pouco caracteriza o gentio e a gente anónima da imensa franja social sem voz nem direitos. Das linhas programáticas do Movimento Liberal português, vencedor sob o comando do resignatário I Imperador do Brasil, D. Pedro de Bragança, fez parte o derrube do Corporativismo, que enfrentava acusações de xenofobia, racismo e favoritismo como também de impedir a evolução e a livre concorrência de mercado com a exigência da avaliação antecipada dos conhecimentos profissionais, que os incidentes transcritos, quer do “Sapateiro Pardo Bento Joaquim” e respectivo acórdão do Juiz do Povo da Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa, quer o abaixo-assinado dos Dezoito Homens Pardos, encabeçado por Joaquim José Pinto, do Rio de Janeiro, a Sua Alteza Real e a reclamação ao Senado da Câmara Municipal do Rio de Janeiro do “Sapateiro Francisco Vieira” são exemplos duma realidade social angustiante e perturbante. Contudo, não pode deixar de reconhecer-se, que no sector do Calçado, a utilização não controlada dos componentes, substituição da solaria por aglomerado de raspas de solas ou até papelão, o uso imoderado de peles mal curtidas ou inadequadas a certas fases de fabrico,


executadas por amadores mal habilitados ou “excluídos” da sociedade, de difícil ou impossível detecção pela clientela comum, traziam significativas alterações na durabilidade, custos finais díspares com reflexos negativos no consumidor, para além dos evidentes desequilíbrios das “Contas Públicas da Nação” por arbitrário negócio paralelo, que as correições, coimas e apreensão de artigos e principalmente a rigorosa aprendizagem e produção técnica da manufactura do Calçado e do tratamento dos Curtumes previstas nos regimentos das associações corporativas combatiam e evitavam. O sistema económico e político do Antigo Regime dito corporativo foi extinto, em Portugal, por Decreto de 07.05.1834, assinado por D. Pedro I do Brasil na sua qualidade de Duque de Bragança, que, abdicando das suas funções imperiais no Brasil no primogénito, desembarcou no Norte da cidade do Porto para encabeçar a Revolução Liberal contra o seu irmão D. Miguel e os seus ideais absolutistas, sendo também da sua assinatura e época a supressão das Ordens Religiosas. O funcionamento político-profissional da Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano dos Sapateiros de Lisboa cessou em 02.02.1835, data presumível em que o respectivo compromisso terá sido “retido” pelo Governo Civil de Lisboa, mas a componente religiosa continuou a reger-se pelo sistema tradicional até 1878, com base numa cópia daquele regimento. No Rio de Janeiro, o livro dos Sapateiros do Senado Municipal deixou de registar movimentos a partir de 1827, indiciando, que finda a dependência colonial, a estrutura corporativa portuguesa entrou em dissolução. Todavia, será precipitado, inverídico e historicamente injusto condenar a Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Ofício dos Sapateiros de obscurantismo, discriminação e cega obediência à hierarquia da Igreja e do Estado sem equacionar as directrizes asfixiantes do Poder dominante e a rigorosa disciplina deontológica, técnica e religiosa destes profissionais num enquadramento social onde grassava uma desmedida prepotência e uma faixa de miséria de grande espectro e um quase total analfabetismo, onde o grau de escolaridade se quedava por 1% da população. O Reino de Espanha, que se sobrepôs à hegemonia científica e política dos portugueses de Quinhentos e se classificou como a mais poderosa civilização europeia por largas décadas, não apresentava índices escolares mais melhorados

nesses tempos tenebrosos, pois essa percentagem descia para 0,05%, não obstante as nações vizinhas da Europa contassem com estatísticas menos chocantes, como a Inglaterra, com o grau de escolaridade de 13%, a Áustria (Boémia) com 9% e a França com 5% 68, justificando por que a “hegemonia” mundial se deslocara dos países da Península Ibérica. A aprendizagem profissional dos Sapateiros decorria em idade muito precoce, contratada pelos progenitores a partir dos doze anos de idade e feita na oficina e lar do respectivo Mestre em termos de uma quase servidão, que se prolongava até à adolescência, prática generalizada, contudo, que se repetia em todos os outros Ofícios da época. O ramo da actividade impunha moldes sedentários e pouco imaginativos, controlado por devassas anuais dos exdirigentes mais velhos da Irmandade, que vasculhavam o recôndito das consciências com intuito de condicionarem os padrões de vida dos profissionais e até a intimidade da família, questionando o perfil religioso e genealógico das noivas e esposas. Toda a inovação tecnológica ou artística estava proibida sem antecipada aprovação dos Senados Municipais, numa conjuntura internacional de moda já em si própria muito conservadora e pouco inovadora, como demonstram os achados arqueológicos de Duro-Eufrates, no Eufrates, datados do séc. III e expostos na Universidade Americana de Yale, onde exemplares de sapatos tipo “pratik” parecem ter sido confeccionados ainda hoje pelas fábricas tradicionais de calçado 69. Concretizado o oneroso processo do Exame e da filiação na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano para abrir estabelecimento próprio, o Mestre Sapateiro tinha que consolidar a sua qualidade de Confrade, mantendo as suas quotas em dia e um currículo profissional e social sem nódoas, visitando os companheiros doentes e assistindo na doença e na morte aos confrades ou familiares falecidos, aos cabidos ou assembleias-gerais da associação, aos Ofícios e Festas religiosas da comunidade e a todos as requisições da Mesa ou do respectivo Prefeito. A progressão nos quadros da Irmandade, trazendo alguma satisfação de realização social, era lenta e até penosa em termos financeiros. Antes de ser nomeado Prefeito/Juiz da

68 - Segundo Adrien Balbi, in “Essai Statistique sur le Royaume de Portugal et d´Algarve, comparé aux autres Etats de l´Europe”, ano de 1820 69 - Sylvia A. Matheson, in “Leathercraft in the Lands of Ancient Persia”

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Irmandade devia servir nos lugares secundários - Mordomo, Tesoureiro ou Escrivão. Chegado a Provedor/Prefeito, tinha de arcar com uma mensalidade extra de 200 réis para a caixa dos pobres e com uma larga contribuição para a festa anual dos Padroeiros, com missa solene, sermão por pregador convidado e luminárias, organizadas a expensas dos elementos da Mesa e sem encargos para a Irmandade. Nos meados do séc. XVIII essa festa orçava por 60.000 réis, dos quais cabiam 50% ao Prefeito e os outros restantes equitativamente distribuídos pelos demais Mesários. O Ofício dos Sapateiros proporcionava, como aliciante, boas contrapartidas materiais e absorvia, com atractivo para o Erário Público, o mercado excedentário das peles dos fardos do tabaco, invólucro preferencial pela sua capacidade de isolamento, provenientes do tráfico negreiro da Costa da Guiné dirigido pelos mais poderosos meios financeiros internacionais em suporte da indústria do café, açúcar e algodão, que transitavam por um sistema de comércio “conhecido de triangular” pela Alfândega do porto de Lisboa, Sevilha e principais cidades portuárias do Norte e Centro da Europa e Nova Inglaterra. Em termos institucionais este ramo económico gozava dos favores do Poder Real, cuja Ermida-sede, “cosida a ouro”, na expressão dos historiadores do seu tempo, recebia uma veneração muito gratificante das Rainhas e Damas do Paço pelo culto da Nossa Senhora do Parto ou Expectação, uma antiga imagem de roca que passou a presidir no altar-mor do templo de S. Crispim e S. Crispiniano, de Lisboa. Os ricos estandartes das suas irmandades dispersos pelas localidades mais importantes do fabrico de calçado, em reflexo do beneplácito dos reis, ostentavam bordadas a fio de ouro as Armas do Reino, quando não se intitulavam como “Reais” e alguns altares dos seus padroeiros estavam sobrepujados da coroa nacional, numa alusão directa à Augusta protecção. Não deve dissociar-se também a circunstância da Bandeira de S. Crispim ter sido tributada pelo Juiz do Povo de Lisboa com a maior contribuição dentre os “homens opulentos de todos os ofícios” do sector económico da capital portuguesa para a construção e festejos da inauguração da Estátua Equestre de El-Rei D. José I 70, no “Terreiro do Paço”, símbolo do Poder Real e Pombalino. 70 - “Conta das porções dos dinheiros com que concorreram os ofícios da corporação da Casa dos Vinte e Quatro e mais corporações ...”, elaborada pelo Escrivão do Povo em 15.04.1775, in “Elementos para a História do Município de Lisboa”, por Eduardo Freire de Oliveira, ibidem

Fig. 5 – Os Mártires numa versão oitocentista da Irmandade do Porto

Não despicienda é a reestruturação das Corporações Mecânicas referendada pelo Marquês de Pombal, resultando na alteração denominativa de “Bandeira do Ofício dos Sapateiros” para Bandeira de S. Crispim71, num pretexto para consagrar o nome do Santo padroeiro da actividade económica que mais hostilizada foi pelas ambições da Companhia de Jesus. Referência indelével da política internacional e do Mundo Católico, que nunca é por de mais realçar, assume-se a Bula de Sua Santidade, Clemente XIV, de 31.01.1773, que com a autoridade intemporal de chefe da Cúria Cardinalícia e Bispo 71 - Decreto datado de Pancas de 03.12.1771, sobre a “Regulação da Casa dos Vinte e Quatro”


de Roma veio ratificar no plano ético a oportunidade e justeza das sanções promulgadas por El-Rei D. José I contra a todapoderosa Companhia de Jesus, extinguindo em todo o Mundo Cristão a famosa congregação fundada pelo Pe. Loyola, que se excedera em erros teológicos e humanos que dividiram Roma e a Cristandade, pacificando as hostilidades dos governos de Espanha, França, Nápoles, Áustria, Sardenha, Sicília, Parma e Toscânia, numa premonição do desagravo e desculpas universais de Sua Santidade, o Papa João Paulo II, num exemplo de humildade e contrição, que, em nome da Igreja, veio verberar as perseguições e holocaustos cometidos contra a Humanidade em nome de Jesus Cristo, na cerimónia celebrizada na Praça do Vaticano, em 12.03.2000, que espantou e comoveu as Comunidades Políticas e Religiosas mundiais. A fundição da Estátua Equestre de El-Rei D. José I ao plinto escultórico, ocorrida em 06.06.1775, assumiu-se com a maior e mais enigmática cerimónia das comemorações que rodearam a Reconstrução da Baixa Lisboeta, transformada pelo Marquês do Pombal no acontecimento mediático do seu governo para consagração e enaltecimento do Municipalismo, protocolarmente representado, com exclusão do Soberano e da Família Real, pelos Procuradores e Juiz do Povo da “Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa”, os quatro Mesteres junto da Vereação camarária e pelo Presidente do Senado da Câmara da Vereação, o Conde de Oeiras, filho do Marquês e do próprio chefe do executivo, o Marquês de Pombal72, que presidiu à cerimónia, numa simbologia das faces e da Visão omnipresente do triângulo da estrutura corporativo-municipal, que esteve condenada a inexistir se tivessem sido institucionalizadas as “Confrarias dos Oficiais Mecânicos” da Companhia de Jesus e que teve na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano de Lisboa o principal obstáculo sustentado pelas determinantes figuras do Renascimento – o Cardeal-Rei D. Henrique, o Bispo de Fez, D. Melchior Boliargo e o Bispo de Portalegre, D. Frei Amador Arrais. Aos grandiosos festejos que rodearam a inauguração da Estátua Equestre da Praça do Comércio de Lisboa, prolongados por três dias, têm sido atribuídas as mais diversas simbologias pelos historiadores com o decorrer das épocas, mas assumem-se com maior relevo e veracidade, por se coadunarem melhor com o espírito Pombalino, para além

da exaltação do Municipalismo, a da consagração do Poder Absoluto e a da exaltação do derrube das discriminações sociais, raciais, religiosas e desigualdade de oportunidades, nascidas com o desastre da batalha marroquina de Alcácer Quibir, em 1577, e que a Restauração do primeiro de Dezembro de 1640 estigmatizou na sociedade portuguesa. Correntes históricas contemporâneas tendem a interpretar o monumento da Estátua Real a cavalo, do escultor Machado de Castro, no antigo Terreiro do Paço73, como o “Altar” de um epicentro dum “Templo do Conhecimento”, que fará parte de uma emblemática Maçónica integrada no amplo projecto iluminista conhecido como da Baixa Pombalina de Lisboa, que envolveria, segundo alguns, para além do Marquês de Pombal o próprio soberano D. José I. Se na Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano do Porto, entre os finais do séc. XVIII e a primeira década do séc. XIX, surgiram reproduções iconográficas com atributos exógenos aos santos padroeiros, como o olho no epicentro do triângulo equilátero raiado, análogo ao Delta luminoso, de reconhecida simbologia maçónica (Fig.5), na irmandade-mãe dos Sapateiros de Lisboa e nas demais instituições sob a invocação destes dois Santos-mártires não se verificaram ou houve o cuidado de evitar quaisquer indícios menos ortodoxos. Num País com classes sociais tão antagónicas, o estranho Protocolo de Estado adoptado para a fixação da extraordinária escultura brônzea no Terreiro do Paço aponta decisivamente para a nobilitação dum regime político que tinha como essência o “Trabalho de mãos” ou Artes Mecânicas, considerado vexatório em toda a sociedade do Sul da Europa e particularmente na Península Ibérica, antecipando-se à reabilitação decretada por D. Carlos III, do reino vizinho de Espanha, que em “Real Cédula”, datada de 18.03.1783, reconheceu como honestos e honrados os ofícios dos Curtidores, Ferreiros, Alfaiates, Sapateiros e Carpinteiros e não impeditivos de ingresso e exercício dos empregos municipais. Os valores de anti-racismo, antixenofobia e antidiscriminação que particularizaram o Reinado de D. José I e o seu governo, na história conhecido por Pombalino, antecederam quinze anos os acontecimentos da “Tomada da Bastilha” e a “Declaração dos Direitos dos Homens” pela Assembleia Constituinte de França, em 1789 e cerca de vinte e cinco anos o Breve de Pio VI, que extinguiu o impedimento

72 - Para as presenças na cerimónia v. J.Hermano Saraiva, “Pombal e a Experiência da Autoridade”, in História de Portugal, Alfa

73 - “Simbologia Maçónica da “Baixa” Pombalina”, entrevista do Dr. Helmar da Cruz Ferreira, in jornal Correio da Manhã, Lisboa, de 16 e 18.08.1992

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generalizado no Apostolado da Igreja de Roma de tomar ordens eclesiásticas pelos descendentes de Turcos, Gentios e Judeus74. Com a morte de D. José I, em 1777, regrediu o processo democrático ensaiado neste reinado e com o desencadear imediato dum clima de vindicta ao chefe do executivo do falecido soberano, o Marquês de Pombal e objectivamente às suas directivas legislativas, geraram-se reacções adversas que trarão a breve prazo efeitos funestos ao Império, mais profundas na Colónia Brasileira, que os acontecimentos da “Inconfidência Mineira”, de 1789 em Ouro Preto, antiga Vila Rica; Conjuração da Sociedade Literária Brasileira do Rio de Janeiro, em 1794 e Inconfidência Baiana ou Revolta dos Alfaiates, de 1798, em S. Salvador da Baía, são factualidades directas mais evidentes. Reconhecem contemporâneos investigadores brasileiros que a Reforma Pombalina e, necessariamente, a da Universidade de Coimbra, “permitiu o aparecimento de uma geração de brasileiros ilustrados que lideraram o processo de autonomia política”75, ainda que imbuídos duma “mentalidade que oficializava um iluminismo católico de inspiração italiana”76, terá levado o “letrado brasileiro desse tempo se indefinisse entre o mundo mental do colonizador e o do colonizado”77, que a reversão política do Reinado e Regência de D. Maria I, como um dos últimos estertores mais dramáticos do Antigo Regime, atrairá ao colonialismo de Lisboa enérgicas convulsões. A reestruturação do sistema político do Marquês Pombal criara fundadas expectativas humanísticas no Império Português não obstante o declínio do “Ciclo do Ouro”, gerando jovens pólos económico-culturais na Colónia do Brasil, com destaque para Vila Rica, actual cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, reconhecida pela Unesco como Património Mundial, mas que ultrapassa os parâmetros arquitectónicos e se reflecte no acervo musical, literário e político que enformam a emblemática cultural do ex-Império do Brasil e que na época alcançava a maior densidade demográfica do Continente Americano, “quase quatro vezes mais populosa que New York”78. 74 - Breve Dominus ac Redemptor Noster, de 14.07.1799, in “Elementos de Direito Ecclesiástico Portuguez, de Silva Correia 75 - “Condição Colonial no Brasil Setecentista...”, de Paulo Roberto Pereira, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, RJ, Jan/Março de 2003. 76 - idem 77 - idem 78 - “Brasil 500 Anos –A Arte no Ciclo do Ouro”, Enoch Sacramento, SP

A Colónia Brasileira deixara de estar confinada “ao conhecimento empírico dos viajantes e cronistas dos séculos XVI e XVII”79, porque Portugal, com a Reforma Pombalina, começou a olhar e a explorar o Brasil “através dos novos métodos experimentais da Ciência”80. Mas será preciso aguardar pelo Cerco do Porto de 1832/1833, onde lutou o ex-Imperador do Brasil, D. Pedro I, maçon e grão-mestre do Grande Oriente do Brasil sob o pseudónimo de “Pedro Guatimozin”81, reunindo as maiores figuras políticas e literárias nacionais, para reformular o espírito do Antigo Regime e clonar os significados de Liberdade, Fraternidade e Igualdade na estrutura da velha Nação Portuguesa. Novas recuperações legislativas de libertação humana tornaram-se necessárias promulgar pelos governos de Lisboa, quer pelo Marquês de Sá da Bandeira, em 1836, quer no Período da Regeneração, pelas Leis de 1854, 1858 e 1869, visando erradicar o esclavagismo em todos os territórios coloniais sob a bandeira portuguesa. Decisivo para se reescrever a política social do mundo foi o papel indutor da Revolução Industrial dinamizada pela Inglaterra, que, desmistificando a fragilidade dos recursos naturais da velha Europa, as assimetrias inter-regionais e a carência das matérias-primas, abundantes sobremaneira nos novos continentes, realinhou numa nova perspectiva os monopólios coloniais e esclavagistas. A brutalidade do trabalho escravo foi amenizada ou escamoteada nos padrões profissionais do proletariado industrial nascente, pois reconhecera-se que os métodos de exploração clássica do trabalho, que por demasiado rudimentares, revoltantes e, principalmente, pouco produtivos opunham-se à optimização dos parâmetros da produção, do escoamento e recuperação dos meios financeiros aplicados - a rentabilidade económica passou a avaliar-se pela potenciação do grau das taxas de lucro a prazo certo. Os grandes interesses capitalistas foram obrigados a inflectir para uma filosofia liberalizante de concertação num trabalho remunerado no respeito aparente da condição humana, da liberdade e expressão religiosa, motivando uma emigração europeia pelos cinco continentes, que, às vezes, tomaria o aspecto duma Cruzada dos tempos modernos, ajudando a erradicar a mão-de-obra esclavagista clássica num contexto político-económico com ênfase na 79 - Paulo Roberto Pereira, ibidem 80 - idem 81 - Dicionário Ilustrado de Maçonaria, ibidem


