Alice Moderno e a Proteção dos Animais

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Alice Moderno e a Proteção dos Animais (Textos publicados n’ “A Folha”)

Caderno Terra Livre nº 5

Julho de 2012


Ficha Técnica: Capa: Caricatura de Alice Moderno da autoria de Vítor Câmara Textos: Alice Moderno 1ª Versão Julho de 2012


Índice A necessidade de criação de uma sociedade protetora dos animais

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A Proteção dos Animais

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A Proteção aos Animais

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Proteção aos ninhos

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Sociedade Protetora de Animais

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Sociedade Protetora dos Animais

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Sociedade Protetora de Animais

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Cães envenenados

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Cães Envenenados

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Cães Envenenados

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Proteção aos animais

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Numa tourada (I)

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Numa tourada (II)

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Proteção aos animais

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Sociedade Protetora dos Animais

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Sociedade Micaelense Protetora dos Animais

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Sociedade Protetora dos Animais

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Barbaridade

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Assunto Urgente

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Sociedade Micaelense Protetora dos Animais

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Proteção aos animais

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Impérios

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Martírio de um boi

44

Pobres cães

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Maus tratos a animais

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Uma barbárie sem justificação

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Pelos animais

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Envenenamento de um cão

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Nota Prévia

Na sociedade açoriana de hoje, embora a maioria da população continue apática, existem cidadãos que se preocupam com a situação em que vivem os animais, alvo das mais diversas barbaridades.

Para levarem a bom porto a sua luta, que é parte do combate por uma sociedade diferente, isto é mais justa, livre e igualitária, é imperioso o conhecimento do que se faz em todo o mundo e imprescindível não ignorar os combates travados no passado.

De entre as pessoas que lutaram por uma sociedade melhor para todos, nos Açores, destaca-se a figura de Alice Moderno (1867- 1946), daí que dediquemos este caderno a divulgar alguns textos da sua autoria publicados no jornal “A Folha” (1902-1917), de que foi diretora, editora e proprietária.

17 de Julho de 2012 Teófilo Braga

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A necessidade de criação de uma sociedade protetora dos animais Vimos hoje levantar um grande grito de protesto e de indignação em prol dos pobres animais, dos nossos irmãos inferiores, segundo a frase de Santo Agostinho.

Vimos apelar para a consciência e para o coração de quem nos lê, e, como nós, presencia todos os dias a forma bárbara porque são tratados pelas classes menos cultas da sociedade.

Dois ónibus que transitam entre Ponta Delgada e Ribeira Grande são movidos respetivamente por três muares, cujo único aspeto constitui uma completa ignomínia. Inverosimilmente esqueléticos, cheios de equimoses e mataduras, não podemos vê-los sem que se nos mova a comiseração mais profunda pelo destino adverso.

Outros, um pouco menos esqueléticos talvez, mas quase tão infelizes, atravessam as ruas de Ponta Delgada ajoujados a carroças, cujos fueiros sinistros constituem o instrumento de suplício que os obriga a deslocar pesos muito superiores às suas forças. Não há muito, em plena rua da Misericórdia, numa das artérias mais concorridas da cidade, um pobre muar escorregou e caiu, ficando a arquejar sob o peso da carga que transportava, e eram grossos madeiros.

Das lojas vizinhas, honra lhe seja, acudiu gente, que no auge da aflição começou a descarregar a carroça, cujo peso brutal ameaçava quebrar as costelas do animal sufocado. Quem menos se ralou foi o carroceiro, cuja fisionomia alvar exprimia o mais abjeto rancor, sem dúvida pela demora ou incómodo que o incidente lhe causaria. Fomos testemunhas do facto, e connosco um cavalheiro do continente, atualmente em residência nesta cidade, e com o qual, acerca do mesmo, trocámos impressões. ҉ Não raramente se encontram pequenos carros, transportando sacas, barris ou indivíduos, sãos e robustos, às vezes uma e outra carga, e puxados por carneiros, cujos membros 4


retesados indicam claramente o esforço sobre-humano que fazem para poder transportar as pesadas cargas, umas, além de pesadas, antipáticas.

Os indivíduos que assim abusam do direito da força, quando se lhes faz alguma advertência, respondem insolentemente, o que há apenas dois dias acontecia com dois dos nossos leitores, uma senhora e um cavalheiro, que já depois de escrito em parte este artigo, vieram pedir-nos que tomássemos na imprensa a defesa dos pobres lanígeros e similares.

Este espetáculo odioso e deprimente para o nosso estado de civilização pode ser desde já reprimido.

Bastará um alvará do sr. Governador civil do distrito, proibindo que na zona a cargo da sua administração seja permitido utilizar s carneiros como bestas de carga.

A sua Ex.ª endereçamos desde já um pedido, neste sentido, na certeza de que o aparecimento do referido alvará será acolhido como um ato de boa e justa administração por quantos possuem sentimentos humanitários e presam o bom nome desta ilha perante os estrangeiros que nos visitam. ҉

Nos campos, existe o costume bárbaro de deixar as crianças devastar ninhos e martirizar pássaros, com grande prejuízo, não só da agricultura, de cujos produtos são os mais vigilantes guardas, mas ainda para o carácter das mesmas crianças, que vão adquirindo hábitos de crueldade, que poderão influir poderosamente, de futuro, nas suas relações interindividuais.

Ora é mister que nos levantemos todos, num grande impulso de caridade, e diligenciemos fazer cessar semelhantes cenas, que são incompatíveis com o século em que estamos e indignas dum povo civilizado.

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E nada mais prático se nos afigura, para o conseguir, do que a criação de uma sociedade protetora dos animais, à imitação das que existem em Lisboa e Porto e tão bons serviços tem prestado como elemento civilizador!

Para a realização cabal do alvitre que aqui iniciámos, contamos com a coadjuvação de todos os membros da imprensa micaelense, para a qual apelamos desde já.

E contamos ainda com a coadjuvação de todas as pessoas de boa vontade e de bom coração.

- É necessário que nos unamos nesta nova cruzada. - É mister acabar com as cenas aviltantes que todos os dias vimos presenciando. - É preciso que a nossa proteção, a nossa caridade, e a nossa benemerência se estendam, como um benéfico manto, aos nossos irmãos inferiores, a esses pobres animais que nos protegem, nos servem, nos ajudam, nos guardam, nos vestem, nos sustentam e nos amam com tão enternecido e desinteressado afeto!

Guerra sem tréguas aos indivíduos de mau carácter, que espancam as bestas de carga, martirizam os cães e os gatos, e privam os pássaros – essas estrofes aladas – da estremecida e indefesa prole!

Aí fica desde já registado o nosso protesto que, temos fé, encontrará eco em todas as consciências e em todos os corações. (A Folha, nº 316, 25 de Outubro de 1908)

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A Proteção dos Animais Ao nosso grito de apelo em prol dos pobres animais, tão onerados de deveres, mas tão desprotegidos de direitos, entre nós, corresponderam quatro dos nossos colegas: Diário dos Açores, San Miguel, Correio Micaelense e Revista Pedagógica. Ao primeiro destes jornais, que citamos pela ordem cronológica dos locais que produziram, somos devedores, entre outras amabilidades, da transcrição de parte do nosso artigo a favor dos nossos irmãos inferiores. Com respeito ao último, cumpre-nos elucidar que de há muito existe entre nós a compreensão da necessidade do estabelecimento de uma sociedade protetora dos animais, ideia cuja prioridade por forma alguma disputamos, sendo o primeiro, que saibamos, a aventá-la in illo tempora, o falecido advogado e grande homem de bem, Dr. Henrique Ferreira de Paula Medeiros, (1), que nunca conseguiu dar-lhe, contudo realização. De então para cá, uma ou outra vez têm aparecido pequenos artigos verberando os autores de maus tratos aos irracionais, mas sem que conseguissem serem tomadas providências. Neste jornal, por mais de uma vez, nos temos ocupado do assunto, e anteriormente o fizemos num diário confiado à nossa direção, O Diário de Anúncios, publicando neste uma série de artigos que obtiveram do Zeoófilo, órgão da Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa, a distinção, certamente imerecida, da transcrição integral. Esses e outros esforços eram visivelmente sinceros mas não passaram das regiões do puro platonismo. Cumpre agora, que alguns jornais se encontram dispostos a combater em prol do mesmo ideal, não deixar de mão o assunto, que é certamente alevantado e indiscutivelmente civilizador. Quem trata carinhosamente os animais, tem a alta compreensão dos seus deveres para com os seus semelhantes. À piedade e à misericórdia tem direito todo o ser vivente, desde o momento em que seja inofensivo e sofra.

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Da guerra aos lobos deve resultar, coerentemente, a proteção aos cordeiros. E como o Diário dos Açores se prontificou a operar ativamente nesta campanha, convidamos a sua redação, na qualidade de decano, a promover uma reunião de representantes dos quatro jornais acima citados, reunião em que poderão ser discutidos os estatutos de uma sociedade protetora dos animais e nomeada a sua direção. Pela nossa parte, desde já oferecemos a nossa colaboração ativa e constante, assim como a de alguns amigos dos animais, de quem recebemos, por ocasião da publicação do nosso artigo, os mais animadores aplausos. (1)

O Dr. Henrique Ferreira de Paula Medeiros era um grande amigo dos animais. Ainda nos lembramos de o ver, montado numa jumenta arcaica, que mal podia com ele, e que não a substituía por não a querer abandonar, em direção à sua quinta da Fajã, onde tão excelente chá verde, confecionado pelas suas próprias mãos, oferecia aos seus amigos.

O quintal de sua casa na rua do Valverde, hoje propriedade do sr. João Luís da Câmara, a cuja esposa, sua sobrinha, a legou, era um verdadeiro asilo para os felinos, que lá cresciam e se multiplicavam, conforme o preceito evangélico.

