97 pdfsam laf 34 final

Page 1

LANÇAMENTO DO LIVRO “RETRATOS LEGENDADOS”** (8 de Fevereiro de 2013) (Reitoria da Universidade do Porto)

Serafim Guimarães*

A sessão foi aberta pelo Reitor da Universidade do Porto, Prof. Doutor José Carlos Marques dos Santos que, num breve discurso aludiu à motivação que o exercício da Medicina exerce na vida mental dos seus cultores, levando ao desenvolvimento da actividade artística em muitos dos seus profissionais. Para os médicos, a arte servirá, presume-se, para matizar a fria cientificidade da medicina com a cultura humanística e a sensibilidade estética inerentes ao acto criativo, disse. O Senhor Reitor terminou a sua intervenção justificando a decisão de incluir o livro “Retratos Legendados” nas comemorações do Primeiro Centenário da Universidade do Porto. O segundo orador foi o Prof. Doutor Luís Valente de Oliveira, Presidente da Comissão das Comemorações do Centenário da Universidade do Porto que sublinhou a necessidade que os médicos têm de condimentar as respostas exclusivamente químicas ou físicas com outras componentes de natureza intangível que os fazem despertar para dimensões de natureza humana diversas das anteriores.

Fez, ainda, uma apreciação breve do currículo do autor, exaltando a sua componente científica. Seguiu-se, depois, a apreciação feita pelo Prof. Doutor João Lobo Antunes, autor do prefácio do livro que começou por dizer que iria seguir o prefácio que escreveu, uma vez que estava convencido de que ninguém o tinha lido! Grande amigo do autor, interrogou a memória procurando recordar quando o conheceu. Em vão… A memória respondeu que sempre o conhecera e que era até possível que esse conhecimento viesse já de outra vida… Quando se referiu ao conteúdo da obra, disse que a primeira coisa que se espera de um retrato é que ele esteja parecido, mas parecido com quem, se há muitas pessoas em cada pessoa? A mim vestiu-me com o trajo académico que herdei do meu tio-avô, poupando os múltiplos buracos que uma traça vagabunda nele foi roendo durante quase um século. Fez, depois uma referência ao modo como o autor o retratou e, sem rodeios, disse que a imagem que o desenho transmite lhe roubou um tanto o Narciso que de vez em quando dele se escapa, para dar preferência à essência espiritual que o caracteriza: de mim, o meu amigo captou aquele quase velho que encontro, às vezes, sorumbático, céptico, uma prega na cana do nariz que é sinal de o ter franzido toda a vida, as orelhas pontiagudas que, desde há anos, me servem mal, e os olhos empapuçados com que vou interrogando o mundo, a natureza e as pessoas.

* Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. ** Do livro Retratos Legendados fazem parte 51 retratos, dos quais se seleccionaram os 10 que aqui se apresentam.

97


98


99


100


101


102


103


104


105


106


107


108

Em cima, as duas fotografias mostram a mesa que presidiu à cerimónia do lançamento do livro: da esquerda para a direita o Prof. João Lobo Antunes (que o prefaciou), o Prof. Serafim Guimarães (autor), o Prof. José Carlos Marques dos Santos (Reitor da Universidade do Porto) e o Prof. Luís Valente de Oliveira (Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 1º Centenário da Universidade do Porto). Na fotografia da esquerda vê-se o Prof. Lobo Antunes no uso da palavra e, na da direita, o Prof. Valente de Oliveira. Em baixo, com o Prof. Lobo Antunes à direita e o Reitor da Universidade à esquerda, está o autor no uso da palavra.


Quase todas as personagens são apanhadas em flagrante no acto de pensar, o rosto vincado pelas rugas que reflectem o risco que envolve esta função, como os exemplos do Manuel Sobrinho Simões, das duas figuras maiores da Igreja Portuguesa, do Adriano Moreira ou do meu irmão António. De modo geral o autor retrata aqueles que admira, que estima ou que, o que é mais provável, reúnem em simultâneo as duas condições. Terminou dizendo que este álbum é, além do mais um singelo contributo para guardar uma tradição que teve como expoente maior Abel Salazar.

Palavras do autor:

Os meus primeiros cumprimentos vão para os ilustres companheiros de mesa e são de grande apreço e de afectuosa admiração. Desejo saudar, também, com emoção sincera, todos os presentes e agradecer-lhes esta manifestação de interesse e simpatia. Antes de me referir propriamente à publicação que estamos a apresentar, desejo agradecer ao Senhor Reitor, ao Senhor Professor Valente de Oliveira e ao Senhor Professor António Marques a abertura que permitiu que o livro “Desenhos Legendados” fosse integrado nas comemorações do centenário da gloriosa Universidade do Porto. Uma migalha muito pequenina a participar num acontecimento muito grande. Não posso deixar de agradecer, também muito penhorado, a presença do Professor João Lobo Antunes que, além da prontíssima aceitação para escrever o prefácio, foi de uma prodigiosa disponibilidade em relação a tudo o que ao livro diz respeito. Hoje, veio de Lisboa, após um dia normal de muito trabalho e hoje regressará a Lisboa para poder trabalhar amanhã. Quero, ainda agradecer-lhe as bondosas referências que acaba de fazer, ao livro e a mim, referências cuja adjectivação eu atribuo à simpatia que o caracteriza e à estima que eu sei que me dedica.

Quero, ainda dizer que, não tendo experiência que me conforte nestas fainas, senti um certo embaraço, ainda por cima, por ter de falar sobre uma coisa minha. Por isso, escrevi uns curtos apontamentos em que me vou amparar. O livro começa com dois belos textos da autoria do Senhor Reitor e do Prof. Valente de Oliveira que muito o enriquecem e que eu muito agradeço. Gosto de desenhar, desde que me conheço e esse gosto nasceu como as ervas daninhas: sem adubagem, sem sementeira, sem tratamentos nem outros cuidados, isto é, sem empurrões nem embaraços. E, assim como nasceu comigo, tem-me acompanhado. Virgem de influências genéticas facilmente reconhecíveis, não obedeceu, também, a nenhuma sugestão, ajuda ou ordem externa. Sempre senti uma tendência e um gosto particular em reproduzir com o rigor e o pormenor possíveis aquilo de que os meus olhos gostam. É o modo de exprimir o desejo íntimo de tentar eternizar a presença de amigos, de pessoas que estimo, algumas vezes sem as conhecer. Quando, pela adolescência, soube que Jean Dominique Ingres e também, mas só em parte, Wolfgang Goethe, apontavam o desenho como a forma mais verdadeira da arte, gostei e senti um certo consolo, apesar de nunca me sentir incluído no grupo dos praticantes de tal arte, merecedora dessa apreciação tão lúcida e honrosa. Lembro-me de que na prova de desenho à vista do exame final do quinto ano do Liceu, constava a reprodução de um objecto à escolha, de entre os que se viam na sala onde o exame estava a decorrer: um vaso, um lápis, uma lâmpada, uma caneca. Eu abri o estojo que continha aquela série conhecida de pequenos instrumentos: tira-linhas, compassos, estiriletes e desenhei-os a todos dentro da respectiva caixa. Nas suas deambulações fiscalizantes, a primeira vez que o professor vigilante da prova passou perto de mim, ficou intrigado e eu apercebi-me disso. Ele não entedia bem o que é que este estranho sujeito estava para ali a fazer. Expectante como ficou, passou a ver, com passagens frequentes, no que é que aquilo dava. A verdade é que o desenho saiu-me bem e o sobrolho carregado da primeira passagem foi-se aliviando e transformando num sorriso, que se abria em cada nova passagem. No fim, quando fui entregar o fruto daquela hora e meia, ele disfarçou, como pode, um abraço que seria comprometedor se alguém visse! Esse gosto de fazer os meus rabiscos foi durante toda

109


110

a adolescência um dos meus passatempos favoritos. Não houve artista de cinema ou futebolista famoso que eu não desenhasse. E as figuras saíam-me razoavelmente parecidas: Ester Williams, em fato de banho, Ingrid Bergman a dançar com Humphrey Bogarth, Gregory Peck a beijar Jennifer Jones, Jesus Correia a rematar para um golo; Azevedo a voar para agarrar uma bola! Enfim, coisas que adornavam o meu mundo de então. Mas, sempre, um lápis vulgar a riscar preto sobre um papel branco! Na altura de decidir o rumo profissional a seguir não foi fácil escolher. A opção pelas Belas Artes tinha o apoio entusiástico do primo Baptista, um excelente artista, que, apesar do seu enorme talento, reconhecido pelos mestres José de Brito, Marques de Oliveira e outros seus condiscípulos, não passou de modesto professor de desenho numa escola de Águeda, mas tinha a oposição de minha mãe e essa muito séria, porque o seu ponto de vista envolvia aspectos muito pragmáticos. Estudar Medicina tinha, sem dúvida, o apoio da maioria no seio da família e acabou por triunfar. Optei, assim, pela Medicina mas sem nunca ultrapassar, totalmente, a hesitação inicial entre o artista que não sou e o médico que praticamente nunca fui. Fiquei a meio: dediquei-me ao ensino e à investigação! Muitos dos meus amigos me perguntam porque é que eu só desenho e não pinto? É só porque acho que não sou capaz de pintar e não sinto essa necessidade. O pintor António Joaquim, meu vizinho de origem e meu Amigo desde a infância, várias vezes tentou entusiasmar-me, forçando-me quase a pintar. Tenho em casa conjuntos de bisnagas e caixas de aguarelas que ele me ofereceu, há muitos anos, para me tentar. Um dia, munido de duas telas e de dois conjuntos de tintas convenceu-me a ir com ele até à Torreira, à beira-ria, onde vários barcos moliceiros se ofereciam coloridos, numa água tranquila e sob um céu sereno, um painel apetecível e aparentemente fácil de reproduzir. Passou-me para as mãos uma das telas e um conjunto de tintas e mandou-me avançar. E eu, obedecendo ao seu entusiasmo, comecei a desenhar o barco mais próximo pensando que ia vencer o desafio sem grande esforço. Ao fim de duas-três horas, ele tinha um belíssimo quadro com excelentes cores, onde aparecia tudo que os olhos viam e a sensibilidade apreciava e eu tinha,

apenas, o razoável desenho de um moliceiro e procurava, com denodo, espremendo bisnaga, atrás de bisnaga, encontrar uma mistura de tintas que imitasse a cor daquela água parada mas com tanta vida! Nunca mais tentei! E sinto-me aqui e agora meio envergonhado diante de tão credenciados amigos, porque algum pode pensar que eu me sinto artista. Nunca fui tentado por esse devaneio! Alguma habilidade acho que tenho, mas não passo disso, estejam sossegados! Custou-me muito dar andamento à ideia de fixar num livro alguns dos desenhos que tenho feito. Quando há alguns anos tratei de organizar uma publicação de homenagem a Abel Salazar, lembrei -me de que, tendo dez netos, seria uma manifestação rica de ternura, deixar-lhes, num livro, alguns desses frutos dos meus intervalos. Foi essa a razão para esta decisão que, além disso, foi o único argumento com que consegui convencer a minha mulher a permitir-me a veleidade. Mais tarde, alguns amigos sugeriram-me a associação dessa ideia à celebração do centenário da Universidade e eu achei linda a sugestão e muito honrosa a sua concretização. E por isso aqui estou nesta penosa situação de me justificar. Como digo no Prefácio, o principal motivo que me atrai é a figura humana. Tenho desenhado outras coisas, mas um tanto a contragosto. É, isso, sim, seguramente, uma homenagem a pessoas que muito admiro e de quem, em muitos casos, sou muito amigo. Qualquer obra de arte é sempre o resultado de certo talento, de algum trabalho e de muita devoção, mas não deixa de ser, também, marcada pelas incapacidades do seu autor. Devo confessar que sinto as incapacidades sempre que pego no lápis. Às vezes olho, o mais de fora que posso, para os desenhos que faço e é-me fácil concluir que gosto muito de alguns, mas também não tenho nenhuma dificuldade em reconhecer claras infantilidades noutros. Alguns dos desenhos deste livro, como aqueles em que retrato António Lobo Antunes, Adriano Moreira, Manuel Sobrinho, ou José Mattoso agradam-me; o do Julius Axelrod, ou o do von Euler, por exemplo, já nem tanto. Tentar retocá-los era introduzir uma certa mentira e, por isso, deixei-os seguir! Tenho consciência das limitações resultantes de uma certa incompetência técnica. Mas eu nunca tive aulas de desenho. Só desenhos de figuras humanas, retratos, porquê? Creio


que é pelo fundo científico da minha natureza. Gosto dos dados comprovados, do rigor, da segurança, da necessidade de que os outros acreditem. Eu meço e comparo tudo o que faço. E um retrato é fácil de discutir. Parece-se ou não se parece! Há retratos de vários autores de que gosto muito, e que considero artisticamente de grande mérito, em que o retratado nem sequer se adivinha. Em que a alma é mais representada do que o corpo. Estou a lembrar-me de certos retratos feitos pelo Carlos Carneiro, pelo Júlio Resende, pelo Júlio Pomar, entre nós, ou pelo Cézanne ou pelo van Gogh. Eu não tenho, de todo, essa capacidade. Só desenho o que vejo e devagar!

Em suma, este livro reflecte muito aquilo que sou! Ao fim e ao cabo, creio que não haverá muitos livros com

um miolo idêntico. Como também gosto de escrever, fundi aqui esses dois gostos, o que torna difícil discernir se o que estamos a apresentar é um livro de desenhos explicados por textos ou um livro de texto ilustrado com desenhos. Quero que acreditem que essa é, para mim, a originalidade que lhe pode conferir algum interesse. Quando ofereci ao Álvaro Siza o desenho em que o retratava ele perguntou-me: o que é que o meu amigo é, além de artista? Foi simpático, mas não me convenceu. E para terminar quero, ainda deixar uma palavra de agradecimento às senhoras Dras Isabel Pacheco e Manuela Pestana da equipa editorial pela excelente colaboração que prestaram

111

A fotografia de cima mostra um aspecto da Biblioteca da Universidade do Porto e da assistência que participou na sessão. Nas duas de baixo, o pintor António Joaquim (na da esquerda) e o Dr. Celestino Portela (na da direita) cumprimentam o autor.


112


CELEBRAÇÃO DA FESTA DE S. SEBASTIÃO SANTA MARIA DA FEIRA, 20 DE JANEIRO DE 2013 II Domingo Comum

Dom João Lavrador*

Homilia

Neste dia em que celebramos a figura do mártir S. Sebastião, sendo domingo, a Palavra de Deus situa-nos em ambiente de festa, mais precisamente nas bodas de um casamento. Após o prólogo do seu Evangelho, da narração dos factos da vida de João Baptista e o chamamento dos primeiros discípulos, S. João convida-nos a entrar na cena das Bodas de Caná. Não se identificando os noivos, somos conduzidos até aos convidados principais. São eles Jesus, a Mãe de Jesus e os Seus discípulos. Perante a interpelação de Maria de Nazaré dirigida a Jesus, acerca da falta de vinho, Jesus revela que ainda não chegou a Sua hora. Segundo o itinerário do quarto Evangelho, a hora de Jesus coincide com a Ceia Pascal, ou melhor dizendo, com a oferta de Si mesmo na Sua Páscoa. Aí sim tudo será transformado. * Bispo Auxiliar do Porto.

É a esta luz que entendemos a afirmação de Maria, Mãe de Jesus, ao interpelar os serventes, dizendo-lhes: «fazei o que Ele vos disser». A partir do Mistério pascal de Jesus Cristo reconhecemos a profundidade do significado de transformar a água destinada aos ritos de purificação em vinho que será causa de alegria e de festa para todos os convidados. Só em Jesus Cristo se esclarece verdadeiramente o que está profetizado pelo profeta Isaías, tal como nos é narrado na primeira leitura, o qual voltando-se para Jerusalém, personificando o Povo eleito de Deus, a trata como esposa que é a alegria do seu marido e reconhece que, deste modo, será chamada por um nome novo, não será jamais abandonada nem viverá na solidão, porque todos os povos verão a sua justiça e todos os reis a sua glória. É este ímpeto latente em todo o coração humano que se revela no anseio de felicidade, de plenitude na alegria e de plena realização do seu ser, que está patente nas palavras de Isaías e a cujos desejos quer responder a cena das Bodas de Caná. Também nós hoje, mergulhados numa cultura cheia de perplexidades, detentora de tantas frustrações humanas, coarctada nos sonhos e anseios de algo de novo, mas também esperando uma plena realização humana, somos encaminhados pela Palavra de Deus, ao encontro de Cristo que quer, com a Sua entrega total na Sua Páscoa, conduzirnos até à festa de uma vida plenamente feliz.

113


Há um sonho em cada homem e cada mulher que se traduz no desejo de viver na alegria total. A vida deve traduzirse em festa para todos. Contudo nem todos sentem a alegria e poucos têm motivos para viver a festa. Há sinais preocupantes na nossa sociedade que levam a reconhecer que a esperança vai morrendo no coração de tanta gente. Diz-nos o profeta Isaías que Deus não terá repouso enquanto a justiça não despontar como a aurora e a salvação não resplandecer como a luz do archote. A pessoa exige que lhe seja salvaguardada a defesa da sua dignidade profunda através de uma autêntica justiça. Esta não é mera aplicação de leis, mas é sobretudo reconhecimento do que cada um é, devido também à misericórdia e ao amor.

114

Um aspeto do interior da Igreja Matriz.

Mas esta concepção de pessoa humana e da sociedade não se alcançará sem um mergulhar no mistério pascal de Cristo que nos renova e como que nos recria para uma nova visão de toda a realidade. Só aí compreenderemos que todas as criaturas são irmãs, que ninguém poderá ser excluído da festa da vida, o amor será a garantia de relações fraternas profundas e que cada um de nós não se deve restringir a uma solidariedade exterior, na partilha de bens, mas deve reconhecer que a vivência do amor fraterno leva cada um a optar por uma doação de si mesmo, das suas capacidades, dos seus dons pessoais, dos seus bens, do seu tempo e da sua esperança. É desta partilha que nos fala a primeira carta de S. Paulo aos Coríntios, há pouco escutada, e é desta atenção aos mais desfavorecidos que nos interpela a festa de S. Sebastião.


A Igreja no seu esplendor.

S. Paulo constata que cada um dos membros da comunidade cristã é agraciado por dons que o Espirito de Deus lhe comunica. Estes dons são para ser exercidos em proveito dos outros sem traírem a unidade que o mesmo Espirito realiza entre eles. Cada um que faz a experiência da alegria e da festa a partir da Ceia pascal de Jesus Cristo é chamado a tornar presente a hora de Cristo. Celebrar a S. Sebastião é sem dúvida reconhecer antes de mais que no seu martírio se associou de modo exemplar ao mistério pascal do Senhor. Para usar a imagem do Evangelho, assumiu em si mesmo o vinho novo que sacia a sede de tanta gente. Por isso, ao longo dos séculos, o povo necessitado recorre a ele na esperança de ver realizada a sua súplica pela qual quer alcançar as condições de vida digna e o patamar de alegria e de felicidade que lhe são roubados pelas contínuas ameaças que tem de enfrentar. Em S. Sebastião encontramos a imagem viva do que é o amor a Deus e o amor ao próximo e como as duas direcções do mesmo amor se implicam mutuamente. Saboreando quotidianamente os dons de Cristo tornou-se testemunha do amor de Deus na vida da sociedade do seu tempo. Neste ano proclamado como ano da fé, S. Sebastião ajuda-nos a centrarmos bem o que é a verdadeira fé cristã

e as implicações que ela tem na existência de cada discípulo de Jesus Cristo. Como afirma Bento XVI na Porta Fidei, «A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de facto, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou». Diz, por sua vez, S. Paulo que «pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6,4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé, que actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10; Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17)» (Porta Fidei, nº 6). Por isso, sublinha ainda o Santo Padre que na descoberta diária do amor de Deus, «ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria» (Porta Fidei, nº 7). Todos nós que nos aproximamos de S. Sebastião como fizeram os nossos antepassados em momentos de aflição, vimos ao encontro de alguém que não temeu as autoridades do seu tempo, não abdicou da fé nem da verdade em Jesus Cristo por receio ou por qualquer interesse particular, nem deixou de ajudar os seus irmãos por medo das consequências. Que belo exemplo para os tempos de hoje em que tanta gente se subordina aos interesses instalados, à cultura dominante, negociando a fé em Jesus Cristo, o único Salvador, manipula a verdade por meras situações de conveniência e

115


116

sobretudo evidencia-se pelo desprezo do ser humano, na sua dignidade mais sublime que não é outra do que ser filho de Deus, motivado por interesses individuais ou de grupo, por razões economicistas e de mercado, para quem o ser humano é um número de estatística. A desgraça, a corrupção, a delinquência, a miséria, a fome física e moral, e o abandono encontram terreno fértil nos modelos sociais e culturais que temos vindo a construir. Numa cultura de aparências, de subterfúgios e de modelos enganosos, há algo de novo que todos anseiam. Fixando bem a pessoa de S. Sebastião certamente temos nele um bom exemplo para uma conversão de vida e para uma procura de critérios, opções e valores que nos ajudem a construir a nossa sociedade em bases sólidas, verdadeiramente humanas porque cimentadas pelo autêntico amor. Deste modo, poderemos celebrar a festa da vida. Então sim, o poder tornar-se-á serviço, os mais pobres tomarão o primeiro lugar nas preferências dos poderes públicos, o outro é considerado como irmão, a justiça é acompanhada pela misericórdia, a alegria transparecerá em cada rosto e a vida reencontrará o sentido porque o amor presidirá sempre às nossas acções.

Dom João Lavrador, que proferiu a Homilia.

Recorramos a S. Sebastião não apenas na esperança de ele nos aliviar das nossas aflições mas abramo-nos à luz de Deus que resplandece nele e que nos leva a reconhecermos as capacidades e dons que cada um possui, não para si mesmo, mas para os colocar ao serviço dos outros. Deste modo, o milagre acontece porque tudo o que realizarmos será sempre sinal do amor que nos impele a irmos ao encontro dos nossos irmãos. Reconhecemos em tantas situações da sociedade actual a mesma advertência da Mãe de Jesus, «não têm vinho», isto é, não têm alegria; pertence-nos a nós levarmos a Jesus Cristo a água das amarguras e dos sofrimentos, das expectativas e dos sonhos para que os transforme em vinho novo, isto é, em plena renovação de vida e de esperança, e servi-lo aos irmãos. Termino implorando de S. Sebastião para as autarquias do município da Feira, Câmara Municipal, Assembleia Municipal, Juntas de Freguesia e Assembleias de Freguesia, para as suas gentes, para os mais carenciados e os que de algum modo buscam uma sociedade melhor as suas graças e bênçãos. Amen.


