Inocente Paixão

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Mário Simões Inocente paixão

(...) Gosto de a ver bonita, adoro vêla trocar de roupa, escolher as peças que melhor lhe ficam, gosto de ver a forma descontraída com que olha as etiquetas. É um momento feliz aquele em que percorremos as lojas mais bonitas da cidade. Sinto-me importante por dar a minha opinião, e nem a sensação de estar a mais na loja das senhoras me tira a boa disposição, é o bom de aproveitar aquele momento. Nem mesmo o facto de saber que me estou a enganar me tira a felicidade. Fico feliz, porque sei que ela gosta do que vai comprar, e ela fica feliz porque sabe que eu gosto do que ela comprou, estranha felicidade esta, a dos enganos. Eu engano-me a mim, sentindo-me feliz por ela, só por ela. Ela engana-se a si, porque sabe que é feliz por si, só por si. Desta forma, como a felicidade não é impar, vamos enganando os outros que não nos conhecem e nos olham com a inveja de quem está na presença de um casal feliz. (...)

Edição do Autor www.sitiodolivro.pt


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FICHA TÉCNICA

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Edição: (Chancela Sítio do Livro) Título: Inocente Paixão Autor: Mário Simões Capa: Mário Simões Paginação: Paulo Silva Resende

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1.ª EDIÇÃO LISBOA, 2010 Impressão e Acabamento: Agapex ISBN: 978-989-20-1951-2 Depósito Legal: 308480/10 © Mário Simões

Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2 — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


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O amor nunca começa e raramente acaba!

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Quase sempre falamos de amor como se ele fizesse parte do nosso corpo físico ou espiritual. Não creio que o amor exista em nós. Não há nenhum órgão do corpo humano onde ele se aloje, não há no misterioso labirinto da nossa mente um lugar onde se esconda o amor, onde esteja sempre alerta e pronto a explodir através das emoções. No entanto, não conseguimos viver sem amor. Não concebemos a nossa vida sem amor, não nos entendemos como seres humanos sem amor. Aliás, é o amor o único factor que consegue unir todas as forças mentais e físicas para conseguirmos conquistar o inatingível. Se o amor não existe no nosso corpo físico ou espiritual, porque razão acabamos por ser escravos dele? Porque razão a nossa vida é feita em função dele? Porque razão nem sequer colocamos em dúvida a sua existência? Quantos poemas de amor foram escritos, quantos milhões de palavras foram escritos sobre o amor que é sempre igual e sempre tão diferente. Se o amor não existe em nós, onde está ele então? Onde o vamos buscar? Para que serve? O amor não existe. O que existe são histórias de amor! O que existe, é uma necessidade de cada um de nós se encontrar nas emoções, o que existe é uma procura constante da aventura, da fuga à monotonia, da busca da razão da vida. Pois é, o amor é a razão suprema da vida. Porque a vida, a 3


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nossa vida, tem de ter uma história. Sem ele, ela não existe, sem ele acabam-se as emoções, acaba-se o sonho, a imaginação, o pensamento e por fim a vida. São as histórias de amor que nos mantêm o gosto pela vida, a vontade de viver. Por isso o amor não existe nem no corpo físico nem espiritual, senão ia envelhecendo com o passar dos anos, ia definhando como todos os nossos órgãos, ia ficando cansado como todos os nossos sentidos. O amor existe na nossa vontade de viver, na nossa capacidade de imaginação, na nossa necessidade de congregar as nossas emoções num mesmo objectivo. A força do amor está em nós, sem estar dentro de nós. Ele cerca-nos, vigia-nos, orienta-nos, protege-nos, qual anjo da guarda que não vemos e contudo sentimos que está lá. O amor não faz parte de nós, mas é ele que nos mantém vivos. Se o amor fosse tangível, há muito que tinha desaparecido e com ele a humanidade. O amor é eterno, surge sempre com a mesma intensidade seja qual for a idade, sempre com a mesma capacidade de orientar os cinco sentidos num só objectivo. O amor nunca começa e raramente acaba. O amor existe antes se abrir o dique das emoções, e continua depois das comportas se fecharem. As histórias de amor vão e vêem, sucedem-se a um ritmo ora alucinante ora com uma lentidão desesperante. O amor é como a vida, uma sucessão de momentos que todos juntos dão uma história. O amor são somente histórias de amor, histórias de amor e 4


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amores, histรณrias simples e complicadas, alegres e dramรกticas, mas sempre com final feliz, porque a cada histรณria sempre se sucede outra.

