6ª Vida secreta - revista de literatura e ideias

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vida secreta REVISTA DE LITERATURA E IDEIAS

6ª ENTREVISTA: UM CHÁ COM A POETA ADRIANE GARCIA


Expediente Edição e projeto gráfico João Gomes Foto da capa Ria Sopala de Pixabay Colaboradores desta edição Adriane Garcia Hugo Guimarães Norma de Souza Lopes Cyane Pacheco João Gomes Marcela Maria Azevedo Lilian Sais Luis Guilherme Libório Leo de Sá Fernandes Júnia Paixão Contato, site e assinatura vidasecretacontato@gmail.com instagram: @revistavidasecreta vidasecreta.weebly.com apoia.se/revistavidasecreta


Carta aos leitores Mais uma edição torna-se possível graças ao financiamento coletivo desta revista no Apoia.se. O site foi alimentado todo o mês de janeiro, junto com o podcast e a editora de e-books com o lançamento da antologia Poemas & Poetas indeléveis de 2021, organizada pelo poeta gaúcho José Couto e disponibilizada em pdf aos assinantes. Nesta presente edição: poemas, contos, trecho de romance, e também entrevista, feita exclusivamente para o podcast Vida Secreta no quadro Um chá com. Neste primeiro episódio recebo a poeta mineira Adriane Garcia, que recentemente lançou Estive no fim do mundo e me lembrei de você. Boa leitura a todas, todos e todes e até a próxima. João Gomes Recife/PE


6ª Vida Secreta

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56 Dez poemas de Hugo Guimarães

Entrevista Um chá com Adriane Garcia

32 24 Dois poemas de Cyane Pacheco

Sete poemas de Norma de Souza Lopes

50

46 Artigo O indelével escrito e reunido por quem pressente os mistérios da existência, por João Gomes

Cinco poemas de Marcela Maria Azevedo


56

Trecho de O funeral da baleia, de Lilian Sais

62

Três poemas de Luis Guilherme Libório

70

A fome do Chacal, um conto de Leo de Sá Fernandes

86

Cinco poemas de Júnia Paixão

Como já dizia o poeta: "Por una mirada, un mundo..." Um projeto colaborativo, um espaço dedicado às artes e à pluralidade. Uma plataforma digital com publicações semanais que acolhe diferentes segmentos artísticos. miradajanela.com


Um chá com Adriane Garcia ​por ​João Gomes


ouça Adriane, vamos começar falando do encanto que é o título: Estive no fim do mundo e me lembrei de você. Como surgiu e como se sustentou até o fim enquanto escrevia uma parte desta exclusiva viagem sua pelo nosso planeta? Pois é, João, o título Estive no fim do mundo e me lembrei de você, que é um título que eu também gosto muito, ele na verdade surgiu antes do livro — e que não é costume acontecer com os meus livros, eu costumo encontrar depois. Mas foi numa época que estava olhando pras coisas — a beleza deste planeta sempre me comoveu muito — e eu estava olhando pras coisas e pensando: eu vou escrever sobre a beleza e também sobre essa sempre iminência de catástrofe, por causa da forma que a gente trata o planeta.

O livro faz parte de uma coleção, a Madrinha Lua, com coordenação da também poeta Ana Elisa Ribeiro e publicada pela editora Peirópolis. Quem surgiu primeiro: o livro ou o convite para estar na coleção? Na verdade o livro já estava encaminhado, eu já tinha o título e muitos dos poemas, mas não estavam com o acabamento que eu julgasse prontos para ser editado. Quando o convite da Ana veio, eu pensei que este livro poderia se encaixar bem para proposta da coleção. E aí aproveitei que eu tinha um mês de férias, coincidiu, e aí eu trabalhei esses poemas para este livro e já no intuito de entrar com ele nessa coleção. 07


"Eu estou sempre acreditando num milagre, e milagre, pra mim, não é uma coisa divina, uma coisa que vem do nada. Milagre pra mim é quando as pessoas se tocam pra perceber, quando elas têm um insight sobre si mesmas. Milagre pra mim é quando as pessoas se autoconhecem para conhecer melhor o mundo"

Com Ana Elisa Ribeiro, coordenadora da coleção Madrinha Lua, da editora Peirópolis.


