Kamikazes, em nome da paixão

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KAMIKAZES, Em nome da paixão ©Fabio Pandora, 2016 ------------------------------------Nova RAIZ (Degas) Rua Vicência Faria Versagi, 400 – cj 111 Sorocaba/SP ------------------------------------Registro nº 342.084 de 02 de fevereiro de 2005 pela Biblioteca Nacional -------------------------------------Esta obra é protegida por lei. Não pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia ou xerocópia, sem prévia autorização do autor. Qualquer transgressão à Lei dos Direitos do Autor será passível de procedimento legal. -------------------------------------Esta é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real é mera coincidência. -------------------------------------Capa por Chanteclair Foto Viktor Hanacek (viktorhanacek.com)

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Fabio Pandora de lla Souza

Kamikazes ...em nome da paixão Uma história sobre torcidas organizadas

1° Edição

Sorocaba/SP Nova Raiz (Degas) 2016

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Kamikazes... ...em nome da paixĂŁo Uma histĂłria sobre torcidas organizadas

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ou

Torcidas Organizadas Tradição brasileira

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ou

Torcidas Organizadas Um cult brasileiro

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Por

Fabio Pandora de lla Souza

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Abraços Bozo e Ariad, Paulo Vitor e Luana, Alessandro Tricolor (Korkoran), Henrique (Pastor), Jaime, Cadu Passos, Tadeu Marco, Maurício Lima, Ricardo “CC” Ferreira, Michele Sampaio, Carlos Capeta, Léo “Mad” da Baixada, Digo Jatobá, Bruna Ferraz, Frank Cambuci e Paulo Vitor, Lito, Tucano, Alessandro Meireles, Tupi, Marcelo “Ameba” Teixeira, Queiroz, Márcio Panda, Fabiano Al-Alam, Carlos Neném, Dinho Paquetá, Gilliard Soares, Alemão Moraes, Leandro Campinho, Paulo “Naná” Maluco, Alex “Pintinho” Cardozo, Paulo Cabeludo, Juliana Brandão, Riquinho, Caio Barbosa, Mabruca, Léo Carvalho, Ricardo Maurício, Rochinha e Cecília, Davidson-Funa, Diogo Nunes, Seu Borzoni, Armando Alcoforado, Ari Queiroz, Fabio Távora, Guga, Márcio “Katy” Santos, Chocolate, Regina Calheiros, Carlos “Azar” Almir, André “Xuí” Gustavo, Zezão, Paulinho, Jennyffer Costa, Amanda Barroso, Anderson Dias, Dudu e Vanda e as crianças, Vagner Santuzzi, Ivan Almeida, Pejota, Magno Lobo, Márcio Marcinho, Waleska (amor de todos), Sérgio Sobral, Coelho, Jorge (Vaz Lobo), Manoel Oliveira, China e todos do IPASE, Jota Luz, Valéria Pinheiro, Gilberto, Anderson Alip, Wellington (FF), Reinaldo Rosa, Jorge (Novo Rey), Frajola, Matozo Lima, Tio Paulo e Bruno, Paulo Renato, Alex Loureiro, Marcelo Farah, Renato Queiroz, Fabio Pacato, Max Pardal, Roberto da Cruz, Jéssica Laurindo, Luciano, Alex Armaroli, Antônio Gonzales, Renato Breves, Meg Mello, Xinxa, Roberto Pereira, Thiago Souza, Ronaldo BNH, Leandro Nascimento, Sérgio Aiub, Alexandre Mendes, Edgard “Bombeiro” Nunes, Gustavo Coelho, Flávio Vaz, Carlos Barbudo, André Villela, Silvio Junior, Pernalonga, Fernanda Britto, Flávio Sinno, Cemica, Ramon Pereira, Márcio Garcia, Alessandro da Marcela, Beto Rocha, Célio Júnior, André Ouro negro, Diego Borzoni, Cícero Bittar, Fabio da Fazenda, Duda, Gordinho, Rádson, Fabio Neg, Ítalo, Marcelo Ramos, Pará, Carlinhos, Kléber, GG, Pezão, Renato (Pinto 2), Tati, Jobim, Adriano Sofridão, Marcelo “Faustão”, Cacau e Renê Paraíba, Passa Fome, Sandro e Fabio (em Friburgo), Leléu e todos que fizeram parte do bonde de alguma forma. Rafael Sene, Aires, Ricardo Santos, Abel, Natane Vidal e Vladimir Rodriguez, Elijan, Erik Fillies, Pinduca, Gláucio Alves, Tia Beth e Carlos (ainda em Teresópolis), Seu Maurício e Família Benedito em Araruama,

