Ladeiras do Inferno

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HELDER FORTES



HELDER FORTES


FICHA TÉCNICA Edição: Helder Fortes Título: Ladeiras do Inferno Autor: Helder Fortes Revisão, Capa, Paginação: Paulo Silva Resende 1.ª EDIÇÃO LISBOA, Dezembro 2011 Impressão e Acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-20-2768-5 Depósito Legal: 336924/11 © HELDER FORTES Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


PREFÁCIO Ladeiras do Inferno é um livro muito actual, escrito por um jovem, mas muito conhecedor dos relatos que o compõe. Os assuntos tratados nesta obra são do conhecimento de todos mas ninguém faz nada para inverter a situação e as autoridades têm-se revelado incompetentes para solucionar os problemas sociais desse nosso país. É neste contexto que o jovem autor escreve esta obra, onde de forma frontal e aberta procura narrar os problemas sociais que afligem os espaços urbanos desse nosso país, nomeadamente o desemprego, a delinquência juvenil, o alcoolismo, o uso de drogas, a prostituição, a construção de casas clandestinas, a falta de água potável, a falta de energia eléctrica, a corrupção, o tráfico de estupefacientes, o tráfico de armas, entre muito mais. Esta obra pode vir a despoletar a consciência da população destas ilhas para estes problemas sociais e fazer com que este povo comece a lutar contra os desmandes, contra hipocrisias, contra arrogâncias, e enfim, contra esta grande injustiça social. Há quem possa não gostar dum livro destes, devido às informações que levam as pessoas (as mais desprotegidas) a


pensarem que são elas as raízes de todos os males, e que as mesmas devem ser cortadas ali. No entanto, vale a pena ler, reler e reter as informações veiculadas. Reitero que esta obra é baseada nos problemas sociais do país, com maior destaque nos centros urbanos, e a mesma pode suscitar acções determinantes para corrigir opressões, injustiças, explorações inaceitáveis e quem sabe fazer com que um dia os infractores sejam julgados e punidos. Ladeiras do Inferno pode parecer uma obra de ficção, mas comparando as histórias nela contadas com o dia-a-dia do cabo-verdiano injustiçado, leva os leitores a uma profunda reflexão para que estes possam dizer “Basta!” O tom poético que é dado pelo autor a este livro torna-o muito comovente, basta olharmos pelo personagem “Cantai” um daqueles poucos Badius1 que há, homem que não vira a cara à luta, respeitador das leis, que passou muitas amarguras para obter um naco de terreno para a construção legal da sua moradia, mas que acabou por construir nos moldes (clandestinamente nas Ladeiras do Inferno) que ele sempre odiou e contra os quais lutou. Nóbrega Fortes

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Gentes da ilha de Santiago.


DEDICATÓRIA Dedico esta obra literária em especial à minha mãe, Maria Madalena Dias Fortes, esta mulher lutadora e incansável que, apesar de todas as dificuldades, conseguiu criar e educar os seus nove filhos, ao meu pai, António da Luz Fortes, este santuário de valores morais que muito bem nos soube transmitir, a todos os meus irmãos, Adilson Fortes, Sónia Fortes, Nelson Fortes, Paulo Jorge, Idanilda Fortes, Elton Fortes, Aquilino Fortes, Eudo Fortes e Belinda Fortes, os meus companheiros de luta e de labuta nas rochas de Fortim (carregando cascalho, koxindo2 e pilando milho para fazer aquele binde de kuskus3 de sustento, carregando comida de porcos, jogando bola de meias naquele largo quintal, caçando pombos, rolando pedras pelas ladeiras, desafiando os precipícios das rochas…), à minha sobrinha Ladilene Fortes e meu sobrinho Ruben Antunes, aos meus quatros avós, que infelizmente já não estão entre nós, em especial às duas maternas, a Mãe Káká e a Mãe Tuda, a todos os meus amigos que acreditaram em mim e me incen2 3

Retirar o farelo do milho. Um prato típico de Cabo Verde.


tivaram a continuar a escrever, e por fim, a todos os clandestinos que moram nas Ladeiras do Inferno.


Este livro foi escrito no decorrer do ano de 2010, após a publicação em 29 de Setembro de 2009, num dos jornais online, de uma carta que escrevi em 2008 ao Senhor Presidente da Câmara Municipal da Praia, expondo-lhe a minha triste situação e solicitando-lhe um pedesin txon4, para a construção de uma casa própria. Entre elogios e críticas feitas pelos leitores, decidi a partir da mesma elaborar um projecto literário, designadamente um romance, no qual pudesse descrever todas as peripécias/dificuldades que um cabo-verdiano tem de enfrentar para conseguir concretizar o seu sonho e gozar do seu direito que está consagrado na nossa constituição, que é ter uma habitação. Assim, decidi compilar todas as informações que tinha sobre a cidade, desde o momento em que aterrei no aeródromo da Capital, 3 de Dezembro de 2000, até à data do fim desta obra, Dezembro de 2010, para criar este meu primeiro romance.

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Pedaço de chão.





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I Fecundo os meus pés nestes campos dourados, amparados por monstruosos montes amarelados, esta pigmentação de seca e calamidade que alastra a fome ao longo desta recôndita localidade. Está tudo seco esturrado. O pó fino e acastanhado, com uma aragem de vento faz levantar a poeira de sofrimento fazendo uma grande fumaça, uma névoa de desgraça que abraça este povo numa cadência desconsolada, deixando esta gente desolada e bastante contrariada. Lá no alto cutelo vejo um ser singelo. Na cabeça, um lenço colorido, a tapar o corpo, um vestido comprido, no pescoço um rosário dependurado, na cintura um pano de terra amarrado, pés Bedjus5 enterrados nesta achada e mãos acidentadas presas a uma enxada. Parece uma criatura corcunda, dobrada como uma pequena funda, como uma parábola, lambuda6 para o chão esgaravatando o seu pão sem nenhuma timidez, no meio desta aridez. 5 6

velhos. vergada.

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Na minha dianteira, ao longo da ladeira, galinhas fora da capoeira esgaravatam a pobre poeira. Amarrada numa acácia seca, sem um único raminho, está uma faminta cabrinha, uma alimária magrinha que não pára de passar a língua nas pedras, depreciando a mingua que brota dos solos destes campos secos, florindo as pétalas da maldição que murcha esta povoação. Aproximo-me em passos lentos, com os olhos sempre postos nos movimentos desta moça que está lambuda na roça. Paro mesmo à frente dela, esta mulher de cor de canela, mas ela não se distrai com a minha presença. Olho para a sua pele queimada que brilha neste sol abrasador e de onde brotam pequenas gotas de suor, sinónimo de dureza do cabo de enxada que debaixo de muito sofrimento procura tirar o sustento. Camponesa de enxada sempre nas mãos, teimosamente continuas a magoar estas terras afanadas. Pobre criatura, tu cavas este pó seco esquecido pelas chuvas ingratas, semeias esperança nestes campos ressequidos pelo sol que queima o miolo do lavrador e após cada azáguas7, de baláio8 à cabeça lá vais tu, colher desgraça, fruto do suor desprendido sob este calor abrasador. Vives enterrada neste pandemónio, com os olhos orbitando entre céu limpo e terras secas. Como uma sentinela afugentas corvos e pardais que não cansam de riscar os céus destas ribeiras. Mondas ervas secas fustigadas pela peste, vítimas desta maldição que destrói estes campos do leste. Mísera criatura, inimiga destas pragas negras, continuas carregando a bandeira das trevas, marca desta tortura lenta e 7 8

Época das chuvas. Cesto.


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silenciosa, mas vejo nos teus olhos que o teu maior sonho é ver as crianças encantadas com o bater da chuva milagrosa, sentir o perfume da terra molhada como folha de alecrim no corpo das nossas mulatas e ver os campos de São Domingos florescerem abençoados pelas benditas gotas. Criatura de mãos rudes e calosas, nas tuas veias flui a coragem das mulheres destes ilhéus despidos, e como testemunho da tua coragem temos estes teus braços cobertos de ramificações grossas. És uma autêntica prisioneira destes campos ressequidos. Seguiste as pisadas dos pais e neste pedesin txon malogrado decidiste investir a tua alma neste profundo vazio e hoje vives ancorada nos valores morais deste templo sagrado, que calmamente te atiram nos enredos deste angustiante silêncio. Carregas uma cara feia e medonha, os teus beiços estão rolados e dependurados até o chão. No teu granel escondes a vergonha que sentes destas vítimas chicoteadas pelas secas infernais, pobres almas afligidas pela maldição e na tua memória guardas as lembranças destes campos cobertos de milheirais. És uma simples camponesa de pés descalços que galga estas montanhas de pedras afiadas, pedras que ferem a tua alma oprimida, enquanto continuas a plantar e a colher miséria, nestes campos onde a simentera9 dorme sonhando com míseras chuvas. Corajosa e muito determinada, continuas construindo solitários diques e socalcos para enfraquecer o caudal do sofrimento deste povo submerso na torrente de sangue da tua alma ferida. Vives desesperada com o barulho das lágrimas que caem, lágrimas de uma amargura quase lite9

Preparação das terras e enterro dos grãos antes da vinda das chuvas.

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rária. Este barulho silencioso e medonho que simboliza o grito de dor das criaturas desventuradas. Nasceste e cresceste nestes campos hostis e arbitrários, esquecida na ourela10 de um fogão e perdida nos cabeços destas montanhas obscuras e traiçoeiras. És uma moça distinta e obstinada, perante emoções aparentas sem arrepios e diante do medo não sentes calafrios. Uma Badia11 negra queimada pelo sol ardente, sempre de enxada na mão, simbolizando a bravura da mulher cabo-verdiana que, não pára de ferir as veias dessas terras áridas e secas. Moça, tu que estás no alto cutelo entregue aos trabalhos da roça, misturada nesta txabeta12 sensual dos teus peitinhos viçosos e do teu corpo ensopado pela lavoura, suavemente arrasta-me para o silêncio desta montanha solitária e pura. No teu rosto cansado vejo que carregas um pranto preso no êmbolo deste olhar que lentamente vem perdendo o seu encanto. Mesmo assim, continuas galgando montanhas como se quisesses tocar as nuvens negras e descarregá-las sobre estas terras áridas e inóspitas. Obstinadamente ultimas os preparativos para mais uma simentera no infinito deste pó seco desta pequena ribeira. Enquanto isso, supostamente aguardas pelo despertar dos seus sentimentos e um pedido de casamento por parte de um amante, para te livrares do tormento desta vida sacrificada que te deixa com o corpo todo maltratado e dorido. Uma dor que no entanto desaparece a cada vez que a chuva cai e estes 10 11 12

Ao redor de, ao lado de. Gentes da ilha de Santiago. Dança característica da ilha de Santiago.


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campos se cobrem de verde. Quando estas rochas nuas se vestem de esperança tudo é esquecido.

Olho incrédulo para a morte lenta destes campos de milheirais e sinto um arrepio provocado pelo fantasma da estiagem que risca esta terra baldia onde não se escuta um único cântico de pardais. Este silêncio ensurdecedor queima a alma deste povo mergulhado neste vazio, sem qualquer covardia. Caminho no infinito das margens desta dublidade13 à procura de me fundear nas lembranças arrastadas pela ressaca, esta maldição que flagela as gentes desta pequena localidade. Melancolicamente vou-me refugiando na sombra de uma espinheira vencida pela seca, à procura de encontrar refúgio neste mar de cinza inquietante, este mar doente e impotente como eu que continuo aqui neste lugar inalando as partículas deste ar aberrante. Desencantado com esta localidade doente, perdida nestas ribeiras onde não consigo encontrar o meu eu, os meus olhos permanecem fundeados em ti morena atraente. A sensualidade deste novo dia seduz mansamente esta pequena aldeia, despindo-a deste manto escuro e afastando as cortinas de cinzas. A claridade penetra-se sem apatia, espelhando todos os cantos e encantos desta modéstia aldeia. O brilhantismo desperta o povo para mais um dia de trabalho duro, amarrado aos perímetros das montanhas despidas e lisas.

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Fome, miséria, pobreza.

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Minha camponesa, tu continuas com os olhos presos no tempo medonho, aguardando desesperadamente pela chegada do fim deste som enfadonho das enxadas que entoam o hino, este cântico desta esperança quase suicida. Aguardas desesperadamente pela pernada d’água tão esperada para silenciar de vez este hino que acompanha o hastear desta bandeira entorpecida. Embalado por esta sensualidade, não abstraio os meus olhos de ti, menina de olhos de bagos de uva de vinho verde, estes lindos olhos que enfeitiçam amavelmente este meu pobre coração. No pó seco destas terras exauridas, esperando a boa nova da nova estação, desprezas um singelo sorriso que, como uma semente, fica eternamente enterrado dentro de mim e os teus lindos lábios de favos de mel de abelha apoderam-se mansamente da minha mente. Olho para ti menina de olhos verdes e sinto que quero ficar neste campo deserto, para descobrir os mistérios deste amor que, caso não seja correspondido, atirar-me-ei nos braços angustiantes da dor. No meu regresso a casa procuro por ti, rapariguinha de lábios de txotas14 vermelhas, no infinito deste azul fascinante e no cimo desta montanha que vai ficando cada vez mais distante. No regresso à cidade, tento enxergar-te no limiar da imagem simples e clássica do ponto final desta minha saudade. Procuro por ti e não te encontro, mas os teus olhos verdes, menina, seguem-me como uma risca de espuma branca deixada entre dois cais afastados. Os lábios pintados 14

Pardais.


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vêm dançando e cantarolando no arco-íris formado nas cristas das montanhas destes campos amuados. O teu sorriso lindo e singelo, minha camponesa, ficou enterrado nas ribeiras desses ilhéus naufragados em dificuldade… Entretanto, continuo procurando a imagem da tua beldade.

A noite veio adormecer esta miséria, acariciar ao de leve estes campos aspados, amparar estas ladeiras nuas e sem glória, acalentar estas ignóbeis criaturas nos seus braços. Uma sombra negra veio embalar os sonhos de criaturas desgraçadas e silenciar o barulho oculto dos gritos cravados nas gargantas secas e enferrujadas destes espíritos empobrecidos. Trouxe nas plantas das suas mãos a lua genuína, anjo da guarda nas noites de aflição, vagabundeando neste céu cheio de estrelas briosas e cristalinas. Estrelas que luzem este silêncio ameno, uma auréola que cintila na penumbra desta solidão silenciada pelos poemas das ondas do mar que ninam este meu sono profundo e sereno. Ela veio restituir o meu alento e a minha identidade, devolver-me a minha emancipação, a liberdade extorquida nas montanhas de pedra e vento, ladeiras abençoadas pela maldição. A noite amada chega com a sua solenidade, paralisando a geada deste colchão que despedaça a minha alma sem alento, pobre alma que suplica a redenção. Já não suporto viver atirado na solidão destas paredes inócuas e estas longas noites rodopiando como um moinho de vento, nestas madrugadas de clareza e tortura. Não, não me apetece continuar mergulhado nestas nódoas desta vidinha de desalento, quanto mais aceitar levianamente este sentimento por ti, criatura.

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Com o adormecer da cidade, a solidão invade a minha alcova e lentamente a sombra negra conquista a minha cova. Advinha-se uma noite de desespero, uma madrugada solitária acompanhada pela angústia de uma longa insónia. No silêncio da noite, no lugar de sentinelas, vigio esta pequena cidade por inteiro. Contemplo a grandeza do mar, o púlpito da lua cheia e o cintilar das estrelas ao mesmo tempo que vejo a imagem de ti camponesa, enterrada nos vales escuros, encoberta nas sombras das montanhas e desafiada pelos abismos dos despenhadeiros. Enquanto a cidade dorme, a náusea envolve-me em enredos de cegueira. Cobre-me com esta pesada poeira e atira-me na escuridão deste mundo abstracto. Sinto que tenho a solidão trancada no meu quarto, um vazio desesperante deitado no meu leito e uma vasta dor cravada no meu peito… Enquanto a cidade continua a dormir. Pela madrugada dentro sinto um toque suave das mãos de tristeza, um calor de lábios pintados de dor afrontando-me, um arrepio trilhando pelo meu corpo com aspereza e um bafo de martírio alucinando-me. Escuto o segregar de uma voz angustiante implorando-me por momentos utópicos que ascendem nesta minha ânsia de vomitar. Uma náusea que amavelmente vem conquistando a minha mente e compondo esta estranha parábola de amar. A minha afronta torna-se imortal, o meu desespero persiste e me transforma numa criatura submissa a uma névoa surreal. Estou vivendo alumiado pela esperança dos camponeses de campos secos, estas almas que a falta de chuva afronta. Esta pesada carestia insiste e encalha-me no precipício desta parábola de sentimentos que me atormenta.


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Acordo, viro as costas à cidade e parto ao encontro de ti, morena, tu que nasceste e cresceste submissa ao regime patriarcal. Encontro-te atirada nos confins dos campos e aproximo-me de ti para tentar perceber o porquê desta tua entrega ao trabalho braçal.

– Moço! Mitigaram-me o direito de aprender a escrever e a soletrar de forma decente, com o aberrante propósito de não escrever aos amores que me fazem a corte na ourela da nascente. – Nunca puseste os teus pés na escola da localidade? – Não! Mas tenho a esperança de um dia ter esta oportunidade. Aqui uma mulher é criada e educada para no futuro ser acorrentada e arrastada ao altar contra a sua vontade. – Uma moça é obrigada a casar-se com um homem que nunca sonhou e nem amou, com quem terá filhos que nunca desejou e nem planeou? – A maioria não tem como escapar-se deste triste futuro. Mas não te preocupes, moço, já estamos acostumadas, passamos a vida inteira sendo chicoteadas pelos valores sociais e culturais, dentro do próprio lar. – Como é que elas aguentam viver com homens sem os amar? – Os costumes as ensinaram. Os mesmos que calaram a voz, estes nossos valores imorais antiquados e humilhantes. Agora só as restam lamentar as angústias e amarguras deste destino gritante, feito de atitudes aberrantes. – Mas vejo que não perdeste a vontade de continuar a cantar as lindas melodias dessas mornas de embalar.

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– Canto para abrandar o meu sofrimento, enquanto trabalho debaixo de sol ardente e ventos loucos, esperando a chuva debangar15. Mas não te preocupes moço. Encaro de peito aberto todas as tempestades, cheias d’águas vermelhas, raios e trovoadas. Abro rochas, agrido campos e carrego montes de pedras basálticas, para construir estes quilómetros e mais quilómetros de estradas estáticas, solitárias e emblemáticas. – Onde é que arranjas forças para percorrer estes vales e ribeiras ferindo estes poços ressequidos? Como é que consegues viver subindo montes, cutelos, montanhas, atirando pedras para fundos de vales enfermos? Como consegues retirar grãos de areia debaixo das pedras e vencer a rispidez desses campos despidos? Qual o segredo para vencer tantas barreiras e viver em lugares tão estafermos? – Moço! Não te esqueças que sou mulher das ilhas, ilhas de contendas, sou uma mulher guerreira. Deixo gotas do meu suor, marcas do meu sangue cravadas neste pó fanado, para continuar a hastear a nossa bandeira, no meio desta vasta poeira. – Pareces acabada, maltratada e cansada. No teu olhar carregas longas e infinitas mágoas deste destino atribulado, mas no teu sorriso maroto ostentas um orgulho de ter nascido nesta terrinha abençoada. – Fui gerada no berço deste lugarzinho oprimido e criada no calor das mãos de gentes bondosas. Cresci abstraída em chuvas de lágrimas, em tempestades de suor, em torrentes de sangue correndo nas veias de uma alma angelical e moldada com o calor de mãos calosas exploradas pela miséria. 15

Cair.


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– Como o oleiro que dá forma a um simples pedaço de barro molhado? Um pintor que pinta o barulho das chuvas batendo no telhado das casas? Um tocador que cria e recria suaves melodias a partir de uma pauta musical e uma bela artesã que molda belas peças de cestaria? – Sim, como um pedaço de barro apertado entre os dedos do pobre oleiro, partículas de tintas respingadas16 na tela da imaginação do simples pintor literário e melodias poéticas libertadas pelos acordes do clássico tocador de saudades. – Como simples e pequenos cacos de barros, partículas de tintas ressequidas pelo calor destes campos de sequeiro, como escassas notas musicais que preenchem o vazio poético de um pobre camponês solitário, foste moldada com humildade, debaixo de tantas dificuldades? – Moço! Sou filha de uma parida mal amada e carrego uma carinha pálida e maltratada. Mas tu, és parecido aos mocinhos sentados à sombra de um coqueiro, olhando este mar que liga este mundo por inteiro e pela tua visão pálida, apercebo-me de que estás doente. – Estamos os dois doentes, pelo teu bafo ofegante também vejo que estás cansada com esta peste de morte lenta. Dá para ver que estás a ser açoitada por esta maldita doença que tira o sossego desta gente que vive ancorada nesta ilusão nojenta. – Herdamos este sofrimento dos nossos pais, também vítimas desta maldição que maltrata as nossas almas e aumenta a nossa desgraça. Tudo culpa destes valores morais e culturais que nos prendem e não nos deixam procurar a 16

Borrifadas.

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cura desta maldita doença, esta pura ilusão que é a maldita emigração. – E tu, moça, não te sentes cansada com esta vida miserável? Não te cansas de tanto esperar pelo fim deste tormento, pelo pedido de casamento que tarda em deixar de ser uma mera ilusão? Não tencionas acabar com esta vidinha enfadonha, trepando estes montes deste campo lastimável? Preferes continuar mortificando com esta ilusão que nunca foi salvação? – Não, moço! Apetece-me pôr um fim a esta dor interminável, fundir estes campos infames numa escuridão eterna. Calar as vozes inquietantes deste povo infernal. Silenciar de uma vez por todas esta pobreza materna. – Não! Não faças isto, pelo amor da nossa Virgem Santíssima. Se fizeres isto, reduzir-me-ei a pó de um cadáver fustigado na atmosfera da minha cidade. Serei mais uma alma perdida que preencherá o mosaico daquela cidade nojenta e condenável. Um farrapo podre e velho abanado e castigado pelos vendavais da crueldade. – Tenta entender, moço. Esta náusea enrola as minhas tripas e sinto uma vontade de vomitar esta contrariedade que paira no ar sufocante deste lugar miserável, onde sem dignidade testemunho esta fatalidade. – Criatura de pés fincados no chão e de coração sempre na mão, estás a ser castigada pela míngua e pela penúria. – Sob este fardo desesperante roubaram-me parte da minha infância e me pisaram as pequenas lágrimas que despencavam17 dos cantos dos meus olhos oblíquos. Lágrimas desam17

Caíam.


