5ª Vida Secreta - edição completa

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vida secreta REVISTA DE LITERATURA E IDEIAS

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Expediente Edição e projeto gráfico João Gomes Ilustrações da capa Jupterimagens de Photo Imagens Contato vidasecretacontato@gmail.com Revista online Instagram: @revistavidasecreta vidasecreta.weebly.com

Agradecimentos Gerusa Leal, Adrienne Myrtes, Carla Diacov, Flavia Ferrari, Katia Marchese, Taciana Maria de Fátima Oliveira, Luis Guilherme Libório, Lourença Lou, Joakim Antonio, Adriana Aneli, Kelly de Leones, Júnia Paixão, Luiz Antônio Gusmão, Mônica Milena Gomes Ribeiro, Cyane Pacheco de Albuquerque, Giselle Ribeiro, Adriane Garcia Pereira, Paula Andrea Reis, Susana Inês de Almeida, Josafa Henrique Gomes, Janaína Behling, Klécia Melo de Mesquita e Chris Herrmann.

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Carta aos leitores Essa edição atende o pedido de alguns de nossos leitores: continuar a publicação numerada da revista, para além do site, onde todos os textos aqui reunidos foram anteriormente postados. Sendo assim, a 5ª Vida Secreta é referente aos meses de novembro e dezembro de 2021, uma edição que surgiu em html e retorna ao pdf, onde tudo se embala com mais acuidade. Sendo a última edição de um ano difícil, apesar de todos os desafios impostos pela pandemia e desgoverno federal, foi possível fechar o ciclo com um número leve, repleto de poesia, crônicas, artigos e uma carta, escrita há 42 anos, pelo grande Caio Fernando Abreu. Uma boa leitura a todes e que em 2022 a literatura independente esteja ainda mais forte. João Gomes Recife/PE


Sumário Cumbica, 7 crônica de Janaína Behling Desmontando a autoria, sem fazer estragos, 10 artigo de Giselle Ribeiro Os deuses se compadeceram dos amantes de Wislawa Szymborska, 14 artigo de Luiz Antônio Gusmão Priceless, 18 conto de Maíra Valério O que te salva, 22 poema de Marcílio Godoi Breve estudo sobre o poeta, 24 poema de Pedro Moreira Oito poemas do livro Quênia - poemas de viagem, 26 de Michaela Schmaedel Quatro poemas do livro Leite de mulher, 30 de Marina Ruivo 74 velas, 36 crônica de Thiago Noronha Carta a Zézim, José Márcio Penido, em 22/12/1979 , 41 de Caio Fernando Abreu


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​Cumbica​

​por Janaina Behling

Enxergar argentinos em portugueses é uma sabedoria brasileira. O único aeroporto movimentado do mundo era o de Tervel, no leste da Espanha. Ele oferece serviços de estacionamento e manutenção para aeronaves impedidas de voar. Em março daquele fatídico dois mil e vinte, ele acolheu setenta e oito aeronaves e tinha estimativa de acolher cento e vinte e cinco, a confirmar, até o final do mês. Dentro do seu mais absoluto normal, continuou sendo o mais inóspito de todos os aeroportos, da pandemia do novo coronavírus à baixa aviação e, mesmo assim, precisavam ser mantidas vivas as peças. Tratadas como peças, uma das tarefas dos especialistas é levar os aviões para um hangar e colocar eles em macacos. Enquanto suspensos pelos macacos, são feitos testes de retração. Em vinte e cinco de abril daquele ano, puseram dois A380 da Air France, sete da Lufthansa e nove da Airbus neste hangar. Foram mais ou menos dois milhões, duzentos e trinta e cinco mil e seiscentas pessoas por dia que deixaram de trafegar pelos ares, a considerar o número de aeronaves vazias e paradas no mesmo lugar. Enquanto isso, Cumbica fazia depois de um certo recesso suas primeiras viagens e estava repleto de colombianos, peruanos, chilenos, uruguaios, paraguaios, bolivianos, equatorianos, venezuelanos e guianos acampados. Crianças, adultos e idosos praticamente estavam morando no terminal do aeroporto. Eram centenas de imigrantes que perderam emprego ou fecharam empresas em São Paulo. Restaurantes, instrumentos musicais, daime. É provável que tenham pedido apoio aos consulados e aos 07


seus xamãs, mas os vôs’ disponíveis para seus respectivos países continuavam escassos e tudo o que recebiam eram marmitas como donativos comemoradas pela fome. Não havia argentinos. Na plataforma adiante com destino a Portugal toda segurança era toda. Tecnologias de último tipo não funcionavam muito bem, mas estavam lá, entre totens de check-in, tamancos de borracha, caixas registradoras, lenços umedecidos e bisnaga de álcool em pasta, pasme, para os cabelos. Era um salão de embarque especial, distintivo, representativo, particular, peculiar, essencial, singular, indispensável, típico, próprio, exclusivo, intrínseco, específico, único. Era portanto, uma plataforma alheia como Tervel, mergulhada em si mesma e nos agricultores da Beja, presos em Buenos Aires e recém chegados à capital paulista por não conseguirem também, de seus respectivos xamãs, a mínima atenção para retornarem depois de viajarem para a capital argentina para visitarem a Expoagro, a mais importante exposição agroindustrial em campo aberto do país sul-americano, numa viagem organizada pela Associação de Agricultores do Baixo Alentejo. Patologicamente verborrágicos de uma língua no mínimo forasteira para qualquer um ali, fato é que os agricultores sequer pareciam compreender os acampados como seres humanos no aeroporto de Cumbica. E foi assim que Regina Schit entrou no avião de São Paulo para Lisboa. Brasileira e automaticamente aliviada por ser ninguém naquela atmosfera nebulosa de pessoas e cores insistentemente categorizadas e distribuídas. Preto e amarelo para as tiras de contenção de pedestres. Placas vermelhas por qualquer motivo. Azul para os banheiros. Esteiras prateadas para os pés. Céus encobertos pela chuva cinza. Revistas desbotadas. Cafés ruins e disponíveis. Pastel de feira e Empanadas. Pretzel. Cerveja quente no free shop. Pastilha soft para o mal hálito. Privilegiada por ter nascido num lugar em que até caiba Tevel mas também o seu 08


oposto, já que em seu mais absoluto normal Cumbica permanecia caótico, Regina e sua enorme facilidade de ficar expandida estavam a caminho da Universidade de Coimbra para um doutoramento. Pensando em documentação e dispositivos móveis queria desativar a noção de evolução ou de desenvolvimento que está implícita na história das ideias linguísticas ou nas teorias de racionalização da miséria humana, talvez para reconduzir ou resgatar a experiência nua de seu próprio modo de ser enquanto profissional da linguagem, embora soubesse distinguir entre diferença e repetição. Na aeronave então parecida com um cometa raro, fazendeiros alentejanos enchiam de uma certa hostilidade a própria pandemia que voava com eles em direção ao país soberbo e molusco. Ela foi porque via as línguas como vertigem e se constituía estrangeira por falar brasileiro.