AOS BISNETOS DA MINHA MÃE

Rosa Amélia Soares Martins*

Ao André, à Raquel, à Inês, ao Afonso, à Maria, ao Eduardo, ao Vasco, aos que aí vêm (à Joana) e aos que ainda hão-de vir. Como vocês sabem (os mais crescidos) no passado dia 7 de Agosto reunimo-nos todos em Nogueira para festejar o que seriam os 100 anos da vossa bisavó Raquel. Sabem tão bem que até fizeram um lindo espetáculo de homenagem! Pois é, a Maria Raquel nasceu a 7 de Agosto de 1912, em Moncorvo, e foi a mais nova de três irmãos. Os outros dois eram rapazes: o Antero (pai da Milita) e o António (que não teve filhos). A casinha onde nasceu ainda lá está, em Moncorvo e a Maria Raquel lembrava-se de ver a sua mãe a fazer o pão (na masseira). Fazia-se o pão uma vez por semana e o forno era coletivo, toda a gente podia lá cozer o seu pão. Eram uns pães grandes! Nesse tempo andava-se a pé, de burro, de barco (no rio) e as estradas eram caminhos. A sua mãe chamava-se Estelita (como a Milita) e o pai era Alfredo (como o irmão da Milita). Quando ainda era pequenina, num dia de tempestade em que o rio estava muito perigoso, *Professora do Departamento de Matemática da Universidade de Aveiro

aconteceu uma desgraça - o seu pai morreu ao atravessar o rio de barco. Achou que não podia adiar a viagem porque ia pagar aos seus trabalhadores - era sábado e era ao sábado que se pagava. A sua mãe não tinha rendimentos para conseguir criar sozinha os três filhos (nessa altura não havia apoios sociais) e quem a ajudou foi a sua irmã Amélia e o marido (Gil) que não tinham filhos e viviam no Porto. Então a Raquel, ainda muito novinha, veio viver com os tios para o Porto. Os seus irmãos, já mais crescidos, ficaram em Moncorvo e começaram a trabalhar para poder ajudar a mãe (nesse tempo estudava-se durante pouco tempo, ou nenhum, e começava-se a trabalhar muito cedo). Deve-lhe ter custado a separação, mas como era muito pequena e os tios gostavam tanto dela como se fosse sua filha, acabou por ganhar mais uma mãe e um pai, além da mãe que já tinha e dos dois irmãos, de quem sempre gostou tanto! Os tios do Porto eram ambos músicos e não eram nada ricos, mas iam tendo o suficiente para uma vida sem grandes apertos, e com alegria. O tio Gil era muito distraído e contam-se dele histórias muito divertidas, como aquela de calçar as duas peúgas no mesmo pé ou de comprar num leilão uma banheira cheia de colarinhos (compravam-se separados das camisas) mas toda furada, como se viu depois

117


118

Maria Raquel de laçarote no cabelo, por volta dos 4 anos.

de chegar a casa e despejar os colarinhos… Também como maestro de banda se enganava no hino. Mandava tocar o da monarquia quando a cerimónia era republicana ou o hino da república quando a cerimónia era monárquica (eram os primeiros tempos da República, e ainda havia lutas no Porto entre republicanos e monárquicos). Seria mesmo distração? Ele era muito maroto…

Viviam numa casa arrendada que partilhavam com uma família amiga, em que havia duas crianças, a Maria Alice e o Albano. As duas meninas haviam de ficar amigas para toda a vida. Nesse tempo era comum partilhar casa quando se tinha pouco dinheiro (e agora volta a ser…). A Maria Raquel lembrava-se de, ainda pequena, ir aos sábados com a tia Amélia ao cinema Carlos Alberto, onde a tia trabalhava acompanhando ao piano os filmes (mudos) que passavam no ecrã. Às vezes a tia deitava-a em duas cadeiras unidas para dormir uma sestinha. A seguir iam ambas de elétrico ter com o tio Gil à Praça da Batalha onde o tio tocava num clube recreativo para as pessoas dançarem. Lembrava-se de dançar ao colo de amigos dos tios. Sinais de uma infância feliz. Nessa época as meninas estudavam menos anos que os rapazes e depois ficavam em casa a aprender com as suas mães a fazer coisas como cozinhar, costurar, bordar, etc. Também podiam aprender a tocar piano e a falar francês (como o gato maltês). Mas a Maria Raquel teve sorte: os tios acharam que ela não valia menos do que um rapaz e portanto estudou até ao 7º ano do liceu (correspondente ao 12º ano de agora, mais ou menos). Era uma menina inteligente e muito brincalhona. Quando acabou o liceu, como nessa altura não havia no Porto o Curso de Letras na Universidade, que gostaria de ter tirado, foi estudar música mais a sério para o Conservatório de Música (sempre tinha estudado música com os tios, em casa). Fez o Curso Superior de Piano, o de Violino e o de Composição e dava aulas de música enquanto estava a estudar e também depois de acabar o Conservatório. Nessa época não havia muitas escolas de música, mas havia muitas meninas que queriam aprender a tocar, sobretudo piano, e as aulas eram em casa das alunas. Andava de elétrico, sempre muito bonita e elegante, com vestidos (e chapéus) feitos pela tia e por ela, eram muito vaidosas! Por vezes iam passar o verão às termas das Caldas de S. Jorge. O tio Gil aproveitava para trabalhar na sua arte, a música, e os bailes que então se faziam no Hotel das Termas eram ao som do piano do tio Gil (que aí, não se enganava no hino). Em Nogueira da Regedoura, perto de S. Jorge, vivia um senhor viúvo, o Dr. António Ferreira Soares (vosso trisavô), que tinha quatro filhos (o mais novo era o Fernando) e gostava de passar o verão nas termas.


Num desses verões a Maria Raquel e o Fernando (um ano mais velho que ela) conheceram-se… e ficaram presos um ao outro! Mas nesse tempo as coisas aconteciam devagar e o namoro era à distância (e não havia telemóvel!). Houve inclusive um grande pausa - a vida dá muitas voltas e a do bisavô Fernando virou-se do avesso nessa época: um dos irmãos (médico, o Armando) morreu de doença e o outro irmão (também médico e dirigente comunista, o António Carlos) foi morto pela PIDE (nesse tempo chamava-se PVDE e era a polícia política do ditador Salazar, de que já ouviram falar pelas piores razões). Quando o Fernando conseguiu vir a si, com a ajuda da sua irmã Inês, foi procurar a Maria Raquel, com medo que ela não tivesse esperado por ele. Mas teve sorte, tiveram ambos muita sorte (ou sabedoria…) e reencontraram-se, para bem de nós todos. Pois é, no dia de Santo António do ano de 1945 (tinha acabado de acabar a Segunda Guerra Mundial) começou uma nova etapa da vida da Maria Raquel e do Fernando. A partir daí já mais nada os separou e casaram em 20 de Outubro desse ano. Ainda não tinham filhos deles, mas “herdaram” os filhos do António Carlos e da Rosa, o Jorge e a Nanda, esses mesmos de quem vocês gostam tanto! E como eles estavam na idade de estudar e em Nogueira só havia escola primária, foram viver para Espinho, onde havia Colégios, um para Meninas e outro

Maria Raquel ao piano, por volta dos 18 anos.

para Meninos (nesse tempo ainda não havia escolas mistas, meninas e meninos tinham de andar em escolas separadas, era esquisito!). Os tios da Maria Raquel (a tia Amélia e o tio Gil) que já estavam na idade de receber cuidados, mas ainda de dar muito apoio e carinho, também foram viver com eles para Espinho. Era uma casa grande, tipo palacete, cor-derosa muito bonita (que já não existe). Em Setembro de 1946 nasceu o António Gil (o avô Gil para os netos). Mais tarde, em Janeiro de 1949 nasci eu (a avó Rosa Amélia para as netas) e em Julho de 1953 nasceu o José Carlos (o Zé para todos e avô Zé para o Vasco). Tivemos uma infância muito feliz (o Zé esteve muito doente em bebé mas fomos poupados, o António Gil e eu, ao sofrimento dos pais). Tínhamos dois primos mais velhos (agora somos todos da mesma idade) que eram e são como irmãos. Durante os anos em que viveram em Espinho, o bisavô Fernando, que era advogado, ia todos os dias trabalhar para a Vila da Feira (agora Santa Maria da Feira) de comboio, o comboio a que se chamava “vouguinha”, porque o trajeto que fazia era pelo vale do rio Vouga. O Tribunal era na Vila da Feira e era lá que tinha o seu escritório. Era um advogado muito inteligente, muito bom, sério e respeitado e tinha muito sentido de humor. A bisavó Raquel dava aulas de piano em Espinho, no Colégio das meninas. Lembro-me de ouvir Chopin, lá em casa e no Colégio (onde cheguei a andar com 5-6 anos). Em Agosto, nas férias, vinham a Milita e a mãe, a tia Maria Adélia, para poderem fazer praia connosco. Viviam em Vila Real de Trás-os-Montes, onde o tio Antero (irmão da bisavó) tinha uma loja de roupas e tecidos e não costumava tirar férias. Às vezes chegavam prendas da América, da tia Erna (viúva do “tio” Armando, irmão do bisavô Fernando). Costumavam ser livros de histórias, puzzles, jogos, brinquedos, e eram em inglês – alguns estão no armário da saleta em Nogueira, e vocês conhecem-nos bem. Entretanto o Jorge e a Nanda cresceram (nós também), acabaram o liceu e foram trabalhar e estudar para o Porto. O Jorge foi para a tropa.

119


120

Nessa época veio morar para a Vila da Feira uma senhora (D. Gilberta) que também tinha estudado música (em Lisboa) e queria fundar uma Academia de Música. Para isso convidou alguns professores (de piano, violino, violoncelo e canto) e a professora de piano convidada foi a Maria Raquel. Assim a vossa bisavó passou a fazer a viagem para a Feira no “vouguinha”, com o bisavô, para dar aulas na Academia. A Academia de Música da Vila da Feira foi apoiada pela Fundação Gulbenkian, o que permitiu que também lá pudessem estudar raparigas e rapazes que eram filhos de pessoas que não tinham dinheiro para pagar esses estudos. Eram bolseiros, e alguns Maria Raquel, no violino, por volta dos 18 anos. tornaram-se ótimos músicos! Nessa época o estado português não gastava dinheiro comboio nem de deixar os filhos o dia inteiro, mas houve com a cultura, não era como agora … (ooops, agora também hábitos que perderam, em particular a Maria Raquel. Já não não gasta…) podia ir passear com a família na Avenida (onde se passeava Mas não foi só a Academia de Música que nasceu na Vila em Espinho), nem ir tomar café com o marido na esplanada da Feira. Na mesma altura nasceu o Colégio (Externato de (na Feira desse tempo as senhoras não iam ao café, nem Santa Maria), cujos diretores haviam de se tornar amigos dos havia esplanadas), nem ir ao cinema na Feira, porque não bisavós e os seus filhos, nossos amigos. Nesse tempo ainda havia. não havia escola pública em todo o lado, só nas grandes Mas depressa se devem ter habituado à terra, de que cidades é que havia liceus e só quem tinha dinheiro é que passaram a gostar muito. E nós também, ganhámos novos podia estudar… amigos. O Colégio era misto (para rapazes e raparigas) e passou A vossa bisavó dava muitas aulas na Academia (Piano, a ser possível estudar na Vila da Feira, não só música, mas História da Música e Acústica), mas parecia que nunca estava todas as disciplinas até ao 5º ano do liceu (correspondente ao cansada. Em casa tinha sempre tempo para tudo, que era ensino básico) e mais tarde até ao 7º ano (ensino secundário). muito. Tinha tempo para nós todos e para ter a casa em No ano de 1955 morreu o avozinho, que já estava muito ordem. Cozinhava coisas muito boas, limpava, lavava louça. doente, e no ano seguinte fomos viver para a Vila da Feira, E à noite, em família, enquanto se ouvia rádio ou música no onde estava o trabalho dos nossos pais e agora a escola para gira-discos e se conversava, lia ou estudava (não havia ainda nós. televisão, dá para acreditar?), também tricotava camisolas Não deve ter sido fácil para os vossos bisavós esta para nós ou fazia crochet (são exemplo disso os paninhos, mudança para a Feira. É claro que ficavam mais perto do toalhas, cobertas e cortinas que vocês conhecem na casa de seu trabalho e já não precisavam de viajar todos os dias de Nogueira).


“E vocês não ajudavam?” (estarão agora a pensar). De facto nem pensávamos muito nisso em pequenos (depois já não era bem assim), mas o nosso pai era quem punha a mesa, com toda a perfeição e simetria! [Nesse tempo era costume pensar-se que as mulheres é que tinham a responsabilidade da casa. Agora já não é assim, mulheres e homens partilham a responsabilidade e o trabalho, em casa e lá fora. E se ainda não é assim, está mal!] No inverno, em Janeiro, recebíamos alheiras dos tios de Vila Real e na Páscoa não faltava a bola de carne dos tios de Moncorvo. Que coisas tão boas! Durante esses anos tínhamos connosco ainda a avozinha e havia habitualmente a ajuda de uma empregada. Mas não havia máquina da roupa nem da louça. O eletrodoméstico mais moderno que havia era o aspirador. A água quente para os banhos (que ainda não eram diários) ou para a louça, aquecia-se em panelas no fogão, a gás. Mas havia máquina de costura (não era elétrica, claro!) e ia lá a casa uma vez por semana uma senhora (a Senhora Isaura) que era costureira e tratava das roupas (fazia novo ou reciclava). Nesse tempo compravam-se tecidos e faziam-se ou mandavam-se fazer as roupas, de vestir e da casa - não havia onde comprar feito… Mais tarde veio a televisão (a preto e branco) e o esquentador a gás. Que luxo, poder tomar banho todos os dias! Ao fim de semana vinha muitas vezes a madrinha Inês e era uma festa. Trazia uma regueifa chamada Roca e umas “cavaquinhas” mas o mais importante era que estava sempre disponível para se assustar com as nossas partidas, se rir das nossas piadas e se interessar por todas as nossas novidades. A Nanda também vinha às vezes, era muito bom! Casou mais tarde que o Jorge por isso foi só nossa durante mais tempo, ficámos um bocado mimados… Há uma pessoa que era muito importante para nós todos e era amiga lá de casa – a Maria Luísa (Sdona Maria Luísa, como lhe chamávamos). Era nossa professora no colégio (de Português e Francês) e ficou muito amiga dos bisavós e de nós, e nós dela. Ia muitas vezes lá a casa e ao entrar, ao fundo das escadas, perguntava “Sdona Raquel, dá-me uma sopinha?” Ficávamos todos contentes, era sinal de que ficava para jantar! Estava sempre atualizada, sobre cultura e não só. Foi ela que deu a conhecer aos bisavós e a nós alguns grande nomes

da cultura francesa da época, como a Edith Piaf, o Charles Aznavour ou o Jacques Brel. E o pimeiro disco do Zeca Afonso que ouvimos, foi ela que o levou. Havia outra visita da casa dos bisavós que era muito divertida a contar peripécias da vida: a minha madrinha, a Dona Celeste. Ela e o marido (e meu padrinho), o Dr. Alcides Strecht Monteiro, eram amigos dos bisavós e os dois amigos eram também colegas de profissão e ambos politicamente de esquerda (embora não exatamente a mesma). O seu filho mais velho (o Manuel Afonso) era afilhado dos bisavós. Ele e os irmãos eram nossos amigos e brincávamos também na casa deles.

121

Maria Raquel (por volta dos 20 anos) e a sua tia Amélia, numa rua do Porto.


122

Nas férias íamos sempre para Nogueira, com os gatos, as galinhas, o canário e, claro, as bicicletas. Na mala do carro, com a tampa aberta, cabiam dois meios mundos (graças à habilidade do Zé)! O bisavô fazia várias “carradas” para conseguir levar tudo. Nesse tempo as férias grandes eram em Agosto e Setembro, as aulas começavam a 7 de Outubro. E havia sempre lugar para os amigos e para os primos. Vinham às vezes passar uns tempinhos connosco os primos de Vila Real - a Adélia Maria e o Carlos Antero, filhos do primo Alfredo e da prima Maria do Carmo. Nem vos digo o que em pequenos fazíamos em Nogueira! Os bisavós não nos deixavam fazer coisas perigosas, isso não, mas quanto ao resto acho que faziam de conta que não viam, até corridas de bicicleta se faziam atravessando por dentro de casa - mas nessa altura a casa estava bastante estragada, não era como agora, portanto nem pensem! Uns anos mais tarde, com a mesma perfeição e simetria com que punha a mesa (por exemplo) o bisavô arquitetou as obras na casa que a tornaram mais confortável. Quando o Zé tinha 9 anos nasceu a Paula Maria, filha do Jorge e da Maria Camila. Era afilhada dos bisavós e foi o primeiro bebé com quem lidámos. Linda e bem disposta, foi crescendo e tornou-se uma companheirona de brincadeiras, em Nogueira. Dava os seus espetáculos familiares imitando as estrelas da televisão (foi a primeira da família a nascer já na era televisiva). O Jorge treinava o Zé, seu afilhado, para ser o melhor ciclista da volta a Espinho, e continuava a brincar connosco às escondidas, no quintal. Aliás o Jorge nunca deixou de ser um rapaz, tenha ele a idade que tiver! Quando o António Gil fez 15 anos o nosso quotidiano de tempo de aulas mudou. Ele teve de ir estudar para o Porto (era longe, não havia autoestradas e foi para casa de pessoas que não conhecia). Vinha a casa ao fim de semana (na camioneta da Feirense) mas foi muito duro para todos, em particular para ele e para os pais, mas também para mim e para o Zé íamos todos visitá-lo à quarta-feira e vínhamos de lá cheios de saudades! Por essa época a avozinha começou a adoecer, a sua cabeça já não funcionava bem (suponho que hoje se diria que tinha Alzheimer) e deixou de nos conhecer. Acabou por morrer em 1964. Foi difícil para todos, mas para a vossa bisavó foi muito mais!

Passados uns anos fui eu estudar para o Porto, mas já tinha 17 anos (felizmente o Colégio nessa altura já tinha todo o ensino secundário) e não fui para tão longe assim, pude ficar em casa da madrinha Inês, onde o António Gil também já estava. E a seguir foi o Zé, também para casa da madrinha Inês. Nesse mesmo ano o António Gil foi para Coimbra. [O nosso país estava cada vez pior. Então, para além da pobreza de grande parte da população, da falta de liberdade para se dizer ou escrever o que se pensava, para ler o livro ou o jornal que se quisesse, ver e ouvir o filme ou a peça de teatro ou a música que se quisesse, reunir e conversar com quem se quisesse, namorar como e com quem se quisesse, além desse sufoco, também estávamos em guerra com Angola, Moçambique e Guiné, países que agora são independentes mas que nessa altura eram colónias de Portugal. A ditadura do Salazar (e depois do Marcelo Caetano) não deixava que se tornassem independentes e mandavam para lá os rapazes em idade de ir para a tropa para combater contra as pessoas de lá que lutavam pela independência. E combater era matar (ou ser morto). Muitos fugiram para França (em Espanha também havia uma ditadura parecida) e também isso era difícil, havia guardas na fronteira, tinha de ser “a salto” (tentando não ser apanhado).] Pois é, nas universidades também havia já muito malestar, lutava-se contra a guerra colonial e por um ensino para todos. O ano de 1969 em Coimbra foi um ano de grandes lutas, em que o António Gil participou ativamente, e que ficaram para a história com o nome de “crise académica de 69”. Foi em Coimbra que ele conheceu a Tonicha (a avó Antónia para os netos) Haviam de casar uns anitos mais tarde. A Tonicha havia de se tornar de forma natural mais uma filha para os vossos bisavós, entenderam-se muito bem! É claro que no ano seguinte à crise de 69 grande parte dos rapazes que participaram na luta estudantil foram chamados para a tropa. Ficámos cheios de medo do que pudesse acontecer… Felizmente (há males que vêm por bem) o António Gil tinha asma e ficou livre de ir para a guerra, ficou na tropa cá em Portugal. Eram quatro anos de tropa. Entretanto aconteceram muitas outras coisas: a Nanda casou com o Joaquim António, de quem aprendemos a gostar, e muito. Passados uns anitos nasce a Maria Natália (a minha afilhada). Ela e o António Carlos, irmão da Paula Maria, eram


praticamente da mesma idade e no verão, em Nogueira, ficaram célebres as corridas que os dois faziam, em que o António Carlos ganhava sistematicamente e a Maria Natália, quando calmamente chegava ao fim dizia, feliz: “Ganhei!”. Esta sua feliz tranquilidade tem-se mantido e faz dela a boa companheira que vocês tão bem conhecem. Dois anos mais tarde nascia o seu irmão Fernando António e, daí a três anos, a irmã Inês Maria. Entretanto a Milita casou com o Manel, que entrou para a família como se sempre lá tivesse estado, com a sua simpatia, entusiasmo pela vida e cumplicidade com as “engenhocas” que o bisavô inventava para a casa de Nogueira. Mais tarde tiveram a Patrícia, o Pedro e a Raquel, afilhada da bisavó Raquel. Também houve alguns sustos provocados por problemas de saúde. A bisavó Raquel, que costumava estar sempre bem, “resolveu” adoecer gravemente. Teve que ser internada de urgência num hospital do Porto, sempre com o apoio do médico e amigo da família, o Senhor Dr. Sousa, e durante alguns dias não reagia aos tratamentos e ficámos em suspenso. A bisavó contava mais tarde que foi o bisavô Fernando que lhe agarrou a mão e não a deixou morrer… Regressou a casa ainda fraca e acamada mesmo a tempo do Natal. Por sugestão do bisavô, pusemos os sapatinhos debaixo da sua cama e foi para todos a melhor prenda de Natal que se podia dar e receber! Eu conheci o Arsélio (o avô Arsélio para as netas) na Universidade, era do mesmo curso que eu e tinha vindo de Lisboa. Era diferente de toda a gente que eu conhecia, tipo “extra terrestre” e despertou-me a curiosidade. Fomo-nos conhecendo, conversando, discordando e concordando e quando demos conta já éramos um par. Os bisavós demoraram algum tempo a aceitá-lo (a madrinha Inês foi mais rápida), e ele não facilitou a tarefa. Mas acabaram por fazê-lo e não se arrependeram, uns e outros. Haviam de criar laços muito fortes! No fim do curso casámos e fomos para Vila Real dar aulas. Viviam lá os tios Antero (irmão da bisavó) e Maria Adélia, em casa de quem ficámos nos primeiros tempos, enquanto acabava de se construir o prédio de apartamentos para onde fomos viver durante um ano. Decidimos ter uma filha ou um filho, antes que ele fosse para a tropa. (Um irmão, o Amílcar, tinha morrido na guerra, em Angola). Em 1973 nasce a Catarina, a 7 de Setembro. Foi a primeira neta dos vossos bisavós!

123

Maria Raquel por volta dos 30 anos.

O Arsélio foi para a tropa em Outubro desse ano, mas felizmente não teve de ir para África, ficou sempre cá, como o António Gil. Durante o tempo de tropa, que havia de ser de dois anos e não quatro (por causa do 25 de Abril) voltei a viver em casa dos bisavós, agora com a minha filha bebé. Tínhamos todo o apoio do mundo, o Zé também por lá andava e o António Gil aparecia por vezes ao fim de semana. Todos adoravam a Catarina. Eu dava aulas em Espinho. E foi nesse ano de 1974, no dia 25 de Abril, que se deu a revolução! Tudo começou a mudar muito depressa, para cada vez melhor. Foi um tempo de festa mas também de grandes discussões e exaltações, porque toda a gente sentia que era importante aquilo que pensava, dizia ou fazia. E era mesmo, tudo podia ser decisivo, estava-se a inventar a história!


Na família, a começar pelo o bisavô, que esperava há tanto tempo por este tempo, foi uma grande alegria e um enorme peso que saiu dos ombros. Dele e da bisavó – o Zé já não teria de ir para a tropa! A vida lá em casa (e em todo o lado) ficou mais agitada. Todos tínhamos reuniões, comícios, estava tudo a fazer a revolução. Quem garantia a retaguarda? Nessa época, lá em casa, era a bisavó. Além das suas cada vez maiores responsabilidades profissionais na Academia (foi quem a aguentou quando outros abandonaram esse barco) não facilitava no que achava serem os seus deveres de boa dona de casa e, principalmente, na sua dedicação à neta. Era uma super mulher discreta e pequenina com quem todos contávamos. Mas o organismo prega-nos partidas e faz-nos

124

Numa audição da Academia, com alunos, por volta de 1956.

parar quando acha que é demais e foi o que aconteceu - teve um AVC. Aí, tudo parou de novo! Mas a bisavó não se conformou, foi à luta e conseguiu recuperar praticamente tudo o que o acidente tinha provocado. Nessa época treinava muito ao piano, para recuperar a agilidade dos dedos, ela que normalmente não gostava de tocar piano em casa (se calhar com medo de incomodar J) Passado algum tempo quem ficou doente foi o bisavô Fernando. O seu coração pregou-lhe (a ele e a nós) um susto enorme, mas felizmente conseguiu recuperar, com a ajuda dos médicos, claro! E deixou de fumar… Em 1976 o Arsélio acaba a tropa e vamos dar aulas para o Porto e viver em Gaia, perto da Nanda, partilhando um apartamento com um casal amigo/camarada - o Pete


e a Beló - que todos vocês conhecem bem. Foi duro para os bisavós, principalmente por causa da Catarina, que tinha dois anos e estavam habituados a ter todos os dias. Para ela também não deve ter sido fácil, mas em contrapartida ganhou uma irmãzinha, a Catarina do Pete e da Beló, uns meses mais nova. E conviviam bastante com a Inês Maria, da mesma idade, andavam as três na mesma escolinha. No ano seguinte, em Janeiro de 1977, nasce o João Pedro. Já se notavam no dia-a-dia as melhorias que o 25 de Abril trouxe. Quando nasceu a Catarina só tive direito a um mês de licença de maternidade e agora já eram três meses, um luxo! Às vezes o João ou a Catarina ficavam em casa da Nanda ou os filhos da Nanda vinham brincar para nossa casa, onde se podia mexer em tudo, como eles diziam.