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paradas, pedintes de compaixão, enraizadas nesta silenciosa e angustiante névoa de lamúria. – És vítima desta natural inocência, uma inocência que te paralisa como uma Fedagosa18 enraizada nestes campos longínquos. – Nem este meu olhar, quanto mais as agruras da vida para compreenderem a minha tristeza e o meu pavor. Nem mesmo as minhas lágrimas evitam as marcas fósseis deste destino delinquente que ascende esta minha revolta e que me faz sonhar com as terras estrangeiras como a minha futura morada. – Apercebo-me de que sonhas com os navios a vapor deixando de mansinho o cais deserto, acompanhado pelo soluçar baixinho e penetrante de um ser que acaba de assistir à partida da sua amada. – Escuta, moço, se uns documentos caíssem antes das chuvas teria todo o gosto em partir. Mas se as águas caírem a tempo, ficarei, arrumarei um macho, prenhar-me-ei19 e quem sabe, pelo ano, parir. Contudo, se não aparecer nenhum infame para me enviar a papelada, para que eu possa destratar o meu passaporte e caso não chova, deixarei este lugar e vou para outra localidade correr a minha sorte. Perdão! Não sei que maluquice essa minha para estar-me a despir para ti este longo vestido cinzento, esta mortalha que cobre o corpo deste meu sofrimento. Pareces ser um moço bom, um rapaz direito, mas tenho de acabar com este mau jeito de despir diante de qualquer um esta dor que carrego cravada no meu peito. O 18 19

Uma planta que abunda nas ilhas de Cabo Verde (Chenopodium vulvaria). Engravidar-me-ei.

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moço deve ser igual a uma sombra que desponta numa rocha e desaparece na outra sem deixar rastos. Tenho a sensação que partirás e nunca mais voltarás a colocar a planta dos pés nestes campos sem pastos. É melhor deixar-me em paz, larga-me da mão, não me faças sonhar com um destino que jamais será meu. Nasci para viver eternamente remando neste mar de fariseu. Deixa-me esperar os documentos e o pedido de casamento que um dia me hão-de tirar deste tormento. Mas, talvez ainda a chuva seja capaz de vir a tempo de evitar este contratempo. – Moça, porquê esperar tanto pelas chuvas que teimam em não cair, porque não partes logo para a cidade? – Conseguirei um dia de trabalho e uma casinha para me meter, moço? Há como garantir três pratos de comida por dia, para acabar com a minha dublidade? Há água dentro para que eu deixe de puxar água no poço? – Lamento muito querida, mas vivo numa cidade grande e mesquinha, onde não tem um dia de trabalho. Vivo desprovido de recursos para armar a mãe pretinha e por causa de um pingo d’água vivo atrapalhado. – Então não achas que é melhor eu ficar aqui no buraco de casa dos meus velhos, enquanto vai aparecendo este bocado de comida e uma gota d’água continuar esmirrando20 desses cavoucos? Na cidade chorarei água, catarro e babo, merda dar-me-á gosto de marmelada. Por isso, peço-te para me largar aqui nesta localidade despida e comedida vivendo esta minha vidinha atrapalhada. 20

Saindo.


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– Moça! Pena que estou a ser pressionado a embarcar. O meu padrinho já me arranjou um lugar para zarpar escondido a bordo de um vapor sem saber onde vou parar. – Já tinha apercebido no teu olhar que estás à espera para emigrar, mas não imaginava que irias desafiar o mar a bordo de um vapor. Cuidado moço, ouvi dizer que alto-mar é traiçoeiro e poço de dores. Contam-se por aí muitas histórias dramáticas a bordo de vapores. – Moça! Vou embarcar, batalhar para ter recursos e construir uma covinha, no regresso far-te-ei a corte, pedir-te-ei em casamento e tocaremos a nossa vidinha. – Pelo amor de Deus, não me prometas mais tormento. – Se um dia voltar e se assim quiseres haverá casamento. O mais difícil será conseguir um pedesin txon. Mas se um dia voltar, fincarei os pés com malkriason21 até ser agraciado com um naquinho para fincar a minha bandeira neste país pequenininho onde os meus direitos são desprezados, pisados e enterrados pelas pazadas de terras que são atiradas aos olhos dos pobres coitados. – Boas horas mocinha! – Dê-me a sua bênção, Nhu Simão! – Deus te abençoe e te dê juízo nesta cabecinha. Cuidado com as promessas. Dê a tua mãe mantenha. – Pode ir descansado, transmitirei o seu recado. – Quem é esta figura? – É o carteiro da localidade, o homem que traz as boas e as más notícias. Todos os dias o povo aguarda esta criatura com uma boa carga de ansiedade, à espera de receber as cartinhas. 21

Falta de educação.

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– O velho anda tombado, todo para um lado? Parece que vai cair mas não cai. – Esta é a imagem que caracteriza este homem que está sempre neste vai vem, distribuindo as cartas tão aguardadas pelo povo destas txadas22. – Vejo que ele tem uma boa dose de empatia com as gentes desta aldeia. – Ele é muito querido, ele é que faz a ligação entre a emigração e a nossa povoação. – Maldita emigração, o destino do crioulo, a nossa bandeira. – Se não há remédio, remediado está. A sina dos pobres, coitados sem recursos, é a emigração. – Deixarei mágoas e saudades, mas terei de subir para bordo deste cargueiro e embarcarei para este mundo clandestino. Navegarei na correnteza traiçoeira de lágrimas e desembarcarei num cais desconhecido no estrangeiro. Como se tivesse cometido alguma maldade, refugiar-me-ei a bordo deste vapor, onde passarei longos dias na clandestinidade. Enjoarei e vomitarei todas as migalhas secas, mas me acostumarei com as chicotadas deste destino traidor. Levarei comigo a esperança de sobreviver e regressar para te tirar destes cavoucos. – Ficarei aqui neste lugar com a minha enxada a cavar este mar de cinzas, este campo de poeiras e de noite sentar-me-ei na soleira, fixarei os olhos no luar, a minha única companheira, para continuar a sonhar com este amor prometido, esta cartinha de emancipação que me vai libertar desta vidinha 22

Campos, achadas.


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escrava, com o regresso indefinido deste que está prestes a abraçar a emigração, para me desenterrar desta maldita cova. – Despeço-me de ti com tristeza, com o coração aberto em mil feridas, com os olhos sangrando lágrimas, gotas de saudades de ti, moça. Levo na minha bagagem a certeza de um dia voltar a pisar estas terras despidas, voltar a ver estas tuas duas covinhas lindíssimas que formam na tua kexada23 de menina e moça, de poder te abraçar, as lágrimas te secar e acabar com o teu sofrimento. Arrancar-te deste tormento, despir-te este fado espinhoso que cobre esse corpinho deleitoso. – Que Deus te acompanhe nessa dura jornada, que tenhas forças para aguentar a malcriação do mar, que tenhas estômago para o odor da maresia suportar e coragem para resistir às nostalgias desta terra amada. Não deixes de dar notícias, de escrever umas três rigrinhas24, de enviar umas cartinhas que certamente trarão muitas alegrias. Não precisas preocupar-te com encomendas e com o envio de dinheiro, inquieta-te apenas em mandar mantenhas. Se te esqueceres de mim esquecer-me-ei de ti, marinheiro, e este será o nosso fim. – Podes ficar descansada, minha camponesa. Vou carregar a tua imagem como uma chama sempre acesa para alumiar a minha longa viagem. Serás uma espécie de um farol, em cada porto que atracar estará ali estático e esbelto para me receber de braços abertos. Prometo que não te esquecerei. Podes crer que te escreverei e um dia hei-de voltar para a minha amada 23 24

Rosto, queixo… Uma palavra muito usada nas cartas escritas pelas pessoas mais antigas.

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abraçar, apertar-te nos meus braços e sentir o calor dos teus beiços. – Agora vai, antes que alguma criatura nos surpreenda nesta candura e vá coçar os ouvidos da minha velha, para tomar mais cuidado com a sua ovelha. Não fazia ideia que o seu primo havia colocado o cabo da sua enxada de lado para vir espreitar esta prosa que desabrocha como uma rosa, disseminando um clima romanesco, espalhando pelo campo um perfume que cobre o cheiro de estrume característico deste penhasco, um episódio que cria um mal-estar neste camponês que veio espreitar este inusitado encontro da sua amada com outro, deixando o pobre coitado com um rosto enciumado.

“Não costumo ser reolento25, porém, este é o momento de amarrar de jeito a dona do meu peito. Deixa a minha querida Tia ficar a saber deste descaramento, para acelerar o meu casamento com esta linda Badia. Deixa-me ir visitá-la, dar um jeito de contar-lhe o que acabo de ver, sem deixá-la perceber que estou a fazer intriga, para levar de melhor esta cantiga.” – Como vai a tia Amália? – Virando cada dia na graça do Senhor Jesus Cristo Redentor. Entra, meu sobrinho. Arrasta o moxinho26 para não ficares em pé, enquanto te aqueço um gole de café. – Pode ficar sossegada, não precisa tomar esta maçada, deixa o café para uma outra ocasião. 25 26

Alcoviteiro. Pequeno banco de madeira utilizado pelas famílias mais pobres.


Ladeiras do Inferno

– Qual maçada, faço questão de te trazer uma canequinha com um pingo desta borrinha27. – A tia vai fervê-lo agora? – Não te preocupes, não demora, preparei o cafezinho logo de cedinho, deixei o bule tapado e, como é habito, sentado nas cinzas cálidas na ourela das brasas. A velha empurra a porta, o cheiro de kaxupa28 guisada com toucinho, verdura frita e o odor de café de cevada torrada aguçam o paladar do moço que veio denunciar a rapariga que está sendo cortejada na ourela do poço.

– Menina Pinha, eu não vejo nada de mal em conversar. – É que não conheces este povo Cantai. Este meu povo é reolento. Não podem ver uma moça e um rapaz a prosar. Para eles, este tipo de comportamento não passa de descaramento. Pior é que a minha mãe anda a tentar obrigar-me a casar com um dos meus primos, um analfabeto como eu que vive a esgaravatar sustento nestes campos pobres deste ilhéu. – Querem forçar-te a casar com um primo? – Porquê esta cara de espanto? – Sabias que os vossos filhos podem ser mongolóides. – Se for esta a vontade do Senhor? – É preciso bastante ânimo para superar esta vida de pranto, semeada em adversidades, contrariedades e muita dor. – Este é o nosso destino. Não temos outro remédio. Temos de aceitar este vitupério. Vá lá seguir o teu destino e deixa-me 27 28

Borra de café.. Prato típico de Cabo Verde.

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aqui enterrada nestes meus hábitos que para ti são esquisitos. É melhor ires embora, a minha velha não demora em aparecer por estas bordas com o fôlego cansado, com um aspecto contrariado, com as veias da cara empoladas, envenenadas com a intriga que deve estar a ser feito neste instante por uma pessoa que lhe é amiga que nos viu nesta prosa de amante, algo que a deve ter deixado com dor-de-cotovelo e incomodada, lá foi soprá-la no ouvido de forma a ser promovida. – De quem estás a falar? – De quem poderia ser? – Não estou a ver. – Do meu primo, com quem a velha quer obrigar-me a casar. Ele anda por estas bandas escondido no meio de folhadas, de olho em cada movimento meu, como este lindo céu. – Então ele nos viu a conversar? – E já deve estar lá a cantarolar nos ouvidinhos da minha velha, como galo na quina de uma telha, como pardais à tardinha, como grilos debaixo das pedrinhas.

Tia Amália entra com o prato de esmalte fundo, o prato preferido do lavrador cheia de kaxupa guisada rebocado de fumo abraçado pelo braço esquerdo imundo de carvão, habituada ao calor do vapor deste fogão que lhe deixa a pele mais queimada e as roupas e o cabelo a fumo cheirando. Uma caneca de café de cevada, pingado um leitinho desta faminta alimária, assegurada pela outra mão também muito acidentada, fruto da sua garra e da sua dedicação.


Ladeiras do Inferno

– Toma este pingo de café. Saco vazio não fica de pé e homem com fome tem medo de enxada. – Não precisava tomar esta maçada. – Não foi maçada nenhuma. Fi-lo com muita boa vontade. Agora deixa de solenidade e mata o teu jejum. – Já tinha matado a fraqueza. – Não estás a falar com franqueza. Vejo nos teus olhos afunilados, estes dois buracos esfomeados, que ainda não meteste um grão de milho ilhado29 num desses dentes furados. O mocinho deixa-se de cerimónias e sem mais cortesias enfia o milho na kexada de forma desajeitada. Mal mastiga o milho, empurra-o para o bandulho, como se nunca tivesse visto comida em toda a sua vida. Sorve um gole de café quente para ajudar a desembuchar e os grãos para baixo empurrar. Tia Amália fica radiante de alegria, vendo o sobrinho raspando o pratinho. – Vou buscar-te um grogue para cortar o sangue, duas bananinhas maduras e uns pedaços de verduras para comeres lá logo, quando o estômago começar a roncar e a fome apertar. – Traz somente a aguinha para secar o suor debaixo do calor. – Leva uma bananinha para mais tarde fazeres uma bafa30, para que a terra não te abafe. – A Tia sabe que não sou reolento, que não sou confuzento31, que não gosto de intrigas e nem de fazer reolas32. 29 30 31 32

Torrado. Comer. Pessoa que gosta de fazer intrigas. Intrigas.

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– Não precisas de prólogo, diz-me logo o que estão por aí a falar, sem gaguejar. – Desta vez ninguém me contou nada. Testemunhei tudo ao vivo e a cores. – Desembucha criatura. Estou a ficar impaciente. – A Pinha está sendo cantada por um desses estupores que costumam enganar menininha de gente. – Dizes tu que ela está sendo cantada? Mas não está numa árvore encostada ou no chão deitada à espera da maldita rebenkada33? – Não! Vi os dois apenas a cavaquear, mas ela me pareceu muito fascinada. Parecia estar a gostar, já estava a ficar cegada. – Vamos antes que seja tarde, antes que este covarde decida desabrochar a minha flor. – Cruz credo, Tia. Não suportaria a dor de ver a minha amada precocemente desonrada.

Deixo a Pinha estatuada no meio daquele vazio, jazendo sobre a enxada com um olhar esguio, pasmando na minha pessoa que se distancia com uma boa carga de mágoa e muita repugnância. Vou distanciando-me desta moça de cor de canela que começa a ficar ali distante, como uma solitária e cintilante estrela reinando por inteiro neste céu, resplandecendo esta minha dor gritante que me acompanha nesta hora de adeus. Ela vai ficando minguada, como uma pedra abandonada no meio deste descampado, a morada deste povo desolado. Procuro não perder a sua imagem, esforço-me em tirar33

Bordoada.


Ladeiras do Inferno

-lhe uma última fotografia para guardar na minha memória, uma arma para vencer a dureza desta longa viagem. Aceno-lhe com lenços de mágoas, despeço-me dela com lágrimas e com uma grande dor atravessada no meu peito, adormecida no leito deste meu amor. Sinto-me tentado em voltar, em desistir de embarcar, em negar o bordo de vapor, ficar aqui para viver este amor, embeber-me da seiva destes lábios lindos, grossos, carnudos desta linda mestiça que me enfeitiça, apodera-se dos meus pensamentos, baralha os meus sentimentos, aprisiona os meus movimentos, impede-me de caminhar e destas pobres ilhas zarpar no baloiçar infernal deste mar. Como uma pequena semente, uma partícula inócua enterrada nesta terra nua, coberta pelo pó quente à espera de gotas de chuva para matar a sede desesperante que faz sentir na treva, que é este campo intrigante, para depois parir, os rebentos florir, abrir em folhas frondosas, vestir estas rochas despidas, trazer muita esperança e uma grande bonança, também eu gostaria de ficar fincado nesta terra, dentro desta esfera onde posso morar. Mas não adianta sonhar, o destino é partir, enfrentar este mar e desta terra sair. Abraçar esta aventura da emigração com muita amargura. Partir para uma terra distante, suposta morada de solidão de dor e de saudades da minha amante. Continuo a descer pelas veredas, como as lindas miúdas quando vão à nascente debaixo deste sol quente, amassando os espinhos espalhados pelos caminhos que lhas ferem as almas, mas não lhas tiram as forças, esta coragem escrava, esta firmeza brava, esta predisposição de lutar, de continuar a

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acreditar que dias melhores hão-de vir para travar este querer partir. Desço como as mães negras, pobres filhas de paridas que têm uma vidinha agreste, chicoteadas pelos ventos de leste, queimadas pelo sol ardente, respirando este ar doente, violadas pela força da natureza, enterradas neste cemitério de pobreza. Elas trazem os filhos amarrados às costas e com perseverança galgam estas encostas, criaturas que vivem em contradanças atrás do sustento das suas crianças. Nas minhas costas trago saudades e uma boa carga de contrariedades. Já não vejo a imagem desta graciosa moça, ela perdeu-me de vista, escondeu-me atrás deste cortinado, esta negra cortina de estiagem que esconde os trabalhos duros da roça que cobre esta seca terrorista e deixa este povo mais flagelado. Mas na tela da memória minha, na moldura dos pensamentos meus, no quadro das minhas lembranças trago o retrato da minha querida Pinha, o viveiro dos sentimentos meus, a estufa das minhas esperanças. As montanhas que ficam para trás olham para mim com letargia, cospem-me com estas sombras que vestem esta estrada isolada. As árvores esmirradas34 desprezam a minha dolência, não incomodam com as lágrimas minhas pingadas ao longo desta caminhada. Uma cabrinha delgada, com uma aparência afunilada, uma alimária esfomeada com boca enterrada em nada, de repente fica estática, como uma pedra basáltica, tal e qual a minha amada que ficara paralisada naquele cenário amarelado, aquele campo doirado. Parada no tempo, sem um único movimento, ela segue este pequeno cortejo 34

Secas.


Ladeiras do Inferno

fúnebre, o enterrar precoce deste sentimento, este amor de pobre, algo tão nobre. A cor negra desta cabra simboliza esta cena macabra, o nojo da minha dor e o silêncio ensurdecedor demonstra o respeito pela dor no meu peito. O meu andar lento acusa o meu desalento, esta triste separação causada pela emigração. Este meu querer ficar e ter de partir faz-me delirar e ascende a vontade de cuspir esta oportunidade de emigrar, enterrar o meu destino neste lugar, como estes coqueiros e tamareiras enraizadas na miséria destas ladeiras, como cana de karise35 em hortas de gente, este povo cada vez mais doente.

– Filha! O que fazes aqui parada, encurvada sobre esta enxada? Esta abrupta questão fê-la acordar desta ilusão, voltar a colocar os pés no chão, meter a enxada na mão e começar a lavrar sem dia de parar. – Estás com uma cara aluada, cara de quem viu encantada, cara de mulher apaixonada. Viu algum príncipe encantado que te deixou fascinado, com este semblante enfeitiçado? – Não, mãe! Apenas vi esta enxada, este lugar descampado, esta data de terra afanada e um povo malogrado. – Não é isto que a tua cara assombrada, esta tua expressão de mulher cortejada, este brilho que trazes estampado nesta carinha enamorada estão a demonstrar e não é o que estou a enxergar com estes olhos meus que a terra destes ilhéus um dia há-de receber, o dia em que eu morrer. 35

Uma planta que nasce espontaneamente e abunda pelas ilhas de Cabo Verde.

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– Mãe! Vi alguns corvos esfomeados riscando este céu com olhos arregalados, em voos sem rumo, sem direcção atrás de um pequeno grão. Cobriram-me com as suas sombras, envolveram-me com as longas asas negras e com barulhentos ruídos feriram-me os ouvidos. Com o bater enraivecido das suas asas compridas levantaram este pó empobrecido, fizeram uma grande fumaça que vestiu estas ribeiras entregues à desgraça. – Pois, por mim foste coberta por olhares penetrantes, cantada por palavras cativantes, envolvida por brandos braços e acalentada em dóceis regaços. Este teu brilho lunático, este magnetismo fantástico, esta postura de espantalho, este teu jeito atrapalhado é de uma criatura apaixonada, uma mulher enfeitiçada por um homem sedutor, um ser encantador que espalha incensos com cheiros intensos, que deixam as raparigas com as cabeças perdidas, rendidas pelo amor, sem medo da dor. Mas antes de fazeres alguma besteira, de cometeres alguma asneira, de entregar este teu pudor às mãos de qualquer estupor, vou começar a tratar do teu casamento, evitar qualquer tipo de tormento que sinto avizinhar-se do meu pobre lar que não tem suporte para resistir a um abalo tão forte. – Não caso com o meu primo. Não adianta, eu não o estimo, não o gramo e nem o amo. Ele vai regressar, ele vem me buscar, tirar-me desta miséria e resgatar-me desta penúria. Ele é um homem puro, um indivíduo íntegro, transmite firmeza, fala com delicadeza é um homem honesto e bastante modesto.


