Na Margem da Ria

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NA MARGEM DA RIA

DAVID DA SILVA Preview

FICHA TÉCNICA

edição: edições Virgula ® (Chancela Sítio do Livro)

título: Na Margem da Ria

autor: David da Silva

foto de capa: Paulo Horta

arranjo de capa: Ângela Espinha

paginação: Alda Teixeira

(+351) 211 932 500 Preview

1.ª Edição

Lisboa, março 2024

isbn: 978-989-8986-84-9

depósito legal: 528080/24

© David da Silva

Declinação de Responsabilidade: a titularidade plena dos Direitos Autorais desta obra pertence apenas ao(s) seu(s) autor(es), a quem incumbe exclusivamente toda a responsabilidade pelo seu conteúdo substantivo, textual ou gráfico, não podendo ser imputada, a qualquer título, ao Sítio do Livro, a sua autoria parcial ou total. Assim mesmo, quaisquer afirmações, declarações, conjeturas, relatos, eventuais inexatidões, conotações, interpretações, associações ou implicações constantes ou inerentes àquele conteúdo ou dele decorrentes são da exclusiva responsabilidade do(s) seu(s) autor(es).

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt

publicar@sitiodolivro.pt

DEDICATÓRIA

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Dedico este livro à minha avó materna, a saudosa Maria da Piedade da Silva, mais conhecida por Piedade Bôrras.

Era uma admirável contadora de histórias. Muito do que escrevo sobre a terra que me viu nascer é a ela que devo.

Aprendi com ela, bem cedo, a estar atento a tudo o que povo diz e faz.

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AGRADECIMENTO Preview
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Agradeço a “Nota de Abertura” do livro ao amigo e escritor Artur Vaz, de seu nome completo Artur Tavares de Oliveira Vaz. Trata-se de um reconhecido jornalista e escritor de Almada, com a especial particularidade de ser descendente de famílias murtoseiras.

Agradeço a fotografia da capa ao amigo e conterrâneo Paulo Horta Carinha. Esta é a segunda vez que o Paulo concede o “rosto” aos meus livros.

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NOTA DE ABERTURA Preview

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“A história é um fragamento da vida”

josé tolentino de mendonça

Em “Na margem da Ria”, subsistem as marcas de um homogéneo social, ao qual o autor não consegue cortar o cordão umbilical. Porque o tempo não é só mudança. Os hábitos e costumes, as tradições, e os trajes são fotografias que guardam a Memória, embora nem sempre se manifestem com a força, a relevância e a simbologia d’outrora.

O povo da Murtosa pode-se orgulhar de te ter amigo entre os seus escritores, pois a tua obra toda ela caracterizada por um vasto Preview

Direi, que o autor recusou deitá-las fora, e fez bem ao levá-las para escrita revivendo-as num registo que não se esvaiu no tempo.

Reminiscências da história, marcas que se acolhem hoje, como está implícito nesta extraordinária obra, à ampla sombra da antropologia.

Numa perspectiva antropológica, a obra de David da Silva prolonga, em certa medida, uma escrita própria e genuína, onde a génese assenta em indíces patrimoniais da cultura popular murtoseira

Nos seus anteriores livros “MURTOSA – Pedaços de Vida”, em 2015 e “MURTOSA – Viagem no Tempo” no ano de 2022, ímpares contributos para história das suas gentes, David da Silva fala-nos sobre os amigos, as suas recordações de infância ou da adolescência, vivências tão importantes que tendem a cair no limbo.

Não existe memória sem esquecimento, ambas são almas gémeas do tempo que – tantas vezes – é sinuoso e confuso.

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manancial de referências à sua memória colectiva, faz de ti David – face à exaltação das palavras – um literato prudente e autorizado.

Mas se a memória é esquecimento, também ela é esperança e renascimento.

A mulher e a sua vivência temporal – símbolo de Ser e do Amor – surge-nos retratada numa escrita hábil onde David da Silva traça magistralmente o passado dos anos cinquenta e sessenta, tendo como objectivo uma reflexão para um futuro sobre a sua emancipação, ainda não conseguida – em meu entender – em pleno século XXI.