Nós éramos definitivamente uma família nómada e no fim desse ano fomos os quatro para Santo Tirso (ia-se para onde houvesse trabalho). Mas entretanto o António Gil e a Tonicha também não tinham ficado parados e em Novembro de 1976 nascera a Susana. Os bisavós já tinham agora três netos. O Zé e a Lucília, por sua vez, tiveram o Álvaro em Julho de 1979 - e são quatro netos. Em 1982 nasceram os dois netos mais novos: a Luísa, em Abril, irmã da Susana e o Ricardo em Setembro, irmão do Álvaro - e estão os seis netos dos vossos bisavós. Agora já havia outra vez mais crianças para brincar em Nogueira, no verão. Os filhos do Jorge e os da Nanda ficavam em casa da sua avó Rosa, mas brincavam todos juntos, com os primos, em casa (e no quintal) dos bisavós e madrinha

125

Professores da Academia: da esquerda para a direita: Lúcia Moreira (canto coral), Fernando Jorge Azevedo (piano), Fernanda Salgado (canto), Maria Raquel (piano, história da música e acústica), Sr. Vigário, Gilberta (diretora, piano), Pereira de Sousa (violino), Deolinda (composição), Madília (ballet), Millet (violoncelo), por volta de 1965.


126

Casamento de Maria Raquel e Fernando. Meninos das alianças: Manuel Afonso e Milita. Damas de Honor: Marucas e Nanda. Padrinhos da noiva: Tia Amélia e Tio Gil. Padrinhos do noivo: Sr. Fernandinho e Madrinha Inês.

Inês, onde também se faziam uns bons lanches, de que todos se lembram. Achavam a bisavó Raquel muito doce (como haviam de dizer mais tarde)! O António Gil era o preparador físico da rapaziada, filhas e sobrinhos. Bicicleta, natação, corrida, salto, eram autênticas olimpíadas! (Ainda é, agora, dos netos e sobrinhos netos que estejam pelos ajustes…)

E a família continuou, e passados uns anitos nascia o Álvaro da Paula Maria e a Catarina do António Carlos. Bastante mais tarde haviam de nascer os mais novinhos do António Carlos, O Diogo e a Mafalda, que também brincam agora convosco em Nogueira. O Zé e a Lucília nos primeiros tempos de casados ainda experimentaram viver em Nogueira, no “casarinho” que ficava


127

Os noivos Maria Raquel e Fernando.


128

ao lado do “casarão”, também para poderem dar apoio aos bisavós e madrinha Inês que estavam a pensar reformar-se e ir morar para Nogueira. Mas a experiência não foi boa (o inverno foi duro) e decidiram ir morar para Espinho, que era a terra da Lucília e bem mais agradável para morar, sobretudo no inverno. E afinal a reforma dos bisavós e madrinha Inês ainda vinha longe. (E o Zé, mais perto ou mais longe, sempre foi o braço direito dos bisavós e de nós todos, a bem dizer!) Mas é no espaço onde assentava o “casarinho” que vocês andam de patins, jogam à macaca e pintam com giz de cor. Em 1979, eu e os meus, nómadas que éramos, fomos para S. Tomé e Príncipe, agora independente, dar aulas (os mais velhos) ou recebê-las (os mais novos). E nos dois anos seguintes fomos para Cabo Verde. Foi por lá que a Catarina fez, e muito bem feitos, os seus três primeiros anos de escolaridade (ainda hoje sabe o Hino de S. Tomé) e o João, no jardim-de-infância, aprendeu a lidar com meninos e meninas de hábitos e penteados diferentes. Foi muito bom! Mas se a nós nos custou a separação da família, aos bisavós deve ter custado muito mais. E nessa altura só havia cartas e telefone (fixo). Claro que no verão vínhamos para cá e matávamos saudades, tanto da família Ferreira Soares como da família Martins. E os anos letivos começavam cá, havia sempre atrasos da cooperação. Em 1982 estabilizámos em Aveiro. O António Gil e Tonicha viviam em Coimbra e o Zé e a Lucília em Espinho. Em 1983 a Luísa, pequenina, teve um problema grave de saúde que abalou durante algum tempo (felizmente curto, depois de passar) a família toda, a começar pelos pais e avós. Esteve internada no Hospital Pediátrico de Coimbra, onde felizmente o problema foi resolvido. Em 1985 o bisavô reformou-se e os três (bisavós e madrinha Inês) decidiram ir viver para Nogueira. Infelizmente foi muito pouco o tempo de reforma que aproveitaram juntos. A madrinha Inês morreu em Novembro de 1986, com 80 anos, e dois meses mais tarde, morreu o bisavô, com 76 anos. De repente a bisavó Raquel ficou sozinha e incompleta, sem o seu companheiro de sempre, era como se já não conseguisse pensar ou sentir completamente. Teve de reaprender a ser só ela, e a encontrar forças que não sabia que tinha. Decidiu não deixar de dar aulas na Academia. Quando lhe fugiu o chão debaixo dos pés, agarrou-se ao seu trabalho,

à sua função social de professora de música - foi uma boa decisão! Mais tarde havia de dizer que já não se sentia sozinha, estava sempre lá (no seu coração, na sua casa) o marido e também a Inesinha. E os filhos (e netos) e sobrinhos apareciam sempre por lá. Em 1994 ficou feliz pelo casamento da Catarina ser na casa de Nogueira. Dedicou-se com entusiasmo à tarefa de organizar a festa, e era preciso proibi-la de fazer tanto como gostaria, tinha já 82 anos. Só muito mais tarde, no terrível inverno de 2001, deixou de ter forças para viver sozinha e aceitou ir viver para nossa casa, em Aveiro. Sentiu-se bem lá em casa, com o carinho discreto do Arsélio e as suas brincadeiras, que a faziam rir. Foi até ao fim uma pessoa doce, inteligente, exigente e boa! Na educação dos netos também foi interveniente, não pensava que isso era só da responsabilidade dos filhos. Se achava que alguma coisa não estava bem, intervinha. Falava com os netos ou com os seus pais, nunca se demitiu, é um exemplo para todos nós. E se gostava dos netos! E dos sobrinhos netos! De todos, com as suas diferenças e as suas semelhanças. E eles retribuíram, cada um da sua forma. Ainda conheceu, além do Pedro da Catarina, a Cláudia do João e o João da Susana. De bisnetos, chegou a conhecer o André, bebé. A Raquel, só a conheceu ainda na barriga da sua mãe. A bisneta havia de nascer 13 dias depois de a bisavó nos ter deixado, quase com 90 anos. Mas deixou-nos recado que vos adora, a todos! Teve uma vida cheia, amou-nos incondicionalmente e nós vamos fazendo por merecê-la, até hoje! E é porque os que já morreram passam a fazer parte de nós, que precisamos cada vez mais uns dos outros, e os nossos encontros em Nogueira, ou em Forjães (em casa da Nanda e do Joaquim António), ou na Torreira (em casa da Milita e do Manel) são tão necessários e reconfortantes!

Beijos da Rosa Amélia Dezembro de 2012


CARTA INÉDITA DO PADRE ANTÓNIO VIEIRA

Carlos Maduro*

Carta inédita do Padre António Vieira ao Geral dos Jesuítas em que lhe agradece a nomeação para o cargo de Visitador, transcrição e versão do latim. A carta que agora se divulga, no momento em que se inicia a publicação da Obra Completa do Padre António Vieira, pelo Círculo de Leitores, pretende ser uma forma de agradecer o entusiasmo e apoio com que o Senhor Dr. Celestino Portela tem acompanhado este projeto e tem colocado à minha disposição a Revista Villa da Feira, para que seja divulgado. Destina-se também a agradecer ao Senhor Dr. Fernando Sampaio Maia a gentileza em ceder o espaço da Castelo da Feira, para que a equipa de coordenadores do Projeto Vieira se reunisse, naquele que foi o encontro decisivo para que fossem traçadas as linhas mestras desta publicação, que tem vindo a ser referenciada pelos meios de comunicação social como um dos maiores projetos editoriais realizados no nosso país. Tratando-se duma carta originalmente escrita em latim, e num tempo em que, pelos mais diferentes motivos e razões, esta língua corre sérios riscos de entrar definitivamente no * Professor da Escola E.B. 2/3 Professor Doutor Carlos Alberto Ferreira de Almeida

esquecimento, publica-se a versão original, acompanhada da tradução do Prof. Doutor José Carlos Miranda. Nesta, como em outras traduções que fazem parte da edição completa, a fidelidade ao estilo de Vieira é notável e atrevemo-nos a dizer que leitor em momento algum será defraudado quando deparar com textos traduzidos.

1. Utopia sem Miopia

Vieira continua a surpreender em toda a extensão da obra que legou à posteridade. Uma obra tão vasta quanto a idiossincrasia de uma personalidade que ocupa um espaço sem limites e sempre aberto a múltiplas leituras. De Vieira nunca está nem estará tudo dito, seja a partir dos textos recorrentes ou, muito particularmente, quando se encontram fontes ainda inéditas. Decorridos séculos desde a morte do Jesuíta, importa refletir até onde chegou a nossa miopia no reconhecimento do corpus textual vieirino. Excluindo a obra parenética, que vai aguardando pela conclusão da primeira edição crítica, apresenta-se uma obra profética ainda incompleta, uma obra vária muito dispersa e com textos ainda duvidosos; um conjunto epistolar em permanente evolução, que permaneceu estagnado ao longo de décadas, praticamente desde que, em 1928, João Lúcio de Azevedo concluiu a publicação das Cartas em três volumes, reunindo um espólio de cerca de 710 exemplares. Prova desta estagnação, é a recente reimpressão

129


130

pela Imprensa Nacional da Casa da Moeda deste conjunto, que continua uma ferramenta de trabalho incontornável. Nos tempos que correm, já não se trata de utopia, faltou efetivamente um trabalho de campo, muito menos árduo do que percorrer as florestas da Amazónia a resgatar e a converter os Índios. Vieira merecia que se percorressem exaustivamente as principais bibliotecas nacionais e inclusive estrangeiras, sem ignorar lugares menos conhecidos, como é o caso da Casa de Cadaval em Muge. Depois do conjunto reunido por Lúcio de Azevedo, o espólio descoberto reduz-se a Quatro cartas inéditas (1947) de C.R. Boxer; sete cartas publicadas por Serafim Leite em Novas Cartas Jesuíticas (1940); Quatro cartas inéditas dirigidas a Cosme III de Médicis (1962), por Aníbal Pinto de Castro, no Archivio di Stato de Florença. A carta que vai agora ser publicada pela primeira vez, na versão latina original e na respetiva tradução, não surge por um acaso, é antes o resultado de um trabalho sistemático de recolha dos manuscritos autógrafos e apógrafos de Vieira, que tem vindo a dar frutos assinaláveis nos últimos tempos. Neste caso concreto, tratou-se dum conjunto particularmente importante de treze cartas que se encontra no Arquivo Romano da Companhia de Jesus. Estas cartas não seriam propriamente do desconhecimento de eminentes historiadores da Companhia de Jesus, nomeadamente Serafim Leite, tendo em conta que publicaram outros textos constantes deste arquivo e desta cota. Alguns impedimentos de vária ordem estarão na origem da indisponibilidade para as verter para Português. A primeira carta foi enviada a 22 de julho de 1688 e a segunda a 14 de Julho de 1691, ambas ao Prepósito Geral da Companhia de Jesus em Roma, a quem tratavam por Padre Geral, que era, a estas datas, o espanhol Tirso González. O espaço de tempo que intermeia este conjunto de cartas faz com que sejam abordados assuntos muito diferentes, e verdadeiramente surpreendentes para a imagem que se foi construindo ao longo do tempo sobre Vieira. Ao escolher-se esta missiva, na qual o Jesuíta agradece a nomeação para o cargo de Visitador da Província do Maranhão, deixa-se um espaço aberto para a curiosidade que levanta em relação aos textos que se lhe sucedem, onde abordará assuntos tão variados como a organização das missões, a forma de tratar com os Índios, mas também com os conflitos havidos no interior da Companhia de Jesus, nomeadamente no relacionamento difícil que veio a manter com os missionários da companhia estrangeiros, nomeadamente os padres italianos.

Este é um momento em que se jogaram dois pratos de uma mesma balança, por um lado uma utopia, que é praticamente um lugar comum quando se fala do Jesuíta, centrada no Índio, numa terra sem males, um jardim das delícias, de certa forma uma imagem antecipada do futuro Quinto Império do Mundo definitivamente pacificado; do outro lado, uma carta sem miopias, do religioso embrenhado do mundano e envolvido no jogo de poderes. A carta que se transcreve pretende despertar a curiosidade para o conjunto epistolar que brevemente será publicado pelo Círculo de Leitores, inseridas no volume IV do I Tomo da Obra Completa do Padre António Vieira.

2. Índios, Colonos e Padres da Companhia

A carta de agradecimento ao Padre Geral corresponde assim à última fase da correspondência de Vieira. A caminho dos setenta e quatro anos, cansado, mas também entristecido pela indiferença que sentia na corte, particularmente da parte do monarca, D. Pedro II, decide regressar ao Brasil, poderse-ia dizer à segunda terra natal, a cidade de S. Salvador da Baía. Apesar da idade avançada e de ter sido seu propósito terminar os dias junto dos seus e num clima que lhe era mais favorável aos achaques de que se queixou ao longo de toda a correspondência, tal como refere no texto que se transcreve, não se pode dizer que o período que vai de maio de 1682 até julho de 1697 tenha sido passado na tranquilidade e na paz de espírito ambicionadas. Logo após a chegada ao Brasil, foi com mágoa e indignação que se queixou aos amigos e seus correspondentes pelo auto-de-fé, simulado pelos estudantes de Coimbra, onde queimaram uma figura que supostamente o representava1. No ano seguinte, desavenças entre o seu irmão Bernardo Ravasco e o governador António de Sousa Meneses, por suposta implicação no homicídio do alcaide-mor da Baía, obrigamno mais uma vez a mover todas as influências que tinha em Lisboa no sentido de ser ilibada toda a família Ravasco da suspeita de principais inspiradores deste crime, incluindo o

1

Referia ao marquês de Gouveia em 23 de maio de 1682: “Não merecia António Vieira aos Portugueses, depois de ter padecido tanto por amor da sua pátria e arriscado tantas vezes a vida por ela, que lhe antecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honradas exéquias”. António Vieira, Cartas, Lisboa Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1970, v. III, p. 465.


próprio António Vieira2. O caso, com todos os procedimentos judiciais, arrastou-se ao longo dos anos, de tal forma que só deixou de o referir na correspondência enviada na frota de maio de 1687, ano em que o caso se deu por concluído por falta de provas. Quando parecia que estavam reunidas as condições para a paz de espírito tão ambicionada e o justo descanso no local que ficou conhecido por Quinta do Tanque, no ano a seguir, em 1688, recebe de Roma, da parte do Padre Geral Tirso González, a nomeação por três anos de Visitador da província brasílica, facto que o obrigava a regressar ao Colégio da Baía. Competia então ao padre Visitador fazer um acompanhamento periódico, inclusive verificar in loco3 todo o processo de funcionamento das diversas estruturas da Companhia, colégios, escolas, residências e, no caso do Brasil, aquilo que se poderia chamar a joia da coroa, que eram as missões junto dos índios. O padre visitador, mais do que uma espécie de inspetor, tinha sobre si a difícil tarefa de procurar as melhores soluções e elaborar diretrizes para serem aplicadas por todos os membros, de modo a que pudessem agir como um corpo unido internamente, como sempre fora apanágio da Companhia de Jesus. O cargo não era fácil. O nomeado revelava qualidades mais do que suficientes para o desempenhar, mas a idade, a grandeza do território e personalidade do Jesuíta reuniam todos os ingredientes para um novo episódio da sua vida que se tem vindo a manter relativamente oculto. A tal ponto que, refere Lúcio de Azevedo:

Efetivamente isto é o que parece transparecer da correspondência enviada para Lisboa, destinada aos seus amigos, alguns deles com quem manteve correspondência ao longo de décadas. Mas dos assuntos internos da Companhia Vieira não os tratava com estes interlocutores. E a Lúcio de Azevedo escaparam a maioria das cartas deste período enviadas ao Geral da Companhia e a outros superiores, quinze cartas no total que necessitam de ser estudadas em profundidade no sentido de entender melhor esta fase da biografia de Vieira. Apesar da idade avançada, facilmente se pode admitir que tenha assumido este cargo como uma forma de retomar um antigo zelo como o foi o das missões. O trabalho ficara de certa forma incompleto, quando, 27 anos antes, fora forçado a abandonar o Maranhão. Decorridos estes anos, tudo parece continuar na mesma, a vastidão da obra, a falta de meios, as mesmas ambições e a mesma indiferença pela dignidade humana. André de Barros, numa linguagem apologética, mas nem por isso menos esclarecedora, não deixa escapar a oportunidade de o dizer: Obrigado pois da obediência, saiu do seu doce retiro, e veio para o colégio, segundo o que entendemos no mês de maio de 1688. Tomado ali o governo daquela província, o primeiro emprego que lhe levou o cuidado foi o das missões e propagação da fé. Nunca se apagou este fogo naquele apostólico coração, centro do zelo e da caridade. A Providência Divina lhe meteu agora nas mãos o poder acudir outra vez às suas amadas missões do Maranhão, antigo amor e teatro de suas heroicas façanhas5

Em 15 de maio de 1688 recebeu do geral a nomeação de visitador, que lhe entregava a direção da província brasílica, exercendo o cargo por três anos. Salvo um conflito de jurisdição nesse período com o bispo de Pernambuco, e outro mais tarde, quando não exercia a prelatura, com o provincial, decorreu-lhe em serenidade o restante da vida4.

2

André de Barros é claro nesta acusação: “Começou a afirmar e publicar com exorbitante excesso, que na noite antecedente se resolvera no colégio a dita morte; que um dos consultores fora o padre Vieira com outros padres […] Ainda faltava este crime ao grande António Vieira.” André de Barros, Vida do padre António Vieira, Lisboa, J.M.C. Seabra & T.Q. Antunes, 1958, p. 274.

3

Vieira, atendendo à idade avançada, ficou dispensado desta obrigação permanecendo no colégio da Baía.

4

António Vieira, op. cit, v. III, pp. 461-462.

5

André de Barros, op. cit, p. 285.

131


132


Admodum Reverende in Christo Pater

Ao Padre Geral 6

Pater Generalis

Muito Reverendo Padre em Cristo

Pax Christi

Pax Christi

Octogenario maior, frequenti erysipelate, aliisque morbis tentatus, atque in suburbano recessu meo delitescens, accepi patentes litteras, quibus a Paternitate Vestra Provinciae hujus Brasilicae Visitator constituebar, longe alia cogitans; et si unquam alias, certe hoc potissimum tempore, animo ab his occupationibus prorsus alieno; dum ad sepulchri ostium excubare potius deberem, quam aliorum curam periculorum plenam suscipere. Non is ego sum, qui non optime videam quantum humanissimae erga me Paternitatis Vestrae voluntati hoc titulo debeam, quod mihi tam ample vices suas commiserit, facta insuper pleniori quam vulgo soleat, ad hoc munus melius obeundum, potestate, additisque litteris officio plenis, paternam solicitudinem et communis boni zelum spirantibus. Sed nec dissimulare possum, non leves mihi fuisse causas, a tanto onere fugiendi, quas iterum , iterumque Patri Provinciali expendendas proposui; quibusque diu versatis, recurrere omnino non destitissem nisi a Paternitate Vestra commissas exsequi partes, postposita quacumque excusatione, compellerer. Pareo igitur, et dicto audio; hasque meae erga Paternitatem Vestram observantiae praebeo indices novos, annis, morbisque reclamantibus: gaudeoque tot inter renunciatos Provinciarum Visitatores ad minuendum quadamtenus Paternitatis Vestrae laborem, me etiam ingravescente in dies aetate eidem posse aliqua ratione famulari. Ut igitur quae separata epistola praecipiebantur data 24 Januarri 1688, executioni mandarem; curavi ut statim renuntiaretur Provincialis Pater Didacus Machado et Rector Collegii Bahiensis Pater Christophorus Colaço; Provinciali idem interim datus est socius, qui fuerat Praedecessoris, Pater Mathaeus de Moura; Mihi vero Patrem Johannem Antonium Andreonum adlegi; eosdemque, adito Patre 6

Passando já dos oitenta, quando insistente erisipela e outros males me assaltam, esquecido no meu retiro rústico, vim a receber a carta oficial em que era por Vossa Paternidade nomeado Visitador desta Província do Brasil. Longe estava de o esperar. E, se alguma vez o não estivesse, não decerto agora, de ânimo inteiramente arredado de tais ocupações, quando mais propriamente devera deitar-me de guarda à boca da sepultura, do que tomar em mãos cuidados alheios e cheios de perigos. Não que seja incapaz de ver o quanto eu deva em este título - que tão amplamente me conferiu faculdades para agir nas suas vezes – à humaníssima benevolência de Vossa Paternidade para comigo, mormente em sendome dadas, para melhor dar cumprimento a tal missão, faculdades mais plenas do que seria comum, e ajuntandose-lhes uma carta que respira os desvelos de um pai e o seu zelo pelo bem comum. Mas nem por isso posso omitir que teria causas de peso para me esquivar a um tal fardo, as quais já mais de uma vez expus para devida ponderação ao Padre Provincial. Longamente as tenho meditado e de modo algum deixaria de lhes recorrer, não fora agora instado por Vossa Paternidade, descartada qualquer escusa da minha parte, a desempenhar as funções de que me incumbiu. Conformo-me pois, e obedeço, apresentando estas novas demonstrações da minha deferência para com Vossa Paternidade, protestem embora a idade e seus achaques. E mais folgo por, entre tantos e afamados Visitadores das Províncias, poder eu ainda, mesmo em sentindome de dia para dia envelhecer, servir de algum modo para minguar um pouco os trabalhos de Vossa Paternidade. Assim, pois, para dar cumprimento ao que se determinava em carta separada com data de 24 de Janeiro de 1688, cuidei por que logo se anunciasse por Provincial o Padre Diogo Machado e por Reitor do Colégio da Baía o Padre Cristóvão Colaço7; ao dito Provincial foi dado entretanto por Sócio aquele que já o fora do seu predecessor, o Padre Mateus de

Original em Latim do Arquivo Geral dos Jesuítas em Roma; publicada pela primeira vez segundo transcrição e versão portuguesa de José Carlos de Miranda. Introdução e anotação de Carlos Maduro.

7

Padre Reitor da Baía.