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Três Amigos

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Era uma vez um banco de jardim, um simples banco de jardim, feito de tiras de madeira, pintado de vermelho. Era tão baixo tão baixo, que quando nos sentávamos, batíamos com os joelhos na cara. Bem... acho que estou a exagerar, não era tanto assim, mas que o banco era baixo, lá isso era. O que o banco tinha mesmo de bom, era a árvore que lhe ficava por trás, uma grande árvore, cheia de ramos e folhas, que escondiam de nós os pássaros e o sol, que nas tardes de Agosto queima que se farta, e nos dá aquela cor trigueira que caracteriza o homem do sul. Ali, naquela local, naquele Verão extremamente seco, nós falávamos do futuro como se o dominássemos, tínhamos a certeza que os nossos amores seriam eternos e seriam tantos tantos, que só mais tarde percebi que tanta fartura não é uma coisa muito boa. Talvez por isso a nossa companheira de jardim, a Florbela Espanca, que nos escutava no seu canto, tenha sofrido tanto. Ali, debaixo daquela árvore, descobrimos que tínhamos muito, mas muito amor para dar, sentíamos que era inesgotável. E que seria a um crime não o distribuir por muitas pessoas. Só não sabíamos a forma correcta de o fazer, só desconhecíamos que cada amor tem a sua duração, a sua força, a sua cor e até o seu sofrimento. Por desconhecermos todas estas variantes é que o nosso grupo um dia deixou de existir, acabou da mesma forma que acabam todos os dias um amor. Sem se saber porquê. O Bernardo, o mais bonito de nós os três, conheceu outras 7


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pessoas, fez outras amizades, descobriu outros valores e deixou de aparecer. Nós ficámos tristes e até sofremos. Mas, com a facilidade com que se resolvem estas coisas aceitámos como verdadeiras as nossas justificações. Foram os outros que o afastaram de nós, e consolámo-nos com a ideia de que ele estava a ir por maus caminhos. Depois do Bernardo partir foi a vez do Lopes, ou melhor do tanguinhas. Lopes não é nome de ninguém que tenha sonhos lindos, Lopes é nome de contabilista, de pessoas que fazem tudo certinho, e porque o Lopes era tudo menos isso, mudámo-lhe o nome para tanguinhas, que lhe assentava muito melhor. Um dia, o tanguinhas chegou junto à árvore, sentou-se no banco, pegou num pau, fez um desenho no chão e disse: “Vou-me embora.” E foi. Também ele descobriu novos valores, novas amizades, reparou que já não havia na sua vida lugar para o sonho. Deixou de sonhar com o futuro e ficar parado à espera de viver esses sonhos ali ao sol, sentado no banco debaixo daquela grande árvore, que escondia de nós os pássaros e o sol. Era preciso fazer-se à vida. E foi o que fez. Fiquei eu, só, e cada vez mais carregado, com os meus e os sonhos dos outros dois. Era um fardo demasiado pesado para mim, tanto mais que já não sabia se havia razão para continuar a acreditar nos sonhos ou não. Como passava muito tempo, demasiado tempo, debaixo daquela árvore, por vezes apareciam pessoas que me alimentavam os sonhos e então faziam-me voltar para aquele banco, cada vez mais velho e também cada vez mais baixo. 8