Esta obra de David da Silva, que tenho a honra de modestamente contribuir, é – um raio de luz nas trevas do tempo – e inquestionavelmente um documento humano e histórico, na medida em que se fundem retalhos da experiência, tantas vezes vividos pelos murtoseiros.

Em suma amigo David, mais um extraordináro trabalho a juntar aos outros livros anteriores que legam à posterioridade.

Na vida como na escrita nada se pode prever. Tal como dizia

Ovídio: “Nada há de permanente neste mundo. Tudo corre e tudo se informa em vaga imagem”.

O passado é argila que o presente molda à vontade, daí que seja pertinente a leitura de “Na margem da Ria”, fazendo ao leitor revisitar o baú das memórias de uma incessante viagem intemporal.

Parabéns, David da Silva.

Artur Vaz

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Novembro de 2023.

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PREFÁCIO Preview

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O livro faz-nos recuar às primeiras décadas da segunda metade do século XX e resulta da observação das condições em que os homens e as mulheres viviam e que muitas vezes os levavam a emigrar ou, além disso, (no caso dos homens) a ir para a “faina maior” à pesca do bacalhau, ou a ir para uma pesca mais costeira nas traineiras... Resulta, em especial, da obervação de uma série de situações relacionadas com a subestima e marginalização em que eram colocadas as mulheres e, ainda hoje, há infelizmente resquícios disso.

Na terra em que nasci (Murtosa) muitas vezes ouvi dizer que “a escola não é para meninas”! Alguns pais mandavam as filhas servir para a cidade ainda crianças. As jovens ou as mulheres que ficavam no concelho entregavam-se (ou entregavam-nas) a serviços duros e mal pagos, tais como cuidar das terras de cultivo desde o nascer ao pôr do sol, a semear e colher o arroz, a ir ao rio ao junco, ao moliço como camaradas, à pesca ao lado dos seus, a descarregar sal dos mercantéis, a ir vender peixe quase sempre fora da terra, a gerir as finanças da família, ou a fazer outros serviços, “próprios de mulheres” (dizia-se), como a costura, o trabalho em tear ou o bordar...

Ainda por cima, se encarregavam da gestão da casa e dos filhos, e iam ao Sábado lavar no rio a roupa da semana da família. E nem ao Domingo, tinham folga de dia completo, que o serviço doméstico e o cuidado devido às crianças continuavam por sua conta!

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As mulheres recebiam pagamento inferior aos homens e eram preteridas para os melhores trabalhos.

Algumas jovens eram dominadas pelos pais que as obrigavam a aceitar as suas ideias, por exemplo com quem namorar ou casar. Havia pais e maridos que as mantinham longe do progresso, negando-lhes o uso de roupa acabada de entrar na moda, pintura e corte do cabelo… E, amiúde, usavam da força para as manter no caminho que traçaram para elas.

No livro, falo também de algumas situações em que o homem e a mulher são vítimas de concepções e mentiras que os condenam publicamente e lhe destroem o bom nome.

Apesar das precárias condições económicas desses tempos e de todos os aspectos que referi, vistos aos olhos de hoje como negativos, e são, o povo sobreviveu e transmitiu também inúmeros valores.

As mulheres, em especial, souberam resistir e mostrar quanto valem.

A escrita que eu uso no livro é a que se usava então. Tive o cuidado de escrever simples.

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CANDEEIRO A PETRÓLEO

Capítulo I
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Hoje está um pouco melhor, mas as valetas das ruas ainda estão cheias de água por causa da chuva torrencial que caiu na passada Quarta-feira. “Foi duro”, refere António Raposo, que está encostado à ombreira da porta de um palheiro a fumar um cigarro feito de barbas de milho, ainda em ressaca dos copos de tinto que emborcou ontem! Estende o olhar pela rua tentando avistar o carro do azeite, puxado por cavalo. É costume ajudar o azeiteiro a levar o azeite para as lojas e receber em troca do serviço algumas moedas de escudo para a compra do tinto que ele não dispensa, principalmente ao fim de semana, indo aos ziguezagues para a casa dos pais.