Foi esse seu legado. E seu tormento.​

Janaina Behling é ex-doutoranda em Linguística do Português pela Universidade de Coimbra. Publicou, pela editora Simplíssimo, o e-book Corpo-Crônicas duma Brasileira numa Pandemic Portugal. Foi esse seu legado. E seu tormento.​ 09


Desmontando a autoria, sem fazer estragos ​por Giselle Ribeiro

A escrita poética pede tempo de maturação para ser projetada no mundo. Há que se fazer pesquisa, ler outros livros, ler gente, ler o mundo. É preciso se permitir esse tempo de gestação. Às vezes um poema nasce como um espirro, outras vezes ele pode levar horas, dias, semanas, para ser aceito como tal. Honestamente, não acredito que eu determino quando um poema está, ou não está, pronto. É a minha escrita que manda em mim, eu sou só o canal! Hoje, cheguei aos 48 poemas do livro Mulheres que suspendem o recreio e sei que é preciso continuar escrevendo, ainda não é o tempo da publicação. Por que eu sei disso? Porque o livro me comunica. É o que tenho aprendido esses anos todos. Ainda iniciante nesse ofício, eu tinha aspiração de “ser a tal”, aquela que faz e acontece na escrita poética. Quando se é iniciante, é natural que se tenha esses rompantes. O problema é não planejar a fuga desse estado, se deixar cair sem paraquedas e ver os estragos no chão. Como eu descubro que não sou a tal para a minha escrita? Quando encaro um poema e fico afoita para postar e mostrá-lo, imaturamente, no meu espaço virtual, faço isso ainda hoje, algumas vezes. Depois, mais adiante, o texto que ainda não estava formado, que não se via como um poema, ri debochadamente de mim e me põe a fazer os reparos. Esse é o momento da queda de que lhes falei acima. Às vezes precisamos ser lançadas ao estado de ridícula, só para dar uma sacodida no ego e deixá-lo numa zona de menos gás. É uma questão de preparo, aprender a ser escritora é 10


um exercício constante. Estou na construção de uma trilogia, o segundo livro da série, o primeiro foi Escola para mulheres safo, (editora Folheando, 2020), neste livro descobri que tem alguém que se infiltra em mim e evapora os rumos da escrita dos poemas. É uma mulher, disto estou certa. Dina, esse é o nome dela, que pode ser tantas, porque se assume como vozes de muitos tempos: passado, presente, futuro. Algumas palavras dos livros da trilogia pedem para ser amoladas, feito faca cortante, elas sabem que precisam sair das páginas do livro arrancando as vísceras, a corrente lacrimal de mulheres, fazer algum lampejo de mudança na vida delas, mas não me envaidece essa fórmula. A força que pode, ou não pode, uma escrita, não me dá o direito à arrogância. Eu só preciso, como dizia Barthes, retornar ao grau zero da minha heroicidade. O que fazer quando lançamos um livro, avistamos uma fila de autógrafo e depois de algum tempo, mais ou menos longo, descobrimos aquela publicação em um sebo, um desses livros com dedicatória assinada pelo autor ou autora sendo vendido a um preço razoável? Não cortamos os pulsos, também não é o caso de ir ao confessionário pedir penitência, pode ser que aquele livro tenha caído nas mãos de uma miss que só leu capa, contracapa e orelha, ou as palavras lá de dentro do livro tenham sido negligenciadas, quero dizer, não foram amoladas o suficiente para se tornarem úteis àquela leitora, ou aquele leitor. É o caso de encarar as possibilidades de alguma verdade e repensar o percurso do livro que se escreve. Um fato curioso ocorrido comigo, uma vez enviei um livro a uma editora para avaliar a possibilidade de publicação, nunca recebi qualquer retorno. Fiquei ressentida, os ossos da minha estrutura de poeta pareciam ter sido fraturados, naqueles dias. Tive crise de escrita por algum tempo. Achei que não era esse o 11


meu fim, melhor seria me manter como professora de poesia e teorias da escrita literária na Universidade Federal do Pará e esquecer outras aventuras. Como já disse aqui, quando se trata de arte poética, eu não mando em mim. Passado algum tempo, lá estava eu descobrindo outras palavras inquietas me incomodando, como se quisessem saltar de dentro de mim e precisassem de um empurrão. É isso. Naquele momento descobri que somos, na verdade, emprestados a essas vozes. Recentemente, voltei ao projeto de livro que enviei à editora, me assombrei com o rascunho que mandei julgando ser aquilo um livro, já definido como tal. O tempo todo corremos o risco inoportuno da vaidade. O silêncio da editora muito me diz, desde que aprendi a pisar no freio. Tive o mesmo deslumbre quando finalizei a escrita do livro Escola para mulheres safo, (2020). Mas, desta vez, antes de encaminhar à editora Folheando, fui visitada por Dina, personagem, professora e proprietária da escola, aquela mulher que se instalou em mim e comanda a ordem da trilogia. Ela me convidou a rever aqueles escritos antes de enviar. Não muito surpresa, fiz algumas reformas, naquela casa em construção, para então encaminhar para publicação. É sempre bom desvelar o lugar do autor/da autora, reconhecendo a propriedade da obra literária, antes mesmo de entrar nas arrebentações de um livro. Diz Foucault (p. 45, 2009): Em suma, o nome de autor serve para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um nome de autor, o facto de se poder dizer “isto foi escrito por fulano” ou “tal indivíduo é o autor”, indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um discurso flutuante e passageiro. [1] Ainda no mesmo livro, o filósofo faz arremates relevantes e estabelece a presença dos vários eus, nos textos poéticos. Como podemos ver, o que importa tanto e mais é a escrita e não a sua 12


autoria. Quando dizemos que uma escrita é capaz de atravessar os tempos, deve ser porque o pronome de primeira pessoa se desenlaça de um “eu” único, o autor, indo ao encontro de um “eu” polissêmico, porque é mais coletivo, parceiro, que pede para abraçar o leitor ou leitora sem repreensões. Alerta, outra vez, Foucault (p. 36): A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor. [1] FOUCAULT, Michel. O que é um autor. Tradução Antônio Fernando Cascais e Eduardo Cordeiro, Nova Vega, Limitada, 7ª edição, Lisboa, 2009. Desmontar a autoria é função de quem lê. É o que estou sempre a me dizer, quando escrevo. Se não for assim, não tem muito sentido atravessar os tempos.