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Bruno Simões, Paula Barreira e Fabio Araújo, Tica e Vladimir, Márcio, Rogério e Marcos, Franklin e Marco; Bruno, Saulo, Luizinho, Otho, Cosme e Dom, João do bar, Marcelo Luzitano e todos da Tajuri, Jasen Almeida e Gabriela Romão, Fernando Newlands, Jack Almeida e Flávia Tâmbara, Fabio e Francisca Tâmbara, Vezão, Leandro Lima, Renê(SKTI), Ronaldo Lemos, Samyra Inácio, Valterlúcio e Karla, Leandro Leite, Luciana Gravino, Robson Paiva, Átila Bahiense e Manoel, Wilquis Queres, Seu Arruda, Betinho, Didio, Tiberê e Valéria, Cláudia e Alberto, Anderson Fuly, Othon Ferreira, Inácio, Lino, Paulo Henrique, André Xereca, Roseme e Lidiane e Felipe, Édson Siciliano, Graça Siciliano, Vyvian Siciliano, Michele Siciliano e Alan Siciliano, Marcele Matias, Jana e Jaqueline Jacques, Sharlyne Dias, Ingo Hoffmann, Bárbara e família, Iraguaci, Isley Stephen, Flávio, Jackson Heleno, Márcio Ricci, Vinicius kaiser, Rodrigo Sequela, Marion, Maurício Maia, Maurício Mouzayek, Luciana Dias, Danielle Souza, Douglas Escudero, Júnior e Kátia, Daniel Tâmbara, Suely Duarte, Caio Cesar, Alexandre Asa, Almirzinho, Luiz “Mestre” Gabriel, Levy Junior, Gustavo Gusta, Diogo Portela e Juliana, Junior Cortez e Luana, Lásaro Francisco, André “Redley-Cantão” Luiz, Andrea Rosana, Barata Jonnathan, Andrea Lopes, Toninho Cambuci, Vanessa Mello, Sílvio Santos, Rogério Valverde, Ricardo Costa, Rái Mein, Alan “Mertiço”, Marcelo F., Carlos Henrique, Leandro, Anderson Pé, Ricardo, Márcia e Marcelo e Bruno, Geraldinho, rapazes do Engenho da Rainha: Leo 7, Leonardo Tadeu, Fabrício, Almir, Beto e Bruno, bonde da Mazzetti: Alessandro Gifone e Rodrigo Gifone, Jairo B., Caio Pitta, Carlos Eduardo, Pablo, Magal e Fininho, Juramento Pátria Amada: Rambo, Ivanildo, Maurício Linhares, Fabio Andrade, Alexandro Oliveira, Alex Almeida, Márcio “Papel” Santos, Naldinho, Nael, Cláudio santos, Marcelo Leandro, Beto e Neguito, Juiz de Fora: Elaine Vieira e Rodrigo, Tia Naná e Zé Ulisses, Guilherme e Ana Paula, Charles e Cristiane, Elisangela Torres, Paulinho e Vágner, Fabiana Souza, Aline Goulart e Tiago, Hênio Pereira e Rita Eiterer, talibãs da Cambuci: Rafael Negreiros, Gustavo Moreno, Alexandre “Tim Tones” Henrique, Sandro, Arrudinha, Érick Arruda, Gaspar, Adriano e Wallace.

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As bandas Gangrena Gasosa (Wladimir e Ângelo); Len Out (Bruno e Carlo); Vzyadoq Moe (Degas Steffen); Revolução Alternativa (Alê Andrade); Os Casanovas (Rober e Túlio).