Ladeiras do Inferno

Continuo a minha jornada, esta caminhada ao longo deste caminho, acompanhado pelo mutismo mesquinho, este silêncio barulhento que me rouba o alento, que me deixa mais enfraquecido e muito mais deprimido. Sem forças para continuar a respirar estas partículas de ar arrastadas pela brisa do mar, sem ânimo para empurrar este andor, esta pesada carruagem de dor, a dor de separação do amor, em passos vagarosos, em movimentos morosos, com o coração destroçado e um pouco desorientado continuo esta marcha lenta, carregando uma dor violenta que enfraquece a minha cadência num acto de pura violência que me agride gratuitamente debaixo deste sol quente que me destrata e me desidrata, deixando-me mais enfraquecido e muito mais abatido. A paisagem é desoladora, o cenário é deprimente, a vista é entristecedora, o panorama aparenta doente, uma moléstia que caracteriza o sofrimento, o tamanho do tormento vivido pelas nossas gentes que labutam nestas condições indecentes, curvadas sobre cabos de enxadas, ferindo estas terras afanadas, formando nuvens de fumaça, sombras de desgraça que acarinham estas quebradas, estas ladeiras ressequidas. Durante a minha jornada contemplo cenários desertos e vivo momentos mortos ao longo desta interminável estrada. O cenário continua igual, não se vislumbra nenhum sinal de transformação, de mudança, apenas rastos desta maldita doença. O céu está limpo, sem uma única mancha, o sol castiga-me sem dó e sem piedade, faltam-me forças para continuar esta marcha, para continuar a caminhar em direcção à cidade onde me esperam para embarcar. Só um poço de amor pode atenuar esta minha amargura, esta minha guisa de dor, esta perniciosa tortura. Neste poço

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banharia a minha alma, molharia a garganta nesta longa viagem, refrescar-me-ia com calma neste poço que é uma miragem. Mas não posso parar, a jornada não terminou só porque a esperança acabou. Apesar da minha má vontade tenho de continuar até chegar à cidade. Pela estrada sou perseguido por olhares mortos, por um contemplar pálido e acenado por defuntos, montes despidos, campos baldios, pedras soltas e árvores mortas caídas nestas terras, este pó seco das trevas, este tapete acastanhado que ao ser pisado faz levantar uma poeirada, uma fumaceira desgraçada. No meio deste cenário ermo surge na minha frente um coqueiro enfermo, uma planta triste e comovente, vergada por um lado, desamparada nesta miséria, insulada neste descampado, deprimida e solitária, martirizada pela estiagem, esta amaldiçoada aragem, este bafo de calamidade que derrama sobre esta localidade, este bálsamo de pobreza, esta fragrância de tristeza. As folhas deste coqueiro que aparentam estar tingidas com tintura e caídas sobre o espigueiro parecem o cabelo da criatura que deixei pregada naquela txada, dobrada sobre o cabo de enxada, regando aquele pó fanado com lágrimas de enfado. Os dois pequenos cocos são como os olhos, os dois buracos minguados e cavados da minha mulata cor de prata. O pó vermelho onde esta árvore está enterrada é o espelho daquela boca rosada, aqueles lábios avermelhados, grossos e carnudos, como estes campos extensos e doirados, um mar de ouro da cor do louro, o grande tesouro dos filhos destes ilhéus, estes pobres plebeus que vivem dependendo dos céus.


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– Esquece este emigrante que vive em lugar incerto, num sítio muito distante, sem regresso certo. Esquece as promessas, as dóceis palavras deste desgraçado que achas ser um príncipe encantado. Ele não vai enviar a papelada prometida durante a cantada, na tentativa de te seduzir, para depois partir sem deixar rasto como a maioria dos machos. Tenho a convicção de que ele nunca mais vai voltar a pisar os seus pés neste lugar, neste pobre chão. Só queria entrar contigo no meio da folhada, deitar-te à borda da levada, subir o teu vestido até o umbigo, abrir as tuas pernas, desabrochar-te a flor, desaparecer na fumaça e te deixar pelas montanhas lacrimejando de dor, lamentando a desgraça. – A senhora fala de um jeito como se algo parecido tivesse acontecido consigo no passado. Parece que no fundo do peito tem um segredo escondido, um desgosto que foi vivido e que não pode ser revelado. Os seus olhos estão transbordando em lágrimas, essa sua cara entristecida demonstra o tamanho da sua agonia. Este derramar de lágrimas é causado por uma suposta ferida que a deixa nesta angústia. – Deixa de teimosia e escuta esta velha, ela é analfabeta mas muito sabida. Deixa de fantasia, enterra os pés na terra desta ilha, dança esta txabeta cheia de vida. Filha, casa com um homem carregado de coragem para ferir estas terras, estes campos de pedras para tirar o sustento em tempos de desalento. – Um dia casarei, mas não aceitarei casar com este primo meu que nunca vai ter um pingo de amor meu. Vou ficar aqui a esperar. O Cantai vai regressar e com ele vou subir ao altar para um dia me casar. – E se ele não voltar?

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– Casarei com o cabo desta enxada e enterrarei a nobreza nesta poeirada. – Filha! Não suportarei uma indelicadeza desta natureza. – Uma coisa a mãe pode ter certeza. Não vou entregar a minha nobreza a este primo bisbilhoteiro, este ser intrigueiro que está sempre de sentinela, de olhos em qualquer escapadela que eu possa dar para ir lhe contar em troca de um prato de comida, de um cálice daquela bebida e de um utópico casamento. Esta besta de carga não casará com este jumento, com esta criatura sem postura.

Atravesso o deserto sem ninguém por perto. Apenas a cabrinha e as pedras me viram passar pelas estradas, atestando a minha desolação, esta minha amofinação causada pela dúvida entre a minha partida ou a minha permanência nesta terra de carência, para viver este amor ao lado da minha flor, esta mulata queimada no meio desta terra abrasada. Apenas caminho neste tapete de espinhos, caminho neste calvário, nesta estrada de martírio. A maldita solidão é tão sufocante que não me deixa ter noção da asfixiante, situação vivida pelas gentes que dependem destas terras quentes, onde enterram a esperança de um amanhã de fartança36, longe desta carestia, esta maldita penúria. A dor escurece esta paisagem, a nostalgia deixa-me sem ânimo para continuar a viagem nas bermas deste abismo. Piso uma paisagem encardida, um lugar sem vida onde tudo parece morto como se tivessem 36

Fartura.


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feito um aborto por estas encostas ressequidas e secas. Ando sem sequer poder ver o meu próprio ser, sem poder ver o tamanho da desgraça que Santiago Maior abraça, sem poder encontrar o meu eu neste vasto céu que me acompanha nesta campanha, sozinho nesta caravana pela estrada plana que me distancia desta localidade e me leva para a cidade onde me esperam para embarcar, aventurar-me neste mar, fonte de sustento, poço de sofrimento. – Oh, meu afilhado, estava desanimado, pensando que tinhas desistido e com medo do mar tivesses fugido. – Não meu padrinho. Fui até um lugarzinho despedir-me de uma mulher bela, dessas de cor de canela. – Se ela te amar vai saber esperar até regressares. Mas não te preocupes, na stranger37 tem bonitas mulheres, não tardarás a arranjar novos amores. Agora vai preparar as tuas coisas, arrumar as peças de roupas, preparar a tua malinha, porque partes logo de manhãzinha. O vapor já está preparado, o porão está fechado, a grua está deitada, tudo pronto para a largada. – Tenho medo de marear, não sei sequer nadar, sinto que não vou suportar. E se o vapor avariar, parar no alto mar e vier a afundar? – Mar manso faz marinheiros medrosos e mar bravo faz marinheiros corajosos capazes de enfrentar qualquer temporal sem se recearem o mal. – Será que serei um marinheiro valente? – Basta enfrentares o mar de frente. Não tenhas medo das grandes ondas, depois da fúria elas ficam mornas, tranquilas 37

Estrangeiro.

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para navegar, calmas para deslizar até ao cais de um novo país, onde contactarás com novas culturas e te deitarás em regaços de novas criaturas. No ofusco da alvorada, na penumbra da madrugada ao som do ressonar do guarda caminhamos em vanguarda para dentro do porto, que se encontra morto, sem um único movimento, dormindo como um defunto. As rochas de Txada Grande estão negras, parecem cortinas das trevas tapando a miséria. Apenas sinto o cheiro da maresia, mas não vejo o mar que está coberto por um longo vestido preto. Subo a bordo deste vapor que está pronto para zarpar desta minha terra. Sinto-me abatido e abraçado pela saudade de ti, minha amada, dos familiares, dos amigos e dos sítios. Não sei quando os meus olhos voltarão a sorrir, de ter ver, minha criatura. Permaneces empossada neste sentimento pálido e deixas-me partir de coração pisado, sem o gosto dos teus lábios. Tudo começa a ficar para trás, o magnetismo destas esquinas esguias escondem-se atrás da ilha, ao mesmo tempo que se abrem portas para uma nova aventura. Para a frente aguardo uma metrópole conturbada, com novos cenários, novas gentes, nova cultura, onde terei oportunidade de trabalhar como contratado. Um emprego é o quanto basta para abater este sentimento tenebroso, suportar as inclemências da amargura e aturar o sabor deste inferno margoso. Certamente, com o passar do tempo, novas experiências vou conhecer, novas sensações e quiçá um novo amor. Algo que pode serenar este desconforto que escalavra as entranhas da minha alma. Não obstante, faço questão de não te esquecer,


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procurando manter esta chama sempre acesa no motor do meu vapor alumiando-me o caminho do novo porto e mantendo a esperança de voltar a reencontrar esta linda mulher. Pinha, nas vagas do mar vejo a tua imagem a baloiçar, aparentas estar tranquila, serena e silenciosa, não te mostras afectada com a minha partida, apesar de sempre que duas pessoas que se amam abstraem, a afronta de ambos é desesperante e desgostosa, contudo a que fica tem mais motivos para lamúrias e para ficar mais comovida. Assim acontece em quase todos os casos das gentes que se distanciam. No entanto, nesta minha partida, sem papel e com um único documento, a vontade de vencer este desnorteamento, tal parece não se verificar contigo nha kretxeu38. Não consigo compreender a tua indiferença, tens todos os cenários susceptíveis para te recordares dos olhares intensos consagrados um ao outro, dos escassos momentos vividos debaixo de luar, dos locais onde nos sentávamos para um cavaco, olhando para aquele espaço opaco. Podes pegar nos retratos de nós dois juntos e reviver os momentos inauditos que foram guardados na tela da velha máquina que só trabalha a manivela. Também podes relembrar dos versos de amor ditos para exprimir estes meus sentimentos que estão prestes a serem rasgados diante dos nossos débeis juramentos. Recordações quanto bastam para demonstrar as saudades que podes sentir, mas parece que permanecerás indiferente diante de todos estes elementos. A única explicação que encontro para estas contrariedades é o receio que tens de que tudo possa ser varrido pelo desalento. 38

Meu bem, uma forma carinhosa de chamar a pessoa amada.

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A tua imagem mostra-me que continuas a tua vida espontaneamente, não deixa transparecer em nenhum instante que a minha partida tem afectado a tua mente e nem sequer te sentes pisada com este amor distante. Mas lá no fundo do teu ser, sei que escondes este sofrer, esta profunda tristeza inconsolável. Confesso que esta minha largada está sendo insuportável, mas o meu amor será fielmente mantido até à minha vinda, alumiado pelas promessas feitas a ti, minha linda. Hoje estou longe da minha terra, neste lugar com um forte odor de arquejo, encapsulado dentro de uma comprida capa negra onde me sinto doente e apático. Aqui não passo de um ser akabrentado39 por um silêncio estático e abandonado pela certeza que foge na correnteza do Tejo. Aqui na stranger os pretos são simplesmente desprezíveis. Na cidade cosmopolita de Lisboa, que no meu imaginário era uma terra de gente boa, sou entupido pela poeirada destes cenários escandalizáveis, estes cenários que me cegam a vista. Os crioulos que trocaram as ilhas por esta cidade doentia, as criaturas que abriram mão da pobreza, que abraçaram esta aventura altruísta, procurando debelar a miséria que vem alicerçando esta moléstia fraqueza, aqui na diáspora sofrem com o clima, actos racistas, discriminação, preconceito, desemprego, clandestinidade e perseguição. Moram debaixo de pontes ou à beira de caminhos-de-ferro, onde labutam na candonga para evitarem um precoce enterro. A estrutura desta cidadezinha vê as suas ruas, ao longo dos anos, ganhar 39

Deprimido.


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cores mais cruas mas que, com mais pinceladas de precariedade, fará sempre parte da nossa identidade. Embalada por esta aflição infernal, lembro-me da minha cidade natal e apercebo-me que, apesar de tanta pobreza, nunca passara por tamanha fraqueza. A solidão persiste esfaqueando o meu peito, e o vazio marginal veio repousar no meu leito. O vazio infernal que me atormenta com o silêncio do seu barulho só pode ser ilibado pela candura e ternura dos teus braços, minha amada, pelo quotidiano da minha vila de que tanto me orgulho e em que tanto anseio colocar os meus pés para ser abraçado. A saudade lega-me um fado de desalento, mas aqui me faltam ombros acolhedores. Sinto falta de um cemitério para enterrar as minhas lágrimas de lamento, mas não há vivalma afecta às minhas dores. Não sou homem de choradeiras e nem de lamúrias, mas o grito de saudade atira-me nas margens deste rio de águas calmas. As saudades da minha terra, das minhas gentes e da minha cultura cantam mais alto do que os cantos e encantos desta cidade de exploração, tortura e de muita amargura. Ando pelas ruas desta cidade sempre à tua procura, meu amor. Neste momento estou passando pela casa de um cigano, uma barraca fincada nas beiras de uma linha ferroviária. Direcciono-me para as margens do Tejo com o meu corpinho assustado. Não obstante este medo leviano, atravesso a estrada para me esconder da atitude discriminatória desta cidade obsoleta e sem pejo, que persegue o meu suspiro débil e cansado. Sou recebido pelo barulho monótono e cáustico da fiel companhia da correnteza de lágrimas despejadas do rosto dos filhos do atlântico. Sento-me numa pedra parada à

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beira do rio, mais um cravo de fraqueza fustigado pela fúria do frio.

Pinha não se cansa de se sentar na berma da estrada, para ali esperar a tão aguardada chegada daquele velhinho montado no burrinho, batendo nas portas, distribuindo as cartas que fazem a ligação entre a emigração e as pessoas destas ilhas, que dependem das remessas dos emigrantes para viverem como gente. – Dê-me a bênção, Nhu Simão! – Deus te abençoa, mocinha. – Não veio nenhuma cartinha? – Para ti, nenhuma correspondência, é preciso ter paciência. Queres um conselho de mais velho, não corre atrás das notícias, nem sempre elas são boas. Mas esta tua atitude é estranha, quem vos escrevia já faleceu. Ou já esqueceu? – Ele tinha por hábito enviar aquela cartinha de três em três meses sem falta, para a família não passar falta. – Então foste enganada por um desses emigrantes que enganam estas gentes com promessas de envio da papelada? – Desta vez não fui enganada por criatura alguma. Não me prometeram papelada nenhuma. Apenas vim ver se o carteiro trazia notícias do meu marinheiro. – Queres um conselho de um ser mais velho? Porque não arrumas um casamento por estas ladeiras e acabas com este sofrimento? – Para casar é preciso amar e o meu amor está em cima do mar.


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Aqui em Lisboa, vivo momentos de nojo, atirado nestas margens solitárias do Tejo, onde descarrego as lágrimas de saudades das ilhas fantásticas. Pasmo-me nos botes vogando, neste rio que também é meu e nos pássaros riscando este azul vivo do céu. Cheira a maresia, a óleo queimado dos estaleiros, a fumo preto das fábricas, a caldeirada de lampreia que vem das barracas, onde vivem os marinheiros. As máquinas cessam as funções, as oficinas fecham os portões, as correntes dos guindastes param de ranger e a barafunda do trabalho começa a adormecer. Numa autêntica peregrinação vejo os pobres operários a deixarem os estaleiros, este templo de exploração, com as aparências cansadas, com as fisionomias maltratadas e estupidamente exploradas. Cada um parte para o seu gueto, este lugar vai ficando quieto e eu guarda deste deserto. O meu sossego é sepultado pela voz de uma rapariga magra e aspada. – Moço! Tem algo para oferecer a esta sua criada? – Deixe-me morrer primeiro seu abutre esfomeado, para depois vires atacar com as suas garras aguçadas este meu corpo desgraçado. – Credo moço! Não sou nenhum bicho ruim. – Se não é abutre, deve ser um guincho de rocha ruim. – Não moço! Sou apenas mais uma pobre jatura40. – Procurando o quê por estas bandas, criatura? – Procurando sustento para os meus filhos que ficaram no ninho. 40

Sorna.

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– Mas eu não tenho nada para oferecer a este corpinho. É melhor ir pousar o seu voo em outro lugar. – Sabe que tem razão, hoje o tempo está para matar, o frio quase que paralisa o meu corpo roto. Vamos embora daqui, garoto. – Larga-me da mão, segue o teu caminho de costume, deixe-me aqui na graça de Deus, desgraçada. – Tenho uma barraquinha fincada naquele tapume, posso agasalhá-lo desta maldita geada. – Não quero sair daqui, nunca mais fugirei do meu destino. Aprendi que não há papa quente que não se esfria. – Deixa de ser teimoso, menino, se ficar amanhã acordará mais estático do que esta pedra fria. – Moça! Já estou a perder a paciência. A sua insistência está a pegar-me na passarinha. – Que tal uma lareira e um bom caneco de vinho quente para debelar esta carência? – Se tiver de morrer, morrerei aqui à beira deste rio. – Pelo amor de Deus, moço. Não se entregue à escuridão desta covinha. Amanhã é um novo dia e a vida é rodeada de mistério. – Parece-me mais fácil este rio secar do que as coisas mudarem para mim. A água pode evaporar-se, mas eu nunca deixarei de ser preto? Nesta terra os pretos nunca deixarão de ser malfeitores. – Eu não sou preta mas continuo a definhar! Para estes estupores não sou gente, não passo de coisa ruim. Os olhares desprezantes dos lisboetas arrastam-me até às margens deste rio obsoleto onde nas primaveras não passo de uma andorinha e nas tardes de Inverno sou companhia aos açores. Assisto ao


Ladeiras do Inferno

amanhecer de cada dia, o nojo de cada noite a entristecer esta cidade que está sempre a trocar de rosto enquanto vou sendo fustigada por cada ventania e olhando para este rio a clarear em cada alvorada e o enegrecer com o anoitecer. Todavia, nunca abandonei o meu posto. Não há tempestade que me fará zarpar deste lugar. – Cada um que arranje a sua forma de pôr a vida a andar. Eu já escolhi a minha. Por isso moça, vai cuidar das suas crias e me deixe em paz. – Tudo bem, eu vou, mas deixe de ser pertinaz. És um rapaz bastante obstinado! Tenho pena de si, pobre coitado. Não conhece a frieza destas bandas e nem a solidão destas bordas. Parece-me que está doente, um ser demente que quer se suicidar, para ir descansar como uma pedra atirada no fundo do Tejo e uma semente enterrada nos campos do Alentejo. – Quer saber qual é a minha enfermidade? Esta doença que tem uma única cura? É o desejo de regressar à minha terra, para apertar a minha amada nos meus braços e matar esta saudade. Esta, esta é a causa da minha contrariedade. Conhece outra forma de me libertar desta amargura? – Não, moço! Apenas embarcando neste mar e regressar à sua localidade para ir viver a sua mocidade. – Mas não é tão fácil como parece, moça. Tenho que juntar alguns recursinhos, para arrancar a minha amada daquele trabalho de roça. Vim pa41 stranger com um sonho, trabalhar e arranjar um dinheirinho, para fazer um buraco de casa para morar. 41

Para.

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– Pelo amor de Deus, miúdo. Não se deixe levar por esta maldita teia. Trate de desembaraçar deste tormento sisudo e parte para a vida modesta da sua aldeia. Não faça como eu. Abandonei toda a pobreza do Alentejo, deixei para trás a outra metade do meu eu e vim viver nos braços de fraqueza do rio Tejo. Ancorei nas margens deste maldito rio, fundeei-me neste balanço poético e adormeci no aconchego deste martírio. A vergonha de voltar à miséria amarrou-me neste lugar nostálgico e afaguei-me nesta ilusão literária.

A claridade ressequida do novo dia veio resplandecer os mastros dos barcos, ancorados no rio de lágrimas da emigrason42, despejadas pela fadiga e pela curvatura. A sensação vadia, de deixar estes lugares opacos continua impregnada no pedesin txon, que parece uma autêntica sepultura. Sentado nas pedras estáticas e frias, aproveitando as sombras dos choupais, vejo a minha esperança a distanciar-se. De olhos fixos no rio que parece estagnado e envolvido pelo luto silencioso dos pardais, sofro com esta ânsia de regressar. O Inverno já deu lugar ao florir de cravos silvestres e no ar ficou o odor de flores campestres. Com o prelúdio de uma nova estação desespero-me diante da minha triste situação. Suplico aos céus este encontro tão agoirado, um desejo que continua a ser desprezado e a sepultar-me no infinito deste céu azul, onde as andorinhas voam em direcção ao sul. Ouço o barulho dos comboios riscando as ferrovias, o zunido das cancelas descendo e fechando todas as vias e a 42

Emigração.


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buzina ensurdecedora do comboio anunciando a sua chegada, enquanto permaneço aqui estagnado, esperando embarcar novamente neste mar. Desprezo a companhia do rio, salto para o outro lado da rua ribeirinha e perco no meio deste povo esguio, gentes que chegam a esta cidade mesquinha. Vejo pessoas felizes com o reencontro de amores, recebidos com abraços eternos dos seus amantes. Outras chorando na despedida dos seus trovadores, que partem para destinos distantes. Na chegada das caravanas, uma felicidade genuína. Na partida, choros, clamores, soluços e lágrimas. Criaturas partindo para destinos incertos à procura da fortuna divina, outras chegando para corrigir os desacertos. Quando o último passageiro abandona a estação, a minha angústia ascende. Deixo-me cair no banco solitário e fixo os olhos no relógio adormecido. Vejo os ponteiros calcinados, parados perante esta comoção, esperando pelo fim de mais um dia. Os Becos e as vielas estreitas são pintados pelo martírio deste povo ruim e enfraquecido. Nas esquinas das catraias fica na atmosfera o odor de prazer, um odor marginal de uma vida infernal. Este quotidiano sombrio destas artérias golpeia o meu ser e atira-me nos braços de um desespero fatal. A noite grita a sua chegada com o cinzento a bradar nos ouvidos do meu tormento. O caudal de catraias começa a desaguar na foz onde uma moça direita se transforma num ser vulgar e atroz. A moça troca a sua nobreza pelo bafo de pobreza, enquanto as luzes fluorescentes da cidade alumiam a promiscuidade. Olho para este céu vestido de luto, o rio coberto pelo pano preto e sinto-me o senhor da solidão. No

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meu redor apenas maldição, na ourela do rio um sinal de desgraça que religiosamente me abraça. Anestesiado no banco da estação à espera de uma nova aurora, assistindo à chegada contagiante da população e à partida tristonha para este mundo fora. No meio desta agitação, a marcar a mesma hora, um relógio velho e sem pulsação subserviente desta tristeza constrangedora. Pela alvorada nenhum cantar de galo, mas a manhã há-de romper e trazer mais um dia pouco fidalgo. Os navios assomam na ponta da claridade baloiçando nas vagas do amanhecer, trazendo a mão-de-obra escrava para a cidade. Mudam-se os dias, mas não muda a minha prosperidade nestas ruas impotentes e desamparadas. Noites a fio a dormir ao relento e agasalhando-me com pedaços de trapos. Enfrento as noites sem dignidade, abstraído nas margens frias e desabrigadas destas madrugadas sem alento, embrulhado em míseros farrapos. Sem timidez, descanso a minha alma prostrada ao lado deste cais sem um único vivente, onde me estiro sem esperança neste chão hostil. Pelas intempéries desta minha vida torturada, acabo por encarar mais uma longa madrugada indecente, estirada no limiar deste rio servil. – Ei Moça! Preciso de si para um cavaco. Estou por aqui abandonado como um velho saco. – Hoje não posso, moço! Estou indo em cata de um inglês. Pelo amor de Deus, ele é o meu melhor freguês. – É só uma prosa, moça bondosa. – Ele é inglês. Ele é inglês. É o meu melhor freguês. – Espere moça, preciso de alguém para conversar.