O cão, amigo do homem, segundo a frase dos franceses, tinha nele um extremoso defensor, achando-se encarregados de alegrar o seu lar de solteirão, alguns felizardos da espécie canina, que muita vez afagamos, no seu gabinete, de mobiliário antigo, cujas paredes eram ocupadas por grandes estantes de mogno.

Desse sossegado quarto de trabalho, possuímos uma relíquia: dois quadros contendo valiosas gravuras em cobre com os retratos das famílias Orleânica e Napoleónica, que devemos à amizade da irmã do Dr. Paula Medeiros, a Exª Sr.ª Dona Maria Ermelinda de Medeiros Botelho, veneranda viúva do nosso saudoso amigo, o grande democrata Dr. José Pereira Botelho.

De resto a caridade do Dr. Henrique de Paula Medeiros estendia-se à espécie humana, e foi em virtude de uma proposta sua, quando deputado por este circulo, que foi votada uma pensão vitalícia aos sobreviventes dos 7000 bravos do Mindelo. Chamávamos-lhe, por brincadeira que benevolamente consentia aos nossos então verdes anos: Le chevalier sans peur et sans reproche, e, com efeito, bem sentava a divisa de Bayard ao respeitável ancião.

(A Folha, nº 318, 8 de Novembro de 1908) 8


A Proteção aos Animais Na última quinta-feira, e a convite da redação deste jornal, conferenciaram com esta representantes do Diário dos Açores e da Revista Pedagógica. Não corresponderam ao aviso que lhes foi remetido por haverem manifestado a sua simpatia pela criação de uma Sociedade Protetora dos Animais, os redatores do Correio Micaelense, nem do São Miguel, tendo o primeiro, sr. Dr. Humberto de Bettencourt, escrito à mesma, alegando a impossibilidade de comparecer à reunião. Os representantes dos três jornais acima citados deliberaram elaborar estatutos, que serão submetidos à aprovação do governo, devendo reunir-se na próxima segunda-feira, a fim de prosseguirem nos seus trabalhos iniciais. Aprovados os estatutos, serão convidados a aderir todos os cidadãos de ambos os sexos residentes no distrito, cooperando cada um com uma pequena quota anual, cuja totalidade será depositada na Caixa Económica da Associação de Socorros, destinandose a prémios, anualmente conferidos, em sessão solene, a quantos se tiverem evidenciado pela sua piedade para com os animais. Pela redação da Folha foi também alvitrado que se mandasse cunhar uma medalha, que servisse de distintivo aos sócios, tendo verso e anverso, e apresentando num a cabeça de um cão da Terra Nova, e no outro a de um boi, com as seguintes legendas, em um dos lados: Sociedade Protetora dos Animais Micaelense, 1908, e no outro: Pelos nossos irmãos inferiores, frase esta da autoria, como é sabido, de um sábio doutor da igreja. ҉ Cumpre-nos agora registar, com os elogios que merece, um acto do sr. Capitão João Francisco da Silveira, digno comissário de polícia, que tendo visto, há dias, um indivíduo arrastar brutalmente pela orelha um pobre cão, o mandou chamar por um dos seus subordinados, ameaçando-o com o calabouço, se reincidisse em maltratar o animal. Folgamos de mencionar este facto, que muito honra a autoridade policial.

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É pela proteção aos seres naturalmente desprotegidos que se aquilata a superioridade moral de um povo. Os americanos, cuja civilização se impõe ao respeito dos países mais adiantados, timbram nas suas leis, em demonstrar, acima de tudo, a sua deferência para com as mulheres, o seu respeito para com os velhos, a sua piedade para com os animais. Uma cruzada persistente e cheia de dedicação, por parte da imprensa, conseguirá certamente incutir no ânimo de muitos o que sentem alguns, e o grande espírito e grande coração de Emílio Zola, magistralmente interpretaram: “Por que é que o sofrimento dos animais me comove tanto? Porque é que eu não posso ficar insensível à ideia de que um pobre animal sofre, a ponto de me erguer de noite, em pleno inverno, para me certificar de que ao meu gato não falta ração de água? Por que é que a todos os seres da criação considero como relacionados comigo, e a sua lembrança me enche de comiseração, de tolerância e de ternura? Porque os animais fazem também parte da comunidade a que pertenço e a que pertencem todos os meus semelhantes!” (A Folha, nº 321, 29 de Novembro de 1908)

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Proteção aos ninhos É nesta época que os passarinhos se acasalam e constroem os ninhos destinados a proteger os seus ovos, e, mais tarde, os seus filhos. É sabida a guerra movida a esses pobres seres, tão graciosos e tão inofensivos, pelas crianças dos campos, que apanham os ninhos, quebram os ovos e engaiolam os passarinhos implumes, condenando-os assim, pela privação dos carinhos paternais, a uma morte horrível. Este facto, além de ser uma iniquidade, considerada moralmente é um absurdo, se o encararmos pelo lado prático. Os pássaros, além de terem, como todos os seres inofensivos, direitos à vida, são, além disso, os benfeitores da agricultura. É bem conhecida a anedota das cerejas e de Frederico Magno da Prússia, que mandou caçar os pardais que lhe comiam os belos frutos, de que era sumamente guloso o régio paladar, decretando depois um édito em contrário, e multando quem destruísse os pardais, por haver reconhecido que os insetos de que estes são ávidos também, lhe devoravam muito mais cerejas do que as pobres aves que ele condenara à morte, numa reedição da bíblica degolação dos inocentes. Neste sentido, em que tantas vezes nos temos pronunciado, inseriu o nosso ilustre colega Província do Algarve, um eloquente artigo, que vamos, com a devida vénia, reproduzir: “Desde certa época para cá, tem-se levantado na Europa, uma campanha em favor dos passarinhos, que tão grandes benefícios prestam à agricultura. Limpam as árvores e as plantas de insetos, lagartas e parasitas, que tando danificam e muitas vezes as matam. Antigamente a ignorância e os preconceitos filhos dela levaram ao absurdo e crueldade de se criarem prémios para os que apresentassem um certo número de cabeças de pássaros! Atualmente dão-se prémios aos que amam e protegem esses pequeninos seres alados tão simpáticos e úteis ao homem. Na imprensa francesa o sr. Cunisset Carnot está fazendo ativa propaganda no sentido de se organizarem sociedades protetoras contra os inimigos destruidores dos pássaros. Num dos seus interessantes artigos diz ele que de todos os pontos de França tem recebido grande número de cartas animadoras, já de habitantes das cidades, já dos campos, caçadores, grandes proprietários, lavradores e até de crianças e de pobres trabalhadores dos campos. Os amigos das aves, acrescenta, 11


são já uma legião. Parece que todos esperavam ocasião de se manifestarem, e que ele a proporcionou por seus escritos. Isso mostra que em França já todos reconheceram a utilidade desses pequeninos seres, tão dignos da nossa admiração e simpatia, quer pelas suas belas plumas, quer pelos seus cantos alegres, quer por seus ninhos engenhosos, e quer, finalmente, pelo carinho e dedicação que mostram pelos filhos. É já tempo, diz o sr. Cunisset Carnot, que façamos alguma coisa para salvarmos as poucas castas de pequenas aves que ainda nos restam, para conservarmos estes seres que são o encanto dos nossos campos e jardins, e obreiros infatigáveis na defesa de nossas colheitas contra toda a espécie de insetos que as devoram. Aqui nos tornamos eco dessa útil campanha, a fim de que cesse entre nós a guerra e a perseguição aos pássaros pelo próprio homem, como se este fosse uma feroz ave de rapina. É mais do que esta, que mata por necessidade; enquanto o homem mata por prazer, como o gato; ou por estupidez. Nada mais cruel do que a caça aos ninhos pelos rapazes. Tolerar semelhante ato é perverter o coração da criança, enquanto ensinando-a a amar os passarinhos predispomos o coração dela para o bem e para o amor de todas as criaturas que nos são úteis”.

(A Folha, nº 339, 11 de Abril de 1909)

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Sociedade Protetora de Animais A Vida Nova, no seu nº de 15 de agosto, publicou o seguinte artigo, da autoria do Sr. João Anglin, distinto aluno do Liceu Central desta cidade: Uma das mais manifestas provas da ignorância do nosso povo é a feroz brutalidade que usa com os pobres animais que na maioria dos casos lhe são um valioso auxílio na luta quotidiana pela vida. Estes repugnantes espectáculos que diariamente se repetem nas ruas desta cidade nada atestam a favor da nossa boa terra, antes a desconceituam aos olhos dos estrangeiros que nos visitam os quais nos terão na conta de brutos a julgar por essas cenas bárbaras de que são vítimas os pobres animais indefesos. Com isto não queremos dizer que o povo seja mau, porque de há muito está provado que não há homens maus. O que há apenas é essa crassa ignorância por cuja perpétua conservação tanto se empenham os políticos e governantes. Um dia virá em que essas atrocidades serão por completo eliminadas, mas antes de se chegar a essa época de felicidade era bom que alguma coisa se fizesse no sentido de melhorar a sorte desses pobres seres que tantos serviços prestam ao homem e que em recompensa recebem forte pancadaria quando porventura se encontram impossibilitados de trabalhar tanto quanto os seus donos exigem. É para evitar estas bestialidades que existem as Sociedades Protectoras de Animais. Na nossa terra já alguém se lembrou de fundar uma sociedade destas e se não nos enganamos chegaram a ser elaborados os estatutos mas até agora não nos consta que além deste se tenham empregado outros quaisquer esforços para a realização dessa excelente ideia. Os órgãos da imprensa local que tanto alarde fizeram quando se apresentou o alvitre da fundação de uma Sociedade Protetora de Animais calaram-se misteriosamente sem que até hoje saibamos o motivo desse súbito silêncio. Do mesmo modo o público o desconhece e por isso pedimos que nos digam qual o fim que levaram os estatutos da Sociedade: se foram dormir o sonho dos justos no 13


