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Ficha Técnica Título: Villa da Feira - Terra de Santa Maria 4

Propriedade: LAF - Liga dos Amigos da Feira ® Director: Celestino Portela Director Adjunto: Fernando Sampaio Maia Colectivo Editorial - Fundadores LAF: Alberto Rodrigues Camboa; António Luís Carneiro; Carlos Gomes Maia; Celestino Augusto Portela; Joaquim Carneiro Processamento de Imagem e Design: Joaquim Carneiro Coordenação Científica: J. M. Costa e Silva Supervisão Editorial e Gráfica: Anthero Monteiro Colaboração do TOC, Belmiro da Silva Resende Periodicidade: Quadrimestral Assinatura anual: 30 euros Assinatura auxiliar: 50 euros Este número: 15 euros Pagamentos por: Transferência bancária NIB 007900001127152910124

Publicidade: Telef.: 965 310 162 | 256 379 604 Fax: 256 379 607 Tiragem: 400 exemplares Edição: N.º 35 - Outubro de 2013 Pré-impressão, Impressão e Acabamento: Empresa Gráfica Feirense, S. A. Apartado 4 - 4524-909 Santa Maria da Feira Sede Social: Edifício Clube Feirense - Associação Cultural Vila Boa - 4520-283 Santa Maria da Feira Email: villadafeira@gmail.com Email da direcção: carla.gab.dr.portela@hotmail.com http://www.villadafeira.blogspot.pt/ Depósito Legal: 180748/02 ISSN: 1645-4480 Reg. ICS: 124038 Depositária: Livraria Vício das Letras Rua Dr. José Correia e Sá, 59 4520-208 Santa Maria da Feira

Cheque à ordem de LAF - Liga dos Amigos da Feira Capa: Pe. Domingos Azevedo Moreira, escultura de António

Apoios: Câmara Municipal Santa Maria da Feira

Augusto Mota. Foto de J. M. Costa e Silva

Irmãos Cavaco, S.A.

Fotografias: Óscar Maia, J. M. Costa e Silva, Filipe Pinto,

Termas das Caldas de S. Jorge

Biblioteca Municipal, Gabinete da Comunicação Social, Arquivos

Sociedade de Turismo de Santa Maria da Feira

particulares, LAF e Fotos Web por António Madureira.

Patrícios, S.A.

Redacção e Administração: Apartado 230 • 4524-909 Feira

Central Lobão.


PÓRTICO REVISTA VILLA DA FEIRA

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Emidio Sousa*

Desde junho de 2002 – já lá vão mais de 11 anos – que a revista Villa da Feira nos proporciona o prazer de folhear páginas e páginas de História, dando à estampa documentos, artigos e fotografias de valor inestimável, sobretudo para as gerações futuras. A nossa história, as nossas memórias, aquilo que somos e aquilo que fomos é um importante legado que importa preservar e que a LAF tão bem tem sabido interpretar e concretizar. Tenho dito várias vezes que, pela relevância dos seus conteúdos, esta revista deveria fazer parte da biblioteca pessoal de todos os feirenses. No entanto, o facto de se encontrar disponível nas bibliotecas públicas e associações locais é, por si só, um garante de acesso a esta vasta e completa coletânea. Com grande honra e satisfação, escrevo estas palavras para uma edição que destaca dois momentos de grande relevo para o Município: a homenagem ao padre Domingos Moreira, considerado, com grande justiça, uma figura maior da cultura *Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira

portuguesa; e as comemorações dos 60 anos da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, no Rio de Janeiro – prestigiada instituição que mantém vivos os laços afetivos entre Portugal e Brasil, através das comunidades emigrantes e luso-descendentes. Mas há muito mais para ler e descobrir neste número. Os colaboradores assíduos desta revista continuam a surpreender-nos em cada edição, ao partilharem connosco as suas “descobertas”, resultantes das suas pesquisas e trabalhos de investigação. A Liga dos Amigos da Feira (LAF) e o concelho de Santa Maria da Feira têm o privilégio de poder contar com o contributo de verdadeiros apaixonados pela História local e nacional – facto que não me canso de elogiar.

Muito obrigado a todos!


SUMÁRIO

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Pórtico Emídio Sousa Mensagem Executivo Laf Poesia H. Veiga de Macedo Homenagem ao Padre Domingos Moreira Pigeiros 27 de Julho de 2013 Homilia Dom João Lavrador Discurso Presidente da Junta de Freguesia de Pigeiros Homenagem Padre Domingos Azevedo Moreira Feliciano Martins Pereira Justiça Fernando Pessoa Justiça Um disperso de Fernando Pessoa, praticamente desconhecido Paulo Samuel Poesia Francisco Pinho Caldas de S. Jorge - Parque Manuel Leite Poesia Noé Oliveira Bernardes Nos 125 Anos do Nascimento de Fernando Pessoa Paulo Samuel 125.º Aniversário de Fernando Pessoa Maria do Carmo Vieira Apresentação do Dr. Alfredo de Oliveira Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira na Sessão Solene Comemorativa do 60º Aniversário da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, António Gomes da Costa Sessão Solene do 60.º Aniversário Ernesto Pires de Boaventura Poesia Ilda Maria Sessão Comemorativa do 60.º Aniversário da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria - Rio de Janeiro, Brasil Alfredo de Oliveira Henriques Poesia Mário Anacleto Júlio César Alves Moreira 1899 – 1978 Director e Fundador de “A Tradição” Carlos Alves Moreira Post Scripum Carlos Alves Moreira Instrução e Educação no Concelho de Ovar: no Centenário da Escola Oliveira Lopes Eugénio dos Santos Apêndice de Outros Textos Directa ou Indirectamente Relacionados com os dos Livros de Visitações Domingos Azevedo Moreira Poesia Anthero Monteiro A Torre da Cidade Helder Pacheco Helder Pacheco, Porto: A Torre da Cidade nos 250 Anos da Torre dos Clérigos, Porto Lançamento - Palácio da Bolsa Francisco Ribeiro da Silva Luís Góes, como eu o vi Serafim Guimarães Poesia Alfredo Luz Entre – Guerras Filomena Pinheiro A Bolacha Jorge Augusto Pais de Amaral No Período do 25 de Abril de 1974 A Formação de um Grupo de Jovens em Arrifana Augusto Telmo O Emigrante Açoriano, no Romance «O Continente», de Erico Veríssimo Maria da Conceição Vilhena Agradecimento António Rebordão Navarro Os Nomes “Panchorra” e “Pachorra” Frei Acaribe A Luz Eléctrica em Ovar, Reportagem da Ilustração Portuguesa Manuel Valente Bernardo Poesia António Madureira Postais do Concelho da Feira Ceomar Tranquilo

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Óleo sobre tela de Joaquim Pereira

MENSAGEM No próximo dia 29 de Novembro ocorre o trigésimo aniversário da inauguração do Monumento a Fernando Pessoa por sua Excelência o Senhor Presidente da Republica General António Ramalho Eanes e que contou com a participação de Miguel Torga que registou o facto no Diário, vol. XIV. Lembrando o dia 30 de Novembro de 1983, a Escola Preparatória EB 2.3 de Santa Maria da Feira, que hoje tem como patrono Fernando Pessoa, Comissão de Vigilância do Castelo da Feira e a Liga dos Amigos da Feira vão revisitar a efeméride com cerimónias que irão decorrer no Monumento, na Escola Preparatória de Fernando Pessoa e no Castelo. Está a ser ultimado o programa que prevê a intervenção de Professores e alunos da Escola, estudos sobre o monumento, da autoria do escultor Aureliano Lima, intervenções sobre Fernando Pessoa e um jantar no Castelo com momentos poéticos e musicais. Oportunamente daremos conhecimento aos nossos assinantes e à Comunicação Social do programa definitivo com o apelo à participação nos eventos para que a jornada seja de Honra e Prestígio da Terra de Santa Maria. Neste número, por gentileza do Senhor Doutor Paulo Samuel, publicamos um texto de Fernando Pessoa, inteiramente desconhecido dos investigadores pessoanos, JUSTIÇA, ao redor dos mutilados da Guerra de 1914/1918, que é tema de reflexão para a situação dos mutilados da Guerra Colonial.

Liga dos Amigos da Feira

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CAMILO H. Veiga de Macedo*

- Eu esculpi a vida, os seus momentos, Em letras de oiro, claras como a luz, E nelas foi que, dia a dia, pus Os sofrimentos meus, os meus lamentos. Da Língua Portuguesa, os fundamentos Aprofundei, e nela ergui, compus Aquela imensa obra que traduz Quanto ela me inundou os sentimentos. Quando a meus olhos veio a escuridão, Passei a ver em fogo a ingratidão Que mais cruel tornou a minha dor. Já me perdera na paixão, no amor, Mas ao partir da vida com fragor, Deixei-vos, vivo, o “Amor de Salvação”.

Lisboa, 28 de Novembro 1984


HOMENAGEM AO PADRE DOMINGOS MOREIRA Pigeiros 27 de Julho de 2013

Homilia

Dom João Lavrador*

Reunimo-nos em homenagem e acção de graças ao Padre Domingos Moreira que paroquiou Pigeiros durante várias décadas e que marcou as suas gentes com a sua fé e a sua cultura. Ao referirmo-nos à pessoa humana não nos é possível separar qualquer das suas dimensões sem atingir o seu todo. Assim é também com o Padre Domingos; o seu ser humano, o ser sacerdote, a sua inteligência e cultura, a sua simplicidade, pobreza e desprendimento, fazem nele um todo harmónico que se revela para nós como uma riqueza pessoal que nos engrandece e se manifesta como modelo para as presentes gerações. Permitam-me que ressalte, em primeiro lugar a sua condição de sacerdote. Inserido no meio do seu povo, a seu modo, escrupuloso em oferecer sempre a mais genuína doutrina e em nada se afastar dos preceitos da Igreja. Mesmo naquilo que poderíamos reconhecer como falta de actualização, não era para ele mais que a fidelidade aos conteúdos da fé cristã e às disposições para que melhor se vivesse o mistério de Deus. *Bispo Auxiliar do Porto.

Também neste campo dedicou muito da sua investigação para melhor compreender e transmitir a riqueza da vida de Deus que se quer comunicar aos homens. Homem de invulgar inteligência e de postura simples e humilde. Por isso, homem culto. Autodidacta como escola de aprendizagem, mas profundamente interessado na investigação de diversos campos do saber, nomeadamente no domínio da história, da toponímia, da origem e desenvolvimento de muitas das povoações desta região norte e mesmo da diocese do Porto, minucioso no estudo de temas que se colocavam à sua vida pastoral e procurando situar a verdade nas diversas opiniões quando as problemáticas assim o exigiam. Daí a sua riquíssima biblioteca que adquiriu ao longo do tempo e que espelha os diversos temas do seu interesse e a vastíssima cultura que possuía. A sociedade ficou mais rica com as numerosas publicações da sua autoria. Desde jornais, a revistas, nacionais e estrangeiras, colaboração em artigos científicos e de divulgação, monografias acerca de muitíssimas povoações e temas, são o retrato da invulgar inteligência, paixão pela investigação e rigor na divulgação. Propositadamente liguei a sua inteligência à sua maneira simples e humilde de viver e dizia que era um homem culto. O Padre Domingos pertence ao número de pessoas que se deixam cativar de tal maneira pela aquisição de conhecimentos e tornam-se permeáveis às suas pesquisas intelectuais que se transformam em pessoas orientadas pela sabedoria e tudo

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na sua vida está ao serviço do saber e do sabor de todas as coisas. Bem se lhe podem aplicar as palavras do Papa Francisco que dizem: «Jesus envia os seus sem «bolsa, nem alforge, nem sandálias» (Lc 10, 4). A difusão do Evangelho não é assegurada pelo número das pessoas, nem pelo prestígio da instituição, nem ainda pela quantidade de recursos disponíveis. O que conta é estar permeados pelo amor de Cristo, deixar-se conduzir pelo Espírito Santo e enxertar a própria existência na árvore da vida, que é a Cruz do Senhor» (homilia de 7 de Julho de 2013). No contacto com o padre Domingos, vinham-me à memória muitos outros com quem convivi e que marcaram o seu tempo com caracteristicas pessoais muito parecidas. Por isso, podemos afirmar que pertence a uma época em que as dificuldades de acesso ao ensino não impediram de afincadamente se dedicarem à investigação e colocarem todos os seus meios para alcançarem uma cultura que marcou a sua época e que ficou como notável legado para o futuro. Atendendo à Palavra de Deus que nos foi proclamada, deparamo-nos com Moisés que proclama perante o povo as palavras do Senhor e todas as suas leis. Diz o texto do livro do Êxodo que o povo se dispôs a cumprir tudo quanto o Senhor tinha dito. Moisés sela esta relação com um sacrifício que é figura do verdadeiro sacrifício de Jesus Cristo com o qual temos acesso a Deus e à vida nova do amor. No Evangelho confrontamo-nos com a parábola segundo a qual Jesus nos mostra o que é o reino de Deus que por vontade divina é comparado a um semeador que semeou boa semente no seu campo mas que depois veio o inimigo e misturou joio que só será separado no final dos tempos. É a realidade concreta com que nos deparamos no dia a dia e que confronta o desejo intimo de cada um a possuir a vida na beleza, no amor e na verdade que ela contém mas também a reconhecer que muito de mal se mistura neste ideal tão querido pelo ser humano. Fazer tudo o que Deus nos manda e saber viver os valores do reino de Deus mesmo no meio de uma sociedade e numa cultura que manifestam tantos sinais de contradição e de atropelo à dignidade da pessoa, eis a exigência que se coloca a cada um de nós e a cada comunidade. Bem podemos relacionar a vida do senhor Padre Domingos, a busca da verdade, a sua vida simples e humilde com estas exigências bíblicas. Nele verificamos uma exigência de querer cumprir tudo o que Deus ordena e na sua vida

sacerdotal identificou-se com Jesus Cristo na oferta de si mesmo. Já não se limita ao que Moisés realizou ao oferecer um sacrifício como expressão da aliança de Deus com o seu Povo; identificou-se a Jesus Cristo que se ofereceu a si mesmo para que todos tenham vida e a tenham em abundância. Como dizíamos, estamos hoje a homenagear um sacerdote que, entre todos os seus atributos, o que mais sobressai é a entrega de si mesmo ao seu povo, procurando servir melhor valorizando todas as suas capacidades de fé e de inteligência. Como afirma o Papa Francisco, «ser Pastor quer dizer também dispor-se a caminhar no meio e atrás do rebanho: ser capaz de ouvir a narração silenciosa de quantos sofrem e de acompanhar o passo de quem tem medo de vacilar; atento a levantar-se de novo, a acalentar e a infundir esperança. Da partilha com os humildes, a nossa fé sai sempre fortalecida: portanto, deixemos de lado qualquer forma de soberba, para nos debruçarmos sobre quantos o Senhor confiou à nossa solicitude» (homilia de 23 de Maio de 2013). Mas se nos referirmos aos valores do reino de Deus que no Evangelho são identificados como a boa semente, o trigo, podemos relacionar a vida do Padre Domingos que não hesitou em contrastar com uma vida simples e humilde, pobre e desprendida, com a ganância do mundo e a cultura da opulência da sociedade. Como última palavra, permitam-me que situe a verdadeira homenagem que devemos àqueles que nos precederam e que marcaram o nosso tempo e a história. Eles são sempre um modelo e testemunho a imitar. Neste sentido, o Padre Domingos desafia-nos nos valores que contam, nos critérios a seguir e nos estilos de vida que marcam a existência pessoal e comunitária. Como refere o Evangelho, haverá sempre o momento de discernimento e de juízo. O ser humano inclinado naturalmente para o bem, convive também com o mal. A partir da sua liberdade e do uso da sua inteligência, é convidado a optar pela grandeza do seu ser que é sempre comunhão com Deus e de uns com os outros. Ficámos enriquecidos pela obra intelectual e literária do Padre Domingos, estamos gratos pela sua dedicação ao povo que lhe esteve confiado, mas sobretudo somos interpelados pela sua vida. Que o Senhor em Quem sempre acreditou e a Quem serviu o recompense com a plenitude da vida na eternidade. Amen.


DISCURSO PRESIDENTE DA JUNTA DE FREGUESIA DE PIGEIROS Homenagem ao Padre Domingos Azevedo Moreira Feliciano Martins Pereira* Ex.mas Autoridades Civis e Religiosas aqui presentes, Minhas Senhoras e meus Senhores,

Dois anos e meio após a sua morte, estamos hoje aqui a Homenagear o saudoso Padre Domingos Azevedo Moreira (Abade de Pigeiros), que paroquiou a nossa freguesia ao longo de 50 anos. Homem simples, exemplo de seriedade, de fé, um poço de sabedoria, com um grau de inteligência invulgar e um apaixonado pela literatura. Foi professor no Externato Castilho e no Liceu em S. João da Madeira, deixou uma vastíssima obra publicada, com biografias várias e monografias de localidades deste País e não só. Referente à nossa freguesia de Santa Maria de Pigeiros, elaborou a Monografia, o significado etnográfico da Festa dos * Presidente da Junta de Santa Maria de Pigeiros.

Pardais e a história referente ao aeronauta Francês Capitão Emillien Castanet, com a célebre queda do balão com um animal, o “Burro”. Deixou saudades aos paroquianos desta freguesia, por ter sido um homem não explorador nos serviços religiosos que prestava, não cobrando às pessoas mais carenciadas qualquer tipo de honorário. Nunca teve carro. O seu meio de transporte usual era o autocarro, ou pessoas amigas que tinham carro que se prontificavam a levá-lo onde queria. Várias vezes o encontrei a sair do autocarro na Estrada Nacional N.º1, do qual eu me oferecia para o trazer a casa, dizendo ele que não, que vinha a pé, para que eu não atrasasse a minha vida. Depois de eu insistir, acabava por aceitar. Na viagem dizia-me. Venho do Porto, porque de manhã é a melhor altura para fazer compras, porque os ladrões andam toda a noite e de manhã e estão a dormir, por isso ando mais à vontade. Gostava de contar as suas anedotas. As suas economias eram aplicadas essencialmente na sua paixão, os llivros. Para guardar os seus livros, muitas caixas de cartão e de preferência sem letras lhe arranjei por forma a ele ordenar a sua biblioteca, que era imensa. Sempre que lhe pediam qualquer informação, era rápido em fornecê-la, porque tinha tudo bem organizado.

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Era possuidor de um espólio bibliográfico muito valioso, que por testamento foi cedido à Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, sendo instalados na Biblioteca Municipal os exemplares mais valiosos, e o restante espólio da biblioteca será instalada num polo a criar em Santa Maria de Pigeiros, no edíficio em construção (Centro Civico e Cultural de Pigeiros). O seu nome deverá constar nas portas das salas onde ficará o seu espólio, por esta ser a sua vontade. No desejo de estar sempre próximo dos seus livros, manifestou à Junta de Freguesia o interesse de vir a ser sepultado no nosso cemitério. Desejo esse que foi cumprido.

A Junta de Freguesia e a Câmara Municipal, homenageiam hoje e aqui, esta tão ilustre figura, com o descerramento do busto e a construção do jazigo ao Padre Domingos Azevedo Moreira. Agradecemos à Câmara Municipal e a todos quantos colaboraram para que fosse possivel esta homenagem.

Obrigado a Todos.

Santa Maria de Pigeiros, 27 de Julho de 2013.

Foto de Joaquim Carneiro

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Jazigo do Padre Domingos Azevedo Moreira no cemitério paroquial de Santa Maria de Pigeiros.


Fernando Pessoa. Retrato a óleo por Filomena Pinheiro. (Pormenor).

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JUSTIÇA

Fernando Pessoa

De todos quantos directamente sofreram pela guerra, dos que efectivamente sofreram a mesma guerra, são os mutilados os que mais pungentemente, porque mais visivelmente, fazem presa nossa compaixão. Segurou-os a Morte, na passagem; não os largou a Vida: seus corpos ficaram esfarrapados da força igual e contrária dos supremos contendentes. Se alguém tem jus humano ─ que, se não é mais, não é também menos, que o patriótico ─ ao carinho supremo dos que governam e administram os Estados, são estes, que trazem nos corpos, de um modo sinistramente negativo, a mais indiscutível das condecorações. Não pergunto nunca se foi bom ou mau que entrássemos, se foi bem ou mal que entrámos, na guerra alemã; não o pergunto porque ninguém me saberia responder, pois nisto, como em tudo, nem há factos nem argumentos, mas só testemunhas e argumentadores. Neste caso dos mutilados, menos há mister que se pergunte. Fosse quem fosse o responsável da guerra ─ supondo que há verdadeiros responsáveis em estas, como em todas as coisas ─ não o

foram eles por certo, que para o circo foram mandados como animais, na jaula inevitável da política dos que não partiram. Assim, não havendo um critério de culpa própria que restrinja o direito que eles têm ao nosso carinho espontâneo, nada há que desculpe em qualquer homem são a indiferença para eles. E, se já a ninguém é humanamente lícito que neles pense como em quem não mereça os extremos da acção caritativa e justa, nos governos do país, que os exilou regularmente para as fronteiras da Morte, tal indiferença tem a estatura de um crime. Urge extinguir essa indiferença, e, visto que em ela um crime se tem cometido fazer, ao menos, o único acto profícuo de arrependimento verdadeiro, que é a não reincidência e a compensação. Duvido, porém, que esta justiça se consiga, por isso mesmo que é justiça. A surdez moral dos nossos governantes tem par só em sua cegueira intelectual. E onde não há sentimento que se mova, nem razão que se convença, que esperança pode haver de justiça?


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“JUSTIÇA” ─ UM DISPERSO DE FERNANDO PESSOA, PRATICAMENTE DESCONHECIDO

Paulo Samuel*

Nos dias de hoje, por via do fácil acesso e comprovados benefícios das novas tecnologias (emoldurando, há que confessar, um apetecido comodismo), a prática investigativa tem abandonado modelos, de indiscutível sucesso e reconhecido mérito, que fizeram escola no passado. No caso da localização de textos dispersos de um determinado autor, se confinado aos séculos XIX-XX, a pesquisa em periódicos e revistas revelava-se, como muitos sabem, uma fonte extraordinária, não só confirmando a existência desses textos (dos quais, por vezes, pouco se sabia), como, não raro, revelando outros completamente ignorados e até proporcionando um caudal informativo que servia a confirmar datas e factos de carácter biográfico ou infirmar afirmações e hipóteses no contexto literário e comparatista. É do conhecimento de quem se dedica a estas pesquisas que, regra geral ─ a excepção verifica-se, exclusiva e raramente, quando surge o privilégio de penetrar em livrarias particulares, ricas nesse domínio─ só no restrito espaço das hemerotecas e bibliotecas públicas é possível aceder a publicações dessa

natureza e época. Restringindo o âmbito às revistas literárias, há mesmo quem padeça toda uma vida no intuito de adquirir um ou outro título consentâneo com os seus interesses, ou simples números que completem uma determinada colecção, só passível de se conseguir em catálogos de alfarrabistas ou leilões de especialidade, dificuldade logo exponenciada pelo elevado valor que atingem tais publicações e pela incontornável disputa entre numerosos interessados. Há que referir, por outro lado, que mesmo nas principais Bibliotecas públicas nem sempre o investigador consegue ter acesso a periódicos dos quais tem confirmada a existência, a colecções completas ou não truncadas de revistas que fizeram história, como acontece, passe o exemplo, com a conhecida e prestigiada A Águia, órgão do movimento portuense «Renascença Portuguesa». Além disso, as profundas alterações introduzida sem data recente e sob a ditadura dos meios informáticos no sistema de pesquisa, identificação e acesso a essas publicações, cobrindo a rede das Bibliotecas públicas, concorre não poucas vezes a dificultar a localização de algumas publicações, sobretudo se de vida efémera e não catalogadas individualmente. No caso das “miscelâneas”, o problema adensa-se… e, quando não se tem uma quota do sistema antigo, melhor será trilhar outro caminho. Vale, amiúde, para os persistentes e que têm dos métodos antigos memória e conhecimento, o recurso aos tradicionais arquivos em madeira ou metal (se ainda preservados),onde diligentes bibliotecários guardaram,

* Ensaísta e editor. Investigador integrado do CLEPUL (FLUL) e membro do CEPP (UCP-Porto). Docente da UFP.

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dáctilo ou manuscritas, preciosas informações inscritas em fichas de papel. O cerne da questão não reside, entenda-se, no uso das novas tecnologias, mas no hegemónico e, não raro, normativo ─ ou meramente mecânico ─ tratamento que é dado ao processamento de informação pretérita, a exigir outros saberes para lá do técnico e programático (dizer “informático” revela-se aqui inadequado…). Depois, a redução de recursos humanos posta em prática há alguns anos, a estranguladora contenção de custos e até a atribuição de certas funções a alguns quadros técnicos, desenquadrada de uma necessária formação na área, concorrem, em muitas bibliotecas públicas, para o agravamento das condições de apoio, pesquisa, localização, leitura e obtenção de cópias. Felizmente, a digitalização de jornais e revistas que tem sido realizada pelos Serviços da Hemeroteca de Lisboa, do mesmo modo pela BNP, tem permitido que os investigadores e interessados acedam à visualização desses impressos, colmatando dificuldades por vezes insuperáveis. Habituados a conviver, ao longo de decénios, com um apreciável número de leitores na sala dos periódicos da BPMP, torna-se confrangedor, nos tempos que correm, olhar em redor e apenas divisar, com esforço, uma ou outra silhueta debruçada sobre as amarelecidas folhas de um jornal, escassas presenças que nenhuma perturbação acústica ou cromática causam numa sala dominada pelo silêncio e pelas cores opacas do mobiliário e das estantes. Raros são, ao que parece, aqueles que persistem em folhear velhos jornais e nunca abertas ou mencionadas revistas (literárias ou outras), na expectativa de um encontro feliz, seja com um folhetim desconhecido, um artigo nunca referenciado, uma entrevista ou carta de conhecido escritor, “dispersos” jamais referenciados na bibliografia activa de cada um desses autores. Na prática comum, toma-se como certo e definitivo, ou apenas se revisita, o que se encontra antologiado e descrito por aqueles que, no passado, se dedicaram à morosidade dessa busca, tantas vezes com assinalável êxito e proveito alheio. E o que dizer da fruição do encontro com algo verdadeiramente inesperado quando se folheia uma miscelânea de periódicos, sem títulos de nomeada, que raramente alguém solicita à consulta? Vem este excurso, decerto anacrónico e sem dúvida pouco optimista, a propósito de um disperso que consideramos praticamente desconhecido do grande público, inclusive da maior parte dos “pessoanos”, recolhido nas páginas de um periódico intitulado O Mutilado da Guerra, órgão da «Liga Portuguesa dos Mutilados e Inválidos da

Guerra” em organização no Porto por finais de 1924. Tratase de um artigo de Fernando Pessoa, intitulado “Justiça”, cuja referência não conseguimos localizar em nenhum dos repositórios de bibliografia pessoana, desde a primitiva (e fundamental) recolha efetuada por José Blanco1, neste novo século ampliada e reestruturada na obra, em dois volumes, Pessoana – Bibliografia activa, selectiva e temática2, até ao monográfico contributo de Clara Rocha, “Fernando Pessoa, colaborador de revistas e jornais”, incluído no indispensável volume Mensagem/Message, edição crítica publicada em 1993 na selectiva e apurada “Coleção Archivos”, sob o patrocínio da UNESCO3. Compreender-se-á melhor que este texto de Fernando Pessoa não esteja inserto na afectuosa e diligente recolha intitulada Fotobibliografia (1902-1935), da responsabilidade do poeta João Rui de Sousa4, embora o número especial do periódico onde consta tal texto apresente ilustração artística digna de se ver. Há que assinalar, ainda, que esse texto está também ausente do volume Fernando Pessoa – Ultimatum e páginas de sociologia política5, no qual se incluem, contudo, alguns artigos sobre a “Guerra Alemã” (1914-1918), tema que enquadra, a bem dizer, o artigo publicado em O Mutilado da Guerra, e dele não há registo nos diversos volumes das Obras de Fernando Pessoa, organizadas, prefaciadas e anotadas por António Quadros6.

1 José Blanco, Fernando Pessoa. Esboço de uma bibliografia. Lisboa/Porto, INCM/Centro de Estudos Pessoanos, 1983. 2 Lisboa, Assírio & Alvim, 2008. 3 Fernando Pessoa. Mensagem/Message. Coord. de José Augusto Seabra. Edição crítica, organização e notas de José Augusto Seabra e Maria AlieteGalhoz. UNESCO/Fund. Eng. António de Almeida, Paris/Porto, 1993. Esta obra, de referência incontornável para os estudos pessoanos, recolhe textos de diversos especialistas, designadamente: Onésimo Teotónio Almeida, Dalila Pereira da Costa, Yvete K. Centeno, Eduardo Lourenço, António Quadros, Teresa Rita Lopes, Américo da Costa Ramalho, AdrienRoig, José Blanco e Filipe B. Teixeira. Neste volume, a colaboração de José Blanco intitula-se “Mensagem – bibliografia selectiva referida a 31 de Dezembro de 1992”, na esteira das recolhas bibliográficas que o autor vem efectuando desde há anos. A obra inclui um dossier com reprodução de manuscritos autógrafos de Pessoa, documentos, recensões, maqueta da capa de Mensagem, provas de página, etc. 4 João Rui de Sousa, Fernando Pessoa – Fotobibliografia (1902-1935). Lisboa, IN-CM/BN, 1988. Prefácio de Eduardo Lourenço. Atractivo álbum de 300 págs. que, após um texto introdutório e justificativo, reproduz por facsímile a colaboração, em prosa e verso, de Fernando Pessoa,bem como, a preto e a cores, as capas das revistas e jornais onde consta essa participação. 5 Fernando Pessoa – Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Recolha de textos: Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introd. e organização de Joel Serão. Lisboa, Edições Ática, 1980. 6 Referimo-nos aos diversos volumes publicados sob a chancela das Publicações Europa/América, em 1986, na série “Obra em Prosa de Fernando Pessoa” (10 vols.). Também é omissa qualquer referência a este texto nos volumes da


Como é óbvio, não se descarta a possibilidade de haver alguma notícia acerca deste “disperso” em obra ou escrito de temática pessoana7, mas estamos convencidos de que, a haver essa referência, mormente em fontes recentes, ela teria sido com certeza divulgada com o impacto que merece e incluída nos repositórios mais recentes de bibliografia activa de Fernando Pessoa. Justificada a pertinência da reprodução desse artigo nas páginas de Villa da Feira, assim concorrendo para o fecho de abóbada das comemorações dos 125 anos do nascimento de Fernando Pessoa, que os artigos deste número da revista concorrem a documentar quanto à celebração realizada na Escola EB 2.3 Fernando Pessoa, há que aduzir alguns parágrafos de contextualização e identificação do periódico que o acolheu na alvorada desse ano de 1924. Localizámos o“disperso” há mais de vinte anos! Na altura, a investigação que conduzíamos tinha por objecto a recolha de dispersos de Leonardo Coimbra, projecto que nos ocupou cerca de três anos de pesquisas, após o convite que para essa tarefa nos foi dirigido por Pinharanda Gomes, que, entretanto, reunira textos leonardinos sobre poesia portuguesa, os quais vieram a constituir o primeiro tomo dos Dispersos editados na prestigiada colecção “Presenças” da, hoje extinta, Editorial Verbo8. À época, no afã do trabalho que exigia prazos e obrigava a dáctilo escrever os textos que pacientemente se transcreviam sob forma manuscrita na BPMP (nesses dias, nem sempre era possível o recurso ao facsímile dos jornais, quer pelos dilatados prazos de entrega quer pelo custo que tal comportava), o que surgia de interessante de outros autores era por nós anotado e arquivado em pastas próprias, ficando a aguardar a oportunidade de utilização ou referência. Foi o que aconteceu no caso vertente (outros permanecem no limbo),

“Prosa” (I e II) que completam, com o tomo da “Poesia”, a Obra Poética e em Prosa de Fernando Pessoa, que o mesmo autor organizou para a edição feita nesse mesmo ano de 1986 por Lello & Irmão-Editores, em papel-bíblia. 7 Temos sobretudo em mente quer livros de circulação restrita ou pouco divulgados quer artigos ou ensaios em publicações periódicas, mas também teses de mestrado e/ou doutoramento, o que perfaz um acervo documental que, naturalmente, não nos foi possível compulsar para este despretensioso contributo. 8 Leonardo Coimbra. Dispersos I a V. Lisboa, Editorial Verbo, 1984-1994. [Os volumes II a V, com compilação, fixação do texto e notas de Pinharanda Gomes e Paulo Samuel são precedidos de “Notas preliminares”, assinadas por António Braz Teixeira, Manuel da Costa Freitas, Francisco da Gama Caeiro, Henrique Barrilaro Ruas.] No mesmo ano de 1994 foi publicado pela Fundação Lusíada um último volume, sob o título Cartas, Conferências, Discursos, Entrevistas e Bibliografia Geral.

devendo-se a recuperação deste “disperso”, no corrente ano, ao convite que nos foi formulado pelo director da revista, Dr. Celestino Portela, para efectuarmos uma conferência no dia 13 de Junho passado, na Santa Maria da Feira, no âmbito das comemorações atrás mencionadas. O acesso às pastas identificadas com o nome de Fernando Pessoa, onde se acotovelam recortes, notas, transcrições, citações, reproduções de imagens, verbetes, etc., trouxe-nos à mão a delida cópia de “Justiça” e, ao mesmo tempo, a memória da circunstância desse encontro. Ressaltava, no entanto, um dado a exigir confirmação: no rol de obras de ensaios e estudos pessoanos, adquiridos, lidos ou consultados nos últimos anos, não se havia deparado com menção a tal texto, o que, a verificar-se, logo teria despontado a memória da transcrição feita nos anos 80. Restava, pois, à presente data, retomar o trabalho de campo no rasto de “Justiça”. A consulta inicial à “pessoana” acumulada e disponível revelouse infrutífera. Daí, nova etapa se impunha: colocar a questão do desconhecimento generalizado desse texto a quem é reconhecido como um dos mais reputados leitores-bibliófilos da obra de Fernando Pessoa, ou seja, precisamente o Senhor Dr. Celestino Portela. Remetido o texto, logo se ficou a saber, com indisfarçável júbilo, que este se figurava “inédito” para o ilustre destinatário, que assegurava, até onde tal é possível, não ter informação da existência do mesmo em nenhuma publicação do universo pessoano. Assim, com base nestes pressupostos, decidiu-se a sua republicação nas páginas desta revista, dando em primeira mão aos leitores de Villa da Feira a ocasião de desfrutarem de um artigo disperso de Fernando Pessoa que, contudo, não deixa de marcar a posição do seu autor sobre o sentido da Guerra e, numa perspectiva mais restrita, a sua solidariedade para com aqueles que sofriamda injustiça cometida pelos poderes públicos e políticos, alheios estes a um natural direito de simples (e ínfima) compensação devida aos mutilados da guerra. Sabendo-se o que hoje se sabe acerca do abandono a que foi votado o CEP, das verbas que, destinadas a apoiar os soldados portugueses nas trincheiras da Flandres, nunca chegaram, porém, a servir esse fim, quase dez anos volvidos sobre a presença desses soldados na frente de batalha ainda o Governo português e a assembleia dos deputados teimava em adiar uma resolução que permitisse ajudar os inválidos que o haviam ficado em razão do seu acto de patriotismo e

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serviço público. O designado “Código do Inválido”, que instituiu pensões de incapacidade e outros diminutos benefícios destinados aos soldados da Primeira Grande Guerra, só será publicado em Fevereiro de 1929, não obstante os esforços desenvolvidos pela Liga dos Combatentes da 1.ª Grande Guerra, criada em Lisboa em 1923 (oficialmente instituída em Janeiro de 1924) e pela efémera Liga Portuguesa dos Mutilados e Inválidos da Guerra, organizada no Porto em finais de 1924. Não impendia esta reedição analisar, literária ou conceptualmente, o artigo de Fernando Pessoa. Como se sabe, Pessoa assumiu idealmente algumas posições políticas que podem parecer contraditórias, se não indefensáveis. Sobre a guerra alemã escreveu dois textos, recolhidos em volumes póstumos. Acresce a esse conjunto sobre a “Guerra Grande” de 1914-18 um “comentário” que redigiu em resposta ao apelo de João de Barros, no jornal O Mundo, para a entrada de Portugal no conflito, actualmente incluído na “obra em prosa” de Fernando Pessoa, de editores vários. Além da singularidade estilística vale, como atrás referimos, numa leitura pessoal, pela declarada defesa dos fragilizados e mutilados pela guerra feita pelo autor e a exigência inequívoca de que cumpre à governação encontrar meios para resolver ou atenuar o problema. Quanto à identificação do periódico O Mutilado da Guerra, resta traçar um singelo verbete. Trata-se de um jornal em pequeno formato, impresso em duas folhas dobradas ao meio, perfazendo 4 páginas, composto e impresso na Tipografia da «Casa d’Obras» de O Primeiro de Janeiro. No cabeçalho, pode ler-se sucinta ficha técnica: Director – Joaquim de Castro; Secretário da redacção – Eduardo P. Braga; Editor – António de Jesus Vieira. Em epígrafe, centrada, a divisa: “…e cuidar dos vivos” (Marquês de Pombal). O primeiro número (Ano I ─ deixando prever uma continuidade que, todavia, parece ter sido cerceada dois meses depois), tem a data de 14 de Janeiro de 1925. A “saudação” inicial apresentase veemente e objectiva: “Os que tanto se sacrificaram pela Pátria e por ela derramaram o seu sangue, sorrindo e cantando hinos patrióticos, nas linhas da frente da batalha da Flandres e na África, saúdam entusiasticamente o ilustre Chefe de Estado, que com tanta devoção preside aos destinos nacionais, e igualmente saúdam o Parlamento que é uma das principais forças da República. Das duas Casas do Congresso esperam eles, confiadamente, a aprovação do projecto de

lei que melhore um pouco a sua deplorável situação actual, porque certamente não haverá parlamentar que recuse o seu voto a uma obra de reparação àqueles que numa das suas horas mais angustiosas, a Pátria encontrou de pé para a sua defesa e sua glorificação e que a Guerra inutilizou.” Segue-se o editorial “A que vimos”, descrevendo a situação dos estropiados e inválidos da guerra, emoldurando retrato do Presidente Bernardino Machado. Na página dois, fazse a transcrição do projecto de lei que requer a aprovação do Parlamento. Este primeiro número afirma-se, na sua totalidade, com a posição assumida pela Liga e pelos seus elementos fundadores, dos quais o jornal se torna órgão, com missão associativa e de difusão. O número seguinte, “extraordinário”, datado de 3 de Fevereiro de 1925, não publicita justificação editorial que esclareça tal especificidade organizativa e convergência de colaborações, mas revela-se deveras valorizado com depoimentos de várias figuras proeminentes das Letras portuguesas. A capa é enriquecida com um desenho de Stuart e uma frase, emblemática, de Raul Brandão: “Uma Nação que não cumpre o mais sagrado de todos os deveres, esquecendo os que ofereceram a vida para a defenderem ou para a engrandecerem, arrisca-se a não encontrar amanhã quem se sacrifique por ela.” No interior, ocupando as restantes 3 páginas, encontra-se colaboração que, à evidência, se percebe ter sido solicitada. Em distinta prosa, revela-se o posicionamento dos autores, solidários com o pungente drama. Revela-se oportuno, no plano documental (e decerto nesta circunstância única), mencionar os nomes e os títulos dos respectivos textos: [pág. 2:] Aquilino Ribeiro (“Pelos mutilados da Guerra”); Saavedra Machado (“A propósito de um caso de justiça”); Albino Forjaz de Sampaio (“Mutilados da Guerra”); José Sarmento (“Heróis”); Joaquim Manso (“Mutilados”); [pág. 3:] Trindade Coelho (“Duas palavras”); Rocha Martins (“Mutilados e mutiladores”); Fernando Pessoa (“Justiça”); [pág. 4:] Mário Saa (“Ingrata Pátria”); António Botto (“Inválidos”); António de Cértima (“Canto fúnebre dos mutilados”). Pela imagética, por ser curto mas incisivo – logo, sem qualquer critério de sobrevalorização quanto aos restantes – julgamos interessante transcrever aqui o depoimento de António Botto: “Inválidos. Um dia, quando a Pátria com voz acariciadora soube agrupar a vossa energia e o vosso valor, nenhum de vós, rapazes de Portugal, franziu a fronte morena ou pretendeu


ocultar-se… – nenhum! E lá, nas trevas desse fatal sorvedouro a vossa coragem bela foi o timbre de mais límpida nobreza. § Muitos ficaram; muitos vieram. § Uns, destroçados pelo tufão da metralha; outros, envelhecidos, aparências de vida – pouco mais. Justo, seria, portanto, que uma migalha de conforto suavizasse o abandono em que ficais. Mas, nada!... Palavras, sim, palavras, muitas palavras – apenas. § É que, diz um antigo ditado: § “Quem dá o que tem, dá o que podia dar.” § Pobre Pátria Portuguesa!” Com data de 12 de Março surge o terceiro número de O Mutilado da Guerra, composto com artigos da redacção, na sua maior parte criticando a demora do parlamento na aprovação do projecto de lei. O seguinte trata do 1.º Congresso Nacional dos Mutilados e Inválidos da Grande Guerra, a realizar em Coimbra entre 17 e 19 de Janeiro de 1925, assunto sobre o qual se debruçam os números 5 e 6, bem com o suplemento ao n.º 7, que saúda a realização do Congresso. No entanto, por aí se queda a existência de O Mutilado da

Guerra no acervo da BPMP. Desconhecemos, pois, se o jornal teve continuidade, mas é de presumir o contrário, porquanto a realização do Congresso pode ter determinado outras formas de afirmação e de associativismo. A concluir, resta informar que este periódico não consta, estranhamente, do extenso e minucioso rol da lista de “Jornaes da Minha Terra”, notável contributo do jornalista Alberto Bessa, inscrito em sucessivos números da revista O Tripeiro, entre os anos 1919 e 1928. São verbetes preciosos, de alguma forma ampliando e complementando o trabalho anteriormente realizado por Artur Duarte Sousa Reis, amanuense da BPMP, dedicado aos “Jornais do Porto”, que o fez imprimir em volume no ano de 1896. Precioso catálogo, diga-se, com reedição facsímile em 1999 pela mesma instituição portuense, uma das Bibliotecas mais antigas e importantes da península ibérica, guardiã, também ela, entre outros “papéis” pessoanos, deste singelo disperso de Fernando Pessoa. 19


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CALDAS DE S. JORGE - PARQUE.

Manuel Leite*

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*Fotografo de Arte


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VACINAÇÃO CONTRA A PANDÉMICA Noé Oliveira Bernardes*

A resposta imunológica contra a recessão É taxar no estômago e passar à comichão Se esta se prolongar com aparência de crónica É certo e sabido que passou a pneumónica!

Ricos e pobres, políticos e patriarcado Tudo será sugado até ao tutano Já não valem rezas ou promessas para o futuro Fica tudo falido até à chegada do Entrudo!

No combate à pandemia solta Recorreu-se à quimioterapia e ao tratamento da Troika. Foram-se as compras e o subsídio de Natal Restam-nos as Janeiras e as máscaras do Carnaval! *Advogado


NOS 125 ANOS DO NASCIMENTO DE FERNANDO PESSOA1 Paulo Samuel*

Pórtico

A celebração dos 125 anos do nascimento de Fernando Pessoa deve fazer algum sentido, sobretudo num tempo de crise (não só económica), em que a globalização descendente procura esbater marcas identitárias e de coesão nacional. A importância ou a banalidade das comemorações depende, em grande medida, dos propósitos e do alcance que se quer atribuir à efeméride: simples evocação circunstancial, na agenda de eventos que pontuam o calendário ou, pelo contrário, forma de reiterar o valor da memória como elo

1 Esta versão escrita segue, em linhas gerais, a palestra realizada na Escola EB 2-3 Fernando Pessoa, em 13 de Junho de 2013, no âmbito da comemoração promovida na passagem do 125.º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa. Nesse acto, a nossa intervenção (“Fernando Pessoa – um percurso em imagens”) apoiou-se num suporte visual, constituído por um conjunto de imagens (documentais e iconográficas) que interagiam directamente com a narrativa apresentada. O tema das relações de Fernando Pessoa com a «Renascença Portuguesa» e a revista A Águia fora sugerido pelo Senhor Dr. Celestino Portela, tendo em conta o recente centenário do início de publicação daquela revista, enquanto órgão do movimento renascentista. Este texto sintetiza o que então foi expresso para uma audiência eclética.

de ligação a uma matriz cultural, reactualizando estruturas simbólicas da vida e do pensamento, que estão para além do quotidiano consumista e da dispersão comunicacional que caracterizam os dias de hoje. O caleidoscópio de iniciativas que marcou o centenário do nascimento de Fernando Pessoa (1988) volveu-se numa girândola de edições, colóquios, conferências, cartazes, suplementos de jornais, medalhas e selos, culminando, prestes, na divulgação da existência de milhares de inéditos contidos na “arca”. No presente, ao abrigo da BNP, contamse cerca de 27.000 documentos, parte dos quais ainda não tratados do ponto de vista da edição crítica. A situação a que chegou o fenómeno pessoano, com todas as implicações positivas daí decorrentes (desde logo, a repercussão e a leitura da sua obra a nível internacional) veio gerar simultaneamente aspectos negativos, que o prolóquio “tanto Pessoa já enjoa” emblematizou enquanto resultado de uma atitude disfórica, de recepção negativa. Não obstante, a panóplia de estudos centrados na sua obra multiplicou-se, quer em círculos escolares, sobretudo universitários, quer em centros de investigação e redacções de revistas literárias, logo divulgados por estas, pela imprensa e suplementos culturais. A universalidade da obra pessoana torna-se incontestável e chega a todos os continentes. O contraste entre a sua condição pessoal, existencial, quase desconhecido e sem qualquer reconhecimento público, como o testemunharam alguns amigos, entre eles Carlos Queiroz e Almada Negreiros,

* Ensaísta e editor. Investigador integrado do CLEPUL (FLUL) e membro do CEPP (UCP-Porto). Docente da UFP.

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e a repercussão do seu nome na século XX para o presente, embora actualidade, sobretudo a partir dos permaneçam inéditos textos e anos 60-70 é, por demais, flagrante. fragmentos manuscritos (a que Há que mencionar no trilho dessa acresce o epistolário). As principais expansão, dado o reconhecido papel obras do poeta são publicadas que assumiu, a vertente artística, a partir de 1942 pela Ática, em particular das artes plásticas, numa série dirigida por Luiz de que elegeu Fernando Pessoa como Montalvor e João Gaspar Simões, objecto de criação e interpretação inaugurada com o volume Poesia, estética, contribuindo bastante para a que se seguem, nos anos 70-80, o incremento do culto pessoano. diversos outros títulos de poesia e Mantêm-se contudo, nos prosa, apresentados em volumes dias de hoje, questões de ordem brochados, revestidos da conhecida ética e jurídica que envolvem os capa branca onde sobressai o manuscritos inéditos e o património simbólico desenho de Almada literário pessoano, ainda disperso Negreiros. No Rio de Janeiro, Brasil, e em mãos particulares. A par a Editora José Aguilar coloca no desses problemas, exigindo que mercado, nos anos 60, o volume o Estado dirima conflitos, equipas Obra Poética de Fernando Pessoa, de investigadores prosseguem no com organização e estudo crítico trabalho de edição crítica da obra de Maria Aliete Galhoz; mais de de Fernando Pessoa, juntando novos um decénio volvido, estreiam no volumes à já dispersiva proliferação mercado brasileiro as Obras em de títulos. O Porto, há que dizê-lo, Prosa, (1974), com organização e esteve na vanguarda da difusão introdução de Cleonice Berardinelli, nacional e internacional de Fernando edições que ampliam no Brasil o Fernando Pessoa por volta de 1912 Pessoa: o Centro de Estudos nome de Fernando Pessoa e levam Pessoanos, criado na FLUP (dirigido à projecção que este alcança naquele país, suplantando o por Arnaldo Saraiva, José Augusto Seabra e Maria da Glória que se sabe e faz em Portugal3. No Porto, entre os anos 602 Padrão) e a revista Persona , patrocinada pela Fundação Eng. 70, penetram nalgumas livrarias e em restritos círculos de António de Almeida, contribuíram, nos anos 80 do século leitores (e bibliófilos) os volumes antológicos organizados por passado, para o aprofundamento desses estudos, no geral Pedro Veiga (Petrus), nas séries “Cultura” e “Parnaso Poético”. centrados na heteronímia pessoana. Da portuense Rua das Artes Gráficas saem a público, no ano Pessoa publica em vida (Dezembro de 1934), precedendo de 1986, em 3 volumes e impressas em papel-bíblia, com de um ano a sua morte, apenas um único livro, em encadernações vistosas adornadas por ferros dourados, as circunstâncias adiante descritas. Depois, só a partir dos anos Obras de Fernando Pessoa, com organização, notas e estudos 40 é que começam a surgir edições de bibliografia activa, de António Quadros (e Dalila Pereira da Costa para o volume com particular incidência no último quartel e transição do primeiro), sob a chancela de Lello & Irmão-Editores, no mesmo

2 A revista Persona publicou-se desde 1977 (n.º 1) até 1985 (número duplo 11/12 e último), tornando-se uma referência no campo das revistas literárias, de temática específica. Com colaboração de prestigiados “pessoanos”, foi pioneira nesses estudos e a sua consulta e leitura propiciam ainda hoje importantes “descobertas”.

3 No Brasil, o nome e a poesia de Fernando Pessoa já se encontram divulgados desde os anos 50, devido principalmente à acção de Adolfo Casais Monteiro e, depois, de Jorge de Sena. O primeiro, então exilado naquele país, traduziu alguns dos 35 Sonetos, publicando-os numa edição paulista, em 1954. Sobre o assunto cf. João Alves das Neves, “Os estudos pessoanos no Brasil” in Nova Renascença, vol. 8, n.º 30/31, primavera/verão 1988, 235-239.


ano em que a Europa/América, com sede em Mem Martins, coloca também à venda, em colecção dita “de bolso”, duas séries de livros de Fernando Pessoa – “Poesia” e “Prosa” –, com selecção, organização e introduções do mesmo António Quadros4. Muitas outras edições se sucedem, inclusive da simbólica Mensagem, desde a publicada por Edições ASA (pela primeira vez em diversas versões estrangeiras, com prefácios de José Augusto Seabra), passando pelo modelo miniatural e artístico concebido por Paulo Ferreira para a sua In-Libris e a edição crítica dos «Archivos» até à tiragem especial de «Edições Caixotim», trazida a público em 2007, que se tornou um ícone nos circuitos bibliófilos, envolvendo na sua confecção diversos contributos tipográficos e das artes gráficas, como o que foi prestado pelo Museu do Papel (sedeado em Terras de Santa Maria). Algumas reedições desse título, no entanto menos conseguidas, lograram também a sua estória. Impõe-se assinalar, para a divulgação da obra do autor – além do que foi mencionado –, o trabalho desenvolvido pela Casa Fernando Pessoa (em Lisboa), a primeira série da revista Tabacaria (e dossiers especiais de outras publicações), bem como toda uma extensa bibliografia passiva, revelando uma multifacetada leitura e interpretação dos escritos pessoanos, desde os estudos semióticos que a modernidade literária estruturou (hoje em parte abandonados), passando pelas incursões genéticas e comparatistas, até aos monográficos ensaios literários pós-modernos, sem esquecer algumas derivações no plano esotérico e ocultista. No presente, continuam a surgir livros polémicos e de referência, quer no plano biográfico quer hermenêutico, registando-se entre os mais recentes, o de Paulo Cavalcanti5 e a obra Fernando Pessoa e o Quinto Império6. A revista A Águia e os contextos literários A revista A Águia (1.ª série), fundada no Porto por Álvaro Pinto, traz o primeiro número impresso com a data de 1 de Dezembro de 1910. “Revista quinzenal ilustrada de literatura e crítica”, agrega como principais colaboradores,

4 Obra Poética de Fernando Pessoa. 7 vols. Pref., introd, notas e org. de António Quadros. Lisboa, Publicações Europa/América, 1986. Obra em Prosa de Fernando Pessoa, 10 vols. Idem, ibidem. 5 João Paulo Cavalcanti Filho, Fernando Pessoa – uma quase autobiografia. Porto, Porto Editora, 2012. 6 Afonso Rocha, Fernando Pessoa e o Quinto Império. 2 vols. Porto, Universidade Católica Editora, 2012.

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Capa do primeiro fascículo da segunda série de A Aguia

no campo literário, Afonso Duarte, Afonso Lopes Vieira, António Corrêa d’Oliveira, António Patrício, Augusto Casimiro, Carlos Parreira, Jaime Cortesão, Júlio Brandão, Mário Beirão, Leonardo Coimbra, Raul Proença, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Veiga Simões (com inéditos de António Nobre, Camilo Castelo Branco, etc.). Na sua compleição artística, sobressaem os desenhos e caricaturas de Cristiano de Carvalho, António Carneiro, Cervantes de Haro, João Augusto Ribeiro, Júlio Ramos, Vergílio Ferreira e Jaime Cortesão. A imagem da capa é da autoria de Cristiano de Carvalho. São publicados 10 números até Julho de 1911. O grupo de jovens poetas, artistas e escritores que abraça esse projecto busca,


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contudo, outros voos e afirmação, tanto no plano literário e cultural como no educativo e social. Em resultado desse ideal pragmático e após reuniões preparatórias agendadas e conduzidas por Jaime Cortesão, a primeira das quais em Coimbra, surge o movimento «Renascença Portuguesa», denominação que Teixeira de Pascoaes, já então considerado um poeta de excepção no seio do escol literário do Porto, pretende se altere para “Renascença Lusitana”. Foram elaborados dois manifestos para informação pública dos objectivos pretendidos, embora com orientação diversa: um, por Teixeira de Pascoaes, o outro por Raul Proença, elemento preponderante do grupo de Lisboa. Fundada a «Renascença Portuguesa» nos finais de 1911, com estatutos e corpos sociais, esse núcleo de entusiastas republicanos (alguns recém saídos de uma militância anarquista) decidem transformar a revista A Águia em órgão do seu ideário e repositório das criações poético-literárias que passam a ilustrar uma nova corrente literária, cujo denominador comum vem a identificar o que Pessoa designará por transcendentalismo-panteísta, mas que Pascoaes e outros poetas simbolizam na lusitana expressão – saudosismo. Para tal finalidade, muda-se o formato da revista (com nova capa, desenhada por Correia Dias) e regista-se a publicação como “revista mensal de Literatura, Arte, Ciência, Filosofia e Crítica Social”. Assume a direcção literária Teixeira de Pascoaes, ficando como director artístico António Carneiro e, na qualidade de director científico, José de Magalhães. Paladino de realizações editoriais, perfila-se nas funções de secretário da redacção, editor e administrador o incansável Álvaro Pinto. A Águia, neste novo figurino e missão, publicarse-á de 1912 a 1932, restando como uma das revistas literárias portuguesas de maior prestígio e longevidade. No cerne da cultura pátria, a «Renascença Portuguesa» ocupa uma estria de relevo, mercê da acção cultural, educativa e social, que exerceu por mais de uma década, trazendo novas ideias e estéticas literárias, a par de realizações práticas, pretendendo transformar o país pela via educativa (aliada à formação cívica), mas sem cedências a modelos estrangeiros, afirmando uma identidade própria, independente de modismos e de influências alheias – ascendente que caracterizara grande parte da Geração de 70 do século XIX –, visando a edificação do homem integral, isto é, a conciliação do indivíduo social com a pessoa humana, indivisível esta da sua dimensão espiritual. A «Renascença Portuguesa» ensaiou distintas vias, teóricas e experimentais, para a consolidação desse ideário: por um lado, através de conferências, artigos e

linhas programáticas divulgadas na revista e no boletim A Vida Portuguesa; por outro, numa consolidação empírica, fundando as Universidades Populares (criadas em 1912, no Porto e noutras cidades do país), proporcionando graciosamente ao público cursos e lições especiais, organizando exposições, subscrições públicas, desenvolvendo, com assinalável êxito, uma ampla acção editorial, que permitiu a publicação de mais de duas centenas de títulos, distribuídos por colecções, iniciativa notável para a época atendendo quer ao índice de analfabetismo ainda vigente quer ao período conturbado da Grande Guerra. O catálogo de publicações da «Renascença Portuguesa» mostra não só um largo espectro de autores de renome do primeiro quartel do século XX, como inclui autores brasileiros, que se tornaram figuras de relevo na Literatura daquele país. Ainda dentro do espírito idealista desse movimento deve referir-se a criação, por Leonardo Coimbra, em 1919,

Retrato de Teixeira de Pascoaes em 1912


da primeira Faculdade de Letras do Porto, bem como o discipulato de doutrinação renascentista que levou quer à criação de revistas aparentadas (de Princípio à Portucale) quer, sobretudo, à eclosão do grupo da “Filosofia Portuguesa”. Em finais do século XX, é ainda da herança da «Renascença Portuguesa» que se reclama um movimento e revista que adoptou o nome de «Nova Renascença», fundado no Porto em 1980 por José Augusto Seabra, Alfredo Ribeiro dos Santos, Jacinto de Magalhães, António Corte Real e outros7. A revista Nova Renascença publicou-se até 1999, num total de 73 números e, nas suas páginas, é possível rastrear artigos que evocam, historiam e interpretam o conteúdo da revista que celebrizou os nomes de Pascoaes, Mário Beirão, Augusto Casimiro, Afonso Duarte, Jaime Cortesão, António de Sousa, Américo Durão, Leonardo Coimbra, Raul Brandão, António Sérgio, Teixeira Rego, Aarão de Lacerda, António Carneiro, Visconde de Villa-Moura, entre muitos outros. Retomando afirmação pretérita mas agora noutro contexto, retenha-se o nome de Álvaro Pinto, que atravessa todo o século XX português como um empreendedor nas áreas do jornalismo, da edição, da criação de revistas literárias e do fomento das relações Portugal-Brasil. À época, trata-se de um jovem que, nascido em Barca d’Alva (1889), vem estudar para o Porto em 1902, tornando-se rapidamente num publicista conhecido no burgo portuense, inclusive pelas suas ligações às facções anarquistas. Álvaro Pinto escreve em diversos periódicos, dirigindo publicações como Nova Silva e A Vida, tornando-se, em 1910, director e proprietário da revista A Águia. Em 1912, estando já em curso a publicação da segunda série desta última revista, funda e dirige o efémero jornal satírico e humorístico A Bomba, de parceria com Cristiano de Carvalho. O seu nome está indissociavelmente ligado à colaboração de Fernando Pessoa no órgão da «Renascença Portuguesa», como o comprova o acervo de cartas que lhe foram dirigidas pelo jovem poeta lisboeta, entretanto regressado da África do Sul para onde fora “expatriado” por razões familiares, o que lhe valeu, em contrapartida, o profundo conhecimento da língua, da literatura e da cultura inglesas. Revela-se importante para a história literária e para uma compreensão não-dogmática dos alicerces filosóficos do pensamento de Fernando Pessoa a leitura dessas missivas, pelas quais se iniciou – e também 7 Da mesma herança e linhagem se reclamam quer a Leonardo (1988-1989) quer a Nova Águia (2008) ambas organizadas e editadas a partir de Lisboa. Efémera a primeira, a segunda continua a publicar-se.