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oferta e na procura. O Portugal liberal, sensível às tendências da história económica, passou a organizar periódicos mercados de trabalho e recrutamento de mão-de-obra, perdurando, como um dos mais conhecidos, o da cidade do Porto, que subsistiu, até o primeiro quartel do séc. XX, com o nome de Feira dos Criados, na Praça da Corujeira, e o da cidade de Lisboa, como feira do Campo Grande, realizada no primeiro de Abril de cada ano82, mas ainda não sobejamente libertos do passado recente, pois assentavam na contratação dos assalariados pela verificação da dentadura, gaguez e até na forma de andar dos candidatos - num revivalismo do primeiro Mercado de Escravos da costa de África, na cidade de Lagos, no Algarve, nos recuados tempos do Infante D. Henrique83. À grandeza das necessidades geradas pela mutação económica europeia a que se anexaram as derivadas da queda interna do Antigo Regime, estimular-se-ia, pela fome, instabilidade político-social ou propaganda, o êxodo de 82 - Manuel de Castro Pinto Bravo, in Monografia do Extinto concelho de Sanfins da Beira, Porto,1938 83 - Crónica da Guiné, de Gomes Eanes de Zurara

Fig. 7 – O Livro de capas de prata, exposto no Museu do Ceará, ex-libris da Alforria do Nero do Brasil, testemunha a interacção dos portugueses no Movimento Cearense da libertação e igualdade humanas: “A Província do Ceará – Homenagem dos Portugueses rezidentes na Fortaleza – 25 de Março – 1884 - Solidariedade – Confraternidade”

famílias inteiras do continente português - pais, adolescentes e crianças de colo -, numa amálgama humana indiferenciada, que se vai fixar nos mais obscuros recantos do mundo numa Diáspora Portuguesa, na busca da Paz, da Liberdade e da Dignificação Social. Uma parte desta massa de emigrantes radicou-se no Estado do Ceará, no Norte do Brasil, onde reencontrou a sua língua, ancestrais costumes e amenidade de clima, fixando raízes pela comunidade de Fortaleza, que depressa deu conta, se solidarizou e se envolveu num movimento de emancipação duma sociedade de suburbanos e marginalizados, que ficará conhecido pela Revolta dos Jangadeiros, chefiado pelo lendário Dragão dos Mares, Francisco do Nascimento, e ainda hoje simbolizado pelas miniaturas de artesanato de pau branco das jangadas cearenses (Fig.6) e na perpetuidade da prata, num testemunho imperecível do cinzelado argênteo da capa do Livro que serviu para escrever a precursora “Lei


Abolicionista”, de 25.03.1884 (Fig. 7), qual estrela cadente a envolver a queda do Imperador D. Pedro II, redundou no pico dum gráfico sublime da Colonização das terras sul-americanas em mais de três séculos pela pequena nação da Europa Ocidental, organizada e afirmada sob os desígnios secretos dos Cavaleiros do Templo84, salvando uma mensagem de nobilitante fraternidade humana na conjuntura histórica dos portugueses no Mundo. III Parte Suporte Documental Noclear das Fontes Luso-Brasileiras

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Imagens de S. Crispim e S. Crispiniano do Rio de Janeiro (posição corrigida). As regras Canónicas dão a precedência da imagem de S.Crispim ao lado direito da imagem de S. Crispiniano, que era mais novo do que o seu irmão. 84 - S. Bernardo, D. Afonso Henriques e os Templários pelejaram para formar a pequena nação portuguesa ocupada pelos Muçulmanos; D. Dinis fundou a Ordem Militar de Cristo para recolher o património dos Cavaleiros Templários perseguidos na Europa; no reinado de D. João III reduziu-se a Ordem de Cristo, por Bula de 1551, em conjunto com as Ordens de Avis e Santiago, a “Ordens Honoríficas” administradas pela Coroa, a escassos trinta anos da permissiva entrega de Portugal ao domínio espanhol

Documento Nº. 1 “SAIBAM QUANTOS ESTE instrumento dado e passado em Pública forma por bem do meu Ofício e Autoridade Judicial e pedimento de parte virem, que no ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e treze, aos sete de Mayo nesta corte e cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em o meu Escritório perante mim Tabelião me foi apresentado um livro com capa de papelão coberto a couro no qual se acha escrito vários documentos pertencentes à Irmandade de São Crispim e Crispiniano do Ofício de Sapateiro desta Corte, pedindo-me lhe desse e passasse uma Pública forma o que do mesmo me fosse apontado, ao que satisfiz dando-lhe o que me for pedido para requerer o que lhe convier a bem, cujo teor é o seguinte: “Aos doze dias do mês de Agosto de mil setecentos sessenta e quatro anos nesta Paroquial Igreja de Nossa Senhora da Candelária, estando em Mesa juntos, e abaixo assinados, o Juiz e Escrivão e mais oficiais e Irmãos da Irmandade dos Senhores São Crispim e São Crispiniano, foi proposto o deplorável estado em que se acha não só a Irmandade, mas o ofício de Sapateiro, tanto pela falta de observância do Compromisso como por se deverem evitar algumas causas prejudiciais, ao bem público e particular como domínio da República que o mesmo Compromisso não prescreveu e a experiência mostra o dano que dela se segue, pois, sendo proibido pelo Capº. 3º. do mesmo Compromisso, não hajam tendas encobertas, não só pela má qualidade das obras mas pelos furtos que a elas vão parar dos cabedais, que se furtam aos homens do mesmo ofício, que nele contratam e sendo também proibido pelo Cap. 2º. do mesmo Compromisso, que não se examine no dito ofício [Homem] Pardo ou Preto cativo, cuja disposição já foi estabelecida para evitar os furtos; mostra a experiência não ser bastante esta precaução, por que mandando os Senhores dos Escravos muitas vezes antes deles acabarem o tempo, os tiram do poder dos ditos Mestres e os põem a trabalhar em suas lojas particulares de que redundam a quantidade das obras que pelas ruas se andam vendendo em tabuleiros com prejuízo grave da República, não só pela má qualidade das obras, mas pelo prejuízo que experimentam os Mestres aprovados e perigo no dito Ofício, não tendo que fazer nele, sem terem outro modo de vida, sendo este prejuízo o tão considerável quando Sua Majestade assim o atendeu na Lei de vinte e quatro de Maio de mil


setecentos qua-renta e nove, que no parágrafo 18 da dita Lei, atendendo aos gastos escusados que se faziam e ao prejuízo que causavam aos que vendiam nas lojas, proibiu que pessoa alguma natural do Reino ou Estrangeiro vendessem pelas ruas qualquer género de fazenda, sob pena de perdimento da fazenda que se achasse, cem mil réis de condenação e seis meses de prisão, e havendo reincidência a pena pecuniária em dobro e presos até serem estremados por seis anos para Angola, fazendo outra semelhante disposição na Lei de 19.11.1757, proibindo as Câmaras a darem licença para se venderem pelas ruas bebidas e comestíveis para que concedia licença a estrangeiros, vagabundos e desconhecidos, não só por serem receptadores de furtos e viverem do contrabando e descaminho, mas pelo prejuízo que se seguia as mulheres naturais do Reino que viviam daquele tráfico para sua precisa sustentação; e esta mesma razão que sua Majestade considerou para o estabelecimento daquelas leis pelo prejuízo que se causava aos que comerciavam, em se vender pelas ruas, por não terem os comerciantes outro modo de vida (...) se assentou que o remédio mais eficaz para evitar estes danos era proibir-se inteiramente a venda pelas ruas das obras do dito ofí-cio e juntamente que ficando em ser disposição do Compromisso, que nenhum [Ho-mem] Pardo ou Preto cativo tivesse loja pública ou particular, com pena de 6$000 réis, três para o Senado da Câmara e três para a Irmandade por cada vez que forem compreendidos na dita culpa (...) e que os Mestres do dito ofício, debaixo da mesma pena, não poderão ter mais de dois aprendizes, sendo de lojas grandes e os das pequenas um e não poderão tomar outros sem estes terem o tempo completo e estarem capazes de trabalhar por oficiais; e debaixo da mesma pena serão os Mestres obrigados a dá-los correntes dentro no tempo em que se ajustarem, conforme se pratica na cidade de Lisboa; e que quanto às obras que se acharem pela rua se tomem estas por perdidas e pague quem as andar vendendo seis mil réis...” in “Livro dos Sapateiros”, fls. 5 (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) Documento Nº. 2

e Guiné, etc. Faço saber aos que esta Minha Provisão virem que pelos irmãos de S. Crispim e S. Crispiniano [ Irmandade ] erecta na paroquial da Candelária desta cidade me foi apresentado um Compromisso que organizaram para o bom regime das suas devoções, Rogando-me lho confirmasse com aqueles privilégios e isenções (...) E visto seu requerimento, informações (...) que Como audiência da Câmara deu o Juiz dos Frutos da Coroa, Termo que assinaram e o que sobretudo respondeu o Procurador da Minha Real Coroa e Fazenda: Hei por bem confirmar, como por esta confirmo o dito Compromisso escrito em sete meias folhas de papel, rubricadas pelo Escrivão da Minha Real Câmara, o qual contém catorze capítulos que vão também por ele assinados com declaração que modificados os capítulos duodécimo e décimo terceiro se deve entender o meio executivo para as cobranças das contribuições é sem prisão e que as licenças da Câmara hão-de ser precedidas dos exames feitos pelos Juizes e Escrivães dos Ofícios, ficando obrigados a dar anualmente Contas ao Procurador das Capelas na forma da Lei. Pelo que mando a todos os Ministros, Justiças e mais Pessoas a quem o conhecimento desta pertencer a cumpram e guardem como nela se contém, que valerá bem e que dure mais de um ano, apesar da Ordenação do Livro Segundo, título quarenta, em contrário. Pagou de novos direitos quinhentos quarenta réis que se carregam ao Tesoureiro deles a folhas setenta e quatro verso do Livro Segundo de sua Receita (...) Príncipe Regente Nosso Senhor o mandou pelos Ministros abaixo assinados do seu Conselho e seus Desembargadores do Paço. João Pedro de Afonseca e Sá a fez aos dezasseis de Novembro de mil oitocentos e treze.” In “Livro dos Sapateiros”, fls. 17 (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) Documento Nº. 3 CERTIDÃO REQUERIDA PELA IRMANDADE DOS SS. CRISPIM E CRISPINIANO À SECRETARIA DE ESTADO DOS NEGÓCIOS DO REINO DA DELIBERAÇÃO DO SENADO DA CÂMARA SOBRE A VENDA DE CALÇADO NAS RUAS DO RIO DE JANEIRO EM BENEFÍCIO DOS SENHORES DOS ESCRAVOS

PROVISÃO DE 16.11.1813 “DOM JOÃO por Graça de Deus Príncipe Regente de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e d’Além mar, em África

“Senhor: Levamos ao conhecimento de S.A.R. o Régio Aviso incluso por cópia expedida a este Senado na data de dois de Abril de

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mil oitocentos e treze, que proibia a liberdade de se fazerem ocultamente e venderem pelas ruas desta cidade sapatos e todo o mais género de calçado; por que esta disposição nos parece contraditória com a franqueza do alvará de 27 de Março de 1810, pois se em virtude desta é permitido vender uma quantidade incalculável de calçado estrangeiro, que diariamente entra de fora com prejuízo da Indústria Nacional e da classe dos Sapateiros, como pode ser proibida a venda de poucos pares de sapatos que alguns dos mais pobres moradores desta cidade mandam fazer no interior de suas casas por seus escravos a fim de tiraram deles um jornal; mais vantajoso acresce e dá motivo a esta representação o temerário procedimento a que os Juizes deste ofício se têm atrevido de proceder por sua imediata autoridade, sem haver lei geral, nem municipal a que tal mande, os escravos que encontram a vender alguns pares de sapatos, como ofensa manifesta da Lei e dos direitos de propriedade dos Senhores dos Escravos e prejuízo grave de muitas famílias pobres, que depois tiram toda a sua subsistência. À vista do exposto, rogamos a V.A.R. que haja por bem declarar sem efeito aquele Aviso e que seja franca a liberdade de vender pelas ruas o calçado feito nesta cidade, enquanto não for proibida a venda de calçado que entra de fora. Rio de Janeiro em Vereação de Novembro de 1821. aa) José Manuel Pereira, Luís Vieira Viana, Gorjel do Amaral da rocha, Manuel Cardoso Pinto e António Alves de Araújo”. In “Vereanças do Senado da Câmara”, fls. 193 (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) Documento Nº.4 “Ilmos. Senhores do Senado da Camera Diz Francisco António Vieira, que achando-se consumado e no Ofício de Çapateiro, e querendo ser examinado para assim cuidar em seu estabelecimento começou por pagar à Irmandade de S. Crispim e S. Crispiniano, protectores daquele ofício, as competentes propinas, e com o recibo delas apresentou-se ao respectivo Juiz do Ofício, que o embalou e consumiu com demoras, a ponto tal que representando-o à Irmandade esta se queixou à V. Sªs. e conjuntamente o Escrivão do dito Ofício; pediu entretanto o dito Juiz excuza,

que lhe foi por este Ilustre Senado admitida e em seu lugar eleito Joaquim José de Sousa, que excuzando-se foi em seu lugar nomeado José Vicente Guerra; entretanto este de forma alguma quer examinar o suplicante evadindo-se em dizer que tem representar a V. Sªs. Como porem (...) representantes (...) nem as demoras devem prejudicar o suplicante e o público a quem ele quer provir. Por isso requer a V. Sªs. que se dignem mandar o referido Guerra o examine, não obstante as (...) representantes ou nomearem V.Sªs. outro interinamente. Por V.Sªs. que assim o deliberarem ERM” “O Juiz do oficio de Sapateiros admita o suplicante a Exame imediatamente, pena de procedimento. Rio em Vereação de 4 de Setembro de 1822” a) Pereira “ Venha com os papeis a este Respeito. Rio em Vereação de 7 de Agosto de 1822” a)Pereira a)Bulhões” in “Livro dos Sapateiros”, pág.39 (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) documento nº. 5 (Leitura paleográfica da reprodução ) “Junte ao Compromisso, haja v(ist)ª Provºr.Geral do Dsbargº Rº 15 Dezºde 1809”. a) ilegível “Senhor DIZ JOAQUIM JOZE PINTO, E OUTROS,/ homens pardos M(estr)es do Officio de Çapateiro, examinados,/ estabelecidos na rua propria deste officio, que he a denominada/ de detraz do Carmo = que havendo huma Irmandade de S./ Crispim, que se venera na Fregzª da Candelaria pello d(it)º/ Officio dos Supplicantes, costumão os Officiaes Me [canicos]/ receber daquelles do d(it)º Officio, que querem-se exami[nar a]/ quantia de cinco mil réis, como de entrada, fazendo q[ue]/ a escandaloza differença de que são brancos ficão/ de Irmaons da d(it)ª Irmand(ad)e, e habilitados para exerce-rem / os cargos da mesma, e os de Juizes, e Escrivaes, que he da/ nomeação da Cama-ra; e os que são homens pardos, pag[ão]/


a d(it)a quantia; são unicamente admitidos a exame, e exami/ nados, nem ficão sendo Irmaons, nem occupão Cargos n(a) / Ir-mand(ad)e nem são eleitos pela Camara para Juizes, e Es/ crivaes do Officio; o que vem a ser as(s)az indecorozo aos Supp(licantes)/que não tendo infamia algu(m)a de facto, ou de Direito, e sen/do por V.A.R. promovidos aos Cargos, e impregos mais/ honrosos tanto em Letras, como em Armas, e athe condecorados/ com as Insignias das Ordens, por só attender V. A. aos mi/recimentos do Sugeito, e não as Cores que sendo accidentes na/da influem para deixar de ser compensado o merecimento;/ com muito maior razão devem ser admitidos por Irmãos/ de hua Irmand(ad) e composta de homens de Officio mecanico/admitidos a servirem os Cargos da d(it)a Irmand(ad)e//Irmand(ad)e, como os de Juizes, e Escrivaes do Officio, eleitos pe/la Camara como praticão outtras Irmandades em que ser/vem os Cargos da mesma, e os de Juizes, e Escrivães do Offi/cio indistintamente homens brancos, e homens pardos, como / [acon]tese na Irmand(ad)e de S(enh)or Bom Homem que se venera na/ [...] na Fregzª. da Candelaria pelos do Officio de Alfaiates/ [e de] São Jorge pelos Ferreiros na sua Igreja e porq(ue) Senhor/[os] Irmaons da referida Irmandades que athe agora não ti/nhão o Compromisso confirmado por V.A.R., andão na di/ligencia de o confirmar, e tal vez que com a mesma clauzula/abuziva, e indecoroza aos Supp(licant)es, por isso recorrem estes a/ V.A.R. para haver por bem dignar-se ordenar que quan/ do o d(it)o Compromisso haja algum Capitulo excluzivo/ dos Supp(licant)es elle seja riscado, ou se declare na Rial approva/ ção de nenhum effeito tal Capitulo, ou Capitulos, ex-pres/sando-se o poderem, e deverem os mesmos Supp/licant)es ser admi/dos por Irmaons, e servir os Cargos da Irmandade, e /serem elleitos Juizes, e Escrivaes do Officio pela Camara/igualmente com os mais./ P(edem) a V.A.R. pela sua/ paternal Piedade se digne de-/ erir aos Suplicantes no que com// com tanta Justiça humildemente/ suplicão. E.R.M.” aa) seguem-se dezoito assinaturas in “Arquivo Nacional do Rio de Janeiro” (Pac. 3, Doc. 23, Caixa 289)