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Comecei a fumar, puxava de um cigarro e olhava para aquela velha árvore que teimava em esconder o Sol e os pássaros e pensava, e quanto mais pensava mais vontade tinha de não voltar àquele sítio, até porque o sol já tinha enfraquecido, as folhas caíam e os pássaros tinham partido atrás do calor. Eram dolorosas as horas passadas no jardim, consolava-me a Florbela que continuava ali ao canto, calma e serena, insensível ao frio que se aproximava e sempre com aquele sorriso como que a dizer que me compreendia. Um dia, cansado com o peso de ser o guardador da esperança de que o amor comanda tudo, arrastei-me até ao jardim disposto dizer o último adeus. Quando transpus o portão, olhei para a árvore e vi-a no chão, tinha caído com o vento ou então com o peso de guardar de nós os pássaros e o sol. O banco esse continuava imponente e tinha resistido, só que tinha sido afastado da árvores, agora estava bem perto de outro igualmente vermelho, só que desprotegido do Sol. Era um sina, um sinal evidente que tudo estava a mudar. Era o aviso que tinha chegado a hora de também eu mudar, para não cair como a árvore ou então para não ter de ser colocado fora do sítio, junto a quem eu eventualmente não queria. Virei as costas, também eu desapareci dali. Desde então poucas vezes fico no mesmo lugar, é preciso não criar raízes, é preciso fazer como o Bernardo e o tanguinhas, agora somos três a fabricar sonhos, em lugares diferentes. Só que agora fabricamo-los e vivemo-los às escondidas, o medo apoderou-se de nós, medo do ridículo que é ser olhado pelos outros e dizerem que 9


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nós vivemos a vida a sonhar, e que por isso não passamos de uns marginais. Hoje faço o jogo deles, mas quando a noite cai, quando todos recolhem à chatice do lar, eu estendo-me no sofá acaricio a mulher mais bonita do mundo que partilha comigo os sonhos, e ao ouvido digo-lhe: – Não te preocupes, vou fazer de ti a mulher mais feliz do mundo. Não sei se conseguirei, mas continua a sonhar com isso.

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Bruxelas

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– Porque é que não esperas mais dois dias, na quarta-feira eu estou em Bruxelas e posso ficar lá algum tempo, não precisas de ir já hoje. – Não, eu vou agora no comboio das seis e tal, às vinte para as nove estou em Bruxelas e espero lá por ti, não te preocupes, faz lá o teu trabalho, que eu cá me desenrasco. – Está bem, se queres assim, fica combinado. Quarta-feira a partir das cinco da tarde eu estou na Gare du Midi, agora vê lá se perdes. O Luís era um bom amigo, camionista há já uma dúzia de anos, gostava de viajar comigo. Eu, graças a ele conhecia quase toda a Europa, melhor dizendo as estradas da Europa, porque cidades e gentes era só de fugida, mas eu gostava disso e o Luís gostava da minha companhia. A estrada fizera-nos cúmplices, ele conhecia todas as curvas e também todos os meus segredos, por isso estava tão intrigado, pelo meu súbito interesse em conhecer Bruxelas, uma cidade que, como ele dizia, de bom só tem os chocolates. Mas, face à minha insistência em conhecer a capital europeia lá me foi dizendo que também tinha coisas bonitas e sobretudo, tinha Jaccques Brel e Hergé. – Não te esqueças de visitar o Centro Belga de Banda Desenhada, – gritou-me ele enquanto o comboio deixava a estação de Paris rumo a Bruxelas. Enterrei-me no banco do comboio, rebusquei no saco o

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leitor de MP3, para ouvir a música especialmente recomendada pelo Luís. “Vai ouvindo Brel, é para te ambientares.” “Esta noite espero Madeleine / para comer batatas fritas / no restaurante do Eugénio / Madeleine gosta disso”, cantava Brel enquanto o comboio avançava e a ansiedade subia no meu peito cortando-me a respiração. Os antigos, aqueles que distribuíram os sentimentos pelo corpo tinham razão, a paixão está mesmo alojada no coração, ou então muito perto dele, o segredo que o Luís não sabia estava bem guardado, mas parecia que ia saltar à medida que Bruxelas se aproximava, tinha dois dias para a ver, para estar com ela.