cesto dos papéis velhos e inúteis ou se ainda existem para algum dia terem a sua aplicação. Pela nossa parte ao lermos o artigo do Sr. Anglin, pegamos na carapuça, que tão bem talhara, e encaixamo-la na cabeça até abaixo das orelhas... ҉ A Folha foi e tem sido, de há oito anos para cá (longa peregrinação esta, pelo calvário da imprensa periódica!) uma defensora dedicada dos direitos dos pobres animais, tão mal tratados, nesta terra, pelas classes menos cultas da sociedade. Abriu mesmo uma campanha, generosamente secundada por alguns colegas. Estabeleceu-se que se redigiriam estatutos para a criação da Sociedade Protetora dos Animais, estatutos que deveriam ser submetidos à aprovação superior. Depois…os trabalhos inerentes a quem luta pela vida, foram obrigando os que mais dedicadamente haviam lançado e patrocinado a ideia, a dilatar a sua execução. Da teoria à ação vai muitas vezes uma distância enorme. E assim foram continuando sem proteção legal, entre nós, os pobres animais que tão bons serviços nos prestam. E por isso, continuam a ser vistos, pelas ruas de Ponta Delgada, a 3ª cidade do reino: Muares cheios de feridas, deslocando, da Ribeira Grande a Ponta Delgada, e vice-versa, grande s veículos que transportam 12 pessoas e variada carga. Carneiros e cabras utilizados como animais de tiro. Cães obrigados a pegarem com os dentes em cestos que contêm géneros alimentícios em grande quantidade. Animais de tiro puxando carroças cheias de cunhais, e cujo zelo pelo trabalho é estimulado com pancadas dadas pelos carroceiros por meio de grossos fueiros. E isto tudo, para edificação dos estrangeiros que nos visitam, para aproveitamento moral das crianças que temos o dever de guiar, para aperfeiçoamento dos cidadãos, com os quais vivemos, com os quais somos solidários…

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Muito longe de nós a ideia de increparmos a responsabilidade do que apontamos a quem quer que seja, individualmente falando. A responsabilidade é de todos e, como já declarámos, pela nossa parte, encaixamos na cabeça a carapuça, muito bem talhada pelo sr. Anglin, na Vida Nova. Mas urge providenciar, em nome da caridade que nos merecem os pobres animais que tão bons serviços prestam, o que , como escrevemos algures, nos guardam, nos servem e nos amam com tão enternecido afeto. É necessário que do âmago de todos os corações surja para com eles um pouco de piedade e de amor. E como o analfabeto não compreende que, aos direitos que lhes assistem sobre eles, correspondem deveres em igual intensidade, é mister que intervenhamos, com toda a eficácia da lógica, e com todo o rigor aparente da Lei. E mais uma vez apelamos para a Imprensa, e temos fé que, ao menos agora, saberá unirse com mais solidariedade e agir com mais energia. As teorias, mesmo as melhores, abrem caminho, é certo, mas de pouco servem, se a prática não as vem completar. E assim, continuemos com dedicação e com fé, até completa vitória, nesta generosa campanha em prol daqueles a quem São Francisco de Assis chamou: “Os nossos irmãos inferiores” (A Folha, nº 412, 11 de Setembro de 1910)

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Sociedade Protetora dos Animais O sr. Francisco Maria Supico, nosso distinto e respeitável colega de A Persuasão e Gazeta da Relação, no seu número de 28 de setembro, do primeiro desses jornais, inseriu a seguinte local: “Proteção aos animais – A nossa distinta colega, d’A Folha, reproduzindo no seu número de 11 do corrente, um belo artigo do sr. João Anglin, aluno muito considerado do Liceu Central desta cidade, sobre criação de uma sociedade protetora dos animais, a nossa referida colega, repetimos, aproveitou o ensejo para continuar na simpática, porém até agora pouco feliz propaganda da proteção aos animais. Está muito bem entregue a causa. Para advogar as que ferem a sentimentalidade, não há como o coração duma senhora, mormente se ela dispõe dum espírito luminoso e culto, como o da ilustre colega srª D. Alice. E como a primorosa escritora se lamenta agora o ter-se visto desajudada dos colegas neste humanitário trabalho, acudimos a dizer-lhe que não sabemos explicar a causa do nosso silêncio, a nenhum modo propositado, mas conseguindo-se ir guardando para amanhã (o santo amanhã de Portugal) o principiar de qualquer coisa que poder ter demora na conclusão. De um dia para o outro, de semana e mês para semana e mês vai decorrendo o tempo, passam anos até que por nós mesmos é censurado este espasmo de torpor que tanto nos magoa. E aqui está a nossa desculpa no caso presente. Não lhe atribua outra origem a ilustre colega, e conte com o nosso aplauso à sua cruzada e com o auxílio mais ou menos débil, que lhe possamos dar.” Agradecendo ao ilustre confrade as amabilidades que nos dirige, pedimos-lhe licença para as contestar, e igualmente a classificação de débil com que adjetivava o seu auxílio, em prol dos nossos irmãos inferiores. Na imprensa não há, felizmente, vox clamantis in deserto, quando a causa é justa e a forma é correta, além de que, a voz do ilustrado colega, sr. Franscisco Maria Supico, decano da nossa imprensa, ecoou sempre no meio micaelense com sonoridade e clareza, 16


sendo consequentemente importante o seu auxílio, que registamos e com o qual ficamos a contar. Realizar-se-ão brevemente, na redação deste jornal, algumas sessões noturnas em que serão elaborados e discutidos os estatutos, a fim de serem submetidos à autorização superior. Para presidente da Sociedade será convidado o sr. António José de Vasconcelos, grande proprietário, agricultor, lavrador e benemérito micaelense, sendo os restantes membros da Direcção eleitos pela assembleia geral, composta de todos os cidadãos, sem distinção de sexo, idade ou classe, que queiram pertencer à sociedade. De todos os trabalhos realizados iremos dando conta nos seguintes números deste jornal. (A Folha, nº 415, 2 de Outubro de 1910)

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Sociedade Protetora de Animais Como fora combinado, realizou-se no último domingo a reunião dos membros da imprensa local empenhados na constituição de uma Sociedade Protetora de Animais nesta ilha. Além dos redatores e representantes da imprensa periódica, compareceram os srs. Amâncio Rocha, Fernando d’Alcântara, Henrique Xavier de Sousa e Manuel Botelho de Sousa. Convidada a ler os estatutos que elaborara a nossa prezada colega da “Revista Pedagógica”, D. Maria Evelina de Sousa, dessa missão se desempenhou, sendo, após pequeníssimas modificações, plenamente aprovados. Como sejam necessários dois exemplares escritos em papel selado, ofereceu-se para efetuar essa cópia, o sr. Henrique Xavier de Sousa, que é muito hábil calígrafo, e a quem todos os circunstantes agradecem este serviço prestado à justa e humanitária causa que os reunia ali. Logo depois de copiados, serão apresentados à aprovação do chefe do distrito. Não carecemos de recomendar esta humanitária iniciativa, nem os benefícios que está chamada a realizar perante a civilização, já pela caridade que tem por móvel, já como elemento educativo de primeira ordem para as classes populares, que bem carecem dele. Continuaremos a informar os nossos leitores do movimento desta simpática Associação. (A Folha, nº 442, 30 de Abril de 1911)

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Cães envenenados Infirmam-nos que todos os dias aparecem, de madrugada, pelas ruas da cidade, cadáveres de cães, mortos, sem dúvida, por lhes ter sido ministrada a fatal estricnina. Protestamos contra esse processo sumário de eliminar o melhor amigo do género humano. Se há, infelizmente, cães sem dono, pobres animais abandonados, que incomodam os transeuntes, não trazem estes letreiro, e o bolo municipal pode muito bem ser ministrado a algum animal doméstico, que não traga coleira por não o permitir o indígena, mas cujo dono tenha pago o respetivo imposto. Alvitramos, pois, que os cães vadios sejam depositados em qualquer recinto, anunciados, e só mortos no caso de não serem reclamados, e de não haver que se prontifique a adotá-los, responsabilizando-se pela sua sustentação. Como membro fundadora da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, protestamos, pois, contra os canicídios que nos dizem haver-se realizado. (A Folha, nº 442, 30 de Abril de 1911)

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Cães Envenenados Há dias, em frente à tip. da República, presenciámos a aflitiva morte de um cão rateiro, envenenado por meio de estricnina. Nesse mesmo dia soubemos ter morrido pela mesma forma um outro cão, pertencente ao sr. Vicente Gaspar Henriques. A este foram prestados socorros, mas sem resultado. O primeiro cão apresentava-se bem comido e tratado, devendo também ter dono. À hora e que este jornal entra no prelo comunicam-nos estar a agonizar, em frente aos armazéns Cogumbreiro, um cão de vigia. Sabemos que a polícia procura descobrir os canicidas. Pela nossa parte protestamos contra o bárbaro procedimento desses indivíduos, quem quer que sejam, e ainda censuramos o procedimento dos diretores de farmácias que vendem esse veneno a criaturas anónimas e inconscientes – que outras não podem ser as que tão cruelmente procedem contra animais inofensivos – habilitando-as assim, a inclusivamente, atenderem contra a vida humana – pois quem por tal forma procede, se não completa a obra, eliminando o seu semelhante, é unicamente com medo do código penal. Aqui fica registado, pois, o nosso protesto contra um e outro facto. (A Folha, nº 457, 13 de Agosto de 1911)