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– Moço! Tenho de trabalhar, preciso de arranjar algo de comer para as minhas crias. – Moça! Ajuda-me a deixar estas pedras frias. – Agora não moço! Ele é Inglês. O meu melhor freguês. – Escuta-me, moça! Lisboa foi erguida pelo suor dos meus irmãos negros. Criaturas amontoadas debaixo de pontes arruaceiras. Crioulos que vivem abarrotados em guetos, seres sem eira nem beira. – Moço! Esta é a terra de Camões, onde se vive desencantado com os encantos do Rossio, desgastado pelas opressões e abatido pela míngua e pelo frio. – Conheço muito bem esta realidade. Na maioria das vezes, de forma esquiva olho pelas vitrinas, mas antes de ser discriminado desemboco na marginal deste rio da cidade das sete colinas. – Pelo seu ténue olhar, vejo que estás ofegante, levando uma vidinha infernal sem ânimo para continuar a soluçar. Sinto muita pena, mas preciso de partir. Ele é inglês, o meu melhor freguês. O negócio anda muito daninho, não posso perder este cliente. – Parece ser uma moça direita. Porque não deixa esta vidinha de mártir? – Pelo simples facto de não querer voltar a ser camponesa. Este é o meu caminho e pretendo continuar a segui-lo em frente. – A sua forma de estar na vida é parecida com a de um passarinho que coloca a vida em risco para alimentar as suas pequenas crias. – Sou apenas um ser pobrezinho que vende o corpo para arranjar um petisco, um bocado para engordar as minhas crias

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esguias. Por favor, moço! Deixe de ser esta criatura solitária com as mãos atadas à kexada. Um pobre coitado maltratado pelas lembranças da sua terra amada. – Moça! Nunca deixarei de ser esta pobre criatura perdida nas ruelas desta cidade de Belém. Uma alma deprimida e conquistada pelas lágrimas de saudades das gentes da ponta de Belém. Sou mais um cravinho brotando nas margens deste vazio. Náufrago de olhos esguio, mosaico desta dura realidade Lisboeta, a cidade de sonho cantado nas prosas do meu poeta. – Moço! Esta cidadezinha é enganosa, não o deixa partir para a sua ladeira. Veja o meu caso, sou uma prisioneira desta seiva maligna que corre nesta veia traiçoeira. – Moça! Prefiro que a morte silencie este martírio cravado nesta alma arruaceira. Que o sol creme o meu cadáver nos profundos vales do Alentejo e que as cheias arrastem as minhas cinzas para as profundezas do Tejo. – Moço! Sou o negrume das trevas que vagueia pelas ruas desta cidade, abstraída nas noites negras esgaravatando esta mendicidade. – A moça é a luz do dia que rompe as alvoradas e que traz o brilhantismo da claridade, esta claridade que despedaça as quimeras ilusórias, quimeras rogadas nestas esquinas de promiscuidade. Luar que rasga os céus nas noites de amor, céu adornado nas noites de luar e luz que alumia estas esquinas repletas de dor. Morna agoirada pela saudade, serenata cantada pelas ondas do mar nas janelas da minha pequena localidade. Para mim, a menina é este rio de águas calmas que envolve esta cidadezinha, onde no ofusco da noite abençoada, os seus olhos fluorescentes brilham nestas esquinas.


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– Não deixo de ser uma catraia que vende a sua alma encostada a uma parede serena desta ruazinha, onde sou forçada a abrir as cancelas das minhas pernas. – Os seus fregueses não pensam nas suas carências? Na sua falta de carinho, no seu grito pelo afecto utópico? Nem neste vácuo cravado no seu peito deixado pela falta de amor? – O freguês Inglês toca desafinadamente nas minhas saliências, debaixo de lágrimas escondidas por um sorriso erótico, à procura de satisfazer o seu fulgor. De dia sou uma sirigaita percorrendo as ruas da cidade atrás de guita. Nas esquinas negras sou puta e na escuridão das noites sou prostituta. Eles podem chamar-me o que quiserem quando e onde estiverem. Que me crucifiquem pelos meus defeitos e que eu seja julgado pelos que sois perfeitos. – Pára de dizer disparates. É apenas uma pobre menina que esconde envergonhada pétalas de uma rosinha, presente que tanto sonha receber das mãos do seu kretxeu. – Pois é! Kretxeu que vou continuar a aguardar nas noites de luar no céu, sentado na ourela deste rio ameno, escutando as vagas trovando suaves melodias neste lugar sereno. Deixe-me ir, vi aquele vapor a fundear há bocado no largo. Aquele inglês deve estar impaciente. Sabe que destino de marinheiro é amargo? Mas em cada porto uma mulher diferente. – Não tenho bravura para aguentar estes solavancos que deixam um kriston43 de Deus todo mareado. Não suporto o cheiro podre de mariscos. A náusea deixa-me com o estômago revirado. 43

Cristão.

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– Vou falar com o Inglês para lhe arranjar um servicinho a bordo deste vapor. Certamente que ele não me vai negar este pedido, ele é o meu melhor freguês. – Pelo amor de Deus, rapariga, não agrave esta minha dor. Não tenciono voltar a atirar-me neste mar de fadiga. – Não, moço. Não é direito continuar definhando desse jeito. Sei que nas suas veias corre a seiva escrava. A força interior para encarar qualquer serviço. Levante-se daí e atire esse fado para o fundo deste rio. – Tenho feito algum esforço, moça, mas sinto-me sem forças diante deste aperto no meu peito. Após cada pôr-do-sol, esta saudade agrava e a cada cantar de galo sofro com este enguiço deste meu calvário. – Levante-se deste chão e sacuda essa poeira. Tome postura de gente e levante-se desta lamaceira. Pegue bem firme na sua bandeira e caminhe em frente sem pasmaceira. Nunca vi criatura mais pertinaz e nem ser mais tenaz. O melhor a fazer é encarar este bocado de estrada e ir esgaravatar o meu sustento na lancha que está bem ali fundeada. – Vai em cata do seu freguês e me deixa quieto. Aqui é o meu gueto, o lugar onde posso chorar esta minha tristeza e me afundar lentamente nesta minha mufineza44. – Mesmo assim, vou falar com o comandante. Se calhar ele deve estar a precisar de um ajudante, um rato de bordo de vapor. – Não se preocupe com este estupor, este farrapo apático que aguarda o regresso às ilhas do atlântico. 44

Covardia.


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Parte em direcção ao cais e deixa-me aqui sozinho, longe do meu lar, onde nunca deveria estar. Sou amparado e acalentado pelo frio, um homem triste e solitário, definhando neste lugar com pouco ar, esquecido nas margens deste poluído rio, encantado pelas sombras fantasmagóricas desta velha cidade e embalado pela surrealidade das imagens que reflectem nesta torrente de cor de prata.

Olho em volta desta cidadezinha que teimosamente guarda a identidade destas gentes hostis, parasitas desta localidade abstracta. No reflexo das águas vejo a imagem deste velho caminho-de-ferro, que ao longo dos séculos despreza as lágrimas que caem dos cantos dos olhos omissos das gentes que partem para destinos incertos com caras de enterro, carregando malas cheias de proibições e esperanças, deixando para trás os amores que ficam entregues às incertezas e lembranças. O pobre pescador entra no rio pela madrugada, criatura que tem a arte de tirar o sustento do fundo deste rio, com redes deste ofício madrugador. Nos dias bons, dias de boa redada45, um sorriso fascinante a faiscar com um certo brio, nos olhos deste pescador. Parte para o largo com a certeza de um regresso incerto, correndo o risco de nunca mais voltar a pisar o chão do seu lar, onde a sua mulher ajoelhada em frente de uma vela cintilante suplica a São Pedro para alumiar o seu caminho de perto e abençoar este enfadonho remar em cima das águas deste rio fascinante. 45

Pesca.

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Diante deste cenário, lembro-me das longas e extensas praias desérticas da minha terra sagrada, morada de criaturas míticas onde os pescadores afogam as suas lágrimas de dores. Pedras de lume, areias ardentes, peixeiras de baláios nas cabeças procurando o sustento das crianças, filhos de pescador paridos debaixo do sol arrasador. Terra destes que têm o árduo engenho de desafiar com assaz empenho as ondas destes mares revoltos em botes artesanais. Um destino atribulado de pobres pais que enfrentam a fúria do mar, para verem os seus filhos a crescerem sem minguar.

– Acorda moço! Acorda! O vapor vai atracar. – Sabe moça! A âncora da minha vida está largada neste lugar. – Olhe! O navio vai proceder a descarga e deixará o cais amanhã de noitinha. – Acredite! Sinto-me acorrentado nesta rochinha. – A lancha seguirá viagem lá pelas Áfricas, vai levar ajudas aos famintos. – Não percebe que estou encalhado nestas margens fantásticas? Pasmando na espectacularidade destes lugares atónitos? – O meu freguês está à sua espera, caso alguma luz alumie essa sua cabecinha. Abane essa poeirada e vá embarcar. – A vida do mar é muito áspera, mais violenta que esta cidadezinha de gente picuinha. Não aguentarei, vomitarei as minhas tripas no alto mar. – Não me tinha dito que a doença que o destrona é a saudade?


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– Disse! A saudade é o veneno que ataca o emigrante. Um veneno que não mata apenas, traz também um desgosto estafermo. – Se embarcar nesta oportunidade, um dia pode desembarcar na terra da sua amante, vomitar este veneno que o maltrata e acabar de uma vez com este sentimento enfermo. – Doce ou amargo, é aqui que vou ficar. Não posso fugir do meu martírio. Não cometerei a mesma asneira. – Asneira é ficar aqui a atrofiar à beira deste rio sombrio, mergulhado nesta pasmaceira. – Jamais trocarei este rio manso por um mar turbulento. Mar é coisa ruim e morada de sofrimento. Brisa do mar é uma lufada de amargura. Mar brabo46 é atroz e fundo do mar é sepultura. – Um ser frouxo é um ser doente. Esta doença mal curada mata a gente. A cobardia é um estorvo e um mau presságio. Toma postura de macho e agarra este apanágio. – Não nasci para viver no alto mar, apenas quero regressar para os braços da minha morena, desembarcar naquela terra serena, arranjar um pedesin txon e debelar esta maldison47. – Não sei porque estou neste lugar perdendo o meu tempo com este tosco? Não devo estar a regular. Só posso estar fusko48. – Vá cuidar da sua vida, estuporinha49. – O moço só pode estar muito doente? Precisa urgentemente de encontrar a sua moreninha. Caso contrário ficará mais demente. 46 47 48 49

Bravo. Maldição. Bêbado. Desgraçada.

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– Infame! Vá cuidar da sua vida. A sua cria deve estar esfomeada à espera de comida. – Sabe uma coisa! Vai para o diabo, bandido, leva esta teimosia amaldiçoada e este teu génio estúpido.

Será que ninguém entende esta vontade apática? Aqui neste rio vou matando dias, devagarinho, longe dos olhares deste povinho infernal, abstraído das atitudes de gente racista. Lavo o rosto nesta água fleumática, com uma caninha apanho um peixinho, coloco-o nas brasas deste fogareiro marginal e mato esta fome egoísta. Aqui vejo gaivotas construindo ninhos em mastros de planta, açores agitando-se no prelúdio das noites negras e passarinhas distraídas em voos sublimes e exibicionistas. Este contacto com a natureza me encanta, o barulho melódico das águas espancando nas pedras e o cheiro silvestre das plantas me conquista. Pela madrugada, os barquinhos flutuam nestas vagas fascinantes, ligando estes dois cais distantes, trazendo as gentes para serem exploradas. À noitinha um regresso de criaturas cansadas, criaturas que levantam antes do amanhecer e regressam só após o escurecer. Um embarcar e desembarcar colossal que se parece com as viagens no mar de canal. Pessoas que convergem nesta cidade proibida à procura de uma solução perdida nestas ruelas atrozes deste lugar avarento. Miseráveis que deixam a terra de pedra e vento, para virem atrofiarem nesta terra desdita, levando esta vidinha maldita. A cidade das sete colinas só é a cidade cantada nas prosas do meu poeta, quando sentada nestas pedrinhas vê-se


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nas águas a sombra da cidade Lisboeta. A sombra negra da cidade ilusória que se reflecte na cor de prata das águas do rio é menos xenófoba e menos discriminatória do que a claridade deste lugar sombrio. No rio, a cidade tem a mesma cor, esta cor negra de gente que não é gente. A cor que nutre um certo rancor. Uma cidade sem distinção racial e sem dor, sem esta discriminação delinquente, apenas a cidade literária cantada nas prosas do meu trovador. De noite, as luzes fluorescentes desta cidade estendem-se ao longo do rio e trazem um novo cromatismo para debelar este negrume, este vestido negro que traz o grito de saudade e aumenta o meu martírio. As luzes voltam a encandear este miserabilismo e o racismo vivido neste pequeno tapume. Apenas nas madrugadas silenciosas é que a terra prometida, a cidade dos sonhos dos filhos do atlântico se torna numa terra bendita. Quando amanhece, a cidade Lisboeta volta a conquistar o seu brilho apático, o brilho que nunca foi cantado nos poemas do meu poeta. Estou farto deste lugar peculiar, mas um dia partirei para a minha terra singular. Aguardo ansiosamente por esta hora indefinida, enquanto a minha alma vai ficando cada vez mais oprimida. Sinto o pulsar de cada segundo neste mundo imundo. Do cair da noite até ao romper de novo dia parece uma eternidade perdida nas sombras desta enfermidade. Esperançoso por este dia, ancorado nesta vida vadia, o regresso parece cada vez mais incerto e marginal. Meu povo! Estou a ser explorado pela miséria desta pequena cidade infernal, molestado por este fardo nojento e indecente e subjugado às margens de um capitalismo delinquente. Nos raios do sol que penetram nesta floresta, brilha

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a imagem de ti, a mulher que me ensinou a amar. Vencido por esta moléstia, assisto ao desembarcar deste povo hipócrita que me ensinou a odiar. Nas águas poluídas do rio Tejo vejo o retrato da minha pequena kovoada50, acenando-me para seguir o cortejo e regressar à minha eterna morada. Um dia destes soltar-me-ei desta cilada, libertar-me-ei desta grande teia, deixarei para sempre esta cidade desgraçada para ir abraçar as gentes da minha aldeia. Mas enquanto aguardo por este dia, assisto ao lençol negro cobrindo a cidade de Belém e vejo que este lugar vai ficando cada vez mais deserto, o rio torna-se tranquilo e silencioso e o meu destino é cada vez mais ambíguo. Continuo aqui, de olhos fixos no além, procurando desvendar os mistérios deste futuro incerto. Um futuro cada vez mais desastroso, amparado nas margens deste rio supérfluo. A serenidade contrasta com o olhar dos emigrantes desanimados. Este vazio atira os crioulos numa eterna consternação. A incerteza deixa as mães a cantarolar e os homens atormentados. Uma diáspora inteira atolada na fadiga desta emigração. Guiado pelo sonho de um dia conseguir um mísero pedesin txon, enterrei na maldison e se não sair dessa situason51 não tarda esticarei dentro de um kaxon52. Não me custava nada ter aceite a ajuda da moça. Ela não parece ter cara de Judas, apenas queria ajudar-me a levantar-me deste matagal para me livrar de uma vez por todas deste mal. Mas ainda há tempo, o vapor só partirá amanhã de noitinha. Será que devo seguir os 50 51 52

Aldeia, povoação. Situação. Caixão.


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conselhos desta criatura magrinha? Aproveitar para zarpar? Abraçar com ternura este mar? Ir conhecer novas cidades, fazer novas amizades e na partida deixar saudades? Mas o baloiçar do mar causa-me enjoos, um tédio que me causa mal-estar, uma contrariedade que não me deixa embarcar em novos voos. Mas e se o barco afundar como uma pedrinha lançada no fundo do rio? O que fazer para me safar? Certamente que morrerei sem poder dar um único pio. Deixe de mufineza, a minha mãe costuma dizer que não há papa quente que não se esfria. Segue em frente, homem de Deus, e deixe de ser medente53. Com o passar do tempo acabarei por me acostumar. Preciso de fincar os pés no chão e com mestria domar as fúrias das ondas do mar.

– Moça! Moça! É á nossa última cavaqueira. – Deixe-me quieta no meu lugar. – Sei que está zangada comigo. É só para lhe dizer que vai ficar livre de mim. – Não me diga que decidiu hastear a sua bandeira? – Isto mesmo, amanhã de noitinha vou zarpar. – Que Deus alumie o seu castigo e que lhe proteja neste mar ruim. – Sentirei muitas saudades dos encantos desta metrópole estática, deste lago de lágrimas de emigrantes, das amizades semeadas neste chão desta raça xenófoba e apática que resistiram às ofensas aberrantes. Serei mais um filho seu, mar, mais uma cria dos ilhéus que jamais deixará de remar. No 53

Covarde.

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seu regaço não me sentirei um solitário. No seu ventre serei mais um marinheiro ancorado neste rosário. Mar, seja benevolente comigo, o meu coração está esmigalhado em mil feridas, cada pulsar do meu peito, sinto-me mais distante da minha querida. – Sentir-se-á abrandado pelas lufadas das ondas tempestuosas e aprenderá a remar nas ramagens dessas rosas espinhosas. Verá as ondas aproximando-se, abraçando-se e beijando-se. Depois afastando-se, despedindo-se e acenando com lencinhos que formarão uma magnifica espuma branca. – Moça! A vida no mar é um verdadeiro desfile de tabanka54, uma amálgama de cores originária do eclipse entre o sol e o mar, dois amantes que se beijam e se afastam com o dia a enlutar. Mas admito que seria muito mais feliz na minha terra, vigiando de perto a ladeira despida, testemunhando a fraqueza e a pobreza em pé de guerra e eu ali mudo, apático, com a alma deprimida. Na minha terra seria uma criatura feliz vivendo na míngua até morrer. Distante da minha amada sinto-me infeliz, sepultado nesta angústia e enterrado neste desgosto de continuar a viver. – Não adianta lamentar-se, tem de seguir o seu rumo, vá em frente, não adianta agora chorar. Já agora, aceita dormir esta noite na minha alcova? Brindaremos com um caneco de vinho quente e amanhã de noitinha deixará esta maldita cova. – Porque se preocupa tanto com este miserável? – Não é o primeiro e nem vai ser o último. Tenho dado agasalho a muitos crioulos emigrantes que desembarcam nesta cidade proibida. 54

Manifestação cultural da ilha de Santiago.


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– Qual a razão para ser tão afável? – No meu íntimo mora uma grande estima para com os chamados de cor, que se refugiam em becos sufocantes. – Afundada nesta pobreza, como pode ser tão querida? – Sabia que algo que o pobre oferece é muito mais abençoado? O pobre tem uma alma gigante. Pobre tem um coração que se compadece com a carestia de um infame coitado. Jamais um pobre consegue ser arrogante. – Mas eu sou um preto, para os pulas não passo de um escravo. – Os pobres têm a mesma cor, não deixo de ser um cravo que tenta fincar as suas raízes neste pó cruel, onde todos os pobres experimentam o gosto amargo do fel. – Como podemos ser iguais, se a sua pele é branca e macia? – Para o seu governo, para este povo, não passo de uma simples catraia. Sabe o que nos diferencia dos outros? As nossas mentes são mais esclarecidas. Os outros são da mesma laia porque têm mentes encardidas. – Dá para perceber que carrega uma certa dose de rancor ramificado neste pó pálido e sem cor. – Confesso que sim. Já fui bastante agredida. No meu coração tenho uma grande ferida que não para de sangrar. Este ódio ceva a minha sede de vingar. Sinto uma vontade de engolir esta cidade de remoque, avarenta, hipócrita e depois vomitar esta maldade no meio da cara deste povinho parasita. – Moça! Não vale a pena guardar tanto ódio. Leve a sua vida num toque harmonioso e poético. – A minha vontade é vomitar este ódio na cara deste povo patético.