133


134

Alexandro de Gusmão, Provinciae consultores, meosque nominavi: De Vice Rectore Fluminis Januarii, nondum est actum, quia illuc non nisi certo tempore navigatur. Majorem interim, quam potero, in hac Visitatione adhibere curam non praetermittam, quae potissimuum circa missionum studium in omnibus excitandum, promovendumque, Paternitatis Vestrae spem non elludat; quamque jubentis mens, et meritissimi Societatis Jesu Praepositi zelus omnibus artibus eandem arguere conantis, jure reposcunt. Utque a Maranonii Missione incipiam, quam Serenissimus Rex Noster tanto favore prossequitur; placuit divinae bonitati, post habitam a me adhortationem in pervigilio Pentecostes, non paucorum corda sociorum ad hujusmodi vota inflammare; ex quibus septem electi sunt bonae spei juvenes, vel Brasilicam linguam collentes, vel aliis naturae donis instructi et in Religiosae disciplinae studio, munus suum magna cul laude exsequentes, Provinciaeque in praesenti bonorum penuria, non minus, quam aliis missionibus, necessarii; qui simul cum ejectis, Bahyae et in Pernambuco versantibus, eo post mensem redituris, quindecim sociorum summam explebunt; praeter eos, qui in Flumine Januario Philosopohiae student, ad eandem Missioem spectantes, in Maranonium suo tempore regressuros. Admissa tamen est proposita a Patre Stephano Gandolfo excusatio per epistolam Paternitatis Vestrae probata; et in ejus locum suffectus Pater Johannes Angelus Bonomi, Italus, nunc inter Indos agens, et missionem illam jamdiu instantissime flagitans, ex quo theologiam absolvit. Haec autem in summa egestate liberalitas eo consilio mihi visa est exercenda ut facilius Paternitatis Vestrae cor tangerem. Deumque adimplendam promissi fidem dicti sui fidejussorem haberem, quum manifeste affirmavit: Date; et dabitur vobis. Ut enim paucis multa complectar, rem conficiam, si dixero: nos modo ad extremam in quolibet gradu inopiam redactos; cui nisi aliqua ratione quamprimum Paternitas Vestra opitulari dignetur, timeo ne Provincia

Moura; para mim escolhi o Padre João António Andreoni8; e a todos estes, mais ao Padre Alexandre de Gusmão, nomeei consultores meus e da Província. Do Vice-Reitor do Rio de Janeiro, ainda se não tratou, por se não lá chegar senão ao cabo de certo tempo de navegação. Entretanto, não deixarei, em esta Visitação, de pôr o maior empenho em que, sobre tudo o mais, o amor das missões, que em todos se há de acender e promover, não desiluda a esperança de Vossa Paternidade; uma esperança que justamente reclamam quer a intenção de governo quer o zelo do meritíssimo Prepósito Geral da Companhia, que, por todos os meios, se esforça por demonstrá-la. A começar pela Missão do Maranhão, que o nosso Sereníssimo Rei tanto acalenta, aprouve à bondade divina, após uma exortação que preguei na vigília de Pentecostes, inflamar não poucos corações dos companheiros nesses santos desejos. De entre eles, se escolheram sete moços cheios de boas promessas, os quais, além de praticarem a língua brasílica se acham munidos de várias qualidades naturais e de grande amor à vida religiosa, e vêm cumprindo com geral louvor as suas funções. São muito necessários à Província na presente penúria de bens, mas não menos o são às outras Missões. Com os mais que foram rejeitados, residentes na Baía e em Pernambuco, e que aí regressarão ao fim de um mês, perfarão um total de quinze companheiros, fora os que pertencem à Missão mas estão a estudar Filosofia no Rio de Janeiro e a seu tempo hão de regressar ao Maranhão. Foi porém aceite a escusa apresentada pelo Padre Estêvão Gandolfo, aprovada por carta de Vossa Paternidade, tendo sido posto em seu lugar o Padre João Ângelo Bononi9, italiano, presentemente a trabalhar entre os índios e que já de há muito e instantemente, desde que fez a Teologia, tem pedido esta missão. Pareceu-me enfim dever agir com esta largueza, posto que em contexto de tão grande privação, com o fito de tocar o coração de Vossa Paternidade. A Deus teria aliás por garante de que há de ser cumprida a solene promessa daquele seu dito, em que claramente afiançou: “dai e ser-vos-á dado”. Para muito conseguir abraçar em poucas palavras, darei por

8

Pe. Giovanni Antonio Andreoni (1649-1716) estudou na Universidade de Perusa, antes de entrar na Companhia de Jesus, em Roma. Ensinou humanidades no colégio do Santo Sepulcro em Arezzo. Conheceu o Pe. António Vieira em Roma, sendo atraído pelo convite de trabalhar nas missões do Brasil. Seguiram para o continente americano em 1681 e passou a lecionar no Colégio da Baía, posteriormente assumindo o cargo de reitor do colégio e provincial. Foi enviado por Vieira como visitador de Pernambuco, tendo como uma das incumbências estabelecer relações amistosas com o bispo D. Matias Figueiredo e Melo, com o qual os jesuítas tinham desavenças. Andreoni passou a discordar das ideias de Vieira, sendo um dos apoiantes dos paulistas, no que dizia respeito à questão indígena. Passou a ser reitor do colégio da Baía, favorecendo os jesuítas italianos em detrimento dos portugueses. Andreoni foi autor da obra Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711).

9

João Angelo Bononi e José Barreiros fundaram a missão de Iruris, no vale do rio Madeira.


funditus corruat. In spe quidem, licet remotissima, auxilium aliquod hoc anno nobis eluxit; facta per Paternitatem Vestram potestate, absque ulla numeri restrictione, admitendi in Lusitania quotquot idonei judicarentur; in quo tamen exsequendo adhuc Procuratoris opera desideratur; cum nullum in Brasiliam Tyronem miserit, quemadmodum Paternitas Vestra fieri jubebat, in hujus Provinciae subsidium: urgendusque iterum videtur ne commissas sibi et Provinciali Lusitano partes, minori, quam par est, alacritate suscipiat; sed navibus primo quoque tempore Olyssipone soluturis bonam adolescentium manum imponat; vel jam in Tyrociniis paratam, vel e scholis nostris instante navigatione, collectam. Verum non isti sunt qui in praesenti sociorum penuria nobis remedium possunt afferre. Desunt enim hic homines ad obeunda in Civitatibus nostrae Societatis ministeria idonei; desunt in Collegiis qui rerum spiritualium peritia teneant, affectuque erga illas ferantur, ut alios ad Deum trahant et dirigant; imo, quod non sine rubore dicere cogor, desunt qui ad audiendas Nostrorum confessiones ita nominari possint, ut non sine formidine justae alicujus notae eligantur. Desunt missionarii in indorum pagis et in vicinis expeditionibus occupandi, quae jam jam per triennium intermissae sunt, non sime magno detrimento incolarum: et quod máxime faciendum est, desunt theologiae et Moralis Disciplinae praeceptores qui scholasticis nostris, solidam doctrinam praebere sciant, quae ad professionem quatuor votorum est necessaria. Per illam ergo, quae tantum Paternitati Vestrae cordi est, servandi et promovendi curam Provincias omnes, quibus sanctissime praeest, ad hanc obsecro nunc potissimum crebroque mentem convertere non dedignetur, et me a longinqua ora clamantem audire, suppetiasque majori qua possum contentione petentem. Quaerent alii de more missionarios quos secum ducant, ad divinam gloriam inter ethnicos dilatandam; obtinebuntque non paucos, Malabaribus, Indis, Sinisque destinandos. Ruinam ego quam Deus avertat, Brasilicae Provinciae metuens, hominibus quotidie magis destitutae, illam ad Paternitatis Vestrae pedes sisto, oroque, ut praesentissimo remedio non ethnicis modo, sed Filiis opitulari festinet. Et quoniam tarda nimis judico subsidia a Procuratori electo, ut spero, Romae obtinenda; idcirco solvente ante classem navigio, intantissime a Paterniate Vestra per hanc

findo o assunto se disser que nos achamos, em todos os graus, reduzidos a extrema privação de gente. E se a tal não se dignar quanto antes Vossa Paternidade de algum modo prestar socorro, receio que Província desabe pelos próprios fundamentos. É certo que este ano nos luziu alguma esperança, posto que muito remota, de auxílio, ao conceder-nos Vossa Paternidade a faculdade de admitir em Portugal, sem restrição alguma de número, quantos parecessem idóneos. Mas, em dar-lhe cumprimento, continuam as diligências do Procurador a fazer-se desejar, já que ainda não enviou ao Brasil nenhum escolástico, conforme Vossa Paternidade mandou que se fizesse, em auxílio desta Província. Haverá que em isso urgilo, de sorte que não tome em mãos com menor celeridade do que seria aceitável as incumbências que a ele e ao Provincial de Portugal estão encomendadas; e que, pelo contrário, veja de mandar para as naus que primeiro largarem de Lisboa uma boa mão-cheia de jovens, ou já com o noviciado feito ou coligida como se puder nas nossas escolas para se não perder a largada. Claro está que não são esses que nos poderão trazer remédio na presente penúria de companheiros. Muito nos faltam com efeito homens idóneos para o exercício dos ministérios nas aldeias da Companhia; muito nos falta nos Colégios quem seja versado nas coisas espirituais e que lhes seja de tal modo afeiçoado que logre a Deus atrair e dirigir os outros; falta mesmo, e não é sem embaraço que me sinto forçado a dizê-lo, quem possa ser nomeado para confessor dos Nossos, de sorte que para tal se possa elegê-lo sem receio de algum justo reparo. Faltam missionários que se ocupem das aldeias dos índios e das expedições às zonas vizinhas, que se interromperam já lá vão três anos com grande detrimento dos habitantes; e, o que é mais de se encarecer, faltam professores de Teologia e de Moral, capazes de oferecer aos nossos escolásticos a sólida doutrina que se requer para a profissão de quatro votos. Por aquele cuidado, que tanto Vossa Paternidade tem a peito, em conservar e promover todas as Províncias a cujos destinos santamente preside, rogo agora, sobretudo, que não desdenhe de pôr toda a sua atenção e diligência em esta intenção; e de a mim dar ouvidos, que de tão longes paragens brado e peço socorro, com a voz mais forte de que sou capaz. Outros pedirão, como de costume, missionários que consigo levem a dilatar a glória de Deus entre os gentios. E não poucos os lograrão haver, para mandar aos Malabares, aos Indianos e aos Chineses. Por mim, que a ruína temo (queira Deus arredá-la),

135


136

epistolam postulo, mitti ad nos quamprimum duos saltem Magistros; alterum tehologiae speculativae, alterum Moralis disciplinae peritum; totidemque Apostolicos Missionarios, qui vel in urbibus, vel in proximis excursionibus exemplo suo alios stimulent, sintque sacerdotibus nostris junioribus tam praeclari ministerii duces, ac praeceptores. Atque utinam Paternitas Vestra hos ex illorum numero seligat, quos in Hispania sócios habuit, cum tot urbes, et oppida exemplo suo illustravit, et zelo salvandarum animarum veluti divino igne succendit. Gratissimi mihi erunt, si Hispani sint omnes, qui venient; quicumque tamen prudentissimo Paternitatis Vestrae judicio probabuntur, eo acceptiores erunt, quo celeriores. Hoc primum Brasilia a Paternitate Vestra munus expectat, quae a Divo Francisco Borgia, tot, tantisque cumulata est beneficiis, ut secundum a Sanctissimo Parente Ignatio illi locum attribuat. Pluribus opus esse non arbitror dum res cum Missionario agitur qui Societatem in pupillis habet et remotiores Provincias promptissima voluntate complectitur. Si quid tamen verba supplicis valent, totum me in preces efundo, optimae spei plenus, vidensque jam animo Paternitatem Vestram ad majora beneficia paratam, quam ut in multos annos incolumen cupio; ita eidem me ad omne obsequium offero, sanctorum sacrificiorum, et optatae benedicitonis egentissimum.

desta Província do Brasil, de dia para dia mais desprovida de homens, venho pô-la aos pés de Vossa Paternidade e rogar que, com Seu prontíssimo remédio, não só aos gentios mas até aos próprios filhos se apresse a trazer socorro. E pois tenho já por muito tardios os auxílios que o Procurador eleito, como espero, há de alcançar em Roma, em largando alguma nau antes da armada, suplico instantemente por esta carta que nos mande quanto antes Vossa Paternidade ao menos dois Mestres, um de Teologia Especulativa e outro de Moral; e outros tantos Missionários Apostólicos que, quer nas cidades, quer nas expedições às regiões vizinhas, sirvam aos outros de estímulo por seu exemplo, e sejam outrossim, para os nossos jovens sacerdotes, guias e mestres de tão alto ministério. E oxalá os escolha Vossa Paternidade entre o número dos companheiros que houve na Hispânia, quando tantas vilas e cidades elevou pelo seu exemplo e ainda hoje acende, como que em divino fogo, no zelo pela salvação das almas. Muito gratos me serão, se Hispanos forem todos os que vierem. Todos, porém, os que a juízo de Vossa Paternidade forem aprovados, tanto mais bem-vindos serão, quanto mais pronto vierem. Eis a maior mercê que de Vossa Paternidade espera este Brasil, que S. Francisco de Borja de tantos e tais benefícios cumulou, que o tem em lugar só segundo a seguir ao do Santo Padre Inácio. E mais não creio ser preciso, em disto tratando com um Missionário que tem a Companhia na menina dos olhos e com diligente benevolência abraça as mais remotas Províncias. Se algum valor têm as palavras de quem suplica, todo me ponho nos meus rogos, cheio da melhor esperança, vendo desde já em espírito, preparada para maiores benesses, a Vossa Paternidade; a quem faço votos de que por muitos anos permaneça sã e salva; e a quem me ofereço para tudo aquilo de que for servida, mui carecido de seus santos sacrifícios e implorada bênção.

Bahyae, 21 Junii anni 1688

Baía 21 de junho do ano de 1688

Paternitatis Vestrae

De Vossa Paternidade

Humilimus servus et indignus filius

Humílimo servo e indigno Filho

Antonius Vieira

António Vieira


Foto de Clara Azevedo

A PROPÓSITO DE ARISTIDES DE SOUSA MENDES

Maria do Carmo Vieira*

Não participo em chacinas, por isso desobedeço a Salazar. Aristides de Sousa Mendes

Referindo-se ao carácter de Hitler (1889-1945), escreveu Fernando Pessoa (1888-1935): Hitler, depois de se ter apoiado nas três Grandes Lojas cristãs da Prússia, procedeu segundo o seu admirável costume ariano de morder a mão que lhe dera de comer. Foi assim, na verdade, que o ditador ascendeu ao Poder, em 1933, e que se instalou em gigantesco pedestal, contagiando todos com a sua ridícula saudação e semeando suásticas por todo o lado, um símbolo cuja leitura sinistra se arrastará ao longo dos tempos porque impossível será esquecer o que aconteceu. E, no entanto, a imagem da cruz suástica é antiquíssima e universal, com um significado místico e protector, antítese do Mal que representou com Hitler. Efectivamente, a palavra sânscrita – suastika - significa «boa marca», o que colide frontalmente com o sentido tenebroso que o símbolo adquiriu durante o nazismo, ideologia racista e particularmente anti-semita.

Num discurso político que não admite «porquês», e altera os valores tradicionais para melhor impor a teoria absurda da «raça pura», Hitler escolheu Goering, seu protegido, e como ele um homem «cheio de futuro», capaz de contemplar em gozo o sofrimento humano, para levar a bom termo a concretização da ideologia nazi, assente, como acontece em todas as ditaduras, no terror e na perseguição. É nestes termos que Fernando Pessoa se refere ao fundador da temível Gestapo: […] aos Goerings diz-se sempre que sim […]. Na verdade, «os Goerinsgs» do mundo, criadores de tantos outros tipos de «Gestapo», olham os outros não se apercebendo do seu rosto, não lhe atribuindo por isso significado, e daí a banalidade no gesto de maltratar, de massacrar sem dó, numa ostentação sádica do poder do Eu sobre o Outro. Falam por si algumas das impressionantes fotografias tiradas pelos nazis, em ghettos e em campos de concentração, e depois trabalhadas no sentido da eliminação da identidade do prisioneiro, mostrando rostos sem olhos, sem nariz, e sem boca, em suma, rostos vazios, impedidos de testemunhar. Serve este preâmbulo para contextualizar sumariamente a ideologia alemã que deu início à Segunda Guerra Mundial. Um tempo que, apesar de uma loucura colectiva, manifesta na perseguição desalmada a opositores ideológicos e numa perseguição minuciosamente rácica, de uma crueldade inacreditável, com destaque para a que foi feita aos judeus, homens, mulheres, crianças, velhos e doentes, teve, no entanto, quem ousasse desobedecer e dizer «Não» à barbárie.

* (Membro do Conselho de Administração da Fundação Aristides de Sousa Mendes). Licenciada em Filologia Românica, mestre em Literatura de Viagens e Professora do Ensino Secundário. Tem vários livros publicados sobre ensino e viagens; em 2010 publicou o Ensino do Português, editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, Lisboa.

137


Esses foram os de alma justa, entre os quais se encontra Aristides de Sousa Mendes, conhecido por o «Cônsul de Bordéus», nascido em Cabanas de Viriato (concelho de Carregal do Sal), a 19 de Julho de 1885, e falecido em Lisboa, no Hospital da Ordem Terceira, a 3 de Abril de 1954.

138

Aristides de Sousa Mendes, 1940

Por documentários, livros ou filmes, e até por um concurso, ouvimos falar do nome de Aristides de Sousa Mendes e da sua corajosa actuação, enquanto Cônsul de Bordéus, no ano de 1940. Sabemos que salvou a vida a milhares de pessoas, grande número das quais de origem judaica, evitando-lhes a morte em campos de concentração, ao repudiar o conteúdo da célebre Circular 14, decretada por Salazar e dirigida aos cônsules portugueses, na qual se impunha que não fossem concedidos vistos a «estrangeiros de nacionalidade indefinida, contestada ou em litígio; a apátridas» ou «a judeus, que [tivessem] sido expulsos do seu país de origem ou do país de onde [eram] cidadãos.» Recusando obedecer a ordens, como mero funcionário público esquecido da sua alma, Aristides autenticou os vistos com a sua assinatura, permitindo que os refugiados, em pânico, saíssem de França, passassem por Espanha e chegassem, finalmente, a Portugal, de onde embarcariam para os Estados Unidos ou para outros destinos. Como seria de esperar, o que é próprio de todas as ditaduras que vêem na desobediência à ideologia instituída o maior crime que um cidadão pode cometer, a atitude exemplar e profundamente humanista de Aristides de Sousa Mendes, então com 55

anos e 30 anos de carreira, custou-lhe uma severa punição, ditada a 30 de Outubro de 1949, na qual se reconhecia a sua «incapacidade profissional […] para dirigir consulados». Essa situação ocasionou-lhe, a si e à sua numerosa Família, inúmeras dificuldades financeiras e comportamentos persecutórios, que se mantiveram até à sua morte, no ano de 1954. Na carta que dirigiu, em sua defesa, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, com data de 10 de Agosto de 1940, escreveu Aristides de Sousa Mendes: «Era realmente meu objectivo ‘salvar toda aquela gente’, cuja aflição era indescritível: Uns tinham perdido os seus cônjuges, outros não tinham notícias dos filhos extraviados, alguns haviam visto sucumbir pessoas queridas sob os bombardeamentos alemães que todos os dias se renovavam e não poupavam os fugitivos apavorados. […] Muitos deles eram judeus, que, já perseguidos antes, procuravam angustiosamente escapar ao horror de novas perseguições [….]. Junte-se a este espectáculo o de centenas de crianças, que, acompanhando os pais, participavam dos seus sofrimentos e angústias, demandando cuidados que eles, naquela situação, lhes não podiam prestar. […]. Tudo isto não podia deixar de me impressionar vivamente, a mim que sou chefe de numerosa família e compreendo melhor do que ninguém o que significa a falta de protecção à família.» Como é igualmente próprio de uma ditadura, o discurso condoído do Cônsul de Bordéus não tocaria a alma do ditador, nem a do Conde de Tovar que, fazendo parte do Conselho Disciplinar, elaborou o relatório (19 de Outubro de 1940) que defendeu a «despromoção», indiferente aos argumentos de teor humanista apresentados por Aristides de Sousa Mendes. Quem simpatiza, pára, escreveu Fernando Pessoa através das palavras do seu semi-heterónimo, Bernardo Soares. Nesta frase pessoana insere-se Aristides de Sousa Mendes e o seu acto de consciência, aspectos de um carácter que a Fundação, que o tem como patrono, procura empenhadamente divulgar, para além da preocupação com a Casa do Passal, residência familiar do Cônsul, em Cabanas de Viriato (concelho de Carregal do Sal), lamentavelmente num adiantado estado de degradação que esperemos, em breve, possa ver o início de obras no sentido da cobertura definitiva do seu telhado e da consolidação das paredes. A finalizar, não poderia deixar de anunciar que a 20 de Junho


Leon Moed, com 9 anos (1940)

Leon Moed, com 81 anos (2013)

salvando, em diferentes países, os judeus que fugiam à perseguição nazi.

próximo, inaugurar-se-á a instalação-exposição do arquitecto norte-americano, Eric Moed, junto à Casa do Passal, projecto que intitulou «Trabalho pela Justiça» e que nasceu do seu forte desejo em homenagear Aristides de Sousa Mendes que com a sua assinatura salvou a vida do seu avô e do seu bisavô, de nacionalidade belga, que se encontravam em França, no ano de 1940. Eric Moed, que pretende igualmente apelar à salvaguarda da Casa do Passal, acompanhando as mesmas preocupações da Fundação Aristides de Sousa Mendes, é pois o exemplo flagrante de que mesmo que não tivessem sido milhares os refugiados salvos pelo Cônsul, este seria sempre alguém a não esquecer pela ousadia exemplar do seu acto de consciência em prol da vida humana. Veio, nesse sentido, a denominação de «Justo entre as Nações», atribuída em 1966, pelo Yad Vashem (Memorial do Holocausto, em Jerusalém), uma forma simbólica de homenagear os que tendo perigado a sua vida e a sua posição obedeceram à sua consciência, Eric Moed, seu neto, o autor do projecto «Trabalho pela Justiça»

139


140


FERNANDO PESSOA Heterónimos

Serafim Guimarães*

Quando Fernando Pessoa entra em jogo, o mundo culto abre os ouvidos, arregala os olhos, afina o entendimento e fica a aguardar com impaciência. É uma chamada ao vivo da inteligência e ao quente da emoção e mais do que uma oportunidade de convívio com um dos maiores vultos da história universal. E, se legendar o concreto nem sempre é fácil, legendar o fantástico não é para pessoas banais. A banalidade, que se tolera quando não tem dono e se torna intolerável quando é assinada, passa a auto-flagelação quando alguém, reconhecendo-a, a aceita. Ninguém gosta de ser banal e, quando alguém escorrega e passa para além do limite do risco, não quer que se saiba. Por isso, falar dos heterónimos de Fernando Pessoa, flutuar entre o sublime e a loucura, é voar sem pára-quedas num espaço desconhecido. E eu não me sinto seguro a voar assim!

* Professor Emérito da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

141


142


143

OS GÉNIOS TAMBÉM FAZEM FAVORES

Orlando da Silva*

O título deste apontamento poderá ser despropositado à sensibilidade de um ou outro leitor mais atento à vida literária e humana de Fernando Pessoa. Entendemos, porém, que Grandes Homens como foi Fernando Pessoa, não se podem deixar aliciar por circunstâncias da vida comum, de dependência ou outras quaisquer causas que possam, como um ferrete em brasa, deixar marca indelevel para a posteridade no seu pensamento e sentir. Referimos, nestas preliminares palavras, ao favor feito por si a Luiz Moitinho de Almeida, este filho de Carlos Eugénio Moitinho de Almeida que tinha escritório comercial de comissões, consignações e conta própria, onde Fernando Pessoa tratava da correspondência comercial em inglês e francês.

* Publicista. Estudioso da Vergada e suas Gentes.

Luiz Pedro Moitinho de Almeida, com 19 anos em 1931 e cursando o curso de direito, tinha o seu fraquito de poeta, pelo qual resolveu publicar um livro de “versos” que Fernando Pessoa viria a emendar para “Poemas”, aos quais o autor deu o título Acrónios (nome atribuído aos astros que nascem após o ocaso do Sol). Diz Luiz Pedro Moitinho de Almeida: não me decidi, porém à publicação, sem submeter o original ao “imprimatur” de Fernando Pessoa.

Assim aconteceu.