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Cães Envenenados A República de ontem insere uma local assinada por Um diretor de farmácia, censurando A Folha por esta, sob a mesma epígrafe que hoje empregámos, haver reprovado os estabelecimentos farmacêuticos que fornecem estricnina a entidades anónimas e mal-intencionadas, que outras não podem ser as que, sem outra forma de processo, eliminam cães, quer tenham dono quer não. Ora A Folha, atribuindo essa transação às farmácias, baseou-se, com efeito, na carta de lei de 13 de Julho de 1882, que só permite a venda de drogas medicinais àqueles estabelecimentos e não a quaisquer outros. Se alguém com menoscabo da mesma lei, negocia com substâncias venenosas, cumpre averigua-lo, para que, sobre o mesmo, incida a penalidade em que incorreu. E o signatário da local, esclarecendo, nesse ponto, as autoridades locais, terá prestado um bom serviço à sociedade e cumprido um dever cívico. Quanto às palavras com que remata o seu artigo, cumpre-nos dizer ao autor que o policiamento das ruas compete às autoridades e aos seus agentes, e nunca aos particulares, o que daria lugar a um sem número de abusos que, numa cidade civilizada, não podem, por forma alguma, admitir-se. Resumindo, da local d’ “A República” deduz-se que além de haver indivíduos malfazejos, que matam animais inofensivos, há estabelecimentos venais, que, ilegalmente, vendem ou exportam substâncias tóxicas, ao que também cumpre obstar, para garantia não só dos animais, mas dos cidadãos da República. Temos ainda a acrescentar que não houve da nossa parte o mínimo intuito de agravar uma classe honesta, trabalhadora, e à qual estão confiadas grandes responsabilidades, o que provamos

com o único facto de havermos endereçado o jornal a todos os

interessados, a fim de poderem dizer da sua justiça, e em obediência às praxes da lealdade jornalística que nos prezamos de conhecer e praticar. (A Folha, nº 458, 20 de Agosto de 1911)

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Proteção aos animais Foram aprovados, por alvará do sr. Governador Civil do distrito, os estatutos da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, a qual vai começar em exercício, na posse do diploma que a autoriza a funcionar legalmente. Aos sócios, seus fundadores, não passam despercebidas as dificuldades que vão encontrar, a relutância sistemática, a má vontade, a brutalidade congénita hereditária, atávica, das massas incultas da sociedade micaelense. Será pois, para os sócios fundadores, o estabelecimento da sociedade, um verdadeiro martirológio, em que vão enveredar benemeritamente. Mas a verdade é que não podíamos, sem menosprezo para nós mesmos, continuar a permanecer no indiferentismo comodíssimo de quem presencia cenas de uma revoltante iniquidade, e, encolhendo os ombros, prossegue no seu caminho, a tratar dos seus negócios ou a fazer o “chylo”, depois de um confortável jantar. É necessário que tomemos a parte dos nossos irmãos inferiores, segundo a eloquentíssima frase de S. Francisco de Assis! Todos os dias se encontram carroças demasiadamente carregadas, sendo manifesto o esforço dos animais de tiro que as deslocam! Todos os dias se veem indivíduos na força da vida, na pujança da saúde, em carroças pesadíssimas de madeira, puxados por animais das raças caprina e lanígera! Todos os dias nos confrontamos com veículos destinados ao transporte de passageiros, custosamente arrastados por animais esqueléticos, reconhecidamente tuberculosos e, ainda por cima, cheios de chagas e equimoses! A maior parte dos muares que puxam carroças são cegos de um olho, visto que os condutores, muito propositadamente, os espicaçam nessa parte sensibilíssima do corpo, com uma selvajaria que está mesmo a pedir o mais severo dos corretivos! Em todas as horas do dia, topamos carroças debaixo das quais vem amarrado um cão, que tem fatalmente de acompanhar oi passo do animal incomparavelmente maior do que 22


ele, que transporta o veículo, sob pena de morrer estrangulado, ou de ser feito em pedaços de encontro às pedras de calçada, com a circunstância agravante de não poder parar, se porventura necessitar fazê-lo, nem saciar a sede nas fontes públicas, cujas águas cristalinas devem consubstanciar para o infeliz quadrúpede o martírio de Tantalo! Frequentemente vemos nas nossas estradas, e até nas nossas ruas, mortalmente feridos ou irremediavelmente estropiados, indivíduos da espécie canina, atropelados por automóveis, em doida correria! Há semanas, não era raro verem-se, nas ruas da baixa, cães envenenados, de olhos vidrados, nas convulsões da agonia, em consequência de lhes haverem sido propinadas pilulas de estricnina! Na linda estrada nova que nos leva de Ponta Delgada à Ribeira Grande, à esquerda, existe uma cova, de muitos metros de altura, de onde são despenhados pelos donos todos os animais velhos, cansados de os servir, ou ainda aqueles de quem se pretendem desfazer, por antipatia muitas vezes injustificada! É contra estes e outros atos da mais completa crueldade que nos cumpre protestar com toda a sinceridade das nossas convicções, com toda a comiseração que em nossos peitos cabe! Pobres animais! Tão dedicados aos donos e à defesa da sua propriedade, tão pouco exigentes quanto à remuneração dos serviços que prestam, tão reconhecidos aos favores e bons tratos que recebem! Acudir-lhes, na sua cruciante desdita, e levar aos cérebros apoucados que os brutalizam uns feixes de luz e caridade, eis a missão árdua mas nobilíssima a que se propõe a Sociedade Micaelense Protetora de Animais. Bem haja, pois, e bem hajam aqueles que tomaram a generosa iniciativa de a fundar, não se poupando a esforços para o seu conseguimento! (A Folha, nº 463, 24 de Setembro de 1911)

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Numa tourada (I) Pela 1 hora da tarde, e depois de havermos, à janela da sala do hotel, inutilmente esperado uma carruagem requisitada, a qual nunca chegou a aparecer, dirigimo-nos a pé para a praça de touros, sita num alto, na freguesia de S. Pedro, indo ocupar um camarote. Acha-se em Angra uma quadrilha composta de jovens toureiros, los niños sevillanos, rapazes de 16 a 18 anos, ainda imberbes, que correm novilhos com destreza, e fazem as delícias da população terceirense, tão amadora de touros, que bem mostra correrem-lhes nas veias ainda hoje glóbulos de sangue espanhol. Tanto os camarotes como as bancadas encontram-se repletos de espetadores, e, nos primeiros raios de um lindo sol outonal, cintilam garridamente as cores claras das toiletes femininas das senhoras terceirenses, reputadas, entre as açorianas, pela sua graça e formosura. Pelos corredores, vendedores ambulantes oferecem favas torradas, milho submetido ao mesmo processo culinário, laranjas e água, e, à entrada, ao balcão, vendem-se refrescos, entre os quais cerveja da fábrica Melo Abreu Herdeiros, de Ponta Delgada. Começa a diversão por exercícios de ginástica, executada por operários, sócios da agremiação, Recreio dos Artistas. Toca uma filarmónica e, de espaço a espaço, sobem ao ar pequenas girandolas de foguetes. Concluídos os exercícios acrobáticos, feitos, com mais ou menos mestria na barra fixa, são retiradas estas e o tapete sobre o qual haviam dado cambalhotas os curiosos ginásticos. Entra então a quadrilha, que se dirige para o camarote da autoridade, a fazer os cumprimentos do estilo, percorrendo em seguida a praça com vénias aos espetadores. Os jovens toureiros vestem fatos claros, de vistosas cores. Usam meia de seda, calção, sapatos de fivela e, como é da praxe, rabicho.

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Um deles monta um cavalo esquelético, de olhos vendados e é logo para o infeliz quadrúpede que se dirige toda a minha atenção. É ele, não tenho pejo de o confessar, que absorve toda a minha simpatia e para o qual todos os meus melhores desejos… Pobre animal, ser incompleto, irmão nosso inferior, serviu o homem com toda a sua dedicação e com toda a sua lealdade, consumindo em seu proveito todas as suas forças e toda a sua inteligência! Agora, porém, no fim da vida, é posto à margem e alugado a preço ínfimo, para ir servir de alvo às pontas de uma fera, da qual nem pode fugir, visto que tem os olhos vendados!” E esta fera, pobre animal, também, foi arrancada ao sossego do seu pasto, para ir servir de divertimento a uma multidão ociosa e cruel, em cujo número me incluo! Entrará assim em várias touradas, em que será barbaramente farpeada até que, enfurecida, ensanguentada, ludibriada, injuriada, procurará vingar-se, arremessando-se sobre o adversário que a desafia e fere. Depois de reconhecida como matreira, tornada velhaca pelo convívio do homem, será mutilada. Em vez de touro de praça, será boi de charrua ou carroça, ou ambos alternadamente. E lavrará pacientemente, resignadamente, santamente, as terras destinadas a produzir o trigo e o milho que o homem há-de comer. Quando as suas forças tiverem entrado no período declinatório, dar-lhe-ão, em vez da restrita ração quotidiana, dose dobrada. E quando algum descanso relativo, aliado a esta também relativa superalimentação lhe tiverem revestido o esqueleto de alguns escassos ádipos, será abatido e fragmentado, ainda para alimentação do mesmo homem, que se não esquecerá, também, de lhe utilizar o couro, para defesa dos seus pés, e os cascos e chifres para artefactos do seu uso … E, então, por um fenómeno físico que muitas vezes tenho observado em mim própria, toda a alegria festiva daquela diversão, em que certamente não haveria morte de gente nem mesmo de bicho, se transforma em melancolia amaríssima, contra a qual dificilmente posso reagir. Tento, todavia fazê-lo. Empunho o meu binóculo, e enquanto não entra o tour, do que serei avisada pelo toque de corneta, vou correndo com a vista os camarotes, em muitos dos quais reconheço caras minhas conhecidas e, em alguns, os meus companheiros de viagem de bordo do Funchal.