Giselle Ribeiro é professora de Teoria Literária na UFPA - FALE e autora do livro Escola para mulheres safo.

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Os deuses se compadeceram dos amantes de Wislawa Szymborska ​por ​Luiz Antônio Gusmão


Há muito tempo leio Wislawa Szymborska. Desde 2001, pelo menos, quando adquiri um volume de "História da literatura polonesa", de Henrik Siewierski, publicado pela Editora da UnB. Espremida em míseras cinco páginas entre os conterrâneos Czeslaw Milosz e Stanislaw Lem, Vissuava (como carinhosamente gosto de escrever seu nome) figura ali apenas com o poema "Possibilidades" (na tradução de Aleksandar Jovanovic e o próprio Siewierski), em que se auto-retrata por meio de uma lista de preferências pessoais reveladoras da sua simplicidade e inteligência irônica. Era apenas um poema, mas foi o suficiente para grudar na minha cabeça aquela palavra-refrão de uma audácia bartlebiana - "Prefiro" - a encabeçar 31 de seus 39 versos. Num sistema político autoritário como o soviético que subjugava o povo polonês, expor-se como um indivíduo com todas as suas idiossincrasias era passar na cara que a liberdade era possível. Por muito tempo só pude conhecer sua obra pelo que conseguia minerar na internet de conexão discada. O Google ajudou a descobrir muita coisa sobre ela em outros idiomas. Uma boa antologia só veio mesmo em 2011, com a tradução direta de 43 poemas por Regina Przybycien. Trazendo textos escolhidos de oito dos seus 12 livros publicados, o "Poemas" trouxe gemas preciosas como "Museu", "Conversa com a pedra", "A vida na hora", "Utopia", "Ocaso do século", "Fim e começo" e, novamente, "Possibilidades". Foi como chuva que fez aflorar um oásis no chão do deserto. Em 2012, um ano depois da morte da poeta, aos 88 anos, a editora Companhia das Letras publicou uma segunda e mais volumosa antologia com 85 poemas de todos os livros de Vissuava, vertidos pela mão da mesma tradutora. Aqui podemos ter momentos de catarse pela ironia da voz invejosa a contempla o casal que mostra ser possível (de novo essa palavra) viver "Um amor feliz". Encontramos o espanto com a possibilidade (de novo) de viver um dia sem espanto, em "Desatenção". E tornamos a 15


encontrá-lo na consciência do pequeno assombro de um "Instante" ou do espaço que ocupamos com nossos corpos "Aqui", nesta terra onde nada perdura. Estava satisfeito, não podia pedir mais de nosso mercado editorial. Mas os deuses que tanto aprontam conosco neste 2020, annus horribilisimus em escala planetária - os deuses por um momento se compadeceram dos amantes de Vissuava. Por estes dias, chegaram dois volumes para rechear minha pequena e preciosa coleção de Vissuavas: a terceira e volumosa antologia "Para meu coração num domingo", que nos apresenta a mais 84 poemas traduzidos por Przybycien em parceria com Gabriel Borowski; e a biografia da poeta, "Quinquilharias e recordações", escrita por Anna Bikont e Joanna Szczesna, duas jornalistas, e traduzida por Eneida Favre, que a editora Âyiné publica na coleção "Das Andere". Ainda não os li todos, mas compartilho essa pequena porém imensa alegria que é ler em português Vissuava, essa poeta do espanto, agnóstica, aberta e confortável com o mistério do que não se dá a conhecer. Gente, leiam Wislawa.

Luiz Antônio Gusmão |Kuzman| nasceu no Recife e vive em Samambaia/DF. É doutor em Relações Internacionais (UnB, 2015) e mestre em Ciência Política (Iuperj, 2009). Publicou o livro _azul-planalto: haicais candangos_ (Amazon-Kindle, 2020) e mantém no Instagram o perfil literário @haicaiscandangos. 16


Falando em leituras ​por Podcast Vida Secreta

ouça


Capa Felipe Honda

Priceless ​por Maíra Valério

Boa tarde, Tobias Júnior. Boa tarde, galera. A tempestade em Los Angeles atrasou muitos voos esses dias, uma loucura. Ah, mas tô bem. Tá tudo bem, graças a Deus, né? E tô aqui, isso é o que importa. Mais uma vez, valeu mesmo o convite. Sempre bom ter o nosso trabalho reconhecido em um espaço assim, tão bacana. O quê? Claro, claro. Conto com prazer. Bom, é o seguinte: a fotografia chegou pra mim de uma maneira inusitada, né? O meu pai, que era fotógrafo, e minha mãe, que também mexia com essa nobre arte… Bom, eles sempre me levavam em passeios, sabe? E aí a gente registrava plantinhas, animais, eu usava uma câmera compacta mesmo, era ainda menina, né? Daí a gente revelava tudo em casa, em um pequeno laboratório que eles tinham. Era o maior barato. Na adolescência, fiz minha primeira exposição individual, 18