Meu caro Luís

Deixo-lhe (e já não é sem tempo) o seu manuscrito, que, aliás, é, como dizem os inglezes, um typoscrito. Li tudo com a maior attenção, e o conselho que posso dar-lhe é extremamente fácil de expor: publicar todos os versos que


144

estão em portuguez, não publicar nenhum dos versos que estão em francez. Os poemas em portuguez formam um pequeno volume interessante. Os poemas em francez não formam (a meu ver) coisa nenhuma. Nunca se deve escrever – entendendo-se por “escrever” o “escrever literariamente” – em uma lingua que se não possua de dentro, isto é, com os pensamentos formados organicamente nela. Eu mesmo, como sabe, sei alguma coisa de francez, mas não escreveria um livro nessa língua, a não ser sob ameaça de fuzilamento sumário ou coisa parecida. Publiquei três poemas em francez – por sombra de brincadeira – em um número da “Contemporânea”, e um amigo meu, profundo conhecedor do francez, pediu-me para não repetir a proeza. Os meus poemas “era” decentemente em francez, mas, apezar d´isso, simplesmente não existiam. Tirando o tirado, o seu livro ficará interessante. Mas isto não obsta a que haja melhor opinião – menos alcoólica, por exemplo...

Carlos Eugénio Moitinho de Almeida, que foi patrão de Fernando Pessoa.

Muito seu, Fernando Pessoa 9-XI-1931.

Diz Luiz Pedro Moitinho de Almeida, que logo após ter recebida a carta de Fernando Pessoa, achou-se com coragem para pedir ao poeta dos heterónimos um prefácio para o livro, prefácio que se consumou e que viria mais tarde a ser criticado, mormente pelos poetas e colaboradores da Presença, destacando-se na crítica Adolfo Casais Monteiro que entendia que os poemas do filho do patrão de Pessoa não tinham a qualidade que o prefaciador lhes atribuia e, por isso, era inconcebivel que um Poeta da envergadura de Pessoa se tivesse curvado à amizade que o ligava ao jovem Luís Pedro Moitinho de Almeida atribuindo aos poemas do Acrónios “um bom princípio”, tendo até antes destas três palavras, no parágrafo cinco do prefácio, comparado de certa forma com poemas do seu “velho amigo” Álvaro de Campos, no Opiário que precedeu a emergência rhythmica da Ode Triunphal.

Em uma carta datada de 26 de Dezembro de 1933 de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, refere-se o autor de O Menino de sua Mãe à crítica de Casais Monteiro nestes termos: Como é esta a primeira carta que tenho ocasião de lhe escrever, quero agradecer-lhe as palavras sempre amáveis que me tem dedicado, que, sem ser por essas palavras tenho sempre seguido com interesse a apreciado com admiração. Sobretudo lhe agradeço aquelas palavras em que, na crítica ao livro do Luis Pedro, discorda de mim, porque, à parte a natural vulnerabilidade de uma crítica prefacial amiga, me apanhou, de facto, num lapso de redacção. Sobre este assunto, redigi uma nota destinada à Presença que o meu subconsciente se encarregou, imediatamente, de fazer extraviar. Não sei já onde pára; se a encontrar, em qualquer acaso de gaveta, enviar-lha-ei, visto que é tarde para ser publicada.


Lisboa, 17 de Março de 1997

Ex.mo Senhor Orlando da Silva R. Central, 859 Vergada 4535 LOUROSA

Senhor Orlando da Silva, Meu Ex.mo Amigo

Muito e muito obrigado pela sua gentil oferta de 300 Provérbios, de Fernando Pessoa. Peço muita desculpa de só agora lhe vir a agradecer, mas o livro chegou numa altura de muito trabalho e tive de arranjar tempo para o ler e saborear, o que apenas sucedeu no último fim de semana. Os 300 provérbios selecionados por Pessoa não esgotam a infinidade de provérbios da língua portuguesa. De momento, encontram-se em falta, pelo menos, os seguintes, que agora me ocorrem:

Fernando Pessoa na baixa lisboeta.

Várias vezes estivemos pessoalmente com o autor de Acrónios, quer no seu escritório de advogado na baixa lisboeta, quer no Martinha da Arcada que Pessoa habitualmente frequentava. Destes contactos pessoais e por correspondência, deixamos aqui uma das suas cartas que nos dirigiu a propósito do livro que elaboramos sobre os “Trezentos Provérbios” que Fernando Pessoa pretendia editar, o que nunca aconteceu.

Quem espera, sempre alcança; Quem espera, desespera; Gato escaldado de água fria tem mêdo; Por bem fazer, mal haver; Amigos, amigos negócios à parte; Contratos são contratos e as boas contas fezem-nas os bon amigos; Quem o seu inimigo poupa às mãos lhe morre; Ao menino e ao borracho Deus lhe põe as mãos por baixo; Comida feita, companhia desfeita; Zangam-se as comadres, descobremse as verdades; Em casa de ferreiro espeto de pau; Deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer; Vale mais uma má composição de que um boa demanda; Chuva na Páscoa, nozes furadas; Uns comem os figos e aos outros rebenta a boca; Dos fracos não reza a história; Em tempo de guerra não se limpam armas; Quem te manda, sapateiro, tocares rabecão; Devagar se vai ao longe; Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas; Ao rico não devas e ao pobre não prometas; Até ao lavar dos cestos é vindima; Quem quer a moça, ou anda a pé ou larga a bolsa; Duro com duro não faz bom muro; Mais vale um pássaro na mão que dois a voar; Cesteiro que faz um cesto, faz um cento; Quem muito escolhe pouco acerta; Casa roubada, trancas na porta; A pensar morreu um burro; Ano de nevão ano de pão; Quem não tem cão caça com gato; Burro

145


Ocorre-me seguidamente perguntar a quem foram dirigidas as cartas de Pessoa que o livro contem. Suponho que o não foram a V. Ex.a, dado que, sendo elas datadas de 1914, altura em que eu tinha dois anos, isso implicaria que V. Ex.a tivesse uma idade muito próxima dos 100 anos, o que não me parece ser o caso, dada a juventude com que escreve. Repito: muito e muito obrigado pela oferta do livro, que fica a fazer parte na minha biblioteca pessoana. Não sabendo como corresponder à sua gentileza, envio-lhe um exemplar do meu livro de poemas, Acrónios, que Pessoa prefaciou em 1932, Tem pelo menos o valor bibliográfico de há muito não se encontrar no mercado. Pedro Moitinho de Almeida. 1912-2005 146

velho não aprende línguas; Quando a fartura é muita o pobre desconfia; Se queres conhecer o dono bate no cão; Santos de casa não fazem milagres; A ocasião faz o ladrão; A união faz a força; Antes que cases vê o que fazes; Quem cabritos vende e cabras não tem, de algum lado lhe vem; Água mole em pedra dura tanto dá até que fura; Grão a grão enche a galinha o papo; Quem estraga velho paga novo; Pelo dedo se conhece o gigante; Com papas e bolos se enganam os tolos; Tantas vezes vai a cantarinha à fonte que se parte; Quanto mais alto se está maior queda se dá; Quem empresta não melhora; Quem tem tenda, atenda-a, ou então venda-a; Nem sempre o mais curto é o melhor caminho; À noite todos os gatos são pardos. Independentemente dos provérbios, o livro despertoume grande interesse, não só pelos respectivos “Nota prévia” e “Prefácio”, muito bem escritos, mas também pela valiosa documentação que o livro contem, designadamente as dua cartas de Pessoa. A propósito da última destas, ocorre-me perguntar se ele chegou a pagar os vinte mil réis nela pedidos emprestados. Fernando Pessoa viveu sempre à míngua de dinheiro. Haja em vista os vales à caixa que ele passou no escritório de meu Pai e que, neste momento, se encotram ne exposição “Las Lisboas de Pessoa”, neste momento a decorrer em Barcelona.

Tinha pensado em enviar-lhe o meu livro “Fernando Pessoa - No cinquentenário da sua Morte”, mas fiquei na dúvida sobre se já lho tinha mandado ou se V. Ex.a o tinha, se tal, porém, não acontecer, queira dizer-me porque terei muito gosto em lhe enviar um exp. Com os melhores cumprimentos me subscrevo. De V. Ex.a Moitinho de Almeida

Máquina do escritório de Moitinho de Almeida que Pessoa utilizava.


147

Capa do livro Acrónios - Poemas de Luís Pedro - 1932.

Folha de página do livro Acrónios - Poemas de Luís Pedro - 1932, com dedicatória: “Ao irmão Pessoano Sr. Orlando da Silva. Com as maiores considerações e estima do Luís Pedro - 15. 3. 97”.

Bibliografia ACRÓNIOS - Poemas de Luis Pedro, com prefácio de Fernando Pessoa. 1932. ALGUMAS NOTAS BIBLIOGRÁFICAS SOBRE FERNANDO PESSOA - Luiz Pedro Moitinho de Almeida - Tipografia Sado, Setúbal. 1954. O ROMANCE (Teoria e Crítica) - Adolfo Casais Monteiro. 1964. FERNANDO PESSOA NO CINQUENTENÁRIO DA SUA MORTE - L. P. Moitinho de Almeida. Coimbra Editora Limitada. 1985. FERNANDO PESSOA - CORRESPONDÊNCIA - 1923-1935 - Manuela Pereira da Silva. Assírio & Alvim. 1999. CARTAS, POSTAIS E ESCRITOS QUE RECEBI Orlando da Silva. 2013 Adolfo Casais Monteiro, num bico-de-pena de Luís Jardim.

NOTA: Numa ou outra página utilizamos a grafia à época.


148 Foto Arlindo Costa


149

Aquilino Ribeiro homenageado no 25 de Abril com apresentação do livro de Manuel de Lima Bastos* NO AUDITÓRIO MUNICIPAL DE SERNANCELHE

O programa das comemorações do 25 de Abril contou com a apresentação do livro À Sombra de Mestre Aquilino na Casa Grande de Romarigães, da autoria de Manuel de Lima Bastos, no Auditório Municipal de Sernancelhe, homenageando neste dia o sernancelhense que foi um símbolo da luta pela liberdade: Aquilino Ribeiro. A propósito da apresentação desta obra, Sernancelhe recebeu a visita de figuras ilustres da sociedade portuguesa como Dr. Miguel Veiga, escritor e advogado, e Dom Manuel da Silva Martins, Bispo Emérito de Setúbal. Coube a Miguel Veiga a apreciação da obra, ficando as restantes intervenções a cargo de Dom Manuel Martins, do autor, Manuel de Lima

*Advogado. Escritor e Devoto Aquiliniano.

Bastos, e do Presidente da Câmara, José Mário de Almeida Cardoso que encerrou a cerimónia. Com o Auditório Municipal esgotado, a quinta obra de Manuel de Lima Bastos sobre o Mestre Aquilino foi o mote para intervenções de grande qualidade por personalidades da sociedade portuguesa confessos admiradores da vida e obra do escritor sernancelhense. Por isso mesmo, no ano em que se comemoram os 50 anos da morte do escritor Aquilino Ribeiro, Manuel de Lima Bastos não deixou de exultar para a maior homenagem que ele merece: o estudo, a admiração e a produção literária em torno do legado que nos deixou.


O autor, Manuel de Lima Bastos, pronunciou o discurso de agradecimento.

Senhor Presidente da Câmara Municipal de Sernancelhe, Senhor Bispo Emérito de Setúbal, Senhor Doutor Miguel Veiga, Senhoras e senhores:

Adoptei o hábito invariável de não me pronunciar sobre o que escrevo. Entendo que um livro, mal sai da casa de quem o produziu, de algum modo deixa de ser coisa do autor para passar ao domínio e ao juízo de quem o quiser ler. Por tal motivo limitarei a minha intervenção a alguns agradecimentos que, nem por serem vários, são menos devidos. Concluirei com uma pequena mas justa homenagem.

150

Começo por agradecer a presença de todos que hoje aqui vieram celebrar o 25 de Abril em que muitos acreditaram que pudesse ser uma porta que se abria para a regeneração do país mas que infelizmente, nestes tempos que correm tão incertos e revolutos, em muitos domínios não obteve concretização. Não por causa do 25 de Abril e muito menos por culpa dos ideais generosos que estiveram na sua génese mas sim, exclusivamente, por culpa de uma classe política muitas vezes incompetente, não poucas vezes corrupta e quase sempre só almejando o poder como forma de extrair vantagens para si próprio ou para a sua tribo partidária. Devo contudo dizer que, apesar das imperfeições e dos inconvenientes do regime democrático, não conheço alternativa melhor para a organização das sociedades humanas. Com o que não me posso conformar, e como eu decerto muitos portugueses, é com a incapacidade deste país, que já conheceu dias de grandeza, em produzir uma média razoável, se não de estadistas, pelo menos de gente decente capaz de governar a coisa pública com lisura e boa fé. Tãopouco acredito em homens providenciais ou em salvadores da Pátria. De todos os aqui hoje se reuniram para celebrar esta data, que nem pelo mau uso que fizeram dos seus valores e princípios deixa de ser memorável, sai naturalmente beneficiada a apresentação do meu quinto livro sobre Aquilino, o mestre beirão das letras portuguesas, pois doutro modo não seria possível ter o privilégio de usufruir da presença dos muitos que aqui vieram. Sem menosprezo por ninguém, permitam-se contudo que faça algumas referências individualizadas. Em primeiro lugar devo destacar a presença neste Auditório Municipal

de Sernancelhe de duas pessoas a quem dediquei o meu livro cumprindo um dever de gratidão: os caríssimos amigos Dr. Eugénio dos Santos, professor catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e o Dr. Celestino Portela, meu colega advogado, ilustre bibliófilo, erudito pessoano e director da revista cultural VilladaFeira. As razões, a que chamei soberanas, constam do prefácio da obra. Englobando, em referência especial, todos os conhecidos que quiseram estar hoje aqui e vieram de mais longe, sobretudo de Santa Maria da Feira, de Vila Nova de Gaia e do Porto, particularizo os nomes de dois amigos que muito estimo: o Dr. Luís Neiva Santos e Dr. Guilherme Figueiredo. O primeiro foi e o segundo é presidente do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados e ambos fazem a fineza de me ler e dizerem que apreciam a minha serôdia labuta literária traduzida em livros dos quais cinco andam à volta de Aquilino. Finalmente, para concluir esta primeira ronda de bemhajas, não posso esquecer também que aqui vim de gosto acrescido por estar acompanhado por toda a família: minha mulher, os três filhos, nora e genros mas, com particular satisfação, pelos seis netos. Será quase impossível que os astros se conjuguem de forma tão propícia que permita voltar a encontrá-los à minha volta em circunstâncias similares. O mais novo ainda não fez um ano, o mais velho já lhe sombreia ao de leve o buço no lábio. Será neles que um dia, mergulhado já nas profundidades da mãe natureza, alguma coisa de mim ressurgirá e há-de perdurar pelos tempos que estão por acontecer. Cumprido este primeiro dever volto-me agora para quem me acompanha nesta mesa usando o critério de seguir a ordem das intervenções. Peço licença para abrir um pequeno parêntesis para saudar o Sr. Prof. Dr. Barbosa de Melo significando-lhe o meu apreço e admiração. Começo pelo meu fraternal amigo Dr. Miguel Veiga, grande advogado e um político na acepção mais lata e nobre do conceito, isto é, que não abdica de pensar pela sua cabeça e livremente pronunciar-se quanto à forma como são conduzidos os negócios públicos, embora tendo aceitado integrar-se numa formação partidária. Se mal não julgo, nunca aceitou ser indigitado para cargos, lugares ou funções para os quais não lhe escassearia nem a inteligência, nem o talento e muito menos a honorabilidade. Pelo que dele fui conhecendo, observou sempre a mais inflexa independência de juízo mesmo para com os seus pares – diria, sobretudo para com os seus pares – o que me faz lembrar Brito Camacho, um velho e honrado político da 1ª República,


151

Miguel Veiga na apresentação do livro.

que afirmava com irónica justeza: Pois eu, reconhecendo que um sujeito é maroto ou idiota (há até quem se dê ao luxo de acumular) porque o encontre no campo político onde milito, hei-de confessar que é um sábio ou um carácter? Conformemente creio que esta foi a postura que Miguel Veiga desde sempre adoptou, sem prejuízo do seu direito a sufragar o ideário político que bem entenda e melhor lhe convenha. Permitam-me contudo a franqueza de confessar que a vertente que mais admiro nesta personalidade invulgar é a do homem civilizadamente erudito, portador de uma cultura tão vasta e profunda que consegue abarcar quase todo o arco dos conhecimentos humanistas. Por estas razões Miguel Veiga prefigura, em meu entender, aquilo que no século XVIII se chamava, no sentido que Roger Vailland definiu com exactidão, o homem de qualidade. Sem sombra de exagero posso afirmar que, para se ter a justa noção da integralidade cultural de Miguel Veiga, é preciso talvez recuar séculos no tempo português. Na forja étnica donde provém misturou-se a argúcia de jurisconsultos como João das Regras, a curiosidade insaciável dum Fernão Mendes Pinto, o universalismo dos ditos estrangeirados, o ecumenismo de um Damião de Góis, a oratória e o poder

dialéctico do Padre António Vieira, o diletantismo e l’espirit du monde do Cavaleiro de Oliveira e talvez, porque não?, o hedonismo sibarita de um D. Luís da Cunha, o ministro plenipotenciário de Portugal em Viena, na época a corte de todas as cortes europeias, onde deixou a justa fama de homem que bebeu todos os elixires dos sentidos e provou todos os prazeres mundanos. A tudo isto terá de juntar-se ainda o amor por este desabrido planalto beirão, que desenha o extremo ocidental da meseta ibérica e lhe adveio ao sangue em herança paterna, no qual costumam desabrochar - foi Aquilino quem o escreveu - os mais singulares e esquisitos espécimes de toda a patuleia humana. A outra metade que lhe conforma o carácter há-de por certo provir do sangue materno francês que lhe confere o gosto acentuado pelo requinte e por tudo que brilha no mundo, o que desde logo se adivinha no orgulho com que exibe o panache de sedutor que se passeia pelos boulevards parisienses tão naturalmente como se nunca outra coisa tivesse feito na vida. No exemplar do livro que lhe ofereci e hoje foi objecto da sua penetrante análise feita, como é seu timbre, mediante uma oratória primorosa, consignei pelo meu punho a estima


e admiração que lhe devoto. Aí lhe afirmei que em todas as encruzilhadas da obrinha, quando as dúvidas me assaltavam e não sabia bem que rumo tomar, a pergunta que sempre me fazia era esta: será que Miguel Veiga vai gostar disto? E procurava o norte da solução imaginando qual seria a sua resposta. Meu querido amigo Miguel Veiga: esta é a homenagem que trouxe para si. Aqui lha deixo assim desataviada porque prestar-lhe outra melhor, como merecia e lhe era devida, não está nem na minha mão nem no meu poder.

152

Senhor Dom Manuel da Silva Martins e meu reverendíssimo amigo: suponho que não há-de faltar muito para que os dedos de ambas as mãos não cheguem para contar as vezes que tenho desviado Vossa Reverendíssima do mais que justo descanso de sua casa ou das actividades evangélicas a que se entrega a tempo inteiro com o vigor e o discernimento que mais próprios parecem de alguém que se encontra a viver um fecundo outono da vida. O motivo dos incómodos que persistentemente lhe venho causando está à vista: são cerimónias como a de hoje que – de bom grado o reconheço – não devem passar de frivolidades aos olhos de quem, como o Sr. Bispo, lida com a eternidade e com outros assuntos tão sérios e transcendentes como são por certo os que se relacionam com a salvação das almas. Dou bem conta que só a grande bondade e espírito de tolerância de Vossa Reverendíssima têm permitido que todos beneficiemos da presença de alguém que, além de grande dignitário da Igreja, é hoje a mais viva e importante expressão do autêntico humanismo cristão. De muitos lados me chega a manifestação do sentimento, tanto da parte de crentes como de pessoas que o não são, de que o Sr. Bispo representa hoje a face visível da Igreja mais empenhada na defesa dos direitos básicos do ser humano dentre os quais avulta, neste tempo tão desencorajador, o direito ao trabalho como pressuposto essencial a uma existência de mínima dignidade. As intervenções que neste sentido tem produzido na comunicação social, além do forte impacto que provocam, demonstram uma sensibilidade para os problemas sociais que hoje afligem uma grande parte dos portugueses e dão voz àqueles que a não têm e nem podem sequer denunciar as injustiças de que são vítimas como é o caso das muitas crianças que só na escola conseguem alimentar-se e o dos idosos que vão sobrevivendo, com pensões de miséria, no abandono e na solidão.

Permita Vossa Reverendíssima que, com o protesto da mais devotada estima, exprima a minha admiração pelo combate exemplar em que, já desde a época em que encabeçou a então novel diocese de Setúbal, sem desfalecimentos se empenhou e que só pode merecer o apoio e o reconhecimento de quem preza a dignidade do ser humano mais desprotegido. Nesta ronda de agradecimentos seria falta imperdoável não homenagear este Município de Sernancelhe, o que farei na pessoa do Dr. José Mário de Almeida Cardoso, ilustre presidente da sua Câmara Municipal, e dos seus colaboradores Dr. Carlos Silva Santiago, vice-presidente, Dr. Carlos Santos, vereador, os quais integram o executivo camarário e a Sra. Dra. Adília Sobral, presidente da Assembleia Municipal. Dirijo-me agora a si, Sr. Dr. Almeida Cardoso, meu muito prezado amigo: a lhaneza e a generosidade com que, desde a publicação do meu primeiro livro sobre mestre Aquilino Ribeiro, tenho sido tratado por este Município dimanam, directamente e em primeira linha, da intervenção da sua pessoa enquanto titular da função de Presidente da Câmara Municipal. Nunca esquecerei as constantes gentilezas e atenções que me vem dispensando ao longo destes mais de seis anos de contactos frequentes como também nunca poderei esquecer esta terra de Sernancelhe que considero tanto como se fosse a minha própria terra. Já não falta muito tempo para que chegue a seu termo o último mandato à frente dos destinos municipais. Mas o Dr. Almeida Cardoso, além de deixar o legado de uma obra que profundamente modificou para melhor o rosto deste concelho, deixa também uma escola que lhe continuará a actividade devotada no domínio da cultura e da preservação do nome de mestre Aquilino Ribeiro na memória dos vivos já que, ao ser o seu vulto maior, projectou e deu visibilidade a toda esta corda de povos. Estou certo que, seja quem for que lhe venha a suceder, há-de continuar a obra de afirmação cultural que foi desenvolvendo ao longo dos mandatos em que esteve à testa da autarquia de Sernancelhe. Permita-me também que lhe diga, em sentido agradecimento, a mesma coisa que Aquilino Ribeiro disse ao Dr. Heliodoro Caldeira, o competente advogado que patrocinou o escritor no negro delito de que a ditadura o acusou por ter escrito e dado a lume a sua obra Quando os Lobos Uivam: o nosso diálogo não morre aqui. Por hoje, querido amigo, digne-se receber este tributo de estima e do maior apreço, modesto, como não, mas com todos os quilates, como se fosse na Idade de Ouro um voto a Astreia,


153

José Mario de Almeida Cardoso, Presidente da Câmara Municipal de Sernancelhe, encerrou a sessão.

que já ao tempo usava venda nos olhos mas ainda não lhos tinham picado. Vou concluir com duas notas breves: a primeira é para lembrar o amigo querido que foi Aquilino Ribeiro Machado de quem me confesso eterno devedor de inúmeras atenções e finezas que culminaram com a generosa cedência de um precioso inédito do escritor seu pai. Pouco tempo antes de falecer ainda me prometeu que havia de passar umas horas a vasculhar as caixas e caixotes onde tinha acumulado um vasto espólio de papéis relativos ao mestre prosador dizendo-me textualmente que havia de me arranjar mais umas coisitas. Porém o seu tempo tinha chegado ao fim e não deu para mais. Talvez a morte o tenha encontrado - quem sabe? - a vasculhar nas caixas à procura das prometidas coisitas. E eu, que bem delas precisava para valorizar as minhas obrinhas, aqui hoje recordo a sua memória adorável e lembro o seu nome com enternecido reconhecimento. Uma nota final: comemora-se este ano o quinquagésimo aniversário da morte de Aquilino Ribeiro ocorrida a 27 de Maio de 1963 o qual enfileira, no meu juízo, entre os três ou quatro vultos maiores de toda a literatura em prosa escrita na língua portuguesa. Os comemoradores oficiais, que nunca

se esquecem de aparecer nestas alturas, lamentavelmente esqueceram que neste ano também se celebra o centenário da estreia literária de Aquilino Ribeiro que publicou o seu primeiro livro de contos em 1913 sob o título de Jardim das Tormentas. Também lamentavelmente não se lembraram da terra onde o escritor nasceu ignorando a generosa oferta do Município de Sernancelhe para se associar e colaborar na celebração da importante efeméride embora se tenham dado à maçada de excursionar desde Lisboa em visita a estas terras do demo das quais certamente só se voltarão a lembrar daqui a outro meio século, se por cá ainda andarem. Autonomamente decidiu a Câmara Municipal de Sernancelhe celebrar a obra magnífica e o seu criador preenchendo o próximo dia 25 de Maio com actividades em sua honra e memória. De minha parte cá estarei para dar o contributo que estiver no meu minguado alcance. Afinal a memória deixada pelo escritor pertence em primeiro lugar aos sítios onde veio ao mundo e se fez homem e há-de continuar viva por mérito exclusivo dos muitos que ainda hoje o recordam, o lêem e o amam. Feito em Miramar aos vinte e cinco dias do mês de Abril de 2013


154

*Advogado. Devoto Aquiliniano. Do livro Rumor no Bosque das Palavras.