Documento Nº. 6 (Leitura paleográfica do documento ) a) ilegível “Requerimento de Bento/ Joaq(ui)m homem pardo s(erv)e ser admiti/do com Patente á Irm(anda)de de S. Chrispim Resposta Propuz na Caza dos 24 este requerim.(en)to de/ Bento Joaq(ui)m homem pardo, em q(ue) pretende q(ue)/V.Exª. se digne m.(an)dar aos Juizes do Off(ici)º. de/ Çapateiro, e da Bandeira de S. Chrispim/ lhe de(e)m Patente de Irmão da Irm(anda)de do d(it)o S(an)to,/ onde sem a razão q(ue) tinham p(ara) o duvidarem./ Responderão os juizes, q(ue) o Corpo do seu/Off(ici)º. e Ban-d(eir)a nada tinha no comum com/ a Irm(anda)de porq(ue) esta se governava pelo seu diverso/Regim(en)to, e segundo as Provisões Regias q(ue)/tinha, e por esta razão nada podiam dizer/ sobre o Req(uerimen)to. Replicou a isto o Supp(licant)e/ com a liberd(ad)e q(ue) mostrão os termos com q(ue) se es/creveo a sua resposta cheya de imposturas/ e dittos estranhos a toda a credulid(a)de. E ponderado/ tudo pelos Deputados/ Forão de parecer uniformem(en)te q(ue)/ attenta a formali(da)de do Regim(en)to desta Band(eir)a/ no Cap.41 em q(ue) se dispoem q(ue) todo aquelle off(icial)/ q(ue) se quizer examinar, e não poder ser Ir/mão da Irm(anda)de por alguma cauza, possa ser//examinado dando à Irm(anda)de a costumada esmola, e/ se lhe pas(s)e a sua Carta; porem q(ue) não possa votar/ nem ser provido em cargo algum do Officio, / como se mostra pela Certidão neste req(uerimen) to/ incorpora(d)a, não devia o Supp(licant)e ser deferi/do, E pela mesma inhabeli(da)de com q(ue) elle se/ publicava as(s) y(m) no d(it)o req(uerimen)tº e Replica, emed(iatamente)/ não estivesse geral, ou particularm(ent)e revogado/ o d(it)o Regimento: E attentas tao bem as terminantes, / e expressas Ordenz Regias reg(ista)das nesta Caza, erão della/excluidas as pessoas da quali(da)de deste Supp(licant)e p(ar)a não/ serem admittidas, nem as(c)eitas na d(it)a Caza/ Alem de q(ue) como o Supp(licant)e só pretendia q(ue) os/ Juizes Supp(lica)dos de(s)sem a razão: parecia q(ue) com

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a respp(ost)ª/ dos m(es)mos estava satisfeito o Supp(licant) e. A(s)sim o/ exponho na respeitavel Prez(idenci)a de V. Exª q(ue)/ mandará o q(ue) for servido Liz(bo)a 21 de Julho de 1772.//o Juiz do Povo// João Crisostemo Ro(dr)i(gue)z//.

in “Livro 3º. Dos Requerimentos da Casa dos 24” (Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa) Documento Nº.7 (Formulário, secreto, das diligências dos Inquiridores nos processos de Habilitação de Familiar do Santo Ofício da Inquisição)

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OS INQUISIDORES APOSTOLICOS contra a herética pravidade, e apostasia nesta cidade de e seu distrito, etc. Fazem saber ……………………………………………… que nesta Mesa se pretende saber com toda a individuação a geração, vida e costumes de ……………………………... pelo que: ( em manuscrito) Autoridade Apostólica cometemos a V. Mª. que sendo-lhe esta dada, faça a Diligencia que nela se contem, como um Notário do Santo Oficio, que estando legitimamente impedido para………………………………… Escrivão do qual elegerá a um Sacerdote de boa vida, e costumes, a quem dará o juramento dos Santos Evangelhos …………………………………………………………............ sob cargo do qual prometerá escrever com verdade, e ter segredo, de que se fará termo ao princípio por ambos assinado, e logo na dita Freguesia de ……………………………............ ou na parte que ..a V.M..... parecer mais acomodada para a diligência se fazer com a coutela e segredo, que convém, mandará vir perante si doze testemunhas…………...........…. as quais serão pessoas Cristãs, antigas, fidedignas, e mais noticiosas; e dando-lhes o juramento dos Santos Evangelhos para dizerem a verdade e, terem segredo no que forem perguntadas, o serão judicialmente e pelos interrogatórios seguintes: ……................................................................. ........................................................................................ I. Se sabe, ou suspeita o para que é chamado, ou se o persuadiu alguma pessoa a que sendo perguntado por parte do Santo Oficio, dissesse mais, ou menos do que soubesse, e fosse verdade…….............................................................

Habilitando II. Se conhece ao habilitando........................................ que razão tem de conhecimento, e de que tempo a esta parte PAIS III. Se conhece, ou conheceu a.................................... se sabe sejam naturais, e moradores aonde se diz: que ocupação teve o dito seu pai, e de que viveu; que razão tem de conhecimento e de que tempo a esta parte ..................... ........................................................................................ Avós Paternos IV. Se conheceu, ou teve noticia de............................. se sabe sejam naturais, e moradores aonde se diz; que ocupação teve o dito seu avô, e de que viveu; que razão tem de conhecimento ou noticia, e de que tempo a esta parte; e outro sim se conheceu, ou teve noticia Bisavós Avós Maternos V. Se conheceu, ou teve noticia de............................... BISAVÓS se sabe sejam naturais, e moradores, etc., etc., do anterior ............................................................................ Filiação VI. Se o habilitando é filho, e neto legítimo dos pais avós paternos e e maternos assim declarando, e por tal tido, havido, e reputado ............................................................ ........................................................................................ VII. Se tem ele testemunha alguma razão de parentesco, ódio,ou inimizade com alguma das sobreditas pessoas, ou que declarar ao costume, e causas dele E declarando algum em grau proibido, assinará seu depoimento e não se lhe farão mais perguntas.


VIII. Se o habilitando é herege Apostata da nossa Santa Fé Católica. IX. Se o mesmo, seus pais, e avós cometeram crime lesa Majestade Divina, ou Humana, pelo qual fossem sentenciados, e condenados nas penas estabelecidas com as Leis do Reino. X. Se sabe, ou ouviu que o habilitando, ou algum dos seus antecessores, fosse prezo, ou penitenciado pelo Santo Officio, ou que incorresse em infâmia alguma pública, ou pena vil de feito, ou de Direito XI. Se o habilitando é pessoa de bom procedimento, vida, e costumes, capaz de ser encarregado de negócios de suposição, e segredo, e de servir ao Santo Officio no cargo de (em manuscrito): Familiar: se se tratar limpo e abastada mente; que oficio ou ocupação tem, ou de que vive; que bens terá de seu; quanto valem e quanto fará anualmente de renda; se sabe ler e escrever e que idade representa ter... XII. Se o habilitando .....................foi casado, de que lhe ficas sem filhos, ou se consta tenha algum ilegítimo, que sejam vivos; quanto são, como se chamam, suas mães, e avós paternos e maternos XIII. Se tudo o que tem testemunhado é público e notório Estas perguntas fará (em manuscrito)Vossa Mercê....a cada uma das testemunhas, as quais no principio de seus depoimentos dirão seus nomes, cognomes, pátrias, habitações, idades, ofícios, e qualidade do seu sangue, e no fim, depois de lhes ser lido o seu testemunho, assinarão; e sendo mulher, que não saiba escrever, o Escrivão da diligencia assinará por ela de seu rogo, e consentimento, e mandará ................. vir perante si os livros dos ................ das ditas Freguesias, e neles buscará ao assentos ....................... concernantes às pessoas acima mencionadas; e achando-os, deles passará ou mandará pelo Escrivão passar certidão em forma, vindo nelas insertos os ditos assentos; e declararão os livros, que se buscaram sem efeito, e quem os buscou. E ultimamente dará .....V..M... a sua informação, declarando nela tudo o que souber, e alcançar, assim a

respeito do que se pretende saber, como da fé e crédito, que as testemunhas se deve dar, escrevendo-a pela sua mão, sem a comunicar ao Escrivão, pelo qual mandará fazer declaração dos dias, que gastarem na diligencia com distinção, se foram dentro ou fora das residências. E feito na sobredita forma a diligencia, com a possível brevidade, com a mesma nos será a própria com esta remetida (manuscrito) por V.Mercê...... sem que lá fique cópia, ou traslado algum. Dada em ............. no Santo Oficio sob nossos sinais, e selo do mesmo aos ............................. (tem o selo de papel da Stª. Inquisição colado) in “Santo Ofício -Francisco- Maço 131-Nº. 1973” (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa) Documento Nº 8 NORMA-TIPO DAS CARTAS DE EXAME DO OFICIO DE SAPATEIRO NO SENADO MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO “O Senado da Câmara desta Corte do Brasil, etc. Fazem saber aos que a presente carta de Aprovação de Exame, a licença geral virem que sendo-nos constante pela Certidão retro de Juiz e Escrivão do Oficio de Sapateiro haverem examinado a (Fulano) e o terem achado capaz de fazer toda e qual-quer obra pertencente ao mesmo ofício e por ele examinado nos ser requerido lhe mandassem passar uma Carta de Aprovação de Exame e licença geral em atenção ao referido, Havemos por bem aprovar o seu exame e a ele examinado dito (Fulano) concedemos licença geral para livremente usar do seu oficio de Sapateiro com loja pública nesta Corte, e no termo tendo nele oficiais e aprendizes assim como o fazem os mais mestres examinados e para que da mesma forma fazer em qualquer parte que bem lhe parecer requeremos as Justiças de S.A.R. a quem o conhecimento e execução desta pertencer a cumpram e guardem e façam cumprir e guardar assim e da maneira perante o Desembargador Juiz Presidente de que se fará termo nesta que vai por nós assinada com o selo do Senado. Dada em o Senado da Câmara em 8 de Abril de 1814. Eu António Martins Pinto de Brito o subscreveu”.

in ”Livro de Provisões e Registos 1812-1815”, fls.293 (Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro)

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A ALMA DO ROSSIO Anthero Monteiro*

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Lá do alto os quatro torreões testemunharam o desfile patético da história. Viram passar os reis e as rainhas os condes e os lóios, amigos e inimigos. Viram justas, torneios e batalhas, incursões de Almansor e Bonaparte. E viram multidões a sucumbir à peste ou a tentar fugir-lhe com votos e ex-votos. Todos passaram como passam as torrentes do Cáster. Jazem estrato após estrato neste chão de que se nutrem os plátanos da praça. Entre ramos e folhas que se agitam vagueiam essas sombras do passado. É aí que rumoreja a alma do Rossio. Come e bebe e ri e saboreia o instante, olhando para onde aponta a ramaria. Esquecerás assim que também tu serás passado e chão e serás alvo do riso milenar dos torreões impávidos.

* Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.


A Campanha do «Correio da Feira» contra o Concelho de Espinho

Espinho. De Lugar a Freguesia e Concelho. A Campanha do «Correio da Feira» contra o Concelho de Espinho Franscisco Azevedo Brandão* Enquanto em Espinho se celebrava com alegria e satisfação a sua elevação a concelho, na Feira pairava um manto negro de desilusão e inconformismo pela parcial desintegração do seu concelho. É que, nas palavras de Joaquim Tato, «a Vila da Feira não queria perder Espinho, daí, e no seu legítimo direito, lutou quanto lhe foi possível, (antes e depois do facto

consumado). Assistia-lhe forte razão de defesa, para a qual pôs em campo os seus mais influentes valores políticos…o ardor empregado na luta dos dois lados foi intensa…». 1 Na verdade, se antes da proclamação da independência de Espinho, os dirigentes da Feira tudo fizeram para que tal não sucedesse, depois do facto consumado, continuaram uma luta feroz e contundente para que o governo voltasse atrás e anexasse novamente Espinho ao concelho da Feira. Neste sentimento de inconformismo notabilizou-se o semanário Correio da Feira que, através da pena do seu editor, proprietário e director. José Soares de Sá, defendeu até ao fim, feroz e acerrimamente a integridade do concelho da Feira, zurzindo, «sem dó nem piedade», nos feirenses que 1- Joaquim Tato, Subsídios para a História de Espinho. Espinho Vareiro. Trabalho transcrito no Boletim Cultural de Espinho, n.º 10, Vol. III, 1981

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apoiaram e ajudaram a autonomia de Espinho, ridicularizando o novo concelho, chamando-lhe «microscópico», por ter sido constituído por uma só freguesia – Espinho. Nesta conformidade, assistiu-se, no Correio da Feira durante os dois anos sequentes à independência, uma campanha sistemática e cerrada contra o novo concelho e os seus emancipadores.

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José Soares de Sá

Assim podia ler-se no seu número 143, em Dezembro de 1900: «Se nos faltasse para definir a política governamental entre nós, o ridículo de que soube cercar-se o administrador (Noronha e Moura) deste concelho, e os seus actos não nos estivessem a dar constantemente exuberantíssimas provas da sua incapacidade e a dos chefes que o mantém à frente de uma tão importante circunscrição, o espectáculo que nos

oferece diariamente o microscópico concelho de Espinho, bastaria, por si só, a convencer os menos pessimistas e os próprios emancipadores, se neles houvesse mais critério e menos facciosismo, de que Espinho avança a passos largos para a sua decadência, e, na cegueira louca que desvaira ao seus dirigentes, talvez, em breve, para a completa ruína que aniquilará fatalmente a florescente praia!... Os dirigentes de Espinho fazem o que lhes apetece, e consideram-se ainda os únicos sabedores!...Os mandões põem em prática os maiores dislates e as mais absurdas medidas, ora menosprezando as leis, a que têm fatalmente de obedecer, ora fazendo rir com o ridículo da sua perspicácia administrativa, os mais cépticos e ainda os mais sorumbáticos. Quem se der ao trabalho de estudar a organização especial do concelhito de Espinho, pasma da maneira patusca como tudo ali corre e como os negócios do município são dirigidos: e logo pergunta como é que aquilo se consente no meio de gente civilizada, e como é que as estações superiores não se dignam olhar para o aos que em breve embrulhará o infeliz município, sem que mais tarde seja fácil desenredar a meada… Porque convém que os emancipadores o saibam: um dia hão-de ser pedidos estritas contas aos administradores do município espinhense e eles terão de responder por todos os seus actos, sendo compelidos às responsabilidades que lhes caibam neste desmanchar de feira…». E numa linguagem agressiva e um tanto insultuosa, o intrépido director lança a ameaça: «Deixemos apenas que se sucedam os acontecimentos, e um dia, que temos fé em que não venha longe, estaremos a postos para exigir em favor da feira, completa satisfação de todos os agravos sofridos, Folguem os Cafres de Espinho, os que sem rebuço e apenas com a mira nos próprios interesses, estão a preparar a ruína da infeliz praia, Que atrás de tempo, tempo vem… Bem sabemos que vivem (os habitantes de Espinho) hoje sob o peso da ameaça, e que os esbirros espaventários lhe abafam o grito de revolta e o brado da indignação. Mas não tardará o dia em que possam livremente gritar: - Viva Espinho da Feira!». (1) No seu número 145 de Janeiro de 1901, Correio da Feira, pela pena de José Soares de Sá, recrudescia o seu ataque a Espinho e aos seus emancipadores afirmando que o novo concelho não tinha condições para sobreviver e apodando os que ajudaram à sua independência com nomes insultuosos: «…Provado fica assim que Espinho não possui condições de vida própria para a sua emancipação administrativa, que foi um capricho, um erro e uma infâmia…não se contentaram os exploradores, os negreiros sanguessugas com a


autonomia, sabendo que o que Espinho era, o devia ao concelho da Feira…» 2) Em Fevereiro, o director do mesmo jornal continuava o seu libelo contundente contra os que atinham ajudado na desintegração parcial do seu concelho, insistindo em dar-lhes nomes menos impróprios: «A luta é entre gente honesta e uma corte de sicários, resolvidos a roubarem um povo… A luta é encarniçada, mas não contra Espinho que tem sido vilmente explorado; mas não contra Espinho que, na sua inconsciência, não viu que era simples joguete nas mãos mercantis de sicários. A luta é somente contra esses sicários que, esquecidos do seu dever cívico que todos nós devemos compreender, não tiveram o pejo em renegar a sua pátria, e não só isso, atentar contra ela provocando para satisfação de ruins paixões e ódios antigos, a desintegração deste concelho e a injusta emancipação administrativa de Espinho. O ódio da Feira é somente contra os degenerados que sob um interesse pessoal atraiçoaram a terra onde nasceram, explorando ignobilmente a boa fé do povo de Espinho, de olhos fechados à ambição desses traidores. A luta é contra esses traidores cuja aspiração única consiste em calcar a própria terra, esbulhando-a do que lhe pertence, Guerra e guerra sem tréguas contra essa corte de sicários . Hoje e sempre contra os traidores e renegados …Espinho inteiro seria pela integridade do concelho da Feira e contra a emancipação de Espinho que não lhe trouxe benefícios nenhuns…conhece Espinho que uma solução tem de tomar; a única que o tornará digno; a única que o salvará da ruína e da vergonha e estender os braços à Feira».3 E o director do Correio da Feira finaliza o seu editorial sempre com a esperança do retorno de Espinho à Feira: «Mas anima-nos a esperança que há-de, em breve, poder erguer a fronte altiva e bradar, sacudindo o jugo que o oprime: Abaixo os sicários! Viva Espinho da Feira! No dia em que tal suceder verá a formosa praia que se salvou de afrontosa morte».4 A espinha na garganta dos dirigentes da Feira e do Correio da Feira, que foi a criação do concelho de Espinho, separando-o do da Feira, foi tão profunda e dolorosa que o ataque sistemático e sem tréguas, continuou nas suas páginas, sobretudo à figura do deputado pelo círculo da Feira, Manuel Pinto de Almeida, nos seguintes termos: 2 - Correio da Feira n.º143 de 30.12.1899 3 - Correio da Feira n.º 145 de 13.1.1900 4 - Correio da Feira n.º148 de 3.2.1890