lá na Galeria Raio The Sol, uma espécie de etnografia do eu que contou com uma série de selfies tiradas no espelho antes de ir para a escola, durante um ano. Foi muito bacana e, pra época, bem inovador, certamente. Ano passado, recriei essa série, agora adulta, pra tentar estabelecer uma relação entre quem sou, quem fui e o mundo que a gente vive; compreender meus arredores, compartilhar a minha subjetividade. Mas eu tava me sentindo muito isolada em meu universo interior, afogada em minha sensibilidade extrema... Então decidi ter mais contato com outros seres humanos, passei uma temporada na Itália e, na volta, comecei a buscar a essência masculina. Retratar o que existe de verdadeiro dentro de cada homem mesmo. É claro que todo mundo acha que deve ser bacana fotografar homens nus, mas o nu é mais que isso. Pra mim, é uma forma de mostrar beleza sem ser vulgar. E é legal, porque é um trabalho que acaba que tem uma função social também, né, Tobias? Isso. O cara tá ali, triste, desempregado ou com problemas de autoestima... Aí recebe uma boa maquiagem, uma boa iluminação, retoques no Photoshop e finalmente pode se ver como realmente é, entendeu? Ser ele mesmo. Imagina a sensação de observar o próprio órgão masculino balançando livremente, o tecido erétil e cheio de sangue, eternizado em uma imagem? Isso é empoderador demais. É o que todo cara quer, né? Se sentir bonito, desejado… O que mais um homem precisa, ô, Tobias? Diga aí. A aceitação do projeto foi tão boa que fizemos uma parceria com a Gatão Fuderoso, e você não tem ideia da honra que é, sabe, ver o seu trabalho em uma publicação de prestígio assim. Daí rola toda uma curadoria por parte da equipe da revista, que mensalmente escolhe o ensaio de um felizardo pra compartilhar com os leitores e leitoras nas páginas centrais. A seleção é tranquila, é só não ser muito gordinho, baixinho ou calvo, entendeu? Ou ter os dentes muito separados, o cabelo muito crespo, essas coisas. Pois é, é de boa. A 19


edição com o Betinho das Gerais, nosso modelo que é a cara do Tom Cruz, foi um sucesso, vendeu bastante, mesmo nesse momento em que o mercado editorial impresso se encontra em uma fase delicada, né? Em plena era em que tudo tá extremamente acessível na internet… Aham. É gratificante demais saber que estamos ajudando tantos rapazes e movimentando esse mercado maravilhoso. Queremos até, quem sabe, fazer uma compilação em formato de livro também, e um calendário para o próximo ano. E… O quê? Ah, não. Os caras que topam posar não recebem cachê, não. Mas sempre tem uma cervejinha no estúdio, uma música legal tocando… O clima tem que ser de cumplicidade, né? E, olha. só... Não queremos fazer um leilão, sabe, sobre qual homem vale mais do que o outro. A nudez masculina não tem preço, Tobias.

Maíra Valério é cria do fim da década de 80 e uma jornalista brasiliense que acredita na rapaziada, na mulherada e na cultura do-ityourself. Escreve em zines, blogs, revistas, jornais, sites, bloco de notas do celular, cadernos, diários, papeis que encontra pelo chão e o onde mais der. Homens que nunca conheci é o seu primeiro livro. Foto: Thaís Mallon

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Nunca a efemeridade foi tão desejada e adorada quanto nos últimos tempos Com os sucessivos lockdowns literalmente sofridos durante a pandemia do covid-19 por brasileiros em Portugal, a verdade é que ficamos confinados a uma efemeridade infinita, a da língua brasileira. E foi assim que essa coletânea de corpo-crônicas nasceu, escrutinando como imigrantes são experientes em serem enclausurados pela xenofobia linguística portuguesa, a pior de todas as inúmeras, porque carrega todas elas.

Corpo-Crônicas duma Brasileira numa Pandemic Portugal Janaína Behling Simplíssimo 2021


O que te salva ​por Marcílio Godoi

O cacho, o crush, o cachorro? A luva, o vento, o vinho, o livro? O trampo, o trato, o contrato? O hoje, o jeito, o Jagger, o Gil? O canto, a cana, a cannabis? A estrela, a escrita, o streaming? O que te salva? A sopa, a cepa, o Lexapro? O rum, o Zoom, o Zape? O exame? A lista, o Insta, o instante não previsto? A prece, o supino, o pilates? A janela, a panela, o pancake? O Méqui, o craque, o Krenak? O que te salva? O leito, a lua nova, a noiva, a laive? O neto, o transe, a transa? O gozo? O susto, o curso, o discurso? O bordado, a mordida, o amor dado? A arte, o ato, o mato? O gato? O talco, o álcool, o VAR, a verve? O que te salva? 22


A miçanga, a menina, a vacina? O grito, a Greta? O reggae, o air-bag? A luta, a aula, o whey, o Lula? A gafe, o café, o cigarro, o carro visto? O parque, o porco, o porquê? O som, o sint, o cinto, a safena? O que te salva? A preguiça, a troça, a taça? A polícia, ela não ter vindo? O seu colete à prova de balas?

Marcílio Godoi é mestre em Crítica Literária pela PUCSP e doutorando em Literatura Brasileira pela USP. É autor de São Paulo, Cidade invisível (Contos, Grande Prêmio Cásper Líbero); A inacreditável história do diminuto senhor minúsculo (Infanto-juvenil, prêmio Barco a vapor); Estados úmidos da matéria (poemas) e Frágil Recompensa (Crônicas). Publicou recentemente Etelvina, seu primeiro romance. 23


Breve estudo sobre o poeta ​por Pedro Moreira

O poeta se pela todo de medo. O poeta esquece a luz acesa e corre, quando a luz do banheiro se apaga sozinha. Não costuma chorar tão sempre. Vai dormir bem tarde. Acorda cedo quando quer. Arrota, sobretudo, se comeu bananas. Elas dão uma azia no poeta. Por isso ele não escreve sobre bananas, mas ele as ama. O poeta adora viradinho de banana madura, mas nem tanto. E haja farinha pro poeta por no feijão. Ele come muito mesmo. E depois se arrepende. O poeta não é alegre nem triste. É treva. A luz, quando o alcança é para doer nos olhos. O poeta gosta de dormir com a janela aberta mas é para ver o dia ainda manso, quando o sol é menino. O primeiro choro da noite é da mãe do poeta e das irmãs. 24


O poeta não trabalha nunca. O poeta carpe com a caneta na mão. Mas trabalhar ele não trabalha. O ofício do poeta se apresenta como um bocejo. É feito de preguiças os olhos do poeta. Por isso ele olha tudo com demora. Mas de paciência o poeta não sofre. Ele corre pelo mundo. Ainda que seja em câmera lenta, mas corre.

Pedro Moreira (Itaí, SP, 1995) é poeta. Escreve a coluna Mentir palavras para as pedras, no blogue da Concha Editora. Publicou contos e poemas em algumas revistas literárias independentes como a Subversa, a Mallarmargens, a Desenredos e a Bacanal. Edita a Idê, revista literária digital. Reside no interior do Rio Grande do Sul, onde estuda Letras na Universidade Federal do Rio Grande (FURG). 25


Oito poemas do livro Quênia - poemas de viagem por Michaela Schmaedel


Ainda somos o homem ancestral agachado na savana do Quênia.