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Moniz Machado, por exemplo, num camarote próximo àquele em que me encontro, come, ao tempo, denodadamente milho torrado, e parece disposto a gozar a festa em todas as suas peripécias, com o seu infalível bom humor. Para este feliz mortal, não há melancolias nem tristezas, e este vale é bem mais de risos do que de lágrimas! Toca dentro em pouco a corneta, a música ataca a canção do Toreador da Carmen de Bizet, os capas poem-se em posição, e o cavaleiro empunha a lança com que tem de defender-se, e ao triste cavalinho que monta… O tourinho, por felicidade, é um pobre animal inofensivo, que a luz, a música e o barulho aturdem por completo … Numa certa ocasião o cavaleiro apoia-se e abandona, com um desplante que me indigna, a pobre cavalgadura à sua nefanda sorte. A minha ansiedade, que não é preciso dizê-lo, aumenta. Felizmente, o touro porta-se à altura. Há muitas vezes, nas feras, mais generosidade do que nos homens… Nisto um moço de forcado, (abençoado seja ele!) retira da arena o desgraçado animal. Cobro então alma nova e recomeço a conversar com os meus companheiros, que são Maria Evelina de Sousa, Inácio Cardoso Valadão e José Sebastião d’Ávila Júnior. Alice Moderno (in Cartas das Ilhas, XIX, A Folha, nº 486, 3 de Março de 1912)

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Numa tourada (II) Muito embora em vários assuntos que nessa ocasião discutimos nos encontremos de perfeito acordo, não abordo o tema perigosíssimo das touradas, nem lhes comunico o que me vai na alma … De resto, a tourada decorreu como todas as que tenho assistido. Houve ferros bem metidos, e ruidosamente festejados, e após a saída de cada novilho, a quadrilha percorreu a arena, sendo-lhe arremessados dinheiro, flores, cigarros e rebuçados, que os toureirinhos levantavam, agradecendo com garbo peculiar da sua raça. A única nota discordante é a de um tourinho muito levado da breca, que, logo ao entrar no circo, parece dar cabo de tudo. Os toureiros, prudentemente, depois de alguns simulacros de desafio, ocultam-se atrás dos esconderijos, sendo conduzidos à arena as doceis vacas pacificadoras, destinadas a induzir o touro a recolher-se ao curral. Este, porém, ébrio de fúria, e sacudindo belicamente as pontas que se desembolaram, fere com certa profundidade, no peito, uma das companheiras, correndo o sangue em grossos jorros. Foi a simpática rês a única vítima daquela diversão, tão apreciada pelos nossos vizinhos de oeste. Não é preciso dizer que não saí do circo sem ir inquirir da saúde da pobre sacrificada, encontrando-a muito ferida, sim, mas já pensada, e sofrendo a sua má sorte com uma coragem estoica, o que é, aliás, muito mais vulgar nos irracionais do que na nossa espécie. E divido com o nobre animal, tão estupidamente ferido, parte da muita simpatia que sagrara ao cavalinho esquelético, daquela quase inofensiva tourada. (in Cartas das Ilhas, XX, A Folha, nº 487, 10 de Março de 1912)

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Proteção aos animais

Sob este título, insere, no seu último número, datado de 5 do corrente, “O Autonómico” de Vila Franca: “Pelo que acabamos de ler, parece que em Angra se vai tomando a peito a proteção aos animais, devido ao zelo e esforços de uma sociedade que para tanto ali se organizou. Muito justo e louvável. Bom era que também entre nós se cultivasse a sério tal assunto e desse inteiro cumprimento ao nosso código de posturas municipal, que naquele particular diz: “Artigo 46º” – A ninguém é permitido: 1º- Carregar os animais, ou veículos tirados por aqueles, de modo que se exija dos mesmos animais esforços extraordinários; 2º- Empregar em serviços animais extenuados, chagados, famintos ou notavelmente doentes; 3º- Espancar ou tratar com crueldade publicamente os animais próprios ou alheios: Parágrafo único- A transgressão dos números 1 e 2, deste artigo será punida com a multa de seiscentos reis, e a do número 3 com a multa de mil e duzentos reis.” Já de há tempos que “O Autonómico” vem escrevendo sobre a forma descaroável porque se tratam os animais, não só em Vila Franca, como, infelizmente, em toda a ilha de São Miguel. Por esse facto, não regatearemos encómios àquele colega. E, a propósito, informá-lo-emos que existe, na pátria de Bento de Góis, um vendilhão de peixe, surdo-mudo de nascença, que espanca o pobre burro que lhe serve de ganha pão com uma ferocidade inaudita e revoltante. 28


Esse facto foi presenciado não há muitas semanas, na Praia, por várias pessoas, entre as quais citaremos os srs. João Nicolau Ferreira, Henrique Machado de Ávila e a redatora deste jornal. Encontrava-se também presente um súbdito alemão que, no auge da maior indignação, quis intervir, em defesa do pobre burro, contra o ferocíssimo aborto que, armado de um grosso cacete, atirava à cabeça da infeliz cavalgadura enormes bordoadas. E, na verdade, aquele infamíssimo procedimento estava mesmo a pedir a pena de talião. Quem com ferro mata… Concordando plenamente, pois, com as reclamações sensatas e humanitárias do “Autonómico”, chamamos a atenção das autoridades competentes e as daquele jornal para o bárbaro procedimento do vendilhão de peixe surdo-mudo de Vila Franca do Campo. (A Folha, nº 516, 13 de Outubro de 1912)

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Sociedade Protetora dos Animais Reassumiu a presidência da direção desta benemérita associação o sr. Capitão Tibúrcio Carreiro da Câmara, tendo sido encarregada de secretariar a mesma a pedido deste e do sr. Governador Civil do distrito, digno presidente da Assembleia Geral, a nossa presada colega da “Revista Pedagógica”, srª. D. Maria Evangelina de Sousa. É de crer que, devido à boa vontade destes três importantes fatores na constituição da sociedade, comece a mesma a prestar importantes serviços, que bem necessários se tornam, para seu levantamento. De facto, é absolutamente condenável a crueldade com que nesta ilha são tratados os pobres animais, sendo letra morta as posturas municipais redigidas no intuito de os proteger. Com efeito e contra a expressa determinação do que estas posturas impõem ou deveriam impor, vemos todos os dias carroças e até carros de aluguer puxados por animais chagados, ou exaustos de trabalhar. Se um dos desventurados escorrega e cai, o condutor do carro “auxilia-o” a levantar-se atirando-lhe grossa pancadaria à cabeça e dirigindo-lhe insultos que se não ultrajam a dignidade do infeliz quadrúpede, ofendem todavia a moral pública e suscetibilizam os ouvidos de quem passa. A polícia, em semelhantes ocasiões, brilha pela sua ausência, ou então, finge que não vê, e cada um prossegue o seu caminho, no louvável intuito de se não ralar para não alterar a fatura do “chylo”. Este statum quo, todavia absolutamente impróprio de uma cidade civilizada, tem de fatalmente modificar-se. É necessário que os protejamos, nós para quem o bem não é simplesmente um substantivo comum, masculino, singular, sem nenhuma outra significação além das suas circunstâncias gramaticais. Para o conseguir, é preciso em primeiro lugar que se cumpram as posturas municipais até hoje descuradas, e que aos guardas da polícia cívica seja recomendada a máxima 30


vigilância no sentido de serem reprimidas as cenas de crueldade que todos os dias vimos presenciando. Seria também justo que fossem multados os donos das cocheiras que empregam em seu serviço animais doentes. De todos estes assuntos e de muitos outros se pretende tratar na próxima reunião da sociedade, a qual será oportunamente anunciada. Eis o que nos cumpre informar a uma colega local e a algumas pessoas, amigos dos animais, que nos perguntaram o que sobre o assunto se oferecia de novo. (A Folha, nº 518, 27 de Outubro de 1912)

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Sociedade Micaelense Protetora dos Animais

Começou esta benemérita sociedade os seus trabalhos, que, muito embora ingratos e árduos, devem vir a ser coroados do melhor êxito. Não carece de ser defendida a legitimidade da sua existência, e devem estar na mente de todos as causas determinantes da sua criação. A brutalidade, inata nas mais baixas classes sociais, com raras e muito honrosas exceções, leva-as a considerarem os animais unicamente como produtores de um salário com que os donos se vão locupletando, dando-lhes o alimento indispensável à conservação da sua miserável existência, obrigando-os a trabalhar, quando estão doentes e martirizando-os com mais bárbaros castigos, quando por absoluta impossibilidade física, se recusam a deslocar os fardos, em toda a hipótese superiores às suas forças, que entendem deverem transportar. Dado este estado de coisas, cumpria ao bom nome da sociedade micaelense, tão propícia, como as que mais o são, à prática do bem, por cobro a que se continuassem a por em prática os abusos que vimos apontando e que, infelizmente, se iam dando, em cenas pouco edificantes, desenroladas em plena rua. A infância abandonada e desvalidada tem direito à proteção, e possui, nesta cidade, em belo edifício próprio, um asilo, onde crianças do sexo feminino recebem o pão do corpo e do espírito. Para os indivíduos do sexo masculino, e identidade de circunstâncias, instituiu um benemérito, João Francisco Cabral, um internato. Os vencidos da sorte, na época em que os achaques da velhice os inutilizam para o trabalho, encontram também, no Asilo de Mendicidade, o teto que os abriga e a alimentação que os supre. Para os forateiros e jornaleiros , que não se veem ainda absolutamente inutilizados, ou, mesmo, não podem, pelo seu feitio, coadunar-se com o internato, foram criados o