«… Correio da Feira…jornal que sempre defendeu o concelho da Feira, está de luto pela perda de uma das suas freguesias mais queridas…Por certo ninguém esquecerá que foi por mor da candidatura nefasta, perniciosa do sr. Manuel Pinto de Almeida que, contra os vultos mais em evidência do Partido Regenerador, foram assacadas as maiores calúnias, inventadas e espalhadas as maiores infâmias…Pois este deputado pagou bem a quem o louvaminhou e a quem, ainda à custa das maiores injustiças, lhe preparou a eleição…Quem passar os olhos pela colecção do nosso jornal, conhecerá a firmeza das nossas convicções e da veracidade das nossas afirmativas; e verá que já então demos rebate do perigo que antevíamos para a integridade do concelho da Feira, é porque adivinhávamos esse perigo na eleição do sr. Manuel Pinto… Nada mais, nada menos que a perda de Espinho!...A ele se deve a criação ilegal do concelho de Espinho!». 5 Com a queda do governo progressista de José Luciano de Castro e a subida ao poder do Partido Regenerador de Hintze Ribeiro, uma nova esperança acalentou o coração dos dirigentes da Feira, traduzido no entusiasmo com que o director do Correio da Feira escreveu sobre o assunto em vária edições, onde redobrou o seu ataque à autonomia de Espinho, preconizando o regresso de Espinho ao concelho da Feira: «Depois de uma gerência tão inglória, sem utilidade para o país, sem lustre para o partido progressista, caiu desprestigiado sob o peso da animadversão geral o ministério presidido pelo sr. José Luciano de Castro…A notícia foi recebida nesta vila, de que o ministério estava demissionário, foi festejada com vivíssimo contentamento geral. Na verdade, semelhante situação ministerial não era agradável ao concelho da Feira, cuja integridade ofendeu para satisfação de caprichos senis, de interesse ou vaidade de abastardados. Semelhante ministério era odioso aos filhos da Feira». 6 Uma semana depois o director do Correio da Feira voltava às páginas do seu jornal para clamar «vingança» contra os emancipadores de Espinho: «…Os separatistas de Espinho, gente malévola que maquinou a criação ilegal do microscópico concelho e maquinam ultimamente o de uma comarca com freguesias nossas, devem estar a esta hora a prantear amargamente a queda dos seus amigos dilectos. Realmente é duro ver tanta esperança morta. Lá vai a comarca e breve irá o concelhito. Dura sorte! Mas os renegados 5 - Correio da Feira n.º 157 de 7.4.1900: 6 - Correio da Feira n.º169 de 30.6.1900

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que todo o momento procuraram perder-nos e reduzir-nos a nada, não lograram o seu intento…Julgavam os toupeirastraidores à sua terra que o governo progressista não seria enterrado sem lhes satisfazer a ambição e o ódio senil… Mas sofreram a mais terrível desilusão. De orelha caída, de beiço descomunal, só esperam, resignados, o ponta-pé da justiça que os há-de fazer cair para sempre do pedestal ignóbil de onde tinham escarnecido vilmente um povo inteiro. Chegou a hora de julgar-lhes os crimes e de os punir inexoravelmente!...Pois chega agora o momento de saldarmos as contas» 7 Em Julho e Agosto, a campanha do Correio da Feira, animada agora por um governo que era favorável aos interesses da Feira, assestou o seu alvo na reduzida área do concelho de Espinho, constituída por uma única freguesia afirmando que não tinha condições para se governar sozinho e que só se sustentava à custa do jogo, argumentos utilizados para justificar a sua eliminação e torná-lo ao seio da Feira: «O concelho de Espinho, composto apenas da pequena freguesia do mesmo nome não tem condições de vida própria…A criação do mesmo concelho obedeceu apenas, não à vontade dos habitantes da freguesia, propriamente dita, e nem isso seria possível, mas à ambição de três industriais, um médico e um futuro capitalista que aliciaram aqueles habitantes para uma representação aos poderes públicos que encobre a verdade dos factos, e se valeram das influências masculina e feminina que rodeavam o sr. José Luciano para levarem este ex-ministro do reino a praticar o erro e a ilegalidade da emancipação administrativa de Espinho…Ora aquele concelho arrasta uma vida de ignomínia, vive, sustentase indignamente de uma contribuição que lhe pagam as casas de jogo ilícito, e só disto se sustente. E a prova é que, temendo as consequências da notabilíssima determinação do sr. Conselheiro Hintze Ribeiro, que está disposto a fazer cumprir as leis repressivas do jogo, empregaram em Espinho os maiores esforços junto do jogadores e roleteiros para deles receberem já adiantadamente a importância das colectas que eles se obrigaram a pagar para o cofre municipal em troca da liberdade de jogo…Impõe-se, portanto, e por todos os meios de ordem pública, coerência política e moralidade que, imediatamente se ordene que fechem todas as casas de jogo em Espinho».8

Mal adivinhava José Soares de Sá que um século mais tarde a Feira viria a beneficiar de algumas verbas anuais do Casino Solverde, de Espinho, por força das obrigações contratuais entre aquela empresa e o Estado! Perante esta acérrima e dura campanha contra a emancipação concelhia de Espinho, qual foi a reacção de Espinho e dos seus dirigentes? Espinho, nesta data, não possuía nenhum órgão de comunicação social para se defender das ideias, afirmações, ataques e comentários contra a sua autonomia. Disso se queixava o correspondente de Espinho do Comércio do Porto em 1900: «Não temos um jornal, parece incrível, mas é verdade, e todavia precisamos dele e não será difícil mantê-lo. Precisa-se dele para se defender dos ataques e dos insultos que semanalmente nos dirige certo instrumental da Feira! Se Espinho, no Inverno, é superior a qualquer dessas vilas sertanejas que para aí sustentam um ou mais, no Verão, contudo, é uma verdadeira cidade, e, além disso, Espinho precisa de ter no campo da imprensa, um defensor dos seus interesses e um propugnador dos seus direitos e regalias porque precisamos de nos defender com muita calma, educação e coragem. Ora, segundo nos informam, essa lacuna vai ser preenchida, pois nos dizem estar para breve a publicação dum periódico, destinado ao fim a que aludimos: a defesa de Espinho e a honra do seu povo» 9 Com efeito, o primeiro jornal de Espinho – a Gazeta de Espinho saiu a 6 de Janeiro de 1901, sob a responsabilidade de Joaquim de Oliveira Reis, seu editor. Na sua apresentação, sob o título «A Nossa Política», definia-se do seguinte modo: «…A Gazeta de Espinho não nasce da política nem dela pretende viver. Defende os interesses locais, advoga o progresso desta terra. Não é fruto espúrio de qualquer convertículo ou seita dominante, coloca-se ma intransigente e livre crítica do governo e sistemas políticos. É primeiro que tudo e sobretudo – por Espinho. Arredado sobretudo de problemas e soluções de política geral, o nosso semanário cuidará escrupulosamente da manutenção e desenvolvimento deste florescente concelho. Será o campeão da sua liberdade e o pregoeiro das suas glórias…» Assim, antes do aparecimento deste jornal, Espinho teve de recorrer aos jornais diários, através de correspondentes locais, que para eles enviavam notícias e comentários em defesa do

7 - Correio da Feira n.º168 de 25.6.1900 8 - Correio da Feira n.º 170 de 7.7.1900;

9 - Comércio do Porto, 1900. Boletim Cultural de Espinho, n.º 10, vol. III, 1981


concelho. Em Agosto de 1900, numa correspondência no Comércio do Porto, podia-se ler, entre outros comentários, o seguinte: «…a Planta topográfica de Espinho…havia sido tirada, há já não sei quantos anos, pelo engenheiro Bandeira Coelho, que foi oferecido à Câmara da Vila da Feira pelo autor…Há bastantes anos que se pedia à Câmara da Feira que mandasse o seu arquitecto ou engenheiro levantar a Planta do resto da povoação. Bem se importava ela com esses clamores!...Espinho, no Inverno passado, além da limpeza das ruas, gozou de dois benefícios que, de há muito, vinha reclamando em vão da Feira: a iluminação e a polícia das ruas. Ora aí tem o que Espinho, por enquanto, ganhou com a sua autonomia; isto não é mais que um vislumbre do que ele há-de vir a ganhar de futuro. E. se o concelho foi e háde ser motivo de tanta prosperidade e de tantos benefícios, como pensar em roubar-lhe a liberdade? Pois, será possível que em Portugal haja um homem que queira assumir perante a história e perante a sua consciência, a responsabilidade de haver morta uma terra diante da qual se abre um futuro risonho e tão esperançoso? Ora, com franqueza, não o podemos crer! Se Espinho não tivesse elementos para viver, vá lá com os diabos, mas já não resta a ninguém a menor dúvida de que os tem de sobra».10 Na verdade, não houve um homem que assumiria, perante a história e perante a sua consciência a responsabilidade de tentar anexar novamente Espinho ao concelho da Feira, mas sim um grupo de dirigentes políticos do Partido Regenerador da Feira, entre os quais o Dr. Vitorino Joaquim Correia de Sá, que tinha sido eleito administrador do concelho da Feira, o Dr. António de Castro Pereira Corte Real, o Padre Manuel de Oliveira Costa, presidente da Câmara da Feira, o Dr. José Fernandes Magalhães, vice-presidente da mesma Câmara e o Dr. Eduardo Vaz, membro da Comissão de Vigilância do Concelho da Feira, que a um Domingo, em princípios de Setembro de 1900, partiram para Lisboa «tratar dos negócios respeitantes ao nosso concelho e regressaram na quarta-feira magnificamente dispostos sob a mais lisonjeira impressão pelo amigável acolhimento que teve em Lisboa por parte dos eminentes marechais do nosso partido e animados das melhores esperanças sobre a realização, em breve, de todos os desejos e aspirações deste concelho».11 10 - Comércio do Porto, 1900. Transcrito no Boletim Cultural de Espinho, n. 10, Vol. III, 1981; 11 - Correio da Feira, n.º 188 de 18.9.1900

Estes desejos e aspirações foram, nem mais, nem menos do que solicitar ao governo regenerador de Hintze Ribeiro a supressão pura e simples do concelho de Espinho, incorporando-o novamente no concelho da Feira. Foi com esse objectivo que aquela comissão se tinha deslocado a Lisboa. Assim o desejava ardentemente também o intrépido director do jornal que anteriormente já se tinha manifestado sobre o assunto em termos que não ofereciam dúvidas a ninguém: «Espinho não pode viver independente…Por isso todos anseiam pela frontal e inadiável supressão do concelho que a ninguém trouxe benefício, senão aos dirigentes do município…Resta-nos, pois, a esperança vivíssima de que aquele município único, não celebrará o seu segundo aniversário. A Feira suspira por que se lhe faça justiça. E é preciso que se lhe faça, custe o que custar, doa a quem doer. Hoje, como ontem, como sempre, estamos ao lado da Feira, e tanto propugnaremos pelos seus direitos postergados, como pelo desafronto que lhe é devido». 12 Assim, o pedido de supressão do concelho de Espinho chegou, como era de esperar, ao Parlamento, pela mão do deputado pelo círculo da Feira do Partido Regenerador, Dr. Abel Pereira de Andrade que, na sessão nocturna de 23 de Abril de 1901, apresentou um projecto de lei extinguindo o concelho de Espinho, anexando a freguesia novamente ao concelho da Feira, como segue: «Projecto. Artigo 1.º – É suprimido no distrito de Aveiro o concelho de Espinho e incorporado, com as suas receitas e encargos, ao concelho da Feira, de que foi separada a freguesia que constitui, nos termos da lei de 17 de Agosto de 1899; Artigo 2.º – Fica revogada a legislação em contrário. Sala das sessões em 24 de Abril de 1901. Os deputados Abel Andrade e Fernando Martins de Carvalho». Em jeito de comentário a esta notícia, o director do Correio da Feira, convencido de que o projecto de lei seria aprovado, escrevia: «Aí fica o documento em que se concretiza a aspiração da grande maioria do círculo da Feira, O número dos defensores do concelho de Espinho está reduzido à pequena minoria dos que satisfizeram interesses mercantis privativos com a sua constituição, e dos que apoiaram esses interesses unicamente para demonstração de antigos despeitos contra os que levantaram e têm continuado a cruzada a favor da integridade do concelho da Feira. O parlamento, o governo, há-de verificar que é legítima a aspiração, há-de fazer justiça ao círculo da Feira». 13 12 - Correio da Feira, n.º 177 de 23.8.1900; 13 - Correio da Feira, n.º212 de 27.4.1901

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Perante o projecto de supressão do Concelho de Espinho apresentado no Parlamento pelos dois citados deputados, Espinho não ficou parado e reagiu de imediato, através da sua Câmara Municipal, que enviou àquele parlamento um documento de vivo repúdio pela «manobra» da Câmara da Feira, datado de 30 de Abril e que foi lido pelo conselheiro José de Alpoim. Este deputado, depois de mandar para a mesa uma declaração de voto, na qual dizia que «Espinho que tem melhorado consideravelmente, depois que foi elevado a concelho, encontra-se hoje em excelentes condições. É por motivos de política partidária que se pede a extinção daquele concelho que, não só sob o ponto de vista geral mas local, convém conservar porque é uma importante estação balnear do norte que não se deve deixar converter numa vergonha para o país», apresentou em seguida a representação da Câmara Municipal, pedindo â Câmara para não aprovar o projecto que lhe foi apresentado para a extinção do concelho de Espinho. A representação da Câmara Municipal de Espinho foi a seguinte: «Senhores Deputados da Nação Portuguesa: A Câmara Municipal de Espinho, em seu nome e de seus munícipes, vem pedir-vos que não aproveis o projecto que vos foi apresentado para a extinção deste Concelho. Consideração alguma justifica a violência que a conversão de um tal projecto em lei traduziria. Espinho, elevado a Concelho pelas Cortes, em atenção a unânimes reclamações dos seus habitantes, cansados de sofrer as prepotências e extorsões da Vila da Feira, tem-se desenvolvido e acusa um alto grau de prosperidade. Arguí a Feira deste Concelho não ter rendimentos e de lhe haver causado prejuízos. Mas se Espinho é tão falto de recursos, tão pobre que não tem com que viver, e estava dando tamanhos prejuízos à Feira, agravando-lhe os deficits, compreende-se que ela tanto se enfurece por o perder até ao crime para o empolgar de novo? Não seria mais lucrativo, mais sensato e mais honesto para ela, deixar emancipar Espinho e felicitar-se até por se ver livre dele? Como mostram os documentos juntos, Espinho tem sobejos recursos para ocorrer aos encargos da sua administração autónoma.

Dêmos, porém, que os não tivesse. Seria a Feira que viria solvê-los? Ela que, por péssima administração tem um passivo superior a 40 contos, ela que não paga aos seus empregados, ela crivada de dívidas, perseguida de credores, insolvente, executada, arruinada? Se a Câmara de Espinho não tivesse provas irrefragáveis dos excepcionais recursos deste Conselho e precisasse de documentos demonstrativos do seu rendimento, i-loia encontrar na escrituração e nos próprios orçamentos da Câmara da Feira. Com efeito, a sua receita, que antes da emancipação de Espinho era calculada em 22 contos, está hoje orçada em 16. Ora quando até a receita orçada foi reduzida de 22 para 16 contos, imagina-se para onde não terá vindo a receita arrecadada. O Concelho de Espinho, administrado por cidadãos honestos e dedicados, vive desafogadamente. Atravessou a crise da peste e venceu as dificuldades do ano findo, fechando com um saldo de perto de um conto de reis. Este resultado é tanto mais eloquente e para aguçar a cupidez dos seus antigos dominadores, quanto é certo provir unicamente do rendimento dos bens próprios, dos impostos indirectos – criados pela Feira e em vigor ali – e de pouco mais, com a exclusão dos impostos directos, abolidos neste Concelho após a sua constituição. Espinho, embora não possua todos os melhoramentos de que precisa, porque há pouco mais de um ano sacudiu o jugo da Feira, transformou-se e progrediu imenso. Antes da autonomia, a não ser nos meses de Setembro e Outubro, não tinha polícia, nem um candeeiro ao menos de iluminação pública. A água faltava, apenas vinha o Verão. Havia 10 anos que a Câmara da Feira não mandava aqui reparar nem um metro quadrado de rua: Espinho não tinha escola de instrução primária. Depois da sua emancipação, foi abastecida de água, as ruas foram limpas e arborizadas, reparando-se e construindose algumas em valor não inferior a um conto de reis. Pagouse o alargamento e as cancelas da passagem de nível da rua Bandeira Coelho, na importância de 435$880 reis, que a Feira ficou a dever; levantou-se a planta geral do Concelho e demarcaram-se as suas novas ruas e avenidas, restaurou-se a escola do Conde de Ferreira e contribuiu-se para o edifício escolar, concedido por despacho ministerial de 27 de Abril de 1900, além do terreno, com o subsídio de 500$00 reis.


Augusto de Oliveira Gomes 1º Administrador do Concelho de Espinho 17 de Setembro de 1999

Iluminou-se a povoação, inclusive a luz eléctrica na época balnear, cobrou-se nesse periodo até ao momento actual a quantia de 677$000 reis. Mas se tudo isto traduz um esforço enorme, de tudo isto que atesta e proclama a opulência e o civismo de um povo valorizador pela reivindicação dos seus direitos, pela conquista da sua autonomia, nada houve que abalasse a consciência dos inimigos de Espinho. E nada houve que lhe abalasse a consciência porque a têm obcecada pela inveja, cega pela cobiça de cerca de 6 contos de reis que a Câmara teve de receita o ano passado e de outros 6 que, na pior das hipóteses, háde arrecadar este ano de 10 contos de reis que valem os seus terrenos e de 10% do produto dos baldios que a Junta de Paróquia desta freguesia aforou na importância de 41.368$000.