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Madeleine é o meu Natal / é a minha América / embora seja mal empregada em mim / como diz seu primo Joel.

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Depois de abandonar a Gare du Midi, subi pela Rue des Renardes, fui até ao Palácio da Justiça, um edifício não muito bonito mas situado num local com uma vista maravilhosa; que bom que iria ser passear com ela por aquele bairro que dali se avistava. Tinha ainda um bom par de horas até me encontrar com ela, tínhamos combinado na Gare du Nord, mas antes tinha de procurar um hotel e comer qualquer coisa, pois as horas de comboio tinhamme dado fome. Na estação de Metro mais próxima comprei um bilhete de um dia, desta forma podia viajar em todos os transportes públicos em qualquer trajecto. Luís tinha-me indicado vários hotéis para jovens que eram os mais baratos, só que as marcações tinham de ser feitas 12


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com muita antecedência, e então não me restou senão procurar um mais caro. Tinha guardado algum dinheiro para estes dias, felizmente que estava numa boa altura em termos financeiros, o que condizia com as previsões da semana para pessoas do meu signo. O Hotel Duke of Windsor foi o mais barato que encontrei, só aceita não fumadores, o que é o meu caso, corria tudo às mil maravilhas. Fiquei um pouco indeciso quanto ao tipo de quarto. Single ou duplo, optei pelo duplo, nunca se sabia o que iria acontecer, talvez ela estivesse livre para estar comigo. Se estivesse gostaria de ir com ela ao Le Théatre de Toone, Teatro de Marionetes, recomendação do Luís como é óbvio. Esta noite espero a Madeleine / para irmos ao cinema / Então digo-lhe que a amo / Ela gosta tanto disso.

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Depois de um bom duche desci a grande escadaria do hotel e saí para rua, a fome apertava, tinha de comer qualquer coisa. Não gosto de comer sozinho, por isso tinha de procurar um local onde pudesse comer bem e rápido... e também barato. Para comer indicaram-me a zona do îlot Sacré, um grande aglomerado de ruas antigas cheias de restaurantes de todos os géneros e com comidas de todos os países, “chicons au gratin”, uma espécie de rolos de presunto recheados de alface e um molho esquisito, “boudin-compote-purée” e “Hochepot”, o nosso caldo de carne com legumes, foram alguns dos pratos que vi nas ementas, não me 13


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agradaram, embora os empregados extremamente simpáticos quase me tenham convencido a sentar e comer, mas não, eu não me apetecia ficar ali sentado a uma mesa apreciando sozinho a boa comida belga. A solidão ataca mais forte à hora das refeições. Resolvi então entrar num café que eles chamam “Cafés mangeants”, onde comi uma refeição típica e rápida, também não tinha muito tempo, estava quase na hora marcada e ainda tinha de ir para a Gare du Nord. Já me tinha habituado a chegar aos encontros bem primeiro, que ela não gosta nada de esperar.

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Ela é tão bonita / Ela é tanto... tudo / ela é toda a minha vida / Madeleine / vou esperar por ela.

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Junto à Gare du Nord existe uma casa de flores, seria bom oferecer-lhe flores, ela iria gostar. Também não tinha tido tempo e, para dizer a verdade, tinha-me esquecido de lhe comprar um presente, um perfume de Paris, por exemplo, “tendre de poison” que é um perfume de mulher que eu gosto. Mas isso de perfumes dá mesmo é para comprar com quem o vai usar, mas nós nunca temos tempo para isso. Bem podia ter comprado bombons, tinha passado pelo Boulevard Anspach, onde há bombons às toneladas, uns brancos tão bons tão bons, que até eu que gosto mais de salgados tive de repetir, chamam-se Leonidas branco, mas dizem, que os Godiva ou os Droste também não lhes ficam atrás. Mas para que é que eu lhe iria oferecer bombons, ela vivia em 14