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– Melhor é vomitar este remorso no fundo deste rio. Este povo não é digno de nenhum tipo de sentimento de um ser tão sóbrio. – Sabe uma coisa? Vou continuar nesta estrada correndo atrás do meu sustento com a minha cara levantada. Vamos sair deste frio, moço! A minha casinha é pobre mas é mais aconchegante. Ali podemos conversar mais sossegados. Este lugar está sisudo, parece que nós somos os únicos vigias. – É muito bom sentir que esta cidade é nossa por inteiro. Por isso, acho a noite bastante fascinante. Ela traz um sossego apaziguado. O único senão é que elas são frias, mas por outro lado o seu luar é companheiro. – Mas a lua muitas das vezes esconde-se atrás das nuvens negras, deixando-nos mergulhados nesta escuridão e a noite fica mais parecida com uma mortalha. – Mas quando a lua se esconde há sempre estrelas que vêm debelar um pouco esta solidão nesta cidade onde se vive de migalha. – Já chegamos, moço, esta é a minha cabana. Não passa de uma casinha cigana feito com chapas de tambor, casa de pobreza onde me agasalho da frieza. Vamos entrar e acender a pequena lareira. A lenha que apanhei nesta ladeira dá para ser queimada ao longo desta madrugada. Deixe-me pegar um vinho para amornar estes corpinhos que estão a assobiar com estas aragens frias. – Onde estão as suas crias? – Os meus filhos já estão no ninho muito bem abafados e bem quentinhos. – Moça! Preciso de dormir para descansar. Lembre-se que amanhã tenho de partir para encarar as bravezas deste mar.


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– Credo, moço! Antes temos de nos despedir. Só parte amanhã de noitinha. Temos bastante tempo, o dia será muito comprido. Não sente pena desta coitadinha? Está precisando de uma noite de Cupido. Presenteia-me com uma destas noites inesquecíveis. Hoje não quero ser apenas penetrada, preciso sentir-me uma mulher satisfeita. Pelo amor de Deus, moço. Dá-me estes momentos memoráveis. – Até tenho vontade de cair nesta promiscuidade. Mas a minha amada não merece esta desfeita. Não me sinto no direito de trair a sua lealdade. – Não se esqueça que a partir de amanhã vai ser o mais novo marinheiro. Fique sabendo que marinheiro tem uma mulher em cada porto. Quem trabalha no mar não pode ser leal com a sua companheira. Mulher de marinheiro não é flor que se cheira. Enquanto enfrenta o mar, ela deita-se com outro cavalheiro. Quando o marinheiro desembarca na sua terra, é fitado com um olho torto, todos ficam rindo da sua pasmaceira, enquanto permanece ali entupido por esta cegueira. – A minha Pinha é uma criatura séria, ela é uma mulher direita, não é uma dessas desavergonhadas. – No mundo não há mulher séria, como no mar não tem sereia. Toda a mulher tem uma parte maldita, até as mais acanhadas. Moço! Bebe mais vinho porque a noite é longa. Não é todos os dias que é dia de candonga. – Moça! Os meus olhos estão a ficar pesados e escurecidos. O meu corpo e a minha cabeça estão frouxos e perdidos. – Vá lá, Moço! Bebe mais vinho porque a noite é comprida. Não é todos os dias que esta coisa é oferecida. Fui eu que lhe lancei neste mar e serei a primeira a ensiná-lo a remar. Terá uma mulher em cada porto que atracar, mas aqui em Lisboa

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serei a sua mulher todas as vezes que neste cais desembarcar. Novos mares, novas mulheres, este será o seu destino. – Esquece que vou continuar a ser um clandestino? Não passarei de um rato de bordo escondido, ora no bombordo, ora no estibordo. – Moço! Já estou a ficar sem paciência. Esta relutância está a pegar-me na passarinha. Nem parece ser crioulo, com esta covardia de um meio de perna de uma mulherzinha. – Não tenho medo de rapariga. Apenas quero respeitar a minha amada e só quero que sejas a minha amiga. – Deixe de blá, blá, porque já me sinto toda molhada. Desejo ser amada nesta madrugada como se fosse uma virgem vadia, até ao cantar do galo na alvorada. – Tenho sangue de Badiu a correr nas minhas veias. Nunca temi kaderadas55 de Badia quanto mais de uma pula cheia de mania. – Então mostra a tua valentia, atira-me neste chão e mostra-me a tua cara feia. Quero sentir esta enxada cavando esta terra húmida e ver as gotas de suor brotando na cara deste lavrador. – Vou cavar até ao romper do novo dia. Trabalhar esta terra como se fosse da minha aldeia. Deixar-lhe-ei enlouquecida e apaixonada pela enxada deste pobre estupor. – Esta terra está farta de mãos de burguês, suplica por mãos de quem sabe trabalhar uma terra. Terra bem trabalhada está sempre viçosa, terra viçosa engorda olhos de camponês. – Camponês é que sabe como se enterra a sua enxada numa terra deliciosa. 55

Rebolar.


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– Cuidado, moço! Um pouquinho mais devagar. Não precisa dar rebenkadas para magoar. Para trabalhar esta terra é preciso delicadeza, tem de meter a enxada com leveza. Pensa que está a rachar lenha com um machado? – Moça! Cala a boca e sente o bater das chuvas no telhado. Sente o perfume da terra molhada. Ela deve estar a pedir cabo de uma boa enxada. – Com esta enxada vão florescer muitos campos por este mundo fora. Muitos cabos de enxadas já lavraram este pedacinho de terra, mas tenho de aceitar que nunca tive um tão rústico e tão brutal. – Moça! Não me leva mal, estava no meu lugar sossegado. Agora cala a boca e aguenta a fúria deste desgraçado. – Não te esqueças que amanhã tenho de trabalhar. Tenho de ir para a estrada correr atrás de sustento. Com estas rebenkadas, vou precisar de uma semana para descansar. Percebes o tamanho do meu tormento? – Nunca ouviu dizer que Badiu não brinca na hora de malkriadeza56? – Já tive outros crioulos, mas não passei por esta tortura. – Minha querida, crioulos não dão moleza quando o assunto é meio de pernas de uma criatura. Nós trabalhamos com seriedade. Lavramos uma terra como deve ser, sem dó sem piedade. – Moço! A terra nunca recusou enxada, pode lavrar à vontade, até ao amanhecer se quiser. – Esta terrinha tem de ficar bem lavrada. – Moço! Quando tenciona enterrar o sémen? 56

Fazer sexo.

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– Calma, moça! Primeiro tenho de trabalhar a terra bem trabalhada. Semente botada em pó seco é desperdício. As sementes devem ser botadas em terra húmida. – A minha terra está suplicando pelo gérmen, ela está toda encharcada à espera do prelúdio do fim deste suplício. Uma súplica que jamais será esquecida. – Moça! O cabo da enxada está a ficar mais vigoroso. As pernas deste pobre lavrador começam a tremer. Parece o prelúdio do enterrar dos grãos. – Coragem, moço! Vagi tanto para chegar neste momento deleitoso. Esperei tanto para sentir este seu gemer e a quentura branda das suas mãos. Moço! Deixaste-me kabada57, mas sinto-me uma mulher realizada. Pena que vai ter de partir, vai ter de embarcar neste mar como um mártir. – Agora vamos dormir porque preciso de recuperar as forças. – Sinto muito! É melhor vestir as suas calças e colocar os pés nas estradas porque as minhas crias já devem estar acordadas. Nas esquinas negras posso até ser uma catraia, mas dentro da minha casa sou uma mãe séria. Tenho de criar as minhas crias dentro de respeito. Não posso privá-las deste direito. Elas não têm culpa de terem nascido num berço de tambor, por isso não posso criá-las num ambiente de despudor. – Vou-me embora, mas quero voltar a vê-la antes de colocar os pés naquele vapor. – Pode deixar, vou em cata de si antes desta hora. Quero ver o meu marinheiro a puxar o ferro-de-fundeador58. Estarei ali de cara desgostosa na hora na sua partida. Certo que o 57 58

Acabada. Âncora.


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meu coração vai ficar um bagaço. Ficarei em terra com a alma oprimida na esperança de um dia voltar a sentar-me no seu regaço. Na cidade de Lisboa já tem uma mulher. Não precisa pagar nenhum tostão para lavar a água do mar. Estarei aqui para te satisfazer. – Vou para o mar arrancar sustento. Deriba59 de águas do mar não irei pasmar, vou vencer qualquer tormento. – Não aceites subserviência do mar. Não temas as suas bravezas. Encara de peito aberto cada mau tempo. Mostra ao mar a tua cara feia. – Vomitarei a minhas tripas, mas hei-de-me acostumar. Não vou mufinar60 perante as minhas fraquezas. Vencerei qualquer contratempo para estar consigo em mais uma noite de lua cheia. Não posso continuar com medo de viver. A partir de agora vou lutar com pujança pela minha sobrevivência. Mesmo se naufragar no alto mar não vou morrer. Recuperar-me-ei de qualquer doença e superar-me-ei de qualquer turbulência. – Moço! Às vezes o mar enerva-se como um inimigo e forma ondas gigantes de dar tremor no pé do umbigo, ondas que cobrem o vapor, mas o marinheiro nunca pode ter temor. Quem aceita viver em cima de água do mar tem de estar preparado para quando ele revoltear. Na cólera do mar, o marinheiro tem de ser forte, nunca deve perder o norte e aceitar a morte. Depois do temporal, o mar volta ao seu estado normal e o barco deslizará tranquilamente até ao porto seguro. Em vão se torna o desespero e a tripulação desembarca em novas cidades onde experimenta novas sagacidades. 59 60

Em cima de. Temer, ter medo de.

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Se não fosse a emigração, não teria de navegar em mar desconhecido, não estaria prestes a embarcar nesta maldição e nem teria de viver sempre escondido. Se não fosse a emigração e esta atroz ilusão de me aventurar no estrangeiro, não estaria mergulhado nesta contrição e nunca aceitaria ser marinheiro. Se não fosse a emigração, estaria vivendo na pobreza da minha ilha, mas nunca teria experimentado o gosto da discriminação. Ai se não fosse a emigração, nunca teria caído nesta armadilha que abre as mil feridas no meu coração. Sozinho, no cais meio deserto, na boquinha tarde de Inverno, olho para o horizonte e vejo um vazio coberto pelo céu. Olho e sinto-me melancólico, com este lugar coberto com este meio cinzento do inferno. Pequenas gaivotas brancas e negras voando na frente do vapor que já é meu. Olho o horizonte e vejo o novo porto, vejo pequenos navios deixando a baía cada vez mais distante, mais pequenos e sombrios. Com a partida dos pequenos navios as gaivotas agitam-se no porto, o bater das suas asas fazem uma grande vozearia nas orlas dos pequenos navios. O meu vapor está aqui, estático, fulgente, e bastante clássico. Atrás dele pequenos botes rodeados de gaivotas atrás de presas mortas. A vida marítima parece estar adormecida, a grua de carga do meu navio já não se encontra erguida, apenas a escada está pendurada, talvez à espera da minha chegada. Os botes que ficam estão com as velas arriadas. No cais, as contendas permanecem paradas e os guindastes sem um movimento. Esta solenidade compadece-se com o meu sofrimento. Este silêncio funesto lamenta a minha largada a bordo desta grande jangada. Nenhuma lufada de vento para espantar a pasmaceira, apenas silêncio e tormento na orla costeira.


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A moça está encostada no meu peito, mas o meu pensamento concentra-se em ti que estás mais distante. Sinto que estás deitada no meu leito, uma sensação simplesmente fascinante. Ao mesmo tempo sinto-te tão distante, à distância que separa o mar e o céu, uma distância que me deixa sem paciência. Uma impaciência que sobe em mim como uma náusea, uma vontade de enjoar a dor da separação de ti, meu kretxeu, que tanto desejo encontrar numa manhã rósea. Mergulhado nesta consumação sinto o ronco da hélice do meu navio em remoinhos que agitam a areia do fundo do mar e deixam esta água entorpecida. Apressadamente deposito um beijo de consolação nos lábios ancorados neste vazio. – Não fique triste, minha branquinha. Prometo que vou voltar a desembarcar no cais, desta cidade mórbida.

Do outro lado, Pinha testemunha o andar vagaroso deste animal idoso que já não tem forças para carregar as cartas. O velho Nhu Simão continua a sua missão de trazer alegrias e muitas tristezas. Cada carta que ele tira da pasta é motivo para festa ou para lamentos. Pinha vem de encontro aos passos lentos deste animal vagaroso e preguiçoso. – Por amor de Deus Nhu Simão, estenda-me a sua mão e entrega-me a salvação, tira-me desta aflição. – Minha menina querida, dê outro rumo na tua vida, toca-a para a frente e esquece esse amor distante. – Se ele não escrever, se ele nunca mais voltar prefiro de longe morrer, botar terra nesta minha flor do que ter de casar sem um pingo de amor.

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– Não digas asneiras, nestas ladeiras podes encontrar bons pares, homens honestos e trabalhadores. – Não adianta insistir, não vou desistir, vou continuar a esperar até o dia em que ele voltar. – Escutas este brado que vem do outro lado? – Escuto, é uma guisa de dor. – Pois bem, carta de um amor. – O que é que aconteceu? – A coitada foi trocada por um outro kretxeu. – Coitada desta moça, ela deve estar de rasto com este grande desgosto e a sentir que foi motivo de troça. – Se a puberdade escutasse os conselhos dos mais velhos e aceitasse a realidade sem fantasias, sem ilusões sem cegueiras, haveria mais alegrias, menos desilusões e menos choradeiras. Cansei-me de avisá-la, enfadei-me de pedi-la para esquecer este mufino61, mas assim quis o destino. Cheguei mesmo a providenciar-lhe um bom partido, um homem destemido, um bom marido para ela, mas continuou cegada pela papelada prometida na cantada, numa boca tarde, no meio da folhada por um covarde. – Nhu Simão, muito obrigada por esta piada. – Não é piada, querida, é uma história de vida. Não fiques encantada e parada à espera do príncipe encantado porque a vida não é um conto de fada em que tudo é fantasiado. Liberte-se desta ilusão, finque os pés no chão e toca a vida para a frente. Não fique aqui prostrada e doente, mergulhada nesta incerteza, atolada nesta tristeza. 61

Covarde.


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O primo aproxima-se com o seu jeito acanhado, com este seu rostinho envergonhado enterrado neste vasto tapete de desgraça que cobre o campo com esta sua fumaça. – Não adianta vires com este teu jeito sisudo, como se fosses um ser mudo. Ficas por aqui com este feitio de coitado, mas és um grande desgraçado. Para teu governo, prefiro lume do inferno em mim do que casar com um bicho ruim, com um estorvo, mais feio do que um corvo. Nem vestido de ouro, coberto de dinheiro, carregado de diamante e cheio de brilhante casaria contigo, este meu inimigo que me foi denunciar, quando me viu a prosar com o amor da minha vida, naquela tarde de despedida. Perante tamanha desconsideração, o mocinho sem mais remissão saiu de mansinho e pôs os pés no caminho.

Aqui neste cais, a moça limita-se a esfregar as duas esferas negras. Dá um toque suave no olho, como se quisesse esconder as lágrimas e fica ali estática vendo-me partir. Subo a escada com a sensação de estar a caminhar em direcção às trevas. Olho a cidade pela última vez e vejo o desespero de muitas almas que nunca quiseram deixar esta cidade de mártir. Lisboa está à distância do anoitecer. Sinto o odor forte deste hálito do escurecer, como o respirar do mar que me causa mareação. Um tédio que quase me leva a abandonar a embarcação. Ainda olho de perto a cidade, uma cidade que deixa saudade, uma saudade que me prende a alma, e dentro de mim o medo que me tira a calma. Este remorso de partir cresce lentamente, a noite entra vagarosamente e a cidade

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perde timidamente a sua clareza. O mar permanece embutido na tristeza. O rio adormece deleitosamente no leito da sua amada e a lua esconde a sua cara envergonhada. Largam os cabos da ponta do cais. Agora, distante, deslizam covardemente neste mar melancólico, mas não conseguem arrancar nem por um instante os meus olhos deste lugar que parece ter algo mágico. A cidade puxa os meus olhos para mais um contacto, a subserviência é aceite genuinamente, enquanto os meus olhos procuram guardar o último retrato, a imagem que ficará gravada eternamente na minha mente. O buzinar perturbador de despedida acorda o rio do sono profundo para vir assistir ao embarcar de mais uma criatura perdida. O rio acena-me com um grande lençol de prata, a cidade grande vai ficando mais pequena e mais ao fundo e o mar abrindo as portas da sua alma abstracta. Incompreensivelmente os meus olhos desvanecem-se em lágrimas. Choro, sem saber porquê, a cidade que tanto odiava. Mais umas gotas de um marinheiro, este filho do atlântico, respingadas no mar. Será que é o segredo triste das trovas marítimas ou talvez a patética saudade escrava? Será que é o cântico poético e melancólico para molestar a dureza da vida a navegar? Talvez seja apenas o medo de desembarcar num destino mais cruel, onde a vida pode ser mais atroz? Certo é que estou sentido saudades deste lugar, onde senti o gostinho amargo de fel pingado na minha boca por um preconceito feroz. Perco Lisboa de vista e sou logo atacado pelo vazio terrorista. Como consolação restam apenas memórias deste cais afastado, memórias que mortificam o meu coração despe-


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daçado. Deixo de ser prisioneiro da cidade e ganho a minha liberdade para viver em cima de um mar turbulento, navegando em vagas de tormento. Procuro o ombro amigo do rio, mas no mar apenas calafrio das ondas turbulentas. Cada vez que o navio se perde nas ondas violentas, a minha cara martirizada recebe as bofetadas de água salgada. Vomito toda a náusea da vida de dor, berro histericamente pelo fim deste suplício. Choro água, catarro e babo a bordo do vapor, mas apenas me resta acatar as artes deste meu novo ofício. Arrependo-me de ter colocado os pés dentro desta embarcação, mas é tarde demais para lamentar a triste sina da emigração. Apenas me resta continuar a nadar para me safar. A angústia do mar endiabrado é de longe mais cruel do que o racismo daquele povo mesquinho e desequilibrado. Prefiro mil vezes ser desprezado e cuspido pelo cuspo ascoroso do egoísmo do que ter de enfrentar o mar enfurecido. As memórias daquelas margens solitárias, todos aqueles pássaros a esvoaçarem em cânticos e o deslizar silencioso daquelas águas transportam para dentro de mim, neste momento, uma certa dose de quietude. Uma espécie de tranquilidade que corre nas minhas veias como seiva que circula em ramos de árvores secos. Incompreensivelmente deixo a saudade de Lisboa afundar-me num mar de láguas62. Francamente não consigo perceber esta estranha atitude. Como é possível recordar melancolicamente um lugar que antes se limitava a odiar-me, um ódio que parecia me acossar? Será que vai ser assim eternamente? A saudade sempre há-de vir na hora de deixar o lugar, por onde os nossos pés tiveram o 62

Lágrimas.

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brio de pisar? Será que todas as largadas criam esta saudade detestável? Perante as minhas interrogações, o vapor continua afastando-se obstinadamente deste cais acostável, dilatando esta distância criada entre o mar e o meu lar. Lisboa vai ficando mais longe e mais pequenina e eu, como um órfão, não consigo parar de chorar. Neste fosso criado entre o vapor e a cidade vejo vagas de tristeza e de saudade, uma assunção de um aperto marginal, um entristecimento simplesmente banal. Marinheiro de primeira viagem vomita toda a miragem, menos as lembranças da terra que fica para trás. As memórias brilham como a luz do nascer do sol, na madrugada que fica atrás da bola de fogo, cor de sangue que docilmente sobre o mar se propague. O cromatismo do sol respinga sobre o mar como gotas de sangue que caem de uma ferida aberta, gotas de uma ferida que todas as alvoradas vêm escancarar mais um dia de amargura pela certa. Deriba d’água de mar não há dias de descanso, o baloiçar enjoativo nunca mais tem fim, a teimosa inquietação persiste mesmo quando o tempo está manso, parece que tem escondido no seu ventre alguma coisa de ruim. Vida a bordo de um navio é doentia, cântico marítimo é melancólico, lamento de marinheiro é poesia. Lágrima de marujo é saudade, o seu olhar deprimido denuncia o calvário diabólico, os seus beiços puxados são provas da sua dura realidade. Mas quem me mandou, quem me mandou escutar a voz dos meus pensamentos e a voz implicante da catraia que persistentemente me empurrava para dentro desta embarcação? Mas quem me mandou, quem me mandou deixar as margens, consolo dos meus tormentos, caminhar até ao cais


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com a portuguesa na minha companhia e livremente aceitar esta humilhação? Mas quem me mandou, quem me mandou embarcar neste mar de fel para provar o seu gosto repugnante? Mas quem me mandou, quem me mandou deixar Lisboa, terra de mel para vir viver neste vazio intrigante? Se não tivesse partido não estaria tão coagido. Se não tivesse entrado neste vapor não estaria ancorado neste mar de dor. Se não tivesse abandonado o rio agora estaria sentado num lugar à beira-rio a deliciar-me com o voo baixinho dos alfaiates e assistindo à chegada mansinha dos pequenos paquetes. Estaria na companhia dos flamingos sobrevoando o rio com aqueles voos longos, acenando-me com as suas asas róseas e pretas. No ofusco de cada tardinha observaria as sombras negras das gaivotas assombrando aquele rio que mora no meu pensamento, coberto por aquele céu vestido com aquele longo vestido cinzento. Oh minha gente, aquele voo de cor de prata dos guinchos embebidos pelos raios do sol, mergulhando naquela longa travessa prateada. O encanto daquele deslizar dos pequenos faluchos naquela tigela de caldo de azeite estagnada. Devolvem-me a cor rósea dos flamingos ao sol com as suas pernaltas enterradas na água azul, tacteando a água, procurando sustento. Restituem-me a cor pura das garças no pôr-do-sol, voando em direcção aos ninhos no sul, ornamentados em troncos desfolhados e enraizados em pequenas ilhas fustigadas pelo vento. Tragam-me a imagem do pato-real, com bico amarelado e cabeça verde-esmeralda chafurdando na água azulada. Não esqueçam o rouxinol e o maçarico-real sumidos no verde-esmeralda, com aquele olhar desconfiado e cabeça esticada. Quero ser agraciado com o pôr-do-sol majestoso, ser acariciado pelo dourado

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sumptuoso enquanto vejo a bola de fogo fundindo no mar e libertando o cromatismo pelo ar. Quero ver a cor de fogueira alumiando a minha cegueira e a extensa linha dourada que faz a ligação entre o sol e a minha alma martirizada. Quero os pequenos barcos navegando nas águas calmas, trazendo e levando pessoas anónimas acompanhadas pelas gaivotas. Oh meus compatriotas devolvam-me a minha Lisboa com a vidinha boa. Parece que ninguém escuta o meu grito, todos desprezam a minha vontade enquanto me vou enrolando nas teias deste destino maldito e a cada lés percorrido uma maior adversidade. É tarde de mais para querer Lisboa, a cidade fascista e de gente racista. Lisboa passará a ser o pássaro que voa das palmas das mãos e que se perde de vista. O vapor continua o seu trajecto sem se compadecer com a minha angústia e o mar continua a ser o meu tecto. Um tecto turbulento, levando uma vida de carestia em cima deste mar de desalento. Apesar do mar ser uma superfície plana sinto que o vapor vai descendo pelo atlântico e pelos meus parcos conhecimentos, sei que caminhamos em direcção à costa ocidental. O vapor desliza placidamente para a costa Africana e a minha alma evoca o cântico melancólico e nostálgico para amansar os maus tempos e debelar os contratempos da vida marginal. No ar, um odor de pobreza, o cheiro infernal da guerra e a presença das doenças negras. Escuto o grito de fome e de fraqueza de pessoas que continuam caindo por terra encobertas por um mar de poeiras. Escuto os berros histéricos de mais uma menina, gritos de dor de uma criatura pequenina golpeada por esta cultura monstruosa e infernal, este ritual aberrante, a chamada mutilação genital. Imagino uma


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pequena criança com os pés e as mãos amarradas, rodeada por um grupo de mulheres determinadas, assegurando os movimentos repulsivos da pobre criança que luta contra a maldita doença. Indefesa, castigada, condenada pela cultura do seu povo e de boca tapada espera o duro golpe de uma faca ardente. Com olhos arregalados e com as fracas pernas abertas, aguarda a faca que se parece mais com uma brasa quente para queimar e mutilar o clítoris de mais uma inocente. Crianças negras a serem assassinadas e os seus órgãos vitais a serem retirados, para salvarem vidas de crianças brancas que não têm ciência de como os órgãos são conseguidos. Raparigas negras a serem escravizadas pelas mãos dos seus próprios irmãos negros. Crianças acorrentadas, maltratadas, violadas e comercializadas aos brancos criminosos, exploradores e pedófilos. Que triste sina têm os bebés virgens que são usados para curarem a sida de homens selvagens. É gritante o gemer de mais uma criança doentia a perder de forma repugnante a sua vida, vítima desta maldita moléstia. Pedaços de homens recrutados e treinados para matar, caminhando em cima de campos de minas, correndo o risco de colocar os pés no chão e serem esbugalhados. A arma sangrenta está sempre presente nas mãos dos pequenos soldados que estão dispostos a abrir fogo sobre o inimigo a derrubar, inimigos que muitas das vezes são crianças pequeninas, vítimas de conflitos armados sangrentos que poderiam ser evitados. Crianças que assistem aos pais a serem fuzilados, os irmãos a serem obrigados a refugiar-se e as suas mães e irmãs a serem barbaramente violadas. A fome de vingança pelos parentes vitimados semeia a coragem para continuarem firmes à frente das guerras civis impensadas.