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Retrato de Álvaro Pinto

se cindiu, é certo – a relação do criador de Orpheu com a «Renascença Portuguesa». Trata-se de um conjunto de 20 cartas, balizadas no arco temporal que corresponde àquele em que o poeta da Mensagem colaborou na prestigiada revista portuense e se relacionou, carteando, com figuras ligadas ao escol renascentista. A primeira carta data de 25 de Abril de 1912 e a última – ou seja, aquela que supostamente terá sido a de rompimento de relações – está datada de 12 de Novembro de 1914. Este núcleo (desconhece-se se houve outras dirigidas ao mesmo destinatário, pois estas são as que Álvaro Pinto transcreveu, muitos anos depois, na revista Ocidente8) reveste-se de particular importância pelo facto de evidenciar o decidido interesse que levou Fernando Pessoa a associar-se ao 8 Publicação que fundou e dirigiu, em Lisboa, a partir de 1938, após o seu regresso do Brasil, onde se encontrava desde 1920. As cartas de F. Pessoa foram insertas no volume XXIV, n.º 80, datado de 1944, pp. 301-318, delas tendo sido feita separata.


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Capa da primeira edição de Mensagem

programa e às ideias de regeneração da vida nacional propostas pela «Renascença Portuguesa». Este epistolário documenta, por outro lado, o reconhecimento valorativo atribuído por Pessoa, então na qualidade de ensaísta e crítico literário, à poesia de alguns dos autores renascentistas, entre eles Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Mário Beirão e Corrêa d’Oliveira. Da leitura dessas missivas, sempre únicas na singular estilística pessoana, ressaltam aspectos importantes, nem sempre atendidos, como o facto de estar Fernando Pessoa a conceber, nessa altura, um “pamphleto” (que previa pudesse ocupar a extensão de cerca de 32 páginas em corpo 10), o qual vai “fazendo, desfazendo e refazendo” (nas suas próprias palavras), destinado a defender os nobres e altos ideais do movimento portuense! Fernando Pessoa remete de Lisboa, por sucessivas remessas, os artigos dactiloescritos, alegando dificuldades de

ordem profissional que o impedem de se dedicar em exclusivo à sua redacção e cumprimento de prazos, afirmando que a “elaboração raciocinativa” dos mesmos não permite redigi-los de forma apressada. Por outro lado, as condições da revista, com as habituais limitações de espaço, também obrigam a um exercício de natureza sintética, principalmente quando se impõe ser preciso: “[…] Entre o fazer um artigo cuja imperfeição torturaria tanto o meu senso intelectual como a minha noção do que é devido à Águia, e não o fazer, escolhi […] o não enviar a colaboração para este mês. […] Dá-se o caso de ser este o mais difícil e importante, por incluir a caracterização da nova corrente literária. […]”9. No decurso da correspondência, Fernando Pessoa propõe a Álvaro Pinto a colaboração de poetas seus amigos – António Cobeira, Mário de Sá-Carneiro e Côrtes Rodrigues –, os quais, de facto, vão figurar no elenco dos colaboradores de A Águia. O primeiro, inaugurando essa participação com os versos “Cântico dos Montes”, seguido do poema “Elegia da alma” (dedicado a Pessoa)10; o segundo, com o conto “O Homem dos Sonhos” e “O fixador de instantes”11. Em “Anotações às cartas”, Álvaro Pinto contextualiza a recepção das mesmas, elucidando o leitor quanto às circunstâncias da colaboração de Fernando Pessoa e o seu posterior afastamento da revista, não duvidando, porém, da afinidade que permitira essa estreia. Escreve o secretário do movimento portuense: “[…] Como A Águia nascera no Porto, aí ficou e cresceu a «Renascença Portuguesa», que durante longos anos cumpriu com denodada persistência o seu programa de promover a maior Cultura do Povo Português, por meio da Revista, do Livro, da Conferência, do Concerto, da Exposição e da Universidade Popular. Lisboa esteve a princípio em benévola simpatia, mas depressa se dividiu em grupos de adversários intransigentes, de neutros e de amigos leais. Dentre os últimos, um houve que mostrou logo sua admiração pelos novos Poetas e pela finalidade da «Renascença». Foi Fernando Pessoa. Chegaram ao Porto repetidas notícias desse entusiasmo e em Março12 de 1912 o seu 1.º artigo “A nova

9 Carta n.º 5, datada de 24 de Junho de 1912. (Vide Ocidente, art. cit., 302303. 10 A Águia, 2.ª s., n.º 4 (Abril 1912), 110. Idem, n.º 8 (Agosto 1912), 59. 11 A Águia, 2.ª s., n.º 17 (Maio 1913), 150-156. Idem, n.º 20 (Agosto 1913), 47-54. Mário de Sá-Carneiro ainda colaborará no ano seguinte com o conto “Mistério”, idem, n.º 26 (Fev. 1914), 41-49. Côrtes-Rodrigues colabora com “Sinfonia do amor” (sonetos) no n.º 15 de A Águia, 2.ª s. (Março 1913), 97. 12 De facto, o artigo saiu no fascículo de Abril de 1912.


Poesia Portuguesa sociologicamente considerada”, publicado a pág. 101-107 do vol. I, 2.ª série.” Na sequência do “inquérito” promovido pelo jornal República, que suscitou diversas reacções nos meios literários lisboetas, o jornalista Boavida Portugal reuniu diversos artigos (quer os publicados no jornal quer outros que, entretanto, não tiveram publicitação) num volume de 370 páginas, editado em 1915 pela Livraria Clássica, de Lisboa. Nessas páginas, encontram-se depoimentos de Júlio de Matos, Henrique Lopes de Mendonça, Teixeira de Pascoaes, Augusto de Castro, Gomes Leal, João Grave, Gonçalves Viana, Adolfo Coelho, Veiga Simões, Júlio Brandão, Malheiro Dias, Vila-Moura, etc. Seguem-se, depois, as “réplicas”, com textos de Raul Proença, Antero de Figueiredo, Augusto Casimiro, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão… O Inquérito Literário constitui um documento valioso para se aferir da mentalidade portuguesa na passagem do século e perceber a dificuldade que teve a «Renascença Portuguesa» em realizar um projecto cultural, com implicações cívicas, políticas e sociais, que procurava romper com o estatismo e o culto das figuras sociais e literárias afectas ao poder político e aos círculos académicos. A carta-resposta de Fernando Pessoa à crítica de Adolfo Coelho será de novo recolhida no livro publicado pela Editorial Inquérito, que nos anos 40 Álvaro Ribeiro organizou para lembrar os artigos que Pessoa remetera para A Águia13. Nessa missiva-depoimento, Fernando Pessoa intenta elucidar o destinatário sobre o que distingue os novos poetas de A Águia do estatismo que caracteriza a corrente literária dominante na época. O prefácio do filósofo, autor de A Razão Animada, chama a atenção, nesses anos já distantes e numa leitura pioneira, para a importância dos artigos sobre “A nova poesia portuguesa” e a relação hermenêutica entre poesia e filosofia, entre o supra-Camões e o Quinto Império. Retomando as cartas de Pessoa, dirigidas a Álvaro Pinto, facilmente se pode aferir do entusiasmo com que o poeta se propõe colaborar no movimento e até corresponder às solicitações que lhe dirigia a sociedade, na pessoa do seu secretário. Ilustra-o aquela que está datada de 13 de Junho de 1913, o próprio dia de aniversário de Fernando Pessoa. “Meu caro amigo: […] recebi o seu cartão a respeito do «Só».

13 Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa. Organização e prefácio de Álvaro Ribeiro. Lisboa, Editorial Inquérito, s.d. [1944]. Esse livrinho dos “Cadernos Culturais” foi reeditado nos anos 60.

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Capa do livro que reúne os artigos sobre «A nova poesia portuguesa»

Hoje fui o mais cedo que pude tratar do assunto. Já estão esgotados os exemplares brochados do livro. Por isso, e por não saber se o meu amigo quereria exemplares encadernados, não comprei dois mas só um, que por este correio lhe envio, registado. Caso precise de outro exemplar, queira dizer-mo imediatamente, porque creio que mesmo dos encadernados poucos restam. Sobre este assunto tenho uma coisa que pode ser importante a comunicar-lhe. No dia 6 à noite […] o Alfredo Guimarães disse-me, na Brazileira (casualmente e falando de outros assuntos) que o Aillaud lhe tinha mostrado um recibo do António Nobre vendendo à Livraria Aillaud a propriedade do Só. Até o Guimarães supunha que a publicação do Só pela Renascença tivesse sido violentamente sustada pelo Aillaud com a apresentação deste recibo.14” 14 Vinte Cartas de Fernando Pessoa. [Organizadas e publicadas por Álvaro Pinto.] Lisboa, separata da revista Ocidente, 1944. Corresponde à carta 16, transcrita na revista (volume XXIV, n.º 80, datado de 1944) a págs. 312-313.


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A 1.ª edição do Só, de António Nobre, data de 1892, publicada em Paris, sob a chancela do conhecido editor Léon Vanier. Uma 2.ª edição, refundida, é entregue pelo poeta ao editor Guillard, Aillaud & C.ª, em Paris, que a imprime em Janeiro de 1898, valorizada com ilustrações de Eduardo Moura e Júlio Ramos e um retrato do poeta por Tomás Costa, numa tiragem de 3000 exemplares. Os exemplares são colocados à venda em Lisboa, na Livraria Guillard & Aillaud, instalada na Rua Áurea, a partir da qual é feita a distribuição para o resto do país. O Só de António Nobre é referência incontornável no universo pessoano. A embebência criadora do poeta “uno e plural”, português mas universal, que quis ser “toda uma literatura”, está marcada pelo lusitanismo nobriano. Fernando Pessoa, não hesitou em afirmar – conhecendo-se o peso que atribuía à palavra, não apenas na sua carga semântica – “quando ele nasceu, nascemos todos nós”. O criador poético de uma nova renascença lusíada atribuiu ao émulo das Despedidas uma paternidade de renovação e novidade linguística que continuará a perdurar pelo tempo até aos nossos dias. Para lá do modelo formal e estrutura linguística, o que singularizou a poeticidade de António Nobre foi essa comunhão do homem com a Natureza, a atenção que o poeta deve prestar às raízes ctónicas, aos mitos e substratos creenciais, às falas populares. O avatar supremo desse renascimento terá sido porventura a entidade mítica que Teixeira de Pascoaes (re)criou como “Maránus”, cujos atributos e função religiosa têm permitido contínuas redescobertas. Recordese que Fernando Pessoa, num contributo para o número de homenagem a António Nobre, promovida pela revista A Galera, que espelhava em Coimbra a sombra de A Águia, navega então só, guiado por um portulano valorativo do poeta amarantino, longe das afinidades rasgadamente neogarretistas e nacionalistas, ou das palavras impiedosas que predominam na crítica fácil contra o autor de “Lusitânia no Bairro Latino”. Nesse texto para um in memoriam, afirma: “António Nobre foi a face que olha para o Passado, e se entristece. De António Nobre partem todas as palavras com sentido lusitano que de então para cá têm sido pronunciadas. Têm subido a um sentido mais alto e divino do que ele balbuciou. Mas ele foi o primeiro a pôr em europeu este sentimento português das almas e das coisas, que têm pena, de que umas não sejam corpos, para lhes poder fazer festas e de que as outras não sejam gente, para poder falar com elas. O ingénuo panteísmo da Raça que tem carinho de espontânea frase para com as árvores e as

pedras, desabrochou nele melancolicamente”15. No artigo que escreve em 1912 sobre “A Nova Poesia Portuguesa” (cujo tema recupera noutros escritos) Pessoa invoca António Nobre como marco de transição para a novíssima corrente literária donde há-de emergir o supra-Camões. A terceira edição do Só acabou por provocar um diferendo jurídico, opondo a «Renascença Portuguesa» (e Álvaro Pinto) à editora Aillaud & Bertrand, de Lisboa, que a publica a poucos meses da que vem a público com a chancela do movimento portuense, em Julho de 1913. Esta, da «Renascença Portuguesa», surge como “3.ª edição, correcta e aumentada”, impressa nos prelos da Tipografia do Porto Médico, enriquecida com uma sanguínea de António Carneiro e vendida ao preço de 800 réis. Contrariamente ao que deduz Pessoa a propósito do assunto, o infrator é o conhecido livreiro de Lisboa, pois Álvaro Pinto possuía, como deixou consignado nas páginas de A Águia, na rubrica “Comentários”, um documento do irmão do autor, o Professor Augusto Nobre, em que este, tendo assumido o encargo de zelar pelos “papéis” do poeta, negociara com a «Renascença Portuguesa» a 3.ª edição do Só. O problema, que acicatou ânimos na imprensa contra o movimento portuense, acabou por ser resolvido a contento das partes, conforme relata Álvaro Pinto no quinzenário A Vida Portuguesa: “[…] Tal edição começou a ser anunciada na «Águia» desde Janeiro e estava a imprimir-se em fins de Maio quando apareceu anunciada e à venda uma outra terceira edição da casa Aillaud […] A «Renascença Portuguesa» e o exm. Sr. Augusto Nobre fizeram desde logo cessar a venda indevida e entraram em negociações com aquela livraria para se resolver a questão amigavelmente, pois se provou não ter havido má-fé na publicação do livro. Após vários alvitres e propostas, de parte a parte, terminou o incidente pagando o sr. Aillaud uma indemnização pelos exemplares vendidos e entregando o resto da edição. Esse resto, por ulterior acordo, foi dividido em partes iguais pela casa Aillaud e pela «Renascença Portuguesa». A casa Aillaud distribuiu os exemplares conforme estavam; a «Renascença Portuguesa», nos seus, substituiu-

15 Fernando Pessoa, “Para a memória de António Nobre” in A Galera, 1º ano, nº 5-6, 23.2.1915, 35. Os outros colaboradores deste número dedicado a Anto são: Alves dos Santos, Mário de Sá-Carneiro, Tito Bettencourt, António Ferreira Monteiro, Alfredo P. Guisado, Maria Emília, Alfredo Guimarães, J. E. da Costa Cabral, Xavier de Carvalho, Alfredo Pimenta, Henrique de Campos Ferreira Lima, Castro Alves, Antero de Figueiredo, António Alves Martins, Martinho Nobre de Melo, Severo Portela, António Valente de Almeida, Afonso Lopes Vieira, Ruy Gomes, Alfredo da Cunha, Cruz Magalhães e Alberto de Oliveira.


lhes a capa e acrescentou-lhes um retrato de António Nobre segundo desenho de António Carneiro e a «Memória» da primeira edição, hoje raríssima, que o extraordinário poeta tencionava publicar de novo. […]16” A Mensagem, de Fernando Pessoa Fernando Pessoa soube ler, como a modernidade reconhece, os sinais e os mitos. Se José Régio, a jusante, invoca em obra romanesca Os Avisos do Destino (1953) e se, a montante, Camilo Castelo Branco constrói romances ditados por Estrelas Funestas (1862) e Estrelas Propícias (1863), será porém o autor das Páginas Íntimas e de AutoInterpretação (volume póstumo, recolhendo textos de análise ensaística) quem mais lata e profundamente dedica séria reflexão ao cumprimento dos destinos, à simbólica dos signos e dos ritos, aos “acasos” do tempo e do espaço, ao intersecionismo que, na linha de infinitude17, permite passar de um plano a outro da realidade sem sair da circunstância existencial que marca o sujeito no crisol operativo. Para Fernando Pessoa, o real não decorre simplesmente de uma verificação empírica dos sentidos, processada pelos mecanismos da razão, mas envolve toda uma alquimia de sensações, efabulações, sonhos, imaginação, conceitos, raciocínios, idiossincrasia genética e arquétipos simbólicos que concorrem, numa depuração singular e única, realizada no mais profundo do ser humano, a estruturar uma identidade que se tece na alteridade, conseguindo medir e compreender o mundo, permitindo tornar-se um espírito ínsito ou um indivíduo situado. Se quisermos, num exercício especulativo de alcance teleológico, radicará porventura neste quadro de interpretação das realidades compossíveis a heteronímia pessoana. Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares, Alexander Search e outros não constituem meros desdobramentos da personalidade ortónima de Pessoa ele-mesmo, nem são, tão-pouco, simples criações literárias, autorais. É o próprio Fernando Pessoa quem o assevera, dirigindo-se ao amigo e poeta Adolfo Casais Monteiro: “Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. 16 Vide A Vida Portuguesa, Ano I, n.º 17 (Porto, 1.9.1913), 132. Do ponto de vista bibliófilo, isto significa que há duas terceiras edições distintas, uma das quais com o desenho-sanguínea do poeta feito por António Carneiro. 17 Que, curiosamente, faz lembrar o aceno cabalístico na numerologia do nascimento do próprio Pessoa:1888…

Construí-lhes as idades e as vidas”. Aliás, em data anterior, num texto inserto na revista Presença, de Dezembro de 1928, explicitara: “A obra pseudónima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assina; a heterónima é do autor fora da sua pessoa; é de uma individualidade completa, fabricada por ele, como o seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu”. Impresso em Lisboa no mês de Outubro de 1934, na Tipografia da Editorial Império (que também concebeu a apresentação gráfica), o poema épico, lírico e dramático Mensagem (na sua matriz original intitulado “Portugal”), só chega ao público pela Parceria A. M. Pereira no dia 1 de Dezembro desse ano por vontade expressa do poeta. Data evocativa da Restauração da Independência, significava também no desígnio pessoano – na sequência do que fora proclamado por Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão no número inaugural da primeira série de A Águia, em 1910 – uma nova renascença dos portugueses. No plano esotérico, trata-se de uma data propícia para o início de um novo ciclo na história (secreta) de Portugal, com o desvelamento dos arquétipos, propiciando a profetizada era de afirmação espiritual. Organizado e estruturado pelo poeta18, o pequeno volume só pode ser impresso graças ao apoio financeiro de Augusto Ferreira Gomes. Partindo de um facto literário – o concurso anual de poesia promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional – a edição de Mensagem, testemunho pessoal a deixar às gerações futuras, revela-se um acto patriótico de extraordinário alcance, não só pela implícita tessitura esotérica do poema, “talhado com esquadro e compasso pelo Grande Arquitecto”, afirma-o Pessoa, mas também por possibilitar, a partir de então, uma leitura ou releitura dos símbolos e dos mitos mais emblemáticos do ser português, entre os quais se distinguem a Saudade, o Sebastianismo messianista ou o Quinto Império. Fernando Pessoa — que noutro escrito assumiu a pátria como Língua — deixou em Mensagem o código hermético e os sinais que instituem Portugal o lugar-onde hierofânico da realização quinto-imperial, que, através da Saudade, razão e mistério do porvir, erigida como garante de uma Europa que “jaz fitando, […] com olhar esfíngico e fatal, o Ocidente, futuro do passado”, que é Portugal, levará ao cumprimento de um destino supra18 As alterações e emendas chegam a ser substanciais nas provas de impressão tipográfica. Cf. a versão digital que a BNP disponibiliza no endereço electrónico: http://purl.pt/13965/2/.

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racional e super-camoniano, isto é, além do feito histórico e civilizacional cantado n’Os Lusíadas… Destino – profetiza nas últimas linhas do artigo publicado na revista A Águia – que se há-de volver razão e condição do homem português: “E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova, que não existe no espaço, em naus que são construídas «daquilo que os sonhos são feitos». E o seu verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal ante-arremedo, realizar-se-á divinamente”19. Diversas são as possibilidades hermenêuticas para se abordar a obra e o autor de Mensagem. A criação heterónima individuada por Fernando Pessoa – que não se deve confundir com qualquer fragmentação do “eu” substancial ou mera projecção do criador literário – implica que qualquer aproximação aos modos plurais como o poeta se expressou haja de ser multímoda na leitura intertextual e na identificação sígnica do registo que a genialidade pessoana imprimiu com a originalidade que todos reconhecem na matriz textual e linguagem poética que, sem a dispersão labiríntica de Mário de Sá-Carneiro, o torna, a ele, Pessoa, unívoco, embora de face jânica, bifronte. Como afirmou José Augusto Seabra no Mosteiro dos Jerónimos, aquando da inumação dos restos mortais de Fernando Pessoa, em Outubro de 1985, “poderíamos destecer, da trama poetodramática dos heterónimos, semi-heterónimos e ortónimo, que plural também «ele-mesmo» é, esse textoa-texto de uma Pátria múltipla, matriz de um patriotismo universalista, de que Portugal e os países de expressão portuguesa são linguística e poeticamente a manifestação”. Importa ter presente que o “sentido de Portugal” é para o poeta determinado pela Cultura, muito mais do que pela política. Nessa filiação genética se encontra o impulso que o levou a aproximar-se da «Renascença Portuguesa».

Fernando Pessoa e a revista A Águia

No número quatro da 2.ª série de A Águia, datado de Abril de 1912, Fernando Pessoa dá início à sua colaboração (“A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”)20, 19 A Nova Poesia Portuguesa, ob. cit., p. 106. 20 Esta série de artigos de Fernando Pessoa prossegue da seguinte forma: “Reincidindo” (idem, n.º 5, Maio 1912, 137-144); “A nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico” (idem, n.º 9, Set. 1912, 86-94) Idem - II (idem, n.º 11, Nov. 1912, 153-157); Idem – conclusão (idem, n.º 12, Dez. 1912, 188-192).

numa revista que se encontra no auge da repercussão nos meios literários e cultos da cidade e do país. Nesse fascículo, encontramos colaboração artística de Cristiano de Carvalho e de Cervantes de Haro, a par de poemas de António Cobeira, Augusto Casimiro, Augusto Casimiro e Augusto de Santa-Rita, artigos de crítica ou apreciação literária e biográfica assinados por António Cortesão (“Saudade” – breves considerações filológicas), Leonardo Coimbra (sobre Basílio Teles), João de Barros (nota biográfica sobre Manuel Laranjeira). O número inclui ainda excerto de um conto de Coelho Neto, e reprodução de uma carta inédita de Camilo, integrada na série que a revista publicou em sucessivos números. É o período em que Fernando Pessoa se identifica com o projecto renascentista. O próprio o reafirma, em carta a Álvaro Pinto: “A nossa Causa é importante demais para nos estarmos a constituir em partido político ou seita religiosa. Cada poeta lusitano a mais que possamos pôr em evidência, mais uma honra será para nós, mais um serviço à literatura pátria, e à Pátria, portanto. […] Eu – que sou quanto há de mais renascente em toda a extensão da alma – não teria dúvida, por exemplo, se tivesse uma revista minha, ou dirigisse uma publicação da Renascença, em obter para lá colaboração, digamos, do Garcia Pulido21, se a julgasse boa. […]22” Partindo da análise das grandes épocas literárias que deram à Inglaterra, na Renascença, um Shakespeare, com uma poesia da “alma”, à França, no Romantismo, um Victor Hugo, elegendo uma poética da Natureza, Fernando Pessoa, através de um raciocínio lógico-dedutivo, descobre na nova poesia portuguesa a síntese de um movimento inteiramente novo que assenta em três “característicos” sociológicos fundamentais: “preceder” um movimento social criador, afirmar uma “nacionalidade” e constituir-se como “novidade”. No excurso histórico, a nova corrente portuguesa coincide com o 31 de Janeiro de 1891 e pouco dista da implantação da República. Logo, “[…] a actual corrente literária portuguesa é completa e absolutamente o princípio de uma grande corrente literária, das que precedem as grandes épocas criadoras das grandes nações e de quem a civilização é filha23”. 21 Referência de Fernando Pessoa ao desabrido e mal-intencionado folheto de Garcia Pulido, Rompendo Fogo. Coimbra, Livraria Neves, 1912. 22 Carta 12, datada de 4.03.1913, onde F. Pessoa também se refere a Pascoaes e a Leonardo Coimbra, colocando críticas a dois artigos destes na revista mas reconhecendo o valor de ambos; diz ter recebido O Doido e a Morte, enviado por Pascoaes e estar a ler O Criacionismo. 23 Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa, p. 33. [Para as citações seguimos este livro organizado por Álvaro Ribeiro, indicando a respectiva página.]


Fernando Pessoa em 1935

O tom especial da nova corrente principia, na análise de Fernando Pessoa, “com o Só, de António Nobre, com aquela parte da obra de Eugénio de Castro que toma aspectos quinhentistas, e com Os Simples de Guerra Junqueiro. Começa, portanto, pouco mais ou menos coincidentemente com o começo da última década do século XIX.”24. Isto, quanto ao contexto cronológico e aos referentes. Num segundo momento, encontramos firmadas as características dessa poesia nova, em obras como a Oração à Luz, de Junqueiro, ou a Vida Etérea, de Teixeira de Pascoaes. Este estádio é aquele em que “o modo de exprimir intensifica-se, complica-se de espiritualidade, o conteúdo sentimental e intelectual alarga-se até aos confins da consciência e da intuição”25. Noutra passagem do artigo publicado em A Águia pode ler-se: “Por vitalidade de uma nação não se pode entender nem a sua força militar, nem a sua prosperidade comercial, coisas secundárias e por assim dizer físicas nas nações; tem de se entender a sua exuberância de alma, isto é, a sua capacidade de criar, não já simples ciência, o que é restrito e mecânico, mas novos moldes, novas ideias gerais, para o movimento civilizacional a que pertence”26. A característica 24 Idem, p. 41. 25 Idem, p. 42. 26 A Nova Poesia Portuguesa, ob. cit., p. 22.

da “novidade” alia-se, segundo Pessoa, a dois “característicos” que a tornam singular: a elevação do tom e a grandeza dos seus representantes. Em relação à elevação, diz o poeta que “basta reparar na altura inspiracional do tom poético geral do nosso período, ver como nos menos notáveis poetas da corrente a expressão tem uma feição, um relevo estranhos e inconfundíveis.” Destaca dois casos modelares: de Teixeira de Pascoaes, os versos “A folha que tombava/Era alma que subia,” e, de Jaime Cortesão, “E mal o luar os molha/Os choupos, na noite calma,/Já não têm ramos nem folha,/São apenas choupos de Alma.”. Pessoa não hesita em afirmar: “Em nenhuma literatura do mundo atingiu nenhum poeta maior elevação do que estas expressões, e especialmente a extraordinária primeira, contêm. […] Citamo-las não só para comprovação da elevação, como também para indicação da originalidade do tom poético da nova poesia portuguesa”27. Pascoaes, mais velho 10 anos do que Fernando Pessoa, autor de livros de poemas como Belo (1896/97), Sempre (1898), À Ventura (1901), Para a Luz (1904), As Sombras (1907), Maránus (1911) é o rosto emblemático do saudosismo, corrente poético-filosófica que procura restaurar no homem português a sua condição de lusíada, isto é, de homem vocacionado para a Luz, cumprindo uma finalidade escatológica que pressupõe a redenção do Homem e da Natureza. É em Teixeira de Pascoaes (mas também em Jaime Cortesão e Mário Beirão) que Fernando Pessoa radica a sua noção de um transcendentalismo panteísta, o qual procurará estruturar ao longo da interpretação sociológica e psicológica que enforma o seu artigo de estreia literária na revista A Águia. Na perspectiva teleológica de Pessoa: “[…] o saudosismo está criando a base intelectual e moral ao sebastianismo puramente popular e […] com a divinização da Saudade, Pascoaes está criando maiores cousas, talvez, do que ele próprio mede e julga. A alma lusitana está grávida do divino”. Fernando Pessoa reitera, nesta afirmação, algo que, noutro local, já dissera a propósito do poeta de Regresso ao Paraíso: “[Pascoaes é] Um dos maiores poetas vivos e o maior poeta lírico da Europa actual”, caso lhe fosse feita justiça. Na linha da obra doutrinal que vem publicando desde o início do século XX, Pascoaes reunirá no opúsculo A Era Lusíada, datado de 1914, duas conferências que procuram sintetizar a sua visão sobre esse advento. No cerne da

27 Idem, p. 51.

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compleição que Pascoaes atribui à Saudade, o saudosismo ─ tal qual assinalámos noutro local ─ perfaz-se como teorese ôntica, visão unívoca para além da cisão primeira, inteligido em processo decorrente como filosofia de esperança, irmanado a um idealismo utópico. Por ele, conquanto não se alcance a Cidade de Deus, nutre-se a esperança do Paraíso na Terra. Dentro da esfera do dinamismo mítico e da relação saudosismo-messianismo, o que permite, noutro ângulo de observação, compreender a afinidade de Fernando Pessoa com a «Renascença Portuguesa» e os poetas de A Águia, sobressaem estas afirmações, imbuídas da sua interpretação prospectiva da nova poesia portuguesa, “O messianismo é o génio da aventura alando-se para as estrelas. Depois de criar um grande Império, ao vê-lo afundar-se nas ondas que navegava, na sua trágica aflição, dirigiu as asas para o céu, o Atlântico etéreo além do qual existe uma outra Índia. [...] E, no Infinito onde subiu, a Aventura feita Messianismo penetrou-se de vigor celeste; e, rasgando o nevoeiro da manhã sebastianista, reaparece na terra de Portugal, vestida espiritualmente em luz do sol — e é a nova Saudade pela nitidez viçosa do seu perfil, em cujos lábios a tristeza ri: a tristeza, a lembrança do Passado, iluminada de esperança, prometendo a nova Era Lusitana!”28 Como escreveu o professor e investigador brasileiro Alfredo Antunes, numa obra de referência (Saudade e Profetismo em Fernando Pessoa), “Os temas nacionalistas são, portanto, comuns a ambos [Pascoaes e Pessoa]; comum o ideal duma «Religião Lusitana», e comum a crença no destino de Portugal a ponto de, claramente, considerar as «intuições proféticas» de Pascoaes coincidentes com esse destino superior da «futura civilização lusitana» que ele próprio preconiza em seus artigos de A Águia […]”. Analisada na perspectiva que liga a criação poética à alma de um povo, três característicos a identificam segundo Pessoa: a sua “não-popularidade”, a sua “anti-tradicionalidade”, a que acresce, numa função “primacial e basilar, a nacionalidade”. Por não-popularidade entende Pessoa que esta corrente literária, embora radicada na alma do povo, não a exprime linearmente, não a traduz de modo horizontal, num grau zero de expressão literária; antes, “representa-a e interpreta-a”, numa axiologia que liga a voz do povo à voz de Deus… Os novos poetas portugueses tiram os elementos constitutivos da 28 Fernando Pessoa, citado por Petrus [Pedro Veiga] na sua recolha sobre O Sebastianismo.

sua poesia da “alma da Raça”: “directamente, nuamente e elevadamente”29. Analisando a faceta poliédrica da nova poesia portuguesa, Pessoa retira três conclusões: a primeira, que “para Portugal se prepara um ressurgimento assombroso, um período de criação literária e social como poucos o mundo tem tido”. Nesse contexto, enxerta o surgimento de um supra-Camões, intui a chegada de uma “renascença extraordinária”. A segunda, que será dentro do republicanismo que essa oclusão se dará. Apurando o denominador histórico, constitutivo da terceira, que, não obstante fazer-se dentro desse espírito republicano, de uma República nova, não é no actual regime político, desnacionalizado, “idiota e corrupto do tripartido republicano” que ela se dará30. Para o teorizador quinto-imperialista, “A hora da acção ainda não chegou. Primeiro virá a teoria política da época. Depois virá o pô-la em prática. E quando a hora chegar, virá – não tenhamos dúvida – o homem de força que a imporá, eliminando os obstáculos, que são esta gente de agora, monárquicos e republicanos. Suavemente, se puder ser, será a transformação feita, a criação começada”31. No desdobramento do artigo, intitulado a “nova poesia portuguesa no seu aspecto psicológico”, encontramos a leitura hermenêutica, igualmente ternária, que o autor propõe, por ela garantindo a unidade intrínseca que caracteriza essa nova poesia. Quais são os aspectos relevantes dessa feição? O primeiro, é a sua “metafísica”, isto é, o conceito do universo e da realidade envolvente. O segundo, é a “estética”, uma compleição artística do modo de ser literário, da “alma literária”; por fim, o terceiro, traduz-se na sua “sociologia”, significando as teorias sociais implícitas aos objectivos do movimento literário. No plano da “metafísica”, Pessoa alia a imaginação do poeta com a faculdade especulativa do filósofo, considerando que nenhum deles consegue, por si só, dar a total decifração do mistério da Vida. De facto, por estranho que possa parecer, “tanto o poeta como o filósofo, ao interpretarem, cada um a seu modo, as intuições metafísicas de uma época, ao mesmo tempo as revelam e as escondem. Revelam-nas porque são poeta e filósofo, e, portanto, desdobradores em consciência e raciocínio do que a raça e a hora acumulam no fundo das suas almas. Escondem-nas – o poeta, porque a emoção, ainda que surgindo directamente do 29 Idem, 56. 30 Cf., idem, 58. 31 Idem, 59.


fundo intuitivo, é, de sua natureza, atraiçoadora da precisão intelectual; o filósofo, porque a actividade de raciocínio, vantajosa em tornar precisas as intuições fundamentais que a raça lhe dá, é, de seu carácter, destruidora dos processos emotivos que, eles só, surgindo directamente do fundo oculto da alma, podem conservar a essas intuições fundamentais a sua cor primitiva, o seu preciso tom intuicional”32. Resulta, assim, estar a alma de uma época presente em todos os seus poetas e filósofos, mas também, como assinala, em nenhum de modo total, obrigando a que a busca dessa unidade identitária percorra o vasto campo de toda a criação artística. No plano da “estética” deve entender-se que essa nova poesia portuguesa aparenta ser “vaga”, porquanto sendo uma ideação que não chega a ser obscura, não se cinge, contudo, às amarras da semântica. É uma ideação “subtil”, que traduz a simples sensação em algo mais detalhado, minucioso, profundo… Há como que um paulismo de sensações, aquilo que Pessoa designa por “sensação crepuscular”, que cada sintagma não dilucida nem alarga, antes intensifica. Tratase de uma ideação complexa, na qual está presente uma transmutação que se equaciona na “intelectualização de uma emoção” ou numa “emocionalização de uma ideia”. Estádio donde brota uma poesia de alma, uma “poesia subjectiva”, distante do impressionismo sensista ou do simbolismo alegórico. “O característico principal da ideação complexa – o encontrar em tudo um além – é, esclarece Pessoa, justamente a mais notável e original feição da nova poesia portuguesa”33. Dado que se trata de uma poesia de alma, de vertente subjectiva, a nova poesia portuguesa atende também à Natureza, onde quase exclusivamente se inspira, tal qual se encontra em obras de Pascoaes; por isso, é também uma “poesia objectiva”. Prova-o alguns dos seus atributos formais: a “nitidez” do expresso, que se revela “na forma ideativa do epigrama”, o que concorre ao seu equilíbrio formal; a “plasticidade” enquanto expressão do visto ou ouvido como exterior, “não como sensação, mas como visão ou audição”, ou seja, dar a impressão exacta e nítida do exterior como exterior, não obstante poder ser expressa como um exterior emocionado; no vértice, a “imaginação”, no sentido em que o poeta pensa e sente por imagens34.

Na síntese dessa caracterização psicológica, entende Pessoa acrescentar que, sendo subjectiva e objectiva, a nova poesia portuguesa realiza porém um equilíbrio intrínseco, que a aproxima do modelo de perfeição. Além disso, “sendo ao mesmo tempo, e com quase igual intensidade, poesia subjectiva e objectiva, poesia da alma e da natureza, cada um destes elementos penetra o outro; de modo que produz essa estranha e nítida originalidade da nossa actual poesia – a espiritualização da Natureza e, ao mesmo tempo, a materialização do Espírito”. É essa identidade de uma poesia que faz a fusão da Natureza e da Alma que Fernando Pessoa apresenta e defende na sua réplica, em forma de carta ao Inquérito literário e, particularmente, respondendo ao Professor Adolfo Coelho. Além disso, essa poesia portuguesa é “uma poesia religiosa. […] a religiosidade da nossa actual poesia é de uma religiosidade nova, que não se parece com a de nenhuma outra poesia, nem com a de qualquer religião, antiga ou moderna”35. Pessoa reitera: “[…] a nossa poesia novíssima é completamente e absorventemente metafísica e religiosa”. Argumentando sobre a existência de um “panteísmo materialista” e de um “panteísmo espiritualista” – de forma a mostrar o dualismo inultrapassável de uma concepção estritamente monista – o articulista acentua que a unicidade terá de ser procurada na harmonização do espírito com a natureza, donde a importância de um sistema que seja o panteísmo transcendentalizado: chamemos-lhe, diz, o transcendentalismo panteísta36. Ciente dessa leitura, Fernando Pessoa não hesita em afirmar que “Não é preciso mais do que atentar na mera expressão da nossa nova poesia para nos encontrarmos em pleno transcendentalismo panteísta”37. Não é de todo fundamental encarecer aqui, neste apontamento sobre as relações de Fernando Pessoa com a «Renascença Portuguesa» e a revista A Águia, a importância que o poeta criador de Orpheu atribuia então ao grupo renascentista, cujas criações poéticas se transmitiam pelas páginas da revista ou em publicações editadas pelo movimento, de início em esbeltas plaquetes impressas em papel-couché na Tipografia Costa Carregal38. Dois anos depois, em finais de 1914, Pessoa escrevia a Álvaro Pinto: “[…] Sei bem a

32 Idem, p. 67. 33 Idem, p. 74. 34 Idem, 77.

35 Idem, p. 80. 36 Idem, p. 96. 37 Idem, 102. 38 Entre os poetas que tiveram tais edições citem-se Teixeira de Pascoaes, António Corrêa d’Oliveira, Jaime Cortesão, Mário Beirão.

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pouca simpatia que o meu trabalho propriamente literário obtém da maioria daqueles meus amigos e conhecidos, cuja orientação de espírito é lusitanista ou saudosista; e, mesmo que não o soubesse por eles mo dizerem ou sem querer o deixarem perceber, eu à priori saberia isso, porque a mera análise comparada dos estados psíquicos que produzem, uns o saudosismo e o lusitanismo, outros obra literária no género da minha e da (por exemplo) do Mário Sá-Carneiro, me dá como radical e inevitável a incompatibilidade de aqueles para com estes. […]”1. Nisto, e certamente não por causa do episódio que levou ao adiamento de publicação de um texto de Pessoa na referida revista, radica a principal razão do seu afastamento, numa altura em que o poeta já se encontra inserido no movimento modernista que virá a projectá-lo como um dos maiores nomes da Literatura portuguesa. 125 anos após a data do nascimento de Fernando Nogueira Pessoa (1888-1935) e quase oitenta sobre a sua morte, mantém-se o sortilégio que faz do poeta um dos maiores da Língua portuguesa e um dos falantes poéticos mais representativos do universo literário de toda a Humanidade, ombreando na grandeza que distingue poetas como Dante, Camões, Shelley, Shakeaspeare, Baudelaire… Os seus livros, traduzidos em diversas línguas, continuam a suscitar um contínuo fluxo de estudos e revisitações, das mais estritamente académicas até aos ensaios que visam as intertextualidades e a tessitura de uma obra poético-filosófica que chegou a ser justificada, pelo próprio poeta, como criação resultante de um pensamento que sente e de um sentir que pensa, uma osmose a que também não ficou indiferente um contemporâneo de Pessoa, também ele poeta e escritor, com raízes nesta terra e a exigir constante revisitação, que teve por nome: Manuel Laranjeira.

1 Carta 20, datada de 12.11.1914.

Meu caro amigo — O convite geral feito na sua secção de inquérito literário, e aquele com que verbalmente honrou a obscuridade ou a juventude do meu nome, foram, como sabe, de princípio aceites por mim para, no seu jornal, levantar a luva que inquiridos vários arremessaram à Renascença Portuguesa. Lançado, porém, que por mim fui no caminho da contraargumentação, breve verifiquei que, tendo por dever meu responder a tudo quanto no seu inquérito se dissesse contra a Renascença Portuguesa, as dimensões escritas da resposta excederiam, e de muito, as dimensões de um artigo de jornal; ao passo que a nulidade do meu nome, por mais que o meu raciocínio lhe fosse capa para o público, impediame de, sequer, pensar em pedir-lhe a inserção de artigos sobre artigos, discutindo, ponto por ponto, a como que argumentação dos adversários da nossa novíssima poesia. Resolvi, por isso, guardar para folheto a resposta extensa e completa a quantos simulacros de objecções várias competências nominais houvessem deixado cair nas suas colunas. Preparo esse folheto, que a Renascença Portuguesa editará. Nessa atitude me conservaria, se o Prof. Adolfo Coelho não tivesse feito incidir uma parte do seu depoimento sobre um

artigo meu, publicado na A Águia, e que visa precisamente a explicar, na sua significação sociológica, a nossa novíssima poesia; chamado assim, como que por meu nome, à baila jornalística, sinto-me com o direito e o dever de abrir uma clareira na minha renúncia à publicidade maior e a valer-me, na extensão de um artigo, do seu amável convite. Os argumentos que empregarei contra as objecções

do Prof. Adolfo Coelho servirme-ão, ao mesmo tempo e de sumário modo, de resposta geral a outras adversas referências feitas à Renascença Portuguesa e à nossa nova poesia; porquanto, explicativos como são daquelas, implícita resposta levam a todos os seus inimigos. Isto não exclui


Foto de Clara Azevedo

Há que repeti-lo sem tréguas até convencer disso as novas gerações: a ficção é mais que um entretenimento, mais que um exercício intelectual que aguça a sensibilidade e desperta o espírito crítico. É uma necessidade imprescindível para que a civilização continue a existir, renovando-se e conservando em nós o melhor do ser humano. Mario Vargas Llosa Discurso Nobel, a 7 de Dezembro de 2010

125.º ANIVERSÁRIO DE FERNANDO PESSOA

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Maria do Carmo Vieira*

Toda a Arte é uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa1, escreveu Álvaro de Campos, e nesse diálogo que se expressa entre quem cria, interpretando individualmente uma emoção, e quem recebe o objecto criado, a ele reagindo e por ele deixando-se tocar, reside a força e o sentido da Arte, no seu equilíbrio entre emoção e entendimento, cuja finalidade é «elevar», «libertar», «influenciar». Convivência de acções implicando-se estreitamente porque «Elevar» através da Arte significa o que, e filosoficamente, é capaz de nos iluminar em relação ao que é belo, ao que é bom e ao que é justo; «libertar» porquanto se relaciona com o que nos permite crescer interiormente, estruturando e aperfeiçoando a nossa personalidade, e «influenciar», porque efeito de um diálogo e do seu incontestável benefício, já que, não sendo transitória, a Arte resiste à passagem do tempo, constituindo um legado patrimonial, «para guia da experiência dos vindouros»,2 que ininterruptamente passa de geração em geração, de época em época, imortalizando-se. Por ser imortal é que a Arte não

pode ser perspectivada como mero entretenimento, ditado pela moda ou pela leveza de uma expressão que nada vale. Na definição de Arte por Álvaro de Campos, a literatura é fonte e coluna, e a palavra está sempre presente, explícita ou através de um «silêncio expressivo» cuja procura do seu sentido desvendará a «frase silenciosa» que contém a construção do poema, do romance ou do drama que transmite. E porque hoje comemoramos o nascimento de Fernando Pessoa, e o poema «Aniversário» de Álvaro de Campos foi tão oportunamente escolhido para figurar no cartaz alusivo a este evento, gostaria de o associar a duas outras formas criativas de «dizer» a vida: a música e a pintura que têm como ponto comum o «dizer de forma calada», subentendendo-se a necessidade de desvendar as palavras que se ocultam nessas diferentes formas de o artista se expressar. Para as representar, escolhemos Prokofiev e Van Gogh, respectivamente. Comecemos por Álvaro de Campos, o heterónimo pessoano, «engenheiro naval por Glasgow», que escreveu

1 «A Literatura e as Outras Artes», Álvaro de Campos, in Fernando Pessoa – Obras em Prosa, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar S. A., 1986, pág. 261. 2 «Reflexões Sobre A Arte», Fernando Pessoa, Idem, pág. 218. * (Membro do Conselho de Administração da Fundação Aristides de Sousa Mendes). Licenciada em Filologia Românica, mestre em Literatura de Viagens e Professora do Ensino Secundário. Tem vários livros publicados sobre ensino e viagens; em 2010 publicou o Ensino do Português, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa.


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o poema «Aniversário» a 15 de Outubro de 1929, ou seja, no dia e no mês em que Fernando Pessoa decidiu o seu nascimento, em Tavira, tendo este, no entanto, confessado, em carta dirigida a João Gaspar Simões, que na realidade o escrevera a 13 de Junho, dia do seu aniversário. Fingindo, na despersonalização que caracteriza a sua arte poética, Fernando Pessoa reconhece-se na mesma dificuldade de Álvaro de Campos em integrar-se na realidade da vida. Sendo a nostalgia o sentimento dominante no poema, nele transparece esse paraíso perdido que é a infância, território em que a vida verdadeira acontece porque sonhada sob a protecção familiar que liberta de esperanças, de responsabilidades, de medos, em suma, do acto de pensar que conduz à inevitabilidade da morte. Nostalgia, que na sua origem etimológica significa «regresso» (do grego nóstos) e «dor», «sofrimento» (do grego algos), é também o sentimento que sobressai do concerto nº 2 para violino, em Sol menor, opus 63, de Prokofiev (18911953), compositor e pianista russo, contemporâneo de Fernando Pessoa. Nesta obra iniciada em Paris e estreada em Madrid, a 1 de Dezembro de 1935, um dia depois da morte de Fernando Pessoa, é a nostalgia do território pátrio que constrói o poema musical, escrito por Prokofiev, constituindo a tal «frase silenciosa» a que se refere Álvaro de Campos no seu texto. Van Gogh (1853-1890), pertencendo a uma geração mais velha do que a de Pessoa e de Prokofiev, testemunhará igualmente a adequação do verbo «dizer» à pintura. Referindose, por exemplo, às «suas searas», perante as quais não receia expressar a sua alma, confessa: Quase acredito que estes quadros vos dirão o que não posso dizer em palavras, nomeadamente o que descubro de saudável e revigorante na vida do campo. O seu «Ramo de Amendoeira em Flor», por exemplo, metáfora da beleza, do vigor e da plenitude da infância, é o poema colorido contido na «frase silenciosa» que Van Gogh envia ao seu irmão Théo, e através do qual festeja o nascimento do sobrinho, a quem foi dado o seu nome – Vicente – . Também o pintor grego, da Antiguidade Clássica, Parrásio de Éfeso (séc. V a.C.), indicia essa influência da literatura em toda a Arte ao definir sucintamente que pintar é escrever a vida. Escrever a vida, simulando outra gente, simulando personalidades e outras formas de compreender o mundo foi a arte genial de Fernando Pessoa que, desse modo, se autodefiniu como dramaturgo ou, de forma mais rigorosa, como poeta-dramático, expressão que metaforicamente analisou e

justificou num breve «Vôo outro – eis tudo». E nesse drama em gente revelou Fernando Pessoa «toda uma literatura», que se notabilizou em três nomes de «amigos», com idades próximas da do criador e executor da obra: Ricardo Reis, médico (19 de Setembro de 1887), Alberto Caeiro, guardador de rebanhos e o «Mestre» para todos eles (16 de Abril de 1889), e Álvaro de Campos, engenheiro naval (15 de Outubro de 1890). Eles foram minuciosamente esculpidos nas suas caras e nos seus gestos por Fernando Pessoa, que, na sua imensa solidão, deles se rodeou, ouvindo as suas «discussões», as suas «divergências de critérios», e chorando até ao escrever textos que não assinava com o seu nome, nomeadamente em «certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, de Álvaro de Campos, como confessa o poeta a Adolfo Casais Monteiro, na célebre carta de 13 de Janeiro de 1935 sobre a génese dos heterónimos. Esta tendência para o fingimento em Fernando Pessoa, expressão da sua arte poética, é descrita pelo próprio como algo que o «encanta» e que parece ter atingido o seu auge com a escrita «em êxtase» de O Guardador de Rebanhos e «o aparecimento de alguém» em si, a quem deu «desde logo o nome da Alberto Caeiro», o seu Mestre: «Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim», refere ainda na carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro. Mestre para o criador e para os outros «amigos», Alberto Caeiro aprendeu a vida com simplicidade, contemplando demoradamente a natureza, tocando-a com o seu olhar, sem desejar questioná-la. Por isso Álvaro de Campos, na sua afeição pelo Mestre, notou que o seu «olhar azul não sabia deixar de fitar». Alberto Caeiro foi também quem compreendeu o sentido da expressão «saudades do futuro», palavras do seu criador, ao despedir-se com um lenço branco «da mais alta janela da [sua] casa» dos seus «versos que [partiam] para a humanidade.» Seguro de que tal como «passa a árvore e fica dispersa pela Natureza» ou «murcha a flor e o seu pó dura sempre», também ele, elemento da natureza, poderia afirmar, certo do que dizia, Passo e Fico, como o Universo.

Junho de 2013


APRESENTAÇÃO DO DR. ALFREDO DE OLIVEIRA HENRIQUES, PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA MARIA DA FEIRA NA SESSÃO SOLENE COMEMORATIVA DO 60º ANIVERSÁRIO DA CASA DA VILA DA FEIRA E TERRAS DE SANTA MARIA,

António Gomes da Costa*

Recebemos hoje, na Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, para ser o Orador Oficial desta Sessão Solene, com muita honra e com muita alegria, o Sr. Alfredo de Oliveira Henriques, digno Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e grande e querido amigo de nossa comunidade. Desde logo – e antes mesmo de evocar alguns dos traços biográficos do nosso Presidente – gostaríamos de registrar nosso agradecimento a sua excelência, que é resultante natural da colaboração e do carinho que ano após ano demonstrou por esta casa e, em especial, pelos feirenses do Brasil, pelo apoio que dispensou a muitas das nossas iniciativas e pelo empenho que sempre manifestou para que a cidade da Feira * Presidente da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras.

tivesse no coração dos cariocas uma representação à altura dos pergaminhos, dos valores, das tradições e do prestígio da região de entre o Douro e o Vouga. Por tudo, Senhor Presidente, o nosso muito obrigado. Não vamos estender-nos sobre os traços biográficos do Presidente Alfredo de Oliveira Henriques. até porque muitos dos presentes já o conhecem, desde quando militava no Conselho Nacional do Partido Social Democrata ou na Presidência do Agrupamento de Municípios de Entre Douro e Vouga, ou como membro do Conselho Regional da Segurança Social de Aveiro ou ainda como Mestre da Confraria da Fogaça da Feira. Foram muitos os cargos que desempenhou na Administração Autárquica e nos Foros da Política – e não só, fazendo-o sempre com eficiência e brilho. Atualmente, além da Presidência da Câmara, ainda exerce um sem número de outros cargos a testemunhar a sua vocação de servir e a sua capacidade de realizar. é representante efetivo dos Municípios de Entre Douro e Vouga na Comissão de Aconselhamento Estratégico dos Programas Operacionais Regionais; é Vogal da Associação de Municípios das Terras de Santa Maria; é Secretário da Mesa do Conselho Geral do Centro de Estudos e Formação Autárquica; é Presidente do Conselho de Administração do Instituto Superior de Entre Douro e Vouga; é Membro do Conselho Geral da Associação Nacional de Municípios e da Unidade de Gestão do Programa Operacional da Região Norte; é Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Suldouro e Membro do Conselho

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Dr. António Gomes da Costa no uso da palavra.

Regional da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte. Estamos certos de que um Feirense de Escapães, com um currículo tão enriquecedor e aliciante, mesmo deixando nos próximos meses a Presidência da Câmara Municipal, não deixará de continuar a trabalhar e a defender os interesses da gente Feirense.

Obrigado por ter vindo, Senhor Presidente. e obrigado pelo que fez pela nossa Casa e pela Terra onde muitos de nós nasceram – e a que todos nós estamos ligados pelos vínculos do sangue ou pelos afetos da alma.


SESSÃO SOLENE DO 60º ANIVERSÁRIO

Ernesto Pires de Boaventura*

Excelentíssimo Senhor Dr. Alfredo de Oliveira Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira; Excelentíssimo Senhor Dr. Antonio Gomes da Costa, Presidente da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras;

Demais Membros da Mesa;

Minhas Senhoras e Meus Senhores

É natural que as nossas primeiras palavras sejam destinadas àqueles que contribuíram de forma marcante para o desenvolvimento de nossa associação. Há precisamente 60 anos, surgiu a ideia de fundar uma casa que seria, no Brasil, uma espécie de Consulado das Terras de Santa Maria da Feira. O ponto de partida foi uma visita do Comendador Manuel Lopes Valente à sua terra natal, a Freguesia de Sanfins, do * Presidente da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria.

concelho da Vila da Feira, em 1952, depois de uma ausência de 24 anos. Assim, no dia 12 de julho de 1953, o Ilustre Comendador promoveu uma reunião em seu escritório, situado no centro Rio de Janeiro, à qual compareceram alguns Feirenses. Estava fundada a Casa da Vila Da Feira e Terras de Santa Maria, com a missão de manter vivas as tradições Feirenses em Terras de Além-Mar. Mas faltava uma sede. Isso foi resolvido no dia 3 de Novembro de 1954. Quando, foi assinada a escritura da compra de um palacete, localizado na rua Haddock Lobo, 195, um belo prédio de estilo amouriscado, que dava uma certa nobreza aos solares da época. Se fizermos a retrospectiva da nossa história, verificaremos que não apenas cumprimos seus objetivos. Na verdade eles foram ultrapassados, à medida que novas realidades e novos desafios foram surgindo. Nesta opoutunidade nada melhor que repetir algumas palavras de um dos maiores líderes da Comunidade LusoBrasileira no Rio De Janeiro, o Dr. Antonio Gomes da Costa, Presidente da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, quando disse ele: “Às vezes, não sabemos chegar perto daqueles que transformaram sonhos da comunidade em realidades concretas para dizer-lhes: Obrigado!”.

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Mesa de Honra.

Por isso, é muito importante estar aqui hoje na presença do Dr. Alfredo de Oliveira Henriques, Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira para lhe dizer muito obrigado por tudo. Em 1991, quando da sua visita a esta casa, onde foi Orador Oficial na Sessão Solene, estabeleceu-se um estreito relacionamento entre a Câmara Municipal de Santa Maria da Feira e a Casa da Vila da Feira do Rio de Janeiro. relacionamento esse que perdura até hoje. Desde aquele ano, todas as solenidades de aniversário da Casa da Vila da Feira tiveram como orador alguma personalidade vinda das Terras da Feira em representação à Câmara Municipal, promovendo assim um intercâmbio único e pioneiro na nossa comunidade.