155

CARTA AOS LEITORES DE MANUEL DE LIMA BASTOS INTERVENÇÃO DE DOM MANUEL DA SILVA MARTINS, BISPO EMÉRITO DE SETÚBAL, NA APRESENTAÇÃO NO CENTRO SOCIAL PADRE JOSÉ COELHO, EM FIÃES, DA OBRA À SOMBRA DE MESTRE AQUILINO NA CASA GRANDE DE ROMARIGÃES Se Aquilino Ribeiro fosse uma divindade, Manuel de Lima Bastos seria o seu melhor apóstolo. Como sempre e agora de novo em À Sombra de Mestre Aquilino na Casa Grande de Romarigães. Por tal razão permito-me deixar aqui alguns conselhos e sugestões aos seus leitores. Ei-los: Não se atrevam a entrar na Casa Grande de Romarigães sem antes bater à porta de Manuel de Lima Bastos. Ele vos porá na mão a chave mestra que abrirá todas as portas que conduzem aos cantos mais escusos de uma das casas literárias mais ilustres de Portugal.

Lá dentro encontrareis memórias e recordações que não lembrariam ao demo. Mas de igual modo vos previno que deveis utilizar uma outra chave para penetrar com proveito no texto que Manuel de Lima Bastos pacientemente foi engendrando a propósito do magnífico romance de Aquilino Ribeiro. Munidos dessa segunda chave, dotada de tamanha capacidade olfactiva que vos permitirá desvendar os segredos da prosa do mestre escritor de maneira a que nada fique escondido, nem mesmo o que pareceria impensável. Em certos casos chegamos até a julgar que Lima Bastos está dotado de supra poderes tal é a capacidade da imaginação que o anima nos seus escritos. Convenço-me que nos cinquenta anos já decorridos depois da morte de Aquilino Ribeiro nenhuma homenagem lhe agradaria tanto como esta que Lima Bastos lhe vem prestando ao longo dos cinco livros nos quais estuda e recria a vida e a obra do prosador magnífico. E fá-lo de tal maneira que os dois acabam por ser um só…até nas casmurrices.


Se quiserem saber mais algumas coisas que ajudem a compreender e a fazer o retrato deste ilustre devoto de Mestre Aquilino, por ele venerado como se fora um santo alcandorado ao altar das letras pátrias, basta atentar na forma como escreve e comunica, inventando personagens, coisas e acontecimentos com particular maestria. Chegamos a julgar que tudo é verdadeiro quando viaja pelo passado, faz renascer o que procurava e por lá andava esquecido, muitas vezes com o recurso único à memória que utiliza como serviçal pronta e fiel. Por tantas vezes se identificar com o mestre prosador estou em crer que este um dia terá de perguntar: - Afinal quem és tu? E Manuel de Lima Bastos timidamente há-de responder: - Tu! Porque um é o outro e o outro é ele próprio, uma vez que a paixão os une e unifica.

156

É tempo dos leitores descobrirem este homem e os seus livros em torno da vida e da obra de Aquilino Ribeiro. Por mais estranho que pareça, às vezes temos de procurar nas sombras para descobrir o tesouro escondido. Foi o que aconteceu comigo mas valeu bem a pena porque através de Manuel de Lima Bastos penetrei em muitos dos segredos do mestre escritor. E não vamos mais longe. Como gostaria eu de poder pintar um quadro perfeito retratando Lima Bastos! Ficome com a pena, que é grande, de não o poder fazer como desejava mas deixo aqui alguns detalhes que poderão ajudar quem o quiser conhecer melhor. Olhem que é tempo e há muito que ele o merece. Sernancelhe, muito justamente, já lhe atribuiu a Medalha Municipal de Mérito em ouro. Porque espera Santa Maria da Feira para também o fazer?


A MORAL E O DIREITO

Jorge Augusto Pais de Amaral*

Vivendo em sociedade o homem tem de respeitar, quotidianamente, um conjunto de normas que visam tornar possível ou, pelo menos, mais fácil e agradável a relação com os seus semelhantes. Dessas normas, umas têm caráter imperativo, isto é, são impostas pela autoridade do Estado, que as considerou essenciais para o equilíbrio das relações humanas e para garantir o normal funcionamento da vida em comunidade. Outras são aceites livremente pelo homem, porque as elevou à categoria de valores subjetivos que acata com prazer e satisfação, por constituírem uma forma de realização pessoal. As primeiras são normas de Direito e as segundas são normas de Moral. Tanto as normas de Direito como as normas de Moral valorizam, entre outros, princípios como o respeito pela vida e integridade física, pelo bom nome, pela liberdade individual, pela propriedade, pela necessidade de garantir a igualdade de direitos. A diferença que fundamentalmente as distingue é a sanção, que é caraterística apenas das normas de Direito. Se uma norma de Direito não foi devidamente observada, desencadeia a possibilidade de ser aplicada ao infrator uma sanção imposta pela autoridade constituída. O incumprimento das normas de Moral somente gera em cada indivíduo *Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, Jubilado.

sentimentos de natureza íntima como sejam, a vergonha, o arrependimento e, por vezes, a censura de ordem pública, mas nunca uma sanção imposta pela autoridade. Os valores morais são apanágio da consciência de cada indivíduo, sendo ele o próprio julgador dos atos por si praticados, por forma a considerá-los como certos ou errados, toleráveis ou intoleráveis. A consciência de cada um não nasce já modelada por um conjunto de normas ou valores. Estes são-lhe transmitidos pela sociedade em que está integrado e principalmente pela família. O melhor canal de transmissão desses valores é o exemplo que emerge das pessoas com quem cada um convive. De nada servirão os bons conselhos quando os exemplos não estão em consonância. O Direito encara as ações humanas principalmente no domínio das relações sociais, ou seja, nas relações do homem com os outros homens, ao passo que a Moral se preocupa mais com o indivíduo, com a sua perfeição, mesmo quando atua isoladamente. A Moral não depende de fronteiras geográficas e garante uma identidade entre pessoas que nem sequer se conhecem, mas utilizam o mesmo referencial moral comum. As regras sociais que o Direito estabelece não ultrapassam as fronteiras do Estado que as aprovou. Se recuarmos aos tempos primitivos verificamos que nem sempre as normas do costume se converteram em normas jurídicas e, durante muito tempo, se verificou uma

157


158

certa confusão entre o Direito, a Religião, a Moral e até os rituais e a liturgia. O Direito tinha um caráter religioso, sendo considerado como uma revelação dos deuses. Todos os Códigos antigos continham preceitos civis e penais que se misturavam com matérias religiosas, rituais e litúrgicas. “Na Idade Média continuou essa confusão e o Direito até voltou a ter, sob certos aspetos, um caráter religioso, pois, considerada a vida humana como uma preparação para a vida ultramundana, entrou a predominar na vida civil o direito canónico, a suprema instituição ficou sendo a Igreja, à qual o Estado emprestou o seu braço secular; o supremo dever era a Fé e o supremo delito a heresia.”1 Sendo o Direito um conjunto de normas que procuram regular e organizar a vida em sociedade e solucionar os conflitos entre os seus membros, por vezes, as normas, que começaram por ter uma feição Moral, tornaram-se normas de Direito por vontade da sociedade que as adotou e lhes atribuiu tal importância que as tornou obrigatórias, estabelecendo uma sanção para o seu incumprimento. Costuma dizer-se que o campo de aplicação das normas de Moral é mais vasto que o das normas de Direito. Se nem todas as normas morais são normas jurídicas, estas, porém, não devem ofender a consciência moral própria da sociedade em determinado momento histórico. Por outro lado, a Moral ,preceituando o respeito pela lei, não deixa de reforçar o Direito sem com ele se confundir. De igual modo, o Direito também defende o respeito pelos bons costumes. Alguns autores encaram o Direito e a Moral como dois círculos concêntricos, sendo este o mais amplo. Esta perspetiva pode levar à conclusão de que toda a lei é moralmente aceitável. Porém, inúmeras situações demonstram a existência de conflitos entre a Moral e o Direito. É o que acontece, por exemplo, quando as pessoas invocam argumentos de ordem moral para não acatarem determinada lei. Significa que, embora a lei tenha como destinatários indivíduos pertencentes à mesma sociedade, nem todos comungam dos mesmos ideais. É do conhecimento geral a posição dos objetores de consciência que se recusam ao cumprimento do serviço militar obrigatório por o considerarem incompatível com as suas crenças éticas ou religiosas. Numa época recuada mantiveram-se em vigor por muito tempo certos direitos que eram considerados imorais. Basta atentarmos na escravatura que ainda se praticava no século XIX. 1 Cfr. Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. I, pág.s 19 e seg.

Noutros casos, a norma jurídica, embora reconhecendo que é imoral a prática de certos atos, não proíbe essa prática. É o caso da prostituição. Durante muitos anos foi proibida por lei. Agora é tolerada desde que a sua prática não ofenda a moral pública. A lei acabou por se considerar impotente para banir essa prática. Para que possamos compreender esta afirmação, basta referir uma ocorrência, de entre outras, que se verificou nos tribunais: a prostituta – quando a prostituição era proibida - foi apresentada ao juiz por ter sido encontrada na prática de tal atividade. O juiz, depois de a ouvir, condenou-a em uma pena de multa. A prostituta, ao ouvir a condenação, disse que não tinha a importância da multa, mas se a deixassem ir dormir a casa, no dia seguinte apresentaria o dinheiro. O Direito teve de se adaptar aos tempos, tolerando uma atividade que considera imoral, visto que existe em função das pessoas e não são estas que existem para o Direito. Por outro lado, verifica-se, por vezes, que o Direito salvaguarda certas situações por forma a não atentar contra a Moral de alguns atos. Assim, embora o Direito defenda a propriedade, na execução da dívida, ao credor está vedada a penhora (entre outros bens), de “objetos cuja apreensão seja ofensiva dos bons costumes”, de “bens imprescindíveis a qualquer economia doméstica”, “dois terços do vencimento” – cfr. artigos 822º e 824º do Código de Processo Civil. O legislador foi sensível às necessidades do devedor, de modo a não o deixar completamente de mãos vazias, mesmo que os bens penhorados não cheguem para satisfazer integralmente o crédito em causa. Hoje facilmente se distinguem as normas de Direito das normas de Moral. Pela via do Direito procura-se criar as condições indispensáveis à convivência social. Quando o conteúdo da norma faz surgir alguma dúvida, existem órgãos encarregados da sua aplicação – os tribunais - que vão determinando o sentido pelo qual deve ser entendida. É assim que a jurisprudência vai fixando a interpretação das normas. O mesmo resultado se pode alcançar através da doutrina dos Mestres do Direito. Porém, quando o poder legislativo altera as normas com muita frequência – como se tem verificado atualmente – nem a jurisprudência nem a doutrina têm tempo de cumprir esse papel. Diferentemente, as normas de Moral não têm qualquer órgão encarregado da sua interpretação e aplicação. O seu significado varia, por vezes, conforme o modo de pensar e de agir de um determinado indivíduo ou de um certo grupo social.


A norma jurídica é bilateral, visto que os deveres que impõe a uns têm correlação com os direitos que a outros atribui. A norma de Moral indica apenas os deveres que cada um deve respeitar sem que daí resultem correlativos direitos para outros. A norma de Direito é obrigatória, como já dissemos, sendo a sua observância imposta, em caso de violação, por um órgão do Estado criado para o efeito. A norma de Moral não tem tal caraterística. Caso não seja observada não existe qualquer órgão que a imponha coativamente. A única sanção para a sua inobservância é de ordem interna - o remorso ou a vergonha sentida pelo indivíduo que praticou ou omitiu o ato. Também pode existir, por vezes, uma sanção externa ao nível da opinião pública. Existe, porém, uma grande quantidade de normas jurídicas que, não sendo contra as normas de Moral, nenhuma relação com esta apresentam, porque são completamente amorais. É o que acontece, por exemplo, com as normas que regulam o tráfego aéreo. Enquanto a norma jurídica não for revogada ou alterada, ela terá de ser cumprida. É daí que resulta o brocardo dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é lei). “Kant e os seus sectários sustentaram que, tendo as ações humanas dois momentos, a saber, um momento

2 Cfr. Ob. e loc. cit.

interno, constituído pela intenção do agente, e um momento externo, que é o dos aspetos percetíveis no meio social, só o primeiro é regido pela moral, enquanto que o segundo pertence ao direito”.2 Não nos parece que esta orientação seja defensável. A motivação não é indiferente à censura que o direito faz do ato praticado pelo agente. Nos atos ilícitos, a condenação do infrator varia em conformidade com a sua intenção. A culpa é graduada em consonância com essa intenção, vindo a ser condenado conforme na base da prática do ato se deteta o dolo (nas suas variantes) ou a mera negligência. Por sua vez, nos atos lícitos, como por exemplo nos contratos, exige-se a boa fé das partes contratantes e, em certas circunstâncias, procura-se averiguar se o conteúdo desses negócios está em conformidade com a vontade de alguma das partes ou se foi obtido por meio de coação ou por erro. Muito haveria para dizer, mas parece-nos que o que fica dito de uma forma despretensiosa é seguramente suficiente para distinguir os dois conceitos, evitando cometer o pecado de nos alongarmos demasiado.

159


160


BESTIÁRIO NEMESIANO

Maria da Conceição Vilhena*

1. A palavra bestiário remete-nos imediatamente para a cultura medieval, onde designava as obras de temática animal: reportórios pictóricos, fábulas, alegorias morais, etc. Actualmente, o termo bestiário é utilizado para significar o conjunto de animais figurando numa obra ou num autor, independentemente de qualquer função didáctica ou intenção moralística. A obra de Vitorino Nemésio é como que uma enorme floresta, habitada por abundante fauna, a mais variada, desde a larva até ao animal fabuloso, passando pelo animal doméstico, útil e dedicado ao seu dono. Percorrendo os títulos das obras deste escritor, aí deparamos já com uma presença animalesca: Paço do Milhafre, o Mistério do Paço do Milhafre, Cavalo Encantado, Bicho Harmonioso, este último dividido em duas partes, intituladas O Bicho e Multiplicação e Morte do Bicho. Se passarmos do título de obras ao de poesias, o número alarga-se consideravelmente. Em Eu, Comovido a Oeste, por exemplo, encontramos «o bicho e a rosa», «Fábula da Serpente», «Versos a uma cabrinha que eu tive», «O recorte de um cão na areia ao luar», «A ave que passou»... Para não nos alargarmos demasiado, apenas acrescentaremos que,

também, nas outras obras, há títulos neste género, o canário, o milhano, o búzio, a minhoca outros mais. Completaremos o nosso rápido inventário, referindo-nos ao discurso nemesiano, de tipo zoomórfico, que inclui, no corpo de cada poema, e com uma função frequentemente simbólica, um bestiário múltiplo, abrangendo répteis, aves, peixes e mamíferos, de que fazem parte o carneiro, a ovelha, a cordeira, o galo, a gaivota, a andorinha, o cisne, a pomba, a águia, a ave de rapina, o lobo, o leão, a rez, a vaca, a aranha, a larva... A esta fauna real, teremos de acrescentar ainda uma fauna mitológica que compreende o centauro e a sereia. 2. Antes que passemos àqueles animais de que Vitorino Nemésio fala como se eles quase tivessem consciência própria e um querer lúcido no género do dos humanos, dedicaremos algumas linhas à larva, aquele ser que vai a caminho, que é a vida condensada, que é promessa e esperança. Símbolo da transição das trevas à luz, da morte à vida, da imobilidade ao voo, a larva, como fruto da energia fecundante, ocupa na linguagem poética um lugar privilegiado. Em Vitorino Nemésio a larva é como que uma força, alojada no mais íntimo do seu eu, que o incita a traduzir em palavras a energia criadora que o devora. Em La Voyelle Promise, o poeta confessa não ser a sua linguagem suficientemente clara por culpa das muitas larvas, que, saídas dos poços da obscuridade, lhe obstruem o espírito:

* Licenciada em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, 1965. Doutoramento de Estado ès-Lettres, pela Sorbonne, Paris, 1975; Professora Catedrática. Leccionou na Universidade de Aix-en-Provence, França; na Universidade dos Açores; na Universidade Aberta de Lisboa e na Universidade da Ásia Oriental, em Macau. Tem publicado perto de cento e cinquenta trabalhos (livros e artigos) sobre literatura, linguística, etnografia e história. Actualmente é aposentada e Presidente Honorária e Vitalícia da Associação de Solidariedade dos Professores.

161


Et si je ne vais pas ni trop pur, ni trop clair […] Ce n’est pas ma vraie faute […] Mais la seule force de l’obscur Qui m’émousse Et me bourre des larves de son puits. (Credo, p. -13)

Aves em geral, «aves de parabólica plumagem», aves de vária espécie, povoam a poesia nemesiana. O poeta vive num movimento incessante de vaivem: leva-o a gaivota, ou a pomba, ou o milhafre; mas o «ovo bicado e quente» que aí deixou, o fará regressar sempre, assim como o cão regressa à casa do dono:

Em carta a Carlos Queirós (de 18.IV.1941, publicada no lL n. o 22), Vitorino Nemésio escrevia:

Essa (ave) Traz de longe e de anos Uma palha, Sinal de triste e de sujo Que ainda uma lágrima valha, Lá onde a alma começa. Assim os cães que muito amam Voltam a casa do dono. Que perdidos!

o seu amor vagabundo Os enrosca naquele sono Cheio do cabo do mundo. Triste, me sinto ir Entre a ave e a saudade, Sem saber preferir. Tudo largo de mão! Creio até que perdi a minha idade E o instinto e silêncio do meu cão.

(Eu, Comovido a Oeste, 30)

[...] a coisa resume-se nisto: ou sou ou não sou capaz de reduzir durante anos a bonecos _ sinais de ser _ estas larvas que trago comigo desde que me conheço. Se sou, salvo-me, porque um desabafo pode ser uma forma de salvação. Salvome humanamente, quero dizer: salvo a pele; poupo-a a esta retenção feroz que me disfarça.

162

Estes «bonecos, sinais do ser», são sem dúvida a tradução, em poesia, dos pensamentos confusos que se agitam no espírito de Vitorino Nemésio. Mistério de metamorfose a operar, em palavras, por etapas, tal como sucede à larva. Salva-se Vitorino Nemésio escapando à angústia de «retenção feroz que o disfarça», como escreve, logo que consiga libertarse de uma crise de identificação em que certamente se debatia. A larva feita «sinal de ser» é a larva desabrochada em borboleta, insecto pleno, termo de caminhada. A borboleta é, certamente, um símbolo da fugacidade e da brevidade da vida humana. No entanto, ela simboliza também a maturidade da criação artística. Assim se compreende o fascínio do poeta pela larva, como forma de energia a metamorfosear. 3. Se é certo que os animais acicatam no coração do poeta a saudade da infância, a verdade também é que a eles recorre, especialmente para exprimir sentimentos ou perscrutar e desvendar mistérios, num desejo de reencontro e de fuga, simultaneamente tentando assimilar e ser assimilado. A poesia de Vitorino Nemésio, que é essencialmente poesia da vida interior, constrói-se todavia com elementos da realidade exterior, os quais funcionam frequentemente como suporte de metáforas e de símbolos. Por isso alguns desses animais são apenas muito levemente aflorados; ou então, desprovidos do todo somático, figuram somente através de um dos seus atributos, funções, produtos, ou partes do corpo: o pio das aves, o ovo picado, a saliva da égua, a gota de leite, jarrete, o bico, a asa.

Regressa; o poeta «feito graça e memória […] ser voraz que se explora e ilumina», acoita-se no seu «buraco vil de bicho harmonioso» (O Bicho Harmonioso, p. 10). A gruta é sem eco, mas uma águia trouxe do céu o seu diapasão de ferro e um milhafre criou a sua carne em seu bico. Mais ainda: um canário de ouro, «débil passarinho de ‘ouro», instala-se no poeta, dele faz sua gaiola. Vitorino Nemésio dá­lhe os seus afectos e escuta-lhe o canto: Ai, que o canário é o meu sangue talvez! Mas então isto que é?! Que violino engoli? A poesia de Vitorino Nemésio é canto de ave dentro do seu peito, mas é também canção de búzio, inacabada, com esperanças no limite da idade:


Esta canção do búzio desusado, Como a posso acabar dentro de mim, Se eu sou o bicho dele despegado? Talvez só cante lá para o fim, Como cisne agoniado... (O Bicho Harmonioso, p. 50 Dada a sua frequência, referir-nos-emos em especial à asa. Na ordem natural das coisas, a asa é um atributo da ave, o qual se presta à mais variada formação de metáforas. Vitorino Nemésio manifesta uma simpatia muito especial por tal tipo de metáforas, a ponto de podermos afirmar que a sua poesia é caracterizada por um frequente adejar. Há a asa da ave:

O grito da ave que no espelho Do longo mar partiu a asa. (O Bicho Harmonioso, p. 50)

Mas há também a asa do anjo:

E o anjo bravo, só lume, o outro sujeito, Em que chama tocou sua asa desabrida? (O Bicho Harmonioso, p. 197)

Ou ainda:

A escolta de anjos em que vim, perdi-a. Ao desprender-se a última asa fria, Meu destino de terra começou. (O Bicho Harmonioso, p. 81) Se asa é caminho, ela é também referência. Se por seu intermédio o poeta materializa o sonho, o tempo, a procura, é também com ela que metaforiza a protecção e o carinho: Tudo isto, e vontade de dormir, também em pequenino, E logo uma mão de mulher pronta a fingir de asa aberta. (O Bicho Harmonioso, p. 10) Não podemos deixar ainda de sublinhar a importância das referências à asa, como imagem de agitação, que encontramos em contextos relativos aos elementos naturais _ as asas do vento ou as asas das ondas. Como sinédoque, o emprego de asa permite isolar para pôr em evidência; a sua presença, porém, visa mais a realidade

psicológica que a física. Asa é movimento ascensional e pensamento voltado para a descoberta metafísica. Por meio da asa, a linguagem do poeta ultrapassa o nível da pura matéria; liberta do peso do corpo, ela aproxima-se da purificação absoluta. Metáfora da ascensão espiritual, a asa transforma-se simbolicamente em diligência e perfeição no caminho do conhecimento. De meio de viagem real, no espaço, a asa, dotada de uma multiplicidade simbólica, tornou-se método e processo de pesquisa, num deambular do espírito pelos domínios do saber. Ela é assim recurso imagético capaz de exprimir, sugerindo, as relações entre a avidez da inteligência humana, limitada e frágil, e a vastidão das áreas do conhecimento. 4. Se, em O Verbo e a Morte (p. 42), Vitorino Nemésio confessa que «tudo é cá tempo em espaço pervertido», jogando com as suas palavras, nós podemos dizer que, na sua poesia, muito é bestiário em ideia e sentimento convertido: a asa, que é ascensão: o ovo, que é gestação, prova da vida a multipli­car-se; a larva, que é metamorfose; o animal doméstico, que é ternura; o bicho rastejante, que é símbolo do penoso desenrolar da actividade cerebral. Uma análise exaustiva do bestiário nemesiano levar-nos-ia muito longe. Ora a exiguidade da natureza deste trabalho não nos permite uma longa e minuciosa análise de tão vasto tema. Por isso, após as considerações feitas, restringir-nos-emos àquelas situações bem particularizadas, relativas apenas a três animais, que nos parecem ter sido cantados com mais amor: o cão, a cabra e o cavalo. São eles que estão no cerne da saudade, do sonho, da ternura, da dor e da aventura: nostalgia das coisas vividas na ilha natal do poeta, em contacto com uma natureza tranquila. Estes três animais são assim marcos a opor-se à passagem voraz do tempo, pela recordação que deixaram gravada no coração do poeta. São lenitivo da consciência dolorosa da fugacidade da existência; e são sobretudo a expressão de um olhar simples e afectivo que permite ao poeta materializar e tornar mais terna a sua visão do mundo. Os animais falam-lhe de saudade, porque se gravaram na memória associados a momentos de fruição, de contemplação aprazível, de profunda emoção. Mais que material linguístico, ao serviço da imaginação e do pensamento, o cão, a cabra e o cavalo são lugar de abrigo e de terna consolação.