Agradecimentos Pai, Mãe, Andréa, Carlos Jasmim, Edgard “Degas” Junior e Edson Rabello (grande responsa).

Saudades Seu Armando Giesta, Jorge Ribeiro, Marcos Médio, Charles, Loucão, Nem, Ismar, Chico, Julho César Gomes Campos, Márcio Caio, Valvino, Fabio Metaleiro e Soró.

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Dedicado a Jorge Ricardo Ribeiro. Porra... Que saudade de vocĂŞ! Outras tantas saudades: LoucĂŁo e Nem.

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Aconselho a leitura deste livro, com a devida trilha sonora:

1.

Direitos humanos – Cólera

2.

Medo – Cólera

3.

Sobre amanhã – De Falla

4.

Se o futuro voltasse – Detrito Federal

5.

Armas pra lutar – Titãs

6.

Hoje – Camisa de Vênus

7.

Paris, Paris – Kid Abelha

8.

Luta – Gueto

9.

Nossos erros – Vander Taffo

10.

Passageiro – Vitor Ramil

11.

O futebol – Chico Buarque

12.

Humanidade – Cólera

13.

Desordem – Titãs

14.

O país do futebol – Ratos de Porão

15.

Telhados de Paris – Nei Lisboa

16.

Archote – Eterno Grito

17.

Selvagem? – Paralamas do Sucesso

18.

Passarim – Tom Jobim

19.

Expansão – Vzyadoq Moe

20.

Sobre as pernas – Akira S e as Garotas que erraram

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Nota do autor Bem... O que dizer depois de dois tiros, uma facada, um anel de titânio no fêmur direito, várias próteses de aço e parafusos espalhados pelo corpo e exatamente 46 pontos só na região da cabeça? Esta é uma faceta da minha história neste livro, que está completamente presente em cada ato e em cada fato depois de dois anos como diretor de Relações Públicas e Assessor de Imprensa de uma das maiores Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro: O G.R.S.C.T.O. Young Flu do Fluminense F.C. Verdadeiro, maldoso e principalmente inaugural. O meu primeiro livro reúne sob o signo de uma Torcida fictícia, a representação da melhor de todas as miríades de acontecimentos bizarros já ocorridos na história de todas as Torcidas mais expressivas do Brasil. O fato da rivalidade ser incomensurável no universo todo peculiar das Torcidas Organizadas, me fez optar por esta ferramenta neutral: Uma Torcida fictícia. Propositalmente o formato da obra busca quebrar o ritmo de tudo que já foi publicado até hoje sobre o tema. Se buscarmos algo relativo a Torcidas Organizadas, o objetivo parece ser alcançar o patamar de uma pesquisa que poderia ser feita por qualquer um dos muitos órgãos especializados em... Números. Sempre fica evidente que o único intento é traçar o perfil dos membros das Organizadas, fazendo uso de uma linguagem acadêmica que se debate, agoniza, tentando a todo custo – e como objetivo único - encontrar estereótipos técnicos entre um monte de humanos tão diferentes. E as suas histórias? Seus amores? Suas dores? Onde estão guardadas? A história de quatro amigos que sofrem (mas nem tanto) e se “miscigenam” à sociedade – tanto no tocante à classe social quanto à etnia – é apaixonável e verdadeira, principalmente para mim que vivenciei tudo isso durante a minha experiência. É uma saga voltada a um dos poucos campos da nossa sociedade, em que a supremacia financeira de tipos elitizados não tem valor, não conquista seguidores e não comanda opiniões. O universo das Torcidas Organizadas é um mundo de guerreiros, tiranos, déspotas elevados ao quadrado, iconoclastas e muitos outros tipos que se recusam a viver o “mundo novo”. Este “mundo novo” tão divulgado, mas que nunca chega a eles.