Semanas antes do lançamento você compartilhou algumas imagens que lhe inspiram, como num grande álbum planetário. Por abordar uma temática ambiental este seu mais recente livro é mais imagético que os outros? É, ele é bem imagético. Não sei se mais que os outros. Porque, por exemplo, eu acho Só, com peixes muito imagético, toda a ambientação aquática dele, de mergulho; acho Eva-protopoeta também muito imagético, ali as cenas são construídas quase que com cenas teatrais; acho que o Arraial do Curral del Rei é muito imagético também no sentido de que você consegue construir na sua cabeça aquele lugar. Mas acho que o Estive no fim do mundo e me lembrei de você é bem imagético justamente porque muitos desses poemas me surgiram por imagens mesmo. Então há muitas descrições dessas imagens e também a citação dessas imagens, citação de elementos que logo que a gente cita é imediatamente feito a imagem.

Você nos conta, já no final do livro, que muitos dos poemas foram inspirados pelo documentário Nosso planeta, de 2020, e lançado pela Netflix. Aproveitando a inspiradora revelação do seu processo criativo, gostaria que contasse o que mais lhe inspira para escrever quando você anuncia: “suporto sal, muito sal, e ainda protejo meus peixes”? Sim, esse documentário Nosso planeta é muito bonito — e ele me levou muito à infância, e à TV que era ainda em preto e branco. E eu já gostava muito de ver programas assim, que falavam sobre o planeta ou sobre o mar. Eu me lembro que as09


sistia muitos episódios daquele oceanógrafo Jacques Cousteau. Quando eu digo “suporto o sal, muito sal, e ainda protejo meus peixes” — e aí já acho que é essa mudança de várias formas de pensar que a poesia faz. O processo poético é um processo em que você sai de um pensamento, entra em outro e vai noutro, e acho muito rico. Porque ao mesmo tempo que estou falando de imagens que estou vendo, eu posso trazer pra minha própria vida. Então quando eu falo “suporto o sal, muito sal, e ainda protejo meus peixes”, estou trazendo de uma situação planetária, ou de preocupação com o meio-ambiente, na verdade para uma metáfora da própria vida — que a gente já suportou muita coisa, que a vida nem sempre foi fácil, e que na história da minha vida faz parte isso também, proteger os que dependem de mim, ter um olhar muito voltado para os mais vulneráveis na sociedade.

O poema que abre o livro, “Suvenir”, é como uma despedida. Num dos versos, você diz: “Para te lembrar de mim.” No poema Vidro você tem um desejo: “Queria ter feito um poema/Cauteloso, um poema que pudesse/ Desacelerar as horas”. Tendo também atravessado o período pandêmico, mas sem ter adotado um tom triste por não desejar, acredito, que fosse um livro de quarentena, você pensou na morte pessoal enquanto escrevia este seu livro? Sim, eu pensei na morte pessoal escrevendo esse livro também. É porque na verdade quando eu penso no planeta, quando eu penso na extinção das espécies, inclusive a nossa, a gente está falando também de morte. E é claro que uma coisa leva à outra, a gente pensa também na nossa própria morte 10


porque de qualquer maneira um dia estarei extinta também. E tem isso também do período pandêmico, que acaba que o assunto morte veio muito à tona. Eu acho que praticamente todo mundo teve algum conhecido, algum parente que tenha morrido pela covid-19, principalmente por causa da falta de vacinação a tempo. Porque o governo realmente resolveu não vacinar e resolveu optar pela morte das pessoas, foi uma opção na medida em que já havia recursos pras pessoas serem vacinadas, então obviamente houve uma intenção e houve uma escolha pelo assassinato. Quando a gente fala genocida não é só uma figura de linguagem, não é uma metáfora, é realmente um acontecimento: registrados 620 mil mortos e agora toda essa polêmica para não vacinar crianças. E fora da questão da pandemia, claro, a gente pensa na própria morte, e é saudável porque afinal de contas é a nossa única certeza.