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Albergue Noturno e a Cozinha Económica, instituições em que a generosidade da alma feminina esplende com os seus mais nítidos fulgores. Para aqueles que adoecem, e não podem, ou mesmo não querem tratar-se em suas casas, existe o Hospital de Ponta Delgada, que, tanto pelos seus recursos pecuniários, instituídos por opulentos legados de generosos benfeitores, coo pelas suas excelentes instalações cirúrgica e radiográfica, e pelos seus corpos médicos e de enfermagem, pode ser considerado como um dos primeiros do país. Os animais, porém, nossos irmãos inferiores, segundo a frase tocante do admirável santo que foi São Francisco de Assis, esses, não tinham ainda almas que compartilhassem das suas dores, nem vozes que se levantassem na defesa dos seus direitos. Felizmente, um grupo de indivíduos bem-intencionados resolveu consagrar alguns dos seus escassos ócios em prol dos infelizes abandonados, e, de ora em diante, como início desta generosa cruzada, serão reprimidas e castigadas cenas de brutalidade de que eram teatro as nossas ruas, e muitas vezes mereceram a mais acerba censura dos forasteiros que nos visitavam. Por este passo dado na estrada da civilização, de que é fator importantíssimo a piedade para com os que sofrem, felicitamos cordialmente as pessoas que, com prejuízo dos seus interesses próprios, ou ainda inutilizando as poucas horas de descanso que usufruem, fundaram a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, e a têm levado sem esmorecimentos nem impaciências – característico de tíbios e nevróticos – ao ponto em que hoje se encontra, de começar o seu funcionamento, que certamente chamará para ela a atenção do público, que bem merece, e sem a proteção do qual não conseguirá manter-se. (A Folha, 24 de Novembro de 1912)

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Sociedade Protetora dos Animais Esta benemérita sociedade, ultimamente estabelecida em Angra do Heroísmo, atendendo a que é de muito difícil acesso para carroças de transporte de carga a rampa do cais da Alfândega, resolveu, obtida a respetiva autorização do sr. Presidente da Câmara, mandar deitar de conta da Sociedade, uma camada de areia no pavimento da referida rampa, o que se fará por ocasião da chegada dos vapores da carreira. As torturas impostas por vezes aos pobres animais que ali fazem serviço, devido ao calcetamento estar muito moído e gasto e ao excesso das cargas que os obriga a beijar o chão, caindo sobre os joelhos, que muitas vezes esfolam, está pedindo uma outra ordem de providências que só com o tempo poderão ir sendo tomadas, visto a falta de recursos com que presentemente lutam as corporações administrativas daquela ilha. Em Ponta Delgada, nas proximidades da rua dos Mercadores, lado da Graça, existe também uma rampa muito perigosa para os animais de carga, que não raramente caiem e se magoam, sendo ainda em cima maltratados com pancadas pelos ignóbeis condutores que os exploram. Para esse facto chamamos a atenção da digna Direção daquela benemérita sociedade, à qual cumpre oficiar à Câmara Municipal para que seja reparada aquela parte da rua dos Mercadores, que representa mais um passo no doloroso calvário dos muares indígenas. (A Folha, nº 522, 21 de Novembro de 1912)

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Barbaridade Não tem outro nome o facto de se obrigar um pobre carneiro a transportar em longas distâncias e às vezes por caminhos em declive e mal calçados, pesados fardos e indivíduos de proporções avantajadas, com o quadruplo do peso do infeliz quadrupede! Não há muitos dias, no caminho de S. Gonçalo, encontrámos uma carroça de carneiro, sobre a qual dois indivíduos, que, de “humanos só tinham a forma e o gesto”, estavam comodamente sentados, ao passo que o pobre ruminante se esfalfava para deslocar o enorme peso que os dois, adicionados à carroça, representavam. Para idênticos factos pedimos a intervenção da polícia. O carneiro fornece-nos a lã que nos agasalha o corpo. A sua fémea dá-nos o leite e a lã. Em épocas eleitorais de antigas eras, tinham também papel político. Em épocas todo o tempo é comido: guisado, com batatas; cosido, com molho de alcaparras; e, assado, au cresson…Querer, ainda por cima, que seja animal de tiro, é exigir muita coisa de um só animal. Contra estes factos, protestamos, em nome da humanidade, e reclamamos a acção policial. Sejam multados os indivíduos que abusam tão brutalmente da sua força, em prejuízo de um pobre ser indefeso. E ficaremos um pouco mais levantados perante os estrangeiros, visto que a civilização de um povo se aquilata principalmente pela forma pela qual se trata os seres inferiores. (A Folha, nº 535, 23 de Fevereiro de 1913)

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Assunto Urgente Vimos hoje tratar de um assunto que tem muito mais importância do que à primeira vista parece. Trata-se da velocidade com que os automóveis atravessam as nossas ruas, dificultando o trânsito das mesmas, estropiando inofensivos animais domésticos e constituindo um perigo para a vida e para a integridade física do cidadão. O assunto tão momentoso é que já foi tratado na câmara dos srs. deputados, sessão de 9 do corrente, em que o deputado sr. Carlos Calixto se ocupou da excessiva velocidade dos automóveis em Lisboa, o que não é só culpa da polícia, mas também, e principalmente, dos regulamentos, que permitem 20 quilómetros à hora nas povoações, ao passo que, em geral, não se pode exceder, no estrangeiro, 15 quilómetros. Não se deveria permitir andamento superior ao de um cavalo a trote; mas, na Junqueira, e nas avenidas novas, os automóveis atingem 60 quilómetros à hora! O sr. Alberto Silveira acha toda a razão em tais considerações e refere que o regulamento está de tal forma que não há meio de pagar multa, contando o facto curioso de certo cavalheiro querer pagar uma multa e não ser possível fazê-lo! Acrescenta que até os próprios estrangeiros, assombrados com a velocidade dos nossos automóveis dentro da cidade, se arreceiam de nelas tomar lugar. O sr. Carlos Calixto, continuando, insiste em pedir providências pelos ministérios do interior e do fomento, e refere ainda que está informado não terem, em geral, os automóveis de praça os dois travões regulamentares, pois não são munidos de alavanca. Assim fazem os “chauffeurs” para evitar o estrago dos protetores; mas isso representa um grave perigo. O sr. Ministro do interior toma na melhor conta estas considerações que, por via do sr. Governador civil, já lhe haviam chegado ao conhecimento e, de acordo com o seu colega do fomento, se ocupará de tão importante assunto.

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Nesta ilha, emque os automóveis abundam, convém não descurarmos também tão momentosa questão, fazendo cumprir o regulamento existente, e castigando severamente os delinquentes, havendo ainda a acrescentar, como circunstância agravante, o facto da vertiginosa correria dos automóveis não ser devida ao desejo de aproveitar o tempo, sendo em geral as pessoas que menos trabalham as que mais depressa caminham, por luxo de épater o indígena, ou ainda para mostrar a sua perícia como chauffeurs. À polícia e à Sociedade Protetora de Animais está naturalmente indicado a correção destes abusos, que ninguém, dotado de bom senso e imparcialidade, poderá deixar de condenar. Aos membros, pois, da útil corporação e aos beneméritos sócios da segunda, recomendamos este assunto. ҉ Depois de composto este artigo, contou-nos um cavalheiro da nossa amizade que na última quinta-feira, no Pópulo, um automóvel passou sobre um cão, deixando-o em lastimável estado, no meio da estrada, acudindo em volta do animal o rapazio do lugar, que começou a apedrejá-lo, congratulando-se com os gemidos lamentáveis do desgraçado quadrúpede. Este repugantíssimo espetáculo, só próprio da Cafraria, teria sido evitado se se impusesse aos donos de automóveis que atropelam um animal, - sob pena de policia correcional – o transportá-lo imediatamente à esquadra de polícia cívica, que tomaria conta dele, chamando um veterinário que o tratasse, ou o matasse o menos dolorosamente possível em caso de incurabilidade. Como está entre mãos do digno comissário de polícia, sr. Dr. António Franco, o Regulamento Policial relativo à proteção devida aos animais, chamamos a atenção deste funcionário para o facto que narrámos e foi presenciado por pessoas dignas de crédito. Independentemente do sofrimento do infeliz quadrúpede, ante o qual ninguém deixará de se comover, temos ainda a considerar o facto pelo lado educativo.

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Que há, com efeito, a esperar, sob o ponto de vista da moral e do sentimento, de cidadãos que, na infância, ao ver um animal contorcer-se, com os membros fraturados, se lembram de lhe suavizar o sofrimento…apedrejando-o? !!! E que ideia ficarão fazendo da índole deste povo os estrangeiros, naturais de países onde a proteção ao fraco constitui uma das bases da educação cívica e doméstica, que presenciarem cenas como esta? Sabemos que na rápida fatura do Regulamento está interessado o ilustre chefe do distrito, e confiamos da poderosa intervenção de s. Ex.ª a absoluta cessação de tão deprimentes espetáculos, o que bastaria para tornar beneficamente profícua para este distrito a administração tão zelosa quanto competente da sua primeira autoridade. (A Folha, nº 551, 22 de Junho de 1913)

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Sociedade Micaelense Protetora dos Animais Esta benemérita associação tem procurado ultimamente entrar em campo prático, sem o que a sua ação pouca utilidade reverteria, quanto à modificação dos nossos costumes relativamente aos direitos dos animais. Assim, tem já uma sede própria, deixando de utilizar-se do amável oferecimento da benemérita Associação de Bombeiros Voluntários desta cidade, em cujo quartel encontrou sempre a mais generosa hospitalidade para as suas reuniões, quer ordinárias quer extraordinárias. Para a mesma fez a aquisição de mobiliário, modesto mas decente, e poderá receber de hoje em diante todos os associados, ou não associados que com a mesma tenham algum assunto a tratar. O Regulamento Policial encontra-se já elaborado pelo digno chefe do distrito, sr. Dr. João Francisco de Sousa, e da redação da introdução ao mesmo foi encarregada a diretora deste jornal, que é também presidente da direção daquela sociedade. Em conformidade com o que costuma usar a benemérita Sociedade Protetora dos Animais de Lisboa foi dirigido às autoridades administrativas e militares uma circular, e outra foi endereçada aos professores do círculo pedindo-lhes para que mensalmente façam uma preleção aos seus alunos, no espírito dos mesmos “a bondade para com os animais, que não é mais do que um coeficiente da bondade universal”. Mais e melhor efetuar a benemérita agremiação, para a existência da qual chamamos a atenção dos nossos exmos leitores, que certamente não quererão deixar de cooperar na eficácia da sua prestante e civilizadora missão. A sede da Sociedade Micaelense Protetora dos Animais encontra-se estabelecida na rua Pedro Homem, nº 15, rés-do-chão. (A Folha, nº 589, 5 de Abril de 1914)

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Proteção aos animais Entre os estabelecimentos de caridade que honram a cidade invicta, não deve omitir-se a Sociedade Protetora dos Animais a cuja direção preside um micaelense ilustre, o sr. Dr. José Nunes da Ponte.