Homem do Kilimanjaro eterno recém-chegado feito pedra espreita o mundo. Feito homem sente a queda.

À NOITE Procuro ossos carcaças pego eu mesma o que consigo. Carrego eu mesma a morte.

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A delicadeza das gazelas entre os leões.

Na corrida veloz do chacal te procuro.

CÉU As neves nuvens do Kilimanjaro.

No passo lento dos elefantes a busca pela sobrevivência se dá em manada.

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FLAMINGOS Procuram Deus no silêncio ​das águas. Em Quênia, a espacialidade, a distância tomada pelo eu-lírico, resultam numa prospecção. Vê-se de longe e de perto, para frente e para trás, coletivamente e individualmente. O eu-lírico também fala de suas dores pessoais: “No lugar da caça/ do bicho quase não vivo/ na savana das presas/ me encontro.” É neste lugar da perda que ele se identifica. O ser humano olha para si, olha para os outros seres e se dá conta do que lhe falta, seja o capim mais verde, a pessoa amada na penumbra ou mesmo um sentimento que o una aos outros. Adriane Garcia, no seu blog Os livro que eu li.

Michaela Schmaedel (1976) nasceu e mora em São Paulo, é editora de cultura e poeta. Cursou o CLIPE (Curso Livre de Preparação de Escritores), na Casa das Rosas, além de oficinas de escrita com diversos poetas brasileiros. É autora do livro "Coração Cansado" (Penalux, 2020) e "Quênia" (Cas’a edições, 2021). Edita o podcast Poesia pros Ouvidos. 29


Quatro poemas do livro Leite de mulher por Marina Ruivo


Só, sozinha Às duas da tarde de uma terça-feira desço as escadarias do Bloco N. Pantufas por cima das meias vermelhas roçam, suaves, o chão escurecido. Calça velha imitando veludo, camiseta surrada, a cara do Che e os peitos balangando sem proteção. Na mão, dois sacos de lixo. Não quero saber se encontro alguém, o caminho não leva ao mundo. Há dias sou eu e os mortos, ou vivos-mortos, falam pelos livros, as vozes ora graves, outrora delicadas. De pantufa, sem maquiagem, crio meu mundo, só meu. Lavo a louça quando quero, tiro o lixo no meio da tarde, no começo da noite, ou não tiro, deixo que cheire mal e apodreça. Almoço às onze ou às quinze, benção diária que me faço. Depois os horários voltam, depois tudo volta mas, por ora, deixem-me provar a ausência, essa solidão tão refrescante, como se não houvesse mundo, 31


nem ninguém, nem mesmo amanhã.

Caçadas Sigo teu rastro-gazela, sou eu o guepardo e peço: pegue-me com as presas, articulações e nervos até que eu grite. Não, não deixo que fuja. Deixe-me as pernas abertas, o líquido jorrando, é meu sangue, minha seiva, estertor dos corpos perfeitos, olhos revirados na hora exata, sentidos derrotados e, ao voltar, o ganho de mais nitidez, mais amor. Tua avidez gruda na minha e me faz tua, vê como é boa a sede do corpo? Seu dorso vem e me pega solta, sou tua zebra no frio do mundo. Monte-me com amor, insensata posse, faz desse encontro a explosão luzidia, corpos gementes, almas, junção de átomos até eu não saber: de mim, de ti, de nada da vida. Se eu soubesse que era sim, amor, se soubesse que podia ser assim... 32


Fechados Para Auria Oliveira A poeira da quadra mima meus pés, o som da tosse, longe, lá de onde vem o motor, esse ar-condicionado nunca desliga. O calor nos mata devagar, sempre. As maritacas passam e cantam, mas o barulho do sono é mais forte, se me derem uma cama eu durmo. Por isso vou à Polinésia e volto, longe dos latidos, das carretas e de seus voos que matam mulheres, torcendo-as em ferragens de motocicletas. A serra corta a madeira e o fio do amor, a mulher está morta e não ensina mais nem à sua neta, que estava por chegar. Estamos imóveis, ouvindo o chão: alguém vem no motor da moto, paramos todos, mas é só o desejo do pão, café quente que expulse a ausência do giz, da lousa, das crianças barulhentas. Quero todos de volta, em casa, cansei de ser espadachim do vento, logo esse, que aqui não surge mais. 33


Olhares Cães andaluzes, meus olhos querem costuras a estas pestanas insistentes, taturanas que se lançam mudas ao mundo, empecilho renitente do sono. Dias e noites passam no quarto azul, nada vejo senão suas paredes, o crucifixo encimando a cama, as reproduções baratas. Amansados, os sintomas persistem, mas sei que está aqui, em meu corpo. Seu desejo sem propósito: a reprodução infinita. E me dói o peito, literalmente, fundando o medo do roubo do ar. Meu corpo, congelado, quer se rasgar. Segue ele, sigo eu, seguimos. Queremos apenas viver neste mundo mais inóspito, irreal, dolorosamente concreto. A parede é meia, o olho não fecha. Não sabe o que espera, o que vem e o que não virá mais: para mim, para nós. 34


“O livro é um convite a acompanhar esse processo de busca, mas também de espera por um corpo que demora a vir do modo esperado: na plenitude de um ideal impossível. Desde aí, no por enquanto, é o fantasma da falta que, de tão insistente, se torna constituinte e fonte de desvario e investigação: corte, sangue, dor e transe. Será mesmo que existo, pergunta o corpo a si próprio até estar pronto para transmutar sangue em leite – leite de mulher, nutriente e nutridor: poesia. Poesia que só se tece na materialidade da palavra. Então a mulher, nutrida de si, precisa se tornar poeta. Marina Ruivo faz poemas, corpos provisórios, porém necessários à saúde do pensamento e da poesia.” Geruza Zelnys, trecho da orelha do livro Leite de mulher, Patuá, 2021.