Muitos dos poemas chamam atenção para a desigualdade social. Trazendo uma reflexão sobre a problemática do tema, como por exemplo o fingir que ela não existe, no poema "Arquitetura hostil" você escreve: “Para que você decida se a crueldade/É bonita/E se não deveria compor nossos retratos.” Você se sente acompanhada por outros poetas contemporâneos que abordam o social da mesma forma tristemente encantadora que você vem fazendo? Acho que sim, tem muitos poetas bons trabalhando com essas questões sociais, trabalhando numa poesia que ao mesmo tempo tem as exigências e estruturas de um poema, a linguagem de um poema, mas ao mesmo tempo trazem uma crítica social contundente. São muitos, mas eu poderia citar 11


agora assim de cabeça o Tarso de Melo, o Ademir Assunção, a Lisa Alves que tem um trabalho assim também, a Nívea Sabino, poetas que trabalham com essa preocupação, com essa temática. O Ricardo Aleixo também faz muito isso, o Pedro Bomba, que é um poeta maravilhoso, com poemas nesses temas, nessa sensibilidade. Enfim, são muitos e muitas e que bom que é assim.

Seu estado, Minas Gerais, infelizmente iniciou 2022 com muitas tragédias. Como é perceber que sua poesia está tratando de algo tão urgente e ao mesmo tempo tão maltratado, que é o nosso planeta e país, e com quem você deseja falar por meio da lembrança do fim? Pois é, João, Minas Gerais começou mal o ano, com excesso de chuva. E há esse desequilíbrio mesmo: chove pouco não está bom, dá a crise hídrica, se chove muito também não está bom. E aqui a gente tem essa assombração constante, que a qualquer momento pode se tornar bem real, que é o rompimento das barragens. Todos esses crimes que acontecem dessas mineradoras, que na verdade têm a obrigação de trabalhar de forma segura e não trabalham, ou seja, não fazem o que tem de ser feito. Já li que esse modelo de barragens são ultrapassados e que em outros países nem são aceitos mais, e aqui continua porque pra eles sai mais barato indenizar quando acontece algo do que refazer todo esse sistema. Sem contar que Minas Gerais já traz esse destino no próprio nome: as minas gerais, então a questão da mineração aqui é algo muito sério, é algo que envolve muito dinheiro, poder, envolve inclusive a questão do governo estadual. E o livro acaba falando destas 12


coisas porque tudo é a forma como tratamos o planeta. Quer dizer, uma barragem estoura, como aconteceu, e aí o Rio Doce fica completamente enlameado e as comunidades ribeirinhas e indígenas que viviam ali não conseguem mais pescar, não conseguem mais viver ali, e essa lama e essa poluição toda chega no Espírito Santo, deságua no mar. Quer dizer, nada fica só circunscrito, porque a gente está em simbiose com todo o planeta e o capitalismo não quer saber disso, ele quer destruir mesmo. E as pessoas que destroem este planeta eu tenho a impressão que elas são completamente sociopatas, e aí estou dizendo dos grandões mesmo, porque eles não se importam realmente. Eles têm dinheiro para gastar dezenas de gerações, não vão nem gastar esse dinheiro, mas eles querem mais, querem mais, e não importa o que destroem. A falta de empatia é completa.

Os poemas deste seu livro mostram um lado bem pessoal, afinal o Estive, como você costuma resumir o título, é bem presente na maioria dos poemas em primeira pessoa, com um eulírico verdadeiramente humano. Este lado pessoal seria sobretudo autobiográfico? Sim, acho bem acertada essa sua observação. O título já é bem pessoal, e ao mesmo tempo o título traz essa vontade de me comunicar, que eu estive no fim do mundo mas me lembrei de você. Eu quero me comunicar, eu quero dizer disso que estou vendo e sentindo.