Não quer esta Câmara já insistir no rendimento do Concelho de Espinho, arrecadado na sua recebedoria, o qual nos primeiros 10 meses da sua existência, montou à soma de 20.018$623 reis. Estas assombrosas receitas, que vós por certo ignoráveis, mas que a Feira muito bem conhece, estes extraordinários recursos que fazem de Espinho uma freguesia e Concelho riquíssimos, são, realmente, estonteadores e capazes de sugerir os planos mais audazes. Rendimentos incomparavelmente menores têm muitos outros concelhos, sem que até hoje alguém se lembrasse de propor a sua supressão. Senhores Deputados: a antiga Terra de Santa Maria perverteu-se e não inspira a confiança que ao povo devem merecer os seus dirigentes. Disto deram frisante prova, não há um ano, 10 freguesias que, pelas suas Juntas de Paróquia representaram para serem separadas dela e com Espinho formarem comarca. Espinho, nomeadamente, é incompatível com a Feira e nunca mais poderá cultivar com ela relações de espécie alguma. Senhores deputados: Espinho tem iluminação pública, tem polícia, as ruas reparadas e arborizadas, água potável e escolas públicas e a Feira quer que ele volte ao degradante abandono a que o tinham condenado. Espinho tem recebedoria, repartição de fazenda, administração e Câmara, onde, com a máxima economia, e facilidade, todos podem tratar dos seus negócios, e a Feira quer privá-lo destas regalias para obrigar os espinhenses a longas caminhadas, a percorrerem 20 Kms, a irem lá, à odienta vila, cansarse e gastar tempo e dinheiro e enredar-se no labirinto de dificuldades e pleitos com que se locupleta uma revoltante oligarquia. Espinho, povoação muito mais importante que a Feira, tem vida autónoma, vida livre, governa-se por si, honradamente, empregando os seus rendimentos em benefício próprio, e a Feira pretende que esta povoação vegete sordidamente dominada, escrava de tiranetes e torturada por quem lhe absorva e dissipe o produto dos seus tributos, do seu trabalho e do seu labor. A Feira quer que se lhe entregue Espinho para o estrangular e cevar nos seus despojos a fome que a devora, fome sim, Senhores Deputados, porque a Feira tem fome.

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Vós, porém, não haveis de sancionar tamanha iniquidade; da vossa ilustração e recto espírito de justiça, espera-o confiadamente a Câmara. Se como é justo, a falta de receita, de tino e de moralidade na administração da fazenda municipal, fundamentasse a extinção de uma circunscrição administrativa, o concelho que devia ser extinto, suprimido por completo era o Concelho da Feira. Esta Câmara, porém, não vos pede que suprimais, nada quer ele e dele não precisa; o que ela vos pede é que conserveis a autonomia de Espinho e o preserveis das funestas consequências da sua anexação a uma terra detestada. Espinho, 30 de Abril de 1901. A Câmara Municipal – Presidente – António Augusto de Castro Soares; vogais – Henrique Pinto Alves Brandão, José António Pires Resende, João Francisco da Silva Guetim, António de Oliveira Salvador Júnior» 14 A Associação Industrial Portuense e o Centro Comercial do Porto enviaram também ao Parlamento representações em defesa da autonomia de Espinho, que a seguir se transcrevem: «Senhores Deputados da Nação Portuguesa. À Associação Industrial Portuense acaba a Municipalidade de Espinho de dirigir cópia de uma representação que se nos afigura de tal modo justa que não hesitamos um só instante em patrociná-la, vindo perante vós, Senhores Deputados da Nação Portuguesa, impetrar o vosso valiosíssimo concurso a fim de evitar que se cometa um abuso que não pode justificar e que, a consumar-se, seria um golpe mortal vibrado àquele florescente concelho. Com efeito, Espinho, desde que há pouco mais de um ano se libertou dos pesados grilhões que o acorrentavam à Vila da Feira, conseguiu à custa de imensos sacrifícios, de uma vontade ilimitada e de um trabalho insano, elevar-se a um tal grau de progresso, que hoje seria uma gravíssima injustiça privá-lo da autonomia que à custa de tantos sacrifícios granjeou e que tanto se tem esforçado por manter. Está de sobejo demonstrada a sua importância industrial e são de sobra conhecidos os estreitos laços que o ligam a esta cidade pelo seu comércio, para que possa licitamente duvidar-se do grau de desenvolvimento que poderá ainda atingir se lhe for conservada a sua autonomia administrativa. E se Espinho num tão pouco espaço de tempo e tendo

vencido o período inicial, sempre difícil e tormentoso, conseguiu criar recursos próprios, contribuiu para o estabelecimento de escolas, construiu ruas, iluminou, policiou, abasteceu de água e dotou enfim, aqueles povos com todas as regalias de que, até à data da sua emancipação, estavam privados, será justo que agora se volte a lançar-lhe os ferros que com tanto direito e energia despedaçou? Não tem Espinho na sua Câmara, nas suas repartições, nos seus estabelecimentos públicos, homens de comprovada honradez, dedicação e esclarecido critério, que possam envergar o encargo da sua administração autónoma? Tirar a um povo o direito de emancipação quando esse povo prova irrefutavelmente que tem elementos de vida independente, é sem dúvida um acto pouco razoável e justo; e, na ocasião presente, em que o nosso país se vê a braços com a resolução de tão importantes e graves problemas, em que os espíritos, já excitados por questões de outra natureza, se encontram no mais alto grau de tensão, haverá necessidade de criar novos ódios, de fomentar novos rancores entre povos que devem viver, como hoje, independentes? Senhores Deputados da Nação Portuguesa: Pelas razões expostas e pela sensata defesa apresentada na representação que vos foi enviada pela Câmara Municipal de Espinho, encontrareis vós sobejas provas da razão que lhe assiste; e esta Associação, confiada no são critério e rectidão da Câmara que dignamente constituis, ousa esperar que vós negareis a vossa aprovação ao projecto para a extinção do Concelho de Espinho que foi submetido à vossa ilustrada apreciação, certos de que, fazendo-o, tereis também pugnado pelos interesses desta cidade tão intimamente ligada àquele concelho. Porto e Associação Industrial, 8 de Maio de 1901. O presidente, António José Gomes Samagais: o 1.º secretário, Luís Firmino de Oliveira».15 Por sua vez, o Centro Comercial do Porto enviou a seguinte representação: «Senhores Deputados da Nação Portuguesa: O espírito de independência, posto ao serviço da causa do progresso, deve merecer a vossa aprovação, o vosso apoio, a vossa sanção. É o que está merecendo já no consenso público o enérgico e trabalhador povo de Espinho, que dia a dia, procura engrandecer-se e tornar participante do seu engrandecimento o resto do país – pelas irradiações do seu exemplo e da sua actividade.

14 - Boletim Cultural de Espinho, nº 4, Vol. I, 1979;

15 - Boletim Cultural de Espinho, n.ºs 5/6, Vol. II, 1980


E a cidade do Porto, sua vizinha, é a que mais directamente participa do desenvolvimento do moderno concelho, em virtude das constantes e crescente relações comerciais e industriais mantidas entre si. Por estes motivos, se outros não houvesse ponderosos e justos, o Centro Comercial do Porto, aplaudindo as aspirações do Concelho de Espinho, apoia a representação da sua Câmara Municipal contra o atentório projecto da extinção do seu concelho, apresentado na Câmara dos deputados da Nação; e porque nada o justifica e não se pode apoiar em quaisquer razões de ordem económica ou social – as únicas dignas de ponderação e susceptíveis de uma resolução extrema, como se nos afigura, a que se pretende tomar. A povoação de Espinho, actualmente elevada à categoria de concelho, tem os recursos indispensáveis à sua manutenção e todos tirados da sua actividade e compreensão do progresso local, que se aumentam e valorizam constantemente. É uma das terras do país que, pelas suas condições especiais de localização, atrai ao seu seio, nacionais e estranhos, outros tantos contribuintes da sua vitalidade e riqueza, que por seu turno se vai espalhando pelo país. E, além disso, vigorando a ideia do fomento nacional, preconizado pelo traçado de novas linha férreas do país – está Espinho destinado a ser testa da linha do Caminho de Ferro do Vale do Vouga, o que lhe aumentará a importância económica, e será mais um título a justificar a sua categoria administrativa, se justificada não se acha já por tudo que lhe respeita e o abona. Nestes termos e em nome do direito e da justiça – o Centro Comercial do Porto, secundando os votos da Câmara Municipal de Espinho, pede seja mantido o novo Concelho de Espinho e que sejam respeitados os interesses criados que são valiosos e dignos da vossa consideração. Secretaria do Centro Comercial do Porto, 3 de Maio de 1901. Pela Direcção: Ezequiel A. R. Vieira de Castro, presidente; por Domingos Maia, Secretário.16

16 - Boletim Cultural de Espinho, n.ºs 5/6, Vol. II, 1980

João de Magalhães

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ADEUS SOLIDÃO Gilberto Pereira* olhas o negro céu pela janela e imaginas um dia sem manhã e todas as horas te percorrem o corpo com uma lua cheia nos olhos e o pó das estrelas a esvoaçar sobre os cabelos deixas a noite consumir todas as gotas condensadas nos teus poros e uma brisa fina eleva-te a pele em pequenos picos de prazer 202

sorris num suspiro profundo repousas a cabeça na almofada e adormeces e não vives mais manhãs de solidão

* Gilberto José de Sousa Pereira, natural do Porto (1979), reside desde sempre em Argoncilhe. Frequenta vários encontros poéticos pelo país, sobretudo as tertúlias da Onda Poética, de Espinho, onde mantém uma participação activa desde 1998, lendo preferencialmente Al Berto, Herberto Helder, Mário Contumélias, Eugénio de Andrade e António Gedeão. A sua poesia, com tendência para o soturno e o intimista, sofreu, sobretudo de início, algumas influências dos dois primeiros autores mencionados.


Antologia Prática de um Devocionário Popular. Domingos Azevedo Moreira* DEVOÇÕES MENSAIS Março Mês de Maria (sobre mês de Jesus, vide adiante p.76) Antigamente Março, por ter no dia 25 a festa da Anunciação do Anjo à Virgem Maria (então, dia santo de guarda), era vivido como se fosse um mês de piedade especialmente mariana. Maio como mês de Maria é bastante recente: vindo de França tal hábito, chegou à diocese do Porto em 1862 (1). As pessoas, em cada dia de Março, que era, por assim dizer, “mês de Maria”, rezavam à Virgem a oração da Ave-Maria, mas, no dia da Anunciação como também na sua véspera, rezavam muito mais. É de notar que, no século XV e até antes, muitas pessoas não sabiam a Ave-Maria e o Alberto Pimentel, História do Culto de Nossa Senhora em Portugal, Lisboa, 1889, p. 371; Conde de Samodães, O Culto de Maria Santíssima na Diocese do Porto, Porto, 1904, p. 134.

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* Jornalista e Investigador Histórico.

Pai Nosso, e, por isso, segundo os sínodos diocesanos, os párocos utilizavam nas missas as homilias para ensinarem ao povo estas orações e a doutrina da catequese. Por isso, rezarse a Ave-Maria em Março já era um progresso religioso. Assim, em Belmonte, as pessoas rezavam diariamente em Março 70 Ave-Marias (2). Na aldeia de João Pires, em Penamacor, rezavam-se 100 Ave Marias no dia da Anunciação (3). Também se rezavam 31 Ave-Marias (uma por dia) no mesmo mês e 100 Ave-Marias, no dia da Anunciação, na terra da Bendada, no Sabugal (4). Também em Benquerença, em Penamacor, havia o hábito da reza duma Ave Maria em cada dia de Março (5), como acontecia também na região de Trancoso (6). Os nove rosários rezados no dia da Anunciação, em Benquerença, eram depois oferecidos a Deus pouco depois, no Domingo de Páscoa, à porta da igreja (CS 119). O dia da Anunciação também se chamava Encarnação (de Cristo no seio virginal de Maria) e também a razão de este dia ser o da chamada Senhora da Graça “cheia de graça”).

(2) P.e José Quelhas Bigotte, O Culto de Nossa Senhora na Diocese da Guarda, Lisboa, 1948, p. 102. (3) P.e José Quelhas Bigotte, O Culto de Nossa Senhora na Diocese da Guarda, Lisboa, 1948, p. 271. (4) P.e José Quelhas Bigotte, O Culto de Nossa Senhora na Diocese da Guarda, Lisboa, 1948, p. 348. (5) Jaime Lopes Dias, Etnografia da Beira, vol. 5, 2. ª ed., Lisboa, 1966, p. 253. (6) J. Leite de Vasconcellos, Etnografia Portuguesa, vol. 8, Lisboa, 1982, p. 184.

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Perguntar aos Anjos que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem? Não queremos soldada, Muito menos dinheiro, Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

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Nesta manhã de Março Vou-me soldar com a Virgem Maria: A soldada que lhe peço É a paz e a alegria, Salvação para a minha alma, Remédio para a minha vida. Por isso lhe vou rezar Trinta e uma Ave-Marias Que é uma para cada dia. (TP 170) Minha Senhora de Março, Minha Soberana Maria, Prometo-vos rezar Trinta e uma Ave-Marias cada dia. (C 165) Este mês e Março Tem 31 dias, Por isso vos rezo Trinta e uma Ave-Marias (CS 118) A Nossa Senhora de Março Cem dias eu jejuei E cem vezes encruzei, Cem na véspera e cem no dia Com a graça de Deus e Da Virgem Maria. (L 109) A soldada que vos quero É paz e alegria, Salvação para a minha alma, Emenda p’ra minha vida. (C 166)

Senhora da Encarnação, Sois Mãe do Verbo Divino, Deitai-me a vossa bênção Que eu vou por este caminho À busca da salvação E do Sacramento Divino. (AB 4.308) Na Senhora da Encarnação Cem Ave-Marias rezei, Cem vezes me persignei, Cem vezes o chão beijei. (L 110) No dia 25 de Março Cem vezes o chão beijei, Cem vezes me persignei, Cem Ave-Marias rezei E no dia de Santa Cruz Mil vezes disse “Jesus”. (L 111) No dia de N. S. ª de Março Cem Ave Marias Rezei, Cem vezes me benzi, Cem vezes me persignei, Cem vezes o chão beijei, Com isto e com a graça de Deus Me salvarei. (Foz 24) Estas 100 Ave-Marias que eu rezei, No regaço de Maria as deitei, Se na hora da minha morte Eu precisar, Senhora Por elas Vos perguntarei. (Mon 213) As cem Ave-Marias de Março Que por mim rezei, Por mim as assinei E à Virgem Sagrada as entreguei. (EB 6.290-291)


Coração de Mãe Da divina graça, Livrai nossas almas Da eterna desgraça. (C 156) O dia da Encarnação Cem vezes me ajoelhei, Cem vezes me persignei, Cem vezes o chão beijei, Cem Ave-Marias rezei. (ET 60) Com o rosário da Virgem Maria Começado na véspera E acabado no seu santo dia Da gloriosa Virgem Maria. (CAD 62-63) No mês de Março também se cantavam as excelências de Maria, isto é, as qualidades e virtudes que Maria teve acima das virtudes de todas as criaturas (virtudes de santidade superiores às virtudes dos santos, dos profetas, dos apóstolos, etc.) e assim o P.e João Rebelo, em 1600, no seu livro Rosario de la Santíssima Virgen, fala, nas pp. 155-156, das 7 excelências da Virgem: o seu ardente desejo pelo nascimento de Cristo, a sua grande humildade de coração, o seu amor a Cristo, a guarda de todas as falas de Cristo no seu coração, a sua paciência sem limites no Calvário, a sua oração pela Igreja nascente e a sua dedicação à Santíssima Trindade. Eis o canto das 9 excelências usado na Beira Baixa, como o regista o Dr. Jaime Lopes Dias (EB, vol. 3, Lisboa, 1955, pp. 106-113), onde 9 excelências também se referem aos 9 meses da geração humana de Cristo:

Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada. Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem? Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro. Em seu esplendor De grande maravilha, Cheia sois de graça, Ó Virgem Maria. A segunda excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste. Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada. Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem?

Ave Maria De grande valor, Rainha dos anjos Em seu esplendor.

Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

A primeira excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste.

A Virgem Maria, Deus a escolheu Para ser sua mãe, E dela nasceu.

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A terceira excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste.

Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada.

Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada. E dela nasceu O nosso bom Jesus, Salvador do mundo, Espelho de luz.

Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem? Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

A quarta excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste.

Que ao céu nos conduz, P’ra lá nos quer levar E nós, tão ingratos, Sempre a pecar.

Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada.

A sexta excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste.

Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem?

Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada.

Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem?

Espelho de luz. Que a todos dá luz, É aquele Senhor Que ao céu nos conduz.

Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

A quinta excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste.

Sempre a pecar, Sem emenda ter, Ninguém considera Que há-de morrer.


A sétima excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste.

Que nos há-de julgar E levar também P’ra eterna glória P’ra sempre, amen.

Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada. Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem?

A nona excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste. Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada.

Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem?

Que há-de morrer, Que contas há-de dar Àquele Senhor Que nos há-de julgar.

Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro.

A oitava excelência Que, Virgem, tiveste Cheia de graça E graça nos deste. Mereceste ser coroada Rainha dos anjos, Rainha dos anjos Mãe de Deus chamada. Perguntar aos anjos Que vêm de Belém Se a Virgem Maria Nos pagará bem?

Uma excelência deu o Senhor À Senhora da Graça: Uma Ave-Maria, Ó cheia de graça.(7) As três excelências Que deu o Senhor À Senhora da Graça... Ave-Maria, Oh! Cheia de graça. (CA 206)

Não queremos soldada, Muito menos dinheiro. Só queremos a bênção De Deus verdadeiro. Carlos Alberto Ferreira de Almeida, Ementação das Almas – Rezas da Ceia, sep. Do n.º 5 da Revista de Etnografia, p. 12.

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DEVOÇÕES ANUAIS:

Dia de Todos os Santos 1 de Novembro No dia de Todos-os-Santos, 1 de Novembro, começa propriamente o ano religioso para as gentes transmontanas. Terminaram as vindimas e as sementeiras. Neste dia a que eles chamam “Díê lumenado”, ou dia nomeado, uma das quatro festas do ano, toda a gente vai à missa de Todos-osSantos. As mulheres vão todas vestidas de preto. À tarde visitam-se as sepulturas dos seus mortos nos cemitérios. Na missa de Todos-os-Santos a que toda a gente assiste, aos Santos uma voz de homem começa a entoar o canto barroco dos Santos; a que todo o povo responde com rara e pausada solenidade: 208

Santo! Santo! Santo!... Santo é o Senhor Deus, Senhor Deus dos Exércitos... Cheio está... O Céu e a Terra... O Céu e a Terra... Cheio está... Da Vossa Glória... Da Vossa Glória... Glória seja... Seja ao Padre, Glória seja, Seja ao Filho... Glória seja... Ao Espírito Santo!...