Dr. Alfredo de Oliveira Henriques, nas despedidas, há, naturalmente, uma “pontinha” de melancolia, uma certa tristeza dentro de nós. Mas também é o momento de expressar com muita alegria o nosso reconhecimento pelo trabalho que foi feito por aquele que parte. Sabemos que Vossa Excelência deixará o cargo que ocupa há vários anos à frente da Câmara de Santa Maria da Feira, período em que dinamizou aquela região. Ao fim deste mandato encerra-se um ciclo, não pelo desejo da sua comunidade ou de seus correligionários, mas por imposição de novas normas administrativas, de acordo com a reforma política do País.


Esta despedida já era esperada, mas nem por isso é menos sentida: iremos perder um parceiro que geriu com profissionalismo e competência a Câmara Municipal das Terras da Feira. Mas sabemos que continuaremos a ter um grande amigo. Dizer 0brigado à pessoa da qual gostamos e a quem muito respeitamos é o primeiro impulso de uma verdadeira amizade. Obrigado, Dr. Alfredo de Oliveira Henriques, que dá nome a este Salão Social. Obrigado também à sua esposa, Senhora Maria Dorinda Reis Vieira Oliveira Henriques, pela amizade, pelo empenho em servir a esta casa. É importante também agradecer a fidalguia com que foi recebido o Grupo Folclorico Almeida Garrett, pela Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, durante sua digressão a Portugal em 2012, onde teve como base a freguesia de Espargo. Lembramos também o apoio dado na viagem de 1994. É preciso saber quando uma etapa chega ao fim. Tudo passa, tudo se transforma, e assim segue a vida.

Parabéns a você... e muitos anos de vida.

Um Homem Sábio não espera que o reconheçam como tal, não espera que reconheçam o seu trabalho. Esse reconhecimento vem naturalmente. Desejamos sinceramente muito sucesso em sua nova etapa de vida. Para encerrar, agradeço a Deus, aos meus companheiros de Diretoria, aos Membros do Conselho Deliberativo, da Assembléia Geral, do Conselho Fiscal, as Senhoras do Departamento Feminino, aos componentes do Grupo Folclórico Almeida Garrett e do Rancho Folclórico Infanto-Juvenil Danças e Cantares das Terras da Feira, aos Funcionários, aos Associados, aos Amigos, à Imprensa. Não poderia esquecer também de minha família e de todos que fazem com que esta casa seja um marco Santamariano no Brasil. 43

Bem haja!


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“Eu gosto de Escrever” Ilda Maria*

Eu gosto de escrever assim, Assim no meio das flores mimosas E gosto de sentir as deleitosas, As suaves essências do jardim! E gosto de escrever entre as crianças Buliçosas e vivas, sãs, bonitas, Qual bando curioso de avezitas Loiras, morenas, sujas e de tranças. E gosto de as ouvir enquanto escrevo, Tentando adivinhar o que é que faço E gosto de escrever assim, cheia de enlevo Os versos que com elas entrelaço! E dão opiniões, as mais catitas E comentários, que a dizer me atrevo Que são desse momento as mais bonitas As mais belas estrofes que eu concebo! Eu gosto de escrever assim, Assim, no meio das flores mimosas E gosto de sentir as deleitosas, As suaves essências do jardim! E gosto de escrever entre os alegres Os maviosos cantos e trinados

Das aves à compita nos telhados, À alvorada e à luz e à vida entregues! E gosto de escrever por entre o toque, O sopro leve dum saudoso Outono De folhas a tombar num amoroso choque C’oa Natureza viva e o derradeiro sono! E gosto de escrever seja onde for A tudo o que me ofereça inspiração! Eu gosto de escrever com todo o amor Eu gosto de escrever com o coração!

*Poeta Faleceu em 20/07/1981


SESSÃO COMEMORATIVA DO 60.º ANIVERSÁRIO DA CASA DA VILA DA FEIRA E TERRAS DE SANTA MARIA RIO DE JANEIRO, BRASIL

Alfredo de Oliveira Henriques*

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

É para mim uma honra e uma grande satisfação regressar, onze anos depois, a esta casa – a Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria – onde sou sempre recebido de forma tão calorosa e genuína. No passado dia 10 de junho – Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas – a Senhora Presidente da República do Brasil, Dilma Rousseff, em visita oficial a Portugal, disse “ver em Lisboa um parente em cada esquina”. Pois também eu me sinto em família sempre que venho cá. Sinto que todos são meus parentes, pela forma excecional como sempre fui recebido e acarinhado, neste “cantinho” de Portugal, e pelo acompanhamento que sempre tive nesta belíssima cidade do Rio de Janeiro. *Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira - Portugal.

Sinto-me em família porque, para além da amabilidade característica e simpatia natural das pessoas deste país irmão, nesta casa sente-se Portugal e o cheiro da terra de Santa Maria da Feira – terra trazida da praça de armas do nosso castelo medieval, em 1959, pelo então presidente da Casa da Vila da Feira, Sílvio António da Silva. Um gesto simbólico, mas de grande significado para mim e para todo o Município de Santa Maria da Feira. Estive pela primeira vez nesta Casa em janeiro de 1986, ano em que assumi a presidência da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira. Vim para assistir à recriação da Festa das Fogaceiras. Regressei em 1991, para as comemorações do aniversário da Casa da Vila da Feira. Foi a partir desta data que estreitámos relações institucionais e de amizade que perduram até hoje, e espero que se mantenham e fortaleçam no futuro. Voltei a esta Casa em 1996 e em 1997 – ano em que gentilmente batizaram este salão nobre de “Salão Alfredo Henriques”. Gostaria de sublinhar que continuo a sentir-me muito honrado por terem ligado o meu nome a um espaço tão prestigiado e emblemático como este, por onde já passaram inúmeras figuras ilustres, entre as quais o Senhor Presidente da República de Portugal, Aníbal Cavaco Silva. Regressei a esta Casa em 1999 e, por último, em 2002 – um ano antes das comemorações dos 50 anos da Casa da Vila da Feira. Entretanto, passaram-se onze anos de ausência, mas o Município de Santa Maria da Feira esteve sempre

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dignamente representado nestas comemorações. Do outro lado do Atlântico, fui acompanhando com grande interesse e entusiasmo o trabalho meritório desenvolvido por esta instituição, que desde a sua fundação, em 1953, estabeleceu laços fortes de amizade e união à então Vila da Feira – cidade e concelho de Santa Maria da Feira desde 1985.

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Minhas Senhoras e Meus Senhores, As instituições valem pelas pessoas que têm e pelo trabalho que desenvolvem. A longevidade da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, que hoje assinala 60 anos, exemplifica isso mesmo: um trabalho de continuidade, garantido pelas sucessivas direções e colaboradores ao longo de seis décadas, que souberam manter vivos os ideais que presidiram à fundação desta Casa. Com orgulho e satisfação, não me canso de publicitar, em diversas ocasiões, que aqui é recriada anualmente a mais emblemática festividade religiosa do Município de Santa Maria Feira, bem como as tradições etnográficas e a gastronomia. E não me canso de sublinhar que nesta Casa são, efetivamente, fomentados os laços afetivos entre portugueses, brasileiros e luso-descendentes. Numa efeméride tão simbólica como esta que hoje aqui assinalamos, não poderia deixar de recordar os fundadores da Casa da Vila da Feira. Nomes como Alfredo Oliveira Bastos, Albertino Alves Ribeiro, Manuel Lopes Valente, Eduardo Almeida, António Silva Campos, José Tomás dos Reis, José Manuel Santos Sá e Domingos Silva Santos são incontornáveis quando nos reportamos à génese desta instituição. Foi graças a eles, ao seu amor à terra e à vontade e determinação em preservar esta ligação afetiva a Portugal que hoje nos encontramos aqui a celebrar esta efeméride, numa sessão repleta de solenidade. No entanto, todos os dirigentes, colaboradores e associados tiveram, e continuam a ter, um papel crucial na sustentabilidade, afirmação e notoriedade da Casa da Vila da Feira. Na pessoa do Senhor Ernesto Boaventura, que pela segunda vez preside a esta Casa, e de todos aqueles que já presidiram a esta instituição – Alfredo de Oliveira Bastos, Sílvio António da Silva, Benjamim Ferreira da Rocha, Sebastião Pires Barbosa, José António da Silva Júnior, Roberto Gonçalves Lima, Ramiro Coelho da Luz, Alberto Fontes Tavares, José Luiz da Silva Oliveira, Adão Ribeiro dos Santos, Hermenegildo Martins dos Santos e António Simões da Conceição – saúdo todos aqueles que, direta ou indiretamente, contribuíram para esta nobre causa. A todos, muito obrigado!

Permitam-me destacar – porque é justo e merecido – o trabalho desenvolvido pelo Departamento Feminino, atualmente presidido por Roselene Boaventura. Todas as mulheres do Departamento têm sido inexcedíveis na organização de eventos, na preservação das tradições e na dinamização de projetos de índole social – sempre atentas aos detalhes, polivalentes e mobilizadoras nas causas que abraçam. O trabalho que fazem na Festa das Fogaceiras, com tanto brio e tanto afeto, é disso um bom exemplo. A todas, os meus sinceros parabéns e o meu reconhecimento! Também o Departamento Artístico merece especial referência, sobretudo pelo esforço que faz na preservação da história e das tradições etnográficas das Terras de Santa Maria, através do Grupo Folclórico Almeida Garrett e do Rancho Folclórico Infanto-Juvenil Danças e Cantares das Terras da Feira. O Grupo Almeida Garrett já fez quatro digressões por Portugal, a mais recente em julho e agosto de 2012 – todas elas com o apoio do Município de Santa Maria da Feira. E que belos momentos proporcionaram nas várias cidades portuguesas onde atuaram com a alegria contagiante que tão bem caracteriza este nosso povo irmão! Porque reconhecemos e valorizamos o trabalho da Casa da Vila da Feira e os seus projetos, não hesitámos em recomendar a atuação do Grupo Almeida Garrett num programa líder de audiências do canal público de televisão RTP, realizado em direto de Santa Maria da Feira, em agosto do ano passado. Em janeiro deste ano, a Casa da Vila da Feira foi, mais uma vez, por sugestão do Município de Santa Maria da Feira, destacada num programa da RTP Internacional. Numa intervenção telefónica, o presidente Ernesto Boaventura, que é também membro da Confraria da Fogaça da Feira, falou desta palavra tão portuguesa que é a “saudade”, falou do amor ao seu país de origem e do trabalho desta instituição, em particular da recriação da Festa das Fogaceiras no Rio de Janeiro. No final, confidenciou que prefere a Fogaça – pão doce típico de Santa Maria da Feira – regada com um bom Vinho do Porto. E quem não gosta, meus amigos?! O Município de Santa Maria da Feira continua empenhado em fomentar esta aproximação cultural entre Portugal e o Brasil, com diversas instituições e numa perspetiva mais global. Há dezasseis anos que apoiamos a realização do Festival de Cinema Luso-Brasileiro, organizado anualmente pelo Cineclube da Feira – considerado, aqui no Brasil, um festival


de Classe A, e cuja última edição integrou a programação do Ano do Brasil em Portugal. Também o Festival Internacional de Teatro de Rua de Santa Maria da Feira “Imaginarius” – o maior festival de Artes de Rua realizado em Portugal – contou este ano com a participação de duas companhias brasileiras, permitindo estreitar relações com a Fundação Nacional de Artes do Brasil – a FUNARTE –, que esperamos tenham continuidade em edições futuras do Festival. Minhas Senhoras e Meus Senhores, Há mais de uma década que, do alto do seu castelo medieval, Santa Maria da Feira perspetiva um novo olhar sobre o seu território, sustentado por uma dinâmica cultural diferenciadora. Hoje, Santa Maria da Feira é, indiscutivelmente, uma referência nacional e internacional no que à Cultura diz respeito.

Aspeto do Salão Dr. Alfredo Henriques.

Eventos de grande dimensão, como a Viagem Medieval em Terra de Santa Maria, o festival Imaginarius, o parque temático de Natal Terra dos Sonhos e a secular Festa das Fogaceiras posicionaram Santa Maria da Feira como destino privilegiado para os amantes do Turismo Cultural, Criativo e Religioso. A Viagem Medieval é a maior recriação histórica da Europa. Atrai anualmente cerca de 500 mil visitantes a Santa Maria e é, desde 2011, uma organização autossustentável, ou seja, paga-se a si própria, pelo que a sua realização já não depende dos cofres do Município. No passado fim-de-semana, a Viagem Medieval foi distinguida com dois prémios, no âmbito do concurso nacional Gala dos Eventos. Ganhou o prémio “Melhor Evento Cultural de 2012” e o prémio “Melhor Animação/Performance Artística” – distinções que nos enchem de orgulho e nos motivam a fazer mais e melhor.

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Aproveito para convidar todos aqueles que, entre 1 e 11 de agosto, se encontrem de férias em Portugal a participar neste evento de recriação da época medieval, que durante onze dias transforma as pessoas e a cidade de Santa Maria da Feira. Eventos culturais como a Viagem Medieval impulsionaram a regeneração urbana de Santa Maria da Feira, a capacitação artística local, o envolvimento da comunidade nos projetos culturais e a crescente atratividade sobre públicos e criadores.

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Uma vez consolidado este percurso, pretendemos agregar todos estes recursos e conteúdos criativos de forma organizada, fixar todas estas competências e internacionalizá-las, fazendo de Santa Maria da Feira um polo de produção cultural. Nesse sentido, vamos iniciar brevemente a construção de um centro de criação artística multidisciplinar – a Caixa das Artes –, que será dotado de residências para artistas e espaços para criação e apresentação de projetos artísticos. Desta forma, assumimos a aposta nas Indústrias Criativas como fonte de desenvolvimento local, conjugando criatividade, competências e talento individual com potencial para a criação de trabalho e de riqueza. Uma alternativa ao setor industrial, que se mantém dominante no concelho de Santa Maria da Feira, mas não apresenta o vigor de outros tempos. A conjuntura que se vive hoje em Portugal e na Europa é preocupante e requer engenho e persistência para enfrentar e contornar os problemas associados a uma crise económica e financeira à escala global, sendo o desemprego a face mais visível e mais preocupante. Muitos portugueses, alguns deles feirenses, têm vindo a procurar novas oportunidades noutros países, e o Brasil tem sido um dos destinos mais atrativos para esta nova vaga de emigração – sobretudo jovens empreendedores, com boas qualificações, essencialmente em áreas como arquitetura, engenharia e gestão, mas também muitos estudantes em programas de Mestrado. O acordo assinado a 10 de junho passado, em Portugal, que permite o reconhecimento recíproco dos cursos de Engenharia e Arquitetura em ambos os países, facilitará a vida de muitos jovens empreendedores portugueses, que procuram novas oportunidades de trabalho numa das principais economias à escala planetária e que nos próximos anos vai estar no centro de todas as atenções, com a realização do Mundial de Futebol em 2014 e dos Jogos Olímpicos em 2016.

As relações históricas e culturais entre Portugal e o Brasil perduram há séculos e foram sempre marcadas por influências mútuas nos diferentes contextos políticos, económicos e sociais, desde o período da colonização, passando pela mudança da corte de Dom João VI para o Brasil, em 1805, altura em que a emigração portuguesa se acentuou e perdurou até meados do século XX, com um grande impacto na economia, cultura e arquitetura de ambos os países. Muitos emigrantes portugueses que fizeram fortuna no Brasil acabaram por investir também no seu país de origem, criando negócios, construindo palacetes e promovendo obras sociais e de beneficência, como escolas, hospitais e lares de terceira idade, tendo um papel importantíssimo na dinamização da nossa economia e na proteção social. Refira-se que foi graças à vontade e determinação de um grupo de 43 emigrantes portugueses, na maioria comerciantes, que, em 1837, foi criado o Real Gabinete Português de Leitura, aqui no Rio de Janeiro – uma das mais prestigiadas instituições de promoção de Portugal no Brasil, com um acervo de valor incalculável e uma beleza arquitetónica digna de registo. No final do século XX, foi a vez de Portugal acolher milhares de imigrantes brasileiros – período em que se intensificaram as influências da música, da gastronomia, da moda, dos jogadores de futebol e das telenovelas brasileiras no nosso país, que ainda hoje lideram audiências. A história é cíclica e a comprová-lo está uma nova vaga de emigração de portugueses para o Brasil, atraídos pelo vigor económico, mas também pelas afinidades culturais e linguísticas deste país. Muitos têm cá amigos e familiares, que os poderão acolher e acompanhar na chegada – o que pode ser um fator determinante na hora de decidir emigrar. Por isso, tal como outrora, também nesta nova fase, a Casa da Vila da Feira poderá ter um papel fundamental no acolhimento e no reforço dos laços de amizade entre os dois países irmãos. É esse o meu desejo e é este o apelo que vos faço. Minhas Senhoras e Meus Senhoras, Esta será a última vez que participarei nesta sessão comemorativa enquanto Presidente da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira. Terminarei o meu sétimo mandato no final de 2013, finalizando um percurso de 34 anos no Município, seis deles como vereador e 28 como presidente – e saio com o sentimento de dever cumprido.


Por isso, nesta espécie de despedida antecipada, gostaria de reiterar o orgulho que sinto nas pessoas desta casa e no trabalho que desenvolvem no seio desta nobre instituição. Agradeço, uma vez mais, a forma como fui acolhido em

todas as ocasiões que tive o privilégio de partilhar convosco momentos marcantes e, por isso, inesquecíveis como este. A todos, muito obrigado e até uma próxima oportunidade!

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Missa Solene.


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SERENATA Mário Anacleto*

Quem me dera sentir tua cabeça no colo de meu braço e deixar-te os olhos sonhar com estrelas de meus dias balbuciar-te coisas e loisas como aquelas desconexas sem rei nem roque que não sofres e só te dão alegrias

gostava que ouvisses mais de perto o mar que embarca que me leva no porão batendo o ritmo tenso das galés Quem me dera saber teus beijos na rampa de meu peito, acarinhar na alma tua vida, cada dia, da cabeça aos pés!

É tórrido o fogo que te desperto em suaves labaredas que até perpassam de cores os olhos que cerraste leve É Novembro meado, lá fora chove e não tarda a neve ...

Pudera banhar-te no meu perfume de lavanda e alecrim Ser o arbusto no monte, com que me deito para te embalar no mesmo sonho que vai para além da lua e é feito de luar!

* Licenciado em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Mestre em História de Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto sob o tema “Arquitectura e Música em S. Bento da Vitória”. Diploma de Estudos Avançados em Comunicação Organizacional pela Universidade Complutense de Madrid, com o Prof. Dr. António Sanchez Bravo. Doutor em Musicologia e interpretação pela Universidade Nacional de Música de Bucareste. Professor; Cantor; Investigador; Conferencista. Faleceu em 08 de Novembro de 2010.


JÚLIO CÉSAR ALVES MOREIRA 1899 – 1978 Director e fundador de “A Tradição”

Carlos Alves Moreira*

Situar o Homem e cidadão, Júlio César Alves Moreira (1899-1978), meu Pai, enquanto fundador, director e editor de “A Tradição”, órgão da imprensa local que se publicou ao Sábado, em Vila da Feira, é o trabalho a que me proponho. Esta não é porém, para mim, tarefa fácil. E por diversos motivos. Porque não sou desse tempo. E o tempo apressase, esvai-se num instante, digo eu agora que a idade já vai pesando. Já lá vai quase um século sobre os acontecimentos. No decurso desse tempo quase tudo se apaga. O jornal fez a sua trajectória sob sua direcção de 2 de Julho de 1932 a 28 Dezembro de 1935. Mas, sobretudo, não é fácil porque sou à partida uma voz suspeita, condicionada, ao dispor-me a falar de meu próprio Pai a cuja suave memória me liga indelével afectividade. Mas ajuizadas e, colocadas a cru, estas condições e as limitações emergentes de que antes dou conta, acho que devo avançar e tentar desbravar o caminho. Eu próprio não nego o aprazimento que, por vezes tenho tido em o ir descobrindo ao palmilha-lo. A vereda por onde me conduzo é apertada e sinuosa, dela não se vê o fim mas, a cada esquina que se dobra, a descoberta oferece perspectivas novas, aliciantes, para mim diferentes. * Jurista do Instituto Nacional de Saúde.

O leitor avisado da limitação, nisso justificará e perdoará a exageração que porventura surpreender ou adivinhar nas palavras alinhadas, fruto que atribuirá a uma maior generosidade do autor na entrega. Na certeza de que vou procurar ser breve e tanto quanto possível objectivo, apesar das naturais limitações de apreciação decorrentes das condições de tempo e do modo. Tocando os aspectos que, em meu entender, melhor possam aproximar e revelar o Homem e cidadão, tal como o compreendi no exercício de Director e Editor. A propósito: posso começar por reconhecer que tanta coisa se passou entretanto que não alcanço e que, nas circunstâncias, me podiam ajudar... De que não ficou memória ou a ela não tenho agora acesso. E a lembrança que do Jornal se foi fazendo apagou-se entrementes. Afinal e num certo aspecto porém, continua a ideia da sua existência, a recordação do Jornal tal como era. O que sugere que eles (jornal e o Director) enfim não passaram em vão. O jornal afirma-se pelo registo que faz das coisas que lhe interessam e representa uma vontade revelada nesse sentido. Essa é a principal memória, a mais relevante, que dele sempre se pode fazer. O jornal intervém igualmente ao nível da sociedade para nela causar insuspeitos impactos e influências que a impressionam, modificam e, porventura, transformam. Só que estes a esta distância não são perceptíveis a olho nu. Confundem-se no tumulto da evolução. Dificilmente se distinguem e podem sinalizar-se os resultados em termos de causa efeito.

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52 Dona Maria Felicidade Correia Alves de Sousa Moreira

Júlio César Alves Moreira

O trabalho realizado pelos jornais e, designadamente, pela”A Tradição” é pois e sobretudo, um referencial da época. Disso decorre agora um dos principais interesses dele. Este é o reconhecimento do seu alcance, perenidade e significado no contexto em que viu a luz.

Acalentei a nostalgia com a volta que dei ao jornal. Uma volta simples só para me fixar no seu aspecto, dele reter uma imagem ou uma ideia. Para tanto quanto possível traçar uma forma da relação a estabelecer, nele tentar vislumbrar a influência que tem a pessoa de um“director” na publicação que conduz, nos factos que passaram e ali se assinalaram. Assistir ao fundar dos factos, da realidade figurada e ao seu desvanecer por efeito do tempo.

Já quase todas as personagens que com ele conviveram ou nele aparecem assinaladas desapareceram. Porém, o jornal permanece no romance que semanalmente foi enredando. Agora, inofensivo, mas vivo nos registos que fez e reteve, nas ideias que aprofundou e difundiu, o orientaram e foram erguendo o paradigma que o distinguiu na caminhada. Nisso continua intacto, imutável. As bancas ficaram para trás. Agora encontrámo-lo nos tombos à espera que eventualmente aí o busquem, por ele se interessem e o estudem, nele procurem as ideias, talvez os autores, as notícias, marquem as pedras onde fomos colocando o pé para alcançar o patamar acima, aonde nos erguemos. E concluam sobre o seu efeito nas pessoas, na sociedade que atravessou e teve seguimento; no fundo, sobre a vida filtrada por quem, atento, nela vasculhava e distinguia as cenas tal como então fluíam, plasmadas no brilho dos instantâneos revelados. Diversa e sempre interessante, diga-se.

Lá encontrei, na vista de olhos que nele passei, imaginem, velhos amigos que me podiam explicar outros valiosos e ocultos detalhes, as coisas diferentes e desconhecidas do jornal, já que passaram ao lado dele, a que agora procuro aceder, e eleger um sentido. Por que na explicação delas fico a magicar sem remédio e pressinto que tudo podia ser diferente, me fazem falta. Há quanto tempo os não vejo, ou falo ou deles me esquecia; sonho, ouço a voz conhecida e roufenha das velhas estórias à mesa do café, como se brotassem na origem arrastadas e lentas da boca de algum hábil e popular contador. Admite-se que o director de um jornal não será por via de regra a simples inscrição de um nome, um mero e formal adereço; mas lhe acrescenta qualquer coisa concreta que talvez ao desfolhá-lo possa vislumbrar-se, palpar-se. E pode ter


Estabilidade interna, do ponto de vista da execução, o que tem a ver com os conteúdos que lhe dão o sentido; e externa na medida em que um jornal aponta a um fim, tem um destinatário, um público a que se dirige e deseja alcançar, para nele formar um núcleo interessado e expectante. Deseja ser esperado, lido e eventualmente debatido. Com calor. E isso é hoje e já era então, naqueles tempos remotos de dificuldade, condição de vida. Um jornal, não importa se da imprensa local, rasga sempre um sulco mais ou menos profundo, tempera, condiciona e anima. Influi no dia a dia a vida da sociedade onde desliza devagar e deseja ancorar. Ás vezes perdura. Constitui uma expressiva e estimável manifestação da vida de uma comunidade. Para isso é desejável que seja parte num diálogo profícuo, aceso, interessado. Um jornal tem de estar atento ao torvelinho que se desenrola perante os seus olhos para efeito de o escalpelizar, distinguir a notícia para depois a objectivar em letra de forma. Na consistência que vai assumindo e fixando, sempre se distinguem os aspectos particulares donde eventualmente releva uma especial importância. Nesse mester vê, analisa e regista, faz uma fotografia viva e continuada, que se quer nítida, dos passos individuais ou colectivos; averba os acontecimentos ainda que infaustos, assinala as perplexidades. Aprecia e agrega os episódios segundo as afinidades vislumbradas, deles pretende fazer um cadastro real e palpitante, por vezes singular. Emite opiniões, encandeia, ilumina e anima as ocorrências, fá-las desfilar em estonteado corrupio. Como se fossem contas de um caleidoscópio. Disponibiliza-as assim marchetadas à visibilidade e apreciação do leitor.

Visita às Barragens do Alto Douro com os filhos Lúcia e Carlos.

uma relevância que não pode negligenciar-se. Quem imagina e acolhe a necessidade de um jornal, distingue os vários efeitos que anseia produzir, associa-lhe um fim específico, personaliza a individualidade que lhe vai dar a apropriada cor. E pretendese que ela como tal se afirme, influencie, o caracterize. E, no mesmo sentido, o guie depois estrada fora, estabilizado, sem ceder aos baldões inerentes da azinhaga. A barca que conduz, contra ventos e marés, é frágil pode adornar num deslize na primeira volta e perder-se sem glória.

A apreciação de cada episódio depende sempre de quem o observa, seu autor e, claro, depois do próprio leitor. As cores respectivas, mais ou menos vivas são identificadas em conformidade... Daqui decorre uma consequência: o director deve assegurar que não se perca esta acção e intencionalidade. Razão que, a final, justifica o título e pode resultar indelével no caminho. Coisa necessária é pois, a meu ver, conhece-lo, entender os trilhos por que optou e se conduziu e as razões por que o fez, evidenciar os traços que marcaram a sua vida e eventualmente foram condicionando a sua personalidade. Na pressuposição de que as luzes que lhe iluminaram a vereda

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no dia 1 de Fevereiro de 1908, que deve ter tido o impacto de uma bomba, despoletada ao retardador, no País rural e atrasado e em casa da generalidade dos Portugueses com dificuldades de entender a dimensão do que havia acontecido. E, certamente, de meu avô, político local monárquico, activo e influente, tendo constituído seguramente um episódio traumatizante. A forma traiçoeira e vil, violenta e injusta, como ocorreu o assassínio do Rei D. Carlos e do Príncipe herdeiro D. Luís Filipe, prenunciando o fim do regime, talvez mais tenha confirmado Júlio Moreira, na sua simpatia e no seu apoio à monarquia e ao rei, cujo domínio ia perdendo porém consistência.

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À medida que foi crescendo e tomando consciência do seu posicionamento mais se deve ter arreigado a convicção. E foi-se fazendo um partidário crescentemente mais informado e assumido. Conhecido. Assistiu depois ao advento, em 5 de Outubro de 1910, e à experiência da primeira República e ao período subsequente do governo de Sidónio Paes e ao seu desenvolvimento tumultuoso, acidentado, controvertido. Dela não ficou com uma boa memória. Frequentes vezes a isso aludia quando, a propósito, se referia à sua desconfiança sobre a “democracia” em Portugal. ”Eu já de lá venho…”, dizia.

Visita às Barragens do Alto Douro com o Engenheiro Castro e dois funcionários.

de alguma forma possam agora resultar explícitas no produto final. Júlio Moreira nasceu em Janeiro de 1899. Ainda Portugal era uma monarquia e D. Carlos o Rei. Esta simples circunstância do tempo do nascimento talvez tenha marcado decididamente a sua trajectória como cidadão e político. Porque me confidenciou (anos LX) um amigo seu, próximo, de juventude e de toda a vida, António Silva, de seu nome e que foi da Azenha, com quem desabafava e dialogava nas dificuldades e onde buscava um conselho nas voltas da vida, como que a justificar a própria opção ideológica: “…nasci na monarquia, sob a bandeira azul e branca, e com ela queria morrer… como o seu Pai…”. Porque além de serem amigos e companheiros desde os bancos da escola, esta era uma opção firmada, em que ambos comungavam e a que se mantiveram fiéis, penso, até ao fim. Mas também as opções políticas de ambos, segundo as circunstâncias, correram em paralelo vida fora. Ainda criança deve ter sido confrontado com a notícia brutal do regicídio, ocorrido no Terreiro do Paço, em Lisboa,

Gaspar Moreira, seu Pai, conhecedor das dificuldades da vida da lavoura e sendo licenciado em direito e subsistindo pelo seu trabalho de advogado, era natural que quisesse que os filhos também pudessem assegurar, através de uma formação escolar mais avançada, alguma autonomia de vida. O ensino era uma das escassas portas que então se abriam para a vida, que começava a ser explorada. E não olhava a despesas para que os filhos nela pudessem entrar, abrindolhes o acesso a estabelecimentos de ensino escolhidos. Tanto mais que seu irmão mais velho, Guilherme, de quem era próximo e a quem até, por via dessa proximidade, havia de dar refúgio na sua casa da Praça quando foi perseguido, na


segunda década do século passado, na sequência de haver pertencido e sido ministro da Justiça no governo da ditadura do General Pimenta de Castro (de Janeiro a Maio de 1915) já disso fora exemplo e obtivera, por esse caminho, o acesso ao ensino universitário. Chegara a Professor distinguido e respeitado da Universidade de Coimbra, Instituição de que igualmente havia de ser Reitor. Júlio era o mais velho de sete irmãos. Após a instrução primária prosseguiu estudos secundários, tendo frequentado o Grande Colégio Universal no Porto. De igual modo, aliás, todos os seus irmãos puderam estudar para além da instrução primária. Alguns conseguiram uma licenciatura de que se valeram, outros, por razões que desconheço e nos quais se inclui Júlio, não o conseguiram. Ficou dito que Júlio Moreira era monárquico. Tendo eu procurado encontrar, sugerir talvez, eventuais justificações para essa sua opção, sendo certo que se trata de escolhas marcadamente subjectivas, cuja explicação pois é difícil de alcançar. Do que não há dúvida é de que militava nessa ideologia convictamente. Seu Pai também o havia sido mas, na família, ficou a ideia de que, após a implantação da República, verdadeiramente empenhado nesse modelo político era, agora, o filho mais velho. Assinava e coleccionava revistas e publicações atinentes que o mantinham informado; algumas delas vieram ainda há pouco tempo, praticamente um século depois, ao conhecimento de familiares, descendentes, ao se debruçarem sobre os “papéis” arrumados no escritório e/ou arquivo que era de seu Pai, meu Avô. Do meu (nosso) conhecimento é que foi assinante do diário “A Voz”, jornal de feição assumidamente monárquica e católica, mas que era também identificado com Oliveira Salazar e o “Estado Novo”. Era da direcção do jornalista Pedro Correia Marques. Foi sua leitura de todos os dias, ao serão, depois de jantar. Talvez desde o primeiro número, porque desde sempre me lembro de o título ser diariamente levantado da caixa do correio. Podia não haver mais correspondência, mas “A Voz” estava lá sempre. Até o jornal se extinguir em 1969. Ficou também conhecida por tradição familiar a sua obstinação e intransigência quando se tratava de fazer a defesa destas ideias, ele que era uma pessoa cordata e pacífica, avessa a conflitos e a grandes discussões.

Por via da sua opção pela monarquia ainda era um jovem quando ocorreu o movimento que ficou conhecido pela “Monarquia do Norte” (entre 19 de Janeiro 11 de Fevereiro de 1919), acção em que, naquela idade, possivelmente, teria depositado alguma esperança e que viria a marcar a sua vida. Este exercício traduziu-se numa tentativa de golpe militar que pretendia a implantação da Monarquia. Tendo eclodido no Porto estendeu-se à parte norte do País com a fronteira a sul a aproximar-se de uma linha entre o Viseu e o Rio Antuã. Na sequência dele o Movimento pôde manter hasteada no Porto até 11 de Fevereiro a bandeira azul e branca. O acto traduziu-se numa reacção, quase espontânea, de resistência à violência e às perseguições que, conduzidas pelo Partido Democrático Português (PDP), campeavam no País contra os monárquicos, o clero e a Igreja. A resistência viria, porém, a frustrar-se sobretudo depois do seu insucesso em Lisboa, onde a revolta foi jugulada, em Monsanto, logo a 22 de Janeiro. O movimento a Norte aguentou-se e envolveu a mobilização de tropas (embora se reconhecesse que eram poucas e mal armadas) e deu origem a confrontos em várias frentes algumas bem perto de nós. Apesar da inconsistência que logo à partida se lhe reconhecia e da falta de credibilidade do seu mentor, capitão Paiva Couceiro. Este era um militar que se havia distinguido nas lutas de pacificação de Africa, da parte de Africa sobre que Portugal tinha pretensões de posse, por ocasião das disputas atinentes ao chamado mapa cor-derosa. Mas tratava-se de um militar condecorado na ocasião, mas que era havido como um espontâneo, arrebatado e impulsivo, incapaz de levar aquela acção de contra vapor, mas sempre complexa, por diante. Mas o movimento que teve a sua sede no Porto e se estendeu ao norte de Portugal, deve ter animado os simpatizantes da monarquia. Por outro lado, era manifesta a falta de unidade dos monárquicos que não se entendiam e entre os quais havia profundas divisões de orientação. O próprio rei (D. Manuel II), exilado em Londres, não apoiava o movimento, pois não acreditava na iniciativa nem na liderança respectiva, que condenou. O homem da confiança do Rei era outro, o tenente Aires de Ornelas, que estava em Lisboa e em dissidência com o golpe. O destino da revolta veio a jogar-se por caminhos bem próximos, com o avanço das tropas republicanas em direcção ao norte onde tomaram sucessivamente as povoações

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ofensiva pelos manifestantes que seguiam no cortejo em rigorosa e estrita comemoração da vitória. E isso, aquela omissão, naquele tempo de intransigência e paixões exacerbadas, de poderes de facto e acção descontrolados, seria, obviamente e sem mais, fundamento de prisão. Especialmente, digo eu, tratandose daquele bem identificado e conhecido responsável que, por isso devia agora pagar o óbvio desafio lançado aos manifestantes. Nem o facto de ser ainda um jovem (20 anos), seria suficiente razão para o não responsabilizar e retirar todas as consequências. Para meu Avô ter um filho preso pela simples omissão de um gesto que ele julgara incompatível com a sua maneira de pensar (de monárquico que, daquela Na Quinta da Chamuscada numa festa de Páscoa, com a esposa, os irmãos Domingos e esposa, forma, se assumia e manifestava) era e Joaquim, e os filhos Graça, Gaspar e Lúcia. demais. Tinha que evitar a ameaça, desse sublevadas em Viseu, Oliveira de Azeméis, Salreu, depois por onde desse… Estarreja e Ovar para, finalmente, entrar e dominar a revolta Ele, Gaspar Moreira, que respeitava os seus adversários no Porto. até ao ponto de, podendo, por eles interceder em situações A Monarquia do Norte ficou também conhecida, de forma de dificuldade, retirando-os da prisão, designadamente se depreciativa, já se vê, pelo “Reino da Traulitânea”. É certo que condenados por delito de opinião ou motivos fúteis, como era quem escreve a história são sempre os vencedores. frequente na altura… Não podia agora aceitar que um filho seu e a família respectiva pudessem sujeitar-se a tão visível Júlio Moreira por altura da tentativa do golpe (teria 20 afronta. anos) sofreu ele próprio a experiência da perseguição politica Não admira pois que, à pressa e sem tempo para e ideológica, com a consequente e dolorosa provação do exílio descansar, tenha decidido que devia seguir de imediato para no Brasil, que foi a forma de que a família se socorreu para o Brasil onde seus irmãos (dele, meu Avô) o podiam receber evitar a sua prisão. e ajudar na provação. Dizia minha Mãe e corre na família a versão de que Júlio Moreira, numa atitude aparente de resistência, não se descobrira à passagem da bandeira da República, arvorada em cortejo que, em comemoração da vitória republicana, desfilava em Vila da Feira, rua abaixo, porventura pela única via então existente, a Rua direita. Possivelmente, bem em frente da casa de seu Pai, à Praça da República. Atitude que, tendo sido observada (certamente por quem o identificava como simpatizante dos princípios cuja derrota ali se comemorava) teria sido denunciada e considerada desrespeitosa e

Só agora os historiadores vão fazendo a história do período conturbado que se seguiu à implantação da República e depois com Sidónio Paes e no “pós Sidonismo”, mostrando como foi uma época de violência e grande instabilidade, complicada para Portugal e os Portugueses. Nos imensos embaraços de então, melhor se podem entender as razões porque a ditadura, que dava os primeiros passos quando surgiu “A Tradição”, acabou por fazer tão largo caminho.


Para Júlio Moreira, presumo que o lance não tenha sido fácil, porque não o seria para ninguém: deixar aos vinte anos, tudo o que então possuía na vida … e sobretudo assim, de repente, sem tempo para se preparar ou despedir… Como para a família perder inopinadamente e desta forma o filho e irmão sem saber qual ia ser a duração da ausência… Mas o prazo urgia. Tinha que aprestar as coisas e, rapidamente, deslocar-se para Vigo como havia sido decidido, ás escondidas e em fuga, para apanhar o barco que o havia de conduzir ao destino. E tudo com a mais absoluta discrição.

à sua condição de exilado. A revolta pela situação em que se encontrava por efeito de um deslize fácil, cujas consequências não foi capaz de antecipar ou entender. E, admite-se, que não fosse simples superar a mágoa daquele imprevisto afastamento de tudo o que gostava. Nem a novidade de estar empregado, no Brasil mítico, da “árvore das patacas”, e sob protecção e proximidade de seus tios (irmãos de seu Pai), que eram personalidades conhecidas, social e financeiramente relevantes na sociedade carioca de então, mitigavam o seu descontentamento e desconforto.

Não posso precisar onde se refugiou, (talvez no Porto onde meu Avô tinha um irmão a viver) de onde partiu, nem o tempo ou preparativos, que suponho mínimos, nem as etapas que cumpriu na deslocação; ou o modo e cuidados designadamente com a dissimulação da fuga. Certo que naquela idade onde os laços com a vida começam a tomar consistência e a florir, em que se começa a descobrir em tudo o que nos rodeia um novo encanto, uma ligação concreta e um sentido diferentes… os Pais, os irmãos, os amigos, a sua Terra, tudo tinha de ficar para trás e depressa. Irremediavelmente sem saber se iria, ou quando, poder voltar. Nem tempo para reflectir ou mesmo sem possuir uma consciência nítida de qual tinha sido o erro, ou da sua dimensão, do motivo porque tudo assim se precipitava. Havia que romper, sem mais. O futuro, incerto, ver-se-ia.

Durante o exílio trabalhou na casa Sotto Mayor (negócios de câmbios) no Rio de Janeiro, com o apoio dos tios a quem foi recomendado (João e Bernardo Alves Moreira, este irmão gémeo de meu Avô) pessoas, então, economicamente influentes na sociedade carioca. Porém o emprego e a vida em país estranho definitivamente não o seduziam. Nem o Brasil, como se disse, que à época era um destino sedutor e objecto da demanda de tantos portugueses que assim procuravam longe da Pátria um futuro melhor e que, aparentemente e em plena juventude, lhe devia ser tão próximo.

Pressionado pelas circunstâncias da partida, não teve vida fácil no exílio (que teve uma duração de cerca de cerca de dez anos como se pode retirar da data das múltiplas fotografias com origem no Brasil e Rio de Janeiro) que se seguiu e a que, definitivamente, não se adaptou. Apesar da presença dos tios, das visitas do Pai e das condições e facilidades de que aí pôde dispor. As cartas endereçadas ao Pai e à Família expressavam a inconformidade, a realidade dolorosa. Certamente com imensas recordações a povoar-lhe o espírito e com a República, de que nunca fora simpatizante ou cúmplice, a surgir como a responsável por tudo o que lhe estava a acontecer e não pudera evitar. Mais, preocupado com o estado calamitoso da Pátria remota e desacreditada, que só de longe podia acompanhar e que se reflectia no estatuto dos emigrados portugueses e nas piadas grotescas e acintosas que tinha de ouvir e de que não gostava. Naturalmente pela imensa amargura associada

No convívio familiar de que participei e me envolvi, meu Pai guardava essas memórias sem as revelar ou explicar. Talvez entendesse que eram águas já navegadas e só a ele pertenciam… e, por isso, as desvalorizasse. Ou lhe fosse ainda doloroso abordar o assunto. Seja os momentos desfrutados em família lhe proporcionassem as compensações de que carecia e o fizessem minimizar o passado que o flagelara. Pela nossa parte, respeitávamos a atitude e nunca estivemos à vontade para tocar nesses acontecimentos que, pela minha parte admitia lhe poderia ser penoso voltar. Daí que, sobre isso e de palavras suas, pouco, quase nada, tenha sobejado. Por vezes, incidentalmente, deixava cair uma ou outra nota sobre a vida que se fazia no Rio de Janeiro e sobre a realidade das favelas, o estatuto dos Portugueses imigrados, que conhecera e não julgava favorável, mas que eram fruto da sua experiência pessoal. De resto uma ou outra anedota envolvendo portugueses e brasileiros, ou uma estória solta. Não factos concretos ou sentimentos, estórias encadeadas e, eventualmente, fundamentadas, datadas que pudessem aproximar uma ideia concreta sobre qual foi a sua vida.

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dado a atitudes de vitimação ou de auto-promoção, nem a revelações de natureza pessoal. Era, ele próprio, uma pessoa modesta e recatada. Ou fosse ainda consequência do silêncio que houve que respeitar, do segredo e discrição que envolveu todos os passos que precederam a rápida preparação da fuga, da sua ocultação pessoal, em que a experiência do Pai, meu Avô, deve ter intervindo e orientado decisivamente, por força da ameaça concreta, ou mesmo da eminência de prisão.

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Sacadura Cabral e Gago Coutinho. Foto da época da célebre travessia do Atlântico Sul. 1922.

As presentes revelações constituem por isso, mais o que chamaria uma tradição familiar, memórias que foram resguardadas e depois passadas, como experiência séria, dos mais velhos aos mais novos e a cuja notícia acedi sob a forma de evocação familiar, as mais das vezes afectiva e solidária, embora desgarrada, em conversa incidental e por linhas diversas. Se meu Pai não falava na vida passada, também nunca dela se serviu para retirar proveitos. Quaisquer que fossem. Seja em defesa ou justificação próprias ou servindo-se dela como argumento em alguma tomada de posição ou abono das suas ideias. Também nunca lhe surpreendi qualquer reacção atinente em conversas com estranhos. Não era

Há ainda em casa as malas de porão que o devem ter acompanhado nas viagens e também outro tipo de recordações, designadamente várias fotos com amigos não identificados, no Rio de Janeiro, bem como uma vista panorâmica da cidade do Funchal onde o barco em que viajava fundeou aquando da sua viagem de regresso. Há mais uma fotografia histórica, de todas e do ponto de vista pessoal, porventura a mais elucidativa, da apoteótica chegada de Gago Coutinho e Sacadura Cabral ao Rio de Janeiro, a que deve ter assistido, ao concretizarem, em 15 de Junho de 1922, a primeira e histórica travessia aérea do Atlântico Sul. Usaram, para orientação na travessia, de forma até então inédita, “instrumentos científicos” de navegação aérea (o sextante português, ferramenta, para o efeito, expressamente desenvolvida por Sacadura Cabral). Penso que Júlio Moreira teria assistido à chegada dado que nessa data se encontrar no Rio. Sobre ela, orgulhoso e em palavras emocionadas, deixou palpitar o coração saudoso (também amargurado) do Português emigrado, nostálgico e sofredor pela Pátria distante. Regressa do Brasil provavelmente após “Revolução de 28 de Maio de 1926”, altura em que se consideraram ultrapassadas as dificuldades que o tinham obrigado a exilarse. Julgo que agora mais facilmente se pode alcançar o homem que, em 1932, passados cerca de quatro anos, sobre o seu regresso do exílio, assume a direcção de “A Tradição”, arvorando ainda as suas convicções monárquicas. E em manifesta reacção contra a 1.ª República, tomando expressamente a defesa e o apoio ao Movimento de 28 de Maio e de Salazar.


Tinha entretanto sido admitido como tesoureiro da Câmara Municipal da Feira e casado com Maria Felicidade Correia Alves de Sousa Moreira que, para além dos deveres familiares inerentes, era senhora activa e acompanhava interessada o que se passava pelo mundo e era senhora das suas ideias e convicções, que gostava da política e que o acompanhava e apoiava. Foi talvez minha Mãe a principal memória e fonte de informação do presente documento e, muito especialmente, quanto às incidências do ambiente agitado que se vivia na 1.ª República, a que se reportam muitos dos acontecimentos que abordo no presente trabalho. Período exaltado que atravessou com os sentidos bem despertos e com a inquietação e o azougue de querer conhecer e a disponibilidade para a procura e intervenção dos verdes anos. Foi mãe, sempre generosa e dedicada, de sete filhos, e companheira de toda a vida de meu Pai, nos momentos favoráveis e nos menos propícios que a vida sempre proporciona. Aqui Lhe presto, à sua memória, também e a propósito, esta singela, mas genuína homenagem. Mas o jornal tinha igualmente um proprietário e administrador identificado, de seu nome Alfredo de Oliveira, que foi figura reconhecida em Vila da Feira. Era um artesão de apreciadas bebidas licorosas que o próprio comercializava. Era conhecido pelo diminutivo “Silveirinha”. Para além desta actividade profissional, era também jornalista amador e o repórter de mão do semanário, cuja facilidade de escrita, disponibilidade, seriedade e ajustamento ficam documentados na vivacidade e realismo de múltiplas crónicas e artigos de sua autoria que nele tiveram acolhimento. Devia ter o gosto pela escrita e pela actividade jornalística, pelo que “A Tradição”, segundo se pode concluir da extensa colaboração que deixou para o jornal, deve ter sido simultaneamente um gosto e modo de realização pessoal que pode ter ajudado à iniciativa. Os grandes meios de comunicação social que, hoje, conhecemos não estavam ainda muito divulgados e acessíveis. A telefonia dava os primeiros passos ainda tímidos. A televisão era uma tecnologia desconhecida. E os grandes jornais diários de então tinham em regra origem nas grandes cidades, onde tinham a maioria dos destinatários e não os preocupava tanto nem tinham talvez os meios para chegar às notícias das terras pequenas, de província, como era o caso de Vila da Feira.

Informação que, por essa razão e via, também não chegava ou chegava às terras de reduzida dimensão com atrasos. Sobrava pois esse espaço para a imprensa regional se voltar para um jornalismo de maior proximidade e mais circunscrito, ela que era melhor conhecedora do ambiente e do mercado de vizinhança, sendo-lhe por isso mais acessível explorar um esquema noticioso com uma conveniente abordagem de cercania, ao encontro dos imaginados interesses de cidadãos interessados. Os jornais representavam a nível local simultaneamente uma saliente manifestação cultural, um espaço aberto não apenas à minúcia da notícia, do acontecimento, mas igualmente ao revigoramento e explicitação das ideias de índole política e cultural, a eventuais polémicas. Já havia, como ainda os há hoje, jornais mesmo locais, alinhados de que “A Tradição” era só mais um exemplo. Não causa espanto que tal acontecesse numa época agitada por acontecimentos controversos, designadamente políticos, muitas vezes contraditórios e com incidência mais ou menos marcada na vida do bairro, como foi o caso de 1.ª República e depois da Monarquia do Norte, cujo destino final se jogou, com movimentos de tropas e mortos anunciados, pelas terras de Aveiro e por bem perto de nós, em Salreu, Estarreja e Ovar e cujas notícias, dúvidas e inquietação, se imagina, devem ter corrido especulativamente de boca em boca e profusamente alimentado os jornais regionais de então e, certamente, com reflexos em Vila da Feira. Um jornal, mesmo regional era, pois, na época, também um modo de prestação de serviços reconhecido, com um interesse económico específico e não desprezível e cuja exploração conhecia algum êxito. Havia profissionais cuja subsistência dependia dessa actividade. E proprietários que se dedicavam, exclusivamente, a esse labor e por ele subsistiam. Os jornais e as notícias respectivas eram, de quando em vez, motivo de dúvidas e de acesas discussões em tertúlias de talhe político mais ou menos homogéneo. E funcionavam também como pretexto para as pessoas, seres eminentemente sociais, se encontrarem e poderem conviver um pouco, em épocas de orçamentos difíceis e de complicado acesso a um género diverso de entretenimento. O cinema e o teatro, em meios pequenos, não eram coisa para todos os dias. As portas

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de ingresso respectivas só se abriam em terras pequenas, de quando em vez; e era difícil chegar a ambientes de maior dimensão, designadamente ás cidades onde esse género de espectáculo era mais frequente. Os cidadãos mais activos e interessados reuniam-se em locais determinados e diferentes, segundo a fé respectiva. Os jornais eram metediços por vezes insidiosos, interesseiros. Em terras pequenas como a Vila da Feira de então não havia cafés, que são locais de convívio que só se generalizam mais recentemente e que, então, só apareciam em terras de maior dimensão. E as tabernas não eram locais adequados para certo género de abordagens. Em Vila da Feira eram as farmácias (a farmácia de cima e a de baixo) e o Clube Feirense os sítios correctos a cuja sombra se acolhiam, ao fim do dia, as diferentes “facções”, e onde se prolongavam indiscretas discussões pela noite dentro, a pretexto de mais dois dedos de conversa ou, em 60

Passeio à Tijuca. 1920.

seguimento, para apreciar um ou outro petisco, amavelmente servido por proprietários coniventes e/ou lisonjeados pela visitas e companhia e que, com o gesto pretendiam retribuir a simpatia. Por vezes, era também ocasião e local para encontrar um parceiro para num jogo de laser: para jogar uma partida de “gamão”ou de “damas”. Ou de bilhar, para “aquecer os pés”... Uma simples notícia publicada acendia o rastilho e por si suscitava animosidades, e à falta de outro assunto, forçava a saída de casa e dava origem a controvérsia, por vezes a picardias que seguiam entre as partes em confronto. Coisas que, naqueles tempos, à mingua de outro assunto, tinha um assinalável eco social e contribuía, naturalmente, para a aceitação, divulgação e êxito do título, sua posterior demanda e a própria animação do burgo. Júlio Moreira, monárquico e nacionalista assumido e conhecido, com a experiência de vida de que se fez uma


resenha aproximada, com as limitações pessoais de acesso de que fui dando conta, aceitou a direcção de “A Tradição”, ponderando, natural e conjuntamente com o proprietário, também aquele momento concreto, talvez decisivo, a que se refere o Editorial inserido no seu primeiro número de 2 de Julho de 1932: a concreta oportunidade que advinha do “Movimento do 28 de Maio” e o consequente corte com a 1.ª República, com a formação de um novo Governo liderado pela personalidade respeitada, mas já controversa do Professor de Finanças de Coimbra, António de Oliveira Salazar, cujo patrocínio de ideias, “A Tradição” se compromete, sem subterfúgios. levar aos seus leitores e interessados. Poder-se-á perguntar porquê, se com Salazar, íamos continuar a viver numa República? Júlio Moreira não era adepto da República (de que foi até sempre crítico), era até adversário dela, nomeadamente da 1.ª, com a adicional justificação de, na mocidade, ter por ela sido perseguido e obrigado a fugir nas circunstâncias que atrás se assinalaram. Compelido a exilar-se para não ser preso. Oliveira Salazar, por outro lado, não sendo ele próprio simpatizante da monarquia, não hostilizava os partidários respectivos, nem repudiou o apoio que lhe poderia advir da franja de simpatizantes com essa conotação. Não fora contra eles que se fizera a revolução. E o novo regime rompera com o “status quo” por força das armas. Nesta situação não podia desdenhar de qualquer apoio e, no caso, do auxílio expectante dos monárquicos (um dos alvos de perseguição preferidos pela 1.ª República), cujo número dos que então admitiam a possibilidade de reversão do regime ainda devia ser relevante. Este apoio deve ter sido decisivo e pode hoje ajudar a entender o êxito e a longevidade do regime emergente do Movimento de 28 de Maio. Mais uma razão, Salazar era próximo da família de Coimbra e admite-se que, por conexão, chegado à da Feira. Sendo Professor da Universidade de Coimbra e da Faculdade de Direito respectiva, Salazar era visita de casa e amigo da confiança de seu Tio, Guilherme Moreira, o que constituía uma razão adicional para Júlio Moreira aceitar o repto. Imagina-se que, com o bichinho a morder e com algumas possibilidades económicas, tenha pertencido a Alfredo Oliveira, proprietário, a iniciativa da criação do Jornal. Já vimos que a imprensa local desempenhava naquele tempo um relevante papel, em termos de comunicação social e era associada

a interesses de natureza económica não despiciendos, sobretudo em épocas onde as actividades económicas eram poucas e de reduzida relevância. É também provável que tenha sido o futuro proprietário a abordar Júlio Moreira, pessoa cuja estória de vida devia conhecer com uma proximidade suficiente, no sentido de aceitar o lugar de Director da publicação. Dele ficou amigo e agradecido até ao fim, até muito depois de este ter deixando as responsabilidades de direcção. Lembro-me de, anualmente (anos XL e L), e com a visão aparentemente já bastante diminuída, por ocasião das Festas anuais, o ver subir as escadas que dão acesso à casa, perguntar pelo meu Pai, para o cumprimentar e deixar, como lembrança, algumas bebidas de sua produção. Para além do que deixamos dito, Júlio Moreira era um profissional da Administração local. Foi tesoureiro da Câmara Municipal da Feira e posteriormente da de Oliveira de Azeméis. Por fim, Chefe dos Serviços Municipalizados da Feira, lugar de que se aposentou. Ainda hoje estou a vê-lo, de lancheira na mão direita, calçada de Pombos acima, a caminho da Estação de Caminho de Ferro, na Piedade. É a imagem que melhor guardo de meu Pai e aquela a que mais gosto de aceder quando busco a sua memória. Profissionalmente e quando se tratava de atender e resolver as dificuldades a quem não estava identificado com o sistema, assumia uma atitude de proximidade do interessado e de total disponibilidade. Próximo dos cidadãos e reservado: era um ouvidor atento e sem preconceitos. Sabia dar razão a quem reclamava e “ajudar” independentemente de quem se lhe dirigia: fosse no seu gabinete de trabalho, em casa, no café ou de passagem na rua, sem distinção, locais onde, bastas vezes, lhe pude surpreender o jeito. Era também uma pessoa cordata, responsável e experiente, pronta para assumir os ideais e responsabilidades de cidadão consciente e identificado com aquilo que considerava ser melhor para Portugal e para os Portugueses. O exemplo disso tomara-o aliás em casa paterna, no compromisso do dever de cidadania e da solidariedade familiar que acompanhou. No respeito pela palavra.

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de fazendas do senhor Artur Lima onde, com frequência, encontrava para além do próprio proprietário, os elementos do grupo do Clube de Caçadores da Feira, senhores Artur Bastos e António Carneiro, caçadores e companheiros da actividade cinegética e, eventualmente, do senhor Aníbal Alves e outros; e depois, também de passagem, entrava no “Café Castelo” do Sr. João Araújo, onde foi cliente diário de café, antes de regressar a casa, pretexto para mais uma conversa com o senhor João Correia de Sá (que era da Casa das Mestras, de Sanfins) e foi funcionário do antigo Grémio da Lavoura e colaborador assíduo do semanário “Correio da Feira”. Enquanto foi viva sua Mãe e minha Avó, no regresso do trabalho entrava em sua casa todos os dias para a visitar, na Praça da República, usando a chave de que era portador.

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Véspera de partida da Tuna para Portugal. Rio 25/09/1925.