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As armas nunca mais se silenciam, as lágrimas de dor nunca mais se aliviam, o cessar-fogo jamais deixará de ser uma utopia, enquanto o conflito armado mata e arrepia. O terror é o ar que se respira nos guetos, as armas são brinquedos nas mãos de gaiatos, rajadas de tiros são gargalhadas de crianças vítimas inocentes de malditas doenças. Fundas são armas de guerra nas mãos de pequenos soldados, pedras são projécteis mortíferos disparados contra os pardalinhos, pessoas que caem por terra. Bancos de escolas são substituídos por campos de guerra, livros e cadernos por armas sangrentas, um pedaço de lápis por munições violentas. Todos os dias, centenas de mães são barbaramente violadas por grupos de homens armados que para trás deixam aldeias incendiadas, atirando mais inocentes para os hostis campos de refugiados. Uns pauzinhos fincados em campos de desgraças cobertos com pedaços de farrapos, cabanas que amparam gentes de todas as raças, gentes que parecem trapos. Epidemias rondando os deslocados, dispostas a silenciar o bafo de mais umas criaturas refugiadas de conflitos armados. Atirados aos campos de amarguras, as pessoas convivem ao lado de cadáveres que esperam descansadamente pela chegada dos abutres. Sobrevivem como podem, bebendo água poluída e contaminada, comendo papas de milho e estiradas em chão despido. Caras de seres que sofrem com uma guerra jamais desejada, vivendo um destino maltrapilho, um destino bastante empobrecido. Uma vida suportada por políticas corruptas, culturas simplesmente gritantes e crenças religiosas brutais. A mãe negra continua a ser vítima de violações obsoletas, castigada e maltratada por actos chocantes pouco éticos e imorais.


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Deixo as trevas desta terra malograda e assisto ao remate de mais uma madrugada, o prelúdio de mais um dia lamentando a bordo deste vapor vogando. Um novo dia é uma espécie de um caizinho63 no qual o meu vapor entra devagarinho, lentamente como à entrada do novo dia que vem carregado de nostalgia. Sinto que está quase na hora de atracarmos num porto na aurora, um cais que se abre só para mim. Estou ansioso para atracar este fantasma ruim, num porto grande e com muita gente, como o Porto Grande em São Vicente.

Pinha não desiste, a minha amada insiste com o velho carteiro para saber notícias do seu marinheiro. – Oh minha menina, deixa de ser obstinada, estás a perder o tempo para nada, não desperdices a tua juventude, está na hora de tomares uma atitude. – Pelas suas amargas palavras dá para ver que não é desta viagem que vou ter notícias do meu amor. – Mocinha, sacode as poeiras, acaba com esta miragem, tira este manto de dor e tenta ser feliz fincada na tua raiz. – Não vou desistir, continuarei a resistir até ao silenciar deste meu fraco respirar. – Estás doida, menina? – Estou completamente insana. – E se ele nunca mais voltar? – Se Deus assim o quiser, vou ter de enterrar a minha nobreza nesta poeira desta minha ribeira que curou o meu umbigo e agora testemunha o meu castigo. 63

Pequeno porto.

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Sinto a tristeza crescer com a aproximação do cais, cheio de gentes famintas de um país que continua a sofrer, com a maldita miséria e os infames conflitos. Trazemos os porões cheios de ajuda alimentar para matar a fome de vítimas de guerras, um gesto para enganar e acalentar estes pobres sem terras mergulhados nas trevas. Os infames dos europeus continuam a subtrair a riqueza dos pretos e em troca enviam umas toneladas de arroz para matar a fraqueza de um povo sem nobreza. Os estupores dos europeus instigam os conflitos, alimentam a ganância atroz e deixam os africanos na rua da amargura e aflitos. Sinto novamente o asco pelos brancos embrulhando o meu estômago e a náusea transtornando a minha cabeça abruptamente, trazendo o enjoo que tenciona raspar e despejar toda a minha aversão. Um bando de europeus velhacos que desembarcam na África para assunção do estrago, autênticos ratos daninhos que roem ferozmente a alma da minha gente, atirando a raça negra no vazio da escuridão. Piratas saqueadores que pilham toda a riqueza e estimulam as guerras, as doenças e as fomes. Ladrões e exploradores que enganam o povo com o envio de navios cheios de arroz, para matar a fraqueza destas gentes sem nomes. Havia deixado um grande cais comercial onde testemunhava o descarregar de todo o material tirado dos povos africanos, abandonados em campos ciganos. Havia deixado aquela cidade por causa da injustiça, por não compactuar com aquela exploração e a cobiça daquelas pessoas xenófobas, mesquinhas, egoístas e sarcásticas. Deixei o racismo da cidade de Lisboa para vir desembarcar na guerra violenta da Serra Leoa, uma luta doentia regada por torrentes de sangue. Uma


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luta que desencadeia vários ataques e que faz vários feridos, deslocados e mortos, vítimas de conflitos armados apoiados pelos políticos corruptos. Todas as coisas estão fora do espaço e do tempo. Uma terra explorada e saqueada, atrasada e arrasada pelo contratempo de uma luta armada antiquada. Tudo está errado, pessoas morrendo de fome, outras fuziladas por balas disparadas por um pedaço de homem sem nome ou simplesmente vencidas pelas epidemias negras. Pessoas famintas esquecidas em campos de refugiados, tentando passar mais umas fintas ao destino. Um driblar insuficiente para escapar aos maus-tratos dos conflitos armados e da fúria da guerra que veio para massacrar. Pessoas a viverem as consequências de mais uma guerra em que as crianças continuam a ser soldados guerrilheiros e a perder as suas infâncias nesta aberração. Enquanto elas morrem e caiem na poeira da terra, com armas entre as mãos destes prematuros guerreiros, os traficantes de armas aumentam a suas economias, descarregando armas em troca da riqueza do seu semelhante. Metais preciosos trocados por armas de destruição maciça que fazem milhares de mortos, sobretudo os civis, a parte mais desamparada. Na maioria das vezes as vítimas são mulheres e crianças que não conseguem fugir a tempo para outros portos e acabam asfixiadas nas teias desta guerra desgraçada. Aproximo-me da ponta da proa onde me encontro e enterro as mãos à kexada. Um homem que desconfio ter sido criado lambudo no cabo de uma enxada, um filho dos campos ressequidos dos ilhéus do atlântico que foi atraído por este ode marítimo poético e melancólico, aproxima-se de mim

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com um ar macambúzio pasmando neste gigantesco vazio. Este homem aparenta-se muito abatido diante deste triste cenário que é apresentado na grande tela deste país precário. Parece carregar um sentimento de culpa, um arrependimento por algum acto cometido e que não tem desculpa. Aparenta estar cheio de remorso e bastante desgostoso. Debruça-se a bordo do vapor, com o rosto dengoso e deixa a ideia de estar a colocar a mão na sua consciência para enxergar o mal infernal que durante muitos anos tem vindo a causar a este povo, enquanto continuo aqui estático, tentando identificar as vítimas. Vítimas são as pessoas que disparam e as que inocentemente são abatidas, porque durante o conflito se perdem pessoas amigas e íntimas, e milhares de crianças ficam traumatizadas para o resto das suas vidas. Do bordo do navio fisgo os soldados ostentando metralhadoras carregadas de munições, invadindo os campos de refugiados, violando homens e mulheres e queimando as suas habitações. A Serra Leoa é um campo de batalha marginal, um genuíno mercado para a venda de armamentos em que as vítimas deste comércio são mulheres e crianças em especial. Um comércio ilegal que coloca armas nas mãos de gaiatos que transformam a Serra Leoa numa terra infernal. Sem pôr os pés em terra, assisto de camarote a momentos dramáticos, pessoas que perdem tudo, inclusive a esperança. Homens, mulheres e crianças, armados somente com a firmeza que lhes dá ânimo para continuarem a trilhar entre as lufadas de balas. Pela primeira vez em toda a minha vida vejo cenários tão caóticos, mulheres enraizadas nesta assombrosa crença,


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crianças cadavéricas cheias de fraqueza e homens desesperados fitando a luz branca das velas. É chocante ver crianças mal nutridas arrastando-se em campos minados atrás de um sustento que passa sempre ao lado. Gritante é ver estes abutres seguindo o arrastar das crianças deprimidas, esperando pelo silenciar destes bafos cansados para atacarem os cadáveres deste povo flagelado.

– Menina Pinha, se quiseres continuar a viver neste enfado, sempre a soluçar esperando o príncipe encantado, que o faças sem pudor, mas peço-te um especial favor, não interrompas a minha jornada, não me perguntes mais nada. Se algum dia tiver alguma carta endereçada à moça procurarei por ti na roça, para te entregar a dita e para a ler e te ajudar a responder, porque sei que não sabes ler nem escrever. – Sei que tenho sido aborrecida, uma criatura fastidiosa e bastante teimosa, mas não tenho outra saída senão esperar e desesperar por uma cartinha vinda deste mar, escrita pelo meu marinheiro, este ser tão cavalheiro. Mas não o vou chatear, vou ficar quieta no meu lugar esperando boas novas. Enquanto isso, vou fazendo covas com a minha enxada e enterrando sementes no pó seco destas terras quentes.

Volto a fitar o homem e vejo que algo o mortifica. Uma espécie de uma espinha que o engasga e arranha as entranhas da sua garganta molhada por uma seca gigantesca, atirando esta alma de Deus nesta afronta grotesca. Sinto uma vontade de puxar a criatura para uma lasca, para dois dedos de prosa e

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tentar aperceber o que o deixa araska64. Contudo, hesito por um instante e permaneço um tanto ou quanto distante. O silêncio estático e ensurdecedor a bordo deste vapor deixa-me à beira da loucura. Não suporto continuar aqui imóvel assistindo à tortura deste pobre homem sem mover uma única palha, para ajudá-lo a vencer esta batalha. Perco o cagaço e aproximo-me deste camarada. – Como se chama, homem de Deus? Porque está com esta cara amarrada? Está com uma fisionomia que aparenta ser filho dos ilhéus. – Prefiro que me chamem de Kakoi. Já agora, qual é o seu? – Respondo-me por Cantai. – Cantai! Como veio parar neste mundo fariseu? – Embarquei à procura de recursos para providenciar um pedesin txon e construir a minha covinha, para tirar a minha moreninha daqueles campos despidos. – As notícias que tenho recebido são que as benditas chuvas já não caem. – Oh Kakoi! Aquilo é uma maldição que caiu sobre aquela terrinha. É por isso que os crioulos abraçam com afinco a emigração para ficarem neste vai vem. E você Kakoi? Porque deixou a sabura65 daquelas ilhas? – Vim atrás de um futuro melhor para os meus filhos. Deixei em Cabo Verde uma mulher e cinco crianças, mas como um homem crioulo não se contenta com uma só, arrumei uma nova família em Lisboa. Agora tenho de enfrentar este mar turbulento para sustentar as minhas filhas. 64 65

Em dificuldade. Prazer.


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– Deus há-de conceder-nos forças para continuarmos a caminhar nestes árduos trilhos. – Deus o ouça, Cantai. Precisamos de vida e saúde para juntarmos algumas poupanças. – Espero não perder os dias da minha vida neste mar, andando à toa. – Não, Cantai! Neste mar tem sustento. Com um pouco de juízo dá para garantir um belo futuro para os nossos meninos. – Kakoi, estou a ver que este mar não é motivo deste seu desalento. – Já estou acostumado com o mar, esta minha mágoa é motivada por um golpe muito mais duro. O que me atormenta é esta afronta que andamos a causar a estes meninos magrinhos. – Não diga isso, Kakoi. Os culpados desta desgraça são os xuxos66 brancos vestidos de cordeiros, que andam mascarados pela África instigando estes tiroteios. – Sim, Cantai! Mas nós somos cúmplices dessas atrocidades cometidas nesta terra, andamos a trabalhar para as pessoas que fornecem o material de guerra. – Está doido da cabeça? Vimos trazer ajuda alimentar para minimizar as suas fraquezas. – Trouxemos toneladas de arroz, mas vamos levar boa parte das suas riquezas. Não está a ver o filme no seu todo, Cantai, esta é a razão desta sua perplexidade. Um dia perceberá o real motivo da minha contrariedade. – Porquê não derrama esta mágoa neste ombro amigo? Confia em mim e partilha a sua dor comigo, vomita este mal 66

Diabos.

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que o atormenta para fora. – Entendo a sua curiosidade, Cantai, mas cada coisa na sua hora. Primeiro é preciso ganhar confiança e só depois podemos explicar todos os passos desta dança. – Esta conversa está a deixar-me bastante preocupado. Parece estar a esconder-me algo de muito grave. – Não fique com esse ar preocupado, mais coisa menos coisa findará esta sua curiosidade. – Sinto que me meti dentro de um beco sem saída. Não, Cantai é pago apenas para trabalhar num vapor. Nada tem a ver com o tipo de carga que é trazido. Nada temos a ver com os negócios deste comandante estupor. – Espera aí, Kakoi. Quer dizer que este maldito tem vindo a vender estes sacos de arroz? – Não Cantai. O negócio do nosso comandante é muito mais afoito. Este infame tem um coração como uma pedra parada no fundo do oceano. – Este desgraçado deve ser bastante atroz? – Atroz, Cantai? Ele é desumano. – Kakoi! Kital irmos dar um giro? Irmos espanejar esta poeira e este cheiro nauseabundo deste vapor. – Pensa que a nossa cor serve de documento? E mesmo se fosse, não iria colocar os meus pés nesta ratoeira. Não quero ver os meus miolos estourados por um tiro, nem tenciono ser refém deste terror. Se for parar às mãos de um infame violento, certamente serei mais uma vítima desta guerra grosseira. Nestas guerras negras, crianças, mulheres e homens são violados por grupos de soldados psicopatas que espalham terror por todas as aldeias. Às vezes, do bordo do navio costuma-se escutar gritos alucinados de criaturas que não se


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escapam à fúria dessas tropas malditas que continuam a dar provas das suas covardias. – Kakoi, diga-me como veio parar a bordo deste velho casco? – Não costumo falar deste assunto, porque me dá asco. Mas como me está a dar um trato de um velho amigo, penso que posso me abrir consigo. Oh Cantai! Fui enganado pela mesma pessoa que o abordou na cidade de Lisboa. Da mesma forma que ela o convenceu a embarcar neste navio, ela me arrastou para o bordo deste gigantesco vazio. – Kakoi, Kakoi! Está a sair-me um bom partiozo67. Um ser bastante ardiloso e com uma boa capacidade de se esquivar. Parece ser aqueles passadores de pau à beira-mar esperando os passageiros desembarcarem em terras estranhas para caírem nas suas manhosas artimanhas. – Tipo aquela prostituta que foi falar com o Inglês para lhe arranjar um trabalho a bordo desta velha embarcação? Pois, aquele Inglês que ela costuma chamar o seu melhor freguês é o chefe dela e desta organização. Ela não vive numa barraca nas margens do rio Tejo? Apesar de ser magricela não tem uns seios viçosos e bem cheios? Ela não lhe disse que veio dos campos do Alentejo? Não leva uma vidinha em Lisboa cheia de maus vícios? – Estas verdades começam a causar-me arrepios. Fui muito burro. Como é que fui acreditar naquela branca azeda? Como fui capaz de cair na lábia desta filha de gentes gentios? – Nós os pretos continuaremos a ser enganados e explorados, passaremos o resto das nossas vidas a cair e a sacudir a 67

Divertido.

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poeira de cada queda. Sempre caindo nestas ciladas armadas pelos brancos desgraçados. – Kakoi! Como é que consegue passar tanto tempo a trabalhar para esta gentalha? – Não esquece que tenho duas famílias para sustentar, cada dia que passa as coisas vão-se tornando mais difíceis, a vida de emigração não está fácil para ninguém. Temos que aceitar a exploração deste povo canalha, submetermo-nos a qualquer candonga sem pestanejar. A falta transforma-nos em seres desprezíveis, até parece que os pretos nesta terra não são ninguém. Para driblarmos os momentos mais ignóbeis desta vida maldita continuamos aceitando esmolas picuinhas e estendendo as mãos para amparar as migalhas de pão desprezadas pelos brancos. A sensação é que estamos condenados a viver dos restos desta raça parasita como se ainda fossemos umas pequenas e desprotegidas piratinhas68 na Praça Nova de Mindelo, estirados nos bancos esperando um pão para tapar aqueles buracos. – Kakoi! Não irei mendigar migalhas a esta gente revanchista. Prefiro morrer de fome do que ser cuspido por uma criatura egoísta. Assim que voltar a pisar o cais de Lisboa vou desaparecer na fumaça, não vou continuar nesta vida nem raça. – Tem ideia de quanto tempo vai durar esta viagem? Para o seu governo, o regresso à Lisboa pode ser uma mera miragem. – Como assim, Kakoi? Não é só descarregar e regressar? – Ainda vai andar em cima deste mar até cansar. Vamos 68

Piratas.


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passar uma boa temporada por estas terras. Iremos atracar em quase todos os portos dos países que estão em guerra. Não te esqueças que a nossa missão é levar ajuda alimentar aos famintos. Famintos que não conseguem esconder os sorrisos marotos, quando nós os malditos nos aproximamos da costa carregados de esperança, uma esperança que vai alimentando esta maldita doença. – Chega, Kakoi. Um dia haveremos de voltar a Lisboa e deixarei esta gaita. Não vou continuar a compactuar com estas candongas secretas. Hei-de ter a oportunidade de estar cara a cara com aquela Sirigaita e de cuspir-lhe esta minha raiva naquelas latas. – Pobre Cantai! Vai andar deriba deste mar até ver esta ferida parar de sangrar esta borrega. Com o passar dos anos acabará por se acostumar e de certeza que se livrará desta cólera cega. – Posso até vir a me acostumar, mas um dia colocarei as mãos naquela velhaca, aquela filha de parida branca azeda, matreira e nojenta que passa por coitada, mas que não é mais que uma boa macaca. – Senti a mesma coisa que está a sentir agora quando descobri a farsa. Senti uma sede de vingança violenta, a minha vontade era de pegá-la e estrangulá-la mesmo na hora. Com o passar do tempo fui-me acostumando com esta amargura, aos poucos fui encarando o meu destino com olhos de ver, abandonei a sede de vingança e passei a preocupar-me mais com um prato de comida. Transformei a angústia numa verdadeira aventura, fiz rejuvenescer esta vontade de viver e fui engordando a minha poupança para garantir aos meus filhos uma vidinha mais comedida. Nenhum tipo de vingança

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me vai cegar, as nuvens negras da vingança não me farão cometer nenhuma asneira. Nenhum xuxu me fará cometer um crime sem pensar. Fincarei os pés no chão e lutarei contra esta maldita doença, revoltar-me-ei, gritarei, berrarei, mas não aceitarei esta cegueira. – Quem me dera ter essa sua subtileza para resolver as coisas com esta delicadeza. Infelizmente não tenho esta sua finura, esta fome de vingança até me causa tontura. Quando pisam o meu calo, berro mais alto do que uma cabra, quem atraiçoa a minha confiança o seu nome é kadabra69. Sinto o sangue malcriado de Badiu subindo nas minhas veias e vou sendo enclausurado nas amaldiçoadas teias. – Cantai! Nunca mais repete esta asneira. Não repete esta baboseira nem na brincadeira. Ele não tem brincadeira com aquela bandida. Se este assunto acossa os ouvidos deste diabo será o fim da tua vida. Se isto chega nos ouvidos do comandante, o seu nome é finado. Cantai, pode ser largado neste mar onde ficará para sempre sepultado.