Aqui o povo julga a palavra Santo referir-se aos santos (todos os santos) quando realmente ela se refere ao Senhor Deus dos Exércitos. À noite, reúnem as famílias para cear e para rezar pelos seus defuntos, e daqui por diante, até à Páscoa, os sinos, à noite, tocam “às almas” em todas as aldeias. (Mir 279) Santo Deus, Santo Forte, Santo Imortal Livre-nos Deus de todo o mal.

III Valha-me o grande poder de Deus E a Flor onde Ele nasceu E a hóstia consagrada E a cruz onde ele morreu. IV Ó grande Deus de Israel e de Abraão Vós que ouvistes a Daniel, ouvi Senhor a minha oração. Nas Vossas benditas e sagradas mãos eu me entrego e de alma e coração me entrego nas mãos de Vosso Amado Filho Jesus Cristo e de Sua Mãe Maria Santíssima, do Divino Espírito Santo, de Santa Mónica, de Santa Luzia, São José e de todos os santos e santas da Corte do Céu. Eu Vos amo e Vos adoro sobre todas as coisas. (F 180)

Fiéis Defuntos 2 de Novembro

TRISTE DIA “Dies Irae” Triste dia, em que o mundo Deverá ser abrasado! Por Dabid “Portefizado”, Naquel abismo profundo!... Oh, quanto tremor então, Causará a toda a gente, Ver ali um Deus presente, Julgando a mais leve acção! Das profundas sepulturas Soará um eco fatal(i) Ao debino tribunal(i), Chama Deus as criaturas!...


Aberto o libro selado, Onde tudo está “eiscrito” Onde o mais leve delito Do mundo será julgado.

Entre os Vossos escolhidos, Minha alma depositai, Dos que foram excluídos, Para sempre me apartai!...

Sobre o seu trono de glória, Estará o Juiz presente; Fazendo a todos patente Dos seus crimes a memória!...

Destes já condenados, E sem remédio, livrai-me! Entre os bemaventurados, Ao Vosso reino chamai-me!

Mas a quem meu peito impuro Buscará com tanto aperto? Quando apenas, se por certo, O justo, estará seguro?!...

Humilde, pois, desta sorte, Ante a Vossa Magestade! Vos peço, Senhor, piedade, No transe da minha morte!

Oh tremenda Magestade! Que quando os homens salvais; Tudo de graça lhes dais, Salvai-nos, por piedade!...

E, se, por minha maldade, Nada pode o meu clamor; Livrai-me, por Vosso Amor, Do fogo da eternidade! (Mir 283)

Lembrai-Vos, Jesus amado, Que ao mundo por mim viestes; Não fique quanto nos destes, Naquele dia frustrado!... (Mir 280) Por me buscardes, Senhor, Descansastes fatigado; Por mim, na Cruz encravado, Não se perca tanto amor! Vós que punis os pecados, Com fogo eterno, aos precitos, Perdoai os maus delitos, Antes que sejam julgados! Dos meus crimes compungido, Coberto de pejo o semblante; Perdoai, ó Deus amante, A quem Vos busca rendido! Vós que à triste pecadora, Seus pecados perdoastes; Vós que a Dimas escutastes, Também me animais agora!

E, no dia lastimoso, Em que toda a criatura, Desde a fria sepultura, Deve ser ali chamada, Para ser por Vós julgada, Vós, Jesus, meu doce bem, Dai aos Vossos bons fiéis, O descanso eterno. Amem!... (Mir 284)

«Esta versão portuguesa da Sequência famosa «DIES IRAE», que se recitava e cantava nas missas dos Defuntos, da autoria do minorita Tomás de Celano, da ordem franciscana e celebrado autor da Vida de S. Francisco de Assis, recolhi-a da tradição oral. O seu autor, no dizer do Cardeal Ildefonso Schuster, descreve em traços verdadeiramente miguelangelescos o Juízo Universal. O falecido cardeal IIdefonso Schuster, monge beneditino e cardeal arcebispo de Milão que foi durante a última Grande Guerra, chama-lhe “décimos miguelangelescos”, por

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dominarem de algum modo um estilo, já pelo que a relação de procedênêcia se refere, foi Miguel Angelo que, para o seu terrível drama reproduzido nas paredes da Capela Sixtina se inspirou no terrível canto do frade medieval. «O pintor de Júlio II tomou sem dúvida do Franciscano, não só os elementos apocalípticos do quadro, senão todo esse aceso colorido que o distingue, como também esse ritmo de tremenda e terrível energia de que estão dominadas quase todas as figuras sem excluir a própria Imagem da Virgem Maria. Primitivamente, esta sequência ou «Dies Irae» cantavase na primeira dominga do Advento, ou seja relacionandose com a leitura do evangelho do «Fim do Mundo» e Juízo Universal. Depois, com o acréscimo dos últimos versos em sufrágio dos Mortos, adaptou-se, bem ou mal, às Missas dos Defuntos». «Convém ter aqui em conta a psicologia religiosa da Idade Média, ou da Sociedade Medieval, em cujo seio nasceu o tremendo hino do minorlta franciscano - a 1.ª metade do século XIII. O «Dies Irae» acusa remorsos de uma geração envolta em iras e lutas fratricidas, entre gentes de um século em que tudo se traduz em abandono e esquecimento de Deus. Geração que treme e espanta-se porque, ao ditá-lo, sente os látegos da consciência culpada”. (A. I. Schuster, O. S. B. – «Liber Sacramentorum Estúdio Historico-Litúrgico sobre el Missal Romano) - Version española del P. Victoriano Gonzalez, Beneditino de Samos, 1948 - Ed. Herder, - Barcelona - Tomo IX, 120122). Esta versão que acima transcrevemos, com o nome português de «TRISTE DIA”, recolhi-a como atrás disse, da tradição oral popular, a qual se cantava e ainda canta, no Dia de Fiéis Defuntos, a 2 de Novembro e durante este mês todo, nas missas dos domingos e se recitava e recita nos rosários de velada pelos defuntos em suas casas e nos dias de funeral, nas povoações de Sendim, Duas Igrejas, Póvoa e outras deste Nordeste.» (Mir 284)) “Com acento dantesco, já eu ouvia recitar esta tradução, há mais de cincoenta anos, em Sendim ao Tio Domingos Cangueiro que era cego e analfabeto, e tinha na memória uma biblioteca de orações, canções e rimances, e a transmitiu

oralmente às gerações daquela povoação do meu tempo. Também a ouvi ao Tio José Manuel de S. Pedro (O Tio Patoleia) que a cantava nos mesmos dias que já citei. Hoje poucos a sabem já, e recitam-na incompleta. Esta tradução é uma versão livre do texto completo latino, mas o espírito do texto original é íntegro e traduz bem o pensamento do autor Tomás de Celano. Desconhecemos a autoria do tradutor, que talvez tenha sido um outro frade franciscano do século XVII ou XVIII, pois foram os frades da ordem franciscana que deixaram por esta zona os altares das almas nas igrejas, primeiro a representação do Inferno, com seu demónio e o Arcanjo S. Miguel ao cimo pesando as almas, representados em pinturas murais, a fresco ou a têmpera, alguns do Século XIV, como o de Duas Igrejas, em que um anjo leva algumas almas para o Céu. O das Veigas de Quintanilha, é pintura românica muito diluída, mas percebe-se bem que Lúcifer está prostrado e vencido sob o pé seguro do Arcanjo S. Miguel. Outras há do século XVI, XVII e XVIII, como das igrejas de Cércio, Capela de Nossa Senhora do Rosário de S. Pedro, nas Minas de Santo Adrião, Fonte de Aldeia de trás do altar da Senhora do Rosário, de Teixeira, etc. Depois vieram os retábulos em madeira de talha, uns mais arcaicos que outros, esculpidos, apresentando, a partir do fundo, do lado direito, um dragão enorme para cuja bocarra os demónios empurram as almas chorando desesperadas, à esquerda o Purgatório, em que as almas choram, de mãos postas, e daí para cima, um plano intermediário, onde domina ao centro a imagem do Arcanjo S. Miguel com sua espada de fogo e balança na outra mão. Muitos destes retábulos ostentam a imagem de S. Francisco de Assis, cujo cordão da cintura chega ao Purgatório ao qual as almas se agarram e sobem para o Céu, onde domina, coroando o retábulo, o Salvador, ladeado de Sua Mãe a Virgem Maria, à esquerda, nalguns a imagem de Santa Clara, e em volta as almas dos bemaventurados. Estes altares são do século XVIII: Sendim, Vila Chã de Barceosa, Igreja da Misericórdia de Miranda do Douro, Bemposta, Fonte de Aldeia, Algoso, etc. O de Cércio é já do século XX, 1915, e é em talha, obedecendo aos mesmos traços. A devoção das Almas é dos mais fortes esteios que dominam a fé cristã destas gentes.


O fundo dramático de medo e espanto que domina também esta tradução do Dies Irae que transcrevemos, caiu muito bem nas almas destes povos, por isso eles a conservam intacta até para além dos nossos dias. É curioso que em um missal bracarense do século XVI, editado em Salamanca, em 1528, no prelo de João de Ponce, não traz esta sequência nas missas de defuntos, enquanto um outro missal romano, editado em Veneza, quatro anos depois de terminado o Concílio de Trento, 1557, já nele vem transcrito na íntegra o Dies Irae. Recordo-me de ter lido esta tradução portuguesa tal qual, em um Missal Romano Popular, editado em Coimbra, não há quarenta anos, mas já não me recordo em que editora, pois o comprei e me desapareceu. Esta versão que acima transcrevemos é pois uma versão oral de origem erudita mas muito popularizada oralmente em toda esta região». (Mir 285)” REZA DAS ALMAS “Desde o dia 2 de Novembro, até a quarta-feira Santa, em todas as aldeias transmontanas, se tocam os sinos “às Almas”; ao estar a terminar o serão. É impressionante este som compassado de seis badaladas, na noite, e ouvido ao longe entre as quebradas, principalmente, quando se ouvem quase simultaneamente os sinos de várias igrejas de várias povoações como que respondendo uníssonos outros e convidando a gente das casas e os pastores que dormem no campo com seus rebanhos ou almocreves dos caminhos a rezar pelas Almas dos seus mortos, e a convidá-los a descansar. Às lareiras, em que se juntam várias famílias de vizinhos, amigos ou parentes, quando o sino dá a primeira badalada, o chefe da casa ou a pessoa mais importante entre as presentes começa, depois de ter parado o fuso da roca, ou as agulhas da meia, as cardas da lã, ou o sedeiro do linho:” 1.ª badalada: Todos nós rezaremos, Às Almas com devoção, P’ra aliviar aquelas penas Já que tão activas são. (Pai-Nosso e Ave-Maria)

2.ª badalada: Segundo, a Deus pedimos Todos sejamos levados, A penar naquelas penas, Todos os nossos pecados (Pai-Nosso e Ave-Maria) 3.ª badalada: Terceiro que sejamos Naquele fogo metidos, A penar nossos pecados Que aqui são cometidos. (Pai-Nosso e Ave-Maria) 4.ª badalada: Quarto, livres de Deus, Nossas penas cometidas Cessem naquelas chamas Pois elas são tão activas. (Pai-Nosso e Ave-Maria) (Mir 286) 5.ª badalada: Quinto é o dia de Juízo Se acabará o purgatório Para as almas que estejam livres Das cadeias do demónio. (Pai-Nosso e Ave-Maria) 6.ª badalada: Ó almas que estais em penas Ó almas que em penas ‘stais Lá vos mandamos esta esmola Para que dessas penas saiáis. (Pai-Nosso e Ave-Maria)

REZA DAS ALMAS Versão de Sendim – Mirando do Douro Rezemos às almas Rezemos com devoção Aliviá-las daquelas penas Que tão activas são. Onde está o meu Deus? Que não o achei a orar Achei-o no calvário Que o vão a cruxificar.

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Onde está o meu Deus? O meu bom Jesus Já vai caminhando para o céu Com o peso da Cruz. Aonde está o meu Deus? Que não o achei no Horto, Achei-o no Calvário Nos braços da Virgem morto. Ó Almas que tendeis sede? Vinde ao Calvário beber, Jesus tem 4 fontes 5 com a do lado a correr. (Mir 287)

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Ó almas que estais em pena! Ó almas que em pena estais! Lá vos mando esta esmola Para que delas saiais. Quem das almas se lembrar Que delas tenha devoção Nesta vida terá paz E na outra salvação. Ó almas benditas pedi a Deus nosso Senhor que estas santas Orações Sejam em vosso louvor.

ENCOMENDAÇÃO DAS ALMAS “É costume lembrar as benditas almas do Purgatório com uma encomendação própria e cujos versos são um convite e um alerta feitos pelas mesmas almas aos vivos para que não as esqueçamos e reflictamos neste mundo em que, embora acordados, dormimos para as coisas do outro. São cruzados e costumam ser cantados apenas na Quaresma, na Semana Santa, às primeiras horas da madrugada, por um grupo limitado de pessoas de certa idade, mas que nos últimos anos se tem vindo a renovar com alguma gente nova. São cantados nos principais largos da aldeia e no campanário

da Igreja de onde e àquelas horas da noite se ouvem de quase toda a povoação.” Acorda ó pecador; (O) Acorda não durmas mais Olha que se estão queixando, As almas de vossos pais, Metidas em tantas penas, E vós, delas não vos lembrais. Lembrai-vos com um padre-nosso E mais uma Avé-maria. Seja pelo amor de Deus. «Pai-nosso». Rezemos uma Salv-rainha, À Virgem Nossa Senhora, Na hora da nossa morte, Seja nossa «enternecedora». (Mir 288) Pecador adormecido, Lembra-te que hás-de morrer, Hás-de dar extrema conta Do teu bem e mal viver. Pecador agora é tempo, De contrição e fervor Olha bem que o tempo foge Já não sejas pecador. ALERTA! ALERTA! CRISTÃO! Alerta! Alerta, cristão!... Que mandam dizer as almas Que no outro mundo estão, Que vos vêem a bater, Às portas do coração! Ó almas esquecidas, Que fazeis, que não rezais, Para ver se as tirais, Daquelas penas acendidas, Cada vez se acendem mais! Gritam os pais pelos filhos E as mães da mesma sorte, Meu Jesus, que dor tão forte!


Chamam pelos seus amigos, Pelos seus testamenteiros, Que não se descarregaram Dos bens que cá lhe deixaram. - Oh, mal é!... – Quem das almas não é irmão, Mandar-lhe uma missa no ano, É de sua consolação! Dizem os novos e velhos, Dizem os nobres e ricos: - Sirvam as nossas visitas, Dai-nos a caridade, Cada vez sereis mais ricas!... (Mir 289) À PORTA DAS ALMAS SANTAS À porta das almas santas, Bate Deus a toda a hora; As almas lhe responderam: Meu Jesus que q’reis agora? Quero que deixeis o mundo E venhais para a Glória!... Santa Teresa da Jesus Foi ao inferno em vida; Veio toda ademirada De ver tanta alma perdida. Quando dais a esmola ao pobre, Reparai como la dais; Lá no outro mundo tendes Vossas mães e vossos pais. Quando dais a esmola ao pobre, Reparai a quem na dais; Lá no outro mundo tendes Vossas mães e vossos pais. (Mir 290)

Fim do mundo Venho dar-te relação Daquilo que não procuras: Lá no fim do mundo

Se hão-de abrir as sepulturas. Os corpos humanos levantar-se-ão. Olhai vós, em tremuras. De carne humana vestidos, Cada um, cada qual, Com seus cinco sentidos, Para serem todos julgados Por seus pecados cometidos. Lá virá dia de Finados As pedras duras chorarão. Que farão as almas puras Metidas em tanta aflição!... Lá no vale de Jurafás Haverá gemidos e dores, O Sol desaparecerá (CS 112) Sem deitar resplendores; A Lua sem dar luz, O céu sem ter estrelas, O mar sem ter areias, O campo sem ter flores, As próprias águas do mar Hão-de mudar de cores. Quando Deus descer à Terra Com todo o seu prazer, Consigo há-de trazer Uma cruz divinal Para o Mundo resgatar, Para ninguém se perder. Além vem Lucífer, O Demónio ou Dragão, A acusar-nos a Deus Como a vós, ó cristão. Além vêm Enoc e Elias Pelo mundo a pregar, Naqueles últimos dias Que Deus determinar. Além vem S. Miguel Ângelo, Com suas balanças na mão, A pesar homem e mulher O que mais culpas tiver. (CS 113)

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Senhor, esta gente não quer crer Na lei da vossa santa doutrina... Todos hemos de ser chamados Ao toque de uma buzina. Senhor, todo aquele que chora Lágrimas de paixão, é porque quer Ter à hora da sua morte Jesus Cristo por defensor de Israel. (CS 114) O PROFUNDO (vale por sete ofícios de sete padres)

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Senhor, chamei, gritei por Vós, Estou no profundo abismo dos meus tormentos; Senhor, ouvi as minhas vozes, Inclinai os vossos ouvidos, Atendei-me, Senhor. Ao som dos meus prantos, Ao /*prestar / das minhas ofensas. Quem haverá de poder sofrer E dominar o efeito Da vossa cólera?! Mas a clemência divina E o perdão Se acham em Vós. Este é o /*caso / e o motivo Por que Vós, Senhor, Deveis de ser temido. Sois um Deus, /*enches-te / de graça E de misericórdia, Como /*resgate / Nos /*queres / resgatar O todo o teu povo, E perdoar Os nossos pecados. Mas enfim, Senhor, Dai eterno descanso Às almas das penas do purgatório: Que descansem em paz, E queiram descansar, Na vossa eterna glória. Assim seja, amém! (OL 64) Dai-le o descanso da luz perpétua

Entre meio do vosso eterno resplendor. Permiti, Senhor, Que as almas do purgatório Descansem em paz e queiram descansar Na vossa eterna glória. Assim seja, amém! Glória, Santa Helena, No céu estejam as almas Das penas do purgatório Descansadinhas. vv. 1-23: construídos a partir do salmo 129 [130], “De profundis”; citamo-lo da vulgata latina da Bíblia: PS CXXIX De profundis clamavi ad te, Domine; Domine, exaudi vocem meam. Fiant aures tuae intendentes in vocem deprecationis meae. Si iniquitates observaveris, Domine, Domine, quis sustinebit? Quia apud te propitiatio est; et propter legem tuam sustinui te, Domine. Sustinuit anima mea in verbo ejus; speravit anima mea in Domino. A custodia matutina usque ad noctem, speret Israel in Domino; quia apud Dominum misericordia, et copiosa apud eum redemptio. Et ipse redimet Israel Ex omnibus iniquitatibus ejus. (OL 65)

(Continua)


Memória da História e Tradições de Sanfins da Feira Óscar Fangueiro* O meio geográfico S. Fins, no dizer de Pinho Leal, em 1874, é freguesia bonita, abundante de água, fértil e saudável. Sanfins (com a área de 600 hectares) encontra-se na ENE da Feira, a 1.500 metros do seu centro e estende-se por cerca de outros 2 km (por 1 de largura), primeiro em linha recta na direcção já referida e, depois, a partir do lugar da Campinha, nas direcções entre o norte e o nordeste. Pelo sul e sueste fica “paredes-meias” com a vizinha freguesia de Escapães, confrontando com os seus lugares de: Casal Matos, Souto, Ribas, Infestas, Godinha e Meia Légoa. Pelo sudoeste e oeste tem: Piedade, Ferra, Pombos, Picalho e Charca. Pelo norte tem: a Quinta da Portela e Caldas de S. Jorge. Pelo NNE: a Quinta das Airas. Pelo nordeste tem: a Mala Posta. Pelo leste: Pigeiros. Só actualmente entre um e dois terços da freguesia então ocupados com habitações, sendo a maior parte da sua área ocupada com terras de cultivo (na metade sul) e mato (na metade norte). * Óscar Moreira Lima Fangueiro. Investigador.