Júlio Moreira, quando era jovem, ficou em casa com a imagem de ser uma pessoa exigente e preocupada com a sua apresentação. A roupa e calçado que usava deviam estar bem tratados. Mesmo depois, na vida do dia a dia, não saia de casa sem olhar atentamente a roupa e calçado de que era portador e não se dispensava, ele próprio, de dar os retoques indispensáveis ao calçado e vestuário. As suas rotinas diárias variavam pouco, eram em regra decalcadas. Sendo o homem um animal de hábitos… Terminado o trabalho nas Câmaras de Vila da Feira ou em Oliveira de Azeméis, e depois nos Serviços Municipalizados da Feira passava todos os dias pela barbearia do Sr. António Pantaleão para afeiçoar a barba e, antes de recolher a casa, gostava de dar dois dedos de conversa e talvez descomprimir com os amigos com afinidade de gostos: na antiga loja

Quando, em 1969, se aposentou por ter atingido o limite de idade, quis oferecer aos seus colaboradores de anos nos Serviços Municipalizados, um almoço em sua casa. Foi uma jornada despretensiosa a que deu imensa importância. Quis que os filhos estivessem presentes, testemunhassem. Gostava de conviver com gente simples de forma modesta e desafectada. Era no meio deles que se sentia bem. No período da aposentação, permanecia em casa e durante o dia, vestia uma roupa usada em que se sentisse mais à vontade para se ocupar de trabalhos de exterior, de jardingem, a tratar do pomar, da vinha e da adega; dos cães ou dos animais de capoeira. Ajeitava-se e entretinha-se a fazer pequenos arranjos de carpintaria e outros, pois tinha gosto e alguma habilidade de mãos e dispunha e gostava dos apetrechos necessários para o efeito. Nunca se aborrecia nestes cuidados. Com frequência mobilizava-nos para ajudar e assim nos ia habilitando a pegar no alicate, serrote ou no martelo. Ao fim da tarde, saía ainda a fazer a sua volta antes de jantar. Passava pelos locais do costume. Os amigos mais velhos foram, porém, desaparecendo as casas que visitava foram encerrando e a volta foi ficando progressivamente mais limitada, por força das coisas. Por último já só ia ao barbeiro e, no regresso, só o Café Castelo continuou paragem obrigatória. À noite, depois de jantar e como de costume, lia os jornais diários, hábito de que nunca prescindiu. Santa Maria da Feira, 28 de Maio de 2013


POST SCRIPUM Porque julgo de interesse, designadamente histórico e em complemento junto,em jeito de post srciptum, uma “circular” que me chegou à mão recentemente e de que é primeiro signatário o fundador e director de “A Tradição” Júlio César Alves Moreira, documento que dá conta das dificuldades que se levantavam à publicação de um jornal como «A Tradição». Só após a conclusão e mesmo da entrega do trabalho, ela chegou ao meu conhecimento, por intermédio de um dos seus demais subscritores, Engenheiro D. António de Queirós Vasconcelos Lencastre, que foi seguidor muito atento e interessado, amigo próximo e animador de « A Tradição». Nela, circular, se faz um apelo aos leitores e amigos do Jornal no sentido de o apoiarem em dificuldades do caminho “ difundindo-a para além dos limites das terras da Feira, ...para que com a sua maior irradiação se consiga a definitiva consolidação da sua existência...” Não está, porém, datada embora expressamente se reporte ao péríodo em que foi Director o Senhor Dr. António Sampaio Maia, doze anos após a sua fundação.

de modo toalmente informal, acompanhado de um amigo comum, o Dr. Gaspar Moreira Cardoso da Costa, prometendo toda a ajuda que lhe fosse possível. E foi inexcedível na atenção e interesse que nos dispensou e nas diligências que imediatamente se protificou fazer em seus completos e organizados arquivos! Infelizmente a maior proximidade de Sua Excelência de “A Tadição” foi posterir ao período em que Júlio César Alves Moreira foi o seu Director... Doze anos depois da sua fundação... Mas privou pessoalmente com o proprietário e Administrador Alfredo de Oliveira, que identificou logo que declinei a sua identidade. Conheceu e recebeu-o já nas dificuldades do Jornal e procurou ajuda-lo, de modo efectivo, em múltiplas ocasiões (como demonstra aliás, a fotocópia do documento) que pelo presente se junta. Era então o Director do Instituto do Vinho do Porto.

O Excelentíssimo Senhor D.António de Vasconcelos Lencastre foi para além de amigo próximo de “ A Tradição”, mentor, Director e colaborador de “A Voz do Município” de Paços de Ferreira, em cujos exemplares teve oportunidade de transcrever vários artigos dela originários.

E ajuntar a admiração pela memória, lucidez e entusiasmo de um HOMEM que completou hà poucos dias cem anos de vida!

Quando soube do trabalho que o signatário estava a realizar e após solicitação teve a gentileza de me receber

Santa Maria da Feira em 15 de Agosto de 2013 Carlos Alves Moreira

Só resta acrescentar o nosso reconhecimento pela gentilesa e total disponibilidade manifestadas.

Muito obrigado por tudo.

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INSTRUÇÃO E EDUCAÇÃO NO CONCELHO DE OVAR: NO CENTENÁRIO DA ESCOLA OLIVEIRA LOPES

Eugénio dos Santos*

Completa-se hoje – 2 de Outubro de 2010 – exactamente um século sobre a data da inauguração da Escola Oliveira Lopes. Na verdade, foi no dia 2 de Outubro de há um século, um domingo, que o povo de Válega, juntamente com um grupo de convidados ilustres, assistiu e participou na festa de abertura simbólica deste novo e modelar equipamento escolar, que resultava da generosidade e da magnanimidade de dois filhos ilustres desta terra, homens a quem os nossos antepassados chamavam “brasileiros”, como também estes passaram a ser conhecidos. Foi uma jornada de júbilo para o concelho de Ovar, em cuja autarquia o mais velho já andava envolvido, mercê da sua adesão temporã ao P.R.P. (Partido Republicano Português). Contudo, para a freguesia foi dia de festa rija, cheia de música, de tapetes com verdes espalhados pelo chão, de jarrões engalanados com flores vistosas, de foguetório e de gestos afáveis para acolhimento das figuras gradas da cena político-institucional de então, que ali se deslocaram para testemunharem e para participarem num acto cívico do maior significado. Decorreram já 100 anos *Professor Catedrático, Jubilado, da Universidade do Porto.

sobre essa data memorável. Agora, vamos ao seu encontro para a evocar, tentando prescrutar-lhe o significado e o alcance, prestando, ao mesmo tempo, um preito de gratidão e de louvor aos seus fundadores. Já se escreveu bastante sobre esta matéria, ao Iongo dos anos. Logo desde o início, os jornais dissertaram sobre o arranque das novas escolas, sobre a importância e o significado da instrução popular, sobre métodos e modelos de ensino e até houve nesses periódicos quem se fizesse eco das etapas mais marcantes da pedagogia ocidental, como a pretender sugerir aos futuros professores os modos mais eficazes de lidar com os seus alunos. Depois, os vários estudiosos da freguesia jamais ignoraram esse monumento oferecido à promocão da infância e da juventude valeguenses. O reverendo Padre Miguel de Oliveira, que foi conterrâneo e contemporâneo dos fundadores, embora não comungasse dos mesmos ideais políticos, ao abordar na sua monografia “Válega - Memória Histórica e Descritiva” os “Homens Ilustres e beneméritos”, no capítulo VII, inclui José d›Oliveira Lopes, transcrevendo uma passagem do Almanaque de Ovar, de 1914, onde este foi coberto de elogios e de “ovações entusiásticas”. A sua generosidade, segundo o autor do Almanaque, derramou-se em várias frentes: a porta larga da sua casa (do Cadaval) estava permanentemente aberta para auxiliar quem o procurasse, fundou e dotou “o soberbo edifício escolar”, ajudou a modernizar a rede viária da freguesia, promoveu e

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custeou na paróquia imponentes festejos religiosos dedicados à Virgem do Rosário, ofereceu à igreja objectos para o culto e entrou, como accionista maioritário, na Companhia de lluminação e Tracção Eléctrica de Ovar, convencido de que se tratava de um melhoramento municipal indiscutível. Mais recentemente, pelo menos dois autores se referiram explicitamente aos Oliveira Lopes: o Dr. Alberto Sousa Lamy na sua vasta e documentada Monografia de Ovar e no Dicionário de História de Ovar e, recentissimamente, a perspicaz investigadora Fernanda Paula Sousa Maia num sugestivo artigo publicado na revista Dunas, em Novembro de 2005. Como se percebe, os manos Oliveira Lopes não têm sido secundarizados, nem esquecidos, escapando, portanto, à usura do tempo. Porém, acerca da sua formação, do seu carácter e dos seus modos e meios de acção ainda se erguem zonas de penumbra. Continuam a propalar-se algumas informações incongruentes e, porventura, erradas.· Acerquemo-nos, pois, das suas pessoas, deixando-nos guiar pelos dados apurados. Comecemos pelo mais velho, o mais activo politicamente, o José. Ele faleceu em 25 de Outubro de 1924, quando presidia aos destinos da comissão executiva da Câmara Municipal de Ovar. Contava 75 anos, relatam os jornais. Feitas as contas, diríamos então que terá nascido em 1849 como, quase sempre, se refere. Mas não. Segundo o livro de baptizados da freguesia de Santa Maria de Válega, folios 148 v.º e 149, ele era “filho legitimo de Manuel de Oliveira Lopes e de Roza Duarte Pereira, do Iugar de Cadaval, nasceu aos vinte e dous do mês de Fevereiro de mil oitocentos e cincoenta e aos vinte e quatro do mesmo foi solemnemente baptizado... pelo padre cura Manoel Jozé Valente. Seus padrinhos e testemunhas chamavam-se José Manuel de Pinho, casado, das Rosadas de Vilarinho e Anna Maria da Silva, avó materna ... todas desta mesma Freguezia”. Portanto, ficam inequivocamente esclarecidos, a partir de agora, os dias e o mês do seu nascimento. A c r i a n ç a viu a luz do mundo no seio de uma família numerosa. Realmente, 13 meses depois, nascia outro menino, a 22 de Março de 1851, ao qual foi dado o nome de António. No assento do registo de baptismo referem-se os nomes dos avós, a saber, pelo lado paterno, António de Oliveira Lopes e Maria Joana (de Pinho), do Cadaval e, pelo lado materno, António Pereira Valente e Ana da Silva, estes do Iugar de Molaredo. Os padrinhos foram José Manuel de

Pinho, das Assadas de Vilarinho e Ana da Silva, casados e tios da criança. Testemunharam o acto João Rodrigues Muge, casado, da Estrada de Cima e Manuel José Pereira Muge, solteiro, sendo este sacristão da igreja. A prole Oliveira Lopes continuou a crescer. José era o mais velho dos filhos, como se disse. Os nomes dos demais conhecem-se: Francisco, José Manuel, Manuel Maria, Manuel e Manuel José. Ao todo, sete rapazes, portanto. Perder-se-ia o rasto, no futuro, de alguns. Mas não de todos. Além de José e do Manuel José, o António e o Manuel Maria rumaram também ao Brasil, antes de regressarem, com permanência, ao Cadaval, o mesmo sucedendo, com o Francisco. Na verdade, eles serão apresentados mais tarde como capitalistas. O Manuel Maria mandou redigir um testamento através do qual “deixou avultadas esmolas aos pobres desta freguesia” (Valega- Memória Histórica, p.185). O António morreu cedo, logo em 1901 e o Francisco, que faleceu em 1926, viria a ser, também, vereador da Câmara democrática, em 1926, na senda dos irmãos, tornando-se igualmente um republicano. Hoje, contudo, estamos a evocar os dois manos dos extremos, isto é, o mais velho, o José e o mais moço, o Manuel José, que são os patronos da escola Oliveira Lopes. Este último só nasceu em 30 de Março de 1868, sendo, portanto, mais novo 18 anos do que o José. O seu registo de baptismo contém alguns dados interessantes. Assim, no seio da famflia ele era o 3º de nome Manuel, após o José Manuel e o Manuel Maria. Porém, a particularidade maior do registo é afirmar que ele era “filho legítimo de Manuel de Oliveira Lopes Quaresma e de Rosa Duarte Pereira, lavradores... do lugar do Cadaval”. Este apelido Quaresma, atribuído ao pai dos irmãos Oliveira Lopes, apenas aparece neste registo, o que não deixa de anotar-se. Contudo, também será oportuno lembrar que o padrinho desta criança foi um dos seus irmãos mais velhos, o Manuel, solteiro, lavrador. A madrinha chamava-se Joana, e mantinha-se solteira, sendo filha de Manuel da Silva Borges, também do Cadaval. Como se percebe, a família Oliveira Lopes, do Cadaval, contava, pelo menos, sete filhos homens e três meninas. Chamaram-se Isabel, Joana Rosa e Maria do Carmo Duarte Pereira, todas recebendo apenas os sobrenomes da mãe. lsto é, os rapazes chamavam-se Oliveira Lopes, como o pai; as meninas Duarte Pereira, como a mãe. Dos homens não há notícia de casamentos; das meninas, sim,


pelo menos de uma. Na verdade, outro assento do registo paroquial de Válega informa que “aos quinze dias do mês d’Outubro de 1884 foi solemnemente baptizado um individuo do sexo masculino a quem foi dado o nome de Manuel, o qual nascera dois dias antes. Foram seus pais Manuel Alves e Isabel Duarte Pereira, lavradores, ambos de Válega, moradores no Iugar de Carvalho de Cima”. A criança era neto paterno de António Alves e de Teresa de Oliveira e materno de Manuel de Oliveira Lopes e de Rosa Duarte Pereira. Padrinhos foram dois dos seus tios, Francisco d’Oliveira Lopes e Rosa Duarte Pereira, ambos solteiros, lavradores, do Iugar do Cadaval. Portanto, este Manuel Alves era sobrinho, pela mãe, dos irmãos Oliveira Lopes. Embora este nosso trabalho não lhe seja dedicado e ainda o voltemos a referir, é conveniente acrescentar, desde já, que, como alguns tios, rumou muito jovem ao Rio de Janeiro. Lá viria a tornarse urn empresário de grande sucesso, amealhou uma fortuna considerável, sobretudo na área do imobiliário. Contase também entre os beneméritos de Valega, igualmente contribuindo para que a juventude dispusesse de melhores condições escolares para poder saber ler, escrever, contar e, se quisesse e pudesse, prosseguisse estudos superiores. Ele e seu irmão José, também “brasileiro” doaram meios para a construç ão da cantina das escolas Oliveira Lopes e fundaram a pequena escola de Carvalho de Cima, em Válega. O assento de baptismo, que lhe é dedicado, acrescenta, à margem: “faleceu no Rio de Janeiro, Guanabara, no dia 8 de Dezembro de 1967”. Fica esboçada, em grandes linhas, a estrutura da família numerosa dos Oliveira Lopes. Quando partiu para o Brasil o primeiro deles e por que razões? Não sabemos. É provável que alguém da outra margem do Oceano Atlântico os chamasse, ou, pelo menos, se dispusesse a acolhê-los. Ao partir-se muito jovem, como parece ter sido o caso, habitualmente contava-se com algum auxílio do lado americano. Este modo de proceder repetia-se e continuou praticamente até aos nossos dias, sendo usual ainda nos anos 50 do século passado. Conheço pessoalmente alguns “brasileiros”, cuja ida para Terras de Santa Cruz obedeceu a esta rotina. É o caso, entre outros, de Manuel José de Sousa, o “Néquinha”, do Amial (Feira), bem como de seu irmão Adriano e de Fernando José Reis Duarte, de Valdágua (Ovar). Por que razões emigraram os Oliveira Lopes e os seus sobrinhos Manuel Alves e José para o Brasil? A resposta,

imediata e universal, só pode ser uma: partia-se sempre em busca de melhores condições de vida, horizontes mais vastos, tentando aceder à riqueza, por vezes mítica, que faltava aqui. Emigrar para as Américas ou, mesmo, para África, tornou-se uma espécie de rotina para muitos jovens em idade pré incorporação militar. O fenómeno assumiu tais proporções, a partir de 1850 que se tornou tema dominante do discurso político e cultural, fosse ele escrito, ou não, durante quase um século. Portugal, país pequeno, sentia fugirem-lhe todos os anos milhares de jovens, quase todos homens, que faziam rarear a mão de obra interna e temer pelo futuro da própria sociedade. Eles eram, maioritariamente, quase sempre, os mais dinâmicos, melhor preparados e de espírito empreendedor. As autoridades olhavam essa debandada como uma calamidade que poderia pôr em causa a própria independência nacional. Por isso, essa insatisfação e fuga dos jovens para o estrangeiro era olhada por muitos como uma censura ao modo como o país estava a ser governado. Os partidos políticos sentiamse acossados pela opinião pública e pretenderam contrariar esse movimento demográfico, que, a prazo, redundaria, na sua óptica, no despovoamento de algumas zonas do país. Em consequência disso, pretendiam desencorajar quem se predispunha a partir, utilizando vários argumentos. Urn deles era que essa decisão equivalia a trocar o certo pelo duvidoso. Abandonar a família, a casa, a terra e os amigos, em troca de uma ilusão de riqueza, quase sempre hipotética, não podia senão conduzir ao fracasso e à miséria, em paragens inóspitas e até adversas, proclamavam os críticos. Mas a verdade é que, segundo cálculos de urn especialista, (Costa Leite), entre 1855 e 1914, terão emigrado cerca de 1.300.000 portugueses. O número era elevadíssimo face ao cômputo de habitantes do país, que andaria pelos 5.000.000. Na verdade, algumas zonas do território iam-se despovoando. Daí o debate perante o público, tentando-se contrariar essa tendência demográfica. Porém, jornais, revistas e discursos, de cariz contrário, também veiculavam e procuravam fundamentar outros pontos de vista. Para estes, emigrar até podia ser uma excelente decisão. Não deixa de ser sugestivo que os jornais das grandes cidades, em geral, sintonizassem as suas posições editoriais com as dos políticos, carregando a emigração de anátemas e de censuras mordazes. Ao contrário, a imprensa local, proveniente das vilas e aldeias, muito próxima

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das aspirações da população rural, olhava a emigração de forma muito diferente. Para ela, ter a coragem de decidir cortar o cordão umbilical com um meio acanhado e quase imóvel, até revelava urn acto de coragem. Família e vizinhos compreendiam e compraziam-se com os gestos de sacrifício e de abnegação dos jovens e sublimavam-nos na perspectiva e na esperança de um futuro compensador. A dureza da realidade quotidiana vivida pelas populações dos meios rurais, as suas aspirações profundas e legítimas, escapavam às análises dos politicos e dos burgueses endinheirados. Por isso, os jovens e suas famílias dos concelhos da Beira Litoral norte, como Feira, Ovar, Arouca, Castelo de Paiva, Oliveira de Azeméis, Ílhavo, Águeda, Albergaria, e outros continuaram a engrossar constantemente o fluxo emigratório, sem darem ouvidos aos discursos oficiais. Basta percorrer as folhas dos livros do registo de passaportes dessa época para o confirmar. Os próprios jornais locais, sintonizados com a sensibilidade dos seus leitores imediatos, mostravam perceber o fenómeno e até encorajá-lo. Senão vejamos: O jornal O Ovarense, que se publicou entre 1907 e 1914, embora um pouco tardio para o nosso propósito actual (a imprensa dos anos 1860/70 é pouco acessível...), parece-nos reflectir uma corrente de opinião muito mais antiga. Na verdade, os nomes que apresenta de “brasileiros” bem sucedidos, pressupõem uma extensão larga de tempo anterior, remontando, pois, às últimas décadas do século XIX. E sucedem-se no jornal alusões ao Brasil, como uma terra onde se ganhava dinheiro, o qual permitia vir gozar férias a Portugal (16 de Junho de 1907). Mais: em Ovar existia uma Comissão de Beneficência Escolar, cujo objectivo era apoiar e incrementar a instrução básica no concelho. Pois bem. Essa Comissão ia recebendo, com regularidade, donativos de ovarenses que haviam emigrado para o Brasil e, de Iá, não esqueciam a sua terra de origem, mostrando-se magnânimos e beneméritos para com ela. No jornal de 12 de Maio de 1907 saiu esta notícia: “Os nossos conterrâneos e amigos srs. Francisco Fernandes de Sousa Villas, João Maria Saramago... benquistos comerciantes do Pará, abriram n’aquella cidade ultimamente uma subscrição em favor da Beneficência Escolar de Ovar, que rendeu a importante quantia de 408$500 reis, moeda forte e cujo producto já foi entregue à respectiva comissão”. E a notícia conclui-se com uma lista (enorme) dos “cavalheiros que concorreram com o seu obolo para uma Beneficência

tão meritória quão altruísta”. E, a 2 de Junho seguinte, continuava: “Acha-se entre nós, chegado há dias de Manaos, o nosso patrício e benemérito António Rodrigues Abbade que com José Lopes Ramos... se constituíram em comissão para naquella cidade angariarem donativos para o cofre [da Beneficência Escolar] desta freguesia”. Ora isso implicava e revelava sucesso no Iugar de acolhimento e disponibilidade financeira. N’O Ovarense sucedem­-se as notícias de remessas de dinheiro, constando também os nomes dos doadores e as terras onde residiam: Manaus, Pará, Rio de Janeiro (cf. jornais de 16 e de 30 de Junho de 1907 e 14 e 28 de Julho, por exemplo). Contudo, com alguma regularidade, no mesmo jornal existia uma rubrica designada por Emigração. Nela se ia dando notícias do fluxo demográfico para o Brasil (e não só), mas se informava, também, quantos passaportes haviam sido passados pelo governo civil de Aveiro, mostrando-se que as terras de Santa Cruz continuavam a absorver o grosso dos efectivos da diáspora lusitana. As notícias sucediamse. Recordaremos aqui apenas duas delas. A primeira é de 28 de Abril de 1907 e contém o seguinte: “Durante o mês de Fevereiro último... pelo govemo civil de Aveiro foram concedidos passaportes a 302 emigrantes, 290 do sexo masculino, 42 do sexo feminino, destinando-se 287 aos Estados Unidos do Brasil, 1 à África Ocidental, 5 à Á frica Oriental, 3 à América do Sul e 36 à América do Norte”. A segunda é mais explícita e torna­-se regra e modelo para as abordagens seguintes. Ouçamos a de 9 de Junho de 1907: “Pelo governo civil de Aveiro foram concedidos durante o mês de Abril passaportes a 302 emigrantes, 279 varões e 23 fêmeas, destinando-se 290 aos Estados Unidos do Brasil, 4 à África Oriental, 4 à Á frica Ocidental, 2 à América do Norte e 2 à América do Sul”. Segue-se a sua d i s t r i b u i ç ã o por concelhos. Dos que saíram 5 eram proprietários ou capitalistas, 11 comerciantes, 11 empregados no comércio, 77 agricultores, 72 jornaleiros... Destes somente 134 varões e 6 fêmeas sabiam ler e escrever, isto é, bastante menos de metade. Mais de metade do total dos 302 ia pela primeira vez (195). Porém, 60 iam pela segunda, 24 pela terceira, 12 pela quarta, 4 pela nona e 1 pela décima vez. Além destas informações que iam aguçando o apetite dos jovens mais resolutos e determinados a partir, estimulados, certamente, pelos exemplos de sucesso, outras convergiam no mesmo sentido, como a de 3 de Novembro de 1907:


“Durante o mês que findou [Outubro] saíram pela barra de Lisboa com destino aos portos do Brasil 3060 passageiros”, assim distribuídos: Rio -1599 Santos - 640 Pará - 445 Manaus - 263 Pernambuco - 62 ... etc. Finalmente, os responsáveis pelo jornal vão mais Ionge e procedem a uma clara apologia do regime político em que vivia a sociedade brasileira, a qual, desde 1889, se constituíra em República, ideal que O Ovarense procurava incutir nos seus leitores. Num artigo intitulado O Brasil escreveu o seu autor, em 6 de Fevereiro de 1910, assinando apenas pelas iniciais A.F. “Em Portugal, não obstante as afinidades da raça, a comunidade de língua e os altos interesses económicos que ligam as duas nações, conhece-se muito pouco o Brasil. O prodigioso desenvolvimento que o Brasil, sob todos os aspectos, tem atingido nos últimos 20 anos [isto é, desde a proclamação da república], quase tem passado despercebido entre nós e isso implica a frequente injustiça com que muitas vezes em Portugal se aprecia esse grande e maravilhoso país d’além Atlântico, que é como uma segunda pátria; ou antes, um prolongamento da pátria portuguesa”. E o artigo continua no número seguinte: “As instituições políticas profundamente democráticas e descentralizadoras garantem... o desenvolvimento normal, sem receio de perturbações. Vá isto com vista aos que entre nós profetizaram, no dia seguinte à proclamação da República, um período infindável de agitações até à restauração da monarquia. A forma republicana é a única que... promove o constante progresso e desenvolvimento do espirito cívico”. E no número seguinte remata:“O Brasil é, por assim dizer, um país vazio, à espera da onda fertilizadora que transborda de outras terras. O Rio de Janeiro está uma grande e admirável cidade, tão propícia ao europeu como as melhores da Europa”. Poder-se-ia ser mais explícito na apologia da emigração para o Brasil? Responda quem souber! Os Oliveira Lopes deverão ter mergulhado as raízes da sua decisão de partir em considerações idênticas a estas.

Diz-se que o José partiu aos 13 anos, o que significa que isso terá ocorrido aí por 1863/64. Nenhum documento seguro o confirma, ao menos por agora. O livro de registo de passaportes do Arquivo Distrital de Aveiro, dessa data, não existe e, portanto, não foi possível documentar esse dado. Suponhamos, contudo, que ele é seguro e voltemos à questão fulcral: por que emigrou ele? Respondamos outra vez genericamente: à procura de melhores condições de vida, como já se disse. Lembremos que no período em que ele nasceu e foi crescendo verificaram- se em Ovar e em - Válega várias e repetidas epidemias (como febres gástricas, cólera e febre amarela). O flagelo foi atribuído à cultura do arroz na região e os orizicultores, identificados como responsáveis por tais males, convidados e intimados a acabarem com a causa desses males. Essa cultura, enquanto durou, provocou uma vaga de mortes “a ponto de fazer emigrar muita gente”, como escreveu o Dr. Alberto Sousa Lamy, (Vol. I, cit, pp. 378/379 e 380/381). Válega era uma terra atrasada e com comunicações muito difíceis com o exterior, aliás como o país todo. Quando o mais· velho dos Oliveira Lopes rumou ao Brasil, ainda não havia via férrea em Ovar, a qual só foi inaugurada em 1865. E o apeadeiro de Válega data apenas de 1 de Novembro de 1902. Como seria Portugal? Seguramente um país atrasadíssimo, face ao resto da Europa. Praticamente desde o início do século e até 1851 Portugal viveu em guerra, primeiro contra os franceses e, depois, a partir de 1823, em guerra civil. Entre 1851 e 1890, isto é, durante a infância e a juventude dos Oliveira Lopes, viveu-se o chamado fontismo, isto é, urn período monárquico em que a figura emblemática e inquestionável era o ministro António Maria Fontes Pereira de Melo, que se manteve no governo por 21 anos. Eis como ele próprio descreveu o Portugal que pretendia mudar. Tratava-se de um “país de povoações que não comunicam, de habitantes que não convivem, de produtos que não circulam, de manufacturas que se não transportam, e até de riquezas e de maravilhas que se não conhecem”• Era preciso mudar, a c o m e ç a r pelas infraestruturas (estradas, pontes, caminhos de ferro). Foi o que ele fez. Contou com muito dinheiro remetido pelos “brasileiros” para Portugal (entre 1852 e 1853 terão vindo 54.000 contos!) Mas essa euforia modernizadora não chegava às zonas mais afastadas do poder e a Regeneração (como passou a ser conhecido o período) só surtiu efeitos parciais. Portugal

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não conseguia acompanhar o desenvolvimento do resto da Europa. Os intelectuais interrogavam-se e procuraram perceber quais as causas da decadência dos povos peninsulares, isto é, de Portugal e de Espanha. Tornaram-se cépticos e pessimistas, quanto ao futuro. Eça de Queirós escrevia, em Agosto de 1891, a um amigo: “Eu creio que Portugal acabou. Só o escrever isto faz vir as lágrimas aos olhos mas para mim é quase certo que a desaparição do reino de Portugal há-de ser a grande tragédia do fim do século”. Assim se ia abrindo caminho à República, que prometia mudar radicalmente o país e os comportamentos das pessoas. Em 1910 Portugal emparceirava apenas com mais duas Repúblicas: a francesa e a suíca. Porém, desde logo, uma constatação se impôs a todos, a saber:”o país é para todos, mas o Estado é para os Republicanos”, como disse José Relvas, um deles. Os cargos e os empregos públicos foram reservados para os membros do P.R.P. (Partido Republicano Português). Para marcar a mudança súbita, desde 5 de Outubro de 1910, o símbolo nacional deixou de ser a bandeira azul e branca (da monarquia) e passou a ser a verde e vermelha, que eram as cores do partido republicano e abandonou-se o hino da Maria da Fonte, então em vigor, adoptando-se o hino da marcha anti-inglesa do tempo do ultimatum (1890), que passou a ser conhecido como A Portuguesa. A própria moeda deixou de ser o real, trocada pelo escudo - que vigorou até ao euro. Eis, em linhas esquemáticas, o Portugal em que nasceram e cresceram os Oliveira Lopes. Deixá-lo para trás e emigrar, embora sendo uma aventura e um desafio sério, parecia abrir a porta à esperança de uma melhoria relativamente rápida. E foi o que sucedeu, felizmente, como sabemos. E o Brasil? Constituía um império, desde 1822, liderado, primeiramente, pela mão de D. Pedro (I de Iá, IV de cá) e, depois, dirigido por seu filho, D. Pedro II, sob a forma de uma monarquia constitucional, a qual durou até 1889. Quando os primeiros irmãos Lopes chegaram Iá, o país encontrava-se sob o impacto da guerra do Paraguai, ou da Tríplice Aliança, isto é, Brasil, Argentina e Uruguai contra o Paraguai. O impacto dessa guerra foi especialmente sentido a sul e a sudeste, terminando o conflito apenas na década de 70. O efeito imediato foi a integração da bacia do Rio da Prata nos circuitos da economia mundial, liderada pela lnglaterra. O café brasileiro continuava a sua conquista ascensional de mercados, gerando no Paraná, em São Paulo, no Rio de Janeiro

e Minas Gerais liquidez acrescida e euforia comercial. A contenda, apesar de muitos efeitos negativos, representou, portanto, uma conquista permanente de novos mercados, uma maior abertura à economia mundial e ofereceu a ocasião propícia para uma acalorada discussão sobre o fim da escravatura, que teria que ser abolida. Ora a abolição abriria cada vez mais as portas à emigração. O Brasil continuava a atrair europeus, como sucedera desde 1808 com a ida da corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Lá iam chegando e integrando-se portugueses, em grande número, alemães, irlandeses, franceses, espanhóis, russos. Os portos de saída dos nossos compatriotas eram Vigo, Viana do Castelo, Porto, Lisboa. Em Ovar estavam há muito organizadas as “companhas”, que tinham dois objectivos: eximir os jovens ao recrutamento militar, ou colocá-los a bordo de um barco que os levasse para fora. Destes, a maioria ia para o Brasil. Por isso, nem sempre a saída dos jovens desta época está documentada nos registos oficiais. A partir de 1870, a monarquia brasileira, liderada pelo imperador Pedro II, dava sinais de crise interna, surgindo o movimento republicano em constante ascensão no Rio de Janeiro, a partir de 1870, começado pela discussao da Lei do Ventre Livre, de 1871. Para os republicanos, um novo modelo político conferiria maior representação política aos cidadãos, facilitaria o acesso aos direitos e garantias individuais, o fim do regime escravista, abrindo caminho a uma federação de Estado Unidos do Brasil. A monarquia caiu (no Brasil) por duas razões: a predominância do exército e a força da burguesia mercantil paulista e carioca. (G. MOTA, Cf. Carlos, História do Brasil, 2005, p. 528). O abastecimento constante do exército brasileiro estacionado no sul, o crescimento populacional e uma maior abertura à economia internacional permitiram aos comerciantes (de secos e molhados, sobretudo) ganharem muito dinheiro, em pouco tempo. Disso se aproveitaram, com inteligência, trabalho e sorte os Oliveira Lopes. Não esqueçamos que a simples mudança de país lhes era favorável: de lavradores ou agricultores potenciais, como os pais, passaram para o comércio numa grande cidade, isto é, do primário para o secundário, o que não deixava de ser uma evidente promoção social, mostrando o caminho a trilhar pelos mais jovens, que fossem inteligentes, trabalhadores, organizados e, simultaneamente, ambiciosos, como não podia deixar de suceder. Eis por que razões o Brasil podia


ainda olhar-se como o país da “árvore das patacas”, como escreveu O Ovarense em 25 de Abril de 1909 que afirmava”... quem espera que o maná l h e caia do céo, na inércia, como se diz que aconteceu nos tempos bíblicos, pensa erradamente... Ao homem do campo proporciona o Brazil uma remuneração do seu trabalho, muito mais vantajosa que em parte alguma, visto que a terra alli, em diversos Estados, é d’uma fertilidade incomparável”. E concluia assim: “A árvore das patacas não secou no Brazil senão para os ociosos...” Voltemos aos nossos homenageados, colocando-nos outra questão: onde terão sido alfabetizados os irmãos Oliveira Lopes? Teriam mais formação do que a simples instrução primária? Francamente, não sabemos. A letra da assinatura de José indicia alguém que escrevia escorreitamente, com uma caligrafia muito regular. Onde a treinou? No seu exercício quotidiano, na loja do Rio de Janeiro, a Oliveira Lopes, Silva e Cª? É possível, mas, por agora, nada sabemos sobre isto, ao certo. No tempo em que José deve ter sido alfabetizado aqui, havia dois tipos de escolas para as crianças: a pública, a funcionar a partir do legado do conde de Ferreira, em Ovar, gratuita, e as privadas ou particulares, que se faziam pagar. Estas poderiam coexistir com a pública, com edifício próprio, professor e programa ou, então, podia estudar-se em casa de alguém, normalmente um padre, que habilitava os jovens para irem fazer o exame fora, em Iugar indicado pelo Estado. Durante muito tempo as crianças do concelho de Ovar foram fazer exame de 1º grau a Oliveira de Azeméis (O Ovarense, 4 de Agosto de 1907). Quem quisesse continuar e ir para o ensino superior estudava gramática portuguesa e latim, geralmente ensinadas por urn professor público credenciado (muitas vezes um clérigo). Qualquer pessoa, se pretendesse, poderia habilitar-se particularmente. Exigia-se-lhe é que se submetesse a um exame de ingresso nos liceus. Quem soubesse mais e fosse perspicaz, podia conseguir equivalências, galgando anos de estudo regular, isto é, passando do 2.º para o 5.º ano, por exemplo. Quando os Oliveira Lopes emigraram, o saber fazer e o saber ler e escrever eram considerados condição de sucesso. Por isso, quase todos os “brasileiros”, quando voltavam ao país de origem, insistiam na necessidade absoluta de uma formação escolar de base. As famílias preocupavam-se com a instrução e investiam nela, na perspectiva de fornecer ao filho emigrante uma formação que incluísse, pelo menos, ler, escrever e as quatro operações aritméticas. E compreende-

se porquê. É que quem partia não se destinava ao trabalho braçal, agrícola, de base, como cá, mas ao comércio e aos serviços. Apenas nestes é que se podia alcançar fortuna. Para o trabalho rural, Iá havia os escravos e os boçais. Não admira, pois, que os emigrantes portugueses do Brasil incentivassem a propagação de escolas em Portugal, as apoiassem, mesmo sem nunca cá voltarem. Exemplo flagrante disto ocorreu com a Beneficência Escolar de Ovar, já referida, uma associação particular que mantinha escolas em funcionamento e que era subsidiada por ovarenses emigrados de todas as condições, como sabemos. Não pretendendo tirar qualquer mérito à iniciativa dos irmãos Oliveira Lopes, louvabilíssima a todos os tftulos, podemos lembrar que a fundação de escolas por homens ricos e I ou associações se inseria numa longa tradição, já que o Estado se havia mostrado incapaz de as construir e manter, como era seu dever, pelo menos, desde a Carta Constitucional de 1826. O gesto mais emblemático, neste sentido, foi o legado deixado pelo Conde de Ferreira que alocou fundos para construir e mobilar 120 escolas para ambos os sexos em terras que fossem cabeças de concelho, com habitação para o professor e entregues às juntas de paróquia. Isto ocorreu em 1866! E esse modelo irradiou e manteve-se. Mas os republicanos, sobretudo a partir da década de 70, propagandeavam a abertura de Escolas Móveis, nas quais se seguiria o método João de Deus, (1876), também ele um republicano (A Discussão, 11 Dezembro 1910). Em Ovar, formou-se em 1911 um Instituto ou Centro Propagador da lnstrução Popular ( A Discussão, 14 Maio 1911). Fora do âmbito da militância política também surgiram escolas por iniciativa de beneméritos. O Dr. Alberto Lamy afirma que, em 1878, o Padre Gomes Ferrer, nascido em Ovar em 1825, ordenado padre no Rio de Janeiro, aí adquiriu avultada fortuna, tendo sido professor nos Carmelitas Descalços cariocas, sob o nome de Frei Manuel de S. Vicente Ferrer. Legou a parte maior dos seus bens ao hospital de Ovar “determinando porém, a criação nesta vila de duas escolas de ensino primário para pobres, uma na rua da Oliveirinha e outra na rua dos Lavradores”1

1 Monografia de Ovar, I, cit., p. 450.

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Em 1883, a Câmara informava ter recebido 6.500 Iibras, com a obrigação de “criar para sempre duas escolas de instrução primária” (masculina e feminina), que, de facto, foram abertas em Outubro. E em 1888 foi criada na freguesia de S. Vicente Pereira uma escola do sexo feminino por João Rodrigues de Oliveira Santos2. Em 1878, soube-se, pelo testamento de António Gomes Brandão, urn “brasileiro” rico, de Cucujães, que deixou “a quantia de 400.000 reis em metal, para a construção de uma casa de escola para o sexo masculino na freguesia da minha naturalidade” 3• Portanto, quem dispunha de bens a partir da 2ª metade do século XIX, olhando para os índices assustadores de analfabetismo (mais de 75%), se fosse sensível à filantropia e à solidariedade sociais, não deveria ficar inactivo. E a um “brasileiro” ficavam bem actos de engrandecimento e de valorização da sua terra e dos seus conterrâneos. Compreenderam-no muito bem José Oliveira Lopes e seu irmão Manuel José. O jornal A Pátria, associando-se à justa homenagem aos Oliveira Lopes, em 8 de Outubro de 1910, escrevia: “Os nossos homens de dinheiro muitas vezes, que é quase sempre, nunca são homens de coração. O metal tornaos duros e impenetráveis, o dividendo fá-los gelidamente calculistas e d’uma voracidade trituradora... Isto é triste de constatar, acerbo de confissão, mas é a realidade, no fim de contas”. A estes homens o articulista contrapõe os Oliveira Lopes “homens ricos que descobriram no ezercicio incansavel da beneficência a melhor expressão do regalo psiquico”, que aponta, como paradigmáticos, aos poderosos locais. Olhemo-los mais de perto. Sabemos pouco acerca do mais moço que se mostrou sempre solidário com o irmão. Foi proprietário do Grande Hotel do casino de Espinho, falecendo na casa do Cadaval, em 11 de Novembro de 1936. Enriqueceu no Brasil, também, através da casa Comercial Oliveira Lopes, Silva e C.ª, do Rio de Janeiro. Benemérito da freguesia de Válega e co-fundador da Escola, deixou os seus bens, que eram muitos, à Misericórdia, aos Bombeiros Voluntários, aos pobres, à Junta de freguesia para que conservasse a escola. Recusou o título de Visconde de Santa Maria de Válega e, com o irmão, foi um dos fundadores da Comissão Republicana de Ovar, a partir de Janeiro de 1907.

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2 Ibidem, P..:...464. 3 Eugenio dos Santos, Salvador Ferreira Brandão, Santa Casa da Miseric6rdia de Vila Nova de Gaia, 2004

Estes dois irmãos José e Manuel José, desde 1907, ano em que arrancou o núcleo do P.R.P. de Ovar, decidiram fundar uma escola modelar e bem apetrechada para servir as crianças de Válega, paróquia que, há muito, aspirava a possuir esse melhoramento. Fizeram uma proposta, nesse sentido, à Câmara, a fim de que esta lhes doasse o terreno, em Iugar adequado. E a verdade é que, a 2 de Fevereiro de 1908, o jornal O Ovarense noticiava: “oferecendo os srs. José de Oliveira Lopes e seu irmão Manuel José d’Oliveira Lopes custearem todas as despesas com a construção de um edifício para as escolas oficiais da sua freguesia e habitação dos respectivos professores, deliberou a Câmara ceder todo o terreno necessário para a referida edificação no largo do Souto, daquela freguesia, tendo o sr. presidente e vogal Abreu proposto que se exarasse um voto de louvor e agradecimento aos referidos cavalheiros, dignos a todos os respeitos da estima e consideração dos seus conterrâneos...”. Portanto, desde 1907, os dois irmãos haviam decidido romper com a crónica falta de uma escola na sua paróquia, lançando-se eles na construção de um edifício de raiz, que se tornasse modelar e desafiasse o tempo. A obra surgiu e, por feliz coincidência, abriria solemente as portas na véspera da insurreição republicana, que viria a triunfar no dia 5. Os Oliveira Lopes estalaram de contentamento nesse Outubro de 1910: inaugurava-se a escola que lhes perpetuava o nome e a memória, no dia 2, e triunfava a República, a 5. Por esta vinham lutando desde há muito, sobretudo o José. Estes dois ex-emigrantes tinham passado a residir na sua casa do Cadaval, onde ambos viriam também a falecer, o mais velho em 1924 e o outro, em 1936, como já se referiu. Quando deixaram definitivamente o Brasil? Não sabemos. Mas é certo que, pelo menos uma vez, eles voltaram ao Rio de Janeiro, já como negociantes de sucesso e endinheirados. Foram tratar de regularizar os seus bens, rever os seus amigos, tratar da sua documentação, garantir o fluxo das reservas de dinheiro de que viviam folgadamente na sua terra. Com eles verificou-se o que era frequente com muitos portugueses, que viviam em diáspora: o seu retorno à pátria raramente era definitivo. Habituavam-se ao vai e vem através do Oceano Atlântico, reemigrando sozinhos ou acompanhados. Os nossos manos Oliveira Lopes voltaram ao Brasil em 1898, pois “em 5 de Maio desse ano se


concedeu passaporte para o Rio de Janeiro a José d’Oliveira Lopes, solteiro, proprietário, filho de Manuel d’Oliveira Lopes e de Rosa Duarte Pereira, da freguesia de Vâlega, do concelho de Ovar”. Como sinais característicos, escreveuse ao lado: idade 48 anos, altura 1.64 m, cabelos pretos, olhos castanhos e, finalmente, escreve4. No mesmo dia foram igualmente emitidos passaportes para seus irmãos António, de 47 anos, 1.67 m, o qual também escrevia, para Manuel José, de 30 anos, com a mesma altura do anterior e igualmente alfabetizado, todos solteiros e proprietários. Estes três irmãos, que regressavam ao Rio, fizeram-se acompanhar por um sobrinho, Manuel Alves, solteiro, menor, sem profissão, filho de Manuel Alves e de Isabel Duarte Pereira, irmã dos Oliveira Lopes. Contava o moço 13 anos de idade, media 1.42 m, tinha cabelos e olhos castanhos e também escrevia 5. Já nos referimos a ele. Como os tios, foi também ele um capitalista e um benemérito das gentes de Válega. Este comportamento dos irmãos Oliveira Lopes, de ida e retorno, tornou­se uma característica maior da emigração para o Brasil, a partir da 2ª metade do século XIX e ainda se mantém. Porém, ele é apanágio da chamada emigração de sucesso. Os jornais regionais estavam, aliás, muito atentos à movimentação dessas pessoas e de suas famílias. Noticiavam a sua chegada, faziam votos de saúde e despediam-se delas, fazendo augúrios de boa viagem. Esta imprensa local, muito próxima e muito atenta aos comportamentos e à sensibilidade de cada região, ajudava a projectar esses brasileiros socialmente, fazendo deles um espelho das capacidades criativas do próprio agregado. Isso envaidecia-os e convidava-os a retribuir, enveredando por obras de beneficência, que redundassem em benefício colectivo. A sua consagração pública convidava-os à magnanimidade. Caminhos, fontes, igrejas, escolas, hospitais, asilos, foram alvo das suas dádivas, que a comunidade festejava e agradecia. Por isso o “brasileiro” das pequenas paróquias e vilas do País era sempre benvindo e acolhido com júbilo, mesmo que o seu aspecto fisiológico, os adereços, a linguagem e o sotaque, alguns hábitos alimentares e de higiene, o tornassem alvo da atenção e da curiosidade, e, às vezes, também da maledicência e

4 A.D.A. Livro do Registo de Passaportes, n.º 21. 5 A.D.A. Livro n.º 21, registo n.º 2044

da ironia dos conterrâneos. Contudo, a complacência e a admiração sobrepunham-se à anotação dessas diferenças. No espaco rural, o “brasileiro” tornou-se uma figura estimada e respeitada. A imprensa não o perdia de vista. Fornecia até dados constantes e interessantes, como já referimos acima. Pelas informações dos jornais, sabemos que mais de um terço dos que partiam repetia a viagem, havendo quem cruzasse o mar pela 10.ª vez, como vimos. Cerca de metade destes retornados ia pela 3.ª, 4.ª ou 5.ª vez. O pior é que o panorama escolar de quem partia parecia piorar cada vez mais. Em 5 de Abril de 1908, dos 339 autorizados a sair, a partir do governo civil de Aveiro, apenas 111 sabiam ler, isto é, menos de um terço deles. Em compensação, aumentavam os proprietários ou capitalistas, que de 5 passaram para 11. Ou seja, quanto mais se avançava no tempo, mais apareciam os resultados benéficos das saídas anteriores. Ora isto significava, como já referiu a autora acima citada, a entrada progressiva e gradual de divisas no país, que os poderes locais reconheciam e agradeciam. Para concluirmos esta alusão às notícias da imprensa regional sobre a emigração, aqui fica só mais um dado. Como sabemos pelo jornal de 3 de Novembro de 1907, saíram pela barra de Lisboa 3.060 passageiros. Os distritos que ofereceram mais contingente de partidas foram Viseu, Aveiro e Coimbra. Como se percebe, os nossos homenageados de Válega integraram­se nestes movimentos, repercutindo os valores, as carências e a sensibilidade regional que lhes subjaziam. Por que razão se terão interessado tanto os irmãos Oliveira Lopes pela instrução e alfabetização dos seus conterrâneos? A resposta à pergunta só pode ser uma: constataram, pela sua própria vivência, quão fundamental era estar munido dessas armas de base para triunfar numa sociedade em expansão que exigia, cada vez mais, capacidade de informação individual, critério de juízo personalizado e meios de intervenção rápida, na sociedade envolvente. A argúcia e a astúcia mercantis, em que se envolveram, implicava conhecimentos de base e percepção imediata das tendências dos mercados. Analfabetismo confundia e, com exclusão social imediata, para além da impossibilidade do acesso à própria à cidadania que os Oliveira Lopes muito prezavam. Como se sugeriu já, desde finais do século XIX e com destaque para as primeiras décadas do seguinte, a propaganda republicana, cujo volume e meios se encontravam em crescendo, associava o novo regime a implantar com o

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usufruto da cidadania. Para incutir o sentimento republicano no coração das pessoas era forçoso arrancá-las a ignorância e à dependência dos poderes da monarquia, ou seja, aos abusos dos aristocratas e ao conformismo e obediência às autoridades, que a maioria dos dirigentes católicos aceitava e até justificava. Daí que os militantes da causa republicana olhassem para a escola como o Iugar privilegiado, onde deveriam ser incutidos nos espíritos jovens os direitos inerentes à liberdade, igualdade e fraternidade, mas numa perspectiva laica, cívica, participativa e interveniente. No passado, os principais fundadores da opinião pública tinham sido os clérigos, sobretudo os párocos rurais, que a monarquia liberal até procurara prestigiar e promover, embora com pouco sucesso. Agora, esse papel de formador de base deveria passar para o professor. A ele confiavase a modulação dos espíritos dos jovens, o despertar da inteligência e do sentido crítico. O sentimento de liberdade, de autonomia, de solidariedade, de civismo tinha que arrancar desde os primeiros passos nas escolas. Estas eram vistas, agora, como as igrejas de outrora. Os republicanos quiseram mudar o panorama escolar do país. Além de muitas escolas, eram necessários professores com formação adequada e novos currículos. A famosa Cartilha Maternal de João de Deus (1876) não só apontava um método fácil de aprender a ler, como se batia por novos ideais de formação. Todos os verdadeiros republicanos, no plano pedagógico, se batiam por dois princípios: multiplicação rápida e difusão de escolas, sobretudo para o povo, como meio privilegiado de combate à ignorância e alargamento do direito de cidadania aqueles que tinham sido excluídos até então. Dizia-se que a República seria o governo do povo pelo povo. Para isso era fundamental ser-se instruído. O papel da escola básica, nesta mudança, emergia como a forç a motora insubstituível. Eis as razões de base que enquadraram a decisão dos irmãos Oliveira Lopes para a fundação da escola. José, desde que regressou definitivamente a Portugal (e isso deve ter ocorrido à roda de 1900) sempre militou nas hostes republicanas, para as quais aliciou também o Manuel José6. O seu retorno temporário ter-se-à verificado entre 1893/94, após mais de 30 anos de emigração. Como vimos, voltou ao 6 Ser republicano era sinónimo de escolher como “vector essencial a afirmação da soberania do povo... através da representação por via eleitoral”, no plano político. Porto. Figuras da Cultura do Porto. Porto, 2013, p. 13, artigo de Jorge Alves

Brasil, pelo menos mais uma vez. Mas desde o início do século XX encontramo-lo sempre comprometido com todos os movimentos republicanos concelhios. Em 1907, participou nos trabalhos da Comissão Municipal Republicana de Ovar e, logo após a proclamação da República, já com a escola de Válega construída e aberta, integrou a comissão administrativa da Câmara, desde o dia 10 de Outubro. A sua propensão para a ala radical do P.R.P. fê-lo cair para a área do Dr. Afonso Costa, após a eleiç ão presidencial de 11 de Agosto de 1911, quando os partidários da República se cindiram entre moderados e radicais. A partir de então, sempre participou nos executivos camarários, assumindo a vice-presidência e, depois, a presidência da Comissão Executiva, nos períodos de interregno, isto é, na sequência da chegada à presidência da República de Sidónio Pais e durante a monarquia do norte, ou seja, durante a chamada traulitânia. Em 1918 e em 1924 vemo-lo como presidente da comissão executiva, em cujo mandato faleceu, em 25 de Outubro de 1924. Como vivia folgadamente dos seus rendimentos, pôde participar activamente nos trabalhos da Câmara Municipal de Ovar durante cerca de 15 anos, representando nela a chamada ala democrática ou afonsista. As suas assinaturas nas actas do município revelam-no como um homem que escrevia bem e com desenvoltura. Os dissabores políticos que teve que suportar durante as oscilaç ões políticas ocorridas entre 1910 e 1924 nunca o fizeram mudar de rumo ou atitude. Era contido, tolerante, filantropo e sereno e essa imagem dele ficou para a posteridade. Para além da sua participação cívica na vida política, de ter ajudado a acabar com velhos caminhos esburacados, substituindo-os por estradas, em Vâlega, foi um dos fundadores da Misericórdia e o sócio maioritário da Companhia Portuguesa de lluminação e Tracção de Ovar, cuja inauguração ocorreu a 1 de Dezembro de 1913. Uma questão se nos impõe, antes de terminar: o que é que terá levado os irmãos Oliveira Lopes à opção pela República, pelo menos desde o seu regresso a Válega? Mais uma vez, não sabemos, porque nunca eles o disseram, que se saiba. Porém, podemos ensaiar uma resposta. Eles moravam no Rio de Janeiro, quando aí foi proclamada a República, em 1889. Ora, Iá como cá, a monarquia era acusada de ter esgotado todas as suas potencialidades e, portanto, da inevitabilidade da sua substituição. O movimento arrancara, aliás, no Rio de Janeiro, a partir de 1870 de forma sistemática e organizada, mormente a partir da publicação da lei. do Ventre


Livre, de 1871. Para os republicanos brasileiros, como para os portugueses, a República conferiria maior representação política aos cidadãos, facilitaria o acesso aos direitos e garantias individuais, poria fim ao regime escravista. Ora, para os comerciantes, estes tópicos ideológicos soavam da melhor maneira, até porque promover o povo redundava em aumentar o poder de consumo de maior número de pessoas. Os manos Oliveira Lopes não podiam ficar imunes a estas influências e foram-nas adoptando. Neste aspecto, não devem ainda ter ficado fora do âmbito da propaganda maçónica, muito difundida entre os burgueses cariocas, como, também, entre nós, sobretudo através da Carbonária. Os seguidores de Afonso Costa (afonsistas) afinavam, em grande número, por esse diapasão. Suspeitamos que esse terá sido o caso dos Oliveira Lopes, embora a documentação compulsada não permita afirmá-lo categoricamente. O regime republicano assentava na democracia popular, mas reservava a intervenção política apenas para aqueles que estivessem alfabetizados. Excluídos do escrutínio eleitoral ficavam todos os analfabetos, logo desde as primeiras eleições. Como o Estado deveria pertencer apenas aos membros do P.R.P., daí decorria que só esse partido poderia governar. Nesse sentido, a escola caminhava, a par e passo, com o alargamento da base de apoio dos republicanos. Era nela que se formavam os espíritos dos futuros dirigentes. O povo analfabeto era olhado por eles com desconfiança uma vez que não teria suficiente cultura para ajuizar politicamente de forma correcta. Facilmente continuaria a ser manipulado e arrebanhado pelos antigos caciques do regime monárquico e pelos católicos mais conservadores. Por outras palavras, os republicanos assustavam-se com a liberdade plena. Por isso, nas primeiras eleições excluíram todos os não alfabetizados, que eram mais de metade da população total. Cidadania equivalia a alfabetização, de preferência em escolas públicas, uma vez que o ensino privado era olhado com muitas reservas. Nessa óptica se integra a decisão de os irmãos Oliveira Lopes construírem, dotarem e oferecerem ao Estado a sua modelar escola, aberta exactamente há um século. A ideologia, que lhe serviu de base e de suporte, em nada diminui o seu significado e importância, que hoje, para além das convicções políticas de cada um, reconhecemos e louvamos. Os seus contemporâneos olharam-nos como pessoas discretas, benemerentes, solidárias. Culminaram-nos com

os maiores elogios, como escreveu a redacção do jornal A Pátria de 8 de Outubro de 1910: “Mataram fomes, deram horizontes de fortuna e independência, sem exibicionismos e sem palhacices, devotaram-se à felicidade de estranhos... Os beneméritos Lopes são nossos patrícios e para nós têm um título de família que melhor estreita os laços de íntima associação afectiva, pois que são cidadãos republicanos...” O convite para a festa da inauguração da escola foi redigido nestes termos “Aos beneméritos cidadãos José d’Oliveira Lopes e Manuel José d’Oliveira Lopes, as Commissões Municipal e Parochiaes republicanas d’Ovar e Vallega, 2-10-1910”. E o texto de acompanhamento no interior do convite, após lhes render um preito de homenagem, lembrava, referindo-se à edificação da escola como sendo urn “templo do progresso e da luz”, considerando-a “um maravilhoso instrumento de civilização”, rematando: “Nós vos saudamos e bendizemos, ilustres beneméritos, puros cidadãos”. A entrega ao Estado ocorreu logo a seguir, como escreveu o mesmo jornal A Pátria, em 29 de Setembro: “Na freguesia de Válega realizase domingo próximo a entrega solene ao Estado do novo edifício escolar ali ultimamente mandado construir pelos ilustres beneméritos e nossos dedicados correligionários [isto é, republicanos] e amigos srs. José d’Oliveira Lopes e Manuel José d’Oliveira Lopes. Haverá sessão solene [na qual discursou o Prof. Egas Moniz] e distribuição de prémios aos alunos das escolas oficiais daquela freguesia”. Cumpriu-se o sonho dos Oliveira Lopes. A paróquia-freguesia de Válega jamais os esqueceu. Pode aplicar-se-lhe o famoso juízo de Camões: “Obras valerosas os foram da lei da morte libertando...”. A Escola perpetuou-lhes a memória. E a nós compete reavivá-la constantemente... Fontes Bibliográficas A. MANUSCRITAS 1. Actas e Vereações: livros das actas das sessões da Câmara Municipal de Ovar n.os 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45 e 46. 2. Comissao Executiva: livros n.os 84 e 85 3. Estrangeiros 4. Arquivo· Distrital de Aveiro (ADA) Freguesia de Válega: livros de Assentos de Baptizados, n.os 25,31 e 48 Freguesia de Válega: livros de Registo dos Passaportes, n . º 21

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Nota: Os livros de registos de passaportes do concelho de Ovar só existem para os anos entre 1882 e 1966. Desta última data em diante (e até 1984), os processos conservam-se em caixas, mas ainda não estão inventariados. 5. Arquivo do Registo Civil de Ovar. freguesia de Válega: livro do registo de óbitos de 1924

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B. IMPRESSAS 1. Livros LAMY, Alberto de Sousa, Monografia de Ovar, Ovar, 2001, 4 volumes. LAMY, Alberto de Sousa, Dicionário da História de Ovar, Ovar, 2009, 3 volumes. LAMY, Alberto de Sousa, Datas da História de Ovar, Ovar, 2005 MAIA, Fernanda Paula Sousa, A acção dos “brasileiros” de torna viagem em Ovar. A obra dos irmaos Oliveira Lopes (Válega), Dunas, n . º 5 , Novembro, 2005. MOTA, Carlos Guilherme, História do Brasil, S. Paulo,

2005. PINHO, Joaquim de Almeida e, A Centenária Oliveira Lopes. A história. O museu. Ovar, 2010. PORTO, Figuras da Cultura do Porto nas Comemorações da República. Actas das Conferências. Porto, Centro Nacional de Cultura, 2013. RAMOS, Rui, História de Portugal. Lisboa, 2005.