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Bruxelas já ia para três anos, para além disso o seu homem, como bom burocrata que é, não deve ter imaginação para mais do que bombons, e para muitos bombons, parece. Bem, os lilases já estavam na minha mão, a noite já tinha caído sobre Bruxelas o frio começava a apertar e o céu cinzento avisava os passeantes “vão para casa”. Na escadaria que levava à Gare du Nord, com o ramo de flores bem escondido atrás das costas esperei pacientemente a sua chegada. O tempo corria e as pessoas também, as camionetas iam chegam e esvaziando-se rapidamente, contudo e apesar do frio, as minhas mãos estavam quentes à conta de tanto apertar o ramo de flores. Entrei na Gare e sentei-me.

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Esta noite espero Madeleine / mas chove / sobre os lilases / Chove como toda a semana / e Madeleine não chega.

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Sentado num grande banco, bem em frente ao enorme relógio, ia seguindo o ponteiro dos segundos, seguro que daí a pouco ouviria por cima do ombro um olá, alegre, fresco e jovial, eu colocaria a mão no peito e respiraria de alívio, sabia a pergunta e a resposta a dar. Não ia dizer que já estava há muito tempo à espera para não fazê-la pedir desculpa pelo atraso. Depois de seguir os ponteiros dos segundos, achei melhor seguir o dos minutos. Afinal não era assim tão tarde e um atraso qualquer pessoa pode ter. Imaginei então como viria vestida, umas calças bonitas por debaixo de um casaco de uma cor sóbria, uma blusa de malha, daquele canelado miúdo que abre mais ou menos 15


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conforme o tamanho dos seios e de cor verde seco, deixaria fugir pela gola alta um pescoço branco e lindo que terminaria num queixo arredondado, que suportava uma boca linda rodeada de uns lábios pintados de uma cor rosada, que por certo se esborrachariam no meu rosto cada vez mais fria. Levantei-me, talvez não fosse ali o local do encontro, talvez fosse na Midi, ou então talvez fosse a uma outra hora, ou então noutro dia. No relógio da Gare, os ponteiros avançavam agora cada vez mais rápidos, já começava a ficar tarde, as camionetas vinham agora com menos frequência e cada vez com menos passageiros. Do largo da Gare du Nord, agora iluminado, podia ver-se ali mesmo ao lado um bairro de montras com raparigas bonitas e com vestes reduzidíssimas, alguns cavalheiros olhavam-nas e seguiam, outros ficavam mais tempo, até que alguém se aproximava deles e os levava pelo braço. Era divertido ver aquele espectáculo, ajudava um pouco a passar o tempo. Agora com a Gare nas costas a esperança de a ver nessa noite começava a desvanecer-se. Ela também tinha dito que faria o possível para vir, disse até que tinha ficado muito contente com o telefonema, se ela não estava ali é porque algo de importante a tinha impedido de vir, é que ela era agora uma pessoa muito ocupada, tinha muito que fazer naquele grande edifício, construído entre l963 e l969, e eu não gostava muito dele. Ao longe parece bonito mas visto de perto é demasiado austero para mim, no entanto há quem goste e assim sempre se vai mantendo de pé. 16


Inocente paixão Esta noite / espero Madeleine / é muito tarde e ela não vem / Madeleine é o meu horizonte / é a minha América / Mesmo se é demais para mim / Como diz o seu primo Gastão.