163


Falaremos primeiramente do cão, aquele animal dócil e atento, sempre alerta, todo feito de ternura, fidelidade e dedicação, incapaz de traição, alheio ao cinismo e ignorando a hipocrisia. Vitorino Nemésio vê-o passar faceiro e remexido, como um subtil movimento:

164

O recorte de um cão, na areia, ao luar. Seu passo imprime O cuidado miúdo e honesto de passar. (Eu, Comovido a Oeste, p. 15)

Misto de quotidiano e de intelectual, de emotividade e de minúcias psicológicas, a poesia de Vitorino Nemésio é feita simultaneamente de surtos metafísicos e de observação do imediato. Um nada, um acidente na rua, e tanto basta para que surja um poema denso de sentimento. Referimo-nos ao poema «Les quatre jeunes chiens», os quatro cachorrinhos que, ao atravessarem a estrada, foram tragicamente esmagados pelas rodas da máquina conduzida pelo homem;

Mon «ami inconnu», Supervielle, écoute: Quatre petits chiens étaient morts sur la route. (La Voyelle Promise, p. 61)

É difícil traçar na poesia de Vitorino Nemésio a fronteira entre a criação pura e a evocação de experiências vividas. Porém, o tema dos quatro cãezinhos esmagados sobre o asfalto, parece-nos circunstancial, despremeditado, fruto de uma impressão súbita; algo de pequeno tornado grande pela intensidade dos sentimentos de compaixão e pela espontaneidade como exprime o seu sentir: é a vida suspensa para sempre, o parar do tempo, o inelutável:

[...] leurs ventres encore palpitant du laitage Dont il était question pour un si long voyage, Marchant du pas fané de leurs oreilles, comme ça. Tout le temps sur le fleuve que ne s’arrête pas. Eux si, ils s’arrêtent [...]

O espectáculo dos cãezinhos mortos na estrada faz surgir no poeta não só a veemência dos sentimentos, como também a consciência dos limites humanos, perante a tirania do destino e da máquina na sua velocidade incontrolável. O discurso do artista-pensador, habitualmente palpitante

de valores culturais, enternece-nos aqui pelos sintomas de humanidade que dele emanam:

Il faudrait voir ce dur macadam, ce sourire Quatre fois partagé, rançon d’un accident. Prévenir, mais comment, la pauvre mère de ces chiens?

É impressionante a insistência do poeta no facto de os cãezinhos serem quatro, o que torna o espectáculo ainda mais doloroso: quatro pequeninos seres ávidos de liberdade e movimento, a caminho da vida, e que se cruzam com a morte; quatro vidas arrefecidas, quatro inocências frustradas, quatro esperanças demolidas:

Et je ne pleurerait plus de quatre larmes sans liquide, Sur le chenil de ce monde désormais vide, vide.

Pensamento-afectividade em tensão, servido por uma retórica emergindo do coração, numa redundância que entretece a própria função poética da linguagem: «quatre petits chiens, ce sourire quatre fois partagé, quatre fois j’ai _ tourné ma tête, quatre fois je me suis demandé... Quatre car c’était quatre...». Trata-se de uma emoção simples, talvez, e primitiva, até, tornada em lágrimas: movimento de atracção desiludido, que quase foge à expressão de um pensamento logicamente discursivo, para se refugiar preferencialmente numa forma hiperbólica: Je n’en sais rien, sauf qu’iIs sont les plus beaux, les plus beaux, Les plus poilus d’oubli, les plus blanchis, les plus nourris. 5. Passemos agora à cabra. Apesar da sua capacidade de interesse e comoção, perante culturas diferentes, Vitorino Nemésio permaneceu fiel à sua condição de ilhéu, nunca se tendo desprendido das raízes açorianas. É sensível à sedução do diverso, é atento e divagante, mas, tanto nas suas reflexões como no seu divagar, as reminiscências de estadias na terra natal afloram com frequência. É o caso de uma cabrinha que pensamos ter tido na sua infância. O poema «Versos a uma cabrinha que eu tive» enterneceu de tal modo os críticos literários, que passou a ser citado


quase obsessivamente e a figurar na maioria das antologias poéticas, o que provocou até alguns protestos. São estes versos como que a narração-descrição de uma forma de comportamento e a constatação comovida de uma atitude da cabra no seu meio natural. No entanto, uma leitura rápida das seis estrofes que compõem o poema poderia induzir-nos em erro, se nos levasse a ver nesta composição apenas uma pintura da realidade exterior. Ora o que se passa é que o texto se reveste de uma certa subtileza e multiplicidade de sentidos. Situada com precisão no seu deambular gaiteiro, procurando remexidamente o seu sustento, a cabra de Vitorino Nemésio não é aquele animal berrante e turbulento, tradicionalmente referido com antipatia. Muito pelo contrário, a sua cabrinha

[...] marcha grave Como os navios entrando, Pesada dos pensamentos Da sua vida suave.

Ao pintá-la ternamente plácida, grave e suave, não estará o poeta a tentar reabilitá-la da injustiça da moral tradicional, que sempre a considerou como paradigma de mau comportamento e símbolo da condenação eterna? Ora na cabra não há violência nem insociabilidade. Se a acusam de rebelde e vadia, é porque a cabra ama a liberdade, é lúcida e inteligente, sabe evitar precipícios, parando e prosseguindo no momento próprio, ao contrário da ovelha, cuja estupidez tem sido confundida com docilidade. Isolada ou em grupo, mas sempre ávida de individualidade, a cabra encontra eco no espírito do poeta modernista, também ele rebelde, independente e aventureiro; por isso Vitorino Nemésio admira a sua vivacidade:

Sua pelerina escura Vela-a da noite sentida: Tem cada pêlo urna gota, Com passos, poeira, vida...

O orgulho da cabra é um orgulho de dignidade e alegria de viver; dinamismo que se propaga e expande através de todo o seu ser; que é uma quase consciência lúcida da existência, vivida como percurso de alternativas.

Cabrinha, focinho, badalinho, casquinhos constituem um conglomerado semântico que põe em realce a muita ternura e carinho de que o poeta estava possuído ao cantar este animal. Acusam-na também de ser gulosa e glutona, constantemente a sonhar com prados e hortas interditos, sempre pronta ao gesto de apropriação gastronómica. O que Vitorino Nemésio exprime com tanta ternura nesta quadra plena de lirismo:

Daquela flor pendente Para que o seu passo apela Parece que a semente É o badalinho dela.

Semente é vida em embrião, é a nova flor que, com a sua cor e perfume, continuará a alegrar colinas e vales, ao som do badalinho pendente do pescoço da cabra. Mas semente e flor são também alimento, nela transformado em leite:

De silêncio, silvas, fome Compõe nos úberes cheios Toda a razão do seu nome E fruto dos seus passeios

Terminada a refeição, a cabra procura um sítio elevado, de que faz seu posto de observação. Bem firme nas suas patinhas voluntariosas, olhar cismante e concentrado, aí permanece tranquila, como que a ruminar memórias: E enfim, no puro penedo De seus casquinhos tocado, Está como o ovo e a ave: Grande segredo Equilibrado! A ave e o seu ovo, como a cabra e o seu úbere, estão irmanadas no grande mistério da vida, constantemente a brotar de uma metamorfose. Tal como tirou do homem velho um homem novo (o Pão e a Culpa), assim Vitorino Nemésio tirou do bestiário tradicional, injusto e ingrato, uma cabrinha nova, toda feita de inocente alegria, reabilitando deste modo aquele ser considerado malvado e figura da condenação eterna.

165


6. Falámos do cão e da cabra. Falaremos agora do cavalo, o qual, só por si, mereceria um longo trabalho, assinalandose a sua presença frequente tanto na prosa como na poesia. No entanto, é na obra intitulada O Cavalo Encantado que a predilecção de Vitorno Nemésio por este animal é mais marcante. O cavalo é fundamentalmente um elemento biográfico ligado à memória do poeta:

166

O meu cavalo é todo de memória: Um fio de vento contra estrelas, A lanterna que sai da cocheira, como elas Do pó da noite para as nuvens altas. Nas lavas do mar doce, ele manso e a quatro Compõe comigo um largo movimento, Uma continuação de amor e de começo Entre canas de aurora e melros debicados: Ele vivo e móvel como quem é tudo. ....................................... Memória, meu selim na tarde, aonde, aonde Os loros cruzarei do muito galopar? Por muito que o poeta possa pretender libertar-se do real, sempre que escreve ele permanece inelutavelmente ligado à representação. Assim é que, ao lado do que se apresenta como um interesse exclusivo pela ideia, surge uma poesia rica em referentes do domínio zoológico, através dos quais elabora a relação entre a realidade externa e a realidade psíquica:

Do cavalo encantado o encanto é ele, Minha vara o condão que o toca e obriga.

É talvez com este animal que o poder evocativo de Vitorino Nemésio se manifesta com maior comoção perante as coisas recordadas. É que a amizade do poeta pelo animal leva-o a um tal convívio de companheirismo e intimidade que as fronteiras entre cavaleiro e cavalo são praticamente abolidas:

A minha vara é o seu sentido, A minha mão O seu descanso, O que lhe digo ao ouvido Tudo executa de manso. Então, como não estimar Cumplicidade tão doce: Este amor, este confiar Como se eu cavalo fosse?

O Olhar de Vitorino Nemésio capta o efémero, regista-o com ternura, e com ele reconstrói formas de pensamento voltadas para o eterno. O cavalo é pretexto para uma espécie de processo metapsicológico, através do qual se realizaria uma operação de autognose, pressentida neste curto poema intitulado «Regresso»:

Cavalo e cavaleiro o vento adornam Com uma pata e uma pluma; À tarde unidos tornam, Um estame de sangue numa rosa de espuma.

De crina flutuante em torvelinho, o cavalo é uma catadupa viva, confundida com o cavaleiro. Um, a pata, a massa prodigiosamente elástica de velocidade; o outro, a pluma, a sabedoria oculta e ávida de mais, accionada por forças misteriosas. Tanta pressa, afinal, para coisa nenhuma conclui o poeta como num suspiro de desencanto, após a vertigem da cumplicidade na galopagem. A alusão ao cavalo adquire na poesia de Vitorino Nemésio uma importância relevante pela sua significação no contexto, para além de uma relação com a sua vida real. Reminiscências culturais autênticas, sem dúvida, mas também visão mitificada do seu passado, carregado de experiência, de uma vida a cavalgar espaço e pensamento, como um Pégaso de atrelar:

Meu poema a cavalo é um poldro de som. Pégaso de atrelar, que narina o fareja? Vamos iguais na sela, é o mesmo o dom: Centauro, filho da inveja!

Vão «iguais na sela», sujeito e objecto, identificados no galope por espaços físicos e de pensamento, irmanados no entusiasmo da cavalgada. Animalização/personificação figurada no Centauro, numa união que é como um mergulhar panteístico no todo da natureza. Como se cavalo fosse, o poema de Vitorino Nemésio «é um poldro de som». O cavalo permite assim realizar um vaivem entre a situação particular do poeta, de vivência exterior, e a sua realidade interior, intimamente ligadas, como um idílio que deixou marcas tornadas obsessivas. A uma referência precisa ligase, por sugestão, um sentimento pessoal, um pensamento


reflexivo, enfim, um construir poético em que é difícil discernir a evocação de uma actividade especulativa:

Nem guizo de sisgola nem penacho Te alegram a cabeça, PENSAMENTO! De unidos que já fomos, vão-se abaixo O porte e o sentimento.

7. Vamos concluir. A literatura modernista não quis deixar-se dominar pela representação. No entanto, pelo seu peso de pensamento que procura concretizar, o texto continua ligado à materialidade circundante. A poesia de Vitorino Nemésio situa-se assim entre o não representável e a sua inevitável representação; e, por mais opaco que o discurso zoomorfo se nos apresente, ele tem sempre o poder de estimular a imaginação do leitor e de

nele suscitar a simpatia pelo animal, através daquela ternura verbo-conceptual que emana da sua poesia. As circunstâncias evocadas são distintas; porém a ternura é sempre a mesma: morrem os cãezinhos, a cabrinha alegra os campos, o cavalo conduz o poeta através do espaço, quer físico, quer especulativo. Com todos eles o poeta elabora um discurso zoomorfo, no qual as fronteiras entre homem e animal tendem a ser abolidas; discurso de complexa subtileza, em que o quotidiano real biográfico, rememorado, se integra no todo de um processo de pesquisa existencial. Se Vitorino Nemésio tivesse podido ler Contrabando Original, o último romance de José Martins Garcia, terse-ia deliciado certamente ao encontrar, na lista das bemaventuranças, esta, com que encerramos o nosso trabalho: «Bem-aventurados os animais porque, não tendo alma, não correm o risco de ir para o inferno». 167


168


Memórias e impressões NO 100.º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DO POETA EDGAR CARNEIRO (1913- 2013)

Anthero Monteiro*

Apostei muitas vezes com o poeta Edgar Carneiro que ele viveria até aos cem anos. Perdi a aposta por pouco, pois deixou-nos no dia 15 de Janeiro de 2011. Teria completado um século de existência no passado dia 8 de Maio de 2003 (o registo de nascimento surge, porém, com data de 12 do mesmo mês de 1913). O local do nascimento foi o número 104 da Rua Direita na cidade de Chaves. No seu livro Mar Amar (1992), que dedicaria a Espinho, cidade que adotou mais tarde, por questões profissionais, deixou o poema “Identidade”, pelo qual não renega, antes confirma, com orgulho, as suas origens na região flaviense, a que alguns autores aplicam a perífrase de “Normandia Tamegana”:

Sou de longe além dos montes Onde meu amor gerou Alguém que há-de sonhar O mesmo sonho que eu tive Pois que lá também amou E bebeu das mesmas fontes.

*Escritor e poeta natural de S. Paio de Oleiros. É autor de vários livros de poesia e de ensaio.

Sou de longe e não esqueço O «Reino» maravilhoso» Onde a urze tem conluio Com a vinha que dá sangue E o centeio que dá pão. Sou de longe mas fiquei Onde o mar é meu irmão.

Conheci primeiro a poesia de Edgar Carneiro e só depois o poeta. Ainda me lembro bem que o primeiro poema que dele li foi o que a seguir transcrevo de um bloco onde vou fazendo as minhas anotações poéticas:

Que pó se levanta no rolo do vento! São bruxas bailando, sinal agoirento. Benzei-vos, meninos, Rezai a S. Vito! Estoire o Diabo Danado e precito! Três cruzes na boca, Um sino-saimão, E sumam-se as bruxas Além do Marão.

169


170

Foi ali pelos anos oitenta que, andando pela zona norte do país como coordenador de uma experiência pedagógica, fui parar a Vila Real, tendo ficado alojado em casa de um professor da Universidade de Trás-os-Montes. Colocaram um divã na Biblioteca da residência para eu passar a noite e autorizaramme a utilizar os livros existentes. As mãos foram logo dirigidas para um pequeno volume da editora &etc, intitulado Poemas Transmontanos, datado de 1978 e da autoria de um tal Edgar Carneiro, nome que me era totalmente desconhecido. Li outros versos, transcrevi mais alguns e deixei-me entusiasmar pelo opúsculo, que li integralmente. Não esqueci mais aquele nome nem aquele livro que, um dia, o poeta iria oferecer-me, o que aconteceu, aliás, com a maior parte dos outros títulos seus de que ainda dispunha e que conservo religiosamente, alguns autografados e sempre dedicados com palavras imerecidas de estima, Edgar Carneiro gratidão e admiração. O autógrafo dos Poemas Transmontanos traz a data de 22 de abril de 1998 e foi alguns meses antes disso que comecei a sentir-me privilegiado pelo nosso convívio provocado pela abertura, na rua 62 da cidade de Espinho, da Livraria Livramar do senhor Miguel Cardoso. Aí se sedeou também a Elefante Editores do Dr. José Nunes Carneiro, e ambos se aliaram, naquela altura, para dar um novo impulso à cultura daquela cidade, que parece não ter sabido corresponder devidamente a essa dádiva. Foi ali também que nasceu a Onda Poética, iniciativa de ambos, a que me associei e que ainda hoje coordeno, pois, com a colaboração de tantos amigos que foram surgindo, mantém-se ainda viva e pujante quinze anos depois. Edgar Carneiro também fez parte daquela família e frequentou a tertúlia com a assiduidade que lhe foi permitida até aos últimos anos da sua longa vida. Foi na Livramar que o professor-poeta participou na apresentação do meu primeiro livro de poesia, num noite pluviosa de 1997. Foi extremamente simpático e benévolo com as minhas primícias literárias, pois muitos dos poemas que então editei tinham sido escritos no fervor da mocidade, ainda que publicados muito mais tarde. Era, no entanto, muito mais exigente consigo próprio, pois retirara do mercado o seu livro de estreia, intitulado Caminhos de Fogo (1934),

imitando o que já Miguel Torga fizera, alguns anos antes, também com o seu primeiro livro Ansiedade (1928). Foi Edgar Carneiro que me contou também que o mesmo Torga, que ele conheceu pessoalmente, não terá sido muito feliz nem com essa primeira obra nem com a segunda. A esta, editada em 1930, deu o título de Rampa, a que os estudantes de Coimbra acrescentavam, por brincadeira e um certo escárneo, um T inicial. Em contrapartida, também eu tive a oportunidade e o prazer de fazer a apresentação de várias das suas obras editadas posteriormente, tendo-me sido cometido por ele e pela editora o honroso trabalho de prefaciar a sua primeira Antologia Poética (1998), coletânea de poemas que ele próprio selecionou e cuja edição se inseriu na homenagem que um grupo de amigos, a Livramar e a Elefante Editores organizaram, em Espinho, no dia 8 de Maio 1998, ou seja, no seu 85.º aniversário. Fui inclusivamente a Chaves, sua terra natal, pelo menos duas vezes apresentar livros seus. Impressionou-me o facto de, passados tantos anos, continuar a ser ali um flaviense muito estimado e com um núcleo de admiradores que o consideravam alguém ilustre. Aliás, mal entrámos na cidade, um magote de senhoras já de alguma idade, atravessava a rua numa passadeira junto de uma praça. Parei o carro para saber o rumo da biblioteca municipal, e logo as senhoras, quando o viram, mesmo antes de me responderem e sem sequer saberem do evento que ali nos levava, desataram em gritos de alarde e surpresa:

Edgar Carneiro na Onda Poética


Edgar Carneiro (foto de Albano Nascimento)

- Olha o Dr. Edgar! Por aqui? Tinham sido alunas dele e não o tinham esquecido. Era bem visível a estima recíproca que denotava aquele encontro. Eu dizia-lhe sempre que a obra de um autor como ele devia ser apresentada por um poeta mais conceituado e até lhe sugeri alguns, mas ele tornava-me por resposta que eu dava bem conta do recado. Considerou-me sempre, desde o início, como um condiscípulo das letras, o que se deve, não aos méritos deste seu eterno amigo e devedor, mas muito mais à sua finura de trato com toda a gente que dele se aproximava e à elegância moral que cultivou e fez dele um gentleman e um poeta reverenciado por todos. Li toda a sua obra, acompanhei de muito perto tudo o que produziu e tudo o que dele disseram os mais e os menos entendidos.Todos estes privilégios não conseguirão apagar a dívida de gratidão que tenho para com ele nem este sentimento de respeito e de humildade para com o mestre, com quem me foi dado partilhar e aprender tanta coisa sobre este nosso interesse comum – essa matéria algo vaporosa e familiar aos deuses, que é a Poesia. Muitas vezes fui a sua casa buscá-lo para a tertúlia. Ajudava-o a vestir o sobretudo, procurava-lhe a bengala e dava-lhe o meu braço para descer com mais segurança a escada do seu primeiro andar, ali nas imediações da igreja matriz e dos bombeiros voluntários, no mesmo edifício onde residiu igualmente, num andar superior, o também professor e escritor José Marmelo e Silva, que hoje empresta o seu nome

à Biblioteca Municipal local e que foi autor de livros inovadores e polémicos, como as novelas Sedução e Adolescente Agrilhoado. Levava-o no meu carro, mas ainda restava caminhar mais um pouco para chegar ao Bar Dominó, no Casino, para onde, após o encerramento da Livramar, passou a Onda Poética. Ao atravessar a linha do comboio é que eu sentia mais profundamente a responsabilidade de suportar no meu braço o seu, cada vez mais periclitante, sobretudo porque também a vista lhe era de pouca serventia. Na tertúlia, quando nem as espessas lentes que usava eram suficientes para ler sem sobressaltos, emprestava-lhe eu a voz para dar a conhecer os versos que levava sempre dobrados num bolso interior e sempre numa folha A5, porque os seus poemas nunca eram extensos e ele sabia que era considerado pelos entendidos como um mestre da síntese. Ele próprio me mostrou o que dele consta no vol. IV do Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, organizado pelo Instituto do Livro e das Bibliotecas. Luís Miranda Rocha fala da sua “economia discursiva”, para além de outras virtudes como “a agilidade estilística” e o “domínio de meios expressivos”. Mostrou-me ainda o que dele disse o crítico literário Ernesto Rodrigues, reputando-o «como o nosso melhor artista em verso curto». E ele prezava muito essa “poética da concisão” que é, afinal, a difícil arte de escrever em exiguidade e em luminescência. Várias vezes, trazia consigo um pequeno dossiê também em formato A5, que capeava uma nova coletânea de versos dactilografados na sua máquina de escrever, que, a avaliar por algumas letras menos nítidas, deveria ter algumas teclas já gastas ou por limpar. Pedia, nessas alturas, a minha opinião sobre os seus poemas, o que não era tarefa incomportável, pois conseguia reunir uma série de ideias bem concatenadas e justificadas numa, duas ou três estrofes que, no total, andavam entre os 8 e os 25 versos, mas na maior parte dos casos, rondavam entre os 10 e os 14. Isso aconteceu sempre, depois que nos conhecemos, antes da publicação dos últimos 5 livros. Foi uma fase em que ele dispunha de muito tempo para a escrita e para se sentar nas mesas do Café Palácio, no tempo mais frio, ou na esplanada dos cafés à beira-mar, quando o tempo amornava e o flagelo do norte declarava uma ou outra trégua. Aí idealizava ou compunha os seus versos ou – o que era também habitual – conversava com alguns amigos e amigas.