2. Jornais O Ovarense (1883-1921) A Discussão (1892-1919) Jornal de Ovar (1906-1912) A Pátria (1908-1928) O Correio de Ovar (1912-1913) O Ideal Vareiro (1916-1918) A Defesa (1919-1921)


Foto de Joaquim Carneiro

APÊNDICE DE OUTROS TEXTOS DIRECTA OU INDIRECTAMENTE RELACIONADOS COM OS DOS LIVROS DE VISITAÇÕES

Domingos Azevedo Moreira *

A abreviatura “Ap.” significa “Apêndice” e a abreviatura “Visit.” significa “Visitações” (livro de), seguindo-se-lhe o número.

Ap. 1 (Ver Visit. n.º 67 e 167)

| 6 v «Aos 2 de Junho de mil oito sentos (sic) e trinta e nove annos na casa da (Sa)crestia desta freguezia de Pijeiros, concelho de Villa de feira aonde Costúmão fazer as ssesoins (sic) e hi estando prezentes os Membros da Comissão de Paróchia que se achávão r(e)onidos a instancias do Regidor (sic) de Parróchia prezente, o mesmo declarou (que) (h)á mezes se havia rouvado o sino de esta freguezia, que por este motivo muita gente ficava sem miçça (sic), não A(b)stante (sic) (o) Rebberendo Párrocho fazer as possiveis delligencias para que assim não aconteça mas que nem assim mesmo se pode obstar em rezão (sic) d’a Povoação ficar hum pouco disviada (sic) e espalhada da Igreja Matris e que na mesma Igreja havia em quaje (sic) estado que esta chuva (ia) acabar d’arruinar as *Abade de Pigeiros. Faleceu a 10 de Janeiro de 2011.

madeiras e Paredes de forma que, se lhe não acudisse agora, quando fosse daqui a mais Algum anno, se gastaria o melhor de um Conto de reis, o que o Povo da freguezia não poderia, atendendo ao estado de Pobreza nem tão pouco o Rebberendo Párrocho a quem pagamos toda a Côngrua lhe Lançamos em Rezão de elle não ter pas(s)al, visto que o mesmo passal anda em questão. Que desta falta de rreparos que enformaaçois (sic) tomadas por meos Peritos tanto da Química (como) das mais artes Me têm orsado (sic) para o sino quatorze arrobas com os mais proparios (sic) das obras do Corpo da Igreja hum sento quarenta e nove mil e oito sentos e quarenta como se ividenciávão (sic) dos Louvados que a prezentárão e por isso fazíão esta exposição para que a todo o tempo constáce (sic) ao povo desta freguezia que elle Regedor dezejava Cumprir com os seus deveres do que rezultava utelidade i (sic) não só por- | 7 que a Igreja se achava indecente e incapás (sic) de poder selebrar-se (sic) o Culto Divino mas (a)inda mesmo por ver o estado de ruína Em que se acha e as Culpas que sobre nós Carrégão e que, visto a Comissão de Parróchia não ter meios nem Rendimentos Alguns com que podéce (sic) fazer1(212) estas precizas despezas, se Lançás(s)e hua deR(r) ama aos Cidadoins da freguezia Em preporsão (sic) dos seus teres e despeza, que, depois da derrama, se submetêce (sic) à aprovação do Ex.mo Senhor Doutor geral do Destrito como preceit(u)a o Código Administrativo, em consequencia do que e com precedencia de votação foi Rezolvido unanimime (sic)

(212)

No texto parece “faciar”.

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(-mente) pella Junta se fezéce o rrateio e sse rremetêce cópia da actta (sic) acompanhada d’hum officio erender(e)çado (sic) à Estação competente» (Livro das Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folhas 6 verso a 7). O regedor chamava-se Domingos Henriques dos Reis. No nosso Livro Santa Maria de Pigeiros da Terra da Feira Porto 1968 pp. 353 a 356 vem a lista das pessoas com a sua oferta atribuída.

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Ap. 2 (Ver Visit. n.os 67 e 129)

medio athé quatorze ar(r)obas de pezo por Sento e doze mil reis e que Já havia declarado e por esta forma houve elle Prezidente comcluída (sic) a sseção, que assignou com elles peritos e mais Membros e mandou que se (ex)traíce (sic) Cópia desta Actta, sse rremetêce ao Administrador deste Concelho acompanhada com hum officio Em Comprimento àquele que me havia aderegido (sic) naquela datta» (Livro das Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folhas 9 verso a 10). O presidente era Manuel Francisco de Sá (cfr. folhas 9 e 10 verso).

| 9 v «Anno do Nacimento de noço (sic) Senhor Jezus

Ap. 3 (Ver Visit. n.º 67)

christo de mil oito Sentos e trinta e nove aos quatro dias do mês de Junho do dito anno nesta freguezia de Pigeiros e Caza da Sacrestia aonde se Costuma fazer as sseçoins (sic), Estando prezente o Prezidente da Junta de Paróchia e mais Membros nesta sessão, aprezentou elle Prezidente hum officio que o Administrador do Concelho lhe havia remetido com a datta (sic) de vinte (e) cete (sic) do mês passado, o qual detreminava (sic) elle Prezidente que para satisfazer a hum officio que de Sua Execelencia o Dignícimo (sic) de (sic) Administrador do destrito Em a datta (de) dezceis (sic) lhe havia deregido Exegíão delle prezidente hum orsamento e Cricunstanciado (sic) das despezas que hérão mister fazerce nesta Igreja na Comfirmidade (sic) que havia reprezentado a Sua Excelencia por uertude de q. elle Prezidente havia mandado chamar os mestres trolhas, Digo, Carpinteiros João ferr.ª Pinto e Joze Bernardo de Oliur.ª e os mestres trolhas Joze Francisco e Manoel de oliur.ª e ao químico Joze ferr.ª e, estando prezentes, lhe(s) propôs elle Prezidente que debaixo de Juramento declaráce cada hum segundo a sua Arte os materiaes que hérão precizos para Reparar a mesma Igreja e para a Ocetura (sic) de hum Sinno medio incluído. Logo o seu travalho (sic) à vista do que declarárão, os Carpinteiros que, visto o estado das armaçoins, só hera precizo (sic) Algua madeira de Castanho para Ripes e que poderíão Suportar com feitio e pregos em Sete mil e oito Sentos e oitenta reis na forma que Já havião declarado os mestres trolhas, disérão que orsávão ser precizo para Reparo dos telhados de cal oito Sacos, preço de quatro sentos reis cada hum, tres mil e duzentos (ao todo e) doze Carros de Saibro a quatro Sentos e | 10 Coatro Sentos e oitenta em Sinco mil e sete Sentos e setenta reis, hum milheiro de telha Em tres mil reis, de feitio dezoito mil reis que todo Somado vinte nove mil e noveSentos e secenta, o quínico (sic) declarou que dava pronto hum Sinno

A 14 de novembro de 1840 a Junta refere-se a uma finta de 5$895 reis para a «compostura do adro desta dita igreja» (Livro das Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folha 15). Ap. 4 (Ver Visit. n.º 67) A 1 de abril de 1841 em reunião da Junta «decedio-se q. na próxima Sexta feira Santa à noute haveria Procissão de Penitencia ao Calvario» e «Decedio-se tambem que se empregassem os meios judiciaes para se receber os annuaes de S. Brás q. fórmão o único patrimonio desta Junta que inccumbe ao actual Regedor de dar parte a quem compete; era ut supra, o mesmo Secretario interino O Abb.e e P(rezidente) Antonio Caetano Ozorio Gondim» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folha 17). Ap. 5 (Ver Visit. n.º 67) No Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 22-5-1841 lê-se: «os mesmos P(a)roquianos tínhão de tal forma desprezado. A Igreja que a deixárão chegar ao estado em (que) se acha, chovendo em toda ella, que (a) Armação está podre, oostencílios (sic) sagrados ou perdidos ou quaje ar(r) uinados. Que tendo aRecebido ordem do Administrador geral de Aveiro para o rreparo da Igreja e Compra dos aparamentos e não chegando para tudo isto a quantia de trezentos mil rs., elle Prezidente não quer tomar sobre si a Responsabilidade de Cole(c)tar os Paroquianos para se não espôr (sic) a mais o(l) trajes (sic)» (folha 18) e «elle Prezidente propunha à Junta os quezitos seguintes:


1.º Pode esta freg.ª ser conservada no estado Em que se acha? Deve ou não ser sopremida? E no cazo de ser supremida ou anecxada, para que outra Parróchia o pode ser?» (folha 18 verso). O presidente era o abade Osório. Ap. 6 (Ver Visit. n.º 197) «Aos vinte e setete, digo, aos vinte e sete de Julho de mil oito centos e quarenta e dous recebeo esta Junta a juros de cinco por cento athé à sua real entrega, das mãos do Snr. Joze Joaq.m Álvarez da Silva, solteiro, do lugar da Fonte, desta freguezia, a quantia de vinte e quatro mil reis em bom dinheiro de metal q. a mesma Junta se obriga a pagar por derrama de seus Parrochianos, a qual quantia a Junta em nome desta freguezia declara dever ao mesmo Snr. em virtude de voto de Confiança dado à mesma Junta pela reunião geral de todos os seus Habitantes na Igreja desta Paróchia no dia vinte e cinco deste mesmo mez pelas 7 horas da manhám, em q. todos unanimemente decedírão que esta Junta tomasse sobre si ajudar o Ministerio Público no Processo da Demanda athé final sentença para revindicar os Passaes e Rezidencia desta Igreja uzurpados por Manoel Maria da Rocha Colmieiro, e que todos protestávão e mui solemnemente promettíão em seu nome e de seus soccessores concorrer com suas quotas e colectas que se lhes lançassem para o referido fim e se obrigávão a approvar em todo o tempo as referidas contas para o que concedíão seu voto de confiança, de que tudo fôrão testemunhas prezentes Manoel Joze Coelho, Joze Ignacio e Jacinto Alz., todos desta freguezia, de q. tudo se fes esta Acta (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folha 19». Ver o dito (Ap 1) livro Santa Maria de Pigeiros... p. 130139. Ap. 7 (Ver Visit. n.º 197)

| 19 v «Aos dezanove de Março de mil oito centos e quarenta e quatro pelas sete horas da manhám se reunio esta Junta em Audiencia pública de todos os Chefes de Familia desta paróchia a fim de se deliberar qual o modo de se obter mais promptamente a quantia de vinte e tres moedas de ouro regulares ou cento e dés mil e quatrocentos rs. que se devíão de agencias e outros misteres ao Snr. Joze Joaquim

Borges de Castro, Cavaleiro da Ordem de Christo, morador na Rua do Souto N.º 40 a 41 pelo vencimento da Demanda e Confirmação da Sentença dos Passaes e Rezidencia desta Igreja em Relação de seis, digo, e Acórdão da Relação de seis do corrente mez e anno, segundo o contracto que esta mesma Junta fizera com o mesmo Senhor em conformidade de outra igual rezoloção tomada em conferencia geral em que se rezolveo acompanhar o Ministerio público com Documentos, empenhos, protecçoens a todo o custo e affinco. E propondo o Prezidente desta Junta e Abbade actual desta freguezia, o que várias vezes tem proposto, que se obrigava a toda a despeza da actual Demanda e a todo o risco, obrigandose tambem esta mesma Junta e habitantes a pagarem-lhe por inteiro a sua Côngrua actual, sem que se lhe abatesse o rendimento dos mesmos passaes depois de vencidos, e isto por aquelles annos que contratassem; foi plenamente reprovado este voto do referido Prezidente por toda a Junta e povo: e então tratando-se de pagar a referida dívida, decedírão que se fizesse derrama pelos habitantes desta paróchia e, se se não prestassem a pagar, se vendesse toda a prata da Igreja que Consta de Vazo, Costódia e resplendores no pezo (sic) de cento e tantos mil rs. no cazo de não haver quem emprestasse sub penhor da referida quantia, digo, da referida prata aquella quantia e, não havendo na freguezia quem tivesse esse dinheiro ou vontade nem devoção de o emprestar, tendose feito todas as deligencias se decidio que se vendesse a referida prata pelo maior | 20 preço q. se podésse (sic) apurar, devendo (ser) o Thezoureiro desta Junta Manoel Joze Alz. de Oliveira a fazer esta venda, obtendo do Thezoureiro do (Santíssimo) Sacramento a mesma prata para a referida opperação. Declara o Abbade e Prezidente desta Junta, para que a todo o tempo conste, que elle Abbade se tem opposto com todas as suas forças a esta Venda e que só em apuro de circunstancias e inteiramente vencido pelos votos da Junta e Povo he que assina esta venda tão vergonhoza à freguezia quanto prejudicial, p.r que depois se há-de comprar por dez o que agora se há-de vender por vinte, digo, por cinco, de que tudo lavrei esta Acta eu Secretario e Prezidente Antonio Caetano Ozorio Gondim, O Regedor Manoel Francisco de Sá, Manoel Francisco Leite, Manoel Joze Alves de Oliveira» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folhas 19 verso e 20).

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Ap. 8 (Ver Visit. n.º 87)

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| 20 «Trono Aos dez de Maio de mil e oito centos e quarenta e seis pelas oito horas da manhám reunida a Junta de Paróchia desta freguezia de Santa Maria de Pigeiros, Conselho (sic) da Feira, tendo-se andado a lanços nos tres Domingos anteriores a obra da Tribuna e Altar mor desta Igreja segundo o Risco e modelo que se aprezentou dezenhado e firmado pelo Pintor Augusto, de Cabeçaes, foi esta obra entregue ao Regedor desta Paróchia Snr. Manoel Francisco de Sá pelo preço e quantia de trinta e tres mil e seis centos rs. em bom dinheiro de metal, por ser o lanço mais barato que se offreceo (sic) a esta Junta e que esta Junta recebeo e se obriga a pagar em nome desta Paróchia em quatro partes ou porçoens, sendo a primeira no tempo em que principiar que deve ser quanto antes; a segunda depois que o Trono estiver engradado; a terceira ao meio e a quarta depois de finda a referida obra; obrigando-se a Junta a prestar ao referido Arrematante a madeira necessaria bem como a ferrage(m), exce(p)to os pregos que fícão sendo por conta do Arrematante, ao que tudo huns e outros | 20 v se obrígão a cumprir e assínão e eu Prezidente servindo de Secretario lavrei esta Acta que todos assinamos. O Prezidente Antonio Caetano Ozorio Gondim, Manoel Fran.co Leite, Manoel Joze Alves de Oliveira, Regedor Ar(r)amatante (sic) Manoel Francisco de Sá» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folhas 20 e 20 verso). Ap. 9 (Ver Visit. n.º 197) «Aos onze de Novembro de mil oito centos e quarenta e sete nesta Sacristia de Pigeiros reconhesceo a nova Junta a dívida de folhas 19 deste Livro feita pela Junta anterior de cinco moedas de ouro regulares ao Snr. Joze Joaq.m Álvares da Silva, da Fonte, desta freguezia, dívida que contrahio a Junta transacta para obter a cópia de Títulos para a restauração Judicial dos Passaes desta Igreja em consequencia do que Prezidente me offreci (sic) para servir gratuitamente o lugar de Escrivão ou Secretario da mesma Junta» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1836 a 1847, folha 20 verso). Ap. 10 (Ver Visit. n.º 67)

eu Prezidente aceitei sem que sirva de posse para meus successores» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857... folha 1 e Livro de Actas da mesma Junta de 1857-1893 folha 1). Ap. 11 (Ver Visit. n.º 67) Em 13 de fevereiro de 1859 a respeito do orçamento ficou escrito «Que as Confrarias não podem concorrer com coiza alguma por não terem fundos e dependerem suas funcçoens e encargos das esmolas dos irmãos e devotos» e nessa reunião houve estas propostas: «1.º – Vedar o Adro da Igreja que está ahinda servindo de Cemiterio e, quando este se venha a fazer, não se pode fugir a esta despeza, porque no Adro descánsão as ossadas e os Cadáveres de nossos irmãos finados; que elle Prezidente não podia permittir uma tal devassidão (a que (h)á muitos annos se tem opposto infructuozamente)1(213) de ver entrar toda a casta de animaes naquelle Adro e calcarem as relíquias mortaes dos finados. Que o Adro deve ser vedado de pedra e cal por todos os lados com suas grades de ferro nas duas entradas. 2.º – Que o telhado de toda a Igreja e Sacristias não veda a água e preciza todo elle de ser feito e que por esta falta já começa de apodrecer a trabe do coro junto à parede do lado sul e q., acabando de arruinar-se, pode cahir em hum dia de grande concorrencia de Christãos e socceder (sic) huma espantoza catástrofe. 3.º – Que he necessaria para a decencia do culto huma cazula branca e duas dalmáticas da mesma cor, (h)á muitos annos capituladas pelos Reverendíssimos Vezitadores» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857..., folha 2 e Livro de Actas da mesma Junta de 1857-1893, folha 2). Ap. 12 (Ver Visit. n.º 173) A respeito do orçamento feito a 18 de novembro de 1860 escreve-se: «agora entende esta Junta q. todo este dinheiro deve sahir da Irmandade de S. Sebastião desta Freguezia de q. he juiz o Brazileiro Bahiano Antonio Henriques dos Reis, servindo aqui em seu lugar seu sobrinho o Regedor desta paróchia Manoel Francisco Pascual» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857..., folha 5 verso).

A 6 de janeiro de 1858 se escreve: «a mim Abb.e continuando a lavar a roupa da Sacristia e Igreja, o q.ue (213)

O parêntese consta do texto excepto o que envolve a letra “h”.


Ap. 13 (Ver Visit. n.º 173 e Ap. n.º 21 e 29) «Sobre a Confraria da Cera. Anno do nascimento de nosso Senhor Jezus Christo de mil oito centos e sessenta e nove aos dezas(s)ete de Maio do dito anno, tendo-se reunido a Junta de Paróchia, prévia e competentemente convocada, reunio-se em sessão ordinaria na Sacristia desta Igreja e Freguezia de Pigeiros, concelho da Feira, sob a prezidencia do Párocho da mesma Antonio Caetano Ozorio Gondim e, estando elle prezente assom como (o) Regedor de Paróchia Manoel Francisco Pascual e Manoel Joze Milheiro e Manoel Inacio da Costa e Silva, os quaes constituem esta Junta, o Prezidente expôz a esta Junta que em conformidade com as ordens do Snr. Governador Civil, tem esta Junta de lansar (sic) mão da Confraria da Cera e S. Brás, extincta por não ter estatutos e passando por isso à Administração desta Junta tanto a recepção dos annuaes como as obrigaçoens q. os onerávão e, considerando que esta Confraria ou Irmandade tem por obje(c)to comprar a cera para os enterramentos e procissoens como o acudir a alguma mais leve despeza q. occorra na fábrica da Igreja como ao concerto de madeira e ferragem dos sinos, aos telhados quando principiam a arruinar-se e a outros mais obje(c)tos indispensáveis e que de súbito occôrrão, entendeo que não podia acabar esta Irmandade sem grave risco e prejuízo» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857..., folha 15 verso). Ap. 14 (Ver Apêndice n.os 15 e 32 e Visit. n.º 67) Em sessão de 30 de maio de 1869 escreve-se o seguinte: «achando-se prompta a arca de cinco chaves para a guarda de todos os trastes susceptíveis de empréstimo bem como da distribuição das chaves e collocação da arca e apparecendo tambem o thezoureiro do Santíssimo Sacramento actual Manoel Leite Ribeiro em cuja guarda se achávão os referidos trastes ou alfaias: Passou-se publicamente a recolher à dita arca: 1.º a humbella rica, 2.º as duas oppas de cêda (sic), 3.º os guioens, 4.º o Veo de hombros melhor, 5.º duas capas de asperges, 6.º O pálio velho,

7.º huma cortina de damasco vermelho. 8.º o pálio novo, (9.º) E seis morteiros.

E, passando à colocação da Arca, decedio-se que ella fosse depozitada na caza de Manoel Henriques da Silva, de Cimo de Aldeia. Quanto às chaves, ficará a 1.ª na mão do Snr. Regedor da Freguezia; a 2.ª e a 3.ª nas mãos de cada hum dos Vogaes da Junta; a 4.ª na mão do Thezoureiro do Sacramento; (a) 5.ª na mão do Párocho que servir. Estabelece esta Junta a sancção penal ao q. der a chave ou chaves para se abrir a arca para emprestar p.ª fora de paróchia a multa de dous mil rs. a cada hum dos que der a sua chave p.ª esse empréstimo» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857..., folha 16 verso e Livro de Actas da mesma Junta de 1857-1893, folha 16). Ap. 15 (Ver Ap. n.os 14 e 32) Em 16 de novembro de 1859 diz o abade Osório: «eu nunca fui nem quero ser nunca reprehendido pelos meus superiores por faltas aos meus deveres». (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 3). Ap. 16 (Ver Visit. n.º 67) Em 25 de março de 1860 «Decidio-se que o Snr. Thezoureiro actual do Sacramento Manoel Joze de Oliveira Pé d’Arca désse por conta do S.mo huma sobrepeliz de murim cru e huma toalha de linho para o Altar mor» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 3). Ap. 17 (Ver Visit. n.º 197)

| 3 v «Aos vinte e sete de Maio de mil oito centos e sessenta nesta Junta de Paróchia de Santa Maria de Pigeiros, concelho e quarto Destricto Eccleseástico da Feira, Districto Civil de Aveiro expôs o Prezidente à Consideração desta Junta a seguinte expozição: Senhores! A Rezidencia parochial desta Freguezia, cuja conservação está a nosso cargo pelo Código Administrativo, foi examinada por mim e pelo inteligente Carpinteiro desta Freguezia Manoel Francisco de Sá e achamos que a referida Rezidencia em toda

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ella ameaça ruína e que muito exige paredes racheadas (sic) e outras reedificadas, alguns carros de telha e cal e que o carpinteiro avalia em dez a doze moedas d’ouro só as obras de carpinteiro e trolha, não falando em caixilhos e vidros nem nas indispensaveis obras de pedreiro. Que a barroteria e forro he todo de pinheiro e só as linhas de castanho. Emquanto (sic) há telha e traves, antes que apodrêssão (sic) pelas chuvas, he muito necessario acudir-se a ests concertos, porque o que agora se fará com doze, nem com cem se fará daqui a annos. Senhores! por hora (sic) há telha, trabes e athé peras para se fazer uma modesta caza de rezidencia junto a esta Igreja no campo do Condeixa dos Passaes desta Igreja; por este modo ficaria a Igreja com huma caza vizinha e se evitaríão os frequentes roubos dos sinos e da Igreja e poderia o párocho tocar as Ave Marias e se seguiríão muitas outras comodidades para este povo. Agora, Senhores, contento-me com uma pequena e modesta caza de rezidencia porq. tenho as minhas cazas próprias e como proprietario tambem tenho de pagar mas o párocho q. vier depois de mim há-de talhar por largo; porque nada tem a pagar e se tornará mil vezes mais dispendioza, por este motivo proponho os seguintes quezitos que dezejo ver prudentemente rezolvidos ou respondidos como a Junta entender em sua consciencia: 1.º Quezito Querem que a Rezidencia parochial seja concertada e reparada de tudo quanto preciza e querem votar os meios necessarios para isso ou não? 2.º Quezito Querem q. a caza da Rezidencia parochial seja mudada para a vezinhança desta Igreja, pois que pouco mais importará q. o concerto, se se fizer agora como pertendo (sic)? No cazo emfim (sic) de não quererem nem concerto nem mudá-la, vêjão o q. fazem porq. sobre V. m.cês ficará toda a responsabilidade no cazo d’as madeiras apodrecerem, as paredes dezabarem e toda a telha se quebrar; eu dou parte em tempo e do que possa seguir-se não sou responsável, porque avizo com tempo; peze a responsabilidade sobre quem competir e não sobre mim, porque nem eu nem meus herdeiros ficarão responsáveis pelos prejuízos q. eu quiz e não pude evitar. Em- | 4 Emfim (sic) declaro que prometto

e me obrigo mui solemnemente a ir habitar para a caza da Rezidencia ou ella seja decente e seguramente concertada no local onde se acha ou mudada para a vezinhansa (sic) desta Igreja para commodidade dos Parochianos e que dou do meu bolso dezanove mil e dozentos (rs.), quer seja para o seu perfeito concerto ou para a sua mudansa (sic), bem entendido: se se fizer o concerto dentro deste anno, porq., não se fazendo dentro deste anno em q. estou, nada darei senão o q. depois me tocar por finta e ponho tambem para este fim e com a mesma condição os pinheiros do passal que servirem para madeira da mesma obra. E de tudo isto exijo expressa e pública discussão e que o rezultado se declare nesta acta. Declaro que athé agora tenho ido fazendo os concertos que têm sido compatíveis com as minhas forças mas q. agora he huma despeza superior, que deve ir a quem toca. Decidio esta Junta q. queríão tempo para consultar o espírito do povo parochiano e que no dia quinze do próximo mez de Junho à Missa primeira decidiríão e de tudo lavrei esta Acta que eu Secretário e Prezidente escrevi. O Prezid.e e Secretario Abb.e Antonio Caet.º Ozorio Gondim, o Rigidor (sic) Manoel Francisco Pascual, Manoel Fran.co Leite, Manoel Henriques de Paiva». «Aos quinze de Junho de mil oito centos e sessenta em Junta de Paróchia se rezolveo a materia adiada da secsão (sic) anterior, decedindo-se que o espírito do povo da paróchia se oppunha às despezas indispensáveis ou à mudansa ou ao concerto tão dispendizo das cazas da Rezidencia. Que chovendo em toda esta Igreja e estando aberto o Adro que serve de cemiterio e não podendo a paróchia acudir a essas despezas, muito menos o poderá fazer para a proje(c) tada edificação ou reparo. Que, constando ao povo q. se falava geralmente que se íão suprimir as Igrejas que tivessem menos de duzentos fogos, o povo mais teimava em se oppor a qualquer finta ou derrama para obras de Paróchia, sem se saber decedidamente se esta Paró- | 4 v Paróchia, visto que não tem os dozentos (sic) fogos, fica ou he suprimida: assim o dicérão (sic) e decedírão, faltando a esta Junta o Vogal Manoel Henriques de Paiva por ligítimo (sic) impedimento mas fês-se (sic) Substituir por seu Irmão Bernardo Henriques de Paiva. E de tudo eu Secretario Antonio Caetano Ozorio Gondim lavrei esta Acta que vou assinar tambem como Prezidente. Antonio Caetano Ozorio Gondim, Manoel Francisco Pascual, Manoel Fran.co Leite, Bernardo


Henriques de Paiva» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 3 verso a 4 verso). A residência paroquial à beira da igreja apareceria só por 1955 (ver jornal O Correio da Feira de 19 de fevereiro de 1955, página 3). Ap. 18 a (Ver Visit. n.º 172) «Aos sete de Outubro de mil oito centos e sessenta em Junta de paróchia se recebêrão os paramentos q. se comprárão com a esmola de oitenta e cinco mil reis da Bulla, que vêm a ser huma Cazula nova e duas Dalmáticas brancas e vermelhas novas com sua bolsa de corporaes do mesmo tudo de damasco (sic); Duas dalmáticas e huma Cazula com sua capa preta e sua bolsa e veo mas deste paramento ficase devendo ao Vestimenteiro ou a mim vinte mil rs.; veio mais hum veo de hombros uzado para a condução do Sagrado Viático que se entregou ao Thezoureiro do Sacramento e huma Cazula branca para uzo. Todos os paramentos, à exce(p) ssão (sic) do Veo de hombros, fícão em poder de mim Abbade Antonio Caetano Ozorio Gondim, q. me obrigarei a apprezentálos quando forem, digo, quando for mister. Outro(s)sim acordou esta Junta que nunca poderíão estes paramentos serem emprestados para outra qualquer Igreja ou Capela e que quem os emprestar, fica por esse facto obrigado a pagar de multa para o Cofre de paróchia a quantia de dous mil e quatro centos rs. por cada vez que elles se emprestarem ou servirem fora da Paróchia e assinárão e de tudo lavrei esta Acta eu Prezidente, servindo de Secretario, Antonio Caetano Ozorio Gondim. O Prezid.e Antonio Caetano Ozorio Gondim, Manoel Fran.co Leite, Manoel Henriques de Paiva, o Regidor (sic) Manoel Francisco Pascual» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 4 verso). Ap. 18 b (Ver Visit. n.º 172) «Aos dezoito de Novembro de mil oito centos e sessenta em Junta pública de paróchia se rezolveo que, não havendo meios de pagar os paramentos pretos compostos duma Cazula e duas dalmáticas com sua capa pluvial, bolsa de Corporaes e veo de Cáliz tudo preto, por isso a Junta cedia os ditos paramentos pretos ao seu prezidente actual Antonio Caetano Ozorio Gondim que ficará com os referidos paramentos como propriedade sua particular que fica sendo para os poder vender, trocar ou alugar como muito bem lhe parecer

e com a obrigação de os pagar ao Vestimenteiro do Porto a quem se estão devendo e eu Prezidente Antonio Caetano Ozorio Gondim aceito o referido ónus do modo expresso e para firmeza assinamos sendo testem.as os Snr.s Manoel Joze Milheiro proprietario do lugar da Quintám desta Freguezia e Manoel Inacio da Costa e Silva, proprietario do lugar da Aldeia desta Freguezia. Era ut supra. Antonio Caetano Ozorio Gondim, servindo de Secretario a escrevi. O Prezid.e Antonio Caetano Ozorio Gondim, O Regedor substituto Manoel Henriques da S.ª, Manoel Henriques de Paiva, Manoel Pereira Coelho» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 5). Ap. 19 (Ver Visit. n.º 67) Em 18 de novembro de 1860 há uma proposta «Para vedar o Adro desta Igreja, que está servindo de Cemitério» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 5 verso) além da alusão à aquisição de um Ritual de Pio V, compra de toalhas para os 4 altares e sobrepeliz. Ap. 20 (Ver Visit. n.º 191) Em 21 de novembro de 1860 dizia um ofício do Administrador do concelho da Feira: «Todas as mezas das Confrarias devem imediatamente proceder ao Orçamento da receita e despeza para o corrente anno e enviar-mo em duplicado athé ao fim de Dezembro deste Anno» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 6). Ap. 21 (Ver Apêndice n.º 13) «Circular da Adm.ão de 14 de Fever.º de 1863 q. abule a gerencia de juiz da Igreja, mordomos da Cera etc. etc. etc. pondo tudo à dispozição das Juntas de Paróchia. Ill.mo e R.mo Snr: Não reconhescendo hoje a Lei p.ª a gerencia dos negocios parochianos outra auctoridade, corporação ou empregados além da Junta de Paróchia, devem por isso considerar-se suprimidas as attribuiçoens administrativas dos antigos Juízes, Thezoureiros, eleitos, mordomos da Cera e outros que me consta existirem ahinda em algumas paróchias, recbendo até rendimentos e fazendo despezas, quando isso he da excluziva competencia das Juntas de Paróchia, não posso deixar de ponderar a V. S.ª como digníssimo Prezid.e da Junta de

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Paróchia dessa Freguezia q. taes empregados não podem hoje existir; porém, quando a Junta reconhesça q. são necessarios para a boa gerencia dos negocios parochiaes, os deve nomiar (sic) em forma legal, ficando debaixo da fiscalização da mesma Junta todos os actos que elles praticarem e o mesmo se deve entender para com os Juízes da Cruz. Espero pois do zelo e probidade de V. S.ª se digne pôr termo a taes abuzos, sempre prejudiciaes à boa administração parochial e às dispoziçoens da Lei. Queira V. S. fazer enviar a prezente Circular ao Snr. R.do párocho que se segue e pelo último me será enviada. D.s G.de a V. S.. Adm.ão do Con.co da Feira, 14 de Fever.º de 1863. Ill.mos Snr.s P.cos da Feira, S. Fins, Pigeiros, Milheirós – Romariz e Vale. Fran.co Xavier Correia de Sá Noronha e Moura. 84

Recebida em 5 de Março de 1863 e está conforme. Ozorio Gondim»

(Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 9 verso). Havia o mordomo do livro e o mordomo da cera (ver ibidem folha 11 verso). Ap. 22 a (Ver Visit. n.º 197) Em 10 de março de 1863 o abade Osório, depois de dizer «ao prezente não conto nesta paróchia nem hum só único inimigo», acrescentou: «Agora mesmo cahio o tecto da Cuzinha (sic) da Rezidencia do passal, lá se arruinou toda a telha: toda a Caza ameça ruína e muito precizo era q. a Junta deliberasse o q. se há de fazer mas quê? não! Junta?!» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 10). Ap. 22 b (Ver Visit. n.º 197) Em 31 de março de 1863 escrevia.se: «a Caza da rezidencia parochial está dezabando e perdendo-se a telha e em perigo de haver alguma morte. Tudo isso pertence à Junta mas não a há» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 10 verso).

Ap. 23 (Ver Apêndice n.os 20 e 25) A 27 de abril de 1863: «Esta Junta logo depois q. se instaurou, tratou de chamar à sua presensa (sic) o Juiz da Igreja e os Mordomos da Cera» e «Os referidos mordomos apparecêrão e dicérão a esta Junta q. não podíão dar contas por estarem seus livros em Aveiro» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 11). Ap. 24 (Ver Visit. n.os 67 e 191 e Ap. n.os 37 e 46) A 24 de Julho de 1864 o abade Osório escreve o seguinte, dizendo que «Pretende ter no Adro desta Igreja hum Jazigo para si proprio e seus familares, que seja cercado de grades de ferro e fexado (sic) e cuja chave se conserve em poder de quem elle determinar por seu testamento, cedendo, ao mesmo tempo, da sepultura parochial que está marcada aos párochos em frente da porta principal da Igreja. Não se pode obstar à pertensão (sic) do Supplicante, alegando-se que qualquer outro párocho, que venha, pode ter igual pertensão, porque o Governo, como todos sabem, tem determinado que não se collem párochos em paróchias que não passem de dozentos fogos e além disso os serviços do Supplicante têm sido muitos e bem notórios a esta paróchia, já restaurando os passaes desta Igreja, já ensinando diversas Disciplinas eccleseásticas de que fôrão seus Discípulos os cinco Presbýteros desta paróchia e ensinando a ler, escrever e contar gratuitamente a todos os filhos dela e isto pelo espaço de mais de trinta annos da sua parochialidade e athé cedendo no campo do Condeixa a terra necessaria para se alargar o Adro. O Supplicante em premio de seus serviços não requer outro que não seja a terra para o referido Jazigo que quer marcada pela Illustríssima Junta em parte onde não sirva nunca de obstáculo nem às procissoens nem mesmo aos que viverem, pois a ninguém dezeja ser pezado nem ahinda depois de morto. Esse terreno pode ser marcado ou no Adro ou o mais vizinho ao Adro que ser possa» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 12). A Junta, considerando os serviços, isto é,| 12 «restaurando os passaes desta Igreja, uzurpados por espaço de treze annos, ensinando gratuitamente os filhos desta paróchia não só na educação primária mas athé na secundária», acabou por ir


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«concedendo-lhe que possa aproveitar-se do terreno que lhe appro(u)vér (sic), para jazigo seu e de seus Familiares, que está ao norte do campo e mato do Condeixa do Passal junto à árvore acácia (h)á pouco ali plantada, terreno contíguo ao Adro para o lado do caminho público que vem da Aldeia para a Igreja e que poderá tapar com decencia, digo, com a decencia devida ou de pedra ou de grades de ferro ou de huma e outra coiza. Com tudo (sic) os herdeiros dos falecidos, que nesse Jazigo se sepultarem serão obrigados a pagar os mesmos direitos que págão como se fossem sepultados no Adro da Igreja ou semiterio (sic) da paróchia» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folhas 12 e 12 verso). O registo de óbito do abade Osório a 5 de janeiro de 1874 diz simplesmente que «foi sepultado no Adro desta Igreja». Ap. 25 (Ver Apêndice n.os 20 e 29) A 29 de janeiro de 1865 escreve-se que «em Junta de Paróchia se elegeo Juiz e Mordomos desta Igreja» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 12 verso). Pouco antes de 1863 a Junta renunciou a esta antigo hábito. Ap. 26 (Ver Visit. n.º 197) | 13 «Acta sobre a venda dos Passaes. Aos dezanove de Fevereiro de mil oito centos e sessenta e cinco em plena Junta propoz o prezidente desta Junta o seguinte: Snr.s Vogaes desta Junta firme nos princípios liberaes que desde a minha infancia professo, amo a publicidade por educação e simpatia! Ahinda mesmo naquillo em que a Lei me favorece não gosto de embuscadas mas de consultar a opinião dos meus subordinados, declarando-lhes o q. me proponho fazer. o negocio para que vos convido he de sumo interesse para esta paróchia mas pode ser encarado por differentes faces, espero pois q. presteis toda a attensão (sic) ao q. vou dizer-vos. Em sessão de vinte e seis de Maio do anno de mil oito centos sessenta, escrita neste L.º de sessoens a folhas tres verso, eu expus a esta Junta q. as cazas dos passaes ameaçávão ruína completa, q. era de necessidade absoluta fazer de novo as paredes e acudir à telha e alguma madeira q. ahinda se podésse (sic) approveitar!

A Junta pedio então tempo para consultar o espírito do povo e em sessão de quinze de Junho seguinte (a folhas 4)1(214) declarou e rezolveu esta Junta abandonar este negocio, deixando tudo no mesmo estado. Ora as cazas cada vez se vão deteriorando mais e, se não lhe(s) acudirem com promtidão (sic), dentro em pouco se converterão em hum montão de ruínas; se athé agora não tem havido algum dezastre, he porq. eu tenho todos os annos feito o q. posso e mais q. o que posso com concertos mas estes já ali não podem continuar; as paredes, os telhados etc. tudo ameaça dezabar pela universal ruína em q. se áchão. O péssimo estado das cazas e sua situação solitaria e remota faz q. não há cazeiros p.ª aquelles bens e poucos são os criados q. ali querem pernoitar; ninguém quer nem mesmo de graça para ali ir viver; todos sabem q. alguns dos párochos meus antecessores como o Abb.e Fran.co da Costa Barboza não quiz ali rezidir por medo dos ladroens e viveu em huma caza de renda no lugar da Quintám. Daqui rezultou q. me tenho obrigado a cultivar esses passaes por mãos extranhas (sic), porq. não sou lavrador e q. o pouco ou m.to q. elles rendem ahinda bem não chega para as despezas q. faço com a cultura. Noutros termos: estou rezolvido a requerer ao Governo auctorização para os vender em praça pública e seu produto ser segundo a Lei recolhido no cofre público para isso destinado e seus juros serem dados ao párocho desta paróchia, a mim emq.to eu viver e depois de mim aos párochos q. me succederem na Igreja. O párocho não perde porq. recebe os juros de seis por cento ao anno, recebendo de seis em seis mezes; a Freguezia nada perde, antes ganha: não perde porque os rendimentos fícão sempre seguros aos párochos, antes ganha porque há mais contribuintes para as fintas e derramas. Além de q., Snr.s, he bem conhescida a grandeza do valor a que chegárão as terras; he bem sabido q. nas actuaes circunstancias nenhum párocho de juízo se propõem (sic) a fazer minas, adquirir águas, a fazer tapagens nos passaes em bens q. elle não pode nunca nem vender nem empenhar; ao mesmo tempo q. queira comprar essas terras, lhes pode fazer todos esses melhoramentos, estabelecer fábricas, enfim, colher todo o proveito.

(214)

O parêntese consta do texto.

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Se vós vos não jul- |13 v gaes com forças para consertar as Cazas, pede a prudencia que as não deixemos acabar de distrohir e q. se approveite a preço q. tudo agora pode produzir. Vender tudo he o melhor, porq., se rezervarmos alguma porção de terra por mais pequena q. seja para o párocho, podeis então para o futuro contar com huma grande finta para lhe fazer de novo huma rezidencia e esse perigo evita-se, vendendo tudo. Se vos não agrada esta minha franca rezoloção, tomai conta de todos os passaes e suas cazas, cultivai tudo por vossa conta e pagai-me o valor em q. elles fôrão calculados na minha côngrua e, havendo fiadores capazes, eu obrigome emquanto viver, a nunca mais os tirar, huma vez q. se obriguem a pagar-me a dita quantia emquanto eu vivo for; reflecti, Snr.s, que espero a vossa rezoloção e, quando nada rezolvaes, rezolvo-me eu, como vos disse, não me he possivel continuar mais com aquella cultura e não estou rezolvido a arruinar-me mais; reflecti, pensai e decidi. Declara esta Junta que no próximo domingo decediria e de tudo lavrei esta Acta eu Prezidente servindo de Secretario Antonio Caetano Ozorio Gondim, Manoel Gomes Leite, Manoel Pereira Coelho. Na sessão seguinte declara esta Junta que o povo, não precizando das cazas nem o Párocho, por isso desprezávão esta questão de conserto e q. perman(e)cesse tudo como actualmente existe. Ozorio Gondim» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folhas 13 e 13 verso). Já no tempo do sucessor do abade Osório, isto é, no tempo do abade Viana, aí por 1880, 1885, se começaram a vender partes do Passal (Condeixa, Tortim) e posteriormente a República de 1910, depois de nacionalizar o resto ainda existente do Passal, acabava por vender esse resto em 1917 (ver o nosso trabalho Santa Maria de Pigeiros da Terra da Feira Porto 1968, página 164 e o nosso estudo na revista Aveiro e Seu Distrito, n.º 32, 1983, páginas 10 e 12 ou 69 e 73 da separata). Destas vendas nasce o lugar da Igreja, etc. Ap. 27 (Ver Visit. n.º 67) A propósito do orçamento em sessão de 17 de fevereiro de 1867 o abade Osório, depois de dizer que tem | 14 «pago a lavagem da roupa da Igreja e nella feito os concertos», acrescenta:

«O Telhado da Igreja está arruinadíssimo, nella chove como (cá) fora, he necessario fazer de novo os telhados e branquear a Igreja e torre e Sacristias por dentro e por fora» e «O pavimento ou solho está quaze todo podre e esboracado (sic) pela moléstia q. a terra ganhou; he precizo dezaterrá-lla 3 ou 4 palmos, alastrá-lla de sal e mandá-la solhar | 14 v solhar de novo» e «A cazula ou paramento branco com que quotidianamente se celebra o Santo Sacrificio da missa está todo despadassado (sic) e tão podre que já não segura ponto. O Vestimenteiro Francisco Joze Teixeira de Carvalho da Rua do Loureiro no Porto não faz huma cazula com sua estola e manípulo por menos de nove mil rs.» e «Esta Sacristia não tem bancos nem assentos nem mesmo para a Junta cujos membros se vêem obrigados a estarem sempre em pé todas as sessoens» e «Esta Igreja preciza de Confessionarios»e «não há nesta Paróchia mais que duas Irmandades mas q. são tão pobres que lhes he impossivel soccorrer-nos nem a mais pequena porção, pois o pouco que têm, apenas lhes chega para as suas despezas ordinarias» e «está ahi a chegar o Verám que he o Tempo das nossas Festas e eu não consentirei que ellas se fácção emquanto se não tiverem concluído estas tão precizas obras» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folhas 14 e 14 verso). Já a partir da época da Monarquia (no tempo do abade António Inácio da Costa e Silva) o local de reunião da Junta deixou de ser a sacristia para ser na casa dum dos membros da Junta; em 1971 a escola primária feita em 1913 por doação de José Henrique Bastos passou a servir de local de reunião da Junta, por estar suspensa a actividade didáctica e a própria escola estar ao cuidado da Junta; o edifício concluído em 1983 para sede da Junta passou então a albergar as suas reuniões. Ap. 28 (Ver Apêndice 27) Em 25 de abril de 1867 escreve-se: «O párocho tem tomado à sua conta a lavagem e engomadura da roupa da Igreja, seus pequenos concertos e reparos» e o «Povo tomava à sua conta as indispensáveis e projectadas Obras, com a condição porém de que não queríão por modo nenhum fintas ou derramas na Freguezia» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 15).


Ap. 29 (Ver Apêndice n.º 13)

| 15 v «Sobre a Confraria da Cera. Anno do nascimento de nosso Senhor Jezus Christo de mil oito centos e sessenta e nove aos dezas(s)ete de Maio do dito anno, tendo-se reunido a Junta de Paróchia, prévia e competentemente convacada (sic), reuniu-se em sessão ordinaria na Sacristia desta Igreja e Freguezia de Pigeiros, concelho da Feira, sob a prezidencia do Párocho da mesma Antonio Caetano Ozorio Gondim e, estando elle prezente assim como (o) Regedor da Paróchia Manoel Francisco Pascoal e Manoel Joaquim Milheiro e Manoel Inacio da Costa e Silva, os quaes constituem esta Junta, o Prezidente expoz a esta Junta que, em conformidade com as ordens do Snr. Governador Civil, tem esta Junta de lansar (sic) mão da Confraria da Cera e S. Brás, extincta por não ter Estatutos e passando por isso à Administração desta Junta tanto a recepção dos annuaes como as obrigaçoens q. os onerávão e, considerando que esta Confraria ou Irmandade tem por obje(c)to comprar a cera para os enterramentos e procissoens como o acudir a alguma mais leve despeza q. ocorra na fábrica da Igreja como ao concerto de madeira e ferragem dos signos, aos telhados quando principiem a arruinar-se e a outros mais obje(c)tos indispensáveis e que de súbito ocôrrão, entendeu que não podia acabar esta Irmandade sem grave risco e prejuízo, | 16 eminente perigo desta Igreja por isso se entendia que ella deve ser conservada como athé aqui e que os que recuzarem pagar, séjão coagidos pelas auctoridades competentes, dando-se parte para juízo dos faltozos que houverem cada anno. E assim ficou decedido unanimamente (sic)» e «Acordou mais esta Junta que os Lumes para os defuntos serão para os cazados e viúvos quatro tochas e trinta lumes. Para os solteiros ligitimados (sic) quatro tochas e vinte lumes. Para os solteiros não ligitimados e meninos Quatro tochas e doze lumes. Que a Cera só se deve accender no momento em que sahe o corpo da caza para a Igreja; comtudo (sic) as duas velas q. estiverem no altar ao Crucifixo na caza do dorido poderão ser acezas só meia hora antes de sahir o cadáver ou corpo; estas duas velas chámão-se as do altar q. se costuma pôr à cabeça do falecido na caza em que faleceu» e «Decedio-se mais que imediatamente se fizesse hum caichão para guardar as opas de seda, humbella e tudo aquillo que se costuma pedir emprestado, seja da natureza que for e onde quer q. estiver, entrando tambem nisto as opas de seda do

Juiz. Que este caixão tenha capacidade para tudo athé para os paramentos melhores, q. tambem devem estar fecchados com cinco chaves differentes, q. estarão cada huma em differente indivíduo q. se dezignará e publicará» e«Quanto aos mendigos q. falecerem nesta paróchia terão tão somente seis lumes» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folhas 15 verso e 16). Já há bastantes anos que acabou o serviço da cera, que agora está a cargo dos armadores ou agentes funerários. Apenas resta a função de Juiz da Cruz (outrora designado Juiz da Igreja) a quem compete andar com a cruz nas cerimónias religiosas acompanhado de dois meninos chamados mordomos e velar pela limpeza da Igreja todas as semanas. Costuma tomar posse no dia de S. Brás a 3 de fevereiro, donde a razão do antigo nome de confraria de S. Brás (vide supra Ap. n.º 25). Ap. 30 (Ver Visit. n.º 133 e Ap. n.º 31 e 55) O jornal Gazeta de Lisboa de 6 de fevereiro de 1749, página 92, noticiava o falecimento em Pigeiros com 75 anos do morgado Salvador da Rocha Tavares e sua sepultura na capela-mor da igreja de Pigeiros, referindo os «innocentes costumes, com que se adornava seu espírito, distinguindose a grande caridade, com que acodia aos pobres, e a quem distribuía grande parte das suas rendas. Foy muito erudito nas divinas e humanas letras»1(215). De facto, no livro de Registo Paroquial de Pigeiros de 1733 a 1762 (conservado actualmente no Arquivo Distrital de Aveiro, depois de ter estado no Arquivo da Universidade de Coimbra) lê-se na folha 184: «Salvador da Rocha Tavares da villa de Ovar e as(s)istente nesta freguezia faleceo da vida prezente aos dezas(s)eis dias do mes de Dezembro de (mil) setecentos e quarenta e outo annos» e «está sepultado em a Capella mor desta Igreja adonde era Padroeiro». Assina o assento de óbito o P.e Coadjutor Manuel de Paiva. Salvador da Rocha Tavares2(215b) era pai do abade de Pigeiros P.e João Carlos da Rocha Tavares e irmão do abade de Pigeiros P.e Francisco de Matos Soares (que deixou bens

Agradecemos a gentileza da fotocópia do jornal Gazeta de Lisboa ao Sr. P.e Manuel Leão, de Milheirós de Poiares. (215b) A 23-4-1779 faleceu seu filho (e não seu pai como por lapso vem no dito trabalho Santa Maria de Pigeiros... p. 52). (215)

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à igreja de Pigeiros). Salvador da Rocha Tavares mudara o brasão do seu solar de Pigeiros para as suas casas de Ovar (sobre isto ver o nosso trabalho Santa Maria de Pigeiros da Terra da Feira Porto 1968 páginas 292-293 e 52 e 61 bem como os nossos estudos nas revistas Arquivo do Distrito de Aveiro, vol. 38, 1972, página 115 e 9 da separata e Aveiro e seu Distrito, nº 31, 1983, página 39 e 29 da separata). Para Pigeiros os fidalgos morgados Salvador da Rocha Tavares e bisneto Manuel Maria da Rocha Colmieiro são no valor moral totalmente opostos: péssimo bisneto perante um excelente bisavô! Ap. 31 (Ver Visit. n.º 180)

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Em 22 de fevereiro de 1871 constavam na lista dos pobres: «Joze Joaquim da Rocha, viúvo, da Bajouca; Bernardina Bernarda, v.ª da tamanqueiro, de Vinhó; Maria da Motta, solteira, e sua filha Anna nas Cavadas; Delfina Roza Febras, solteira, Cavadas; Joze Joaquim do Carmo, no Calvário; Maria Fran.ca dos Santos, solteira, Quintám; João da Silva, cazado mas fugido da mulher, na Várzia (sic)» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 17 verso). Ap. 32 (Ver Ap. n.os 14, 15 e 50) Em 26 de maio de 1872 o abade Osório entrega à Junta a chave do cofre dos paramentos pelo seguinte motivo: «pois todos sabem que pelas suas muitas moléstias, mal pode vir de sua caza a esta Igreja, sem descansar meia dúzia de vezes, vindo frequentissimamente a cavallo. Que he mui indecente q. hum párocho ande com huma chave na mão pelas cazas dos seus parochianos; q. hum homem q. já passa de setenta annos, já não pode aceitar honras nem serviços com q. já não pode, q. elle prezidente quer ter o direito de conservar sempre a sua língua solta para reprehender desmazellos, quando nesse artigo apparecem sem q. se lhe diga: mas Vossê tambem he culpado, porque tambem tem huma chave» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 18 verso). Ap. 33 (Ver Visit. n.º 67) Em 1 de janeiro de 1873 escreve o abade Osório: «o párocho toma sempre sobre si a escripturação e quanto lhe he relativo: lavar e engomar a roupa da Igreja e seus concertos» e «quanto

a Irmandades ou Confrarias, nenhuma há Canonicamente erecta, pois só huma tinha estatutos já impraticáveis pela sua antiguidade mas esses mesmos se perdêrão há annos nessas idas e vindas daqui para a Administração, dahi para Aveiro, nessas idas e vindas de cá para lá e de lá para cá perdêrãose sem se poder descubrir (sic) o seu paradeiro nem notícia delles e essa mesma Irmandade está em tal mizéria que não há quem a queira servir» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folha 19). Ap. 34 (Ver Visit. n.os 173 e 191 e Ap. n.º 43) A 20 de abril de 1873 na Junta em | 19 «reunião que teve logar no corpo da Igreja, assistindo tambem todos os Irmãos da Irmandade de S. Sebastião e Almas desta paróchia para o fim de acudir com providencias à dita Irmandade, que a declarara falida, não podendo cumprir nenhum dos seus compromissos nem satisfazendo os legados pelos Irmãos, tendo sido estes previamente convocados, declarando-se-lhes às Missas antes qual era o obje(c)to desta reunião e depois pelo toque de sinos, a campa tangida, abriu o Prezidente a sessão pelas tres horas e meia da tarde: ali se soube que a dita Irmandade há muitos annos não tinha dado contas a esta Junta e que era necessario antes declarar falida, pois q., depois que perdêrão os Estatutos, devíão dar contas a esta Junta, em conformidade com a intimação que lhe tínhão feito na Administração; no entanto principiou o prezidente desta Junta declarando q. as missas, tendo subido de preço, forçozo era diminuir aos legados e mui principalmente nos officios q. tambem havíão subido e (con)venceo-se q. cada Irmão teria por sua Alma seis missas, das quaes huma seria applicada por todos os Irmãos vivos e defuntos e teria tambem hum officio por sua Alma. Que, quanto ao officio do anniversario, que he no dia, digo, que he na véspera da Festa, ponderou o prezidente q., sendo elle em Janeiro, quando os dias são muito pequenos e concorrendo então todo o povo a confessar-se, não havia tempo para Confissoens e officio, pois q. athé agora se tem elle feito muito atrapalhadamente já fora de horas e não com os padres legaes, porq., como tarde se ia principiando o officio com dous ou tres Padres, foi pois abolido o officio do dito anniversario mas, como sempre têm de vir Padres para as Confissoens do povo, rezolveo-se que da Irmandade sairia a


esmola do Officio, sem missa, q. serão por ahi dous testoens a cada Padre “pro labore”. Alguém lembrou q. era precizo dar a cada hum dos Padres o mesmo almosso (sic), q. he bacalhao cozido com grellos, o que não excede nunca a nove centos rs. e q. esta despeza seria paga (Emendou Ozorio)1(216)| 19 v (pelo) Juiz e Mordomos q. nesse anno servicem (sic), visto q. esses mordomos nenhum outro trabalho tínhão nem outras despezas, poupando além disso as esmolas que não dãvão. Aqui gritou o Regedor desta Freg.ª em voz m.to alta que nem assinava esta acta nem servia a Irmandade quando o elegessem e isto foi dito em voz muito destemperada. Então o Prezidente, lastimando q. por tão pequena coiza se acabasse a dita Irmandade e por hum homem que he tão pompozo nas suas Festevidades, q. não duvida mandar matar vitellas e carneiros para os jantares das suas festevidades e que agora regateia quatro espinhas de bacalhao, achou elle prezidente que esta oppozição era sistemática, sem motivo algum e fechou a sessão para que mais refllectidamente se continuasse. Hoje vinte e tres do dito mez e anno nesta Rezidencia parochial da Quintám compareceu a mesma Junta composta dos mesmos Vogaes mas sem o Regedor por declarar que não assinava nem servia se se désse o(s) agazalhos aos Padres no dia do anniversario, o q. por maneira alguma se podia escuzar por elles virem de muito longe e sahirem de caza de madrugada em jejum para dizerem missa aqui onde têm de confessar às vezes athé às duas horas da tarde e com os vogaes comparecêrão outros Irmãos da mesma Irmandade e rezolveo-se: 1.º Intimar todos os Juízes q. têm servido e que athé agora não têm dado contas para que as vênhão a dar a esta Junta com toda a brevidade e, não o fazendo, dar parte delles ao D.or Delegado p.ª contra elles proceder, lá como entenderem. 2.º Abolir, como abolido fica o anniversario na véspera da Festevidade mas, como nesse dia há o Jubileu da Irmandade e que todo este povo concorre para se confessar, continuará a convidar o número de Padres necessarios para as confissoens, ficando os gerentes da Irmandade obrigados a dar-lhes o agazalho e a gratificação que em taes cazos se costuma. 3.º Que por cada Irmão que falecer, dentro dos quinze (216) As palavras do parêntese constam do texto mas não os traços do parêntese.

dias do seu falecimento ou desde que elle constar, lhe farão hum officio de cinco Padres e mandarão dizer seis missas de esmola costumada, sendo huma desses (sic) seis pelos vivos e defuntos desta Irmandade e as outras cinco pelo Irmão falecido» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folhas 19 e 19 verso). No Livro de Estatutos da Irmandade de S. Sebastião na folha 2 verso resolveu o abade Osório escrever o seguinte a 26 de janeiro de 1838: «Não havendo nestes Estatutos a necessaria clareza respeito às Missas dos Irmãos falecidos passei a informar-me com os Irmãos mais antigos e tementes a Deos e entre elles com o Reverendo Joze Francisco da Silva, Presbýtero secular da caza da Fonte da Bajouca que ao fazer desta declaração está vivo, os quaes debaixo de Juramento dicérão que antigamente se fazíão tres officios como se declara neste Estatuto com mais vinte Missas por cada Irmão falecido mas não havendo quem dissesse as Missas nem assestisse aos Officios pelo pequeno preço estipulado se juntárão os Irmãos e decedírão q. pelo Officio se desse a cada Padre a esmola do costume da terra q. prezentemente he de dozentos e quarenta rs. fazendo-se hum só Officio mas inteiro de tres nocturnos em lugar dos tres Offícios e q. em lugar das vinte Missas se dicessem dezas(s)eis de cento e vinte rs. cada huma: destas dezas(s)eis abatem-se as cinco dos cinco Sacerdotes do Officio e a confraria paga ao Párocho então mais onze Missas. Advirta-se tambem q. destas onze Missas tres são de (in)tenção pelos Irmãos da Confraria vivos e defuntos e as outras oito pelo irmão falecido». Actualmente cada irmão falecido tem 8 missas, sendo a missa da festa de S. Sebastião por todos os irmãos vivos e defuntos. Ap. 35 (Ver Visit. n.º 67) «Em conformidade com as determinaçoens do Snr. B.º em o prezente anno de 1866 tem de se eleger mulheres Devotas com as sehuintes obrigaçoens. 1.º Devem procurar a limpeza do Altar a q. pertensem (sic); pedir esmolas para comprar toalhas p.ª os m.mos Altares, lavar e engomar as toalhas não só nos dias das Festas do anno mas também nas Festevidades da Igreja e podendo ser em quaze todos so Domingos.