Marina Ruivo nasceu no Dia Internacional da Mulher de 1978, em São Paulo. Cursou Letras/Português na USP e lá defendeu o mestrado e o doutorado. Trabalhou como freelancer no mercado editorial e atualmente é professora universitária. Mantém o canal A barca Marina, no Youtube e publicou Nossa barca (Patuá, 2019) e Geração armada: literatura e resistência em Angola e no Brasil (Alameda Editorial/Fapesp, 2015). 35


74 velas

​por Thiago Noronha

Estar apaixonado em tempos de fascismo me lembra uma performance musical que presenciei, certa vez, pelas ruas da periferia de Fortaleza. Eu não sei quem idealizou e executou. Consistia em um pianista sobre a pampa de um caminhão. Era um concerto móvel. Ele passeava pelas ruas enquanto tocava belas melodias clássicas num piano de cauda belíssimo. Ouso afirmar que foi a primeira e única vez que um piano de cauda esteve no bairro João XXIII. Eu lembro que avisaram antes do trajeto do concerto itinerante. Na minha rua, todos os moradores ficaram esperando em frente às suas casas pelo tal caminhão com o pianista passar. Quando enfim o veículo dobrou na rua, notou-se que ele vinha perseguido por uma multidão de cachorros do bairro que latiam 36


enfurecidos para o estranho caminhão musical. A bela melodia do caro instrumento era estragada pelo latir dos muitos cachorros da vizinhança. Os moradores tentavam afugentar os cachorros com gritos e pedras e tudo virou uma algazarra só. O que era pra ser uma bela apresentação artística virou uma algazarra itinerante. O motorista parecia desconfortável, dirigindo até mais rápido do que deveria, mas o pianista, vestindo um terno brilhoso, continuava sua apresentação como quem era assistido pela mais fina das plateias, embora uma ou duas vezes tenha tido que puxar a perna pra cima para evitar uma dentada. É difícil fazer arte em meio ao caos. É difícil se apaixonar em meio ao caos. Mas as intenções eram boas, acredito. Tanto a dos produtores, que talvez pensaram no impacto de levar o primeiro piano de cauda às ruas periféricas de Fortaleza, quanto do pianista, quanto dos cachorros, que talvez estavam apenas alertando a população sobre aquela estranha aparição barulhenta e invasora no bairro. Até os que se apaixonam durante o fim do mundo têm boas intenções. Eu lembrei disso por três motivos: tô apaixonado, estamos no fim do mundo e ontem o meu pai acendeu uma vela de finados pro antigo cachorro de estimação dele, morto atropelado no dia do concerto itinerante do pianista pelas ruas do João XXIII, ao perseguir, junto dos outros cachorros, o caminhão musical. Eu fui passar o feriadão na casa dos meus pais. Tava tentando encontrar um momento para contar para o meu pai que eu estava namorando. Sentamos na área de serviço, no anoitecer do dia 2, envoltos de vários pacotes de velas recém-comprados para a tradicional contagem dos mortos, que sempre fazemos em tal data. Desde muito criança eu gosto de participar desse ritual do meu pai. Ele vai lembrando morto por morto e acendendo uma vela para cada. Ele sabe o número fechado: 74. Mas teima em não 37


anotar os nomes numa lista, como quem desafia a memória, e ano após ano tem que lembrar. Aí acende a vela, e prega uma fita gomada onde escreve o nome do defunto no chão, ao lado. Às vezes leva um bom tempo pra lembrar quem tá faltando. E não tem coragem de desistir do processo com medo da cobrança do defunto pelo esquecimento. Eu sempre gostei de assisti-lo fazer isso. Primeiro porque criança adora ver gente mexendo com fogo. Depois porque me apeguei aos comentários que ele fazia enquanto acendia as velas: “Para minha tia Luiza... ela fazia uma cocada tão boa”. Já adolescente eu lembrava a ele os mortos que faltavam na contagem. E depois me peguei repetindo as mesmas falas que o ouvia dizer: “esse ano não morreu ninguém”. Ele sempre começa com a vela do cachorro. Talvez por ser o único animal entre as 74 almas, seja o mais lembrável. E ontem ele falou algo enquanto acendia a vela que me arrancou uma gargalhada: “Para o Binho... cachorro tão bom... aquele pianista maldito”. — Pai, tô apaixonado — falei lá pela vigésima vela. — Eu só espero que morem perto. Com a gasolina desse preço... Até as velas esse ano tão caras. Se continuar assim, vão ser dois mortos por vela ano que vem. Até o respeito aos mortos querem nos tirar. — A culpa é do Bozo! — É do PT!... Já teve vela pro primo Antônio? Ele era comunista, igual vocês! Sei nem porque ainda acendo vela pra ele... capaz que era até ateu. Aí eu fiquei horas deitado nos azulejos de uma área de serviços no João XXIII assistindo o dançar das sombras das velas dos 74 mortos, como faço desde muito criança. Nostálgico. Lembrando do pianista, do meu recente namoro, dos mortos que 38


nem conheci e das tragédias políticas do nosso país e da finitude, que nos reduz a velas, a mercê da boa memória de um parente... ou da afinidade ideológica. Meu gato apareceu, curioso com as muitas velas pelo chão. Ele se roçou em mim e deitou encostado às minhas costas. — Antes eram menos velas — falei para ele. Percebi que um dia acenderia uma vela pra ele. “Nanis, um gato de sinceros afetos”. Sempre soube que herdaria esse costume do meu pai.

Thiago Noronha nasceu em 1990 no bairro João XXII, em Fortaleza/CE. É formado mestre em administração e controladoria pela Universidade Federal do Ceará e trabalha com gestão há mais de uma década. Na literatura, escreve sobre o cotidiano, revisita memórias da infância, conta de suas viagens Brasil afora e relembra paixões. Dizse dono de uma escrita cômico-afetiva cheia de críticas sociais. 39



Carta a Zézim, José Márcio Penido, em 22/12/1979 por Caio Fernando Abreu

Porto, 22 de dezembro de 1979 Zézim, cheguei hoje de tardezinha da praia, fiquei lá uns cinco dias, completamente só (ótimo!), e encontrei tua carta. Esses dias que tô aqui, dez, e já parece um mês, não paro de pensar em você. Tou preocupado, Zézim, e quero te falar disso. Fica quieto e ouve, ou lê, você deve estar cheio de vibrações adeliopradianas e, portanto, todo atento aos pequenos mistérios. É carta longa, vai te preparando, porque eu já me preparei por aqui com uma xícara de chá Mu, almofada sob a bunda e um maço de Galaxy, a decisão pseudointeligente. Seguinte, das poucas linhas da tua carta, 12 frases terminam com ponto de interrogação. São, portanto, perguntas. Respondo a algumas. A solução, concordo, não está na temperança. Nunca esteve nem vai estar. Sempre achei que os dois tipos mais fascinantes de pessoas são as putas e os santos, e ambos são inteiramente destemperados, certo? Não há que abster-se: há que comer desse banquete. Zézim, ninguém te ensinará os caminhos. Ninguém me ensinará oscaminhos. Ninguém nunca me ensinou caminho nenhum, nem a você, suspeito. Avanço às cegas. Não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos. Na verdade, não há caminhos. E lembrei duns versos dum poeta peruano (será Vaflejo? não estou certo): “caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. Mais: já pensei, sim, se Deus pifar. E pifará, pifará porque 41


