Bellzebuuu - número 1

Page 1

bellzebuuu nº 1 – agosto 2017/fevereiro 2019 Belo Horizonte/MG

eu não entro não tenho

na igreja religião não


bellzebuuu uuu nº 1 – agosto 2017/fevereiro 2019 Belo Horizonte/MG

Organizadores Adriane Garcia Sérgio Fantini

Vida

Secreta PUBLICAÇÕES cebook.com/le iavidasecreta


colaboradores © Ricardo Laf © Ricardo Laf © líria porto © líria porto

[6] [8]

© Tadeu Sarmento © Tadeu Sarmento

[9]

© Manoel Herzog © Manoel Herzog

[10]

© Rodrigo Teixeira © Rodrigo Teixeira

[12]

© Carlos Moreira © Carlos Moreira

[15]

© Caio Junqueira Maciel © Caio Junqueira Maciel

[16]

© Micheliny Verunshck © Micheliny Verunshck © Ernani Ssó © Ernani Ssó © Simone Teodoro © Simone Teodoro

[18]

expediente

[19] [21]

Idealização e organização Adriane Garcia Sérgio Fantini Capa e diagramação Vida Secreta Publicações/ João Gomes © Ryan Mcginley


siga aquela igreja! Um fanzine não é uma publicação comercial. É uma reunião de amigos para detonar seu amor. Ou seu ódio. Fanzines são anacrônicos, mas os dias de hoje estão mais para o passado. Talvez reinauguremos a Idade Média. No Brasil, o Estado nunca foi laico, assim como política não é para leigos. Em nossas cédulas, a Casa da Moeda imprime, ad aeternum: “Deus seja louvado”. Hoje vemos a religião associada ao crime, lavagem de dinheiro, extorsão, afora os expedientes imorais de convencimento para a conversão, que necessitam da miséria, da tragédia, da esperança jamais realizada, da educação não para formar o cidadão, mas para formar a ovelha.

4


Há um plano claro das igrejas neopentecostais de tomar o poder político em nosso país. Entre proibições de pesquisas de célulastronco e a intromissão da religião em assuntos que dizem respeito aos corpos individuais, a misoginia, a homofobia, a intolerância como lei. Triste ruído: o silêncio dos templos é sepulcral. Adriane Garcia & Sérgio Fantini (este zine foi distribuído impresso, em agosto de 2017)

5


visitantes Tem cerca de dois meses que me mudei de modo definitivo do lugar onde vivi durante praticamente toda a vida. Assim que me estabeleci, tocaram a campainha, em cinco ocasiões, uma senhora e um senhor que se apresentaram como Testemunhas de Jeová. Em quatro circunstâncias não pude escutar o que tinham a dizer e pedi desculpas por isso. Há duas semanas, o mesmo casal, com revistas que têm na capa girafas, tigres, hipopótamos, ornitorrincos, zebras, cachoeiras e pessoas brancas felizes interagindo com essa natureza paradisíaca, perguntou-me porque estava com resistência em recebê-los. Disse que não havia resistência alguma quanto a isso e a impossibilidade real era não poder conversar naqueles momentos. Chamei-os para entrar, tomar um café e prosear. Mostraram-me aquela mesma revista e perguntaram se estava preparado para o fim do mundo. Imaginei que, para perguntarem, eles estavam preparados, então reproduzi a mesma pergunta a eles e com olhos espantados me disseram que Deus prepararia tudo. Tomei a liberdade de emendar a pergunta que se Deus prepararia tudo, porque deveria estar preparado sendo tão insignificante diante de Deus. Olharam um para o outro e me disseram que estava a caminho da revelação e da descoberta. Insisti e perguntei de que adiantaria a revelação e a descoberta, se tudo iria acabar.

6


Deram-me outra revista, dessa vez com pessoas brancas, asiáticas, jacarés e macacos. Virei a primeira página e logo havia um texto descrevendo que o fim já está acontecendo. Reiterei ao casal sobre o desconforto de continuar a ler a revista se o fim já está acontecendo, inclusive durante a leitura dela. Disseram-me que há mistérios que só Deus entende. Poxa, se só Deus entende, por que vieram justamente aqui tratar com um merda terreno que procura apenas andar por aí tateando precariamente isso que chamam de vida? O café ficou frio. Nunca mais voltaram. Ricardo Laf, Belo Horizonte/MG

11 9 7


fanáticos em nome de deus faz-se o diabo guerras violência assassinatos lavagem cerebral bater bater bater – malhar em ferro forjar verdades com a matéria da enganação

nua e crua para se vestir a mentira com a pele da verdade (a mentira é balofa as verdades são murchas) faz-se necessário esticar a malha (deformar o que é justo)

pastoreio ora uma coisa ora outra orações subordinadas ao pagamento do dízimo compra-se o paraíso – o inferno é de graça líria porto, Araxá/MG