Dispondo de um rendimento que as quotas dos sócios e vários legados de beneméritos lhe têm fornecido, a sua receita atingia em 1913 a verba já importante de 1505 escudos, moeda portuguesa, ou sejam 1881 escudos na moeda insulana.

Permite-lhe semelhante rendimento proteger eficazmente os animais, mantendo fontenários, distribuindo prémios, custeando um posto veterinário, tendo empregados remunerados, escritório com telefone, que prontamente comunica com todos os pontos da cidade, etc. etc.

Durante o referido ano económico, foram submetidos à consulta, no posto veterinário 451 animais, distribuídos pelas seguintes espécies:

Gatos

175

Cães

165

Galos

39

Galinhas

29

Papagaios

12

Perús

7

Cavalos

5

Porcos

4

Vacas

3

Cabras

2

Macacos

2

Coelhos

2

Pavões

2

Bois

1 40


Éguas

1

Gansos

1

Ovelhas

1

Total

451

Além destes animais, foram ainda operados 49, e submetidos a exame de sanidade, 16, o que perfaz o já o bonito número de 515 serviços prestados pelo posto veterinário à população irracional da segunda cidade do país.

Os sócios atingem o número de 1030, dos quais são 22 beneméritos e 12 honorários.

A lista dos mesmos sócios, que temos presente, contém por assim dizer quantos, no meio portuense, se notabilizam pela sua ilustração e posição social.

É também digna do máximo elogio a Comissão Administrativa da Ex.ª Câmara Portuense, que ao referido ano incluiu no seu orçamento extraordinário a importante verba de 1500 escudos para instalação de balanças contrôleurs, destinadas a verificar o peso das carroças puxadas por bestas de carga.

Menciona ainda o relatório da Direção, do qual extraímos os dados deste artigo, os excelentes serviços prestados pelo corpo policial, sendo em número de 2394 as autuações efetuadas por seis guardas cujos números inclui, e foram recompensados pela Sociedade.

Os trabalhos realizados por esta benemérita Associação, que tanto honra e levanta o nível moral da cidade onde se expande e progride, deve servir de incentivo e exemplo ao pequeno número de cidadãos, que hoje constituem a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais, onde se encontram tão esforçadas boas vontades, que, certamente, com o auxílio das nossas corporações administrativas e a proteção de alguns beneméritos, conseguirão colocá-la, relativamente, a par das suas congéneres de Lisboa e Porto.

Para o estabelecimento de um posto veterinário conta a Sociedade com a cooperação já prometida das Ex.mas Câmara de Ponta Delgada e Ribeira Grande (a Comissão Administrativa Distrital não se dignou ainda de responder ao ofício que neste sentido 41


lhe foi enviado), sendo a atual receita composta das quotas dos sócios, e muito principalmente do subsídio de 100 escudos anuais, generosamente doados pelo sr. Marquês de Jácome Correia.

Pela parte que nos toca, não nos pouparemos a esforços nem trabalho para minorarmos a triste sorte desses a quem S. Francisco de Assis tão justamente chamou “os nossos irmãos inferiores”.

(A Folha, nº 594, 10 de Maio de 1914)

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Impérios

Não tem faltado em toda a ilha as festas de Espírito Santo conhecidas pelo nome de Impérios e cujos característicos são iluminações, fogo preso, arraial, mudança de bandeira de casa de um mordomo para a de outro, distribuição de carne, pão e massas, etc. É certamente uma época alegre para o povo, mas quem paga a patente são os pobres bois, que são abatidos em grande número, depois de passeados pelas ruas com adornos de flores, o que faz lembrar a época do paganismo. (A Folha, nº 598, 14 de Junho de 1914)

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Martírio de um boi Há cerca de 15 dias, um automóvel foi de encontro a um boi, que puxava uma carroça da Ribeira Grande. O animal ficou com o corpo cheio de contusões e uma perna partida. A culpa foi do carroceiro que transitava sem lanterna (eram 2 horas da manhã), mas quem pagou as favas foi o desgraçado do ruminante. Caído a verter sangue, ficou exposto à curiosidade pública, sem que ninguém lhe acudisse, até às 12 horas do dia. Parece que o mais racional e o mais humanitário teria sido, logo que a polícia teve conhecimento do caso, ter solicitado o serviço do sr. Veterinário distrital, que da forma mais rápida, como perito que é, faria cessar o sofrimento do infeliz. Nada disso se fez, porém, e assistiram àquele lamentável espetáculo, indigno de uma cidade civilizada, quantos durante tão ao longo tempo transitaram pela Calheta, que é como se sabe uma das ruas mais movimentadas da cidade! Só ao meio dia surgiu uma carroça destinada a transportar para o matadouro a vítima do acidente. Para içar o desgraçado quadrúpede, já cheio de escoriações, para a mesma, praticaram-se ainda requintes de ferocidade que aos próprios familiares ao Santo Ofício fariam arrepiar. “A Sociedade Micaelense Protetora dos Animais” na pessoa do seu dedicado sócio, sr. Luís J. de Carvalho, tentou intervir, empenhando-se com a polícia para que o boi fosse morto no local onde caíra nobremente, vítima de um acidente de trabalho. À economia do dono do animal, porém, não convinha esta solução, por isso pretendia vender-lhe a carne para um açougue, o que parece não conseguiu. Como tudo isto é profundamente triste e deprimente para a nossa espécie! (A Folha, nº 600, 6 de Julho de 1914)

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Pobres cães Se é certo que o cão é o melhor amigo do homem, certíssimo é também que a generalidade dos homens não reconhece a dedicação do pobre animal. Assim, a rede aos cães vadios, que de antes era feita de tempos a tempos, e depois das 23 horas, faz-se agora quase todas as noites e muito antes da hora acima indicada. Na última sexta-feira, por exemplo eram apenas 21 horas e meia, passava em frente aos velhos poços concelhios, a sinistra carroça, puxada por um boi pachorrento e triste, e escoltada pelo cabo 38. Dali a pouco ouviu-se ganir desesperadamente um pobre cão, talvez ferido na ocasião de ser apreendido e atirado ao cárcere, ante câmara de morte pela estricnina. Pobres cães! Em paga da dedicação que nos votam, condenamo-los à fome, ao frio, ao pontapé da garotada, ao atropelo dos automobilistas e à rede acompanhada da carroça, cujo rodar, sinistro como um dobre a finados, ecoa lugubremente aos ouvidos dos sentimentais, que vendo no cão o amigo super omnia, lamentam que não haja leis que, em paga da sua dedicação, comprovada e proverbial, lhes garantam pelo menos a liberdade de transito até às 24 horas do dia! (A Folha, nº 625, 17 de Fevereiro de 1915)

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Maus tratos a animais Foi comunicado à Sociedade Micaelense Protetora dos Animais que na freguesia do Faial da Terra (concelho da Povoação) foi barbaramente esfaqueado um animal da raça asinina. Pertence a José Rodrigues Carroça e o agressor do infeliz quadrúpede tem o nome de Joaquim São Pedro, nome que está em perfeita antítese com as ações que pratica. Presenciaram o ato indigno duas testemunhas: Amílcar Fernandes Caixa e José Mauça. O pobre jumento, que seguia da Povoação para o Faial da Terra, ficou em estado de não poder trabalhar. Consta que o mesmo São Pedro tem praticado já por vezes façanhas idênticas, pelo que merece severo corretivo, além de uma indemnização ao dono do animal, que está sendo muito prejudicado com a doença deste. ҉ A propósito: Vemos com prazer que não tem sido infrutífera a nossa campanha em prol dos nossos irmãos inferiores, segundo a simpática e feliz expressão de São Francisco de Assis. Já nas freguesias rurais os respetivos regedores tomam conhecimento dos maus tratos aos animais, buscando reprimir e castigar a selvajaria indígena. Honra lhes seja! No intuito de os auxiliar nesta generosa cruzada oficiamos nesta data, em nome da benemérita Sociedade a que temos a honra de presidir, ao nosso ilustre amigo e colaborador sr. Luís Leitão, pedindo-lhe que, como primeiro elemento de propaganda, remeta aos regedores das freguesias desta ilha a sua excelente publicação “Revista do Bem, gratuitamente distribuída. (A Folha, nº 628, 28 de Fevereiro de 1915)

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Uma barbárie sem justificação Referimo-nos não há muitas semanas ao triste espetáculo produzido frequentemente nesta cidade pela rusga aos cães, pobres animais, que nos servem com tanto zelo, quando convenientemente educados e nos amam com tanto carinho, quando tratados com bondade. Que essas rusgas se realizem nos países em que a hidrofobia, causada muitas vezes pela privação do alimento, pode ser transmitida pelo cão aos outros animais, incluindo o homem, ainda se poderá admitir. Nos Açores, porém, onde a hidrofobia não existe, a guerra de extermínio feita aos cães – como se fossem animais daninhos – não tem nenhuma circunstância atenuante, e representa um ato de crueldade, como tantos outros que se praticam ingratamente em prejuízo do melhor amigo da espécie humana. Nem só A Folha se insurgiu contra o desumano procedimento praticado para com os infelizes quadrúpedes, pois acaba de se nos deparar no Zoófilo o seguinte artigo, que gostosamente transcrevemos em reforço da nossa doutrina, para a qual chamamos a atenção de todas as almas compassivas e boas. O artigo é original do sr. Castro Morais, de Caselas, e foi dado à estampa em 12 do p.p. mês de fevereiro: “Na minha qualidade de sócio contribuinte da antiga Sociedade Protetora dos Animais, entendo que por todos os princípios justos, racionais e morais, devo tornar público que nos princípios do mês findo apareceu nesta povoação da Caselas, uma cadela abandonada, com tanta fome, que metia dó a quem a visse num tal estado de penúria e abandono!... Era tanta a fome que as famílias deste povo – todo ele honesto, digno e trabalhador, - todas, com poucas exceções, lhe davam agasalho e as migalhas das suas parcas mesas, pelo que o pobre animal, como sinal de gratidão, a todos demonstrava o seu reconhecimento e afeição. Vejamos agora qual foi o fim do pobre animal.