você diz “Deus é minha última esperança”. Zézim, eu te quero tanto, não me ache insuportavelmente pretensioso dizendo essas coisas, mas ocê parece cabeça-dura demais. Zézim, não há última esperança, a não ser a morte. Quem procura não acha. É preciso estar distraído e não esperando absolutamente nada. Não há nada a ser esperado. Nem desesperado. Tudo é maya / ilusão. Ou samsara / círculo vicioso. Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti, sabia? E também Allan Watts, e D. T Suzuki, e isso frequentemente parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranquilidade. Você me pergunta: que que eu faço? Não faça, eu digo. Não faça nada, fazendo tudo, acordando todo dia, passando café, arrumando a cama, dando uma volta na quadra, ouvindo um som, alimentando a Pobre. Você tá ansioso e isso é muito pouco religioso. Pasme: acho que você é muito pouco religioso. Mesmo. Você deixou de queimar fumo e foi procurar Deus. Que é isso? Tá substituindo a maconha por Jesusinho? Zézim, vou te falar um lugar-comum desprezível, agora, lá vai: você não vai encontrar caminho nenhum fora de você. E você sabe disso. O caminho é in, não off. Você não vai encontrá-lo em Deus nem na maconha, nem mudando para Nova York, nem. Você quer escrever. Certo, mas você quer escrever? Ou todo mundo te cobra e você acha que tem que escrever? Sei que não é simplório assim, e tem mil coisas outras envolvidas nisso. Mas de repente você pode estar confuso porque fica todo mundo te cobrando, como é que é, e a sua obra? Cadê o romance, quedê a novela, quedê a peça teatral? DANEM-SE, demônios. Zézim, você só tem que escrever se isso vier de dentro pra fora, caso contrário não vai prestar, eu tenho certeza, você poderá enganar a alguns, 42


mas não enganaria a si e, portanto, não preencheria esse oco. Não tem demônio nenhum se interpondo entre você e a máquina. O que tem é uma questão de honestidade básica. Essa perguntinha: você quer mesmo escrever? Isolando as cobranças, você continua querendo? Então vai, remexe fundo, como diz um poeta gaúcho, Gabriel de Britto Velho, “apaga o cigarro no peito! diz pra ti o que não gostas de ouvir! diz tudo”. Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a “função social”, nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de auto-exorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te. Você não está com medo dessa entrega? Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora. A única recompensa é aquilo que Laing diz que é a única coisa que pode nos salvar da loucura, do suicídio, da auto-anulação: um sentimento de glória interior. Essa expressão é fundamental na minha vida. Eu conheci razoavelmente bem Clarice Lispector. Ela era infelicíssima, Zézim. A primeira vez que conversamos eu chorei depois a noite inteira, porque ela inteirinha me doía, porque parecia se doer também, de tanta compreensão sangrada de tudo. Te falo nela porque Clarice, pra mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO, literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada, incompreendida, com fama de “meio doida”. Porque se entregou completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou Rimbaud. É esse tipo de criador que você quer ser? Então entregue-se e pague o preço do pato. Que, frequentemente, é muito caro. Ou você quer fazer uma coisa bem-feitinha pra ser lançada com salgadinhos e uísque suspeito numa tarde amena na Cultura, com todo mundo conhecido fazendo a maior festa? Eu acho que não. Eu conheci/conheço muita gente assim. E não dou um tostão por eles 43


todos. A você eu amo. Raramente me engano. Zézim, remexa na memória, na infância, nos sonhos, nas tesões, nos fracassos, nas mágoas, nos delírios mais alucinados, nas esperanças mais descabidas, na fantasia mais desgalopada, nas vontades mais homicidas, no mais aparentemente inconfessável, nas culpas mais terríveis, nos lirismos mais idiotas, na confusão mais generalizada, no fundo do poço sem fundo do inconsciente: é lá que está o seu texto. Sobretudo, não se angustie procurando-o: ele vem até você, quando você e ele estiverem prontos. Cada um tem seus processos, você precisa entender os seus. De repente, isso que parece ser uma dificuldade enorme pode estar sendo simplesmente o processo de gestação do sub ou do inconsciente. E ler, ler é alimento de quem escreve. Várias vezes você me disse que não conseguia mais ler. Que não gostava mais de ler. Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda- a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta. E eu acho — e posso estar enganado — que é isso que você não tá conseguindo fazer. Como é que é? Vai ficar com essa náusea seca a vida toda? E não fique esperando que alguém faça isso por você. Ocê sabe, na hora do porte brabo, não há nenhum dedo alheio disposto a entrar na garganta da gente. Ou então vá fazer análise. Falo sério. Ou natação. Ou dança moderna. Ou macrobiótica radical. Qualquer coisa que te cuide da cabeça ou/e do corpo e, ao mesmo tempo, te distraia dessa obsessão. Até que ela se resolva, no braço ou por si mesma, não importa. Só não quero te ver assim engasgado, meu amigo querido. Pausa. Quanto a mim, te falava desses dias na praia. Pois olha, acordava 44