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Este é o seu sétimo livro de poesia. O que você pôde aprender com ele escrevendo, revisando, enviando para a editora, fazendo lançamento e colhendo de retorno de seus leitores? Acho que é isso mesmo, a gente sempre aprende muito com os livros que escreve. Eu acho que aprendi muitas coisas que eu não sabia, até mesmo algumas regiões do planeta, porque pesquisei bastante. Assisti esse documentário também Nosso planeta, que é um documentário grande, muito bonito e bacana. E acho que a gente está sempre aprendendo formalmente também, e eu tenho essa coisa de não querer fazer um livro muito parecido com o outro, nem formalmente. Acho que eu tinha saído de um processo, que era do Eva-proto-poeta com muita síntese e nesse eu dei mais raso pra palavra, pra falar mais, algo menos sintético — mas claro que sempre usando a sínteses, até porque eu acho que é uma característica da minha poesia, mas soltando um pouco mais, escrevendo um pouco mais. Gostei muito de fazer.

Você dedica o Estive a todas as pessoas que se arriscam a fazer ativismo ambiental no Brasil. No poema Mais uma distopia você escreve: “Fica registrado/O inequívoco fracasso/E vão a Marte.” Você acredita que ainda podemos salvar o planeta, nós que aqui ficaremos até o fim? João, querido, eu estou sempre acreditando num milagre, e milagre, pra mim, não é uma coisa divina, uma coisa que vem do nada. Milagre pra mim é quando as pessoas se tocam pra perceber, quando elas têm um insight sobre si mesmas. Milagre pra mim é quando as pessoas se autoconhecem para 14


conhecer melhor o mundo. Eu estou sempre acreditando que esse milagre pode acontecer — e pode não acontecer, mas pode acontecer também. Eu gosto muito de pensar que as novas gerações são melhores que as anteriores, e às vezes muita coisa que a gente vive ruim no mundo de errado e a gente atribui às novas gerações é mentira, são das gerações anteriores. É a minha geração e as gerações para trás que deixaram o mundo muito ruim, à beira do colapso. Um mundo patriarcal, um mundo homofóbico, um mundo racista, um mundo misógino, um mundo capitalista, destruidor do próprio planeta, da nossa casa. E eu vejo um esforço das novas gerações, e estou falando dos meninos pré-adolescentes, dos jovens como você, eu vejo um esforço em trocar a chave desses pensamentos, em alterar completamente esses pensamentos. Então, no fundo eu estou sempre acreditando que esse milagre vai acontecer.

Adriane, gostaria de agradecer este chá que você tomou aqui com a revista Vida Secreta e aproveitar para pedir que você recite um dos poemas e ainda nos contar um pouco sobre seu próximo, A bandeja de Salomé, que terá prefácio da Maria Valéria Rezende. João, foi uma alegria pra mim, é um prazer falar na Vida Secreta, nesse chá, adorei a ideia. Falar um pouquinho do meu A bandeja de Salomé: provavelmente é o meu próximo livro que sairá publicado pela editora Caos & Letras, já até enviei pra eles a minha última versão trabalhada. Vai sair bilíngue, com a tradução para o espanhol do Manuel Barrós, que é um tradutor peruano maravilhoso, que faz um trabalho muito atento, gosta demais de poesia, e vai ficar bem bacana. Bom, 15


vou ler o poema “Regeneração”, do Estive no fim do mundo e me lembrei de você.

REGENERAÇÃO Nem tudo está perdido Às vezes não dá para mim, mas Acontece com outra criatura Veja No Pacífico Sul algo se recupera Os pássaros voltaram para anunciar que há peixes Os cormorões, as gaivotas-monjas, os atobás peruanos Descem o Atacama Dentro de mim tudo é deserto Por isso é melhor que eu guarde bem meus pés e Não toque em nada (se não amamos nossas crianças nada vai dar jeito, escute) Recolho-me Quero fazer o menor mal possível E em troca recebo a visão dos pelicanos: O melhor pôr-do-sol é este Que partilhamos com outras criaturas. Adriane Garcia, poeta, nascida e residente em Belo Horizonte. Publicou Fábulas para adulto perder o sono (Prêmio Paraná de Literatura, Só, com peixes, Garrafas ao mar, Eva-proto-poeta, entre outros. adrianegarcialiteratura.blogspot.com 16


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