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2.º Procurar obter jarras e flores artificiais com q. adornem o seu Altar. 3.º Ter em seu poder os Adornos do mesmo Altar, passando esses adornos às q. depois lhe succederem na eleição futura. 4.º Podem se assim lhes convir, passar p.ª outro Altar, trocando com qualquer das outras devotas mas nesse cazo o devem participar ao Párocho, para se tomar nota dessa mudansa (sic). 5.º Podem, querendo, eleger mais devotas p.ª o seu Altar, não estando occupadas nos outros altares. 6.º Servirão desde o 1.º dia de Janeiro de 1867 athé igual dia de 1868. 7.º No último Dom.º de Dezembro de cada anno mandarão annunciar ao Párocho se continúão no mesmo Santo exercício ou se querem eleger outras em seu logar. Então se fará nova eleição para o seguinte anno, que será como esta publicada e affixada no 1.º de Janeiro mas essa eleição será só e excluzivamente feita pelas devotas de cada Altar. 8.º Estas Devotas eleitas não fícão por esta elleição excluídas de servirem as Irmandades e Confrarias desta Igreja pela pequenez da nossa paróchia e mesmo p.r q. esta he huma Devoção e as outras (são) obrigação e primeiro está esta do q. aquella. Eleição das Snr.as Devotas: a) P.ª o Altar do S.mo Sacramento: 1.ª As Senhoras Maria Roza de Rezende Coutinho, solteira, f.ª da S.ra Maria Roza de Rezende, v.ª do Snr. Capitão. 2.ª Maria Fran.ca da Silva, m.er do Snr. Regedor M.el Fran. co Pascual. 3.ª Margarida Henriques de Jezus, m.er do Snr. M.el Inacio da Costa e Silva. 4.ª P.ª a roupa da sacristia Jacintha Amelia da Annunciação. b) P.ª o Altar da Senhora das Dores e Snr. dos Navegantes (as) Snr.as: 1.ª Maria, m.er do Snr. M.el Jozé Milheiro. 2.ª Engrácia, m.er de Avelino Alz. 3.ª Maria Roza de Jezus, m.er do Snr. M.el Fran.co dias, Bajouca.

4.ª Maria Rita de Jesus, solteira (a Arrifaneira)1(217). c) P.ª o Altar de S. Sebastião: 1.ª Maria Roza Per.ª de Jezus, v.ª de Joze Alves da Fonte. 2.ª Anna Maria de Rezende, m.er do Snr. Manoel Henriques de Paiva. 3.ª Margarida, m.er do S.r M.el J.e d’Oliv.ra Ped’Arca. d) P.ª o Altar de S. Benedito: 1.ª Maria Felizarda, m.er de Fran.co Glz. d’Oliv.ra. 2.ª Maria Roza, m.er do Snr. An.to Henr.e de Bastos. 3.ª Maria Ferr.ª Pinto (a do Salvador)2(218), soltr.ª, todas das Cavadas. E p.r esta forma dou por finda esta eleição. Pigeiros, 30 de Dezembro de 1866. O Abb.e Ozorio Gondim». (Livro das Eleições das Confrarias de Pigeiros de 1866 a 1902, folha 1 verso). Ap. 36 (Ver Visit. n.º 182) «Poucos dias depois começou a constar geralmente q. o Snr. Bispo gostara muito de nós, do nosso pequenino Templo e q. ia encantado com o nosso Catholicismo; alguém quiz derriçar por elle contra mim p.ª o ouvir e elle respondeo: he hum Velho muito bom Christão e sua paróchia he huma boa Christandade; não pensei ver o q. ali encontrei: muita limpeza e muita Christandade: todos concorrêrão decentemente vestidos para se chrismar: houve muita concorrencia e muito respeito no Santuario: eu venho encantado. Pigeiros pode ser e he excedido em riqueza mas não em religião nem em decencia. Ora isto que me foi comunicado por muitas e seguras vias arrancou-me o ferro que me atravessava o coração» (Carta do abade Osório de 20 de novembro de 1864 ao P.e José Henriques da Silva). Ap. 37 (Ver Apêndice n.º 24) «vou com brevidade fazer o meu jazigo particular q. há de constar só de uma campa cercada de huma parede, com huma cruz de pedra; quero q. ao menos os meus ossos gozem depois da morte o descanso q. não tivérão em vida» (Carta do abade Osório de 30 de maio de 1862 ao P.e José Henriques da Silva). (217) (218)

O parêntese consta do texto. O parêntese consta do texto.


Ap. 38 (Ver Visit. n.º 197) «Ill.mo Snr.: A Circular dessa Adm.ão de 10 do corr.e q. acabo de receber, tenho a honra de declarar a V.ª S.ª q. esta Junta nunca juntou nada como Junta, assim como não despendeo nunca como Junta, e por isso nunca teve Orçamentos. Algumas despezas q. com o Culto se fazem, têm sido feitas por devotos q. com exortação minha e comigo se promtifícão a acudir a taes necessidades. Todavia huma precizão urgente há annos e não sei como isto se poderá remediar. Eu tenho acudido do meu bolso aos consertos da rezidencia, posto q. não habito nella mas como he muito velha e já não he sosceptível (sic) de conserto, tem forçozamente de ser edificada de novo. Do3(219) L.º das Actas a f. 3 consta q. eu consultei o meu povo p.ª ou se consertar a Rezidencia ou fazê-lla de novo prócimo (sic) à Igreja p.ª mais commodidade, tudo isto em sessão de 16 de Novembro de 18594(220). Marquei 15 dias aos Vogaes p.ª consultarem a oppinião do Povo, porq. nunca gostei de emboscadas (sic). Em sessão de 15 de Julho de 18605(221) se rezolveu a addiada materia, decedindo q. o espírito do povo da paróchia se oppunha às despezas indispensaveis ou à mudansa (sic) ou ao concerto tão dispendiozo das cazas da Rezidencia etc. Que constando ao Povo q. se falava geralm.te q. se íão suprimir as Freguezias q. tivessem menos de 200 fogos, o povo com mais tenacidade teimava em se oppor a qualquer finta ou derrama p.ª obras da paróchia, sem se saber decedidam.te se esta paróchia, visto q. não tem os 200 fogos, ficaria. Daqui rezultou hum protesto q. eu fis no m.mo L.º em q. não posso nem eu nem os meus herdeiros responder por tal desmazello. Nem na minha id.e tenho forças p.ª lançar huma nova derrama a esta Freg.ª p.r q. ahinda me lembra o q. soffri com a da Côngrua parochial; e os 70 annos não podem com tão pezados desgostos. V. S.ª consultará a quem governa e lhe rogo a bondade de me dar as suas ordens. D.s g.de a V. S.ª. Pigeiros, 11 de Agosto de 1871.

Ill.mo Snr. Adm.or deste Con.co da Feira. O párocho A. C. O. Gondim» (Carta do abade Osório de 11 de agosto de 1871 ao Administrador da Câmara da Feira segundo a cópia feita pelo mesmo abade). Ap. 39 (Ver Visit. n.º 183) «O passarada da Bajouca he o Juiz da Igreja e não deu a vitela na páscua e eu também não lhe dei de jantar a elle nem a ninguém, o povo por aqui pasmou à vista de tal e tratou-o pessimamente; elle bem conheceo o espírito do povo: andava sempre muito retirado de mim no compasso e não dizia nem huma só palavra; entrando chegava a cruz aos beiços do povo e fugia; quizérão fazer-lhe algumas demonstraçoens dezagradáveis a q. eu me oppuz, lembrando o respeito ao dia e muito mais à imagem do Redemtor (sic) q. elle levava nos braços. Eu não pude substituir-me porq. tudo estava occupado e o tal juiz forrica tinha insultado fortissimamente o P.e Firmino, entrando neste insulto suas Primas de Além do rio. Firmino chegou a dizer q., ahinda q. eu lhe désse um conto de rs., não andava com tal Juiz pela Freg.ª. Eu estava m.to doente mas fui: andava triste pela minha moléstia e o povo entendia q. era pela falta da vitela mas não era, porq. poupei m.to mais: da vitella não obzequiava eu ninguém: tudo se comia, os sobejos repartíão-se por algum velho ou doente, desconsolado, este sim fôrão os que pagárão as custas, porque sabendo do acontecido nem me procurárão. Esta dezordem produzio-me hum bem: em toda a quaresma nem bebi vinho nem comi carne de porco; de tudo isso comecei a fazer uzo no dia de Páscoa mesmo por necessidade e já nessa noute dormi sem q. a tosse me incommodasse absolutamente nada; posso dizer q. estou bom p.ª o q. estive. Só ahinda canso muito: não posso ir daqui à Igreja sem descansar duas vezes» (Carta sem data do abade Osório ao P.e José Henriques da Silva). Noutra carta de 12 de abril de 1865 ao mesmo destinatário dizia o abade Osório: «não posso chegar daqui à Igreja sem descansar no caminho duas ou 3 vezes». Ap. 40 (Ver Visit. n.º 158 e Ap. n.º 47)

No texto está “D.º”. Trata-se do livro de actas da Junta. (220) Nesse texto, citado no Apêndice n.º 15, fala dos livros paroquiais. (221) Ver Apêndice n.º 17, 2.ª parte. (219)

«(1.º) Em consequencia da Circular acima escrita fica prohibido nesta Paróchia o convidar Cruzes estranhas ou das outras Freguezias para os enterramentos e prohibido debaixo

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de pena de excommunhão maior fulminada ao q. pede e ao q. empresta, e suspensão ao Párocho q. em tal consentir. Temos pois de nos remediar com a nossa Cruz e com as Cruzes das nossas Irmandades; porq. a Cruz das Confrarias em q. cada hum andar e suas Bandeiras, com a Cruz da Freg.ª são as únicas q. podem ter lugar nos enterramentos. P.r esta occazião convido ao Snr. Juiz e Mordomos da Irmandade do Mártir desta Freguezia p.ª q. se reúnão e comprem hum padrão ou Cruz q. com a Bandeira acompanhem nossos Irmãos da Irmandade á sepultura. 2.º Convido tambem aos nossos Irmãos ou Associados da Senhora das Dores a q. se preparem p.ª darem cada hum a sua esmola p.ª dezempenhar o Padrão e comprar as capas e opas e cera e coroas e escapularios indispensáveis. E esta esmola deve ser segundo os teres e devoção de cada hum e há de ser recebida na Páscoa com os annuaes da mesma Confraria. Isto he por devoção e não he finta; por isso se receberá com agrado toda e qualquer esmola. 3.º Convido tambem os q. ahinda não entrárão nesta Associação a q. se dê(e)m pressa em entrar, para se approveitarem das muitas Graças e Indulgencias desta Santa Irmandade e athé para terem hum Enterro mais decente; porq. estamos rezolvidos a comprar tambem huma Bandeira p.ª com o Padrão acompanharem nesta Paróchia os Irmãos à sepultura e, vista a prohibição acima ordenada de pedir Cruzes estranhas, deve esta Irmandade tornar-se-nos m.to mais necessaria; ficando todos na inteligencia q. na hora da morte não admittimos Irmão algum, p.r maiores q. séjão os empenhos, como ultimamente praticamos. Pigeiros, 8 de Fever.º de 1858. O Abb.e Ozorio» (Escrito avulso do abade Osório). Ap. 41 (Ver Visit. n.os 87 e 90) Eis reacções do abade Osório registadas, a propósito do incêndio da Igreja, no livro de registo paroquial de 1815 a 1855 (ultimamente conservado no Arquivo Distrital de Aveiro depois de ter estado no Arquivo da Universidade de Coimbra). No casamento de José Francisco dos Santos com Maria Rosa a 17 de dezembro de 1843: «nesta parochial Igreja de S. Silvestre de Duas Igrejas que serve de Igreja Matris da minha freguezia de Pigeiros pelo incendio fatal com que Monstros infernaes acintozamente a incendiárão e reduzírão

a cinzas na noute de vinte e quatro para vinte e cinco de setembro do corrente anno por cujo impedimento e ordem do Excelentíssimo Senhor Bispo se constituio Matris esta referida Igreja de Duas Igrejas» (folha 92). No casamento de Manuel José de Oliveira com Maria Rosa dos Santos a 15 de janeiro de 1844: «na Capela de São Silvestre de Duas Igrejas que actualmente serve de Igreja Matris desta Paróchia de Santa Maria de Pigeiros por cauza do incendio terrivel com que infernaes Monstros acintozamente incendiárão e reduzírão a Cinzas a Igreja desta Paróchia pela meia noute do Domingo vinte e quatro para vinte e cinco de Setembro do anno findo por cujo impedimento e ordem do Excelentíssimo Snr. Bispo D. Jerónimo Joze da Costa Rebello se constituio Matris da minha Paróchia a referida Capela de São Silvestre» (folha 93). No casamento de Manuel Francisco Pascual com Maria Francisca da Silva a 27 de janeiro de 1844: «por cauza do Incendio com que Malvados Infernaes a reduzírão a cinzas na madrugada do Domingo vinte e quatro para vinte e cinco de Setembro do anno findo com o damnado proje(c)to de suprimir esta paróchia para levarem avante seus criminozos interesses» (folha ainda 93). Mas a 16 de junho de 1844 já havia o primeiro casamento na igreja de Pigeiros que era o casamento de Manuel Clemente de Oliveira com Tomázia Maria de Bastos (ver folha 94). No baptismo de Caetano, filho de Alexandre Soares e da Maria Rosa, das Cavadas, a 30 de março de 1844: «na capela de Duas Igrejas, que está servindo de Igreja Matriz desta Paróchia depois que infernaes monstros reduzírão a cinzas esta nossa Igreja na noute de vinte e quatro para vinte e cinco de Setembro do anno findo só para suprimirem esta Paróchia tão desgraçada e levassem avante seus injustos interesses» (folha 61). No baptismo de Anna, filha natural de Luísa Francisca, de Vinhó, a 15 de março de 1844: «na Capela de São Silvestre de Duas Igrejas que serve de Igreja matriz desta paróchia por ordem do nosso Excelentíssimo Snr. Bispo desta Diocese depois que infernaes monstros reduzírão a cinzas esta Igreja na noute de vinte e quatro para vinte e cinco de Setembro do anno findo só para verem se poderíão conseguir a sopreção (sic) e annexação desta paróchia e deste modo consumassem a usurpação do Patrimonio desta Igreja» (folha 61 verso). No baptismo de Maclina (sic), filha de Manuel Gomes Correia e de Luzia Rosa, de Vinhó, a 21 de abril de 1844:


«nesta Capela de Duas Igrejas que serve de Igreja Matriz desta freguesia pelo acintoso fogo que malvadissimos monstros lançárão à minha Igreja na noute de vinte e quatro para vinte e cinco de Setembro do anno findo, procurando suprimir ou annexar esta Paróchia a fim de sustentar-se na fruição do Patrimonio da mesma Igreja» (folhas 61 verso e 62). Mas no baptismo de Justino (nascido a 5 de outubro de 1843), filho de António Francisco dos Santos e de Ana Maria, do lugar da Portela, de Pigeiros, e baptizado a 15 de outubro de 1843: «na pia Ba(p)tismal da Igreja da Igreja (sic) de Romariz, por ter sido incendiada a minha Igreja por monstros infernais na madrugada de vinte e cinco de Setembro do corrente anno» (folhas 61). Ap. 42 (Ver Visit. n.º 87) A 15 de agosto de 1844 diziam os habitantes de Duas Igrejas: «por occasião do infausto e dezastroso incendio da Igreja de Pigeiros foi o SS.mo Sacramento desta depositado e guardado na ditta Igreja dos supp.es onde (a)inda actualmente se conserva mas está próximo a transferir se pelo acabamento da renovação da referida Igreja de Pigeiros» (II Livro de Visitações de Romariz, folha 31) e em fevereiro de 1849 diziam os mesmos habitantes de Duas Igrejas: «o Divino saceramento (sic) continuava a conservar-se por ordem de V. Ex.ª para a Freguezia de Pigeiros: succedeo porém que no dia 11 de Fevereiro pellas tres horas da tarde appareceo o Rvd.º Abbade de Pigeiros naquella Igreja para trasladacção (sic) solemne da Diviníssima Eucaristia para a sua nova Igreja. Os supp.es, vendo a cruel orfandade em que ficávão, pedírão todos com instancia, fervor e lágrimas ao Rvd.º Abbade de Pigeiros para que lhes deixasse algumas das Sagradas Fórmulas no seu Vazo e Saccrário (sic), ao que o M.to Rvd.º Abbade com muita repugnacia annuiu athé às ulteriores determinaçoens de V. Ex.ª a quem os supp.es imediatamente se apresentaríão» (II Livro de Visitações de Romariz, folha 31 verso). Ap. 43 (Ver Apêndice n.º 34) «Dou lhe huma mui grata notícia: a nossa Irmandade de S. Sebastião restabeleceu-se ahinda com maior segurança: o q. eu muito estimo» (Carta do abade Osório de 17 de novembro de 1863 ao P.e José Henriques da Silva).

Ap. 44 (Ver Visit. n.os 67 e 182) Pouco antes de 20 de outubro de 1864 o abade Osório dizia em carta ao P.e José Henriques da Silva: «O Snr. Abb.e de S. Jorge comprou no Porto esta semana um penico por 4:800 rs. para serviço do Snr. Bispo, assim mo dicérão na sacristia: conta fazer grande ostentação; eu pelo contrario hei de ir com a minha pobreza: espalhou-se por aqui q. S. Ex.cia gosta muito de bacalhao com couves: hei de me surtir do melhor bacalhao q. achar no Porto e mandarei fazerlhe esse seu prato tão favorito. O q. peço a D.s he q. me avizem com tempo para eu o lansar (sic) de molho porq., se me vejo obrigado a comê-lo da pessa (sic) com elle, então estou bem aviado com a minha tosse asmática» e «Os párocos se dão de comer aos Bispos he por favor, porque essa obrigação expirou com os dízimos: o Bispo se quer vizitar, traga farnel. Quando nós vamos vezitar o Snr. Bispo, elle não nos dá de jantar e (he) bem mais rico do q. nós». Ap. 45 (Ver Visit. n.os 87 e 180) O P.e José Inácio da Costa e Silva na sua Monografia inédita sobre Pigeiros recolheu o seguinte a propósito do incêndio: «como executante descobriram um tal Marinheiro, da Bajouca» (folha 24) e «Ainda hoje os velhos de Pigeiros afirmam isto e contam que um tal Marinheiro, já m.to depois do incendio, se confessara autor do crime e pago pelo Colmieiro» (folha 36). Sendo tal apelido praticamente desconhecido na freguesia, pode muito bem referir-se a João Francisco Marinheiro, citado em 1863 pelo abade Osório na lista dos Pobres (ver Visit. n.º 180 ou folha 27 verso do original do II Livro de Visitações de Pigeiros). De facto, o livro de óbitos (livro de índices) dá-o como falecido em Pigeiros a 22 de fevereiro de 1879 (folha 107 verso) com 95 anos de idade e como sendo natural de Romariz (filho de Domingos Alves e de Custódia de Jesus) e viúvo de Maria do Carmo. O abade Osório já citava em 1863 como viúvo e com 4 filhos. O facto de nenhum dos seus filhos constar do registo paroquial de Pigeiros, o facto de ser pobre e ser de fora da terra (era natural de Romariz), embora o seu nome conste no rol dos confessados de desobriga de 18721(221b), são circunstâncias a indicar que uma pessoas

(221b)

Ver nosso trabalho Santa Maria de Pigeiros da Terra da Feira Porto 1968,

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nestes casos podia bem vender-se ao Colmieiro para um arranjo de vida. Tudo isto confere um ambiente de verosimilhança ao que diziam os velhos de Pigeiros, embora por si só não seja ainda uma prova cabal, directa e apodítica mas sim alguma convergência de indícios (na altura do incêndio teria 59 anos de idade, tudo isto evidentemente sem ter em conta a grande prova da confissão do suspeito). Ap. 46 (Ver Visit. n.º 67 e Ap. n.º 24)

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Num escrito de 3 de maio de 1872 o abade Osório diz o seguinte a respeito do seu «magisterio de mais de 30 annos. Os padres na maior parte sahíão das Aldeias, de cazas de pequenos lavradores. Aprendíão a ler no seu domicílio com algum curiozo; estudávão latim com o seu Cura. Quando este os dava por promptos, sahíão de suas cazas para o Seminario Diocezano, onde tão somente se demorávão hum anno em que estudávão tão somente Theologia Moral e nada mais; ao fim de hum anno voltávão ordenados e promtos para suas cazas. Advertindo que a maior parte érão dispensados dos Seminarios, quando mostrávão que não tínhão meios para pagar ao Seminário como aconteceu à minha humilde pessoa. Era esta a praxe constante dos antigos tempos. Quanto não custou ao meu Bispo do Porto, Snr. D. João de Magalhaens e Avelar mover os seus estudantes a cursar as novas Cadeiras, que estabeleceu, no seu Seminario, de Dogma, História Eccleseástica e instituiçoens Canónicas» e «o Lavrador, pai do estudante, ia todos os domingos levar a broa, o toucinho e os feijoens ao estudante filho e fazer-lhe um sermão, declarando-lhe que, findos os dous annos, não continuaria com taes jornadas e despezas» e a respeito de um projecto de reforma comenta o abade Osório no mesmo escrito: «como poderia hum pobre lavrador sostentar (sic) tantos annos hum filho para fazer exame nos Liceos, de educação primaria (esta he muito justa)1(222), de Historia, Latim, Latinidade, Francez, Lógica, Introducção aos tres reinos da Natureza, hum anno de matemática, Dezenho, Rethórica etc. etc. etc.? e depois as aulas do Seminario já em si tão numerozas?» e «estes denominados Coadjutores, sendo ordenados, já pelas suas Ordens poderíão fazer face às suas despezas como me aconteceu a mim q. só depois de ordenado he q. estudei o pouco que sei» (222)

O parêntese consta do texto.

e «Logo depois dessa reforma, quando eu tinha deixado a vida sedentaria de magisterio, veio ter comigo hum lavrador perguntar-me quanto poderia gastar na Ordenação de hum filho, que apenas sabia ler alguma coisa. Em vista da nova reforma respondi eu: se elle não fosse estúpido, não poderia gastar menos de 3 contos de rs.. O homem tremeu porque calculava em muito menos da 3.ª parte. Tenho – dis elle – muitas filhas todas solteiras e não tenho mais q. esse rapaz; minhas filhas com a vinda dos Santos Missionarios já fizérão voto para não cazarem, para mais certa terem a sua salvação e neste cazo eu muito precizava que o rapaz se ordenasse para depois me olhar por ellas mas não tenho dinheiro nenhum e somente terras q. valerão esses 3 contos de rs. e então precizo de vender tudo q.to tenho; mas que lhe parece? Ora diga-me o seu conselho?». Em carta de 12 de novembro de 1862 ao P.e José Henriques da Silva dizia o abade Osório: «me pedia V. S.ª para lhe ensinar a ler seus Manos e immediatamente o dice a seu Pai, para que os mandasse quando lhe conviesse, ao q. elle respondeo q. os mandaria q.do os serviços mais vagassem: parece-me q. nunca os mandará, porq. o serviço na Lavoira não acaba nunca: no entanto elle q. faça o q. quizer». Em carta de 26 de janeiro de 1865 para o P.e José Henriques da Silva dizia o abade Osório: «Desde o Marquez de Pombal, quero dizer, desde o tempo do monarchismo absoluto sempre os Bispos só ordenávão o número que os reis lhes permittíão cada anno e logo no princípio do anno pedíão os Bispos ao Governo licensa para ordenar naquelle anno 100, 200 ou 300 estudantes e esperávão a permissão do Governo e não se excedíão e he por isso q. a maior difficuldade q. então sentíamos era ser admittido à Prima Tonsura; vencida esta difficuldade ficávamos como a quem tírão de cima do peito huma grande montanha. Os Bispos requeríão as licensas para certo número q. não podíão exceder; quem não era admittido ficava p.ª outro anno e depois para outro etc. Porq. o Bispo admittia: 1.º os seus fâmulos; 2.º os amigos do Cabido; 3.º os Fidalgos e seus parentes; 4.º os Afilhados dos Dezembargadores, etc. Por aqui já se pode calcular a difficuldade q. havia a vencer».


Ap. 47 (Ver Apêndice 40) Em carta de 7 de maio de 1865 ao P.e José Henriques da Silva diz o abade Osório: «Quero ver se arranjo vestidinho e mantilha de cêda (sic) p.ª a nossa Mãi S.ma das Dores: doe-me o coração por ver q. as mulheres da Freg.ª todas têm sedas e galas para estrear e nossa Mãi do Ceo esteja coberta com os mesmos farrapinhos da semana!!!!...». Ap. 48 (Ver Visit. n.º 197) O estado de coisas do tempo do abade Osório continuouse no tempo do seu sucessor, o abade João Maria de Sá Viana que em sessão da Junta de 2 de maio de 1875 | 20 v «disse elle Reverendo Abb.e que aproveitava esta occasião para chamar a attenção da Junta sobre o estado actual da Rezidencia Parochial, fasendo-lhes observar que a referida caza, ameaçando por todos os lados ruína, se achava por isso incapaz de ser habitada; que era d’extrema neccessidade providenciar a este respeito, emquanto que elle ia tomar d’aluguer uma caza para sua provizória rezidencia nas proximidades da Egreja. Ao que o primeiro Vogal, dito Manoel Ignacio, tomando a palavra, observou que a actual caza de Rezidencia precizaua d’uma reforma “a fundamentis” mas que esta Reforma de considerável despeza, por serem as cazas muitas e ligadas entre si, importava graue sacrifício à freguesia, que no longo espaço de quarenta annos que o defuncto Abbade parochiou esta Egreja nunca ali quiz rezidir, porque já a esse tempo era ruinozo o estado da referida caza e que, não só por essa cauza mas ainda pela excentrecidade (sic) e distancia à Egreja elle preferiu comprar uma caza que habitou sempre, arruinando-se por isso mesmo cada vez mais; que já a Junta, logo depois do fallecimento do mesmo Párocho | 21 tivera occasião de sondar o ânimo dos parochianos a este respeito, e observara neles decidida vontade de edificar uma rezidencia para o futuro Párocho e igual repugnancia de reformar a actual que dista da Egreja hum Kylómetro, que à vista disto parecia de máxima conveniencia ir d’harmonia com a vontade da freguesia, pedindo-ce permissão de demolir a antiga caza e aproveitando-se todo o material da mesma, edeficar (sic) junto da Egreja em alguns dos prédios do passal uma nova rezidencia.

E pelo segundo vogal foi dito que estava de perfeito accordo com as ide(i)as expendidas» (Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893, folhas 20 verso e 21). Ap. 49 (Ver Visit. n.º 191) O estado não legal das confrarias no tempo do abade Osório continuava no tempo do seu sucessor, o abade Viana, como se vê das seguintes passagens do Livro de Actas da Junta de Pigeiros de 1857 a 1893 por causa da apresentação de orçamentos na Administração do concelho da Feira: Na sessão de 18 de agosto de 1877: «enquanto a confrarias, nenhuma infelizmente aqui existe legalmente erecta com Estatutos» (folha 23 verso); Em sessão de 29 de dezembro de 1877: «nesta freguezia não há confrarias legal e canonicamente erectas, que essas chamadas confrarias que por aqui há são meras devoçoens que teem (sic) por fim festejar, à custa d’esmollas voluntarias, os Santos da devoção dos parochianos, dando e prestando no fim da gerencia contas das esmollas e Despeza à respectiva Junta, segundo a lettra da Carta da Lei de 20 de Junho de 1823 et co(e)tera» (folhas 23 verso e 24); Em sessão de 24 de agosto de 1879: «não havendo nesta freguesia confrarias nem Irmandades legalmente erectas, que por isso estéjão nas circunstancias de prestarem suas contas, a não ser à respectiva Junta segundo a Carta de Lei de 20 de Junho de 1823» e «não há Confrarias nem Irmandades na freguesia senão aquellas que têm por fim festejar os santos à custa de esmollas voluntarias e dos proprios festeiros, que por devoção promovem em cada anno a sua festita em honra do santo da sua devoção» (folha 29). Ap. 50 (Ver Apêndice n.os 15 e 32) A 8 de fevereiro de 1848 em resposta a um inquérito dizia o seguinte o abade Osório: «Hoje pelas 11 horas da manhám de 8 de Fevereiro, sendo terça-feira, me foi entregue em prezença dos meus Estudantes esta ordem de correr q. ou foi datada por equívoco do meu amável Colega acima referido2(223) ou esteve encalhada nas mãos d’algum mao portador de que o Colega preciza devassar p.ª o punir com o desprezo como merece e assim tirar-me o

(223)

Abade de Milheirós de Poiares que datou de 4 de fevereiro de 1848.

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trabalho de fazer estas penozas advertencias que me róubão tempo a mim e papel ao Ill.mo e R.mo Snr. Vigario da Vara; advertencias que as julgo indispensaveis p.ª remover de mim qualquer imputação» e «O antigo Padruado (sic) era a Caza dos Pereiras da Quintám desta freguezia de cujo Paço ahinda aqui se consérvão as paredes; estes érão os que em remotas eras apprezentávão esta Abbadia mas em 1500 e tantos vendêrão o direito desta apprezentação de Igreja ao Morgado de Ovar1(224), o qual nenhum escrúpulo teve de cometter essa Simonia demonstrada judicialmente em huns Auctos que estão no Cartorio da Câmara Eccleseástica onde eu os tenho muitas vezes lido; Auctos q. afinal parárão sem se saber o motivo q. a não ser huma segunda Simonia não se lhe(s) pode achar cauza» (Arquivo Paroquial de Romariz, maço 9-A, n.º 5). 96

Ap. 51 (Ver Visit. n.os 86, 91, 98, 112 e Ap. 56)

| 504 «Primeira Communhão dos Meninos D. Jeronymo José da Costa Rebello, Bispo Eleito e Vigario Capitular do Bispado do Porto, do Conselho de Sua Magestade Fidelissima, etc. Aos Reverendos Párochos, Clero e Fieis d’esta diocese saúde e paz. Amados irmãos e filhos, a experiencia de mutitos (sic) annos no ministerio parochial nos tem convencido que a primeira communhão dos meninos, quando é feita com aquella solemnidade e ceremonias que são proprias d’um objecto tão piedoso, não só lança nos ânimos ternos dos que commungam as sementes das virtudes christãs e sociaes, que na sua idade crescente vão produzindo abundantes fructos de boas obras, mas tambem edifica e serve de enérgico exemplo a todos os que assistem a este religioso acto. Foi por isso que Sua Magestade a Rainha Fidelissima e seu augusto Pae, de saudosa memoria, experimentaram tão vehementes sensações, quando em 6 d’abril de 1834 assistiram na paróchia de S. Nicolau da Capital àquella edificante cerimonia, que manifestaram os mais expressivos desejos de que ella se praticasse em todas as paróchias do reino. (224) Foi em 1576. Ver o nosso estudo na revista Aveiro e seu Distrito, n.º 31, 1983, página 26 e 3 da separata.

Por estes motivos temos destinado que na segunda Dominga depois da Paschoa do presente anno e nos annos vindouros no mesmo dia que se chama Dominga do Bom Pastor)2(225) se faça solemnemente em todas as paróchias d’esta diocese a primeira communhão dos meninos e confiamos que os revs. Párochos empreguem todo o seu cuidado e zelo pastoral para que este acto religioso se faça pelo modo mais decente e edificativo, segundo, quanto podér (sic) ser, as instrucçoens que abaixo se seguem. Dada no Paço Espiscopal do Porto, sob nosso Signal e Sello Capitular aos 15 de março de 1840. Jerónymo, Bispo eleito e Vigario Capitular do Porto. Instrucções 1.º Os revs. Párochos desígnarão os meninos e meninas que deuem receber a primeira communhão, atten-| 505 dendo à sua edade, ao desenvolvimento da sua razão, à sua instrucção na Doutrina Christã na parte da oração, do dogma, dos preceitos da moral e recepção dos Sacramentos, promovendo assim esta instrucção por todo o tempo da Quaresma. 2.º Na sexta-feira antes da segunda Dominga depois da Páschoa se reunirão os meninos e meninas na sachristia da parochia e o rev. Párocho collocará companheiros dois a dois, segundo a sua edade e altura, os meninos, e o mesmo as meninas, e a todos instruirá nas ceremonias que abaixo se seguem nas notas. 3.º Na sábbado outra vez se reunirão na egreja parochial, para se confessarem e o rev. Párocho, se for necessario, convidará outros confessores para o ajudarem. 4.º17(226) No domingo far-se-há a solemnidade da primeira communhão ao tempo d’aquella missa, a que concorrer mais povo, isto é, à de manhã ou à conventual, os meninos e meninas irão com os melhores vestidos e aceios e deverão assistir a este piedoso acto seus paes, mães, avós, tios, padrinhos e amos. 5.º O rev. Párocho sahirá da sachristia de Sobrepeliz e estola e indo adiante a cruz processional e os meninos e meninas em duas alas, com seus respectivos companheiros

(225) (226)

O parêntese consta do texto. No texto está “4.ª”.


e caminharão todos para a Pia Baptismal, que estará aberta e o pavimento juncado de flores e, subindo para junto da mesma Pia, dirigirá um breve discurso aos commungandos no sentido de que – É aquelle o logar onde foram regenerados, livres da culpa original, constituídos herdeiros da glória, etc. etc. etc., que foi ali que seus padrinhos fizeram em nome d’elles as mais solemnes promessas, as quaes convém que n’aquelle dia ratifiquem e façam de novo – e então lhes irá fazendo as perguntas: Renunciaes a Satanaz (amplificando-as como melhor lhe parecer)3(227) e a cada uma das perguntas responderão os commungandos em coro – Sim, Padre –. Concluídas as perguntas e respostas, ajoelharão todos voltados para o altar-mor e o rev. Párocho os ajudará a fazer um acto d’adoração e de firmeza em observarem todo o tempo da sua vida aquellas solemnes promessas. 6.º Voltando n’aquella ordem para a capella-mor, sentarse-há o rev. Párocho na cadeira parochial, ficando | 506 os commungandos em círculo em volta d’elle, os meninos à sua direita e as meninas à esquerda e então lhes dirigirá um discurso ou feito por elle ou lido por algum livro de sólida piedade em que mostre – quaes as consequencias d’uma communhão indigna. E terminará dizendo aos commungandos – que os considera instruídos na Doutrina Christã –, que sabe que confessam seus peccados e que por isso lhes estarão perdoados mas que ainda não os viu pedir perdão às pessoas a quem tenham offendido nem reconciliarem-se com os seus inimigos e que é indispensável que o façam para chegarem com a devida pureza à Divina Meza. E continuará: – aqui estou eu que sou o vosso Pastor a quem talvez tereis faltado muitas vezes ao respeito e á obediência que me deveis, aproximaevos pois de mim e vinde pedir-me perdão (1). E continuará: Ahi estão os vossos paes e mães, avós, tios, padrinhos e amos, aos quaes não poucas vezes tereis desobedecido e enfadado com os vossos ruins modos e altivas palavras; ide todos pedir-lhes perdão e a sua bênção (2). Continua o rev. Párocho: Ahi estão os vossos companheiros aos quaes talvez ainda conservareis ódios e inimizades, reconciliae-vos com elles e dae uns aos outros o ósculo da paz (3). Continua o rev. Párocho: ahi está finalmente todo o povo d’esta freguezia a quem vós tereis escandalisado (sic) com as vossas acções, palavras e desatenções; um de vós por todos lhe peça perdão

(227)

O parêntese consta do texto.

(4). Concluirá o rev. Párocho: Que as dis-| 507 posições com que os vê, o têm edificado e que os suppõe no verdadeiro estado de graça para receberem dignamente a sua primeira communhão. Então chegará o sacerdote ao altar para celebrar a missa e, em quanto que ella se diz, o rev. Párocho ajudará a fazer aos commungandos actos de preparação de fé, esperança e caridade. Em tempo competente dar-se-há a communhão primeiro aos meninos e depois às meninas e então toca-se os sinos festivamente. Acabada a missa, ensina o rev. Párocho aos que commungaram a dar graças com algumas orações ao Céo pela paz e concordia entre as nações – pela prosperidade da nossa patria – e pela conservação da vida de Nossa Augusta Soberana. Os muito revs. Vigarios da Vara farão girar esta nossa carta pastoral e instrucções pelas paróchias do seu districto e dando elle o exemplo do seu exacto cumprimento, vigiarão cuidadosamente que todos os revs. Párochos lhe dêm a melhor possivel execução, dando-nos depois parte circunstanciada de qualquer omissão ou negligencia, o que não esperamos.

(1) Então os meninos dois a dois se aproximarão e ajoelharão no degrau da cadeira parochial, dizendo em voz alta – perdão e a sua bênção – e o rev. Párocho os abençoará, seguindo-se depois as meninas e ficando todos nos seus primeiros logares. (2) Todos os meninos e meninas se espalharão pela Egreja com vagar e decencia, procurando seus Paes, mães, avós, tios, padrinhos e amos e ajoelhando lhes pedirão com humildade perdão e a sua bênção. (3) Aqui os meninos dois a dois abraçarão os seus companheiros e as meninas o mesmo. (4) Aqui um dos meninos que for mais intelligente e desembaraçado repetirá voltado para o povo um pequeno discurso que o rev. Párocho lhe terá ensinado no qual peça em nome de todos os que têm de comungar e pelas Entranhas de J. C. perdão por quaesquer injurias ou desatenções com que o tenham offendido. (M. L. Coelho da Silva, Manual do Direito Parochial, 3.ª edição, Porto 1904, páginas 504 a 507).

97


As Constituições Synodaes do Bispado do Porto de 1687, páginas 299 e seguintes, indicam a doutrina a ser ensinada: sinal da cruz, Santíssima Trindade e inteligência desse misterio, Pai Nosso, Ave Maria, Salve Rainha, Mandamentos da Lei de Deus e da Santa Igreja, Pecados Mortais e Virtudes contra esses pecados, Sacramentos, Confissão, Bem-aventuranças, Dons do Espírito Santo, Virtudes Teologais e Cardeais, Potências da Alma (Memória, Entendimento e Vontade), Inimigos da Alma, Sentidos Corporais (ver, ouvir, cheirar, gostar e apalpar), Novíssimos, Pecados contra o Espírito Santo, Pecados que bradam ao Céu, Obras de Misericórdia, Actos (de contrição, atrição, fé, esperança e caridade), Credo, Artigos da Fé.

98

Quanto ao tempo do abade Osório ver Apêndice n.º 56. Em 24 de maio de 1883 houve efectivamente a 1.ª comunhão solene das crianças, não se seguindo outras devido à falta de fruto derivado da inexistência de perseverança como se lê desta descrição do P.e José Inácio da Costa e Silva: | 104 «n’este ano que foi o de 1883 fez-se pela primeira e última vez em Pigeiros a festa solemne da 1.ª Communhão. Antes e depois d’este anno, o abb.e dava e deu sempre a comunhão em particular» e | 105 «Eram muitos os que frequentavam a catequese e se prepararam para a 1.ª comunhão em 1883» e «o Abb.e intensificou m.to a catequese n’esse ano» e «chegou a indicar-me para fazer o sermão» e «Fora marcada a solenidade para 24 de maio, dia do Corpo de Deus» e | 106 «Num domingo antes fomos examinados na igreja junto da cadeira (parochial). Ficamos apurados ao todo uns 27, uns do meu ano e outros do(s) anos imediatamente anterior e posterior. Um dia ou dois antes da festa fomos à igreja aos ensaios. Na véspera a confissão. No dia 24 celebrava-se a festa do S.mo Sacramento; e e (sic) o abb.e aproveitava assim a festa para não ter tanta despeza. De manhã lá fui com meu pai para a Quintã, no páteo da casa do Abb.e, onde nos juntamos com m.ta outra gente de Pigeiros e de fora. Nós os pequenos vestimos opas brancas e cabeção vermelho, que o Snr. Abb.e nos arranjou. As pequenas iam à la- | 107 vradeira. O meu companheiro era o Antonio do Pascoal. Formados em duas fileiras lá seguimos para a igreja e o Snr. Abb.e atraz a rezar conosco. As práticas foram feitas pelo Snr. Abb.e junto à pia baptismal e na cadeira (no

arco cruzeiro). Não houve discurso de pequeno. Fomos pedir perdão ao Snr. Abb.e e aos pais» e eu, ao ir procurá-lo pela igreja, «andava sem tino pela igreja. Depois comungamos, seguindose a missa. O Snr. Abb.e recomendou a todos que fossem confessar-se e comungar todos os mezes. Só lá apareceram para isso eu e o Rufino do Forno umas duas vezes e m.s ninguém. O Snr. Abb.e deu tambem a cada um de nós uma estampa com a imagem de N.ª Senh.ª e nas costas escripta por ele a lápis estas palavras “Lembrança da minha 1.ª comunhão em 24 de maio de 1883”. Recomen- | 108 dou que a mandássemos encaixilhar» e | 109 «Depois todos os anos lá ia dizer a doutrina ao Abbade no Domingo da Conta» e «O Abb.e perguntava a doutrina no domingo da se(p) tuagésima antes da missa do dia mas só aos que tinham comungado com ele: Sentava-se na cadeira, nós em frente em círculo e as pequenas sentadas abaixo da cadeira. Era só uma ou duas perguntas a cada um. Mas como a gente se preparava para o exame e que medo tinha dele!» (Varia, paginas 104 a 109).

Com as orientações do papa S. Pio X através do decreto “Quam singulari” de 8 de agosto de 1910 para que a 1.ª comunhão das crianças fosse o mais cedo possível (bastando o mínimo de preparação doutrinal, etc.), a comunhão solene passa a deixar de ser a 1.ª para uma outra mais tarde (feita com mais desenvolvimento, maturidade e solenidade). Depois de 1883 a comunhão solene em Pigeiros foi reatada pelo abade Guilherme Ferreira (1938-1939), sendo evidentemente não a 1.ª mas uma outra posterior. Ap. 52 (Ver Apêndice 24) No inquérito de 1845 à freguesia de Cabreiro (Arcos de Valdevez) lê-se o seguinte a respeito do pároco: «José de Almeida Barbas, abade desta freguesia, colado em 28 de Setembro de 1844, tem 44 anos de idade, foi abade na freguesia de Pigeiros na comarca da Feira; foi abade desta freguesia, colado em 1831, cuja colaçao foi julgada nula em virtude da apresentaçao e, antes de se colar novamente, foi na vila dos Arcos professor regio de lingua latina; e de boa conduta moral e tem literatura suficiente para exercer o


cargo pastoral, porque frequentou no seminario episcopal de Coimbra regularmente todas as aulas» (revista Arquivo do Alto Minho, volume 25, 1980, página 107) Ap. 53 (Ver Visit. n.º 187)

Para se crismar, o povo tinha de deslocar-se a outras terras, Assim no 1.º Livro de Registo Paroquial de Pigeiros de 1586 a 1686 (no Arquivo Distrital de Aveiro) lê-se nas folhas 144 verso e 145: | 144 v «Rol das pessoas q. Crismou o Illustrissimo Sn.or Bispo Dom Fernando de Laserda (sic) na Capella dos snr.s Conde(s) da Feira em 29 de 8bro de 16761(228):

No período abrangido pelos 2 livros de Visitações (17691873), ou seja, durante 104 anos só dois bispos vieram a Pigeiros: D. João de França Castro e Moura em 20-10-1864 (ver Visit. n.º 187) e D. Frei João Rafael de Mendonça a 10-71789 (ver Visit. n.º 23), isto é, com um intervalo de 75 anos entre um e o outro: o abade Osório julgava ir lá para a beira dos 100 anos (ver Visit. n.º 187).

Homens de q. foi padrinho o Abb.e M.el Pereira da Cunha: M.el, f.º de D.os fr.co da portella

Bertholameu, f.º de m.ª Joam

P.º Cardoso

M.el, f.º de D.os Fr.co

An.to, f.º

heitor

D.os, f.º

M.ª, Criados de Fr.co de oliueira

M.el, f.º de D.os P.º

G.co Frz.

M.el, Criado

Bento

M.el de matos

D.os, f.os de Joam Fr.co

M.el

Joam, f.º de P.º miz.

Matheus

D.os, f.º de Sebastiam Alures

Joam, f.os de P.º Alures

M.el

D.os Roiz

Joam, f.os de Joam de oliueira

An.to, f.º de m.ª Alures

M.el, f.º de Jose Frz.

Joam

Joam

M.el, f.os de D.os Joam

Aleixo

An.to

M.el, f.os de M.ª Luis (228) A data de 29-dezembro-1616, posta no nosso livro Santa Maria de Pigeiros da Terra da Feira, Porto 1968, página 88, tem de ser rectificada.

99


M.el, f.º de Cn.ª Alures

Aleixo Anriques

D.os de Barros

D.os, f.º de M.el Frz.

M.el

M.el

Joam, f.os de An.to P.to

D.os

M.el Fr.co

Sanctos, f.os de M.el heitor

D.os f.os

M.el, f.º de M.el Fr.co

| 145

100

Molheres de que foram madrinhas hu(a)s de outras:

M.ª, f.ª de D.os Fr.co da portella

Angella

Cn.ª Fr.ca

M.ª f.as

An.ta Fr.ca

D.as Glz.

M.ª, f.ª de An.to de matos

D.as

Anna, f.ª do mesmo

M.ª f.as

Isabel Fran.ca

M.ª, f.ª de M.ª Carneira

Isabel f.ª

M.ª, f.ª de Fr.ca Frz.

M.ª f.ª

Cn.ª Alures

M.ª, f.ª de P.º Cardoso

Anna Fr.ca

Anna

Anna, f.ª de M.el Fr.co

Luzia, f.os de D.os roiz

M.ª, f.ª de M.ª Joam

An.ta Roiz

M.ª Joam

An.ta Criada

M.ª Fr.ca

M.ª f.ª

Tereza f.ª

Angela Frz.

M.ª f.ª

D.as

M.ª


D.as Roiz

D.as, f.as de D.os miz.

D.as

Angela Fr.ca

M.ª, f.as de Sebastiam alures

M.ª

Natalia, f.ª de Joam de oliueira

Cn.ª, f.as de aleixo Fr.co

M.ª, f.ª de Jose Frz.

Isabel Luis

M.ª, f.ª de M.el Frz.

Joann(a) f.ª

M.ª

D.as, f.ª de M.el Fr.co1(229)»

D.as, f.as de M.el heitor No 2.º Livro de Registo Paroquial de Pigeiros de 1687 a 1733 (no Arquivo Distrital de Aveiro) lê-se nas folhas 48 a 49: | 48 «Aos dés dias do mês de 7bro de (1)705 annos em a igreja de São Giorge, admenistrando nella o sacramento da confirmasão o Reuerendícimo, digo, o Illostrícimo Snr. D. Frei Juseph de S.ta Maria, Bispo deste Bispado do Porto, fôrão Chrismados as pes(s)oas seguintes e de todos foi Padrinho o R.do | 48 v P.e M.el Alures Coadjutor da igreja de Guizande: M.ª, filha Legítima de D.os Marinho e de M.ª An.ta do Lugar de Tarei, frg.ª de Travanqua deste Bispado e de prezente acistente em esta frg.ª em caza de seu avô M.el Fr.co do lugar de Trezuma; e M.el, f.º legítimo de Pascoal Alures, do Lugar d’Aldeia e sua irmã M.ª e João, f.º Legítimo de M.el Fr.co do mesmo lugar e seus irmans An.to e Maria e Joanna, filha de D.os Alures do lugar da portela e Domingos e Fr.co, filhos de Pedro da Mota, do lugar do Sobreiro e feleciano e Maria, filhos de M.el Henriques do mesmo Lugar e M.el, filho de Fr.co de Pinho de Guizande, acistente em esta frg.ª em caza de Aleixo Fr.co da Preza, seu tio e M.el, filho legítimo de Henrique da Cilua (sic) do lugar da Baiouqua e Anna, filha legítima de M.el Dias da Costa e João seu irmão e M.el e Izabel, filhos legítimos de M.el Dias do Barreiro e M.el e Antonio, filhos Legítimos de An.to Fr.co de Pedarqua e Fr.co e M.ª e Thereza, filhos legítimos de D.os coelho do Lugar da quintám

M.ª e Mariana, f.as Legítimas de An.to de São tiaguo do mesmo Lugar e Domingos e João, filhos legítimos de M.el frz. do mesmo Lugar e Mannoel (sic) q. de antes de chamaua Pedro, filho de M.el Coelho e de sua m.er D.as de Jezu(s) e na Chrisma mudou o nome; e Maria e Hiacinta e | 49 Llenoarda e Caterina, filhas de M.el Henriques de São tiago do Lugar d’aldeia e Domingos, filho de M.ª Fr.ca do mesmo Lugar e M.el, filho de M.el Henriques de São Fr.co do mesmo Lugar e Maria Anna e Manoel, filhos de D.as de S.ta Clara, v.ª do Lugar de Cima d’aldeia e M.el, f.º de An.to Fr.co do mesmo Lugar e M.el e Jusepha, f.os de Paullo de Almeida, do lugar da Uarge e M.el, filho de Andre de Paiua do lugar da Trezuma e Maria e Joanna, filhas de M.el Frz. do Couto, do Lugar de baiouqua e Roza, f.ª de An.to de Sá do mesmo lugar e M.el e D.os, filhos de D.os Fr.co do lugar de Trezuma e M.el e Marianna, filhos de M.el Heitor (?) da Baiouqua e D.os e M.el, filhos de D.os Pedro de Bastos do Lugar da Portela. Todos os acima deste acento (sic) são filhos Legítimos e por uerdade fis este acento. Dia, era ut supra. (229) Explicação de algumas abreviaturas: D.os (Domingos), P.º (Pedro), Cn.ª (Catarina), Fr.co (Francisco), Frz. (Fernandez), Glz. (Gonçalvez), G.co (Gonçalo).

101


O Abb.e Fr.co de Matos Soares». No nosso livro Santa Maria de Pigeiros... (citado na nota 228) publicámos nas páginas 350 a 353 a lista dos crismados em Pigeiros a 10 de Julho de 1789 pelo bispo D. João Rafael de Mendonça, crismados esses que vêm no Livro do Registo Paroquial de Pigeiros de 1784 a 1815 nas folhas 140 a 142. Ap. 54 (Ver Visit. n.º 197)

102

Diz o abade Osório a 19 de julho de 1858: «Não se sabe a épocha: a Igreja era antigamente ao pé da Rezidencia parochial e disso réstão vestígios, parece q. haverá 200 a.s mudárão-na para mais prócimo da Povoação» (Arquivo Paroquial de Romariz, maço 10, n.º 9). Quer dizer, a igreja outrora era no passal onde estava a residência paroquial antiga (a igreja depois passou para o actual sítio, tendo a residência paroquial vindo só muito mais tarde, em 1955, para a beira da mesma igreja). A tradição popular localiza a primitiva igreja no passal no campo chamado Sagrado. De facto, nos tempos antigos aparece a palavra Sagrado a designar a “igreja”, “adro” e “cemitério” (outrora sepultava-se na igreja), como se vê dos textos seguintes: a) no sentido de “igreja”: «Solo qe tu comigo vengas al mi sagrado mostrar.t é a Maria con el su buen criado» (Gonzalo de Berceo, El Libro de los Milagros de Nuestra Señora, Universidad de Granada 1986, página 199, verso 648); b) no sentido de “adro”: «Eno sagrado en Vigo bailava corpo velido» (José Joaquem Nunes, Cantigas de Amigo, nova edição, volume II, Lisboa 1973, página 445, cantiga 496; ver volume III, 1973, página 678); «Antoniño, meu Antonio, meu caravel encarnado, onde foche oíla misa iste domingo pasado que te non vin na igrexa nin darredor do sagrado» (Xoaquin Lorenzo Fernández, Cantigueiro Popular da Limia Baixa, Vigo 1973, pág. 42); Em Trás-os-Montes sagrado significa ainda o “adro da

igreja” (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, coordenação de José Pedro Machado, volume X, Lisboa 1981, pág. 534); c) no sentido de “cemitério”: «Ao sagrado foron e à agua ffria o viron jazer o mui culpado» (Afonso X o Sábio, Cantigas de Santa Maria, editadas por Walter Mettman, volume I,Coimbra 1959, página 36, cantiga 11, verso 85); Na colectânea de Antonio Garcia y Garcia, Synodicon Hispanum, volume I, (Galicia) Madrid 1981 deparam-se estes textos: «Non soterren en sagrado quando morreren», ano de 1340, Orense (pág. 97), «Para lo enterrar en sagrado», fins do século XV, Orense (pág. 132), do excomungado «el cuerpo no se entierra en sagrado», ano de 1543 a 1544, Orense (pág. 155); «Soterrálo em sagrado» anno de 1489, Chaves (Tratado de Confissom, editado em Lisboa em 1973 por José V. de Pina Martins, pág, 198, coluna 1, linha 18, havendo a alusão ao “logar sagrado” nas pág. 204 e 228); «os escomurgados nem sejam enterrados em sagrado» e «nã enterre em sagrado e suas egrejas ou moesteiros» (Constituições Sinodais do Porto de 1541, folha 91 verso). As Constituições Sinodais do Porto de 1687/1690, pág. 363, dispunham: «Da igreja, que se extingue, se transferirá tambem os ossos dos defuntos que estiverem enterrados nella pera a dita igreja pera onde for transferida, ou pera outro lugar Sagrado e se porá hua cruz em que de antes estava a capella mor ou altar principal da igreja extincta» mas no campo chamado Sagrado no passal não resta qualquer cruz. Ap. 55 (Ver Ap. n.º 30) Salvador da Rocha Tavares sabia Latim, estudou Filosofia no colégio dos Jesuítas no Porto e cursou Jurisprudência Pontícia11 na Universidade de Coimbra, tendo feito um estudo sobre a genealogia da nobreza da comarca da Feira e província de entre Douro e Minho. Praticamente não exerceu

1 Não será “Pontifícia”? [Nota: Carla Ferreira]


a especialidade a fim de se dedicar à administração dos seus bens e propriedades (ver Diogo Barboza Machado, Biblioteca Lusitana, volume III, Lisboa 1752, página 670)2(230). Ap. 56 (Ver Ap. n.º 51) Eis como o abade Osório no rol de desobriga de 1872 descreve no dia 21 de abril de 1872 a comunhão dos meninos: «Celebrei a 1.ª Communhão geral dos Meninos com todas as formalidades q. determina a Pastoral e Instrucçoens de 15 de Março de 1840» (folha 5 verso) e na (folha 8 verso) escreve (riscando o n.º 7 por estar repetido no 2.º): «Abril em 27 de Abril (sic) de 1873 commungárão a 1.ª vez 1.º Domingos, criado do Snr. P.e Firmino; 2.º Albina da Thereza, cazeira da Quintám. 3.º M.el da Gui(o)mar da Quintám. 4.º M.el Marinheiro. 5.º J.e, f.º de Joaq.m Valente, Moleiro na Varzea. 6.º Roza, criada do Snr. Almeida. 7.º Albina da Thereza, cazeira da Quintám. 8.º M.el da Fonte. 9.º M.el Justino de Oliveira Costa. 10.º Quintino Milheiro. 11.º Joaq.m Dias. 12.º An.to, f.º de An.to Per.ª Fragozo – Aldeia». Por conseguinte, a afirmação de que a comunhão solene dos meninos foi pela 1.ª vez em 1883 (ver supra página 257) deve ser rectificada ou matizada (a de 1883 terá tido provavelmente mais solenidade). Conforme vimos num Breviário (Liturgia de Horas) da época, a páscoa em 1873 foi a 13 de abril, pelo que o 2.º domingo depois da páscoa (ou 3.º incluindo a páscoa) e que nesse tempo era o domingo do Bom Pastor foi precisamente a 27 de abril, data pois da referida e preceituada comunhão dos meninos (na actual reforma litúrgica o domingo do Bom Pastor é o 3.º depois da páscoa ou 4.º incluindo a páscoa).