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A chuva deu uma pequena trégua, o suficiente para me levar até ao bairro em frente, segui a rua quase sem olhar para as montras, não era disto que eu vinha à procura em Bruxelas. No entanto, depois de ter caminhado muitos metros com o pensamento completamente parado resolvi parar no Boulevard Adolphe Max e ficar embasbacado a olhar para uma casa de espectáculos onde a especialidade é o sexo. Só não entrei porque perto reparei que havia mais luz, o que quer dizer pessoas, e desviei a atenção das especialidades norueguesas e espanholas. Na Rua Neuve muitas pessoas passeavam apressadas, gente de todas as cores e feitios, muitos mas muitos pedintes, enfim a miséria das grandes cidades. Como a chuva parecia querer voltar, pensei que era chegada a altura de ir até outros sítios mais agradáveis, e de pergunta em pergunta cheguei ao Boulevard Louise, onde as galerias se atropelam umas às outras. Cheguei mesmo a tempo, a chuva veio forte e violenta, felizmente que estava na Haute Ville, ia perder-me no sonho de ser rico. Os grandes costureiros têm aqui as suas casas e a beleza faz parte desta zona de Bruxelas, quem gosta de sonhar está bem aqui, ela não deve cá vir muitas vezes... talvez não, agora já pode comprar alguma coisa que ali se vende, coisas reais, não sonhos. Parecia-me vê-la em todo o lado. Uma senhora muito elegante de 17


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casaco de pele e sapatos de salto alto olhou para mim curiosa, talvez me achasse parecido com algum costureiro sei lá, eu pela sua beleza fiquei a imaginar como seria ela nas suas visitas à Haute Ville, será que iria abraçada a ele, talvez a rir-se e com um sorriso que com um pouco de exagero ilumina a Grand Place. Mas, exagero por exagero, também os belgas dizem que a Grand Place é a mais bela praça do mundo; bem, mas também ela não deve ter o sorriso mais belo do mundo, mas que é muito muito bonito lá isso é, e para mim não há igual. A tristeza apoderou-se então de mim. É claro que ela passearia ali abraçada a ele, aliás o que é que eu podia esperar, tinha sido sempre assim, aceitei o jogo e sabia-me bem, ou melhor tolerava, mas agora começava a vacilar, ela não veio, já não vem. Será que não a vou ver.

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Esta noite espero Madeleine / Resta-me o cinema / Onde lhe poderei dizer / que a amo / ela gosta tanto disso / ela é tão bonita / ela é tanto...tudo / ela é toda a minha vida.

“E se lhe telefonasse?” Não, é melhor não, pode ser que não esteja em casa e eu vá preocupar quem lá esteja. Também não sabia o número de telefone de casa, só o do Parlamento e isto depois de muitas buscas. Mas se não telefonasse também não a iria ver no dia seguinte. A não ser... que ela voltasse na noite seguinte à Gare du Nord. É isso, ela não teve possibilidade de vir e neste momento está triste, coitada. 18


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Amanhã virá. Mas pode muito bem ser que tenha saído com o seu homem e outras pessoas, a sua vida social também era muito activa; bem, se saiu a beber um copo sei onde iria. A Grand Place é perto de tudo comecei pelo Le Garage, bebi, conversei e desandei, La Mort Subite foi o segundo, mais copos mais conversa e toca até ao L’Orange Bleu, ela nem vista, a esta hora só se estiver no Le Cercueil na Rue des Harengs junto à Grand Place, mas nem aí, nada, ela não estava em lado nenhum, o que me restava era continuar a bebedeira, ir para o hotel e esperar pelo outro dia para telefonar e então encontrar-me com ela.

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Esta noite esperava / pela Madeleine / já deitei fora os lilases / como faço todas as semanas / Madeleine / Não virá esta noite.

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Voltei então à Gare du Nord, não porque pensasse que ela lá estava, mas somente para me poder deliciar com a sensação que poderia ter sido uma noite muito bonita. Entrei na estação vi as empregadas de limpeza que apanhavam os últimos caixotes do lixo, lá iam as minhas flores. Corri em direcção a uma senhora gorda loura e de lábios demasiado pintados e, pedindo desculpa, tirei uma flor. Iria guardá-la como recordação e como prova. Andei pelas ruas à deriva, a curtir a minha bebedeira, ri-me com as raparigas das montras, contei-lhes em bom francês anedotas de belgas, elas riram-se, a maior parte eram estrangeiras como eu, e 19


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