Nhu Simão passa pela Pinha e lamenta. Coitada desta menina, sofre pela cartinha que este seu amor, rato de um vapor que deve estar afrontado em cima deste mar turbulento, enganado e explorado, passando por um grande tormento, não teve dignidade ou sequer oportunidade de a escrever e enviar para a desenterrar desta tristeza e acabar com esta incerteza. Fico com o coração partido, destroçado e abatido ao ver esta pobre criatura sepultada nesta amargura, mas sou 69

Cadáver.


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um pobre carteiro, não sou nenhum curandeiro para a curar desta moléstia e a libertar desta dolência. Ela vê-me a passar com um grande pesar, com os olhos sangrando, com o coração chorando, sem eu nada poder fazer para esta pobre coitada.

Eu e Kakoi estamos abstraídos neste cavaco de camaradas e somos surpreendidos com a imagem do canalha, rodeado de rapariguinhas com carinhas amarradas. Crianças famintas, caminhando em direcção a esta negra malha. Um grupo de escravas negras escoltadas pelos seus irmãos rebeldes, escravas crianças exploradas pela mesquinhez dos seus irmãos negros, vítimas da selvajaria de homens covardes, pobres coitadas de pés descalços caminhando neste chão atulhado de pregos. Apressadamente as meninas magras, com as grandes bolas pretas irrequietas tentando fugir das malditas garras destas mentes negras, aproximam-se das escadas deste vapor onde serão sacrificadas como mártires. No meio delas vê-se o sorriso escarninho deste animal, o nosso comandante infame parece um único túmulo, num cemitério à meia-noite, ali todo branquinho, no meio desta escuridão brutal. Ele vem com os olhos cravados nos corpinhos meio despidos destas pequenas escravas negras, violadas e espancadas com açoite pelas mãos dos rebeldes insanos e estúpidos. – Kakoi! Vê a cara de felicidade deste nosso comandante, está a sorrir pelos toutiços. – Cantai! Desgraça de uns é fortuna de outros. Enquanto uns sorriem de alegria, outros choram de tristeza.

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– Os olhos deste estupor brilham mais do que uma pedra de diamante. – Convenhamos, tremeluzem como estes diamantes castiços, enquanto os olhos dessas menininhas se parecem com pequenos mastros fustigados pela fúria de uma forte correnteza. – Como é possível um ser humano sentir-se tão satisfeito, explorando e abusando das fragilidades de crianças inocentes? – Ai Cantai! Estes diabos brancos não têm compaixão. Este estupor carrega um racismo negro espetado no seu peito, anestesiado pelas atitudes obscenas e indecentes, pisa os negros como se fossem o calamitoso pó deste chão. – Não entendo para quê tantas raparigas? Para quê debulhar tantas espigas? – Então não sabe, Cantai? Estes brancos são arrogantes e prepotentes. – Não Kakoi! Estes infames são doentes. Uma doença que vai ganhando contornos de uma epidemia, esta epidemia originará uma verdadeira pandemia, uma pandemia que contaminará todas estas pobres crianças, mais precisamente estas carecidas moças. – Sinto nojo destes actos de pedofilia, tenho asco desta ridícula covardia, mas estes malditos haverão um dia de arder nas caldeiras do inferno. – Cantai, sinto enjoo deste desprezo estafermo, o meu grito de revolta é titânico, mas até quando a raça negra vai continuar a viver neste pânico? Será que enquanto esta pretalhada de mentalidade encardida estiver à frente dos destinos


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desta África maltratada, este povo sofrido jamais sentirá o cicatrizar desta grande ferida? – Saí da cidade Lisboeta, mas não para vir para a Serra Leoa. O meu desejo era ver a praia da Gambôa. Sentir o som do batuque tocado naquela simboa70 e assistir à txabeta cheio de brio de uma Badia boa. – Lamento informar que esta é nossa mágoa, continuaremos a assistir a estes grupos de rebeldes a raptar meninas pejadas de nódoa, crianças com apenas sete anos de idade, forçando-as à escravatura sexual e à crueldade. Estas meninas ficarão traumatizadas, vítimas de violação sexual por parte de tropas armadas, ou pelo próprio irmão que desaparece na fumaça após a violação. A violência sexual é usada como espingarda, e os familiares são forçados a verem as suas filhas e mulheres serem barbaramente violadas. – Não tenho estômago para aguentar esta maldição, ver pessoas morrendo de fome com lágrimas nos olhos, implorando algum tipo de compaixão que os próprios não conseguem encontrar nos seus corpos maltratados. Testemunhar as cabanas das pessoas ardendo em chamas, crianças mortas e outras fugindo, sumindo neste abismo. Rebeldes canibais comendo carne humana nas savanas, enquanto este zumbido das moscas perturba o meu mutismo. Ver meninos forçados a matar como se fossem canibais que depois são coagidos a fumar drogas pesadas, meninos que se transformam em máquinas mortíferas ideais. Pessoas que não conhecem nada além da violência, crianças drogadas, violadas e maltratadas que não encontram outro meio de sobrevivência. 70

Instrumento musical.

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– Pobre Cantai, ainda não se apercebeu da brutalidade das violações. Vais deparar com exércitos de soldados-crianças valentes, que matam brutalmente e arrasam todo este país com incêndios violentos. Meninos que desfrutam em orgias de mutilações, uma forma de assassinar covardemente, cortando aos agricultores as suas duas mãos de forma indecente, uma sentença de morte também para os filhos pequenos. Vais ver famílias sem membros, mergulhados nesta labuta com o cabo da enxada assegurada entre o pescoço e o ombro escavando sustento neste campo seco. Para o seu governo, pôr fim na vida é uma grande luta, para um kriston, que não tem nenhum membro e que está farto de viver neste beco. – Qual a razão para este derrame apocalíptico? Será que são diferenças tribais? Quais as raízes deste conflito patético? Onde está a salvação deste pobre país? – O suposto para ser a salvação tornou-se na razão pela miséria, a riqueza transformou-se em maldição, a fartura em penúria. Cantai! O brilho das pedras de diamantes trouxe a aurora do derrame de sangue, a sentença de morte para estas gentes. – Kakoi! Pedras de diamantes são riquezas. – Pois, mas aqui são conhecidas por diamantes de sangue, ou seja consideradas fraquezas. É uma luta titânica para contrabandear as pedras, uma vez que poucas dessas pedras preciosas formam uma grande fortuna que é facilmente transportada numa caixa de fósforos. Vale tudo para conseguir meia dúzia delas. As pessoas engolem-nas, colocam-nas debaixo da língua ou das unhas. Aproveitam a mais pequena lacuna para as enfiarem em feridas semiabertas ou noutro tipo de buracos. Os malfeitores estupram mulheres e freiras, seques-


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tram padres, marcam crianças como gado e drogam-nas para as obrigar a lutar. Esta ganância transformou-as em máquinas mortíferas, uma cobiça que vai deixando as costuras deste país mais podres, onde qualquer um tem coragem de matar para se safar. – Vamos abandonar este vapor. Deixemos de trazer mais dor às gentes miseráveis, presas nestas teias precaveis. – Nem pensar Cantai, este é o meu rumo, seguirei este vapor, como a risca deste negro fumo, como a lufada desta brisa que embala esta guisa. Em cada cais descarregamos porões de terror, ajudamos a espalhar o pavor e a roubar os sonhos de pobres crianças. Contudo, ninguém nos pode crucificar, muito menos culpabilizar pelo ramificar destas negras crenças. Vou continuar a remar em cima das águas deste mar, aportarei nestes cais de ódio, assistirei a outras crianças a violar e a matar e testemunharei as crueldades destes pequenos soldados fardados pelo ópio. – Deve ter bons motivos para querer ficar a remar neste lago de sangue, a navegar em cima de lágrimas de pesar deste povo debelado pela ira dos diamantes de sangue? – Vou continuar a navegar neste mar, Cantai, porque este é o meu único sustento, a dura realidade de um pobre pai. – Kakoi! Assim que puder vou partir, deixarei este bordo nojento e despirei de uma vez por todas este fardo de mártir. – Eu preciso ganhar muito dinheiro para mandar armar aqueles quatro blocos e fincar aquela covinha numa ravina, ou nos fundos daqueles kobons71 fanados. – Para se conseguir um pedesin txon, tem de ser persistente 71

Achadas.

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e muitas das vezes um verdadeiro desordeiro, pois quase tudo já está nas mãos dos brancos. – Tenho um compadre que está a tratar-me desta terrinha clandestina. Ele garantiu-me que consegue uns metros quadrados. Para adquirir um pedesin txon ilegal, numa destas ladeiras cheias de piolhos, tenho de mandar cento e cinquenta contos. Precisarei de recursos para o raspal72, para comprar meia dúzia de tijolos e para colocar aquele betão dos nossos sonhos. Mando colocar duas tábuas de madeira nas portas, com pedaços de tambor tapo as janelas, meto a minha família no tecto deste mais recente gueto. Nessa pequena cidade, o que está na moda é a clandestinidade. Quem quer ter a sua covinha em vida tem de ser destemida. Os seres honestos nunca conseguirão ter os seus tectos. Passarão o resto das suas vidas a viverem de rendas. – Pobre Kakoi! Prefiro viver de rendas do que morar em tendas. Armações de papelões que são destruídas com as chuvas e as pessoas arrastadas para o fundo das covas. – Nunca ouviu dizer que Deus é preto? Que ele tem cabelos crespos? Que fala um crioulo bastante correcto e vive oculto naqueles campos secos? – O que quer dizer com isto? – Quero dizer que os crioulos gozam de uma especial protecção de Cristo e que nenhuma desgraça acontecerá com os nossos filhos. – Um dia ele acabará por se cansar, perderá a paciência com este povo teimoso e o senhor decidirá se rebelar. 72

Alicerce.


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– Vira esta boca para lá. Deus não nos permite tamanha desgraça. Este homem é misericordioso, vai estar sempre olhando pela nossa raça. – Mas ele um dia pode emigrar, seguir a sina de qualquer crioulo. Pode voltar as costas às ilhas de contendas, para vir proteger os que estão na diáspora. – Não Cantai. É ali que ele vai continuar a morar. No sossego daquele pequeno cutelo, orando pelas famílias desesperadas que levam uma vidinha assustadora. Podemos continuar a construir na foz das ribeiras, morar em cima de terras soltas e a voar como uma pequena gaivota. Erguer a pobreza em ladeiras, sem eiras nem beiras, criar estes guetos de blocos e de latas, onde driblar a miséria é um jogo de batota. – Mesmo se Deus for esta criatura di pé ratxadu73, filho de rabeladu74, com os cabelos bedjus, ou com barriga batata, como os sampadjudus75, construir casa clandestina sem raça, morar em ladeiras soltas, nem flaça76. Não vou cair neste templo cego e depois viver o resto da minha vida sem sossego. Não me deixarei guiar pela luz do demónio, não me entregarei ao manicómio e nem tenciono me suicidar. É preciso continuar a 73 74

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Com pé rasgado. Os Rabelados são uma comunidade religiosa que se encontra principalmente no interior da ilha de Santiago de Cabo Verde. Formaram-se a partir de grupos que se revoltaram contra as reformas na liturgia da Igreja Católica, introduzidas na década de 40, e se isolaram do resto da sociedade, correndo hoje risco de extinção. Pessoas das outras ilhas, que não são da ilha de Santiago, que não são Badius. Nunca.

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acreditar, tud kriston, tud simbron77 têm direito ao seu pedesin txon. – Como não me considero como tal, tenho a convicção que nunca vou ser agraciado com um pedacinho, pelo que melhor é prevenir do que depois remediar este mal. Por isso, procuro desde já garantir o meu cantinho. Como se não bastasse aquele cento cinquenta conto para comprar aquele terreno clandestino é preciso garantir o dinheiro do concreto e um extra para o fiscal vespertino. Estes larápios têm muitas artimanhas, aparecem nas obras clandestinas como um furacão, determinados a demolir as barraquinhas, mas é só meter as mãos nas algibeiras, colocá-los uns trinta contos na palma da mão para eles desprezarem as ribeiras. Todavia, a situação catastrófica da nossa capital não é culpa apenas desses fiscais corruptos. A má-língua afirma de boca cheia que a edilidade costuma arrancar as folhas dos livros dos registos prediais. – Qual a razão para destruição de um registo predial? Tenta juntar todos os pontos. Olha para cima da nossa cidade e descubra todas as falcatruas marginais. – Vejo apenas uma cidade cinzenta, armações de blocos desorganizadas e umas barracas de papelões amontoadas. – Pois, esta cidade pardacenta é a consequência de todas as trapaças orquestradas pelas pessoas mal intencionadas. Na ausência de políticas sociais, as pessoas tornam-se marginais, um acto de desespero para construírem os seus caboucos, para não ficarem expostas ao sol ardente, chuvas endiabradas e ventos loucos. Uns pegam nas picaretas, outros botam braços nas marretas, escavam com perseverança os 77

Uma árvore.


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seus alicerces, quebram as pedras com pujança e levantam paredes. Arrancam os pezinhos de charuteiras e fincam as suas bandeiras em cima das ladeiras de poeiras. Debaixo de dificuldade e crueldade, este povo conquista a sua liberdade e constrói esta desorganizada cidade. – Estes guetos são focos de criminalidade, onde a pobreza e a fraqueza vivem colados nos seus corpos, onde a prostituição, a droga e o Kassu bodi78 é mais pura realidade. Kakoi! É nestas trevas que pretende atirar os seus filhos? Pretende educar os seus filhos nestes guetos problemáticos? Onde pais covardes espancam as pobres mães? Onde os conflitos entre vizinhos são dramáticos e os filhos são criados como se fossem cães? Nestes guetos, as filhas de paridas são levianamente violadas, engravidadas e obrigadas a parir crianças que nascem sem ser desejadas. Meninos que se amamentam em seios cheios de nada, dormem em berços de mártir e são criadas abandonadas. Até parece que um irmão mais novo antecipa o trabalho de parto, rouba-lhe o berço e atira-o para o calor di txon. Tira-lhe as mamas antes de saciar a fraqueza e toma-lhe o aconchego do doce regaço. Arrebata-lhe o pedaço de bolacha roído pelo rato, apodera-se dos seus brinquedos apanhados no kobon, herda as fraldas e roupinhas de pobreza e aos poucos vai reduzindo o seu pobre espaço. É uma contenda que começa mesmo antes de aprenderem a andar, crianças a brigarem por um pedaço de pão, entregues numa barafunda por causa de uma gota de água. Cada um dá o seu expediente, para se safarem tentam driblar a fome e em fintas 78

Assalto.

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malabaristas procuram achar uma solução para pôr fim a este mar de lágua. – Não tinha visto as coisas neste sentido, Cantai. A maior desgraça de um pobre pai é criar a sua filha debaixo de sacrifícios, para vir a ser comida de mansos símios. – Dói-me ver uma cria a cair na porta das tabernas, a mostrar aos pedófilos as suas pernas em troca de um copo de vinho, para depois caírem na cama do vizinho. Meninos com a sua pega firme às malditas drogas numa tentativa de afastar as pragas, pragas negras, negras como um grande temporal. É gritante esta falta de moral, esta falta de postura que a cidade esconjura. A falta de pão dentro das próprias casas leva as crianças a saírem nas ruas, à procura de rabidarem as suas vidas e de secarem as lágrimas das suas amarguras. Nas ruas, as dificuldades são maiores, a escaramuça pelo sustento é esquisita, as injúrias são de longe piores e a sobrevivência torna-se numa incógnita. Um pedaço de pão, em troca do calor da pitada de um pobre órfão. Uma pequena esmola significa o abrir das pernas de mais uma coitada que devia estar sentada numa carteira de uma escola. Antes de abrirem os olhos a estes guetos controversos, estes filhos da pobreza começam a batalhar. Uma luta asfixiante pela sobrevivência, uma teimosia aberrante para brotarem em terras inóspitas. Assistem às suas mães a serem violadas por seres perversos, espancadas pelas mãos de quem calhar, maltratadas pela demência de pessoas hipócritas. Nascem sem o direito a um nome, são renegadas logo à nascença e desprovidas de todos os cuidados e de carinhos. Crescem amamentado nas ubres da fome, abatidas pela doença e feridas pelos raivosos espinhos. Sem comida para comerem, sem água para beberem, sem


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roupas para taparem os corpos mal nutridos e sem brinquedos para preencherem os dias compridos, erguendo-se em lugares esquecidos, em guetos empobrecidos, sem uma única gota d’água e com as barrigas lisas como uma tábua. Morando nas cristas das montanhas, em localidades íngremes, sem estradas e sem luz para iluminar a miséria. Enterradas numa grotesca escuridão onde as pessoas vivem numa autêntica cegueira, entupidas pela nódoa desta pesada poeira. Assim, são obrigadas a lambur em cima de celhas. Debaixo de sol dos quintais de madames, exploradas e mal pagas e ainda por cima, molestadas pelos infames, assediadas nas bermas de estradas e levadas para a ponta do farol. Os seus olhos são engordados com umas moedas para depois serem penetradas debaixo do sol. Um sacrifício enorme para debelar a dublidade, arranjar um pão e partilhar com os irmãos, que arrebentam nestas ribeiras desta cidade. Sem se aperceberem vão entrando na prostituição e passando por várias mãos. Entrando num rumo sem remissão. Mocinhas de boton na mon79, com uma latinha na cabeça, dando de solas atrás de um pingo d’água para regarem as suas gargantas secas, abandonadas nos perímetros deste kobon. Encarceradas pela miséria e pela desgraça, enterradas nesta grande mágua80, estão sempre a afastar as suas cuecas. Qualquer mão que apareça para as ajudar a se erguer desta lamaceira nojenta é um empurrão para dentro de uma esquina escura onde elas são forçadas a satisfazer todas as vontades de uma criatura violenta debaixo de muita tortura. 79 80

Pequenos seios expostos. Mágoas.

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– Se eu souber de algum desgraçado que se atrever a encostar um dedo nas minhas queridas filhas, arranco-lhe todas as suas linhas. – Pode evitar este desfecho sangrento. Não matricula as suas filhas neste convento, onde as folhas da bíblia são rasgadas e as freiras barbaramente violadas. – Como fazer isto, Cantai? – Seja um verdadeiro pai, Kakoi. Desiste desta casinha clandestina. – Mas esta barraquinha é divina. Não posso abrir mão desta covinha, nas ladeiras desta pequena cidade mesquinha. – Ainda é tempo de evitar que as suas filhas sejam macaquinhas. Pelo amor de Deus, não deixe que as suas meninas se transformem em autênticas pixinguinhas81 perdidas em asfixiáveis esquinas. Dessas meninas que descem das favelas, passeiam pelas estradas escuras, à espera de uma boleia, logo que a noite entra no posto das sentinelas e esconde estes actos de pedofilia. – Lamento muito, as minhas filhas vão ter de se deslindar sozinhas desta maldita teia. Se tiverem juízo, emborcarem nos livros, amanhã serão gente. E mais, o lugar dos pedófilos é na cadeia. – Quem vai prender um padre que de dia anda com uma bíblia debaixo dos braços e à noite passeia pela cidade atrás de pobres almas doentes para serem abençoadas com pau de Nhu Padre nestes pobres espaços. – Cantai! Isto é blasfémia. Esta moda de padres pedófilos ainda não chegou nos nossos ilhéus. 81

Prostitutas.


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– Eles agem como estes ratos de bordo de vapor. Mordem as nossas pontas dos dedos e vão assoprando. O templo está invadido desses tipos. Manobram-se tal e qual estas bandidas que entram no altar com véus. Estas que botam cinzas nos olhos do trovador, que passa madrugadas debaixo da janela goitando82. Despem as freiras, as longas capas brancas, beliscam os seus peitinhos carnudos e começam a dar dentadas no fruto proibido. Dizem que elas têm boas ancas, são dotadas de uns corpinhos tesudos que deixam qualquer criatura de queixo caído. Tudo acontece nas luzes das velas opacas. No silêncio mudo das paredes caiadas onde as freiras puras são bem amadas e as suas castidades ali expurgadas. – Dá para perceber que é um grande ateu. Que não acredita na palavra de Deus. – Apenas relato a realidade da nossa região. Nada tem a ver com a religião. Não tenho culpa se os pastores, estes seres prevaricadores se têm aproveitado para abusarem da inocência das pobres ovelhas. Estas putarias são velhas. Pena que as pessoas continuam a ser cegas. Na maioria das vezes surdas e mudas. Kakoi! A nossa sociedade está a perder os seus valores. Cada um puxa a sua brasa para a sua sardinha. Esta correria enferma por poderes torna a nossa cidade cada vez mais mesquinha. Todos procuram libertar-se da pobreza. Cada um à sua maneira. A macacada aproveita-se da sua beleza para arrumar um par de meia já na bordeira83. Quem não tem recursos para conquistar uma coisinha janotinha embriaga-se numa esquina negra, aguarda uma puta de salto alto, com a 82 83

Espreitando. Na ponta

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kadera84 empurrada para fora e atira para cima desta putinha sabinha. Assim, o fenómeno de kassu bodi vai assomando. A pobreza vai dando a desforra enquanto a riqueza amedrontado vai encapsulando. – Quem são estes malditos que vêm espalhando o terror sobre essa cidade indecente e débil, que cresce ancorada na clandestinidade? – São os seres famintos. Netos daquele calvário assustador. Filhos desta pobreza imbecil. Irmãos das miúdas que prostituem para vencerem a dublidade. Nascem em bairros problemáticos, são amamentados pelo biberão do nada e vivem uma infância marcada por brigas. Na adolescência são aconselhados por bandidos psicopáticos, influenciados pela droga malvada e guiadas por levianas intrigas. Quando crescem organizam-se em grupos de delinquentes. Brigam com os gangues divergentes. Demarcam as fronteiras dessas ladeiras. Partilham estas ribeiras cheias de poeiras. Na calada da noite surgem nas ruas, despem as pessoas, deixando-as nuas. Arrancam-lhes todos os acessórios e depois espancam-nas de modo ordinário. Ninguém está a salvo, qualquer um pode ser alvo desta delinquência juvenil. Esfaqueiam-se uns aos outros de forma imbecil. Matam-se com a maior tranquilidade, espalhando o pânico pela cidade. – Como podem ter tamanha coragem de matar? – Matar para eles é tão natural como respirar. Os meninos dormem sem jantar. A afronta da fome tira-lhes o sono e fá-los transpirar. Nenhum pedaço de bolacha para mastigar antes de dormir. Acordam com a incerteza de matar o jejum. Quando 84

Nádegas


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aparece um pedaço de bolacha, têm que reparti-la de forma a caber uma migalha a cada um. Muitas vezes voltam para a cama como se levantaram. Nestes dias, as mães andam apenas para gastar as solas dos pés. Nenhuma alma de Deus para abusar do meio de perna em troca de um trocado. Quando aparece um pedaço de pão é uma briga dividir este bocado por dez. Engalfinham-se como uma matilha de cão. – Não concordo consigo, Cantai. A pobreza em nada tem a ver com a criminalidade. Se assim fosse, não havia crioulo que não fosse criminoso. Todos os filhos destas ilhas são pobres. Nós todos dormimos sem jantar, Cantai. Passamos dias e mais dias enterrados na dublidade. Crescemos num ambiente asqueroso, mas não somos criaturas podres. A origem deste fenómeno está na falta de educação. Antigamente éramos educados de forma tradicional. Qualquer estranho tinha poderes para nos chicotear. Bastava estar no meio de gente grande para receber uma boa lição. Perguntavam-nos se tínhamos pentelhos, se não éramos castigados de forma brutal. Ninguém podia resmungar e nem se chatear. – Bater machuca mas não educa, apenas cria rancores. O que é preciso é uma sociedade com valores. – Por isso estamos afrontados e cada vez mais encurralados. – Não pode olvidar dos direitos humanos. – Parece que estes foram criados para proteger os desumanos. Chatiça! Direitos humanos deveriam ser apenas para humanos direitos. Por mim, estes thugs85 deviam ser todos mortos. 85

Delinquentes.

