50 dias de revolta

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GERAIS

DOCUMENTO FALSIFICADO

Trabalhador passa quase dois meses atrás das grades por crime que não cometeu, até o reconhecimento do erro pela Justiça. Cartas narram o desespero e a indignação na cadeia

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dias de J revolta AUREMAR DE CASTRO/EM – 4/3/08

Surpreendido por um mandado de prisão em seu nome, Jefferson Pires contou com o apoio da família para superar o trauma

Identidade de risco A polícia não sabe como o criminoso da Zona da Mata teve acesso aos dados pessoais de Jefferson Pires. Há suspeita de que alguém tenha achado a carteira de identidade que o rapaz tirou quando criança. Adulto, ele substituiu o documento, mas não sabe onde está o original. Segundo o diretor-adjunto do Instituto de Criminalística da Polícia Civil, o delegado João Lopes, casos de pessoas que adotam a identidade de outras são comuns. A orientação mais importante para não ser vítima desse tipo de aborrecimento é registrar Boletim de Ocorrência (BO) quando perder documentos. “Se o documento cai na mão de marginais, ele tem um valor razoável. A pessoa troca apenas a foto e faz compras sem pagar ou mesmo comete crimes”, conta o delegado. O pior vem depois, em caso de flagrante do criminoso. “O sujeito é liberado e desaparece. Decreta-se a prisão preventiva. Quem vai ser preso? O verdadeiro dono da identidade”, afirma o policial. Casos de presos que passam pelo Instituto e juram, de pés juntos, que não têm envolvimento com o crime, são analisados com cuidado, garante o diretor-adjunto. “Uma alter-

nativa é levar o acusado ao Fórum, buscar a vítima ou policial envolvido na ocorrência, para saber se há erro. Outra forma é o laudo de confronto de digitais”, explica João Lopes. Até que isso ocorra, a pessoa fica presa por precaução. “É uma situação complicada ficar na cadeia com um tanto de bandido, esperando o estado resolver a situação”, admite o diretor-adjunto, que não vê alternativa à situação. A delegada Rosely Baeta Neves, da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio, pediu ao Instituto de Criminalística da Polícia Civil a realização de exame com as digitais do Jefferson, mas o resultado ainda não saiu. Já em liberdade, Jefferson afirma ter procurado a Defensoria Pública para tentar regularizar a situação nos municípios onde responde a processos e inquéritos. Mas foi orientado a pedir ajuda a representantes do órgão em cada município. O processo que resultou na prisão do rapaz foi iniciado em Viçosa, mas o juiz da comarca declinou da competência e o encaminhou para a Comarca de Rio Pomba. Por meio da assessoria, o juiz de Rio Pomba, Elias Aparecido de Oliveira, informou que não vai comentar o caso. (TH)

THIAGO HERDY

efferson Batista Pires, de 28 anos, trabalha desde os 15 anos, nunca roubou, nunca matou, mas está com medo de sair de casa porque pode ser preso a qualquer momento. Um erro da Justiça fez com que passasse 50 dias detido, por engano, no lugar de outro Jeferson, integrante de uma quadrilha especializada em roubo de carga, que se passa pelo rapaz para não ser incomodado. Atualmente preso no estado do Rio de Janeiro, o criminoso falsificou documento com dados pessoais do jovem de Belo Horizonte – como nome dos pais, ano de nascimento e número do RG. Foi grande a surpresa do verdadeiro Jefferson (que tem dois efes no nome e assina Pires, não Peres, como o assaltante), ao tentar tirar um atestado de bons antecedentes no posto Psiu, da Praça Sete, no Centro de Belo Horizonte, em dezembro: soube que havia um mandado de prisão em seu nome. Daí, foram nove dias encarcerado no Ceresp São Cristóvão, na Lagoinha, na Região Noroeste da capital, e mais 41 dias preso na cadeia pública de Viçosa, na Zona da Mata. Só 50 dias depois o juiz foi informado do erro e mandou soltá-lo. Mas o drama do rapaz não acabou. Segundo o advogado, seu nome está em pelo menos outros 15 processos e inquéritos em municípios da Zona da Mata, como Miraí, Ponte Nova, Rio Pomba, Além Paraíba e Ubá. Isso significa que, a qualquer momento, juízes dessas cidades podem pedir sua prisão. “Somos pobres e o mínimo que a gente tem que ter é o nome limpo para poder trabalhar. Não sou bandido. Eles estão acusando meu nome, não minha pessoa”, disse Jefferson, finalmente em casa, mas sem saber como resolver o problema. A família ainda deve metade dos R$ 3 mil cobrados pelo advogado, que viajou a Viçosa e Rio Pomba para mostrar aos Juízes a fotografia do Jeferson criminoso, fornecida por policiais da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio, da Polícia Civil. O mesmo advogado cobra mais R$ 15 mil para defender o jovem nos municípios onde tem o nome envolvido em delitos praticados por outro. Entre 2003 e 2006, enquanto o criminoso homônimo vivia um círculo vicioso – alternando assaltos, prisões em flagrante, volta às ruas e assaltos em Minas, Espírito Santo e Rio de Janeiro –, Jefferson trabalhava montando bicicletas ergométricas, servindo como ajudante de produção, ou descarregando caminhões de refrigerante. Desempregado desde 2007, começaria em um novo emprego em uma empresa de manutenção de ar-condicionado, em dezembro. Faltava-lhe apenas o atestado de bons antecedentes para assinar o