8


Quando, diante de Pilatos, Jesus se negou a afirmar que era Rei de M Roma, confessando, ao contrário, que seu reino não era desse mundo, queria dizer alguma coisa. Ou quando expulsou os mercadores do templo, gritando: “A César o que é de César”, também. Ora, tudo o que é Estado é de César, de modo que Jesus quis dar um recado às gerações futuras: “não quero uma bancada evangélica para legislar sobre um reino que não me pertence, #prontofalei”. A ética cristã é pessoal, e quando se desdobra em direção ao outro é só para aceitá-lo, nunca para atirar a primeira pedra. Nunca importou a Jesus a orientação sexual de alguém, o avanço da ciência ou a legalização do aborto. Para os neuróticos que desejam dar pitaco na vida alheia, além de um bom jato d’água que os acalme, poderíamos jogar com o seguinte argumento: Jesus disse “vinde a mim todos os que estão cansados” e não colocou nota de rodapé para excetuar nenhum grupo. Jesus era legal, era inclusivo. Quem quis tornar o cristianismo religião oficial do Estado foi Paulo, que não tinha nada a ver com Cristo (ele sequer o conheceu pessoalmente, droga) e detestava mulheres. Mas não Jesus, que gostava de estar na companhia de mulheres, crianças, mendigos, epiléticos e aloprados em geral. Esse plano de dominação evangélica não é cristão, mas demoníaco. A teologia da prosperidade promete ao crente as mesmas coisas que Satã prometeu (com muito mais charme) a Jesus durante as tentações do deserto: emprego, casa própria com piscina e land rover. Tadeu Sarmento, Belo Horizonte/MG

9


discurso para deputado evangélico O pastor no Estado de Pernambuco Em discurso forte e nada prolixo Defende com empenho o crucifixo E promete mandar meter trabuco No cu de quem se atreva. Banca o truco: “Viado clerical? Existe disso? Enfie o que quiser no cu, se é fixo, Melhor gozar com cu que ser eunuco, Mas não meta Jesus neste enxovalho, Cambada de viado salafrário! Senão eu chamo o Bispo Rodovalho, Chamo o Conte Lopes e o Bolsonaro, Chamo o exército, a polícia e o caralho, E o vosso cu varado em bala eu varo!” Manoel Herzog, Santos/SP

10


eu n達o entro na igreja n達o tenho religi達o n達o


escolhendo satanás (...) No fim, os inimigos do cristianismo, os inimigos de Deus, são os demônios e os demonizados. Candomblés, pagãos, homens e mulheres que têm controle sobre a própria sexualidade, pessoas que lutam por uma liberdade estética e que, por isso, estão “fugindo” do amor de Deus. E isso é que faz de alguém uma figura satânica e satanista, ser apaixonado pelas manifestações das outras culturas, pela diversidade de identidades que foram se tornando demoníacas pela mão da religião cristã. Logo, não me importo se o Deus “essencial” está ou não nos aguardando e é adorado nos corações de todos que querem fazer o bem e serem justos. Mas sou um inimigo ferrenho desse outro Deus, que tem poderes políticos e que organiza as populações em chacinas e ordens de preconceito. Esse Deus que nega direitos, que nega verdades, que impossibilita a vida feliz e sem culpa. Esse conceito mesquinho de Deus, patriarcal, racista, homofóbico, neoliberal e consumista, que é o conceito oficial, defendido por todas as vertentes cristãs me transformou no satanista que eu orgulhosamente sou.

12


Escolhi Satanás porque, com o mínimo de conhecimento da história, ser cristão é uma ação antiética. Com o mínimo de conhecimento do cristianismo, ser cristão é uma maldade e defender a Deus, um ato de crueldade com o próximo. E, culturalmente, ser satanista é o mesmo que respeitar profundamente uma pluralidade de experiências religiosas que os seguidores de Javé nos negam e escondem do máximo de pessoas que podem. Rodrigo Teixeira, Belo Horizonte/MG

13


eu n達o entro na igreja n達o tenho religi達o n達o


o senhor é meu pastor não me faltará capim ainda que eu caminhe pelo vale do silício seja de silêncio minha fala e me retalhe o falo e a alma faz-me repasto de vermes guia-me para dentro da tempestade minha dor é seu consolo unge minha cabeça com fogo para que a treva se reconheça e o cálice da ira se aqueça o senhor habitará na minha casca por toda a eternidade nada O fartará. Carlos Moreira, Porto Velho/Guaporé