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Dando eu por falta da cadela nesta povoação, e sentindo um triste pressentimento, procedi a várias investigações, que deram em resultado vir a saber da boca de um rapazinho dos seus 10 anos, de nome João, por alcunha “O ferro velho”, que passando pelo sítio da “Marinheiras”, pouco distante daqui, a “carroça dos cães”, guiada por “dois homens mal-encarados” esses sujeitos meteram o pobre animal dentro da … “inquisitorial carroça”, em companhia doutros mais que já tinham apanhado na sua passagem, indo logo para o “Instituto Bacteriológico” em busca da estricnina que lhes devia dar a morte! Ao entrar para aquele “sinistro carro”, segundo me disseram algumas testemunhas que viram aquele triste espetáculo, a pobre e desventurada cadela olhando para os circunstantes, parecia querer significar-lhes, por gestos tristes e magoados, a sua despedida, bem lembrada e saudosa pelo belo acolhimento que aqui lhe havia dado o bondíssimo povo desta aldeia. Em vista deste triste espetáculo, conservarei enquanto vivo for, na minha lembrança, as racionalíssimas palavras do imortal Genovense: “Quanto mais conheço os homens, mais amigo sou dos animais…” O que se passou sugere-me estas considerações: A polícia enverga uma farda, a qual se acaso não laboro em equívoco, deve ser uma insígnia de honra e valor e, como tal, deve assentar no costado de homens dignos e ajuizados, porque a polícia deve ser um elemento de ordem e de ponderação, e assim, somente deve servir os cidadãos honestos e pacíficos; coibir desmandos e desordeiros, fazendo respeitar a Lei e o princípio da autoridade. A polícia, finalmente, deve ser uma coletividade cheia de cultura e aperfeiçoamento moral, a fim de saber e poder impor-se ao respeito dos elementos confusos e heterogéneos que de vez em quando possam surgir pela sua frente, como nota discordante entre a parte boa e sensata. Em tais condições a polícia, a meu ver, não deve servir para condutora auxiliar das “carroças de cães”, nem tão pouco para quejandos serviços menos próprios da farda que veste.

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Para tais serviços, as Câmaras que criem lugares de zeladores, nomeando para eles indivíduos da sua confiança, e nunca entregando tais serviços à polícia da cidade. E, demais, as Câmaras Municipais que tenham dias próprios, durante o ano, para os seus varejos, em conformidade com o preceituado na lei geral. E se o contrário do que eu aqui digo existir por acaso nos códigos de posturas municipais, nesse caso, é mister que tais códigos sejam remodelados quanto antes, por antiquados e vexatórios. Nós não estamos nos tempos das antigas Ordenações, que morreram há muito tempo sem nos terem deixado nenhumas saudades …Bem poucos têm sido os jornais desta capital, que se não referissem com amargura à caça e mortandade canina a que a polícia se tem dedicado com um zelo que melhor empregado seria em livrar a cidade da gatunagem que a infesta. É necessário que a nossa Associação proteste contra estes escândalos, que estão clamando contra as suas origens, venham elas donde vierem, partam donde partirem…” (A Folha, nº 629, 7 de Março de 1915)

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Pelos animais A imprensa local mercê de alguns espíritos generosos, recomeça a sua campanha a favor dos pobres animais, que nenhuma lei protege, e se encontram à mercê de todas as brutalidades, vitimas imbeles de um destino atroz. Não há muito tempo noticiava o Diário dos Açores que ao animal encarregado do tiro de uma carroça de beterraba sacarina para a fábrica de Santa Clara esvaziara o condutor um olho, e, todavia, ninguém tratou de apurar o número da carroça, a fim de que o bárbaro carroceiro recebesse a recompensa do seu humanitário feito. A brandura dos nossos costumes reverte nisto: a mais completa crueldade para com aqueles que na frase de um escritor francês nenhuma lei protege… Para a humanidade desamparada criaram-se os asilos de infância desvalida e mendicidade, há as creches, os albergues noturnos, as cozinhas económicas, os subsídios concelhios e distritais, muitas vezes concedidos sem discernimento e por favoritismo, a esmola, aos sábados, a assistência nacional, etc. etc. Para os animais, tão bons amigos e tão úteis auxiliares do homem, nada existe, além de umas posturas camarárias que não se cumprem, genericamente falando, além da Sociedade Protetora dos Animais, criada pela imprensa, e que, por falta de um zelador a quem se pague, e de um posto veterinário, pouco pode conseguir além da propaganda, que não tem descurado e constantemente apregoa. Em São Miguel, terra onde abençoadamente floresce a Caridade, não pode nem podia deixar de existir a Sociedade Protetora dos Animais, que conta bastantes sócios, e à qual o benemérito titular, sr. Marquez de Jácome Correiam, concedeu o subsídio de 100 escudos anuais. Mas esses recursos materiais não têm sido suficientes para que se pudesse estabelecer um posto veterinário com médico e servente, e menos ainda um hangar, onde os animais doentes recebessem socorros médicos, enfermagem e alimentação.

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Daí a crónica trágica do Caldeirão, para onde são atirados os animais considerados inúteis, e ainda o bárbaro e indecoroso espetáculo que dia a dia presenciamos, de animais abandonados na via pública pelos seus descaroáveis donos! Ora este estado de coisas não pode continuar assim, sob pena de perdermos foros de civilizados. É necessário que de entre tantos que podem dispor do seu tempo não totalmente absorvido pela luta pela vida, alguém que tome a peito a generosíssima cruzada e desça a defender aqueles que nenhuma lei protege contra as brutalidades da ignorância e as alucinações do álcool. Estabeleça-se um pequeno ordenado a um indivíduo dedicado à causa dos animais e cujo mister consistirá em receber queixas, fornecer esclarecimentos, e zelar o cumprimento das posturas municipais, devendo permanecer na sede em determinadas horas do dia, e tomar nota dos donativos, e da fiscalização a exercer sobre os agentes da autoridade que, segundo se vê, não estão para se ralar, tal é a abundância de animais de tiro chagados, ou zarolhos, e ainda de aves suspensas pelas pernas, que se encontram diariamente nas primeiras horas do dia, nos sítios mais frequentados de Ponta Delgada. Pela nossa parte não temos descurado o assunto, tendo mesmo frequentemente ligado a prática à teoria nesta cruzada em prol dos nossos irmãos inferiores. Como, porém, uma boa vontade isolada nada pode fazer, apelamos para o auxílio de todas as pessoas de coração, a quem certamente terá muitas vezes pungido o lamentável espetáculo exibido nas tuas de Ponta Delgada pelos infelizes seres que vimos defendendo, pessoas estas que convidamos a alistar-se nesta cruzada que, sendo de todas a mais desinteressada, é por isso mesmo a mais generosa. A.M. (A Folha, nº 668, 5 de Dezembro de 1916)

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Envenenamento de um cão

O distinto poeta Bulhão Pato visitou frequentemente os Açores, demorando-se às vezes meses em São Miguel e na Terceira. Foi muitas vezes, em Vila Franca hóspede do seu grande amigo Sebastião do Canto. Dedicado à espécie canina, causa emoção uma poesia elegíaca inspirada pela morte de uma linda perdigueira, sua fiel companheira das caçadas. Dotado, como quase todos os poetas, de rara sensibilidade, Bulhão Pato sentiria certamente desgosto se soubesse que a Vila Franca das Flores se notabilizava pela guerra feita ao mais fiel amigo do homem, o pobre cão. Mais de uma vez, naturais da Vila, e citarei como exemplo o ilustre vila-franquense sr. Dr. Urbano Mendonça Dias, têm chamado a minha comovida atenção para o lamentável espetáculo que oferecem, expostos nas ruas, cadáveres de cães a que foi propinada estricnina por mão incógnita e impiedosa. Ultimamente deu-se mais um destes casos: um continental saiu da vila abandonando o um pobre cão que possuía. Uma gentil criança, filha do sr. Manuel Cabral de Melo, residente na rua da Vitória, tomou o desamparado quadrúpede sob a sua proteção, e todos os dias lhe fornecia um repasto que lhe garantia a existência. Pessoa de mau coração - parece que moradora na mesma rua e muito embora o infeliz animal fosse absolutamente inofensivo, entendeu eliminá-lo da circulação envenenandoo cruelmente com grande mágoa do seu jovem protetor, cujo excelente coração é digno de maiores elogios. Felizmente, parece que semelhantes casos não se repetirão por muito tempo visto que no continente da República há quem esteja eficazmente ocupando dos direitos dos irracionais e do dever que assiste ao Estado de os proteger.

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Em breve tratarei deste momentoso assunto e para o ilustre zoófilo que no mesmo se empenha vão desde já os meus mais sinceros e comovidos aplausos. Alice Moderno (Diário dos Açores, nº 20026, 26 de Julho de 1945)

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