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– Fala assim porque não é seu filho. Se fosse, defendia-o com orgulho. – O meu filho não teria hipótese de ser bandido. – Para ser bandido, basta nascer num lugar proibido. Numa dessas ladeiras onde pretende fincar aquela casinha clandestina. Às vezes chego a pensar que ser bandido está no sangue, que é algo genético, uma espécie de dádiva divina. – Se a sua teoria vier a ser comprovada cientificamente, ficará comprovada que o crioulo veio de uma linhagem de malfeitores. Sendo que em cada família tem um delinquente e em cada localidade se encontra um covil de transgressores. Estes desgraçados andam destinados a atrasar as nossas vidas. Eles não têm nada a perder. Caso morram, é o fim das contendas. Se matam, vão parar a cadeia, onde não falta de comer. Na cadeia são muito bem tratados. Três por dia, água na rede, luz eléctrica e academia. Condições que nas favelas são impensáveis de serem encontradas. Saem das celas bem gordinhos e cheios de mania. Abono da verdade, bem jeitosinhos. A culpa desta situação caótica é exclusividade destes mentirosos, estes nossos políticos. – Não me fale desses covardes. Tenho nojo destas asneiras. A cada esquina um hipócrita armado em intelectual com esses falsos discursos. Não passam de uns autênticos estupores com as suas políticas trapaceiras. Estes infames são os verdadeiros culpados. Nada fazem para remediar a situação. Apenas pensam nas suas barrigas. Estão a cagar para os coitados. Nada fazem a bem da nossa nação. Não passam de uns verdadeiros maricas. Exilam os pobres nestes bairros clandestinos como se fossem seres leprosos. Uns autênticos refugiados de guerra. Clandestinos dentro da própria terra. Os delinquentes, estes


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miseráveis nascem sem nome e crescem fustigados pela fome. A lei pela sobrevivência faz emergir a violência e a delinquência. Os palhaços aparecem neste lugares apenas à caça de votos, atrás de maconha para armar os seus charutos ou atrás de uma kaderinha viçosa de uma macaquinha. Nunca vi gente mais mesquinha. Rebolam para aumentar as suas riquezas enquanto afundam o povinho nas profundezas da pobreza. Desta feita vai surgindo os Jamaicas, num ápice nasce os Marrocos, com qualquer piscar de olho surge as Flóridas e quando menos se espera brota os Infernos. Bairros tão pertos da cidade, ao mesmo tempo urbes bastante distantes da civilização. Parecem pocilgas pejadas de sujidade, onde os porcos vasculham o sustento neste imundo chão. Não têm estradas para penetrar nas entranhas destas pobres urbes. Não há água para lavar os seus corpos. Nem luz eléctrica para alumiar os sampes86. Não há condições para mandar os meninos à escola, quanto mais um dia de trabalho por estes lados. Só lhes restam o caminho da violência e da droga. – Cantai! Qual é a posição do nosso ministro perante tal situação? – Oh Kakoi! Este canalha confessou ter sido uma grande canhota. Disse ter fumado uns quantos charros de padjinhas e de ter vivido uma juventude cheio de nódoas. O nosso premier revelou ser um grande aldrabão. Só tem cabeça para a katota87. Não tem tempo para os nossos problemas e está pouco interessado nas nossas mágoas. Anda pela cidade às cambalhotas em cima de cabelos de putas de salto alto, como os chatos no calor de meio de perna de menina de vida. Com o seu jeito 86 87

Centopeias. Sexo de uma mulher.

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sisudo vai gingando neste jogo de batota. Vai inscrevendo o seu nome no negro asfalto desta terra proibida. – Cantai, Cantai! Deixe de politiquices. – Eu? Politiquices? Não tenho tempo para estas chatices. Não me identifico com estes brejeiros que só pensam nas barrigas dos seus herdeiros. – Se não é uma questão política, para si ele não passa de um grande katxor88? – Não sei se ele é. Só sei que ele costuma pagar 500 paus às macaquinhas para sentir aquele calor. – Calor do quê? – Dos lábios grossos destas kalhofas89 que fazem sexo oral. – Puta madra! Ele é um grande psicopata sexual. – Dizem que ele anda a apalpar com muito cuidado cada pedacinho de parede para ver se consegue encontrar a sua cara-metade. – Tem de se deitar com todas até encontrar este grande amor? – Esta é uma pergunta que deve ser feita a este estupor. Com o seu ar de sedutor, já desmembrou vários casais. – Por mim ele só se deita com as vítimas de bens materiais. – Disse uma grande verdade. Nos dias de hoje o amor passou para o segundo plano. O que interessa é o bem-estar e o conforto. Esta é a nossa realidade. Coitado é de um pobre cabo-verdiano. Todas se preocupam com o status social. Estão fissuradas com jantares e viagens. Deitam em hotéis com velhos azedos que têm algum capital em troca de meia dúzia de vantagens. 88 89

Cão. Prostitutas.


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– Estas cabras são consideradas de putas, não são? – Está doido? Elas são as nossas senhoras de famílias, as ditas madames. Bandidas são as meninas que numa esquina perscrutam um pedaço de pão. – Dantes, deitar em troca de uns grãos de milho era pura prostituição. – Lá vão estes tempos, agora é uma questão de aproveitar bem as oportunidades. – As nossas mulheres modernas não agem com o coração? Perderam todos os valores tradicionais? Nas relações já não há lugar para o amor? – Hoje em dia as famílias são formadas na base de interesses e os filhos crescem num clima de brigas e de ódio. – Estes falsos matrimónios é que trazem os problemas sociais, fazem brotar o terror que tem vindo a puxar esta carroça de vítimas de inocentes, inocentes violados por este ópio. – Kakoi! Não adianta estarmos aqui a lamentar. Acho que estamos a colocar água em baláio furado. – Está coberto de razão, vou buscar o meu violão para dar um toquezinho. – Boa ideia, talvez consigamos amansar este mar, que esta madrugada está bastante alterado. – É só arranhar uma morna para este mar ficar mansinho. – Toca tão bem, Kakoi. Onde aprendeu a tocar? – Mano, a distância e a saudade foram os meus grandes profetas. Sabia que o violão nos ajuda a chorar e a aliviar a dor? Fechamos os olhos e sentimo-nos a desembarcar no cais de saudades. As mornas melodias adormecem este mar. O expressar das nossas nostalgias torna-nos poetas e os versos

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nos ajudam a suportar o martírio a bordo deste vapor. É o alento para aguentar as mais adversas tempestades. Arranhando o violão, o vapor desliza neste mar sem darmos conta. Sinto-me estar em cima de um palco tocando para este mar que está sempre a pulsar. Assim passo dias, meses, anos a navegar neste mar turbulento. Esta é a melhor forma de abrandar a afronta. Tocar melodias suaves e vomitar o sangramento do meu sentimento. Vamos lá começar a improvisar. É muito mais fácil do que navegar. Relaxe e deixa as palavras se encaixarem e de forma suave deixa os versos se rimarem. – Pode até ser fácil para um genuíno trovador ou para um exímio tocador. Mas não se esqueça que sou um simples marinheiro abandonado a bordo deste velho veleiro. – Primo Cantai! Sente saudades das ilhas flageladas? – É óbvio, Kakoi, qualquer crioulo sente falta destas ilhas estimadas. – Da mesma forma, qualquer crioulo pode ser um bom compositor. É só fechar os olhos e expurgar a dor. Deixar o teu coração chorar lágrimas poéticas deriba de água de mar. – Está a querer fazer caçoada do meu acanhamento? – Kred n’ mster90! Apenas estou a tentar encorajá-lo a descobrir o seu lado artístico. É preciso acreditarmos no nosso talento. O crioulo tem um dom magnífico, algo que está adormecido dentro de nós esperando um bater para acordar. Ninguém pode fazer isto por nós. Não deixe de acreditar. – Vai tocando enquanto organizo as ideias. Vou tentar fazer uma cantiga a homenagear a minha Pinha, a minha amada que ficou presa às ladeiras de poeiras vermelhas. 90

Deus me livre.


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Penso nela e o meu coração se destroça. Sinto muita falta da minha moreninha. Saudades da minha singela moça. – Basta cuspirmos o veneno para fora dos nossos peitos. Libertarmos os nossos espíritos. Vomitar a aversão que vive alojada nas nossas almas e transformar as saudades em gotas de lágrimas. Esta nostálgica maresia ajuda-nos a expressar. Este cheiro de mariscos podre nos faz recordar. O baloiçar nina-nos e nos faz desenterrar as mágoas que nos faz tocar e cantar. É só deixar o teu peito carpir. Não ter medo de aceitar ser um mártir e vomitar tudo que vier à alma. Compor é isto, é sofrer em forma de poema. Escrever o quotidiano de um destino cigano. Qual a sensação, Cantai? – Sinto-me bastante aliviado. Como se tivessem tirado algo de muito pesado das minhas costas. Confesso que estou incrédulo e muito emocionado com estas humildes palavras poéticas. É como se tivesse perdido de novo a virgindade. Perder aquele medo miudinho. Cair na vida de promiscuidade e a cada madrugada acordar com uma nova mulher bem abraçadinho. – É muito mais forte, Cantai. A sensação é tal e qual o primeiro ejacular. Por minutos ficamos ali embasbacados e depois voltamos a repetir a dose até voltarmos a kabar91. É como uma grande visarada92 que ascende em arrepios esquisitos e termina com uma grande rebenkada. – Kakoi, esta cantiga lembrou-me das lindas menininhas na txon de Sonsent93 fazendo fretes como as juvitinhas94. De 91 92 93 94

Ejacular. Brio. São Vicente. Cariinhas de carga, marca peugeot.

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cima e para baixo atrás do matar de bittx95, para aquele data de fittx96. Esta ilha vive uma pobreza indecente. Há gentes que não conseguem um pedaço de bolacha para meter num dente. Não há um dia de trabalho para um homem pegar numa padiola e as mulheres criam calos nas polpas de tanto sentarem nas soleira a fazer reolas. Antigamente dava-se café nas casas de mortos, mas hoje pode-se tomar um em qualquer desses becos encobertos. Cafés de pobre ora doce, às vezes amargo. O abandono vivido no norte é simplesmente vergonhoso. Por estas bandas precisa-se de um novo capitão Ambrósio para minimizar a fome deste povo injuriado pelo ócio. – Tens razão, Cantai, a vida dessas juvitinhas é dura. Percorrem todos os cantos desta magnífica cidade na tentativa de matar esta fraqueza que parece não ter cura. Uma pobreza que cresce com bastante velocidade. Hoje Sonsent é uma vitrina de prostituição. Uma montra de pobreza. Uma exposição de profanação. O sagrado templo da fraqueza. Para amar a panela é preciso dar um café. A única forma de garantir o matar de jejum. Esta nódoa miserável não sai nem com muita fé. As meninas esperam o anoitecer para enterrarem os pés nas esquinas, abrir as pernas de forma natural a qualquer um, a forma encontrada de ganhar o sustento destas macaquinhas. – Kakoi! Tenho de te parabenizar por este excelente retrato da nossa podre sociedade. Estas mulheres estão muito deskam95 96

Jejum. Filhos.


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bradas97 e cheias de kabrindade98. Já não respeitam as barbas da cara de um varão. No maior descaramento colocam-lhe um par de chifres com qualquer cabrão. Faz delas uma mulher e elas fazem de si um veado com um couro sujo e um par de chifre bem espetado. Estes seres são bastante mau. Na maior cara de lata sentam-se em qualquer pau. A honra de um homem fica manchada. Alvo de caçoada na rua de morada sem saber o motivo para tal injúria. Enquanto um homem pega na marreta a sua mulher curva-se na putaria, deitada num orquestrado altar com as pernas voltadas para o ar. – Não devia generalizar, Cantai. Não olvida da nossa triste condição. Não pode esquecer que somos marinheiros. – Esta é a nossa grande desvantagem, Kakoi. Passamos dias, meses e anos sem controlo da situação, o que torna as nossas mulheres em presas fáceis desses brajeiros99. Para mim os marinheiros não deviam se apaixonar, devíamos ser todos solteiros. – Não concordo, Cantai, os marujos só precisam ser surdos e cegos. Só assim os nossos relacionamentos podem ser duradouros. Temos de confiar mais nas nossas mulheres e de sermos mais meigos. – Como as mulheres costumam dizer, nós os homens somos bastante corajosos. É preciso muita coragem para se envolver com estas meninas cheias de manobras. Seres que continuam a enganar os homens com sorrisos falsos. 97 98 99

Desavergonhadas. Pouca-vergonha. Indivíduos

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– Sabe como viver sem uma desta desgraçada? Se não sabe? Deixa vir mais uma dessas koladeras100. Vamos aquecer esta madrugada e debelar esta maldita geada.

Parece que o toque dócil e embalador dedilhado pelos dedos deste tocador conseguiu amansar este bravo mar, que agora está mansinho, bastante calminho, como um caldo de azeite parado dentro de uma tigela de esmalte. O vapor avança sobre pequenas vagas, desliza sobre ondulações mansas, sem um único baloiçar. Somos acarinhados por pequenas lufadas de ar que vêem das profundezas deste mar para nos saudar. A penumbra da madrugada falece, o novo dia amanhece com o alaranjado bastante carregado, enquanto o nosso navio vagueia neste vazio, nesta imensidão azul em direcção ao sul, descendo com ligeireza, deixando uma risca negra no céu e uma branca no mar pintando esta rara beleza que fascina o meu eu neste monótono remar. Subitamente o navio começa a sofrer um desvio, parece que estamos a curvar para atrás voltar. Não sei onde estamos e nem para onde vamos, só sei que este mar é imenso e este azul é bastante denso. Não consigo perceber porque estamos a inverter o nosso rumo, algo que não é costume e que causa um certo sobressalto em cima deste mar alto.

– Trago-lhe uma notícia muito boa. – Vamos voltar para Lisboa? 100 Um estilo musical de Cabo Verde


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– Não, vamos para Gâmboa101, praia de mulher boa. – Mas a nossa querida terra ainda não está em guerra? – Pelos vistos ainda não, mas não falta muito, irmão. Apesar de nas ilhas não haver riqueza, o povo parece que decidiu partilhar a pobreza e acabar com a nossa morabeza102. – Digo-lhe com toda a franqueza, o afundar do povo na miséria vai causar uma grande tragédia. – Acabaram de me informar que estamos a navegar rumo ao umbigo de um país amigo, onde vamos receber umas armas para serem transportadas às nossas belas ilhas e que certamente irão fazer várias vítimas. – De quem é esta encomenda? – De grupos de delinquentes que estão a espalhar terror pelas ilhas de contenda. – Coitadas das nossas gentes, vão passar a viver momentos de horror. – Não podemos ficar de braços cruzados, vamos entregar estes desgraçados que colhem a riqueza e semeiam mais pobreza. – Cantai, não me parece uma boa ideia, a não ser que queira apodrecer na cadeia. Se entregarmos esta organização, vão prender toda a tripulação, vou ficar sem o meu sustento, vai ficar sem o seu amor, vou mergulhar no sofrimento e você numa grande dor. – Assim que entrarmos na Baía da nossa bonita Praia Maria, eu vou dar um jeito de fugir. – Mas por agora, continua a fingir para não criar desconfiança, senão vai ser uma grande desgraça. 101 Uma das praias de mar da ilha de Santiago. 102 Hospitalidade.

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Após longas noites a vogar, vários dias a navegar, entramos nesta bela Baía e vejo o farol Maria Pia com aquele olhar pálido, com um aspecto abatido, com aquele vestido branco encardido. É quase meio-dia, mas parece o fim do dia com um cinzento carregado, cor deste miserabilismo desgraçado que alastra de forma galopante e arrepiante. Atracamos o vapor debaixo deste calor sufocante e abrasador que faz brotar gotas de suor pelo corpo inteiro deste pobre marinheiro que está quase a deixar esta árdua vida de mar. Foi exactamente neste lugar que subi naquele barco para emigrar, atrás de uma ilusão que é a maldita emigração. Lembro de ter abraçado este destino como um verdadeiro clandestino. – Kakoi, vim me despedir de si antes de partir. – Irmão, muita coragem, segue a sua viagem. – Vou sentir saudades. – Deixe de solenidades e salte para cima do cais antes que seja tarde demais. – Fique com Deus. – Dê cumprimentos aos seus e não se preocupe comigo. – Cuide-se, meu amigo. – Não precisa se preocupar, sei como escapar neste mar. Disfarço-me no meio dos estivadores, estes varredores de porões de vapores, com estes bafos fortes de aguardente debaixo deste sol quente, fazendo a descarga desta maldita carga que vai aterrorizar e infernizar a vida dos pobres coitados que vivem chicoteados pela maldita pobreza, açoitados pela fraqueza, com os corpos cheios de feridas, marcas das suas árduas vidas. Em cada saco de calabaceira, uma arma de guerra escondida que de forma arruaceira vai roubar a paz antes vivida nestas ladeiras sem eiras nem beiras, cheias


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de poeiras, onde os pobres fincam as suas bandeiras para meterem as suas cabeças, resguardar as suas crias do sol, da chuva e do vento, ficando expostos à escaramuça que é o pão nosso de todos os dias, nestas quebradas de angústia e sofrimento.

– Pobre desta menina, esta coitada está adoentada e bastante franzina. Se continuar assim, vai ter um triste fim. A maldita ingratidão deste amor levado pela emigração está a dar cabo desta rapariga, a mais bela desta espiga, mas que acabou por cair fora de cova, ficando exposta à sova deste sol ardente que queima a pele desta gente. Ela não pode continuar entregue a esta mufineza, mergulhada neste mar de lágrimas de tristeza. Não posso deixar esta criatura definhar na minha frente, desta maneira indecente. Tenho de ajudar esta criatura a libertar-se desta amargura e recuperar o gosto de viver. Não posso deixá-la a padecer, morrendo aos pedaços, e eu aqui sem descruzar os braços. – Nhu Simão, não precisa ter pena de mim. Se ele não me escrever este vai ser o meu fim. Sem o seu amor não me apetece viver, prefiro mil vezes morrer. Pode continuar a sua jornada, o Senhor não pode fazer nada para remediar esta minha situação, por isso deixe-me aqui na minha amofinação. – A tua mãe está a morrer devagarinho, tem passado os dias a chorar num cantinho. O desgosto tem-lhe causado muita dor, mas o teu parece muito maior. São as descortesias do amor, por isso não me deixo levar pelo brando calor que às vezes invade o meu coração após encontros em noites de luar, momentos de pura emoção.

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– Cada qual com a sua mania. Nhu Simão, num acto de covardia continua a fugir do amor para evitar a dor. Eu num acto de valentia deixei-me levar pelo sentimento e agora estou aqui sem energia para suportar este tormento. Amar é uma bênção, sofrer por amor é uma provação e a felicidade é ser abençoada com um abraço apertado do amor, sentir no corpo aquele brando calor depois de ser provada.

O cais está a arder, um calor infernal sai de debaixo do chão e queima a minha alma. Não consigo mexer-me, o calor é anormal, o ar sufoca-me o pulmão e rouba-me a calma. O mau cheiro das águas sujas que desaguam no mar, o odor de merda assada pelo sol quente que vem das ladeiras nuas, o cheiro podre de marisco no ar e de tripa de peixe indecente, as hediondas poças de águas que preenchem os buracos da estrada, nas ladeiras a grande lixarada, este panorama embrulha-me as tripas e deixa-me quase a vomitar, é estranho, mas sinto nojo do meu país e fico sem vontade de respirar o ar quente deste cais. Olho a embarcação com muita comoção e começo a caminhar, a tristeza veio com o afastar deste maldito vapor que me causou tanta dor. – Isto que vou fazer não é certo, mas já não aguento este aperto vendo esta menina abandonada num canto toda acabada. Vou escrever uma cartinha, colocar dentro de uma saquinha, arranjar umas duas daquelas estampilhas que colocam nas cartas com destino a estas ilhas e na minha próxima excursão a esta pequena povoação entregar-lhe-ei a carta tão esperada.


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– Porque, Nhu Simão, está a falar baixinho? – Desculpa-me, estava conversando com o meu botãozinho. – Falou tão baixinho que ele não deve ter escutado nada.

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