(230)

Ap. 57 (Ver Domingos A. Moreira, citado livro Santa

Agradecemos a gentileza destes dados ao Sr. p.e Manuel Leão de Milheirós de Poiares, que nos facultou a sua biblioteca.

Maria de Pigeiros... p.164 e Documentos Históricos sobre Pigeiros-Feira, Aveiro 1983, p. 67 sgs.) «Venda dos Passaes: 1875 e 1885. Vendeu-se o Campo da Condeixa em 25 de junho de 1875. Compraram-no o António Sapateiro e João Dias, de Cimo d’Aldeia, por 325$000. Vendeu-se o Campo da Terra Nova do Tortim, dividido em 3 glebas. a contar, do Nascente ao Poente, ficando em com a 1.ª, a Luiza do Padre com a 2.ª e o Rufino do Reitor para o sobrinho Manoel que estava a esse tempo no Pará com a 3.ª gleba, todas por 310$000, sendo a 1.ª por 100$000, a 2.ª por 090$000 e a 3.ª por 120$000. Foram vendidas em Aveiro em 16 de dezembro de 1885. Vendeu-se o Campo do Tortim em Lisboa no dia 19 de outubro de 1885. Comprou-o o Quintino Milheiro por 1.051$000. Vendeu-se a Tapada do Calvário em Lisboa no dia 19 de outubro de 1885. Comprei-a por 754$500. Venderam-se as restantes glebas do pinhal em Aveiro em 14 de outubro por 1.471$500» (caderno de apontamentos de contas do abade João Maria Sá Viana, cuja fotocópia me cedeu amavelmente o Padre Pinho Nunes, de Seixo – Ovar). Ap. 58 (Jornal Periódico dos Pobres no Porto, n.º 242, de 13-10-1843, página 1179 sobre o incêndio da igreja de Pigeiros) COMMUNICADO Incendio acintoso da Igreja de Sancta Maria de Pegeiros, commarca da Feira, bispado do Porto. Em 1833 fui despachado pelo Sr. D. Pedro para esta Igreja, e dous mezes depois fui esbulhado da posse da Residencia e Passaes: representei ao Govêrno, que pelos seus Delegados promoveu essa demanda: sahiu sentença na Feira a favor do Ministerio Público, e por consequencia da Igreja; vai em dous annos que se acha appellada na Relação dessa Cidade sem que até agora se decidisse do seu merito???? Colocado em uma Igreja das mais pobres do Reino, e desejando ser util a minha Patria e aos meus concidadãos, propuz-me ensinar 1.as letras, Latim, Logica e Theologia, e em breve vi um pequeno Lyceu ecclesiástico na minha casa. Com os meus Discipulos fiz preces públicas pela

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Confirmação e Sagração de S. Exc.ª R.ma, cujas virtudes muito respeitão os bons Portuguezes. Celebrada esta, occorreu-nos o pensamento de cantar um Te Deum em acção de Graças; escolhemos o dia 24 de Setembro do corrente anno: foi convidado para cantar a Missa o Padre Joaquim José de Pinho, de Macieira, Diacomo Antonio Francisco de Oliveira de Çezar, que no Sabbado antes recebêra de S. Exc.ª aquella Ordem, e Subdiacono o Revd.º Ignacio José Joaquim, todos meus Discipulos em Theologia. Uma salva de 21 tiros de morteiro annunciou a aurora, meio dia e noite daquelle Domingo, toda a Igreja offerecia a perspectiva d’uma risonha Primavera pela abundancia e boa collocação das jarras e das flores. Como eu havia pedido aos meus Discipulos o favor de se confessarem e commungarem á Missa Solemne, por isso e outros motivos principiou ás 9 horas e meio em ponto. Alguns dos meus estudantes tínhão de cobrir naquelle dia a sua sobrepeliz por Graça de S. Exc.ª. Conduzidos pois ao arco da Igreja os estudantes agraciados Manoel José Pereira Duarte, Firmino José Henriques Coutinho, Bernardo Alves Gomes dos Santos, Manoel Ferreira Pinto, Antonio Domingues da Conceição, e José Ferreira Coelho, collocados em frente da Cadeira Parochial ouvírão o Discurso que lhes recitei sobre as virtudes d’um ecclesiastico de que a sua sobrepeliz era emblema: tinha eu ensinado aos meus Estudantes o pouco que sei de cantochão, que elles pela 1.ª vez comigo exercitárão em público. Concluido o augusto Sacrificio pela conservação e prosperidade de S. Exc.ª R.ma, todos os meus Discipulos me accompanhárão a minha casa onde tomamos uma pequena refeição, da qual não havia uma mais deliciosa eguaria que fazermos junctos uma saude ao nosso Exm.º Bispo o Sr. D. Jeronymo José da Costa Rebello: a esta importante saude assistiu tambem o meu antigo amigo o Rd.º Domingos José Pinho e Sousa, Cavalleiro da Ordem da Conceição, Abbade de Romariz e duas Igrejas, e Prior resignatário de Murogem o qual das 4 para as 5 da tarde levantou o Te Deum diante do SS. Sacramento exposto no Throno com a maior decencia; assistírão de capas os Sacredotes da freguezia, e o Revd.º Manuel Maria de Sousa Brandão, Cavalleiro da Ordem de Christo e Abbade de Alquerobim do Bispado de Aveiro; regeu o Coro com os meus Discipulos o Parocho de S. Vicente de Louredo habilissimo Cantor Antonio José de Sousa Caldas; assistiu o Regedor com seus Cabos fardados e armados. Depois de todo concloido e passadas mais de duas horas,

fui por mim mesmo examinar na presença do Thesoureiro da Juncta e de João Alves se a cera estada apagada e as portas com segurança. Á uma da madrugada ouvi vozes de fogo na Igreja, acudo rapidamente com as chaves, e vejo a porta principal cahindo a pedaços já queimada; inteiramente perturbado abro a porta da minha Sachristia, rompo por entre as chamas para accudir ao sagrado Vaso, mas tive de me retirar já mui crestado do fogo, porque toda a Igreja estava convertida em fornalha ardente; accudiu-se a esta Sachristia e á que lhe está fronteira onde o fogo não penetrou salvando-se os paramentos. Vendo eu todo o Templo reduzido a cinzas retirei-me ja constipado e muito doente, accompanhado da Juncta, Regedor e Juiz eleito; e sem que nenhum de nós reflectisse, démos parte ás authoridades na hypothese que seria um desastre occasionado pelo murrão d’alguma vella que se desprezasse. A minha magoa e doença não me deixava raciocinar, e sendo visitado pelos meus amigos tanto desta como d’outras freguezias todos insistíão em que o fogo fôra acintosamente lançado para um fim, que so á força de agoa-raz ou qualquer outro combustivel incendiario é que a Igreja podia toda reduzirse a cinzas em menos d’uma hora, que à meia noite passando por ella Thomaz José Coelho com 3 mulheres para Carvoeiro vírão pela fresta a luz da alampada no estado em que sempre costumava estar; que á uma hora estava a Igreja ardendo toda simultaneamente porque o fogo lhe fôra lançado em todos os lados; que os 1.os que chegárão á Igreja vírão o fogo caminhar de baixo para cima a junctar-se com o da Capella mór. Á vista destas reflexões observei a Igreja destruida e vi que a porta principal e a travessa do lado do Sul foram todas redozidas a cinzas sendo todas dobradas chasteadas12 e chapeadas de ferro, e que as das duas Sachristias mui proximas ao Throno sendo singellas e sem ferragem apenas forão tocadas; que a Capella mór e inteiramente separada da Igreja por um arco de pedra, e lageada no seu pavimento, e por isso não podia o fogo da Capella mór passar para a Igreja, nem desta para aquella, e muito menos tão rapidamente; q a Pia baptismal está debaixo d’uma abobeda de pedra e igualmente lageada, e que o fogo não entrando nas duas Sachristias entrou alli e com tal violencia que fez estalar a mesma Pia, porque lhe foi lançado por um occulo que alli está a uns andores que alli se guardavão. Pela voz pública passou o Juiz a formar o Corpo de delicto 2 Palavra pouco legível [Nota: Carla Ferreira]


no dia 3 do corrente, e no dia 6 accudírão os Meretissimos Juiz de Direito, Delegado e Escrivão da Feira, e ja se principiou o Summario. Aquelle mesmo que todos apontão como executor do incendio assás se tem manifestado pelos seus medos: no dia seguinte ao incendio passou por elle o Regedor com um Cabo; elle andava em um campo com um pequeno filho, e ao ver o Regedor todo se sobresaltou e procurou evadir-se, e nesse estado foi indagar o que por alli fazia o Regedor. O fogo foi lançado a esta Igreja não pelos filhos della; boas lagrimas tem elles chorado: mas por quem deseja a freguezia supprimida para seus injustos interêsses: o fogo foi mandado lançar á Igreja por um monstro, e a sentença foi executada por outro monstro: o fogo foi lançado á minha Igreja por esse barbaro que no dia do Coração de Jesus deste anno encheu as portas da Igreja de pasquins escarnecendo dos Sanctos da mesma Igreja: esses pasquins mostravão seu author infame e estupido, e me obrigárão a fazer preces públicas em desaggravo dos mesmos Sanctos nos dias 23, 24 e 25 de Junho do corrente anno. Estou á espera de ver reduzida a cinzas a minha propria casa e se eu escapar do fogo, não escaparei d’um bacamarte e conheço o malvado que eu estou ao facto de todos os seua planos, arrancos da sua desesperação. Se eu for assassinado serão presentes ás averiguações da justiça certos esclarecimentos que por ora devo conservar em silencio. Rogo-lhe, Sr. Redactor, o obsequio de inserir esta fiel exposição no seu accreditado Periodico.

De V. muito obrigado, O Abbade Antonio Caetano Ozorio Godim. Pegeiros, 10 d’Outubro de 1843. Ap. 59 (Jornal Periódico dos Pobres no Porto, suplemento ao n.º 185, de 14-novembro-1844, depois da p. 352 sobre as esmolas para a reconstrução da igreja incendiada de Pigeiros. O suplemento consta de 2 páginas.) APPENSO AO PERIODICO DOS POBRES N.º 185.

Producto da Subscripção mandada promover pelo nosso Exm.º e Revm.º Bispo, o Snr. D. Jeronymo José da Costa Rebello, por carta sua ao Illm.º Snr. Administrador deste Concelho, e circular aos Snrs. Reverendos Parochos de toda esta Commarca Ecclesiastica da Feira, na data de 6 de Outubro do anno findo, em beneficio da reedificação desta Igreja de St.ª Maria de Pigeiros, reduzida a cinzas, com tudo quanto em si continha, na madrugada de 25 de Setembro de 1843.

Cidade do Porto – Nosso Exm.º e Revm.º Bispo D. Jeronymo ..................................................................................... 40$000 Bahia – Domingos Henriques dos Reis ..................................................................................................................... 50$000 S. João da Madeira – Commissões do Reverendo Abbade ........................................................................................... . 4$050 Couto de Cucujães – Dictas do Rev. Abbade Peixoto .....................................................................................................5$230 Nogueira de Cravo – Dictas do R. Abbade ..................................................................................................................... $660 Sandim – Dictas do muito Rev. Reitor ..........................................................................................................................2$045 Guetim – Dictas do Rev. Parocho ................................................................................................................................1$365 Crestume – Dictas do Rev. Parocho ............................................................................................................................ 1$325 Serzedo – Dictas do Rev. Parocho.................................................................................................................................1$240 Gulpilhares – Dictas do Rev. Abbade.............................................................................................................................1$640 Villar de Andorinha – Dictas do R. Reitor........................................................................................................................1$545 Serzedo – Donativo do Rev. Reitor...................................................................................................................................$560 Olival – Dicto do Rev. Abbade....................................................................................................................................... $480 Oliveira do Douro – Dicto do Rev. Vigario ......................................................................................................................2$065 Sandim – Dicto do muito Rev. Reitor.............................................................................................................................1$680 Espargo – Dicto do Rev. Abbade...................................................................................................................................1$200 Samfins – Dicto do Rev. Vigario ...................................................................................................................................1$200 Souto – Dicto do Rev. Reitor .........................................................................................................................................$720

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Ovar – Dicto do Rev. Vigario ........................................................................................................................................5$330 Madail – Dicto do Reverendo Parocho ..........................................................................................................................1$460 S. Martinho da Gandra – Dicto do R. Reitor ....................................................................................................................$240 Cezár – Dicto do Reverendo Abbade ............................................................................................................................2$560 Villa Maior – José Pinto Fontes, doze barrotes no valor de ..............................................................................................4$320 St.º André da Barra – Donativo do R. Reitor ..................................................................................................................1$440 Magdalena – Dicto do Reverendo Parocho ....................................................................................................................2$400 Oliveira de Azemeis – Não querendo o Reverendo Reitor promover a Subscripção escreveu esta Juncta ao Illm.º Snr. Manoel Luis Ferreira, que a promoveu contribuindo com ....................................................................................................................$960 A mesma – Illm.º Snr. Doutor Juiz de Direito Caldeira .....................................................................................................1$200 A mesma – Illm.º Snr. Ant.º Carlos de Castro .................................................................................................................. $960 A mesma – Illm.º Snr. Antonio Rebello Valente Alves da Silva ........................................................................................... $480 A mesma – Illm.º Snr. João Rodrigues da Costa Simões ...................................................................................................$480 A mesma – Illm.º Snr. Manoel Joaquim da Fonseca ........................................................................................................ $480 A mesma – Antonio de Castro Cerveira Corte Real ...........................................................................................................$480 A mesma – Illm.º Snr. Francisco Antonio de Bastos Paula ................................................................................................$480 A mesma – Illm.º Sr. Custodio José da Rocha .................................................................................................................$480 Pardilhó – Comissão Parochial .....................................................................................................................................3$385 Bonheiro – Dicta Dicta .......................................................................................................................................5$650 Fajoens – Dicta Dicta ......................................................................................................................................... $480 Total desta Subscripção 150$270 Relação da Subscripção mandada promover pelo Illm.º Snr. José Correa Leite Barboza, Administrador dos Concelhos da Feira e Fermedo. Airas de S. Jorge – Illm.º Snr. Administrador José Correa Leite Barboza ........................................................................... 2$400 Villa da Feira – Subscripções do Regedor .....................................................................................................................5$125 S. Jorge – Dictas do Regedor ..................................................................................................................................... 2$640 Paramos – Dictas do Regedor .................................................................................................................................... 2$760 Fornos – Dictas do Regedor ........................................................................................................................................ 2$675 Esmoris– Dictas do Regedor ....................................................................................................................................... 1$720 Canedo – Dictas do Regedor ...................................................................................................................................... 3$410 Arifana – Dictas do Regedor .......................................................................................................................................1$440 S. João de Ver – Dictas do Regedor ........................................................................................................................... 3$675 Travanca – Dictas do Regedor .................................................................................................................................... 2$880 Arada – Dictas do Regedor ..........................................................................................................................................1$800 Maceda – Dictas do Regedor ....................................................................................................................................... $800 Villa Maior – Dictas do muito Reverendo Reitor e Regedor ............................................................................................. 5$150 Espargo – Dictas do Regedor......................................................................................................................................... $960 S. Fins – Dictas do Regedor ....................................................................................................................................... 1$080 Escapães – Dictas do Regedor ................................................................................................................................... 1$680 Passos de Brandão – Dictas do Regedor ...................................................................................................................... 2$380 Cortegaça – Dictas do Regedor ....................................................................................................................................1$170 Silvalde – Dictas do Regedor ........................................................................................................................................2$400


Louroza – Dictas do Regedor .......................................................................................................................................7$910 S. Martinho d’Argoncilhe – Dictas do Reg. ....................................................................................................................4$360 Anta – Dictas do Regedor ...........................................................................................................................................2$570 Nogueira – Dictas do Regedor .................................................................................................................................... 1$840 Rio Mião – Dictas do Regedor .................................................................................................................................... 1$650 Mozelos – Dictas do Regedor ..................................................................................................................................... 3$600 S. Guedo – Dictas do Regedor .....................................................................................................................................3$120 Pigeiros – Dictas do Regedor, e Abbade ...................................................................................................................... 16$600 Lamas – Dictas do Regedor ........................................................................................................................................ 2$380 Oleiros – Dictas do Regedor ....................................................................................................................................... 2$410 Souto – Dictas do Regedor ...........................................................................................................................................$960 Mosteiro – Dictas do Regedor ......................................................................................................................................2$085 Milheiros de Poares – Dictas do Regedor ..................................................................................................................... 3$240 Fiães – Dictas do Regedor ...........................................................................................................................................$990 Guizande – Dictas do Regedor ..................................................................................................................................... $380 Lever – Dictas do Regedor ..........................................................................................................................................1$200 Lobão – Dictas do Regedor ..........................................................................................................................................6$045 Gião – Dictas do Regedor ..........................................................................................................................................1$900 Fermedo – Dictas do Regedor .................................................................................................................................... 1$920 S. Vicente de Louredo – Dictas do Regedor ................................................................................................................. 1$760 St.ª Maria do Valle – Dictas do Regedor .......................................................................................................................3$500 Escaris – Dictas do Regedor ....................................................................................................................................... 3$440 Romaris – Dictas do Abbade e Regedor .....................................................................................................................12$100 S. Miguel do Matto – Dictas do Regedor .....................................................................................................................1$100 Mansores – Dictas do Regedor .....................................................................................................................................$755 Somma esta segunda Subscripção 133$960 Total de ambas as Subscripções 294$230 Esta Juncta em seu nome e de todos os seus Parochianos mui respeitosamente agradecem a S. Exc.ª Revm.ª o cuidado e zêlo verdadeiramente Apostolico com que mandou promover tão Religiosa Subscripção – a avultada somma com que se dignou abrir a Lista dos Donativos –, e em fim a Piedade, superior a todos os elogios com que prendou a nossa nova Igreja com mui formozas e devotissimas Imagens. Não pode tambem esta Juncta deixar de dirigir sinceros votos de gratidão e reconhecimento ao dignissimo Administrador deste Concelho e Fermêdo, pelo seu esmero em promover as Subscripções pelos seus Regedores. Destes nem um so deixou de obdecer á voz do seu superior, á voz da Religião e da humanidade, ao mesmo tempo que, havendo nesta Commarca Ecclesiastica da Feira 87 Parochos, que todos recebêrão a Circular de S. Ex.ª Revm.ª, apenas de 28 podemos fazer menção nas nossas Listas!... A estes 28

dignos Parochos, verdadeiros Mestres da Caridade Evangelica, a todos os Snrs. Regedores, e mui Illustres Personagens, a todas essas Almas tão sensiveis e caridosas, fazemos solemnemente contar o nosso mais vivo reconhecimento, pois nos evitárão uma pezadíssima contribuição e abrigárão as Familias d’uma Parochia inteira, que até agora assistíão á St.ª Missa expostas á chuva, ao vento, e á neve; e saibão todos que suas esmolas forão mui escrupulosamente empregadas nas indispensaveis obras de Pedreiro e de Carpinteiro, e que a Igreja está já mui decentemente armada e telhada, faltando ainda Altares, utensilios e paramentos. – E não nos sendo possivel agradecer pessoalmente a todos, nós o fazemos, pedindo ao Sr. Redactor do Periodico dos Pobres do Porto se digne inserir as duas mencionadas Listas e estes sinceros agradecimentos no seu interessante Periodico; entretanto que nós conservaremos sempre os

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nomes dos nossos principaes Bemfeitores escriptos em 3 decentes Listas, collocadas sôbre o Arco Cruzeiro da mesma Igreja, para eterno Documento de Piedade e gratidão. Pigeiros, em Sessão extraordinaria da Juncta de Parochia de 16 de Outubro de 1844. – O Presidente e Secretario, Antonio Caetano Ozorio Goudim. – O Regedor, Manoel Francisco de Sá. – Vogal, Manoel José Alves de Oliveira. – Vogal, Manoel Francisco Leite. – O Secretario, Antonio Caetano Ozorio Goudim. ÍNDICE DE ALGUNS TEMAS

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A numeração refere-se aos números das visitações e não das páginas (quando se trata do Apêndice, o número em nova linha vai antecedido da sigla “Ap”). Abade Barbas Ap 52 Abade Barbosa 43, 63 Ap 26 Abade Osório: vivia na Quintã Ap 34 exigente 67, 167, 178 Ap 15, 22, 32, 50 não cão mudo 160, 167 e 168 cumprir ordens 178 gosta do Liberalismo 67 estudantes 119 e 120 não tem inimigos Ap 22a querer palitar 67 ter a língua solta Ap 32 não cabra cega 167 sem manhas Ap 38 alargou o Adro Ap 24 maltratado por causa da derrama Ap 28, 38 sepultura Ap 24 projectos que não viu em vida: residência à beira da igreja, 197 e Ap 17, cemitério na Condeixa, 197, vendas do Passal, Ap 26 recebe remédio da paciência 167 Abstinência (ver “Quaresma”) Actos de fé, esperança e caridade 39 Almas: segunda-feira das almas 30 (n.º 12) (ver “altar previlegiado”) Altar previlegiado (ver também “indulgências”) 4, 11, 22, 28, 31, 38, 53

Ameaças ecleseásticas 37, 57 Anexação de Pigeiros 67, 160, 167, 168 Ap 5, 17, 38 Ano Santo 9 Associação da Coroa de Ouro ou Imaculada Conceição 130 “ “ Senhora das Dores Ap 40 e 47 “ de missas 130 Baptismo 20 (n.º 4), 23 (n.º 4), 30 (n.º 7), 175 Bendito seja Deus (oração) 181 Beneplácito 97 Bispo Novo 32, 175, 176 Bispo ausente 86 Bulas: em geral 113, 114, 117, 119, 121, 126, 128, 132, 134, 139, 140, 143, 146, 150, 151, 154, 156, 161, 175, 189, 190, 194, 196, 198, 200 sermão da Bula 154, 161 subsídio da Bula a Pigeiros 160, 168, 172 Ap 18a Calvário Ap 4 Caminhos 67 Campanário 30 (n.º 22), 46 Casos reservados 82, 198 Cemitério 197 Circulares (ver também “ordens de correr”, “visitações”) 2 a 11, 14 a 17, 22, 29, 31, 32, 34, 36 a 42, 47, 52, 53, 55 a 57, 59, 64, 69, 70, 78, 81, 86, 91, 93, 112, 132, 148, 159, 161, 165, 166, 175, 176, 177, 179, 181, 184 a 189, 192, 193, 194 a 196, 198, 199 Cólera mórbus 105, 136 Companhia de Jesus 6 Comunhão (Solene) dos Meninos 86, 91, 98, 112 Ap 51 Conferências ecleseásticas 1, 13, 20 (n.º 11), 23 (n.º 5), 30 (n.º 4), 39 (n.º 10), 81, 102, 148, 159, 184 Confissão geral 39 (n.º 12) Confrarias 172, 191 Ap 4, 11 a 13, 20, 27, 33, 49 Confraria de S. Brás Ap 4, 13, 21, 23, 25, 29 “ “ S. Sebastião (ver “Irmandade”) Côngrua e direitos paroquiais 25, 44, 67, 100, 131, 160, 187 Ap 38 Coração de Jesus 15, 26 Corpo de Deus 26


Curiosidades: pároco a residir na freguesia 55 não confessar sempre as mesma pessoas 30 (n.º 6) mulheres não devem cantar 199 esquife na igreja 63, pessoas de respeito 57, sagrado (igreja, etc.) Ap 54 saber ler 67, cruzes nas procissões 158, 165 e Ap 40 homens e mulheres na igreja 20 (n.º 3), 23 (n.º 6), 30 (n.os 10 e 18), 63 receita da paciência 167, Padre com 100 anos 183 Traje ecleseástico é eleição 29, 79 obedecer aos reis 29, 30 (n.º 10), 34, 36, 46, 55 ausência do bispo 86, ninhos nos telhados da igreja 168 não ler listas grandes nas comissões de festas 165 clero a calçar socos 46, 63 quem rompre os paramentos que os compre 167, 168 denunciar 39 (n.os 6 e 7), 44, 63, 65 esmolas mal aplicadas 160, guarda-chuva na missa 168 sacristia sem bancos nas reuniões da Junta Ap 27 pessoas encostadas aos altares 20 (n.º 5) paramentos devolvidos ao abade Osório Ap 18b bispo não vir a Pigeiros quase há um século 187 não haver obrigação de dar de comer ao bispo Ap 44 altares a servir de armazém 30 (n.º 20) Assembleia de 48 maiores 125 Décima 49, 95 Denunciar (ver “curiosidades”) Derrama 167 Ap 1 Desobriga (ver “Quaresma”) Devoção das quintas feiras 30 (n.º 8) “ do toque do sino das Ave Marias e sexta feira 30 (n.º 8) Dias Santos 12, 15, 46, 97, 99, 100 Direitos Paroquiais (ver “côngrua”) Dízimos 30 (n.º 15), 67 Ap 44

Documentos para cargos paroquiais 74 Domingo (vender ao) 24, 39 (n.º 13) Doutrina cristã: dizê-la ao ir confessar-se 18, 39 (n.º 11) ensino, catecismo, etc.: 1, 13, 18, 20 (n.º 6), 29, 30, (n.os 2 e 3), 34, 39 (n.º 11), 78, 148 Eleições de deputados 115, 145, 147, 155, 163 Empréstimo de objectos 30 (n.º 23), 160 Ap 18a, 30 Exorcismos 111 Expostos 36, 58, 101, 157 Falsificação de relíquias e indulgências 144 Festas (serões, feiras, vinho, bailes, carnaval, clamores, etc.) em geral 165 Ap 27 em particular: clamores 20 (n.º 8), vinho 20 (n.º 7) e 30 (n.º 8), bailes 148, feiras e gado 20 (n.º 10), carnaval 91 e 112, serões 30 (n.º 16) e 39 (n.º 14) e 112, comédias 165, tabernas 30 (n.º 16) requerimentos de festas 159 e 165 não haver festas por causa das necessidades da igreja 129 e 160 (tolerância) Ap 27 Foros (manifesto de) 192 Franceses (receber bem as tropas dos) 40 Freguesias (ordem no círculo de Pigeiros) 92 Funerais 66, 67, 71, 76, 96, 137, 158, 167, 187 Ap 29 Guarda de objectos Ap 14 Guerra 166 Homilia 148 Igreja: miséria 30 (n.º 17), 46, 63, 67, 80, 83, 129, 167, 168 Ap 5, 7, 11, 16 novo trono Ap 8 incêndio 87, 90, 127, 160, 168 (esmolas da América) Ap 41, 42, 45, 48 e 49 Ver “Bula” (subsídio) Imagens de santos (de conventos) 67 “ vivas (ver “teatro religioso”) Impostos 68, 70, 192, 195 Indulgências (ver “quaresma”, “altar previlegiado”, “bulas, “lugares santos”) Inquéritos 33, 35, 36, 44, 49, 51, 60, 131, 149 Irmandades (ver também “confrarias”) Ap 27 “ de S. Sebastião Ap 12, 34 e 43 Jerónimo (Dom) 127

109


110

Jornal “Missão Portuguesa” 132 Junta: elege juiz da cruz e recebe dinheiro das confrarias 169, 183 tem a sede na sacristia Ap 1, 2, 13, 27, 29 Ladainha ampliada 162 Ler (pessoas que sabem) 67 Ap 24, 46 Liberal (Rei) 47 Licenças ecleseásticas de confessar, pregar, etc. 8, 9, 13, 20 (nº 11), 23, 30, (n.º 6), 39 (n.º 9), 78, 98, 112, 148, 159 Livro dos Deveres dos Párocos 104 “ de Moral 164 “ sobre a Imaculada Conceição 109 Livros maus 159, 181 Lugares Santos 37, 57 Mancebias 148 Missa: horário 30 (n.º 10), 159 missa de santos 17 missa “Pro Populo” 100, 138 missa de pastores e conventual (ou do dia) 20 (n.º 6), 67, 166, 168, 181 Monte Pio 69 Mordomos (eleições no púlpito lidas dos) 165 (n.º 5) Morte da Rainha 123 “ de D. Jerónimo 127 Música (mulheres a cantar) 199 Orações: disciplina 159 pelo rei 27, 124, 137 pelo papa 27, 106, 171 pelo Imperador 42 pelo paz 166 contra a peste 105 contra a cólera 136 para serenar o tempo 106, 116, 166 para pedir chuva 170, 188 “Bendito seja Deus” 181 Orago de Pigeiros 100 Ordens de Correr (ver também “circulares”) 35, 44, 45, 50, 51, 54, 58 Osório (ver “abade”) Paço de Pereiras da Quintã Ap 50 Padrinhos 20 (n.º 4) Padroeira de Pigeiros 100

Passais: venda e foros 197, 264 demanda 67, 127 Ap 6 e 9 Pastorais (ver “circulares”) Pobres (lista, comissão, etc.) 30 (n.º 14), 34, 108, 133, 153, 180, 183 Política: servir o estado e autoridades, colaborar nos avisos e eleições, Junta, ver supra “curiosidades – obedecer ao rei, etc: 20 (n.º 6), 35, 36, 40, 46, 48, 60 a 62, 64, 69, 74, 95, 114, 125, 145, 147, 152, 163, 167, 173, 174, 177, 191, 192, 195 Ap 20 e 21 políticos a defender a religião 129 pedir a ajuda da autoridade civil 39 (n.º 14) soldados.. 46, 50, 94, 163 Preços de géneros 62 Pregação da Bula (ver “Bula – sermão”) Procissões: em geral 30 (n.º 12), 41, 148, 158, 159, 165, 179 Ap 4 sem foguetes 164 Quaresma (ver também “Bulas”, “Calvário”, “casos reservados”, “altar previlegiado”) em geral 3, 54, 59, 82, 91, 98, 112, 198 desobriga 98, 135 (moleiros), 148 (rol), 198 jejum e abstinência 3, 59, 112, 120, 138 indulgências (mesmo fora da quaresma) 14, 20 (n.º 8), 21, 53, 93, 130, 166, 181, 195 Semana Santa 7 Sexta Feira Santa 16 Rainha: parto 72 morte 123 Recenseamento 35 e 36 Registo Paroquial (ver também “funerais”) em geral 10, 73, 75, 89, 107, 108, 141, 167, 169, 174 entrega ao bispado 13, 185 entrega ao vigário da vara 103, 118, 141, 148, 189 compra dos livros 163, 167, 169 fornecê-los às autoridades civis (sobretudo óbitos): 75, 76, 84, 89, 101, 141, 163, 167, 173, 174 (testamentos) empréstimo 89 casamentos 5, 30 (n.º 11), 50, 52 (militares), 65, 85, 94, 107, 108, 148, 159, 175, 185 Residência Paroquial 20 (n.º 17), 23 (n.º 9), 168, 197


Ap 17, 22, 26, 38, 48 Roubos 56, 110, 160, 168 Ap 1, 17, 26 Salvador da Rocha Tavares Ap 30 e 55 Santa Maria de Pigeiros... (livro): correcções nas notas 215b, 228 Santos: nos nomes de baptismo 23 (n.º 4) S. Sancha e Teresa 26 S. José (rito de) 193 S. Rita de Cássia 17 S. António de Pádua 15, 97 S. Sérvulo 16 S. Gonçalo de Lagos 17 Santíssimo Sacramento: devoção de 5.as feiras 21, 30 (n.º 8) exposição 6, 148, 159, 165 aos enfermos 23 (n.º 3), 39 (n.os 7 e 10) Seminário da Sé 117 Senhora das Dores Ap 40 Sepultura: do abade Osório Ap 24 de pobres no adro e ricos na Igreja 30 (n.º 14), 20 (n.º 1) na igreja 129, 167 dos párocos Ap 24 de crianças 20 (n.º 12) negada 112 Sino (número de toques do) 30 (n.º 13), 165

Sociedade Católica 93 Sufrágios 187 Tabaco 114 Teatro religioso 148, 158, 165 Teologia Moral 81 Ap 46 Te Deum 6, 60 (rei), 159 Testamentos 174 Vacina 45, 96 Velas no funeral (número de) Ap 29 Vencimentos 61 Vender ao domingo 24, 39 (n.º 13) Vigário da Vara 77 Vestuário eclesiástico 13, 20 (n.º 10), 29 (escolhidos de Deus), 30 (n.º 8), 39 (n.os 5 e 6), 46, 55, 63, 78, 79, 80, 88, 159 Visitações 1, 13, 20, 23, 30, 46, 63, 80, 182 Ap 36 Ver ainda 39 Notar que os bispos já não vinham a Pigeiros há quase um século 187 Vitela (história da) 183 Ap 39 Zeladores/Zeladoras: pároco 67 Ap 10, 27, 33 mulheres em 1866: Ap 35

ÍNDICE DOS NÚMEROS DAS VISITAÇÕES Número 1

Página 10

Número 50

Página 67

Número 111

Página 120

Número 179

Página 192

2

12

51

68

112

121

180

193

3

13

52, 53

69

113

122

181

195

4

14

54, 55

70

114

123

182

197

5

15

56

72

115 a 117

124

183

198

6

16

57

73

118 a120

126

184

200

7

17

58

75

121, 122

127

185

201

8, 9

18

59

76

123 a 125

128

186

202

10, 11

22

60

79

126, 127

129

187

203

12

23

61

81

128

130

188

204

111


112

13

24

62

82

129

131

189 a 192

205

14

26

63

86

130

132

193, 194

206

15, 16

27

64, 65

88

131

135

195

207

17

28

66

89

132, 133

136

196

208

18, 19

29

67

90

134

138

197

209

20

30

68

93

135

139

198

210

21

36

69, 70

94

136 a 138

142

199

211

22

37

71 a 74

95

139

143

200

212

23

38

75, 76

96

140 a 142

144

24

39

77, 78

97

143, 144

146

25

40

79

98

145

147

26, 27

41

80

99

146 a 148

148

28, 29

42

81

100

149, 150

151

30

44

82, 83

103

151 a 154

152

31

49

84 a 86

104

155 a 158

153

32

49/50

87

105

159

154

33

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106

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107

161

166

35

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90, 91

108

162 a 164

169

36

53

92

109

165

170

37

54

93, 94

110

166

173

38, 39

55

95, 96

111

167

175

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59

97

112

168

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41

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98

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184

42 a 44

61

99, 100

115

170

185

45

62

101

116

171, 172

186

46

63

102, 103

117

173 a 175

188

47

65

104 a 108

118

176

190

48, 49

66

109, 110

119

177, 178

191


ÍNDICE DOS NÚMEROS DO APÊNDICE Número

Página

Número

Página

Número

Página

Número

Página

1

218

16, 17

226

30

236

41

246

2

219

18 a, b

228

31, 32

237

42

247

3a5

220

19 a 21

229

33, 34

238

43 a 45

248

6, 7

221

22 a, b

230

35

240

46

249

8

222

23, 24

231

36

242

47, 48

251

9 a 11

223

25, 26

232

37, 38

243

49, 50

252

12, 13

224

27

234

39

244

51

253

14, 15

225

28, 29

235

40

245

52, 53

258

54

261

55, 56

263 113

ÍNDICE GERAL

Explicação Preliminar............................................................................................................................................... página 0 Observações ortográficas e gramaticais................................................................................................................................ 1 Elenco das abreviaturas ........................................................................................................................................... . ........2 Palavras humorísticas .........................................................................................................................................................9 Influência latina .................................................................................................................................................................9 Primeiro Livro de Visitações (1769-1849) ..........................................................................................................................10 Segundo Livro de Visitações (1850-1873) ........................................................................................................................120 Apêndice de outros textos directa ou indirectamente relacionados com os dois livros de visitações ...................................................................................................................... 219 Índice de alguns temas ..................................................................................................................................................265 “ dos números das visitações ..................................................................................................................................272 “ “ “ do apêndice ..................................................................................................................................273 “ geral ......................................................................................................................................................................274


114

olvido Anthero Monteiro**

a olívio puseram-lhe a alcunha de olvido toda a sua vida era esquecimento esquecia-se de fazer a barba e de se pentear esquecia-se de abotoar a carcela esquecia-se de tomar o centrum esquecia-se de fechar a porta quando saía esquecia-se das chaves dentro do carro esquecia-se do local onde o estacionava esquecia-se de o levar à revisão esquecia-se de meter combustível esquecia-se do número de contribuinte esquecia-se de pagar o café esquecia-se de dar os parabéns aos amigos aniversariantes esquecia-se do próprio aniversário esquecia-se de voltar para casa esquecia-se de deixar comida para o seu black esquecia-se do que ia dizer com tanto que se esquecia era também esquecido de todos e quando morreu abandonado o seu ataúde de papelão foi acompanhado ao cemitério por dois vagabundos uma puta e um imigrante para além do seu lazarento rafeiro

a pobre tumba não exibe nem o seu nome nem as datas de nascimento e óbito não ostenta sequer uma simples cruz ou outro qualquer símbolo que lhe augure um eterno descanso às vezes perpassam por ali em viagem uma lesma uma lagartixa ou um licranço mas as borboletas não se detêm porque nunca viram naquele canteiro uma única flor e olvido ali ficou encerrado entre quatro paredes de esque cimento

*Sulcos da Memória e do Esquecimento (próximo livro) ** Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e ensaio.


A TORRE DA CIDADE 115

Helder Pacheco* No dia 24 de Julho de 1731, no sítio das Oliveiras, além da muralha, o Juiz de Fora, os Procuradores do Povo e da Cidade e os Vereadores da Câmara, juntamente com o Presidente, Deputados e Irmãos da Irmandade dos Clérigos Pobres, assinaram um Auto de Vistoria no qual designavam pela primeira vez a «torre da Cidade» como construção futura. Desde então, e porventura sem à partida o antever, o Porto adqui­riu o símbolo identificador da persistência de certo espírito urbano dos últimos 250 anos da sua história. Dessa passagem do tempo se dá conta neste livro. Um tempo dividido entre os meandros esconsos da edificação e o afã dos cometimentos que, desde o primeiro instante, a cidade fez com a sua Torre. E porque, além de monumento, venerável e venerado, constituiu, na vida portuense, oportunidade de usufruto, desafio aventu­roso de sedução, êxtase e vertigem, nenhum outro local ou edifício suscitou tantas evocações, de que também se dá conta neste livro. Nas suas páginas cruzam-se, em indisfarçável vizinhança e insuspeitada cumplici­ dade, o deve-e-o-haver de uma administração - na sadia tradição do Burgo - de boas contas e melhor registo, com as milhentas peripécias dos usos mais versáteis e das funções mais utilitárias que a expressão de uma religiosidade colectivamente assu­ mida pode, circunstancial e pragmaticamente, suscitar.

Pensando bem, mais do que presença quase sublime na paisagem, a Torre tem sido testemunha silenciosa da vida da cidade e da sua gente. De tudo viu e, quase sempre, de tudo foi interveniente. Rejubilou com acontecimentos de diferentes regi­mes políticos - antigos e modernos. Participou nas convenções (e convulsões) sociais do liberalismo, da I República, da Ditadura e do reencontro da Democracia. Associou-se às dores e aos pêsames colectivos. Foi palco de ousadias e sobressaltos cívicos. Induziu espectáculos e acompanhou inovações. Ajuda, por isso, a contar a história do Porto, nos seus anseios e inquietações, regozijos e manifestações (inclu­sive as contraditórias com os propósitos para que fora concebida). No entanto, mais do que afirmação e emblema, a Torre é imagem da vontade e persistência (e talvez glória) da instituição que tão arduamente lhe deu corpo e a manteve «até à última pedra». Em primeiro lugar, aparentemente, para nosso deleite, mas, no fundo, como propósito essencial, Salutante Mariam quae multum laboravit in nobis. conforme a inscri­ção nela aposta. De qualquer modo e para que não haja equívocos nas expectativas criadas à partida da sua leitura, além de se confrontar com ausências (ou lacunas) arquivísticas que ajudariam a, especialmente na fase da construção da Torre,

* Professor de História Social e Cultural do Porto. Investigador das culturas populares e urbanas e escritor.


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melhor compreender os mecanismos técnicos e financeiros dessa operação, este livro não pretende descrever a trajectória histórica da Irmandade promotora da obra. Outros o fizeram com _ proficiência. Tão-pouco procura aprofundar no que ainda há _ para desvendar o conhecimento estético, designadamente na sua dimensão nasoniana, da Igreja dedicada à Virgem da Assunção e, ainda menos, o funcionamento e administração da Enfermaria (também lhe chamaram Hospital) dos Clérigos pobres da cidade. (Nem vale a pena trazer à colação os nomes ilustres e com melhor provimento documental que o fizeram anteriormente). Este livro é, assim, não mais do que isso, a recolha de quantos vestígios documentais se encontraram nas fontes de pesquisa habitualmente seguidas sobre o surgimento da Torre e sua manutenção até aos nossos dias. E da sua função não apenas ao serviço do sentimento religioso, mas, sobretudo, ao serviço da cidade de que se tornou factor imprescindível e instrumento de apropriação colectiva. Mas, para além desses aspectos que, em si mesmos, justificariam o tentame de sistematização da informação obtida, este livro procura condensar a memória das palavras prosaicas

ou poéticas ditas sobre a Torre. E também das nostalgias e sonhos sobre ela urdidos pelos que aceitaram participar no desvendamento de recordações trazi­das à luz que ilumina o prazer da compartilhação. Sonhos, realmente, neste livro - como escreveu Jorge Luís Borges - há muitos. Ou patenteiam-se muitos. Desde os dos aventurosos obreiros de uma Torre fora da medida do espaço e, porventura, fora do seu tempo. Desmesurada e inesperada. E que, por tal razão, permanece envolta no mistério de como e porque foi imaginada. Até aos sonhos mais terra-a-terra de quem, ao longo dos anos, a viu como espelho e instru­mento das vivências quotidianas da cidade. E ainda aos sonhos dos que a descobriram com os olhos encantados da infância e cresceram vendo-a como baliza de um território de referências. E, por isso, declaro, retomando Borges, que a todos esses sonhos (ou chamem-lhe entreteceres, dedicações, afectos) aqui patenteados «apenas me atrevi a acrescentar um ou outro rasgo circunstancial, dos que o nosso tempo exige...». Porto, em Abril de 2013


HELDER PACHECO, PORTO: A TORRE DA CIDADE NOS 250 ANOS DA TORRE DOS CLÉRIGOS, PORTO

Lançamento - Palácio da Bolsa

Francisco Ribeiro da Silva*

Saúdo suas Ex.as Reverendíssimas o Senhor D. Pio Alves, Administrador Apostólico da Diocese do Porto, o Senhor D. António Taipa, Bispo Auxiliar do Porto, o Senhor Padre Américo Aguiar, Presidente da Irmandade dos Clérigos, o Senhor Prof. Helder Pacheco, o Senhor Dr. José Ribeiro da Editora Afrontamento e o Senhor Dr. Mário Ferreira, da Douro Azul. Agradeço a amabilidade do convite para apresentar o livro do Prof. Helder Pacheco que partiu simultaneamente do Autor e do Presidente da Irmandade dos Clérigos Pobres, Padre Américo Aguiar. Não é a primeira vez que sou incumbido da tarefa de apresentar um novo livro de Helder Pacheco. Tal como da primeira vez, com a mesma sinceridade, devo confessar que me sinto muito honrado pelo convite, que aceitei com satisfação, com alegria, mesmo sabendo que é * Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, jubilado.

uma responsabilidade acrescida o lançamento do livro de um Autor como Helder Pacheco. Porquê? Em primeiro lugar, porque é uma figura pública que toda a gente conhece. Dificilmente se encontrará aqui nesta sala alguém que não tenha lido um livro, um artigo de Helder Pacheco. Pelas minhas contas, este é o seu 46º livro. Artigos de jornal e outros escritos são umas centenas largas. As circunstâncias da personalidade do Autor não facilitam a tarefa. Vejamos: Helder Pacheco é um tripeiro genuíno que viu a luz do dia bem no coração da cidade, ali na freguesia da Vitória; desde menino, habituou-se a sorver e a absorver a cidade com a mesma naturalidade e espontaneidade com que respira, fazendo dela uma parte da sua identidade; mais crescido e já homem amestrou-se a observá-la com sentido crítico e a reflectir sobre as suas raízes, as suas tradições, os seus costumes, o seu espírito e a partilhar as suas descobertas, escrevendo-as e publicando-as; como cidadão interventivo tem opinião, bem alicerçada, sobre as grandes questões da cidade, os seus problemas estruturais, as mudanças e adaptações a que os tempos obrigam e aponta soluções. Helder Pacheco conhece bem a cidade do presente, não ignora o passado, preocupa-se com o futuro e nos seus escritos tenta fazer a síntese de tudo, numa base que, não deixando de ser histórica, me parece sobretudo antropológica. Helder Pacheco mete as pessoas nos seus livros. E isso é de

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Prof. Doutor Francisco Ribeiro da SIlva na apresentação do livro.

enaltecer porque as pessoas estão no centro da História como estão no centro da Vida. Dito isto, acrescentarei que, para além da honra e da responsabilidade, é com muita alegria e até conforto que desempenho o papel de que fui incumbido. Porquê? Porque fui o primeiro ou um dos primeiros a colher benefícios do livro. Lendo as suas longas páginas, observando com atenção as gravuras, os meus conhecimentos sobre o Porto subiram de nível e essa é uma boa sensação! Por outro lado, tenho-o dito várias vezes, o lançamento de qualquer livro é um evento festivo porque é uma dádiva criativa de muitos: do seu Autor, claro, mas também do seu editor, do seu designer, do seu ou dos seus patrocinadores, de

quem o encomendou. Tenho para mim que o acto criativo é o que mais nos aproxima de Deus. Por isso, toda a criação é festiva. Se o lançamento de qualquer livro é uma festa, o deste é-o claramente por vários motivos: Pelo assunto: a Torre dos Clérigos. Trata-se do ex-libris da nossa cidade, porventura a imagem mais forte e a mais consensual de entre as imagens monumentais que identificam o Porto. Curiosamente, sendo um assunto abordado ao longo de décadas por centenas de autores em artigos de jornal e em passagens de livros, não havia até hoje um livro especificamente e exclusivamente sobre a história e o significado da nossa Torre dos Clérigos. Curiosamente na bibliografia e fontes apresentadas pelo Autor, o título «Torre


dos Clérigos» aparece referido, pelo menos, 62 vezes, mas em nenhuma referência é título de livro. Evidentemente que os livros que têm saído sobre Nicolau Nasoni ou sobre a Igreja e Irmandade dos Clérigos Pobres tratam da Torre de modo mais ou menos extenso, mas não como tema único. Penso que este é o primeiro. Não sei, entretanto, se este lançamento é o ponto alto das comemorações dos 250 anos, mas é, sem dúvida, o que toca mais lá no cimo… Porque em ano de comemorações dos 250 anos da conclusão da Torre, todos os eventos que fazem parte da programação são para ser vividos em clima de festa. E têm sido. Neste caso, que melhor sala para exponenciar esse clima do que este singular, exótico e esplêndido Salão Árabe.

Pela dedicatória do livro. Por vontade do autor e da Irmandade dos Clérigos Pobres o livro é dedicado ao Presidente Honorário da Irmandade, D. Manuel Clemente, o homem que, embora ligado ao Porto por via maternal, veio do sul e ao sul vai retornar. Ao longo destes seis anos, soube acender e manter vivo um clarão de luz nesta diocese, clarão que tão cedo não se extinguirá, tanto mais que as dioceses não são compartimentos estanques, ao menos no que respeita à difusão do pensamento e da sabedoria. Não nos converteremos ao centralismo, mas estaremos orientados e atentos à voz do Patriarca de Lisboa, amigo da cidade do Porto. Como ele próprio disse, “o coração não tem distância, só profundidade acrescida”. O dele e o nosso.

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Aspecto do Salão Árabe durante a apresentação do livro.


Festa ainda pela convergência de vontades que as comemorações concitaram. Como sublinhou a autora do Prefácio, senhora Arqª Paula Silva, Directora Regional de Cultura do Norte, o Estado, a Câmara Municipal, a Diocese, a Irmandade dos Clérigos Pobres, algumas Associações e empresas como a Douro Azul encontraram-se na pessoa do Presidente da Irmandade, Senhor P.e Américo Aguiar, com os excelentes resultados conhecidos. Nos tempos que correm essa conjugação de esforços é para festejar, sobretudo quando se anuncia que a mesma vontade de cooperação atraiu recursos para a recuperação e requalificação de todo o conjunto arquitectónico da Irmandade. 3 – Olhemos então para o livro PORTO: A TORRE DA CIDADE

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A obra que tenho entre mãos é densa, bela, bem escrita, oportuna e útil e desenvolve-se ao longo de cinco capítulos e 342 páginas. O resumo do livro foi admiravelmente conseguido pelo Autor nas duas páginas iniciais que ele intitulou precisamente A Torre da Cidade. Elas configuram mesmo uma apresentação perfeita da obra. Se vos lesse essas quase 60 linhas teria cumprido bem o meu papel. E como apresentador não precisaria de dizer mais nada. Não o farei por razões óbvias. No cap. I, intitulado «No tempo da Torre», Helder Pacheco, como bom pedagogo que é, exercitando o que poderemos chamar as «boas práticas da narrativa histórica» enquadra no «kronos», no seu tempo, a construção da torre, não se limitando a apontar o ano da sua conclusão (o ano de 1763), mas oferecendo ao leitor uma panorâmica geral das coordenadas sociais, económicas, políticas e culturais do Mundo, sobretudo do continente europeu, de Portugal e da Cidade do Porto. Ou seja, o leitor percebe que a construção da Igreja e da Torre, daquele modo e naquele estilo não surge do nada, mas é contextualizada na sua época. E entende também por que é que um arquitecto italiano, mais precisamente da Toscana, Nicolau Nasoni de seu nome, vem para o Porto, faz da cidade a sua pátria e «pelas suas obras valerosas se foi da lei da morte libertando». Retenho, como nota de leitura deste I Capítulo, que a Torre ou se ergueria daquela forma e naquele estilo na conjuntura de meados do séc. XVIII, como se ergueu, ou passadas duas ou três décadas, quando o iluminismo impôs um novo gosto artístico, não seria construída ou seria diferente.

Permitam-me, entretanto, que enfatize bem a força do título: A Torre da Cidade. Helder Pacheco ensina-nos que, desde início, o projecto da igreja dos Clérigos incluía a enfermaria e a Torre. Mais: tanto a Irmandade dos Clérigos Pobres como o Senado Municipal quiseram, de facto, em 1731, construir não apenas mais uma torre, mas verdadeiramente a Torre da Cidade, a Torre do Porto. Esta ideia da Torre da Cidade cabe na continuidade do passado histórico e simbólico daquele sítio e na lógica da idiossincrasia secular da cidade. Quanto ao sítio, o «topos», a Porta do Olival desde o outono da Idade Média era ponto de encontro e porta de entrada de quem demandasse o burgo, por terra, vindo do litoral de Viana, Caminha, Cerveira ou do interior norte (Guimarães, Braga) ou mais proximamente de Matosinhos ou de Vila do Conde. Em frente a ela, do lado de fora, abria-se um rossio, abundante de tendas e dispondo até de uma ou outra boa estalagem (os hotéis da época) para acolhimento de forasteiros. Esse largo prolongava-se pelo Campo da Cordoaria, onde labutavam os cordoeiros e era propício à concentração de grupos, inclusive para início de motins, como


sucedeu no Motim da Companhia que dali partiu em 1757, numa altura em que a torre se estava edificando. Aliás, sobre a Porta do Olival existia no séc. XVII uma pequena fortificação encimada por ameias, que funcionava como depósito de armas e munições (o chamado roqueto da Porta do Olival) e servia como primeira defesa da cidade contra eventuais agressores externos, que a acometessem por terra, vindos do norte. No alto dessa fortificação, qual pequena torre, havia sido colocado o sino de correr, nos finais do séc. XIV, no qual um homem contratado pela troika que mandava na cidade (o Município, o Bispo e o Cabido) batia as pancadas à hora das trindades para o recolher obrigatório. Quanto à tal idiossincrasia, a cidade do Porto era um burgo de mercadores, alguns deles de «grosso trato», grandes armazenistas, com ligações ao norte da Europa, ao mediterrâneo e ao novo mundo os quais dependiam da barra

e do mar para o normal andamento das suas actividades comerciais. Por causa das dificuldades da barra, o poder municipal necessitou de oferecer «marcas» em sítios altos que servissem de ponto de referência e rumo certo às embarcações que vindas de fora, demandavam o burgo pelo oceano. Temos notícia de um pinheiro muito alto que, para esse efeito, foi aproveitado e marcado em lugar elevado, próximo da Capela Carlos Alberto do Palácio de Cristal o qual, já na primeira metade do século XVI foi «estonado» por mãos de vândalos e acabou por secar. Inutilizado o «pinheiro da marca», em local não distante construiu-se a Torre da Marca que o substituiu durante séculos. Essa Torre da Marca, da qual subsistem gravuras, ficou irremediavelmente danificada durante o Cerco do Porto, ao contrário da Torre dos Clérigos que, curiosamente, como nos informa o Autor, embora 121


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Poeta Albano Martins durante a intervenção em que disse o poema A Torre dos Clérigos vista de Gaia.

fosse visada, nada sofreu com as arremetidas dos canhões miguelistas, nem mesmo quando a Torre foi iluminada por razões festivas. A Torre dos Clérigos implantada fora de muros naquele preciso local, emblemático ponto de encontro de quem procurava a cidade, converteu-se definitivamente em ponto de referência da mesma. Por outro lado, a Torre passou a constituir uma excelente sinalização para a navegação oceânica, mesmo que, porventura, não tivesse sido construída expressamente para esse fim. Por isso, repito, o primeiro grande mérito deste livro e a sua grande força está precisamente na felicidade do seu título: A TORRE DA CIDADE. Mas não foi apenas em sentido utilitário e mercantil que a torre dos Clérigos se converteu na torre da cidade. Helder Pacheco, ao longo dos capítulos segundo e terceiro, explicanos como é que os portuenses se apropriaram da Torre a ponto de fazerem dela e dos seus sinos o canal de expressão dos seus sentimentos colectivos, fossem eles de alegria, de

tristeza, de luto, de pranto, de euforia, de acção de graças, quiçá de revolta. Os ledores da obra vão perceber quanto, como e de que modo os sinos dos Clérigos foram importantes para a população. Se nascia um príncipe, se a princesa se casava, se a rainha fazia anos, se uma nova abadessa de S. Bento era eleita, se o rei expirava, se o Santo Padre autorizava a bula de cruzada, se o Sumo Pontífice falecia ou um novo Papa era entronizado, se um Bispo recém-nomeado entrava na diocese, de tudo os sinos da Torre dos Clérigos davam sinal. Não era difícil para a população descodificar o teor fundamental da mensagem dos sinos. E eles não anunciavam apenas eventos religiosos ou de pessoas ligadas à religião. Também, por exemplo, a destruição dos franceses na Rússia em 1812, a derrota de Napoleão em Waterloo, a revolução de 24 de Agosto de 1820, o aniversário de D. Miguel em 1826, o de D. Maria II em 1838 foram comemorados na torre dos Clérigos. Até em 5 de Outubro de 1915, por pedido e intermédio do Vereador Aurélio da Paz dos Reis, a Irmandade autorizou a iluminação da Torre em honra da República.