contrato, mas os 50 dias de prisão fizeram com que o patrão procurasse outro funcionário. A mulher, Poliana Aparecida Custódio, de 23 anos, foi pega de surpresa. Ele se preparava para encomendar o bolo, salgados da vizinha Rosa Maria e os doces da mãe para o aniversário de 5 anos do filho do casal, em 23 de dezembro. A festa foi cancelada por causa da prisão. Para Jefferson, não estar com o filho naquele momento foi pior do que ter passado o Natal e o ano-novo longe da família. Ele garante não ter sido maltratado na cadeia, mas perdeu sete quilos. A família procurou uma emissora de TV e uma rádio, para denunciar o caso, enquanto o rapaz estava preso. Mas ninguém acreditou na história. “Aqui só tem gente inocente, não trabalhamos com culpados”, brincou a delegada Rosely Baeta Neves, da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio, ao lembrar da ocasião em que foi procurada pelo advogado de Jefferson. Ele pedia ajuda para identificar o verdadeiro criminoso. Afinal, acreditava que seu cliente estava preso por engano. Apesar do ceticismo inicial, a delegada chamou um agente de sua equipe, que já trabalhou na Zona da Mata. Ele se lembrou do verdadeiro criminoso e forneceu a foto.

CORRESPONDÊNCIA Seis corres-

pondências enviadas à família são prova da angústia vivida pelo jovem preso sem saber porquê. No primeiro texto, remetido quando ainda estava no Ceresp São Cristóvão, no prédio do Departamento de Investigações (DI), Jefferson pede à mãe que não deixasse o filho de 4 anos saber onde ele estava. Chamado pelo carcereiro, nove dias depois de preso, ele pensou que o mal-entendido estaria desfeito. Mas, na verdade, estava sendo transferido para Viçosa, município de origem do pedido de prisão preventiva. “Mãe, estou escrevendo mais uma vez para vocês (...); estou apavorado por causa disso, preso há 33 dias e nem um advogado me procurou até hoje (…). Só o fato de estar a 250 quilômetros de Belo Horizonte está me deixando doido”, escreveu o rapaz, em 11 de janeiro. O irmão Jackson Palermon Pires, de 34, viajou duas vezes a Viçosa, mas não viu o irmão porque a visita só era autorizada somente depois de 30 dias de permanência do suspeito na prisão. “Todos os dias de visita até choro quando não vejo ninguém, estou tão sozinho aqui e só Deus para me consolar”, afirmou em uma das cartas. Ele fala com amor e saudade da mulher, Poliana. “Manda um beijo para o Kayck (filho), fala com ele que o papai está com muita saudade. “

CARTAS DA PRISÃO DEZEMBRO 2007, Ceresp São Cristóvão, BH

11 DE JANEIRO DE 2008, Cadeia Pública de Viçosa

“Mãe, é seu filho Jefferson. Estou preso sem saber porque. Vocês todos sabem que sou inocente, que não cometi assalto nenhum, peço que vocês orem por mim porque eu estou com muita saudade de todos vocês e do Kayck, não deixe ele saber onde estou. (…) Não esqueça de mim porque estou passando um momento muito difícil da vida. (…) Peço para mandar roupa velha, pasta de dente e sabonete e biscoito de maizena, porque biscoito recheado não entra aqui; só não fala nada pra ninguém, mãe, sei não, eles podem fazer alguma coisa comigo aqui, ok? (...) Mande algumas coisas para mim, porque estou com aquela roupa tem uma semana.”

“Mãe, (…) só o fato de estar preso, a 250 quilômetros de BH, já está me deixando doido, porque estou longe da minha família e com muita saudade de todos. (…) Já não agüento mais ficar longe do meu filho Kayck e da Poliana, e já estou ficando revoltado com tudo isso que tá acontecendo comigo, porque sou inocente e estou pagando por um crime que não cometi. Vocês me falaram que o cara que usou meus documentos já foi preso, e ninguém me soltou até hoje, e nem advogado me procurou para resolver o problema.”

5 DE JANEIRO DE 2008, Cadeia Pública de Viçosa “Mãe, sou eu, Jefferson, estou apavorado e sem dinheiro para comprar as coisas aqui, me manda uma carta explicando tudo o que está acontecendo aí, estou até precisando de uma psicóloga, porque não estou com a cabeça boa, é muita coisa para uma pessoa só. Todo dia eu choro de depressão, rezo e peço a Deus para me tirar desse pesadelo.”

18 DE JANEIRO DE 2008, Cadeia Pública de Viçosa “Poliana, manda um beijo para o Kayck, fala com ele que o papai está com muita saudade dele, e estou com muita saudade de você, neguinha, parece que tem mais de anos que não vejo vocês. (...) Deus sabe da minha inocência, peço a Ele para continuar seguindo minha vida, trabalhando como sempre fiz e cuidando de você e do Kayck.”


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