A sua altitude oscila entre 140,5 a NW da Gândara e 149 m (na extremidade SW) no lugar dos Moinhos e 306 a 310 m defronte à Mala Posta. A freguesia é percorrida por três vales: um descendo da Campinha para os Moinhos (L-O) e outro do Gulfar para a Ribeira (L-O) e outro da Gandra para os Moinhos (N-S). Hidrologia Ribeiros: O ribeiro mais importante nasce a leste da Campinha, no lugar da Godinha (em Escapães) e desce pela Campinha, Ribeirinha, Sernada, Mato, Regadas (onde cai em cascata) e Moinhos, passando sob a linha e a estrada, em direcção à Ferrã, até se encontrar com o Cáster. No seu percurso, existiam quatro moinhos, dos quais restam três: um nas Regadas e um de cada lado da linha, nos Moinhos, o que dera o nome ao lugar. Pelo norte do Vergado corre um ribeiro até à Ribeira. No seu percurso, existem quatro moinhos: um (de Stº Aleixo), que moía um alqueire à hora, quando picado, devido à queda de água; um, no Gulfar; e outros dois na Ribeira (próximos da linha do comboio). Os moinhos eram pertença de vários consortes, que dispunham de um dia ou uma noite para os utilizarem.

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Bichos da terra:

Recursos Hídricos

ratos (rói milho, batata, etc.) toupeiras (caçam o cance e minhocas) insectos: - grilos - ralos (rói o cebolo e milho) - cance (bicho amarelo, que rói o milho) cobras (cobra d’água, alicance e víbora) sardões e sardaniscas.

Nascentes: na Gandra mina das Regadas (nas Quintinhas) mina da Fontanheira (vai para o Vergado) mina da Água Velha (acima da Fontanheira) nos matos da Lomba (na Mala Posta) Fontes: na Gandra, do Talhô, da Sernada, do Vergado; Presas: na Gandra, nos Moinhos, nas Regadas (da Cigana), na Aldeia, na Presa, na Sernada, na Campinha e no Vergado. As águas das presas são divididas por vários utilizadores, com dia e hora estabelecidos. 216

Lavadouros: na Gandra no Talho (desaparecido)

antigos

antigosna Campinha no Vergado (reconstruído em 1956)

na Aldeia modernos nos Moinhos

Os maninhos (ou baldios): situavam-se no Vergado (para além do Monte), onde existe uma presa (a que chamavam “os lagos” e que se destinava a pôr de molho o linho. Além das árvores, a que fazemos referência noutro lugar, e plantas silvestres, a natureza apresenta os seguintes pássaros: pardal, lavandisca, melro, pega, cuco, poupa, pisco, carriça, pombo, rola, corvo, mocho, coruja e milhafre, pintassilgo, morcego, cerezinas, pintarroxo, verdelhão, gaio, peto (pica pau).

TOPONÍMIA Lugares de Sanfins (18) (mencionados em livros de registo de assentos) - Mestras (entre 1590 - 1860) - Pena (entre 1620 - 1667) e 1980? - Quinta (ANS) (entre 1623 – 1860) e 1942 (aparece já em 1513) - Regadas (entre 1662 – 1902) e 1980 - Sernada (entre 1780 – 1829) e 1980? - Campinha (entre 1790 – 1897) e 1980 - Sta. Catarina (entre 1800 – 1850) e 1942 - Gandra (entre 1820 – 1905) e 1942 - Monte (entre 1822 – 1891) e 1942 - Moinhos (entre 1826 – 1900) e 1942 - Ribeirinha (entre 1835 – 1865) e 1980 - Relva (entre 1866 – 1885) e 1942 - Carvalhosa (entre 1878 – 1920) e 1942 (aparece já em 1707) - Ribeira (em 1890) e 1980 - Presa (entre 1895 – 1910) e 1942 - Mato (em 1904) e 1980 - Gulfar (aparece já em 1513) - Aldea (aparece em 1854) Em 1937, são mencionados os lugares de: Covada (na Gandra) e Quinta do Passal (na Aldeia), mais Mala Posta e Picalhos.(1) Em 1942, são referidos os lugares de: Aldeia e Gulfar, além de Picalhos da Feira.(2) Porém, o Vergado (que é desabitado) já existia no início deste século. A toponímia de Sanfins revela claramente quer a sua topografia, quer a sua actividade principal: a agricultura.


Aldeia – é sinónimo de lugar e topónimo recente; Campinha (ou Campina) – terreno extenso, plano e sem árvores; Carvalhosa (ou Carvalhal) – mata de carvalhos; Gândara (ou Gandra) – terra areenta e estéril e também inculta e maninha; Gulfar – nome de possessor germânico ou designativo de golfo, no sentido de profundo, por se encontrar sobranceiro ao sítio do Monte; Mato – conjunto de plantas silvestres ou arbustos; Monte – elevação de terreno (com 209 m sobranceiro à freguesia e apenas ultrapassado pela Carvalhosa, cujo povoamento nos parece mais tardio); Moinhos (ou moinho de água, de roda horizontal) – situados no ribeiro principal que percorre a freguesia de NE e E para O; Pena (ou Penha) – fraga ou penhasco, no lugar próximo do Mato; Presa (ou represa) – retenção da água para rega num espaço murado ou abertura larga onde se conduz a água de rega; Regadas – propriedade rústica com água abundante ou bem regada; Relva – erva curta do prado; Ribeira – terra baixa nas margens do ribeiro; Ribeirinha – terra marginal dum pequeno ribeiro; Quintã (ou Quintans) - grande propriedade rústica, constituída por terra de semeadura, com casa no seu espaço; Sernada (vem de Serna) – é uma herdade que se semeia (ou terra de semeadura); (Cernada) senrada; Vergado – lugar onde crescem varas (planta violácea); S. Aleixo (nome dos moinhos e matos) – estará relacionado com a data da sua construção coincidir com o dia 17 de Julho (dia de S. Aleixo); S. Catarina (nome de lugar) – terá a ver com qualquer construção ou ocupação do lugar em 8 de Agosto ou 25 de Novembro.

Apontamentos de História Organização Jurídico-administrativa: Sanfins tinha inicialmente por orago a S. Félix, donde lhe vem o nome. S. Félix foi papa desde 269 a 274. É invocado contra as febres e contra as doenças dos olhos.(3) Pertenceu a freguesia ao arcediago de St.ª Maria no séc. XII; às terras de St.ª Maria, do séc. XIV ao XVI; à Comarca eclesiástica, do séc. XVII até 1907; à Vigararia da Feira, de 1916 a 1970. Ecclesia Santi Felicis de supra Feira – depois, Sanfins de Sub-Feira com o orago de S. Pedro no séc. XII (entre 1174 e 1185)(4) In frigisia de Sancto Felice habet Episcopus Elborensis III J casalia.(5) No rol de igrejas do séc. XIII que se encontra fora do padroado régio da Terra da Santa Maria, temos “Sanctus Felix” (seg. Dr. Avelino Jesus da Costa). Nas Inquirições de 1288, “das freeguezias dos Julgados da Terra de Santa Maria da Feyra, em que se paga e em que se nom paga portagem”, lê-se: “Segundo se mostra per o rrool das sentenças das honrras e devassos que apariço gonçalvez fez per mandado delrrey dom denis em a dicta terra (de Santa Maria da Feyra)… em todas estas freguesias adeante escritas nom se contem em nenhua portagem:”(6) Entre as freguesias, aparece “Sam felizes”. Ecclesia Santi Felicis de supra Feira:(7) De cera meia libra De mortuarijs (mortalhas) XX sólidos (soldo) De Trigo dois quartarios (quarteyros) De aveia dois quartarios De milho dois quartarios Ecclesiam Sancti Felicis ad quadraginta libras.(8) O condado da Feira foi criado em 1515, sendo senhorio das suas terras os condes Pereira Forjazes. Questão havida entre o Mosteiro de Moreira e três cavaleiros acerca do Padroado da Igreja, que aoarece como sendo do Padroado Particular. Censual da Mitra do Porto - 1542: Estava tachada em 40 Libras e de apresentação de fregueses padroeiros. Agora anexa a Santiago de Espargo. Depois 57 reis e meio e de cera e taxação 32 reis que são por todos.

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De trigo 8 buzios; e de medição, 0,5 buzio; e de cevada, 8 buzios; e de medição, 0,5 buzio; e de milho, 78 buzios; e de medição, 0,5 buzio. Buzio - medida de sólidos. Eram dois alqueires e meio, seja 5 alqueires dos mais recentes. No séc. XVI e XVII recebiam foros e rendas. O condado acabou entre 1683 e 1706, período em que faleceu o último conde, sem descendência, pelo que as suas propriedades foram incorporadas na Casa do Infantado, até 1834.(9) No final do séc. XIII, tem lugar um conflito sobre os direitos respeitantes à Igreja de Sanfins. Começa o pleito pela pretensão de alguns fidalgos terem o direito sobre esta Igreja. Em resposta, “o meirinho faz fe de cartas que uio em como a Igreja de Sam Fijns he do Mosteiro de Moreira” segundo consta na carta dada em “Sam Martinho de dragonçilhj” em 15-7-1284. De acordo com a mesma carta, “Maria meendez dera ao Moesteyro de sam Saluador de Moreyra todo o dereyto que auia na Eigreia de Sam ffinz e na villa de Cerzedo”. Em 10-10-1284, o senhor rei (D. Dinis) envia (do Porto) a carta (em latim) ao seu Meirinho de entre Douro e Mondego acerca do Prior e Convento de Moreira, que disseram que a igreja de “santi Ffelicis” é sua sufragânea. De Lisboa, em 11-7-1285, el Rey Dom Deniz envia carta em que manda “que uos ffaçades teer essa Eigreia a esse meu degreão (decreto). E nom soffrades que nenhuum ffaça mal nem fforça em essa Eigreia de Sam Ffijns” e dirigida ao “Meyrinho antre Doyro e Mondego ou Meyrinho em terra de Santa Maria”. Também de Lisboa, em 7-10-1288, Dom Denis dá sentença contra o priol de Moreira sobre a igreia de Sam Fijns a favor dos Cavaleiros Martin steuez e Gil steuez do Auelaal e seus filhos e Affonso madeyra, dos “dereytos que lhes competia, depois de ouvir seu meirinho daaquem Doyro e auudo conselho com homeens boos da sua Corte”.

Passados cerca de ano e meio, o Bispado do Porto, não concordando com a sentença anterior, escreve em 13-4-1290 uma “sentença contra Martim steuez Gil steuez do Aualaal e contra Afonso madeira e outros caualeiros que se deziam erdeiros de sam fijnz, dirigida ao Meyrinho moor em Portugal… que deffendades esse Priol e Conuento em essa possessom e nom sofrades que esses Caualeyros hy poussem nem ende nimigalha filhem” (nem d’aí absolutamente recebam). Passam dois anos e el Rey, contrariando a sua anterior sentença, escreve uma carta no Porto, em 1-7-1292, em que manda e dá poder ao “Coonigo do Porto e Abade de Cedoffeita, na demanda que auia Rodrigo Affonso Ribeyro com o Abade de Sam fijns. E o dicto Rodrigaffonso nom ha dhir a essa Eigreia poussar nem comer enquanto a demanda andar, senom como vos mandardes. E eu dey e douuos meu poder em esta demanda”. Continuando Dom Denis no Porto, quase dois meses depois, dá Carta de sentença em 23-8-1292, dizendo “que Rodrigo Afonso nom he erdeyro… e achou que o dicto Rodrigaffonso e ssa molher nom eram padroens (padroeiros) nem herdeyros, nem naturaes dessa Eigreia de sam ffijns nem stauam en possessom de poussar hy nem de comer nem de lhis ffazerem hy nenhum serviço.” Dado que os Cavaleiros, participantes na contenda desde o início do processo, insistissem em usar dos seus pretensos direitos, o “Maestre thesoureyro do Porto, na qualidade de Ouuvidor em preito” (pleito), dirigiu a dom Denis, em 6-111293, uma sentença contra os do “Aualaal e contra os Madeyras de nom comerem na Igreia de sam fijz”. No dia seguinte, em apoio desta posição, o Meirinho dá sentença contra os que se chamam erdeiros de san fijs, para “que uos nom poussedes nem comhades nem demandedes rrem (nada) na dicta Eigreia”. O apoio a esta posição vem a ser dado por elrey em Coimbra, em 3-12-1293, em que manda “se guarde a sentença dada pelo Iuyz ecclesiastico, dirigida ao Meyrinho moor aaquem Doyro ou aaquel que andar por Meyrinho na Iulgado da Ffeyra de terra de santa Maria”.


Em 1298, se faz o Contrato pelo qual o Convento de Moreira dos Cruzios largou as Igrejas de São Fellis da terra da Feyra e St. ª Maria da Retorta na Maya ao Bispo e Cabido “por lhe darem semillante priuillegio com outras Igrejas” do Padroado do dito Convento. Haviam passado nove anos sobre a última sentença real, quando o conflito é reaberto pelos herdeiros de um dos Cavaleiros já falecido. Em consequência, Dom Denis em Lisboa, dá sentença em 26-9-1302, sobre a comedoria na igreja de sam fijns por parte do bispo cuja já era para “que daduy adeante nom poussem nem comham na dicta Eigreia…, Guyomar meendez molher que ffoy daffonso martinz madeyra e seu ffilho Ioham Madeyra e que pague dez e mais Cinquenta libras de pea (pena).(10) Em 29-3-1457, D. Afonso V sentencia em Santarém contra os moradores das terras da Feira, Gaia e couto de Pedroso, obrigando-os a pagarem os votos e fundamentandose na sentença que antes fora proferida por D. João I, em que determinava a obrigação de os juízes, vereadores e procuradores dos homens-bons a guardarem os privilégios e liberdades do Bispo, priores e cleresia.(11) Foral dado à Villa da Feira pelo Senhor Rey Dom Manoel de gloriosa memoria no ano de MDXIII. (cópia – 1514).(12) Cap. 2 fl. 4 V.8 Eyradegas do pão e vinho da Feira. Cap. 3 fl. 7 Pena de sangue e d’arma. Cap. 6 fl. 9 Gado do vento é direito real. Cap. 7 fl. 9 A dízima das sentenças “se não levará mais em toda a dita terra”. Cap. 8 fl. 10 Não haverá montados dos gados, que aí vierem pagar (terreno com árvores para pastagem). Cap. 9 fl. 10 Deixar livremente os maninhos que já eram tomados e não mandar mais tomar outros. Cap. 10 fl. 16 Em todas as aldeias e lugares das freguesias se háde pagar lutuosas, que a pessoa por cuja morte se houver

de pagar lutuosa, há-de ser herdeiro na dita terra de sua propriedade. Cap. 76 fl. 99 Pena do descamisado. Outros capítulos do foral das terras da Feira (fls. 95, 98 e 99) Couzas de q se não paga Portagem. do pão, cal, sal, vinho e vinagre; da fruta verde e hortaliça; do gado, bestas, escravos e panos finos; da courama, calçadura, azeite, mel e semelhantes (cera, sebo, queijos secos, manteiga salgada, pez, resina, breu, sabão e alcatrão). Portagem (a pagar) da pellitaria (peles de coelho ou cordeiros) e forros; da marçaria, especiaria, boticarias e tinturarias e semelhantes; do ferro grosso e obras dele e dos metais; da fruta verde e seca e dos legumes (castanhas e nozes verdes e secas, e d’ameixas passadas, amendoas, pinhões por britar, avelãs, boletas, mostarda, lentilhas, cebolas secas e alhos); do sumagre e da casca; da telha, tijolo e obra de barro; da obra e cousas de pão; da palma ou junco, esparto e semelhantes. No foral da Vila da Feira é feita menção de Sanfins: Cap. 73 (do Foral da Feira) São Fins Paga-se pela Igreja quatro reais. João Delgado nove reaes: dois cazaes de Nogueira de Cravo do Conde de Marialva oiro reaes; a quinta de Gulfar quatro reaes; o cazal da Cal quatro reaes; o cazal de Socarreira quatro reaes; o cazal da quinta outros quatro reaes; o cazal d’Alvaro Annes d’Arrifana quatro reaes. Total: 7 casais e uma quinta. O topónimo “Socarreira” terá origem em um dos vocábulos de significado diferente: “socarron” astucioso, velhaco ou enganador e “socarrar” chamuscar. Inclinamos a nossa escolha para o segundo vocábulo, e poderá ter também o significado de churrasqueira. O lugar seria no Mato (actual – Carreira). Tombo (de Manrique): Por António da Rocha Manrique, Desembargador de sua

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Magestade, Juiz da Fazenda e Tombo Real do Estado e Casa da Feira.(13) Conservação das fazendas e terras do Condado e Casa da Feira (resolução de S. Magde de 12-10-1701 e 20-5 e 14-111702 e despachos de 11-12-1702 e 13-2-1703). Freguesia de Sam Fins da Feira Casal de Alvariares de Arrifana; Casal da quinta de Gonçalo Bras, de que é cabeça Domingos de Azevedo e sua mulher Mariana Alves; Casal de João Delgado; Casal da laranjeira, que possui Paschoal Homem e sua mulher Andreza Marques; Quinta do Casal de Diogo Gonçalves, em que vivem Manuel de Rezende, João Marques e Manuel Marques, e suas mulheres. Quinta de Gulfar de que é senhorio Samuel Calmer (?), morador na cidade do Porto e nela está por caseiro e procurador do sobredito, Thome Pinto. Quinta dos cazais de Nogueira do Cravo de que são possuidores João Fernandes e sua mulher Paschoa Fernandes e Thome Pinto e sua mulher Maria Fernandes, João Leite e sua mulher Maria e Domingos Fernandes das Regas e sua mulher Francisca Gomes. Casal da Quinta da Carvalhosa em que vive Gonçalo Manuel e sua mulher Maria Fernandes de que é possuidor João Henriques e sua mulher Geronima Fernandes. No total existiam: 4 quintas, três das quais com oito casais; mais 4 casais. Mais refere quanto a Sanfins: Presente o abade de Espargo e Sanfins. (…) Aos 9/1/1707, pergunta se reconhecia a Casa da Feira com o foro de quatro reais da dita Igreja de São Fins em cada um ano e por ela foi respondido que suposto o foral deste Condado faria menção dos ditos quatro reais que nunca os pagava, mas que visto o foral assim o dizer reconhecia a Casa da Feira com o dito foro de quatro reais em cada ano, e se obrigava daqui em diante a pagá-lo com protesto de lhe não prejudicar este reconhecimento em nenhum tempo, achando a sua Igreja algum título que possa encontrar o dito foral e se valer do direito da descução quando o tenha previsto. Falta saber desde quando estava a Igreja em falta no pagamento do foro estabelecido pelo Cap. 73 do Foral da Feira, dado em 1513 por D. Manuel I.