É solteiro, já vai nos vinte e cinco! Vive com as irmãs e o irmão, para além dos progenitores. Gente a mais para uma casa – dois quartos, feita de tábuas de madeira, com uma porta e uma janela do lado sul, também uma janela pequena do lado norte e o telhado com algumas telhas quebradas.

Na quarta-feira juntou muita água lá dentro! A casa dá para um quintal atafulhado de ferro-velho, menos no espaço de um limoeiro que carrega de limões que, não sendo colhidos, caem por si. Ninguém nesta casa dá um passo para a vida!

Ana Roseta, a vizinha da frente, afiança que António Raposo tem um coração bom e que o resto “vem do ambiente familiar, onde há pouco pão, muito álcool e nenhuma educação” – diz.

Também conhecida por Ana Verruga por causa dum sinal que tem no nariz, Ana Roseta já vai nos sessenta cinco e é mãe de duas filhas, Sofia e Marília.

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Veste saia comprida e blusa de algodão, xaile cruzado no peito e apertado atrás, lenço de lã com nó por baixo do queixo e adora andar de pé descalço.

Aperta os rins com cinta para lhe aliviar o estrago de anos que andou de canastra cheia à cabeça, vendendo o peixe do rio e do mar – mais do mar que do rio – “em longas caminhadas a pé por terras do Senhor Deus”, costuma frisar.

Veste toda de preto, porque o marido faleceu há cinco anos, sete meses depois do casamento da filha Sofia e três dias depois da festa de S. Paio. Nesse S. Paio já lá não esteve (a única vez que faltou desde a primeira, tinha então dez anos). Quando falava do S. Paio, aludia que foi numa rusga que conheceu a sua patroa e recordava quadras cantadas nas rusgas.

– Percorríamos o caminho da ria ao mar e do mar à ria a cantar e dançar. Grandes momentos! Manuel Serra tocava viola, o irmão João Serra tocava gaita de beiços e o Eduardo Gomes concertina. A magia destes homens, nos instrumentos, fazia juntar sempre muita gente a ver a nossa rusga!

Ainda me recordo de algumas quadras que cantávamos:

“O S. Paio da Torreira

Foi tomar banho à praia

Com tamanha bebedeira

Qu’às calças chamava saia

Ó S. Paio da Torreira

Ó meu mila groso santinho

Se me casares este ano

Levo-te um pipo de vinho

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Ó S. Paio da Torreira

Meu mila groso santinho

Hei-de cá voltar pro ano

Lavar o santo com vinho”

Miguel Oliveira, esta era a sua graça, “faleceu de mal ruim”, como dizia a viúva, a Ana Roseta que, por ser costume da terra, continua a usar o preto em luto pelo marido.

Há quem guarde o luto por toda a vida! Ti Leonilde, que já conta mais de noventa, ficou viúva nos vinte e dois e mantém-se a vestir de preto!

António Raposo adorou observá-las por uma frincha que o cortinado do palheiro lhe tinha providenciado! Elas enchiam a caneca de barro vermelho com vinho branco misturado com pirolito que depois serviam em tigelas do mesmo barro e bebiam. Tigela puxou tigela e não tardou que fizesse efeito! Nem as rodelas de linguíça e os cubos de queijo de casca vermelha que comiam, o evitaram. Preview

Ana Roseta é a mais velha irmã de sete raparigas, uma mulher simples e boa, mas muita gente não pensa nem diz o mesmo dela.

Tinha esse costume estranho de andar algumas noites com o candeeiro a petróleo aceso pelos quintais das casas vizinhas e o povo afirmava que ela andava no fado, que aquilo era coisa de bruxedo!

Um dia, António Raposo foi pé ante pé ver o que seria o alarido de vozes femininas que se ouvia bem alto e que vinha da casa da Ana Roseta, já ela era casada e bem casada. Era o dia 13 de Maio, muita gente da vila tinha ido a Fátima. Ana Roseta e mais as outras que estavam na sua casa ficaram por ali, os maridos das casadas entretinham-se na taberna!

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