171


172

O meu tempo disponível era, porém, muito mais diminuto, mas, por vezes, lá se conseguia um encontro em que trocávamos ideias. Algumas vezes jantámos juntos em bons restaurantes de Espinho e pudemos ir conversando sobre aquilo que nos unia e fortalecia a nossa amizade e o meu profundo respeito. Tive muitas vezes o privilégio de ser o primeiro a ler os seus versos, acabadinhos de sair do laborioso forno da imaginação. Mostrava-me mais um ou dois poemas, falávamos muito de poesia e de poetas, de livros que nos influenciaram (ele mencionava sempre uma obra de Raul Brandão, o Húmus, que não era propriamente poesia, mas que ele achava profundamente poética). Abordávamos as técnicas da escrita, os segredos da metáfora e os da brevidade. A política era também assunto frequente de conversa. Discordávamos ligeiramente, mas acabávamos sempre na harmonia do essencial, sobretudo quanto aos direitos humanos e à imprescindibilidade da utopia na busca da mudança para um mundo sempre menos inóspito. Era um optimista, que saboreou com prazer aquilo a que chamaria Vida Plena, expressão que usou como título de um dos seus livros, publicado em 1991, onde se insere o poema seguinte que ilustra, a par de muitos outros, essa sua faceta:

Enquanto o Sol abrir e a flor desabrochar; enquanto a aurora for irmã do mar; enquanto o fruto der a cor ao sangue; enquanto o vento é sal e a praia é grande; enquanto o véu subir e só mostrar beleza; enquanto tudo isto for certeza; enquanto tudo isto acontecer, então a noite olvide o seu negrume e o galo cante o gosto de viver.

Anthero Monteiro com Edgar Carneiro

Sofreu, no entanto, rudes golpes, nos últimos anos, com a morte da esposa e, mais tarde, com o desaparecimento trágico e repentino de um neto, num acidente de motociclo, e de um filho, o poeta e jornalista Eduardo Guerra Carneiro, que “se atirou do céu” (como escreveu Baptista Bastos) no dia 2 de Janeiro de 2004, poucas horas depois de Edgar Carneiro ter estado em casa dele em Lisboa, como acontecia muitas vezes nas férias do Natal ou da Páscoa. Antes do desaparecimento do nosso convívio de Edgar Carneiro, foi a vez de nos deixar, em Julho de 2008, o irmão, Dr. Mário Carneiro, diretor clínico das Caldas de Chaves, nas imediações das quais fora descerrado, em 1995, um busto que perpetua a sua obra e o seu nome como um símbolo daquela cidade. Outro nome que ganhou ali notoriedade e que também tenho o prazer de conhecer é o neto do poeta, Sérgio Fiadeiro Guerra Carneiro, arqueólogo da Câmara Municipal e principal responsável pela descoberta dos balneários termais locais do tempo do império romano e pelo seu reconhecimento como monumento nacional. Nos anos derradeiros da sua vida, as saídas tornaram-se menos frequentes, mas, enquanto pôde, não deixava de ir tomar o seu café ou o seu lanche ao Mon Chéri, que lhe ficava mais perto. Foi local onde me encontrei com ele apenas duas ou três vezes, mais para lhe levar a revista Villa da Feira, onde foram inseridos vários poemas seus, a meu pedido. Outras vezes, deixava-lha em casa na caixa do correio, porque nunca sabia se iria incomodar. Por isso, quando subia para estar um pouco com ele, ligava-lhe sempre previamente.


173

Edgar Carneiro com o neto Sérgio Carneiro e o então presidente da Câmara de Espinho, no dia 16/6/2009, em que foi distinguido com a medalha de honra da cidade e o título de cidadão de Espinho.

Depois que enviuvou, sentia-se muito só, tendo tido, no entanto, a preciosa ajuda de uma jovem senhora, extremamente simpática e dedicada, que lhe tratava do essencial durante o dia. Continuava, porém a escrever os seus poemas, dedicando alguns aos amigos e amigas. Uma senhora, também viúva, mas ainda muito elegante e vistosa, que fazia parte do seu grupo de café, mostrou-me um ou outro texto do poeta, de teor claramente galanteador.

A última vez que estive em sua casa foi quando senti que era bem palpável a amargura que o habitava, de tão sitiado pela solidão e já de posse de uma certeza, mais do que pressentimento, de que dona morte lhe rondava a casa. No dia em que eu e muitos amigos, sobretudo os da Onda Poética, acompanhámos o seu corpo ao cemitério do Prado do Repouso, onde iria ser incinerado, tive o privilégio de coordenar a leitura de alguns poemas seus numa última homenagem. Depois fecharam o caixão que entrou na porta


Edgar Carneiro exibindo as condecorações 174

definitiva, de onde sairia em cinzas para adicionar ao aroma das rosas daquele local fronteiro ao rio, com Quebrantões e o Areinho do outro lado. A saída do Prado do Repouso fi-la em companhia do neto, Dr. Sérgio Carneiro, e da Dr. Manuela Aguiar, então vereadora da Cultura de Espinho, ficando a saber por ambos que iriam tratar da publicação da obra completa do poeta. Com a posterior substituição na vereação da Dra. Manuela Aguiar e com os problemas provenientes da situação de crise, sem que qualquer indício aponte para o cumprimento deste justo desígnio, temo que passe em branco este centenário do nascimento do poeta. Espinho soube, em vida, reconhecer-lhe os méritos. Distinguido com a medalha de mérito do município espinhense, foi de novo agraciado, em 16 de Junho de 2009, com a medalha de honra da cidade e o título de cidadão de Espinho, tendo ficado exarado na respetiva ata da Câmara Municipal que “Edgar Carneiro é um dos símbolos mais paradigmáticos da cultura espinhense, o que encontra tradução e reconhecimento nos onze livros de poesia editados, que mereceram a atenção e o aplauso generalizado de abalizados críticos literários do nosso país. A sua vasta obra, que tanto honra todos os concidadãos de Espinho, é, de resto, merecedora dos maiores créditos e largamente apreciada no livro Verso e Prosa [de Novecentos] de Ernesto Rodrigues.” No mesmo ano de 2009, exatamente a 3 de Dezembro, também a Universidade Sénior de Espinho quis homenageá-lo,

promovendo a publicação do seu último livro – Périplo –, afinal o 14.º, se contabilizarmos a obra de estreia (Caminhos de Fogo, que, como já referimos, repudiou por ser livro da juventude) e também a Antologia Poética de 1998, da Elefante Editores. Périplo, como o próprio nome sugere, é o relato da sua viagem pelo mundo e, representa, assim, um verdadeiro testamento poético à sua cidade natal, à cidade de Espinho que adotou como sua, ao seu país e à humanidade, cujas grandes causas, na sua cidadania sem fronteiras, abraçou de modo apaixonado e ativo. A Onda Poética, a que pertenceu, várias vezes escolheu a sua obra como tema do mês. Na sessão logo posterior à sua morte, em 10 de Fevereiro de 2011, inspirou-se no título deste seu último livro para formular o respetivo tema: “Périplo na Obra de Edgar Carneiro”. Ao centro do cenário, a cadeira em que deveria estar sentado, se fosse vivo, acabou por tornálo bem presente aos olhos de todos: em sua vez, estavam lá “sentados” os seus livros, os seus graduadíssimos óculos, o seu boné e a bengala que o ajudou a fazer o seu périplo, como diz num poema:

É ela que retém o meu olhar, guia fiel dos passos que me levam aonde os que eu mais der também vai dar.

No centro de tudo, ereta como uma ideia-força irrefragável, a perfeição de uma rosa vermelha espargindo o seu aroma único. Talvez a mesma rosa de que fala Manuel Alegre na Praça da Canção (1965), também ele nascido no mesmo mês e dia em que o nascimento de Edgar Carneiro ficou registado: Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo. E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra um ramo de rosas vermelhas, sem palavras.


175

Uma rosa que lhe levou a poeta Manuela Correia, representando a Onda Poética (16/6/2009).

Edgar Carneiro continua connosco. No nosso périplo pessoal, viajam ao nosso lado os seus livros e os seus poemas. Outros recordá-lo-ão como professor e pedagogo que orientou o rumo de muitas vidas. Nós continuaremos a dizer os seus mais belos poemas, como aquele que se intitula “Pedagogia” e diz assim:

Deram-lhe livros: rasgou, Porque não sabia ler; Deram-lhe penas: quebrou, Por não saber escrever; Como terras não teria, Bois e cangas recusou; Outras artes não sabia Ou, se sabia, esqueceu. Deram-lhe um cinto de balas E uma espingarda: matou! Foi tudo quanto aprendeu. Amar, ninguém lhe ensinou.

(in Faca no Pão, 1981)

Ou aqueloutro, “Razão de Amar”, um modelo do modo como pode a beleza aliar-se à simplicidade para perfazer um todo inimitável:

Por amarmos os pássaros voando E tudo quanto é livre e natural;

Por amarmos os rios sem barreiras E o mar que banha a praia por igual;

Por amarmos o sol e o girassol;

Por amarmos a estrela mais distante E o seu reflexo de ouro numa flor;

Por amarmos a toda a humanidade É que nós nos amamos, meu amor.

(in Jogos de Amar, 1983)


Os que amam a liberdade e, como o poeta, alguma coisa terão feito por ela, amarão certamente também aqueles versos premonitórios, escritos numa altura em que, para falar de valores tão universais como esse, ainda era preciso recorrer a linguagens cifradas e enigmáticas, e, por isso, aqui essa palavra proibida “liberdade” foi substituída pela palavra “laranjas”:

176 Edgar Carneiro no Mon Chéri com o amigo Fernando Ribeiro

São laranjas que trazem os navios. Alinham-se no cais. Circulam na cidade

São esta cor das ruas e dos montes inundam a manhã de claridade

Ladeiam os caminhos como quem volta aos ramos.

Em cada mão acendem a promessa tão viva que magoa nos sentidos

E túrgidas se mostram. Ardem. Pulsam. No coração dos homens, redondas, como um gládio, amadurecem.

(in Tempo de Guerra, 1980)

A Liberdade ocupa, assim, um lugar eminente na sua poesia e no seu pensamento. Mas há outros valores – a Verdade, a Humanidade, o Amor, a Natureza – que constam de inesquecíveis poemas seus, que se lhe associam para estabelecer um projeto de vida, aquilo a que, nestes versos, chama o seu “Ideário”:

Edgar Carneiro no Mon Chéri, em Espinho (foto de Fernando Ribeiro).

Dizer sim quando podemos Dizê-lo à nossa vontade;

Dizer sim quando sabemos, E sabemos?, que é verdade;

Dizer sim a quanto, humano, For sinónimo de amor;


Dizer sim à Natureza Que dá fruto e dá flor;

Dizer sim ao Sol que brilha No meio da confusão;

Dizer sim à Liberdade, A tudo mais dizer não.

(in Vida Plena, 1991)

Poeta da brevidade e da concisão, como explicámos, nunca será demais recordar mais um exemplo de quanto Edgar Carneiro seguia aquela definição do grande poeta americano Ezra Pound, segundo o qual «a poesia é a mais condensada forma de expressão»: apesar da pequena dimensão do poema e do seu verso curto, trata-se, porventura, do mais belo e sugestivo texto poético da sua última coletânea – “Beijo”:

Convite para a apresentação do livro Périplo em Espinho

Mais que um sorriso um enleio um suspiro um desejo; mais que um impulso um intento um requebro um quebranto; mais do que um verbo, aquele beijo nem curto nem seco nem santo.

(in Périplo, 2009)

A sua poesia solar, diuturna é o espelho de uma visão positiva da vida de quem “queima a tristeza na labareda viva da alegria”. Outro belo poema que dá conta desta busca permanente do júbilo para sustentar a estrutura dos seus versos é aquele que intitula “Volúpia”, como se o segredo da sua longevidade residisse em levar essa procura muito para além da exultação:

Amor até ao fim, Ao último desmaio;

Quando o grito For lume nos teus lábios;

Quando a tensão ficar Metal ardendo;

Quando a luz dos meus olhos Incendiar de novo O teu cabelo;

Quando extinto O calor da labareda,

A cinza, sobre nós, For um rosal aceso.

(in Jogos de Amar, 1983)

177


Apresentação do livro Périplo em Chaves, com o presidente da Câmara local ao centro e o apresentador Anthero Monteiro do outro lado (foto de Albano Nascimento)

Edgar Carneiro agradecendo na apresentação do seu livro (foto de Albano Nascimento)

178

Outro momento da cerimónia (foto de Albano Nascimento)

Mais um momento da cerimónia. (foto de Albano Nascimento)

É impossível dar conta de todos os poemas que iremos recordar pela vida fora, se mais alguns anos nos forem concedidos, não como mera homenagem a este poeta amigo com quem convivemos, mas como homenagem à própria poesia que habita o mundo e tende a torná-lo mais belo e mais habitável. Aconteça o que acontecer, importa continuar a abrir a porta a poemas como estes e deixá-los entrar na nossa vida, como entraram na vida de Edgar Carneiro, todos os dias e em todas as situações:


Para afogar as mágoas canto; para afastar o tédio canto; se estou dorido canto; se fico tenso, árido inseguro com medo à morte canto. Canto, canto, canto e não deploro. Porque estou triste canto, se fico alegre choro. (in Périplo, 2009)

Homenagem póstuma da Onda Poética em Fevereiro de 2010. Em vez do poeta, alguns dos seus objetos pessoais (foto de Anaas).

179


180


Foto de Maria da Graçaß

QUE RETRATO PARA FERNANDO PESSOA?

Celestino Portela*

Nos anos oitenta do século passado a questão foi colocada e mereceu opinião de ilustres pessoanos e a honra de duas exposições, em Lisboa e São Paulo. Em vida raros amigos o retrataram. Adolfo Rodrigues Castañé (1887-1978) um quadro a óleo pintado em 1912 que hoje se encontra na Casa Fernando Pessoa, Rua Coelho da Rocha, 16, em Lisboa. Alberto Cutileiro (1915-2003), desenhou Pessoa em S. Pedro de Alcântara em 4-7-1934; no Café Martinho da Arcada em Agosto de 1934; em 17-7-1934, no Bric a Brac de Eliezer Kamenezky, autor de um livro de poemas Alma Errante, que Fernando Pessoa prefaciou, e no Café Martinho de Arcada em Janeiro de 1935. Almada Negreiros (1893-1970) executou um desenho em 30-11-1935, dia da morte de Fernando Pessoa, por ventura o mais conhecido, o mais divulgado e celebrizado. Traços simples de grande artista, chapéu, óculos, bigode e laço e eis Fernando Pessoa para a imortalidade. No dia da morte Fernando Pessoa renascia. A partir daí a iconografia pessoana não mais parou de crescer, por todo o mundo artistas plásticos o pintam, desenham, caricaturam, de tal forma que parece tarefa impossível inventariar todos os rostos que lhe foram sendo atribuídos. *Decano dos Advogados da Comarca da Feira.

Porém o problema que levantamos torna-se delicado ao pensarmos. Fernando Pessoa’s quem eram? Ele próprio na importante carta de 13-01-1935 a Adolfo Casais Monteiro (1908-1972), sobre a génese dos heterónimos, adensa o mistério. “Caeiro era de estatura média e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era, Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1.75m de altura mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis, Reis de um vago moreno mate, Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo porém liso e normalmente apartado ao lado, monóculo.(1) Perante este quadro que o próprio Fernando Pessoa nos pintou é impossível um retrato que nos apresente o desdobramento do eu, o pluralismo dos seus heterónimos, tão diferentes na obra que criaram como nos próprios traços físicos que os caracterizam. Caeiro, Reis e Campos foram representados individualmente por Almada na fachada da Faculdade de Letras de Lisboa. Aqueles artistas que quiseram representar “a coterie inexistente”, ou fizeram uma sucessão de rostos, ou figuras sem rosto. Cruz Malpique definiu Pessoa como Homem uno e múltiplo. (2)

181


182

Mais um enigma que Pessoa nos deixou e, com o qual, ao ver tantas representações do seu quadro de despersonalização ou desdobramento de personalidade, ou drama em gente, ou o que os sábios e eruditos vão dissertando, se deve divertir ao ver os outros em “flagrante delírio”. Por mim fico deslumbrado ao ver a criatividade póstuma de Almada Negreiros, Júlio Pomar, Costa Pinheiro, Mário Botas, Miguel Yeco, Alfredo Luz e os de matriz feirense que também a Pessoa se dedicaram, com traços que vincam a sua sensibilidade estética e personalidade de artistas que são. Aquando da Exposição de 1988, no prefácio que escreveu, José Sommer Ribeiro, interrogou: ”aliás será possível haver Um Rosto para Pessoa?”(3) Conseguir representar o múltiplo que Fernando Pessoa criou, um rosto apresentar todos os Eus em que se desdobrou, com características pessoais tão diversas, é impossível, julgamos. No mesmo catálogo um texto de grande beleza, assinado por José Saramago, que nos diz: …”Da impossibilidade deste Retrato Fernando Pessoa, provavelmente, nem tanto. Já não lhe bastava ser ao mesmo tempo Caeiro e Reis, cumulativamente Campos e Soares. Agora que não é poeta, mas pintor, e vai fazer o seu auto-retrato, que rosto pintará, com que nome assinará o quadro, no canto esquerdo dele, ou direito, porque toda a pintura é espelho, de quê, de quem, para que? O braço levanta-se enfim, a mão segura uma pequena haste de madeira, de longe diríamos que é pincel, mas há motivos para suspeitar, nele não se transporta uma cor verde, ou azul, ou amarela, nenhuma cor se vê, nenhuma tinta, este é o negro absoluto com que Fernando Pessoa, por suas próprias mãos, se tornará invisível.” É a impossibilidade deste retrato que José Saramago (1922-2010), sublinha no próprio título que deu à sua intervenção nesse catálogo. No momento em que Joaquim Carneiro nos apresenta um estudo sobre a evocação de Fernando Pessoa em Santa Maria da Feira merece relevo a escultura de Aureliano Lima (19161984) que se ergue na Praça Fernando Pessoa, à ilharga da Escola Preparatória Fernando Pessoa. Inspirado na “unidade, diversidade e pluralidade pessoanas”, espelha bem toda a heteronímia dos vários Eus criados e na própria obra que criaram.

A intenção do artista foi criar uma obra que provocasse a pergunta: onde está Fernando Pessoa? A colocação de um busto, com chapéu, óculos, bigode e laço representaria o Fernando António Nogueira Pessoa, o cidadão que “foi baptizado solenemente, no dia 21 de Julho de 1888, na Igreja Paroquial de Nossa Senhora dos Mártires, da cidade de Lisboa, a quem foi dado o nome de Fernando e que nasceu nesta freguesia pelas três horas e vinte minutos da tarde do dia treze de Junho do próximo passado mês de Junho”, como consta da sua certidão de nascimento, e que foi portador do Bilhete de Identidade nº 289594 do Arquivo de Identificação, emitido em Lisboa, 28 de Agosto de 1928 (e oito) A representação do busto da figura humana cria uma habituação, já nele nem reparando os passantes. A escultura de Aureliano Lima na sua imponência de cinco metros de altura, atrai, questiona e obriga à reflexão. “Não cinzelou o busto de Fernando Pessoa, modo de homenagear e perpetuar geralmente utilizado, mas, motivado pelo conhecimento minucioso que tinha do Poeta, da sua personalidade, da totalidade da sua alma, quis transmitir-nos tudo o que dele possuía para o eternizar. “O espírito e o génio do artista não se cansaram de dar força a mãos firmes que se dedicaram ao trabalho com generosidade e profunda devoção para poder produzir tão majestoso monumento. “Procurando interpretar o pensamento do artista escultor e poeta Aureliano Lima, vou tentar fazer a leitura do dito monumento, servindo-me do seu próprio testemunho. É constituído por um corpo com cinco metros de altura, em bronze, e com uma base circular de um metro e vinte e cinco centímetros de diâmetro. Este corpo representa a pluralidade, diversidade e unidade pessoanas, erguendo-se em planos cada vez mais altos e apontando para os píncaros da imortalidade. “O corpo em bronze assenta sobre um hexágono de granito, com a altura de um metro e meio, em cujas faces estão inscritos vários pensamentos pessoanos:

- “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce” Fernando Pessoa - “Minha pátria é a língua portuguesa” Bernardo Soares - “Só na ilusão da liberdade a liberdade existe” Ricardo Reis


Senhor Presidente da República António Ramalho Eanes se dignou presidir. M. Lucília Lencart, em brilhante, cuidada e fundamentada intervenção no salão Nobre da Câmara Municipal de Santa Maria da Feira, no dia 11/6/1988, disse: “Honra ao escultor Aureliano Lima, a quem acima cito. “Ele soube interpretar em seu desenho e deixou que seu cinzel legasse à posteridade Fernando Pessoa, não em efígie que em sua simplicidade talvez ele não aprovasse, mas fazendo-o surgir como ideia de ideias que se harmonizam e são deslumbramento entre a luz e a sombra.(6) Santa Maria da Feira pode, e deve, orgulhar-se de possuir não só o 1º Monumento de Homenagem a Fernando Pessoa mas também a mais significativa representação artística da pluralidade heteronímica do imortal Poeta. Na evocação do 125º aniversário do nascimento de Fernando Pessoa é um dever ir à Praça que tem o seu nome, e onde se encontra o Monumento. E aí parar, olhar, contemplar, imaginar aquele Eu, criador de tantos outros Eus, que nos legaram uma obra literária imperecível. Se possível, levar Poesias de Álvaro de Campos e ler Aniversário……. Notas Rosto do Catálogo. Nota 3

1 – Fernando Pessoa, Correspondência 1923 1935. Obras de Fernando

Pessoa / 7 Assírio e Alvim, 1ª edição, Setembro 1999, Edição de Manuela Parreira da Silva.

- Amanhã é dos loucos de hoje Álvaro de Campos - O único sentido íntimo das coisas é elas não terem sentido íntimo nenhum. Alberto Caeiro

2 – Cruz Malpique, Artes e Letras, de 04-12-1985.

3 – Um Rosto para Fernando Pessoa catálogo da Exposição realizada

no Espaço Cultural Citibank, Av. Paulista, São Paulo, Brasil, Abril/Maio, 1988 Edição Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa. 1988.

Na face frontal, a inscrição: A FERNANDO PESSOA 13/6/1888 30/11/1935

Ao redor do hexágono fica uma plataforma que permite o circular de pessoas à volta do Monumento(4) disse magistralmente Aurélio Pinheiro na sua intervenção na sessão solene de inauguração do 1º Monumento Nacional de Homenagem a Fernando Pessoa, na Escola Preparatória Dr. Henrique Veiga de Macedo(5), a que sua Excelência o

4 – Revista Villa da Feira Terra de Santa Maria, Ano IV, número 11,

Outubro 2005, pagina 27 e seguintes. 5 – Por despacho nº 53/SERE/93 de 05-05-1993, a Escola Preparatória

do Dr. Veiga de Macedo passou a denominar-se Escola Preparatória Fernando Pessoa.

6 – Raízes de Fernando Pessoa em Terras de Santa Maria, M. Lucília

Lencart MCMLXXXVIII. Edição de Soberania do Povo S.A. Águeda.

183


184


POSTAIS DO CONCELHO DA FEIRA

Ceomar Tranquilo*

Postais do Concelho da Feira D – Comerciais. Estabelecimentos de Ensino.

185

135 - Serviço da Republica - Escola Preparatória do Dr.Veiga de Macedo. Vila da Feira. Isento de Franquia. Portaria nº. 2295, de 26/02/1920 Correspondência com a família do aluno. Exmo.Sr.

* Caminheiro por feiras, lojas e mercados.


136 - Serviço da Republica. Escola Preparatória do Dr.Veiga de Macedo. Isento de Franquia- Art. 1º. § único do Dec. 29708 de 19/06/1939. Exmo.Sr. Encarregado de Educação.

186

136-A- Reverso do mesmo postal. Aproveitamento do aluno nº. 267. O Diretor de Turma - Hamilton Lebreiro.


187

Liga

dos Amigos da Feira


188


189


190


191


192


193


194


195


196

Liga

dos Amigos da Feira


197

À Venda na Livraria Vício das Letras


198

À Venda na Livraria Vício das Letras


199


200


201


202


203


204


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.