Confraria do Santíssimo – Estatutos feitos em 7/4/1736 e aprovados em 5/8/1736.(14) Em 1788, S. Pedro Fins da Feira tinha um cura à frente da paróquia, apresentado das religiosas de S. Pedro do Porto e sob o seu padroado que só tinha o pé de altar.(15) No séc. XVIII, o povo estava sujeito ao pagamento de certos tributos ao pároco, como sejam: - pagamento anual de cereal pelo S. Miguel; - dízimo sobre todos os produtos da terra; - premícias sobre alguns dos produtos; Havia as ofertas eventuais aos párocos, por altura dos batizados, recebimentos (casamentos) e óbitos. No que respeita às Memórias Paroquiais de 1758, informamos que, tendo sido solicitada a sua reprodução ao Arquivo N. da Torre do Tombo, fomos informados de que não existem as informações referentes a Sanfins, apesar de terem servido a Pinho Leal, em 1874. No lugar do Vergado tem um “penedo” onde teriam sido feitas manobras militares, por alturas da guerra de 1914-18. Alguns homens de Sanfins estiveram em França, durante a 2.ª Grande Guerra de 1939-45: Júlio José Moreira (n.º 1886) foi Sargento e faleceu na Campinha António Pinto de Sá (das Regadas). Evolução demográfica (Povoamento) Em 1757, S. Fins possuía 106 fogos(16) Em 1788, possuía 87 fogos e 335 almas.(17) A Igreja foi reconstruída em 1832 com um cruzeiro no terreno fronteiro, com a data de 1707 no pedestal.(18) Em 1874, possuía S. Fins 120 fogos. “Quase toda a gente chama a esta freguesia – S. Fins da Feira”.(19) Sanfins ou Sub-Feira em 1874 e 1885, freguesia de S. Pedro, possuía, em 1885, 208 varões e 252 fêmeas.(20) Sanfins, freguesia de S. Pedro, com 463 habitantes e 105 fogos, em 1902.(21) Pelo recenseamento de 12/12/1942, Sanfins tem os seguintes lugares: (828 habitantes). Aldeia, Carvalhosa, Gândara, Gulfar, Moinhos, Monte, Picalhos, Presa, Quinta, Relva e Santa Catarina.(22)


Evolução demográfica Ano

Fogos

Habit.

Propriedades

1513

c. 20

c. 60

1 Quinta e 07 casais

1707

c. 30

c. 100

4

1757

106

c. 350

1788

87

335

1854

c. 110

c. 440

104 Proprietários com 356

1874

120

c. 480

prédios rústicos

1885

c. 105

460

1902

105

463

1942

c. 400

828

“ 12

Quinta – grande propriedade rústica com casa de habitação. Casal – conjunto de pequenas propriedades rústicas, pertencentes a uma família. Entrada e saída de emigrantes A população de Sanfins cruzou-se durante o séc. XIX com pessoas vindas de outras localidades, como sejam: (eram homens e mulheres). Em primeiro lugar, os mais vizinhos, de Escapães e S. João de Ver; seguem-se os de: Espargo, Fornos, Pigeiros, Vila da Feira, Arrifana, Caldas de S. Jorge e Cesar. Durante a permanência do Batalhão de Caçadores n.º 11 na Vila da Feira, que havia sido criado em 1811 e extinto em 1829, alguns dos seus soldados fixaram-se na Feira e pelo menos um dos seus descendentes veio a casar em Sanfins, dando origem à família dos Moreiras, distintos dos da Feira, por terem origem em S. Mamede do Coronado – Santo Tirso. Por volta de 1875, eram já muitos os emigrados, principalmente para o Brasil e em especial para o Rio de Janeiro. Esta emigração resulta em parte da pulverização da propriedade e, como consequência, aumentam as vendas de terras aos “brasileiros” quando regressavam com bom dinheiro na bolsa.

Entretanto, alguns homens de Sanfins juntaram-se no séc. XIX à corrente emigratória que se transferia para o Brasil, em que se incorporavam: lavradores, agricultores e alfaiates. Alguns foram temporariamente, porém outros faleceram por lá, fixando as suas raízes em terras do Brasil, principalmente no Rio. De Escapães veio a família Ferreira de Lima, que deu origem à “dinastia” de alfaiates, os quais transferiram a sua actividade para o Brasil – Rio de Janeiro – onde abriram alfaiatarias. Durante o séc. XIX, era prática corrente a colocação de recém-nascidos à porta de determinadas pessoas, que tinham condições para os criar ou eram os seus progenitores. Em 1886, foi exposto um à entrada da casa de Avelino José Moreira (Agricultor), na Carvalhosa, com um bilhete que dizia: “exposto à entrada da sua casa, por não ter leite”, o que se compreende em parte, dado possuir um filho de dois meses, em estado de ser amamentado. Outras crianças eram postas, acompanhadas de bilhetes com o nome que escolheram para a criança ou acompanhadas de roupas ou objectos. Durante o séc. XVIII e XIX, era frequente o registo de crianças com “pai incógnito”. A propriedade agrícola (sector primário) As condições naturais que influenciam o habitat rural são: a) relevo do solo b) constituição da sua superfície c) os recursos de água d) a meteorologia Para Sanfins, concluímos o seguinte: a) a concentração da população verifica-se nas zonas mais altas, apresentando-se dispersa nas zonas de terrenos mais adequados à agricultura. b) os lugares mais altos apresentam o solo rochoso (no Monte, Carvalhosa e Mato) ou areento (na Gandra). c) a existência de nascentes (ou minas) e as fontes e lavadouros que abastecem (Sernada, Campinha, Carvalhosa, Vergado e Gandra) proporcionam a reunião das pessoas e a rega assim como a retenção da água em presas (na Presa e no Vergado); a existência de ribeiros contribui para a rega ou para a moenga de cereais, através dos moinhos (Moinhos, Carvalhosa, St.º Aleixo e Ribeira).

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d) a pluviosidade abundante no Outono e Inverno e o clima temperado são propícios às culturas; os terrenos de cultivo do lado norte suportam mais vento, enquanto os do lado sul suportam mais sombra, devido ao terreno alterado e mata que o cobre. A agricultura concentra-se no terço mais baixo da freguesia, no lado sudoeste. Evolução da agricultura rural De espaço a espaço, “aparece o casal reguengo ou a aldeia (herdade ou casal) do senhorio eclesiástico ou secular, rodeado de leiras cultivadas”, como nos diz Alexandre Herculano.

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vimes, vides de vinho verde de enforcado, hortaliças, legumes e frutas (pêras e figos) e azeite. Junto dos ribeiros existiam algumas árvores, como sejam: carvalhos, salgueiros, amieiros, choupos e castanheiros. Possuía também oliveiras, sobreiros, loureiros, pinheiro manso e bravo. Possui agora, mais: mimosas e austrálias. A terra de lavradio, no séc. XIX, estava dividida em campos, leiras e tapadas (e todas tinham o seu nome) ou então junto das casas, em cortinhas e quintais (propriedades mais pequenas). Nos terrenos impróprios para a agricultura, existiam matos, devesas, pinhal e soutos, constituídas de plantas silvestres, castanho, loureiro, carvalhos e outras árvores e pinhal (bravo e manso).

Cada lote compreendia terra de lavoura e participação nos maninhos, utilizados como pastagem ou matos para estrume. Como só os terrenos cultivados entravam na partilha, havia a vantagem do arroteamento dos incultos. Para obstar ao desaparecimento dos baldios, D. Manuel I determina que se não rompessem mais maninhos, pois provocava a falta de matos e pastagens. Com a entrada do liberalismo, que terminou com o vínculo e a missão de reunir os foros, aumentou a divisão da propriedade, dado o fraco poder económico das populações. As leis de desamortização da terra e o direito sucessório do Código Civil de 1868, bem como a lei de extinção dos morgados, influíram na extensão das propriedades. O sistema de partilhas em quotas iguais pelos filhos originou a divisão das propriedades em parcelas menores. O amor à terra e a pobreza determinam a fixação da propriedade rural e a manutenção do tradicionalismo ou a emigração. No século XVIII, Sanfins tinha as seguintes culturas: milho grosso ou grande, ou milhão (a mais abundante), centeio, cevada, trigo, milhão miúdo, painço, feijão, linho,

Nota: As fontes bibliográficas referidas no texto vêm citadas no final do artigo a publicar na próximo número.


O Novo Inquisidor Joaquim Máximo* O comportamento que Kenneth Starr assumiu, em 1998, em relação ao Presidente dos Estados Unidos, William Clinton, foi condenado por muita gente, não só nesse país, mas também em muitos outros países do mundo. É uma certeza indiscutível que fez tudo para retirar o presidente no seu lugar, utilizando todos os meios ao seu alcance, muitos deles mostrando a enorme hipocrisia moral que lhe é característica. Mas os motivos porque o fez podem ser muitos: ódio, vingança, inveja, ânsia do poder, ou ainda, entre muitos outros, o facto de possuir a mesma mentalidade dos inquisidores do Santo Ofício dos anos quinhentos, seiscentos e setecentos. Foi, com razão ou sem razão, que me inclinei para o espírito dos inquisidores do Santo ofício, como sendo a causa essencial do comportamento de Kenneth Starr. Aliás o seu pai, era pastor do ramo mais intolerante do Protestantismo, que nalguns estados do sul dos U.S.A não tolera o ensino do Evolucionismo, e aconselha vivamente que se ensine apenas o Criacionismo seguindo à letra o Antigo Testamento. E este comportamento de Kenneth Starr afectou de tal maneira a minha sensibilidade, que não resisti em enviar à revista Time, no fim do mês de Outubro de 1998, a seguinte carta:

«Dear Sirs Some of the most important news reported in the issues of your magazine Time of last August and September inspired me to rite the following bit of poetry: (segue-se o soneto). Without any more comments, sincerely yours Joaquim Máximo Vila Nova de Gaia, PORTUGAL» Escrevi esta carta com a intenção dela ser publicada na secção «letters» (cartas aos editores) da revista TIME. Até agora não o foi, ou porque não tivesse sido bem encaminhada, ou porque a revista tem tendências republicanas, ou ainda porque, e esta razão será a mais plausível, não terá suficiente categoria para isso.

O soneto que constitui a essência da carta que escrevi à TIME constitui a versão inglesa, com certeza com alguns erros linguísticos, de um outro que me ocorreu em 23 de Setembro deste ano e que transcrevo:

* Joaquim Máximo de Melo e Albuquerque de Moura Relvas, nasceu em Coimbra e reside em Vila Nova de Gaia. Tem o curso de Engenharia Electrónica da Universidade do Porto. Exerceu a actividade profissional na Administração Geral dos CTT e obteve a especialidade de Instalações Exteriores de Transmissão; União Eléctrica Portuguesa, integrada depois na EDP; Professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, como Professor Associado; Colégio de Gaia onde leccionou disciplinas relacionadas com a Electrónica Digital. Faz parte da Direcção da revista Politécnica. É membro da Ordem dos Engenheiros da “American Association for the Advancement of Science”, da “New Iork Academy of Sciences” e da “Planetary Society”.

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The New Inquisitor

How hideous was the Spanish Inquisition! Disturbing privative people lives, Arresting innocent men and their wives, All this in the name of an Holly Mission! People in dungeons without any sake Tormented to lie to confess false crimes And regarded guilty. And then, sometimes, Sentenced to death and perish at the stake,

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I thought all this was ended long ago, But an evil appeared, as we all know, Depriving a Man of his own privateness, Forcing him to lie and be guilty and ajar. I was told that the evil is a certain mister Starr With his head filled with porno wilderness!

O Novo Inquisidor

Que odiosa foi a inquisição! Devassidão da privacidade, Prisões despóticas com maldade E inocentes metidos na prisão. Conhecida era a sua maneira De torturar os presos p’ra os forçar A mentir, p’ra os poder culpar E queimá-los vivos na fogueira. Julguei isto há muito terminado, Mas eis que aparece um malvado Que a privacidade devassa E obriga a mentir p’ra condenar. Trata-se de um tal Kenneth Starr, Em que o porno enche a carcassa!


“ Por quem esperas, ó Humanidade? Acorda. O planeta espera por ti !!! “ (Madalena Rubalinho in “O Método da Animação” de Jacinto Jardim) 22 de Abril – Dia Mundial da Terra Judite Lopes* É necessário inventar e construir um futuro para o nosso planeta. Só uma mudança de hábitos ou condutas quotidianas, no que concerne à preservação do equilíbrio ambiental, poderá salvar a Terra do flagelo que a assola. “A Natureza é o nosso primeiro mestre“, como dizia Rousseau. Por isso, é urgente aprender a respeitá-la e contribuir para desenvolver a responsabilidade ecológica dos habitantes da Terra. Segundo Miguel Torga, “corremos o mundo fantasmagoricamente, a deixar nele pegadas sonâmbulas”. Por vezes, quase sem darmos conta, vamos destruindo, paulatinamente, um legado que nos alimenta mas que poderá deixar de existir para possíveis vindouros, se o consumismo exagerado e a falta de sensibilidade para tais problemáticas não se alterar. * Licenciada em Animação Sociocultural. Autora do livro de poemas Vislumbres.

O Homem vai-se transformando em vítima da sua própria criação e perde-se num mundo atulhado de armas atómicas, em arsenais secretos. A intoxicação química, a contaminação dos mares e rios, o esgotamento das matérias-primas… A poluição total do meio humano torna-se, por vezes, um inferno! A evolução dos tempos e as constantes mudanças sociais obrigam a que se levem a cabo autênticas atrocidades naturais, deixando o planeta mais enfraquecido e repleto de maleitas que, se não se evitarem, se tornarão irreparáveis num futuro próximo. As ameaças e agressões globais ao meio ambiente são uma constante. Cada vez mais se torna urgente educar o Homem para a preservação do seu próprio “abrigo”. Deparamo-nos com um planeta que apresenta bastantes problemas ambientais e com uma previsão bastante desanimadora do futuro, como diz Robston. Não é possível negar que a nossa civilização atravessa uma crise ambiental global. Presentemente, assistimos a uma situação de nítido desequilíbrio de que resultam questões ambientais como o aumento do buraco na camada de ozono, o efeito de estufa, as chuvas ácidas, o esgotamento do solo, a contaminação das águas e o esgotamento da água potável. As pessoas querem sintonizar o ambiente conforme o seu desejo. A crise ecológica resulta, em grande parte, da revolução industrial e tecnológica descontrolada que se faz sentir na sociedade ocidental. A explosão demográfica, os

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problemas de contaminação, o esgotamento dos recursos não renováveis, as alterações climatéricas, os resíduos sólidos urbanos e industriais e a desflorestação que acarreta a erosão dos solos fizeram despertar na humanidade uma tomada de consciência ecológica e ambiental. “ A casa em que vivemos está corroída nos seus alicerces” (Bosmans, 1988). É tempo de pararmos para pensar e convencermonos de que podemos ser um motor fundamental para a salvação da Terra. Assim sendo, temos de a respeitar e tornarmo-nos por ela responsáveis perante as gerações que nos seguirão. Um pequeno gesto faz a diferença e cada um de nós pode desempenhar um papel preponderante na transmutação de tão dramática realidade. A Natureza é o resultado da nossa obra e está nas nossas mãos, à mercê da nossa vontade.

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Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo* A – Postais ilustrados

59 – Pensão Central - Caldas de S. Jorge. Proprietário e gerente, Celestino da Silva Valinho

* Caminheiro por feiras, lojas e mercados.

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60 - Portugal - Caldas de S. Jorge Fachada principal do Balneário Edição da Pensão Parque Cliché Abílio Gomes

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60 A - Reverso do mesmo postal. Datado de 15-08-1958 das Caldas de S. Jorge. Obliteração dos CTT Vila da Feira - 16-08-58. Circulação para Lisboa. Selo de 50 centavos da série Selo de Autoridade do Rei D. Dinis. “É das Caldas de S. Jorge que lhe escrevo, esperando melhorar dos meus achaques. Porque não vem almoçar um dia connosco? Teríamos grande prazer.


61 - Fachada principal do Balneário.

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61 A - Reverso do mesmo postal. 12. Vila da Feira Caldas de S. Jorge (Balneários) Edição Amga - Vila da Feira Feito em Portugal Reprodução e execução Postalfoto - Lisboa


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Clube Feirense Associação Cultural


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Fundação Comendador Joaquim de Sá Couto


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