Pela narrativa de Helder Pacheco, entendemos bem por que é que a manutenção dos sinos e dos respectivos badalos custava tanto dinheiro e por que é que a Irmandade pagava tantas horas de trabalho a carpinteiros, ferreiros, pintores e serralheiros. O uso continuado não podia deixar de ter consequências. Lendo o texto, percebi eu próprio aquela tirada iconoclasta do manuscrito anónimo de 1804, segundo a qual todos os sinos da cidade deviam ser banidos, os velhos e os novos, alguns de 100 e 200 arrobas, não tanto pelo ruído mas pelo custo e gastos excessivos que exigiam naqueles tempos apanhados por uma qualquer crise. Não era só pelos sinos que na Torre se fazia a festa. Quando o evento o justificava, a Torre da cidade era iluminada com lampiões e luminárias, funcionando assim não apenas para os portuenses mas também como torre de transmissão à distância. Cebo e barris de alcatrão eram os combustíveis utilizados. Em tempos de falta total de iluminação pública, não é difícil de imaginar o belo efeito produzido quando as noites eram límpidas. A seu tempo, também a electricidade foi profusamente aproveitada, com vantagem para a encenação do espectáculo. Por conseguinte, este livro de Helder Pacheco traz um notável contributo não só para a história da construção da Torre mas também para a história geral. E no que toca à História do Porto, fiquei a saber mais sobre a raiz e a manifestação dos sentimentos colectivos e das celebrações dos portuenses bem como do tipo de acontecimentos citadinos, nacionais e europeus que despertaram esses sentimentos. Convém acrescentar que, se à Presidência da Irmandade cabia dar autorização, não era sempre dela que partia a iniciativa: muitas vezes o pedido ou a recomendação da iluminação da Torre provinham da Câmara Municipal, do Bispo, do Rei ou até de outras entidades. E isto aconteceu transversalmente tanto durante a monarquia absoluta, como do primeiro liberalismo, da monarquia constitucional, como da República e do Estado Novo. Sem perder de vista o meu objectivo principal que é o de apresentar o livro sem me tornar fastidioso nem demorado, gostaria ainda de lembrar quanto o relógio da Torre dos Clérigos foi essencial para regular a vida dos portuenses durante grande parte destes 250 anos e quanto a população sofria e se queixava quando o relógio, por razões de cataclismos atmosféricos ou avarias mecânicas deixava de dar e de mostrar as horas. Da leitura de Helder, fica-se com a ideia que o relógio da torre dos Clérigos, o Hércules e os outros,

com o acrescento importante mas relativamente recente do carrilhão, daria material para mais um extenso livro. Do mesmo modo as escaladas à torre por acrobatas espanhóis, portugueses e italianos entusiasmaram multidões sempre ávidas de emoções fortes e encheram páginas de jornais e até horas de transmissão televisiva. Algumas escaladas serviram objectivos publicitários, políticos ou outros. A Torre da Cidade foi aproveitada para muitos outros fins que o Autor desenvolve mas de que aqui não faremos mais que menção: Serviu para auxiliar os bombeiros no serviço de incêndios. Serviu a Associação Comercial do Porto, permitindo a colocação de uma bandeira lá nos braços da cruz, para avisar os interessados da chegada da Mala de Inglaterra ou da expedição de correio para o Brasil. Serviu para colocação no alto da torre da meridiana solar, a pedido insistente da Câmara Municipal. para dar sinal sonoro do meio dia solar (1845). A função lúdica da torre e o seu aproveitamento turístico, sendo mais notório na actualidade, remonta, pelo menos, ao séc. XIX. É a mais importante, é a mais persistente e sobre ela Helder Pacheco discorre admiravelmente, com pormenores deliciosos que irão surpreender os leitores. A partir de 1889 a subida obrigava à aquisição prévia de bilhete e fazia-se apenas aos domingos de manhã. No dia da padroeira, 15 de Agosto de cada ano, a entrada era gratuita mas a afluência era tanta que houve necessidade de contratar a guarda municipal, depois guarda republicana, para manter a ordem. Os preços cobrados, as estatísticas de visitantes desde os finais do séc. XIX à actualidade, mas também os vandalismos, os atentados ao património e abusos de diversa ordem (a outra face não desejada da democratização), constituem outros mananciais que o Autor desenvolve com pormenores sugestivos. Já vou terminar, mas não sem que antes deixe nota telegráfica de mais três aspectos que me impressionaram e que seria injusto não valorizar: 1º - O ciclópico esforço que Helder Pacheco teve que desenvolver para compor o cap. IV que ele intitula «de como os cultivadores das letras (indígenas ou forasteiros) contaram, recontaram e versejaram, aqui e ali, tendo a torre como objecto de inspiração ou oportunidade de enredos, cada qual o mais fantasioso». Pelas minhas contas são mais de 130 os autores citados, por ordem cronológica, desde o séc. XVIII à actualidade, portugueses e estrangeiros, cultores das mais

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O Agradecimento do autor.

variadas disciplinas, desde a História ao romance, à poesia, ao jornalismo, à literatura de viagens, etc. Reparemos que essa pesquisa foi do tipo pesca à linha, uma vez que não há em lado nenhum um ficheiro organizado dos autores que escreveram sobre a Torre dos Clérigos. Ou melhor, não havia mas agora passa a haver. Graças a este aturado e moroso trabalho de investigação. Aliás, aproveito para declarar que sob o ponto de vista de riqueza e solidez das fontes utilizadas, este trabalho é inatacável. 2º - Outra nota que devo sublinhar e enfatizar foi a feliz ideia de Helder Pacheco de convidar «aleatória e transversalmente» umas dezenas de pessoas a escreverem um pequeno texto sobre o modo como vêem, observam e sentem a Torre dos Clérigos. São 84 depoimentos, dispostos por ordem alfabética dos autores, uns nascidos no Porto, outros fora, que sendo muito diversos entre si, concordam num ponto: em todos eles a evocação da Torre desperta memórias e recordações profundas.

3ª e última nota – é um livro cheio de imagens e gravuras em que a Torre dos Clérigos é vista de mil formas: em desenhos (alguns de crianças), em pinturas, em fotografias sacadas dos mais variados ângulos, sem nunca perder a sua identidade. A imensidão das gravuras, a formulação saborosamente clássica dos capítulos, a concepção do formato do livro tornam-no atraente e num produto excelente das Comemorações dos 250 anos da conclusão da Torre. Parabéns ao Prof. Helder Pacheco, à Irmandade dos Clérigos e ao seu Presidente, P.e Américo Aguiar, ao Designer e à Editora Afrontamento na pessoa do Dr. José Ribeiro e também aos Leitores que gostam do Porto e da sua História por mais esta jóia para a vossa colecção.

Muito obrigado.


LUÍS GÓES, COMO EU O VI. No primeiro aniversário da sua morte Viver sem amigos é morrer sem testemunhas (provérbio antigo)

Serafim Guimarães*

O Luís Góes, nascido em Coimbra, filho de uma família médio-burguesa, cidadão invulgar, dono de uma voz única, autor e intérprete de numerosas canções que dão beleza à vida, o Góes de todos os que se revêem no fado de Coimbra, esse está muito bem apresentado num livro magnífico escrito, recentemente, por Jorge Cravo, como ele cultor da canção coimbrã. Aqui, neste breve trecho, darei conta, apenas, de algumas notas pessoais sobre o “meu” Góes. Farei com elas um retrato simples, desenhado por factos e emoldurado por sentimentos. Trata-se dum retrato que trago pendurado na memória e muito chegado a mim, onde se pode apreciar um convívio de 60 anos, que foi, a princípio, distante e vago mas que se tornou, depois, de grande proximidade pessoal e profunda identidade de espíritos. Essa história pessoal começou no ano em que me matriculei na Faculdade de Medicina do Porto. Gostava * Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

de cantar, e inscrevi-me no Orfeão Universitário. O júri que apreciou a minha candidatura despejou-me para o saco dos fadistas. O Góes era, nesse tempo, o modelo perseguido pelos cantores de todos os grupos rendidos à canção coimbrã e era isso que acontecia com os componentes do grupo a que eu pertenci de 1953 a 1959. A voz belíssima e incomparável com que Deus dotou Luís Góes e a interpretação magistral com que ele a administrava semearam e alimentaram legiões de imitadores. Este Góes viveu, assim, anos, no nosso meio académico, à distância de um mito. Era a voz prodigiosa que os discos traziam, o expoente para que tendia o modelo interpretativo da canção de Coimbra, e isso fazia com que as suas canções fossem disputadas às escondidas, como quem lutava por uma prioridade. Quantas noites a ouvir e re-ouvir os seus discos, passo a passo, tom a tom, nota a nota. Góes vivia longe, mas andava perto. Um dia, sem querer nem esperar, isso a que se chama acaso, encarregou-se de me colocar, face a face, com esse de quem, sem o conhecer, já era um velho amigo. Em obediência a uma requisição militar fui parar a Mafra, onde cheguei num domingo invernoso de Janeiro de 1963. De repente, vejo o Góes ali, a meu lado, paciente e simples,

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crescer. Espantoso! Em Mafra, onde nunca coubemos: nem na lógica, nem nas casernas, nem nas fardas. Foram oito semanas que contaram como anos, tão fortes foram as emoções dos seus dias, tão caricatos certos episódios que as povoaram, tão frustrantes as perspectivas do futuro que se antevia.

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De repente, vejo o Góes ali, a meu lado,... de kaki da cor do sujo e boina da mesma cor que não lhe cabia na cabeça...

um de uma longa fila, de kaki da cor do sujo e boina da mesma cor, que não lhe cabia na cabeça, à espera, como todos nós, de uma ordem para se sentar a uma mesa corrida, onde iria ser servido um rancho a cerca de quatro centenas de comensais. Aquela presença discreta, serena, humilde, era muito mais do que fados vindos de gira-discos. Tudo indicava que iria ser fácil a sintonia com essa pessoa de quem já tinha uma imagem trazida pelo poder mágico da sua voz única e que estava, agora, ali, calado, anónimo. Assim começou um convívio denso, de dois meses que, entre frios matutinos e tardes ventosas, entre optimismos e desalentos, entre armas unidas e cantigas, veio para ficar e

Durante as penosas semanas daquele purgatório foi no grupo do Porto que Luís Góes espontaneamente se integrou para uma aliança contra o desprezo ostensivo a que nos votavam majores e coronéis. É que ele tinha muita coisa de portuense. Há genes virtuais que a Ciência ainda não identificou que o atraíam para o nosso grupo: Walter Osswald, Alexandre Sousa Pinto, Eduardo Rodrigues Pereira, Alberto Viana, Zé Vilas Boas e eu foram os companheiros que escolheu para a travessia daquele deserto pseudo-povoado. Partilhamos marchas, corridas, simulacros, azimutes, noites e dias, chuvas e ventos, tudo o que, interpretado como punição injusta é gerador de impaciências e protestos, e dá força às vivências que cimentam as solidariedades verdadeiras. Mas, do lado de dentro destes infortúnios, houve, também, conversas quentes e risos despreocupados. O Pátio dos mariscos onde nos tínhamos alojado era o pavilhão para os nossos tempos livres e, à noite, havia fado. O Fernando Xavier e eu tínhamos connosco as guitarras, o Manuel Pepe a viola e o Góes a voz! Inesquecíveis encontros! No jantar de despedida, na véspera do regresso, quando o Góes interpretava uma das suas canções, um enorme estrondo fragmentou os vidros das janelas da casa e um deles voou para vir ferir a face do nosso Góes. Enquanto o tenente Vigário, se arremessou para debaixo de uma das mesas, nós procuramos, surpreendidos, identificar a causa daquela explosão: tinha sido o rebentamento de uma botija de gás na cozinha do restaurante. Mas Mafra, que foi berço desse encontro de amizade, foi, também um cais de partida; de lá haveríamos de partir para os longes africanos: ele para Bafatá na Guiné; eu para a Bela Vista de Zala no norte de Angola. Mas antes do embarque haveríamos, ainda de nos reencontrar para um desejo recíproco e íntimo de boa sorte. Foi na Câmara Municipal de Gaia. O meu condiscípulo Aarão Magalhães e eu constituintes da equipa médica de uma brigada de inspecções militares, acabávamos, aí, uma digressão pelo norte do País;


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... foi no grupo do Porto que Luís Góes espontâneamente se integrou.

o Góes e o Manuel Pepe iniciavam a sua. Cruzámo-nos nesta função em Gaia, numa rendição de equipas! Foram, depois, três anos de desassossego. O Góes levou a voz e sei que a utilizou, raras vezes, em serões de Bissau. Eu levei a guitarra que alternava com os ruídos confusos das hienas e pacaças nas noite da Bela Vista-Zala. O regresso trouxe o mesmo Góes, agora disposto a desistir dos palcos, onde nunca se sentiu feliz. Era ele na sua mais íntima natureza. Houve, felizmente quem o livrasse dessa tentação: O António Toscano e o João Bagão empurraram-no para um regresso à arte e venceram. Que grande tinha sido a perda se a sua timidez tivesse ganho.

Veio e regressou com a mesma vóz ampla, limpa, bem timbrada, segura e constante, a mais linda voz que Coimbra ouviu em toda a longa história do seu canto. Sei que, com esta escolha abro uma insanável fonte de discórdia, porque o Zeca Afonso teve, também, uma espantosa originalidade interpretativa e foi um grande criador. Com ambos convivi e de ambos fui amigo. Ambos foram favorecidos pela graça de uma densa virtude artística. Contudo, se me é dado comparar o incomparável, eu sou tentado a dizer que, enquanto a voz de Zeca é rara e inquieta, a do Góes é perfeita e comove! Mas Luís Góes foi muito mais do que a voz preciosa que os cartazes apregoavam, a mais linda voz que Coimbra ouviu. Luís Góes foi uma daquelas personalidades que extravasam


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... até ao dueto que com Luís Góes fiz numa festa de anos em Espargo...

Carlos Carranca e Luís Góes cantam a trova de Vila da Feira no Clube Feirense - Associação Cultural, durante a homenagem ao Dr. António Toscano.


os contornos que as tornaram conhecidas: vasto no saber, profundo na cultura, inspirado na criatividade, amorável no trato era, ainda, um poço de humanismo. Quanto me acrescentou com a sua amizade! Enriquecia, ainda mais, a nossa relação, as fortes ligações afectivas que o Góes tinha a Santa Maria da Feira, terra de que se aproximou pela mão do Toscano. Vila da Feira a que dedicou uma das suas mais belas cantigas: nas asas da sua voz quis levá-la a ver o mar! Ali vinha com frequência; ali tinha bons amigos; ali dispensava a sua simpatia, ali cantou, ali o ouvi e ali o abracei pela última vez. Foi numa homenagem ao Toscano. Enquanto esperávamos pelo início da sessão, um disco antigo trazia

para a plateia a “Barca da Minha Vida” que a acústica da sala fazia ecoar numa tonalidade tão linda e solene que nem a própria Ana Paula, sua mulher, o reconheceu. Voltando-se para mim, perguntou: - Quem é? Da voz de oiro que tantas vezes me deliciou no terceiro andar da nossa residência de estudantes no Campo dos Mártires da Pátria até ao dueto que com Luís Góes fiz numa festa de anos em Espargo, vão cinquenta anos de um tempo que a amizade estreitou e a saudade eterniza. A amizade é um lugar de factos e de mistérios e é por isso que é com amigos, como o Góes que se constrói história que, de tão verdadeira e íntima, se torna sagrada.

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Luís Góes - desenhos de Serafim Guimarães.


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Uma estrela não se apaga Alfredo Luz*

Dar o livro e o espelho E um poeta a cada um Amar a terra sem freio E todos éramos um Mata mais pena que espada Se choras, limpa o olhar É uma verdade serena Rio seco foi pró mar Para ti, esta lembrança E meu saber por tesouro A calma das mãos é prata O tamanho do gesto é ouro Digo-te, pelo caminho Não deixo ira nem dor Para ti, o quanto vales Todos os campos em flor Somos ourives da vida Da pedra ao ouro só com a idade E honra nos seja feita Tornar a sombra claridade

Da tua boca sal e praga Respiramores já cansados Uma estrela não se apaga Ave poisada afaga os ramos.

Setembro 2012

Nota: Esta letra foi escrita a pedido da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa com a finalidade de servir de hino à “terceira idade”. Foi musicada e cantada pelo canto-autor Vitorino com arranjo de Dilen, guitarra de Tiago Silva e sitar de Paulo Sousa.

*Pintor. Natural de Rio Meão.


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ENTRE – GUERRAS

Filomena Pinheiro* Diálogo interior com……………LUÍS VAZ DE CAMÕES

Em coerência com o compromisso assumido convosco, continuo a minha reflexão, sobre a relação entre poesia e pintura. Como já vimos, esta relação é antiga. O célebre verso de Horácio, em ”Arte Poética ” (c.20a.C.) “ut picture poesis” (“assim como a pintura a poesia”) é exemplo disso. As relações dessas artes são similares, porque ambas possuem o pressuposto da função mimética, encenação da realidade, numa através das palavras, noutra através de imagens. Continuo dialogando, agora com mais um dos maiores poetas líricos portugueses.

Na obra literária lírica de Camões, enquanto objeto fenomenológico de uma construção poética carregada de sentido, as formas imaginárias e simbólicas bem como a reconstrução interpretativa do imaginário do autor, mostram a apropriação do mundo objetivo por um sujeito que o modifica, de acordo com os seus desdobramentos emotivos. É pois um sujeito subjetivado, revelador de uma determinada visão do mundo, da vida e do homem. Nestes trabalhos transmito a minha visão subjetivada do mundo. Um retrato e duas interpretações de outros tantos poemas deste poeta, visando permitir que cada um estabeleça e interprete esta “guerra / diálogo” entre poesia e pintura. Termino citando Pablo Picasso: “Há pessoas que transformam o sol numa simples mancha amarela, mas há aqueles que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol.”

* Foi Professora de Educação Física e Empresária. Está reformada. Dedica-se com entusiamo à pintura.


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Retrato - 贸leo sobre tela 80x80x4


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”Alma Minha Gentil Que te Partiste”– (cavalo) - Óleo sobre tela 80x120x4

Alma Minha Gentil Que te Partiste Alma minha gentil que te partiste Tão cedo desta vida descontente, Repousa lá no Céu eternamente, E viva eu cá na terra sempre triste. Se lá no assento etéreo, onde subiste, Memória desta vida se consente, Não te esqueças daquele amor ardente, Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te Algua cousa a dor que me ficou Da mágoa, sem remédio, de perder-te, Roga a Deus, que teus anos encurtou, Que tão cedo de cá me leve a ver-te, Quão cedo de meus olhos te levou. Luís de Camões, in “Sonetos”


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Nereides - Óleo sobre tela 80x120x4

Nesta frescura tal desembarcavam Já das naus os segundos Argonautas, Onde pela floresta se deixavam Andar as belas Deusas, como incautas. Algumas, doces cítaras tocavam, Algumas, harpas e sonoras frautas; Outras, cos arcos de ouro, se fingiam Seguir os animais que não seguiam. Assi lho aconselhara a mestra experta: Que andassem pelos campos espalhadas; Que, vista dos barões a presa incerta, Se fizessem primeiro desejadas. Era o paraíso ali à vista: Algumas, que na forma descoberta Do belo corpo estavam confiadas, Posta a artificiosa fermosura, Nuas lavar se deixam na água pura. Mas os fortes mancebos, que na praia

Punham os pés, de terra cobiçosos … Começam de enxergar subitamente, Por entre verdes ramos, várias cores, Cores de quem a vista julga e sente Que não eram das rosas ou das flores, Mas da lã fina e seda diferente, Que mais incita a força dos amores, De que se vestem as humanas rosas, Fazendo-se por arte mais fermosas. Dá Veloso, espantado, um grande grito: «Senhores, caça estranha (disse) é esta! Se inda dura o Gentio antigo rito, A Deusas é sagrada esta floresta. … Luís de Camões, -“Os Lusíadas”- Canto IX (Fragmentos)


A BOLACHA

Jorge Augusto Pais de Amaral*

Quando, há alguns anos atrás, me encontrava no Algarve, fui na companhia de um grande amigo, coronel da Força Aérea, que veio a morrer num desastre de aviação, tomar um chá numa casa típica, que ele muito bem conhecia e recomendava. Quando entrámos, verifiquei que existiam ao alcance dos clientes umas folhas de papel dactilografadas que continham um texto encimado pelo título “A Bolacha”. A princípio pensei que se tratava de publicidade a uma iguaria que seria vendida na casa de chá onde nos encontrávamos. Porém, ao ler um pouco mais, depressa concluí que o texto contava uma história. A forma como começava essa história prendeu a minha atenção e foi por isso que, com muito agrado, levei a leitura até ao fim. A história pode resumir-se do modo seguinte: Uma jovem, enquanto aguardava na sala do aeroporto pelo momento do embarque, comprou um pacote de bolachas e foi sentar-se descansadamente numa das cadeiras. Tirou um livro da carteira e começou a lê-lo distraidamente. Noutra cadeira ao seu lado estava sentado um “velhote” que igualmente aguardava a hora de tomar o mesmo avião. *Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Jubilado.

A jovem, enquanto lia, levou a mão ao pacote de bolachas assente numa pequena mesa situada entre as duas cadeiras e retirou uma bolacha. Pelo canto do olho verificou que o “velhote” retirou outra bolacha, que comeu. Perante esta atitude, a jovem ficou furiosa, mas não querendo provocar escândalo em público, limitou-se a reprová-la mentalmente. Era preciso ter muito descaramento para daquela maneira comer as suas bolachas, sem antecipar o respetivo pedido ou proferir uma palavra de desculpa. Mas, ainda assim, quis pensar que teria sido apenas uma momentânea distração que não voltaria a repetir-se. Engano seu, pois quando a jovem tirou uma segunda bolacha do pacote, aquele homem atreveu-se a fazer o mesmo. Depois de tirar uma terceira bolacha, o homem continuou a imitá-la. Aquilo era demais. Era necessário muito domínio sobre si mesma para não descompor o homem por tamanho atrevimento. Cada vez mais enervada, foi assistindo àquela atitude abusiva até que no pacote ficou apenas a última. E disse para os seus botões: deixa ver se ele se atreve a comê-la. Porém, para sua surpresa, o homem partiu a bolacha ao meio e retirou apenas metade, deixando a parte restante para a jovem. Isto é o cúmulo do descaramento, pensou, e sem conseguir suportar por mais tempo a sua presença, retirou-se para bem longe daquele homem asqueroso. Pouco depois, chegou a hora de os passageiros entrarem no avião. Já instalada, a jovem teve necessidade de uma caneta e abriu a sua mala. Qual não foi o seu espanto e a

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sua vergonha quando descobriu que na carteira permanecia intocado o pacote de bolachas que havia comprado. Afinal, a atrevida tinha sido ela, pois comera metade das bolachas do “velhote”, sendo certo que este até evidenciara um comportamento exemplar de partilha. Esta história dá azo a que meditemos um pouco nos juízos precipitados que muitas vezes se fazem, condenando levianamente alguma pessoa sem estar na posse de todos os elementos para levar a cabo um julgamento calmo e ponderado. E vem-nos à memória o que se passa com a frequente violação do segredo de justiça. Como é consabido, o segredo de justiça foi instituído pela necessidade de defender a comunidade contra o crime organizado e de evitar que alguns criminosos, porque alertados, se pudessem furtar à ação da justiça. Mas também uma outra finalidade, não menos importante, foi tida em consideração – a de defender a honra e o bom nome da pessoa sobre a qual apenas recai uma suspeição que pode não passar disso mesmo. Ao ser violado, todas estas finalidades se goraram. A partir do momento em que os meios de comunicação social descrevem a prática do crime e do seu presumível autor, este é logo julgado e será irremediavelmente condenado pela opinião pública. Mesmo que posteriormente venha a ser judicialmente absolvido, isso já não chegará para apagar totalmente a impressão deixada pela notícia. A posição do arguido perante o meio social nunca mais será a mesma. De nada servirá arvorar bem alto o princípio da presunção de

inocência. Poderá até dizer-se que a presunção de inocência se converteu em presunção de culpa, invertendo-se, deste modo, o ónus da prova. A comunicação social tão rápida é a condenar como a absolver. A sua “justiça” é feita a uma velocidade incomparavelmente superior à dos tribunais. Diz-se que os tribunais são lentos, o que constitui uma verdade. Mesmo quando respeitam todos os prazos processuais, ainda assim, serão sempre muito mais morosos. Mas, por outro lado, a comunicação social é demasiado rápida a proferir o veredito. Por vezes, à porta da sala de audiências do tribunal, no intervalo de um julgamento, basta interrogar uma ou duas testemunhas sobre o teor do depoimento que prestaram e logo se prontificam a fazer comentários sobre o desfecho do julgamento. E quando, após a leitura do acórdão, a comunicação social resolve perguntar às pessoas presentes se consideram a sentença justa? Se a pergunta é dirigida à mãe da vítima do homicida que acabou de ser condenado na pena de 25 anos de prisão, é claro que ela não concorda com a pena, apesar de ser a máxima permitida por lei. Para aquela mãe nem a pena de morte seria suficientemente justa, como se compreende. Muito poderia ser dito a tal respeito, mas, por ora, por aqui temos de nos quedar. Apenas quisemos dar a cada um a oportunidade de se debruçar ponderadamente sobre as questões sumariamente abordadas.


NO PERÍODO DO 25 DE ABRIL DE 1974 A formação de um grupo de jovens em Arrifana

Augusto Telmo*

No período do ‘Estado Novo’, que teve o seu fim com a revolução do 25 de Abril de 1974, as ‘Repartições Distritais do Serviço de Apoio ao Desenvolvimento Agrário’- SADA proporcionavam às jovens trabalhadoras, nas mais recônditas freguesias do país ‘Cursos de Formação de Base’. Esses cursos com a duração de cerca de 24 meses eram concebidos, em exclusivo, para as mulheres trabalhadoras e predominantemente orientados para as áreas rurais. Depois de terem decorrido ‘Cursos de Formação de Base’ em diversas freguesias do concelho, p.e. Fornos, Romariz e Milheirós de Poiares, eis que chegam a Arrifana. Refira-se que eram os Párocos das freguesias, que sentindo necessidade de dar formação às jovens da sua paróquia, que formalizavam os pedidos na sede da SADA, e que no distrito de Aveiro, se situava na Rua Navarra, nº. 2, na mesma cidade de Aveiro, tendo sido aí que o saudoso Padre Rodrigo Fontes apresentara o pedido para a sua realização em Arrifana. *Licenciado em Engenharia Civil. Licenciado em Engenharia e Gestão Industrial. Professor do Ensino Secundário, Director do Jornal “O Arrifanense”. Tem 3 livros publicados sobre a história local.

Em terras do distrito de Aveiro, desde o início da década de 70 do século passado, esses cursos eram orientados pela Agente de Educação Familiar, Glória Ribeiro da Costa, conjuntamente com Maria de Lurdes Rodrigues Costa, Técnica Auxiliar de Educação Familiar, ambas dos quadros da Direcção dos Serviços Agrícolas. O que decorreu em Arrifana teve o seu início em Outubro de 1974. A escolaridade obrigatória (à data a 4 ª. classe) era o grau máximo exigido para se poder frequentar essa formação e um grau de escolaridade acima constituía um impedimento. Neste caso o grau de escolaridade funcionava mais como critério de limitação do que como condição necessária e suficiente. Portanto todas as jovens inscritas no curso de formação eram trabalhadoras e nenhuma delas era estudante a tempo inteiro. Daí que o horário dessa formação fosse, consequentemente, pós-laboral. De referir que a idade mínima era de 15 anos, havendo algumas jovens com essa idade, inscritas no curso de Arrifana. O curso decorreu com normalidade até Julho de 1975 com 62 jovens, com cerca de um terço já casadas; por eficácia formativa e de funcionalidade as jovens estavam subdivididas em dois grupos, um identificado pela letra A e composto por 30 elementos e o outro pela letra B e composto por 32. Assim, sempre que um dos grupos tivesse formação teórica, o outro teria formação prática e vice-versa. Estávamos então no ‘Verão Quente de 75’ e Portugal atravessava um período de notável instabilidade politica:

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no palco da democracia nacional era o período do PREC (Processo Revolucionário Em Curso). Foi um período de muitas reivindicações, de movimentações sindicais e de afirmação da voz popular, até aí inexistente. Portanto, por essa altura, admitir que algo do que existisse antes do 25 de Abril de 1974 era correcto estaria fora de questão! Assim, admitir que tal ‘Formação de Base’ pudesse continuar por mais tempo era um contra-senso! Para mais uma formação rural, exclusiva para mulheres, e com a chancela da Direcção Geral dos Serviços Agrícolas do Ministério da Agricultura, e portanto anterior a Abril de 1974, acabaria por se revelar inconciliável com os princípios fundamentais de uma formação pluralista e universal que a democracia então preconizava. O fim do ‘Curso de Formação de Base’, que viria a ocorrer em Julho de 1975, iria também ser a génese de um grupo de jovens misto, coisa impensável antes do 25 de Abril de 1974,

que surge em Março de 1976. Grupo de Jovens denominado inicialmente de ‘Grupo Infantil/Juvenil de Arrifana’, para passados alguns meses, passar a ser JUAT- Jovens Unidos na Alegria e no Trabalho. Grupo de jovens que acabou também ele, como a grande maioria das coisas por essa altura, por ter uma vida demasiado curta, acabaria em finais de 1978. No entanto foram dois anos de uma intensíssima vivência, marcada por inúmeros acontecimentos, de novas formas de estar e de pensar, completamente inovadoras para a época, em que a juventude portuguesa sofria uma grande metamorfose, e que vão passar a estar registados, nas cerca de duas centenas de páginas, do livro «JUAT- Jovens Unidos na Alegria e no Trabalho (1976/1978)», que irá ser lançado por alturas do próximo Natal na vila de Arrifana e que terá como autor, o arrifanense Augusto Telmo.


O EMIGRANTE AÇORIANO, NO ROMANCE «O CONTINENTE», DE ERICO VERÍSSIMO

Maria da Conceição Vilhena*

Com este trabalho temos em vista detectar a presença açoriana em O Continente. E assim verificámos que, ao organizar a estória para o seu romance, um dos quatro pontos geográficos de onde E. Veríssimo faz partir aquelas personagens que darão origem ao núcleo central da diegese romanesca é o próprio arquipélago dos Açores. Esses quatro pontos geográficos são: 1 - Os Sete Povos das Missões, cuja destruição forçara Pedro, o mestiço de branco e índia, a partir. 2 - São Paulo, que Maneco Terra troca por um rancho perdido nas regiões inabitadas do Sul, onde Pedro chegará um dia e dará àquele um neto. 3 - Angra do Heroísmo (Açores), de onde emigra José Borges, atraído pelas promessas de D. João V. 4 - O grande continente deserto, atravessado por bandidos e ladrões de gado, um dos quais Francisco Rodrigues (Cambará) que, ao ver Maria Rita, filha do açoriano, resolve mudar de vida, requerendo sesmaria e fundando família.

O casamento de Rodrigo Cambará, neto de José Borges, com Bibiana, bisneta de Maneco Terra, fará surgir a família Terra-Cambará, proprietária do Sobrado, em torno do qual se desenrolará toda a acção do romance. Através de toda a obra são frequentes e variadas as alusões à presença de açorianos: gente pacata que cultiva a terra, semeando especialmente o trigo, que tem um falar estranho, que conserva os seus cantares e as suas danças. No entanto José Borges ocupa, entre todos, um lugar de relevo, pois o autor o acompanha desde o surgimento da sua ideia de emigrar, e a ele consagra o primeiro interlúdio (pág. 69-74).(1) Em forma de narrativa poética, o romancista leva-nos a observar a sua personagem, perplexa, na praça de Angra, diante do edital que tenta soletrar: «Crescem os olhos de Zé Borges, ao lerem as promessas d’EI-Rei». Com efeito, para quem não tem nada, meia légua quadrada de terra, duas vacas e uma égua representam uma fortuna. Tanto mais que o transporte é gratuito. E. Veríssimo utiliza frequentemente, na composição deste romance, cartas, quadras, fragmentos de artigos de jornais e revistas ou de documentos e de notícias históricas. Esta técnica de montagem tem como consequência o suscitar no leitor a ilusão da realidade. No entanto, alguns destes textos não são mais que uma mistificação, como é o caso do diário de Luzia, produto da imaginação fantasiosa do escritor. (1) Utilizamos Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento, I O Continente, ed. Livros do Brasil n.º15, Lisboa (s. d.).

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

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No que diz respeito ao edital que Zé Borges lê, pudemos verificar que se trata de facto da utilização de um documento histórico, que o romancista reproduz com fidelidade. Este documento tem data de 31 de Agosto de 1746, e foi enviado para os Açores em 400 exemplares, para ser afixado em todas as Câmaras do arquipélago. Deles restam muito poucos. O que pudemos ler encontra-se na biblioteca da Universidade dos Açores, em Ponta Delgada. O seu texto encontra-se transcrito integralmente nas últimas páginas deste trabalho. Aí podemos ler as promessas generosas de D. João V (utensílios de lavoura, terra, animais, semente, farinha...) por que a mulher de Zé Borges perguntaria mais tarde, chorando a sua desilusão. Essas promessas serão repetidas em todos os documentos relativos à partida dos 4.000 casais açorianos, o que prova a boa intenção do rei (2). Não esqueçamos, porém, que já Sá de Miranda chamava a atenção a D. João II para o abuso daqueles em quem depositava a sua confiança:

Nunca se descuide o rei, Que inda não é feita a lei, Já lhe são feitas cautelas. Então tristes das mulheres, Tristes dos órfãos coitados E a pobreza dos mesteres ! Que nem falar são ousados Diante os mores poderes.

Tendo os casais açorianos começado a partir dois anos após a afixação do edital, e começando a diegese de O Continente em 1745, José Borges pode realmente corresponder a um desses emigrantes anónimos que, entre 1748 e 1752, partiram dos Açores em demanda das terras do Sul do Brasil. O Continente não é um romance histórico. E em ficção tudo é permitido, sem qualquer compromisso com a realidade. Todavia, e na medida em que o escritor constrói a sua fábula sobre dados da história, a sua liberdade tornou-se parcial e ele teve forçosamente de conformar os arroubos da sua imaginação com esses dados.

(2) V. Paiva Boleo, op. Cit., p. 19-23.

A perspectiva histórica impõe, pois, o respeito pelo facto real e pela sua localização espacio-temporal, ou seja, por aquela verdade essencial e significativa, cuja adulteração poderia conduzir a algo de grotesco, repudiado de imediato pelo leitor. A propósito da viagem, escreve o romancista: «Há setenta casais a bordo, mas a morte embarcou também. Não se passa um único dia em que não se lance um defunto ao mar». Segundo informa um documento da época, citado por Rioperdense Macedo(3), a capacidade dos barcos em que os casais açorianos são transportados, a cargo da fazenda real, «é de quarenta a cinquenta casais»; esse mesmo documento alude a um carregamento de 686 pessoas, além da tripulação de 50! Daí a falta de conforto, a fome, a doença e a mortandade a que o romance faz alusão e que corresponde à triste realidade histórica. Ora na viagem de José Borges seguem 70 casais, certamente com filhos. Daí o ter sido tão acidentada e dolorosa: alguns enlouquecem, muitos perdem a vida. E entre os mortos vão dois dos seus filhos. Consultemos a documentação relativa às viagens dos navios de Feliciano Velho Oldenberg e as cartas e relatórios do governador da Ilha de Santa Catarina em 1750, Manuel Escudeiro de Sousa, e dar-nos-emos conta do desconforto em que tais viagens se faziam, em barcos de mercadorias, sem condições para passageiros e, além disso, superlotados. Muitos dos casais morrem realmente durante os dois a três meses que dura a travessia do Atlântico; e os que lá chegam apresentam-se estropiados, esfomeados, doentes, moribundos, num estado tão lastimoso que as autoridades que os recebem chegam a protestar contra a crueldade do capitão do navio. Após a chegada à terra brasileira, E. Veríssimo embarca José Borges e família num batelão e fá-Ios subir até Viamão, onde já se encontravam outros casais açorianos. Aí se fixam e aí se constroem «casa de barro com coberta de palha». Mais uma vez nos encontramos perante um facto ficcional que pode corresponder a um facto real. Conforme lemos no Diário da Viagem do General Gomes Freire de Andrade(4), que

(3) Viagem dos Açorianos ao Rio Grande do Sul, in Rev. do Inst. Hist. e Geogr. de R.G.S., n.º122, 1982, p. 27-41. (4) Escrito pelo Sargento-Mor Luís Manuel Azevedo Carneiro e Cunha. Veja-se Riograndino da Costa e Silva, Do Porto dos Casais à Grande Porto Alegre, in Ver. Do Inst. Hist. e Geogr do R.G.S., n.º 121, 1975, p.66.


chegou ao Rio Grande de S. Pedro em 7 de Abril de 1752, no Porto de Viamão «há um arraial de casas de palha, habitadas por casais das Ilhas». Daí o Porto de Viamão ter passado depois a chamar-se Porto dos Casais(5). Como já fizemos notar, em O Continente sinais e símbolos são marcos de historicidade. E através de toda a obra se nota a fidelidade à matriz histórica, real acontecido e real imaginado surgindo numa fidelidade quase especular. É o que vamos verificar mais uma vez, pela análise dos antropónimos escolhidos. Em primeiro lugar vejamos o apelido Borges, nome que convém a um açoriano pela frequência com que se encontra no arquipélago. Povoadores com o nome Borges foram para os Açores logo após a sua descoberta, aí se fixaram e aí proliferaram. Das palavras de E. Veríssimo parece depreenderse que Borges seria derivado de Bruges, pois o emigrante José Borges é apresentado como um descendente de Jacques de Bruges, «o gentil-homem flamengo que veio para a ilha nos tempos do Infante D. Henrique» (p. 69). Ora o que a história nos diz é que Jacques de Bruges chegou aos Açores em 1450, como capitão-donatário da Ilha Terceira; e, segundo nos informam os Nobiliários, o apelido Borges existiu em Portugal desde os princípios da nossa nacionalidade(6). Tanto Bruges como Borges derivam de topónimos: Bruges é o nome de uma cidade da Bélgica; e Borges, a fazermos fé nos genealogistas, é derivado de Bourges, cidade francesa. O cavaleiro Rodrigo Anes, que prestou relevantes serviços como soldado do exército de Filipe Augusto (reinou de 1180 a 1223), teria acrescentado ao seu nome o da cidade de Bourges, por ordem deste monarca, em recompensa da bravura demonstrada na defesa desta cidade. Chegado a Portugal, Bourges teria tomado a forma de Borges e sido incorporado no apelido dos seus descendentes. O que é certo é que já aparece registado em 1183. Borges precede assim Bruges de alguns séculos. Tanto mais que a única filha de Jacques de Bruges, Antónia Dias de Arce, casada com Duarte Paim, não herdou o nome do pai. E nem tão pouco os seus descendentes mais próximos. Em 1669, um seu quadrineto casa com uma Borges; e os

descendentes, filhos e netos, tomam este nome. É um seu bisneto, nascido em 1760 que mais tarde vai substituir o nome de Borges, recebido da bisavó materna, pelo de Bruges do seu 8.° avô paterno: Teotónio de Ornelas Bruges Paim da Câmara. Só então o nome da cidade belga se torna nome de família açoriana, certamente aí por fins do século XVIII(7). Trata-se, pois, de uma substituição e não de uma derivação. Enquanto que os Bruges são poucos e todos de nível social elevado, fixados, especialmente na ilha Terceira, os Borges são numerosos, encontram-se em todas as ilhas, e em todos os níveis sociais, do mais rico ao mais pobre. Percorrendo a lista de nomes de emigrantes açorianos extraídos dos processos de passaportes da Capitania Geral dos Açores, e publicados por António Raimundo Belo no Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira (vol. n.º V, p. 165-176; VI, p. 29-55; VII, p. 227-246; VIII, p. 35-57; IX, p. 70-100; XII, p. 107-137) verificamos que são muito numerosos os homens com o apelido Borges que partiram para o Brasil. Segundo informações fornecidas por Oswaldo Cabral, no seu artigo «Alguns moradores do Desterro nos séc. XVII e XVIII», «publ. no Bol. do Inst. Hist. da Ilha Terceira, XI, p. 1-142), o nome Borges só surge nos livros de registo de Florianópolis após a chegada dos açorianos à Ilha de Santa Catarina. Quanto a Rodrigues, é dos nomes mais frequentes na onomástica portuguesa e actualmente não possui qualquer conotação social. Nos livros genealógicos, onde tem quase sempre a forma Roiz, aparece sempre associado a outros: Roiz Barreto de Góis, Roiz de Melinda, Raiz Botelho de Penedono... Segundo as informações de Oswaldo Cabral, no seu já citado artigo, o nome Rodrigues existia na Ilha de Santa Catarina, antes da chegada dos açorianos: um Francisco Rodrigues, casado em 1722, poderia ser parente daquele Chico Rodrigues que, por meados do século, em Laguna, falava das suas proezas de bandido; e que viria mais tarde a casar com a Maria Rita Borges. No concernente a Maneco Terra, Erico Veríssimo refere que viveu em S. Paulo e Sorocaba, vê-se que não é recémchegado, mas nada se diz sobre a sua origem. No entanto podemos estar certos de que se trata também de um

(5) Hoje a grande cidade de Porto Alegre. (6) Em Cristovão Alão de Morais, Pedatura Lusitana (Nobiliário de Famílias de Portugal), Porto, 1947, há onze ramos dos Borges. Veja-se também Felgueiras Gayo, Nobiliário de Famílias de Por­tugal, Braga, 1938, t. VII; Gaspar Frutuoso, Saudades da Terra, Livro IV, vol.I, cap. XI.

(7) V. E. de Campos de Castro de Azevedo Soares, Nobiliário da Ilha Terceira, Porto, 1945 (3 voI.), rubrica «Paim».

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açoriano, certamente daqueles que tinham ido já no século XVII. É que «Terra» é um apelido criado nos Açores, na segunda metade do século XV, e não se encontra em qualquer livro de linhagens relativo a famílias portuguesas dos séculos anteriores. Os Terras descendem de Josse Van Aard (ou Aertrijcke), fidalgo flamengo, um dos primeiros colonizadores que vieram para a Ilha do Faial, talvez na companhia de Josse Van Huertere, capitão donatário do Faial e do Pico, aí chegado provavelmente em 1464. O nome de Josse Van Aard, em tradução portuguesa não muito exacta, deu Jorge Terra, de quem descendem todos os Terras hoje espalhados pelo arquipélago e até pelo continente(8). Nas listas de nomes de emigrantes que consultámos, há vários Terra, partidos do Faial no séc. XVIII. Mas sabemos que esta emigração começou mais cedo, pois há vários documentos desde os princípios do séc. XVII, que aludem não só à ida de casais açorianos, mas também ao levantamento de soldados em todo o arquipélago, para irem defender as terras do Brasil. Segundo a carta régia de 27 de Março de 1638, só dessa vez se contava levar mil homens (9). A Genealogia Paulista, de L. Gonzaga da Silva, dos primeiros tempos até 1800, regista 56 Rodrigues, uma dezena de Borges e poucos Terras, o que está de acordo

(8) Consultando a actual lista telefónica de Lisboa, encontrámos 7.260 Rodrigues, 900 Borges e 12 Terras, números que, embora relativa­ mente significativos, confirmam todavia as nossas palavras. (9) (‘) Cf. M. Paiva Boleo, Filologia e História, in Biblos, XX, 1945, p. 9-12, e BoI. Inst. Hist. Ilha Terceira, VII, p. 244 (Carta Régia).

com as nossas hipóteses explicativas, relativas à fidelidade da ficção à história. No entanto, no romance, os apelidos Borges e Rodrigues desaparecem logo após os primeiros dois casamentos, para só permanecer o de Terra. Como conclusão, diremos que O Continente, apesar de não ser um romance histórico, como o próprio autor afirma (Veja-se Obras Completas, vol. V, p. 725) transmite-nos, no entanto, uma mensagem conforme com a realidade histórica, tanto no que concerne as coordenadas socioeconómicas, como na fidelidade aos documentos utilizados. Sendo as personagens dotadas de uma vasta dimensão de probabilidade, e correspondendo as marcas temporais e espaciais a situações de autenticidade, toda a diegese ganha em verosimilhança. E. Veríssimo assimilou, integrou e recriou: sobre uma diegese real, que preexistia à instância narrativa como dado histórico, o escritor enxertou uma outra, autónoma, que, pela linguagem literária, conferiu a si própria uma verdade que não depende da conformidade com o facto verídico. O escritor, porém, estabeleceu com este universo imaginário uma relação de fidelidade especular, de respeito pelo verídico fundamental, o que impõe o romance pela sua verdade potencial e efectiva.


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AGRADECIMENTO**

António Rebordão Navarro*

Exmo. Senhor Presidente da Junta de Freguesia da Foz do Douro Meus Amigos, Minhas Senhoras e Meus Senhores: Impedido por um casamento (este--- longe vá o agoiro--em vez de unir separou---) de vir hoje aqui o Dr. Rui Osório agradecer em nome dos que por feitos ou obras se destacaram e a quem a Junta de Freguesia decidiu premiar, fui incumbido de o substituir. Não o farei sem lastimar poder fazê-lo com o brilho e a clareza que são peculiares ao pároco desta circunscrição, mas farei o possível para tornar clara e lúcida a mensagem que me foi confiada. Aqui estou, portanto, representando três ordens de contemplados: os que o são a título póstumo e, salvo erro ou omissão são 10, dos quais distingo os meus amigos Joaquim de Sousa Picarote, a escultora Irene Vilar, o arquitecto Fernando Távora, o Dr. Emideo Peres, os vivos que são 7, as organizações colectivas que, se não erro, são 11.

Contribuindo todos para prestigiar e honrar esta freguesia onde nasceu Raul Brandão, neste castelo que talvez guarde ainda entre as suas pedras e as suas sombras ecos dos sonetos de Florbela Espanca que trazia a poesia no sangue e o Alentejo no coração. Torna-se sempre difícil este momento que me faz lembrar aquela história do cristão no circo romano a quem Nero destinou a fera mais famélica do circo. Diante dela murmuralhe aos ouvidos algumas palavras que fazem recuar o animal. Chama o imperador o cristão ao camarote ordenando-lhe o informe do que tinha dito ao leão. Depois de muito instado, confessa o cristão ter-lhe dito: “Tu comes-me, mas depois tens de fazer um discurso.” Ora bem, isto de prémios tem muito que se lhe diga. Há os que afirmam que não se agradecem mas se aceitam, os que declaram que nem uma coisa nem outra, os que, como

* Escritor. Poeta. ** Discurso de agradecimento proferido em nome de todos os homenageados na sessão solene realizada no Forte de S. João Baptista da Foz do Douro (Castelo), no dia 20 de Julho de 2013, durante a qual foram distinguidos vultos ilustres da Freguesia da Foz do Douro, entretanto extinta. Foram distinguidos os nossos distintos colaboradores, a escultora Irene Vilar, a título póstumo, e o escritor António Rebordão Navarro.


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António Rebordão Navarro no uso da palavra.

eu os aceitam e agradecem, considerando que para eles contribuíram significativamente todos os seus concidadãos e o solo, a paisagem, o lugar em que vive. Crendo já ter dito tudo, não os cansarei mais com as minhas palavras. Desejo, no entanto, terminá-las transcrevendo o final de um belo soneto do poeta brasileiro Olavo Bilac:

Operário laborioso, abelha pobre, De ti e só por ti me glorifico. Por ser da minha gente é que eu sou nobre, Por ser da minha terra é que eu sou rico. Muito obrigado.


OS NOMES “PANCHORRA” E “PACHORRA”

Frei Acaribe*

Estando a redigir a “Monografia da freguesia de Tabuado”, concelho do Marco de Canaveses, e ao tentar explicar a origem e significado dos nomes dos diversos lugares da freguesia, fiquei surpreendido com o lugar da “Panchorra”. Os peritos em toponímia, e não só, afirmam que os nomes, quer de pessoas, quer de localidades (cidades, vilas, freguesias, lugares, campos, matos, etc.), geralmente têm origem na orografia, constituição do solo, (Penafiel, Lamego, Fundão, Outeiro etc); na flora (Carvalhal, Sobral (de Sobreiral); Nozedo (de Nozes); na fauna: Coelheira, Raposeira, Teixugueira, etc.); na hidronímia: (Entre-os-rios, Ribadave, Figueira da Foz, Castelo de Paiva etc); na antroponímia: (Paços de Ferreira; Vila Pouca de Aguiar, Castelo de Rodrigo, etc. Antes, porém, de avançar com a tentativa de encontrar a etimologia e significado da palavra “ Panchorra”, procurei indagar se existiriam outros lugares ou freguesias com o mesmo nome. E as minhas pesquisas não saíram frustradas. No concelho de Resende existe uma freguesia com a mesma denominação. De posse dum lugar e duma freguesia com o mesmo nome “Panchorra”, mais fácil seria encontrar as suas origens. Consultando a internet encontro o seguinte:” Ainda não *Professor. Historiador.

existe nenhum significado para Panchorra. Envie agora um significado”. Voltei-me então para os dicionários (que apresentarei apensos a este trabalho) e encontrei as seguintes hipóteses: A palavra de origem grega “pân” , que significa muito, todo, e a porguesa “chorro” que significa jogo de crianças. Portanto, poderia ser “lugar onde muitas crianças jogam ou brincam. Mas “chorro” também aparece como significado de gatuno, ladrão e por conseguinte teríamos esta localidade como terra de muitos ladrões. Todavia, estas duas hipóteses não me satisfaziam. Continuando a compulsar dicionários, encontrei a hipótese da palavra portuguesa “pau” que junta à castelhana “jorro”, com o seu significado de “arrastar” teríamos “paujorro” ou “paujorra”, > “pauchorra > panchorra. E portanto, lugar onde se arrastavam paus, v.g. para o serradouro. Mas esta hipótese embora já me agradasse, (até porque perto existe a freguesia “Paus”), e no caso que me interessa o lugar pertença a “Tabuado”, [os dois relacionados com madeiras], ainda não me sentia satisfeito. Continuando com as pesquisas, termino por encontrar a palavra “Jorra” com o significado de “breu”, espécie de barro negro, que se utiliza em muitas localidades para o fabrico de panelas, alguidares, vasos, etc. Dirigindo-me ao (à) Ex.mo(a) Senhor(a) Vereador(a) do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal do Concelho de

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Resende, na margem esquerda do rio Douro, a jusante da Régua, respondeu-me (com a devida vénia) a Ex.ma Sr.a Prof.a D. Dulce Pereira informando-me de que realmente essa freguesia “Panchorra” está situada numa região de solo muito pobre mas onde abunda esse barro negro; e que desde os tempos remotos da idade média, até 2005, … “oleiros faziam as suas criações artísticas e desenvolveram em Resende um artesanato muito típico desta região (pois difere dos produzidos noutras regiões), designado por “olaria negra”. Acontece que em Tabuado, muito perto do referido lugar, em sítio mais exposto ao sol, talvez para melhor secagem, existiu o mesmo artesanato e aos artesãos apelidavam-nos de _ “paneleiros” fabricantes de panelas. Penso que assim teremos conseguido decifrar a etimologia e significado dum lugar e duma freguesia até ao presente desconhecidos. Todavia, se houver alguém que tenha conhecimento de outra hipótese, ou até da certeza da sua origem e significado, aqui estamos para dar a mão à palmatória. Nota: Atendendo a que o trabalho dos artesãos de olaria exige muita paciência e lentidão para extrair, secar e peneirar o barro, depois amassá-lo e finalmente com a massa,

moldar, secar, e cozer o artefacto, não estará aqui (com a queda do “n”) a origem do termo “pachorra”, pachorrento” ?... Até outra opinião, penso que sim. E o que dizer de “cachorro”? Não se aludirá a um cão pequeno, lento, sem grande importância ?... E porque se apelida de “cachorro” a um rapaz preguiçoso, indolente, vagaroso?... E porque se chama “cachorro” a uma pequena sanduiche ?... Continuaremos à espera de outra ou de outras opiniões.

Obras consultadas:

1º - Internet, navegando pela palavra “Panchorra”, “Pân” e “chorra”, “jorra” e “zorra”; 2º - Dicionário Complementar da Língua Portuguesa (ortoépico, ortográfico e etimológico) etc, 3ª edição melhorada – Porto 1941; 3º - Dicionário da Língua Portuguesa, Coordenação de José Pedro Machado, Vol. III – Lisboa -1960. 4º - Dicionário, Etimológico, Castellano e Hispánico, Gredos G-Ma, de J.Coraminas e J.A.Pascual – Reimpressão 1957 5º - Dicionário Espanhol-Português, Julio Martinez Almoyna – Porto Editora, L.da, 3ª edição, sem data.


A LUZ ELÉCTRICA EM OVAR, REPORTAGEM DA ILUSTRAÇÃO PORTUGUESA

Manuel Valente Bernardo*

A energia eléctrica, que começou a ser produzida e comercializada nos Estados Unidos da América, em 1882, deslumbrou todo o Mundo quando foi apresentada na Exposição Universal de Paris, realizada em 1900. A partir de então, possuir iluminação eléctrica passou a ser o sonho de modernidade de todos aqueles que pugnavam pelo progresso da civilização. Em Portugal, os ecos da exposição parisiense, que chegaram imediatamente, através da imprensa, fizeram com que muita gente visse na nova forma de energia a solução ideal para a iluminação pública e o funcionamento de estabelecimentos comerciais e industriais. Cómoda, barata e limpa, a energia eléctrica simbolizava uma rotura com as «trevas» do passado... No concelho de Ovar, a produção e comercialização de energia só foi inaugurada em 1 de dezembro de 1913, mas, mesmo assim, Ovar foi o 2º município do distrito de Aveiro1 em que tal aconteceu. Ovar conheceu a luz eléctrica mesmo antes da capital de distrito a possuir. 1 Espinho foi o 1º, em 1904. Cfr. Brandão, Francisco Azevedo, «Anais de história de Espinho», 985-1926, p. 118. *Técnico superior de História da Câmara Municipal de Ovar.

Não se pense que foi uma empresa fácil e rápida a instalação da luz eléctrica entre nós; muito pelo contrário. Tratou-se de um processo moroso, iniciado em 1903, que conheceu peripécias várias e que só foi levado a bom porto pela decidida vontade de alguns vareiros, entre os quais avulta a figura de José de Oliveira Lopes, que foi o principal accionista da «Companhia Portugueza de Iluminação e Tracção de Ovar»2. Com efeito, desde 1903, foram iniciados processos e abertos concursos públicos cujo resultado foi nulo, até à constituição e remodelação da companhia acima referida, custeada, em grande parte, pelo benemérito valeguense a que já nos referimos nestas páginas. A «Ilustração Portuguesa» referiu-se, por três vezes, ao grande progresso material que foi a instalação da luz eléctrica em Ovar, publicando oito fotografias, da autoria de Ricardo Ribeiro, onde se mostram aspetos das fases de instalação da companhia na (então) vila de Ovar, bem como da bomba de água, dos electricistas que procederam à instalação e da cerimónia que precedeu a ligação da corrente3. 2 O edifício da «Companhia Portuguesa de Iluminação e Tracção de Ovar» foi construído num terreno confinante com o largo de Almeida Garrett que, na altura, era o verdadeiro coração industrial da vila de Ovar. Em julho de 1913, a direcção da «Companhia Portuguesa de Iluminação e Tracção de Ovar» era composta por cinco membros efectivos. Eis os seus nomes: Afonso José Martins, António Baptista Zagalo dos Santos, João Ferreira Coelho, António dos Santos Sobreira e José da Silva Ribeiro. Cfr. LAMY, Alberto Sousa, Monografia de Ovar, 2ª ed., vol. 2, p. 508-512. 3 Nº 406, de 1 de dezembro de 1913, p. 654, nº 407, de 8 de dezembro de 1913, p. 675, nº 409, de 22 de dezembro de 1913, p. 729.

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Tomaste como teu o meu coração António Madureira*

Plantaste o amor no meu peito tomaste como teu o meu coração fizeste tua, a minha vida e de mim o teu amor o meu peito é a tua almofada o meu abraço teu porto seguro os nossos beijos alimento do nosso amor serei o teu futuro tu o meu


POSTAIS DO CONCELHO DA FEIRA

Ceomar Tranquilo*

Postais do Concelho da Feira A – Postais ilustrados. Pintura e desenho

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137 – Castelo da Feira – óleo de Jorge Pinto

* Caminheiro por feiras, lojas e mercados.


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138 – Vila da Feira – Desenho a lápis de Jorge Pinto

138 – A – Reverso do mesmo postal. - Circulado em Lisboa em 28-12-1949, selo de $50 da série Caravela.


139 – Castelo Vila da Feira – Desenho de Jorge Pinto

139 – A - Reverso do mesmo postal. Circulado em Lisboa em 24-12-1962, selo de 50 centavos da série Selo de Autoridade de D.Dinis.

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140 – Ovar – Varina

140 – A – Reverso do mesmo postal. Feira (Castelo) Costumes Regionais Portugueses. (Série de 24 postais).


141 – Castelo da Feira – Desenho de

21º. Postal da colecção Benzo Diacol. 155

141 – A – Reverso do mesmo postal. Publicidade dos Laboratórios Bial. - Circulado para Lisboa, em impresso avençado.


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142 – Castelo da Feira – selo de 2$50 da Série Paisagens e Monumentos – Carimbo filatélico de Vila da Feira – 6.12.77.


143 – Chafariz da Misericórdia – Vila da Feira – desenho de Jorge Pinto. 157

143 – A – Reverso do mesmo postal. Cumprimentos de Boas Festas do autor do desenho para Exmo. Sr. Emídio Curado de Oliveira, Setúbal. Circulado em envelope


144 – O Castelo da Feira – desenho da capa do livro de Aguiar Cardoso e Vaz Ferreira

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144 – A – Reverso do mesmo postal. Impresso nas oficinas gráficas do Comércio do Porto.


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Liga

dos Amigos da Feira


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