às seis, sete da manhã, ia pra praia, corria uns quatro quilômetros, fazia exercícios, lá pelas dez voltava, ia cozinhar meu arroz. Comia, descansava um pouco, depois sentava e escrevia. Ficava exausto. Fiquei exausto. Passei os dias falando sozinho, mergulhado num texto, consegui arrancá-lo. Era um farrapo que tinha me nascido em setembro, em Sampa. Aí nasceu, sem que eu planejasse. Estava pronto na minha cabeça. Chama-se Morangos Mofados, vai levar uma epígrafe de Lennon & McCartney, tô aqui com a letra de Strawberryfields forever pra traduzir. Zézim, eu acho que tá tão bom. Fiquei completamente cego enquanto escrevia, a personagem (um publicitário, ex-hippie, que cisma que tem câncer na alma, ou uma lesão no cérebro provocada por excessos de drogas, em velhos carnavais, e o sintoma — real — é um persistente gosto de morangos mofados na boca) tomou o freio nos dentes e se recusou a morrer ou a enlouquecer no fim. Tem um fim lindo, positivo, alegre. Eu fiquei besta. O fim se meteu no texto e não admitiu que eu interferisse. Tão estranho. Às vezes penso que, quando escrevo, sou apenas um canal transmissor, digamos assim, entre duas coisas totalmente alheias a mim, não sei se você entende. Um canal transmissor com um certo poder, ou capacidade, seletivo, sei lá. Hoje pela manhã não fui à praia e dei o conto por concluído, já acho que na quarta versão. Mas vou deixálo dormir pelo menos um mês, aí releio — porque sempre posso estar enganado, e os meus olhos de agora serem incapazes de verem certas coisas. Aí tomei notas, muitas notas, pra outras coisas. A cabeça ferve. Que bom, Zézim, que bom, a coisa não morreu, e é só isso que eu quero, vou pedir demissão de todos os empregos pela vida afora quando sentir que isso, a literatura, que é só o que tenho, estiver sendo ameaçada — como estava, na Nova. E li. Descobri que ADORO DALTON TREVISAN. Menino, fiquei dando gritos enquanto lia A faca no coração, tem uns contos 45


incríveis, e tão absolutamente lapidados, reduzidos ao essencial cintilante, sobretudo um, chamado “Mulher em chamas”. Li quase todo o Ivan Ângelo, também gosto muito, principalmente de O verdadeiro filho da puta, mas aí o conto-título começou ame dar sono e parei. Mas ele tem um texto, ah se tem. E como. Mas o melhor que li nesses dias não foi ficção. Foi um pequeno artigo de Nirlando Beirão na última IstoÉ (do dia 19 de dezembro, please, leia), chamado “O recomeço do sonho”. Li várias vezes. Na primeira, chorei de pura emoção — porque ele reabilita todas as vivências que eu tive nesta década. Claro que ele fala de uma geração inteira, mas daí saquei, meu Deus, como sou típico, como sou estereótipo da minha geração. Termina com uma alegria total: reinstaurando o sonho. É lindo demais. É atrevido demais. É novo, sadio. Deu uma luz na minha cabeça, sabe quando a coisa te ilumina? Assim como se ele formulasse o que eu, confusamente, estava apenas tateando. Leia, me diga o que acha. Eu não me segurei e escrevi uma carta a ele dizendo isso. Não sou amigo dele, só conhecido, mas acho que a gente deve dizer. Escrevendo, eu falo pra caralho, não é? Aqui em casa tá bom. É sempre um grande astral, não adianta eu criticar. O astral ótimo deles independe da opinião que eu possa ter a respeito, não é fantástico? A casa tá meio em obras, Nair mandou construir uma espécie de jardim de inverno nos fundos, vai ligar com a sala. Hoje estava puta porque o Felipe não vai mais fazer vestibular: foi reprovado novamente no colegial. Minha irmã Cláudia ganhou uma Caloi 10 de Natal do noivo (Jorge, lembra?), e eu me apossei dela e hoje mesmo dei voltas incríveis pelo Menino Deus. Márcia tá bonita, mais adultinha, assim com um ar meio da Mila. Zaél cozinhando, hoje faz arroz com passas para o jantar. Povos outros, nem vi. Soube que A comunidade está em cartaz ainda e tenho granas pra receber. Amanhã acho que vou lá. 46


Tô tão só, Zézim. Tão eu-eu-comigo, porque o meu eu com a família é meio de raspão. Tá bom assim, não tenho mais medo nenhum de nenhuma emoção ou fantasia minha, sabe como? Os dias de solidão total na praia foram principalmente sadios. Ocê viu a Nova? Tá lá o seu Chico, tartamudeante, e uma foto muito engraçada de toda a redação — eu com cara de “não me comprometam, não tenho nada a ver com isso”. Dê uma olhada. Falar nisso, Juan passou por aqui, eu tava na praia, falou com Nair por telefone, estava descendo de um ônibus e subindo noutro. Deixou dito que volta dia três de janeiro ou fevereiro, Nair não lembra, pra ficar uns dias. Ficará? E nada acontecerá. Uma vez me disseram que eu jamais amaria dum jeito que “desse certo”, caso contrário deixaria de escrever. Pode ser. Pequenas magias. Quando terminei Morangos mofados, escrevi embaixo, sem querer, “criação é coisa sagrada”. É mais ou menos o que diz o Chico no fim daquela matéria. É misterioso, sagrado, maravilhoso. Zézim, me dê notícias, muitas, e rápido. Eu não pensei que ia sentir tanta falta docê. Não sei quanto tempo ainda fico, mas vou ficando. Quero escrever mais, voltar à praia, fazer os documentos todos. Até pensei: mais adiante, quando já estivesse chegando a hora de eu voltar, você não queria vir? A gente faria o mesmo esquema de novo, voltaríamos juntos. A família te ama perdidamente, hoje pintaram até uns salseirinhos rápidos porque todo mundo queria ler a matéria do Chico ao mesmo tempo. Let me take you down cause I’m going to strawberryfields nothing is real, and nothing to get hung about strawberry fields forever strawberry fields forever strawberry fields forever

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Isso é o que te desejo na nova década. Zézim, vamos lá. Sem últimas esperanças. Temos esperanças novinhas em folha, todos os dias. E nenhuma, fora de viver cada vez mais plenamente, mais confortáveis dentro do que a gente, sem culpa, é. Let me take you: I’m going to strawberry fields. Me conta da Adélia. E te cuida, por favor, te cuida bem. Qualquer poço mais escuro, disque 0512-33-41-97. Eu posso pelo menos ouvir. Não leve a mal alguma dureza dita. É porque te quero claro. Citando Guilherme Arantes, pra terminar: “Eu quero te ver com saúde/sempre de bom humor/e de boa vontade”. Um beijo do Caio

Fonte: ​ Melhor da década de 70, O Caio Fernando Abreu Editora Agir

Caio Fernando Abreu nasceu em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1948. Sua obra ganhou forma em contos, peças, poemas, romances e em uma vasta produção epistolar. É autor de "Limite branco" (1971), "O ovo apunhalado" (1975), "Morangos mofados" (1982) e "Onde andará Dulce Veiga?" (1990), entre outros livros. Morreu em Porto Alegre, em 1996. 48


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