15


diário de Braga (...) Mas o bêbado berrava que um personagem de Eça de Queirós estava certo ao dizer que Jerusalém era pior do que Braga, “mas Braga, sacristia imensa, não fica muito atrás de Jerusalém!”. D. Tília recorre ao latim e brada: “Insignia fidelis et antiqua Bachara! Nós demos um papa ao mundo! Nós abastecemos a Igreja Católica com 24 santos!” O bêbado continua seu berreiro, bem debaixo de minha janela, e retruca pra d. Tília: “Braga inflacionou o céu com tanto santo! Em menos de um século, 15 arcebispos viraram santos aqui! O único santo que vale a pena é o Santo Antônio dos Esquecidos! Mas aqui, os lembrados são os figurões! Só faltou canonizarem a Dama do Drago!”. D. Tília não suporta o bêbado, e vocifera: “Cala essa boca repugnante, ó Grainha dos mil demônios! Não toque no nome dessa diaba de Dama do Drago, que trouxe indecências para as nossas procissões!” Ah, o bêbado se chama Grainha, gostei dele, pois ainda que chumbadão, com muita veemência ia desmoronando a Sé de Braga com palavras ora imponentes ora cabeludas, chamando os arcebispos de milhafres clericais e flibusteiros da cruz.

16


Escutei bem quando ele afirmou, trocando as pernas mas sem perder o prumo verborrágico: “A única coisa que presta nas procissões são os farricocos, com suas véstias negras, com suas pupilas a luzir nas sinistras cógulas! Eles assumem pelo viés cômico o lado ku klux klan da igreja! E escutes ainda, velha beata, o povo de Braga ficou imbecilizado pelas acções católicas, diabos! Até as mulheres daqui são preladas e não ficam peladas! Abaixo a prepotência da igreja! Que raios partam o Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo da peste!” (…) Caio Junqueira Maciel, Braga/Portugal

17


salmo da luta inútil Inútil, Senhor, o Vosso sangue de cordeiro, se a morte é o leão e a vida, o circo. Todos os dias rumam para a prancha os que vão morrer e não sabem. Inútil, Senhor, esta dor crucificada se nada Vos arranca desses pregos nas igrejas, se as Vossas mãos furadas não conseguem deter balas, se uma ferida brota na Vossa palma feito um terço. Vã é esta luta, Senhor Morto, se a morte é o leite, o acidente que bebemos, se nos lançamos aos bandos tal crianças tontas, ratos que se encantam pela música da arena. Vã é esta luta, Senhor Morto, se ao menos Vós, só Vós escapásseis vivo, mas este é o nosso picadeiro e o ingresso jamais é devolvido. Micheliny Verunschk, São Paulo/SP

18


os primórdios da escola sem partido Sei que ao chamar crentes em geral de gentalha, vão dizer que estou sendo desrespeitoso. Deixe eu esclarecer um detalhe: os crentes, como pessoas, têm todo o meu respeito; como intelectuais, nenhum. Se eles não percebem a diferença entre essas posturas, me parece que estou diante de mais uma prova de que tenho razão. A Terra gira em torno do Sol. – Como é que é? Todo mundo tá careca de saber: é o Sol e os planetas que giram em torno da Terra. Nós somos o centro do universo. Por que Deus nos criaria à sua imagem e semelhança se não fosse assim? – Olha, a Terra gira em torno do Sol – ela e os planetas. Mais: nem nosso sistema solar está no centro da galáxia, sem falar que nossa galáxia é só uma entre bilhões. Isso são fatos. Quanto a Deus ter criado assim ou assado é assunto pra você resolver com Ele, diretamente, ou com os teólogos, que espremem os miolos pra fazer a realidade caber dentro de suas convicções.

19


– Você só tem de informar objetivamente os conhecimentos. Não tem que bagunçar o que meu pai e minha mãe disseram que eu devo pensar e achar do mundo. – Pra variar, estou dando informações objetivas. Não estou discutindo impressões. – Quero ver onde essa objetividade das tuas informações vai parar quando meu pai chegar com uns amigos parrudos do Frota. Ernani Ssó, Porto Alegre/RS

24 20


vinde a mim Jesus não amou as criancinhas Não se esqueçam dos meninos de Belém Decapitados para que ele se safasse Ainda hoje Jesus não ama as criancinhas O clamor de Ramá transborda dos estômagos vazios. Raquel chora e se lamenta para sempre Oh Jeremias Seus filhos ainda existem Dentro do osso Irmanado à pele. Jesus nunca me amou Hóstia não matou a minha fome21


Jesus nunca me amou Hóstia não matou a minha fome Como fui enganada! Aos sete Era só a merenda da escola Aos dez um desmaio em pleno verão Aos doze restos de ração de cachorro e sopa de verdes abacates Eu também não amei Jesus Sou vingativa Temia os grossos Pregos em seus pulsos E o pano de chão que escondia sua nudez Amei um cão Amei um gato Uma árvore, alguns ladrilhos Jesus nunca amou as criancinhas. 22

Simone Teodoro


Uma pedra me amou melhor do que Jesus Jesus nunca amou as criancinhas. Simone Teodoro, Belo Horizonte/MG

23


bellzebuuu nº 1 – agosto 2017/ fevereiro 2019 Belo Horizonte/MG

Vida

Secreta PUBLICAÇÕES cebook.com/le iavidasecreta


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.