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Um tal “mundo novo” que só é visto pela TV. Numa lógica simples como toda a linguagem que eu usei no livro, todos os meus comuns das Organizadas afirmam: “Aquilo que não se cristaliza na minha frente, pode não ser real. Esta é a era da publicidade. Jamais nos esqueçamos disso!” Não sou fã de estrangeirismos, principalmente num mundo como o das Torcidas Organizadas, onde somos precursores e só encontramos pares adequados na América do Sul; mas, devo admitir que enxergo certa lógica na analogia criada por um amigo que leu “Kamikazes” e disse ser este o “Trainspotting brasileiro”. Sou apaixonado por toda a obra, mas tive que escolher um capítulo na saga dos quatro amigos para usar como resumo. O capítulo escolhido é “A diferença entre o sucesso e o fracasso”, que descreve os aspectos de uma armadilha feita por uma Torcida num dia de clássico, com direito a mortes, sangue, remorso, vingança e um enorme “etc”. Tratei da linguagem com uma técnica - que apesar de aparentemente rápida demais, tem o seu propósito – o mais próxima da linguagem a jato e cheia de ritmos da TV, que busca um “crescendo” e a “explosão” do ápice a todo o momento. Calculadamente – mesmo que correndo o risco de estar usando a fórmula errada – busquei a economia, o cuidado ante a sedução do cientificismo e suas possibilidades infinitamente enfadonhas frente a um público totalmente distante de quaisquer letras. Busquei esta agilidade nos acontecimentos, numa tentativa sincera de prender o leitor desta obra, já tão acostumado a fugir das revistas e livros, como o diabo da cruz. Resumindo a ópera: É por saber que o ghost writer tem família para sustentar, o motivo desta obra chegar até vocês. E como diria Iggy Pop: “Cause I've a lust for life”.

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Índice Capítulo 1 – página 18 Livro do Gênese Capítulo 2 – página 36 A Torcida Organizada é a agência reguladora dos clubes e dos jogadores Capítulo 3 – página 50 Perfis Capítulo 4 – página 66 Mergulho na alma de um homem Capítulo 5 – página 83 Minhas cicatrizes Capítulo 6 – página 104 Uma epopeia ao contrário

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Capítulo 7 – página 120 Dentro da sede, dentro do clube Capítulo 8 – página 130 Domingo eu vou ao Maracanã Capítulo 9 – página 149 A ocasião... Faz o desbocado Capítulo 10 – página 181 A diferença entre o sucesso e o fracasso Capítulo 11 – página 252 A viagem dos seus sonhos Capítulo 12 – página 307 Um estranho em sua casa Capítulo 13 – página 316 A rodada final

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“Ironicamente, a maior parte das pessoas não vale grande coisa; e, no entanto, cada ser humano é um milagre sem precedentes. Tenta-se tratá-los como os milagres que são, ao mesmo tempo em que se tenta proteger-se dos desastres em que se transformaram..”. James Baldwin

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CapĂ­tulo 1

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Livro do Gênese

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“Eu sonho com o início a lembrança mais saudosa o mais antigo dos Pais Eu canto sobre o início E o nascer das trevas” Livro de Nod

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– Ó... Psiu, psiu! Atenção geral - lutava desesperadamente para obter a atenção de todos, o líder nato conhecido apenas como “Zezé”. – Nós vamos descer do ônibus e seremos recepcionados por um monte de merda, quero dizer, PMs. Todos riram a valer. – Vamos tentar na medida do possível, não responder às provocações deles. Pelo menos até a gente entrar no estádio. – Tá falado Zezé, Valeu... - Responderam todos, organizando uma fila espontaneamente, visando não dar motivos para que a Polícia de São Paulo manifestasse com violência a sua opinião sobre os cariocas. Saindo do ônibus, todos foram recebidos por um certo Cabo Silva. Um negro de quase dois metros de altura, que fez absoluta questão de tornar clara a sua posição quanto à presença dos cariocas. – Aê cariocada de merrrrrrda! Aqui é São Paulo. Não é aquele chiqueiro que vocês chamam de cidade maravilhosa não, porra! Não quero ouvir dizer que algum de vocês peidou fora do banheiro... - Enquanto isso, dois membros da Torcida conversavam animadamente, sem dar muita importância ao que o Cabo Silva dizia. Um erro quase fatal. Enfurecido, o tal Cabo Silva interrompeu o seu discurso e partiu em direção aos dois. – Aqui ó filhos das putas. Eu tô falando é pra vocês ouvirem. Prestar muita atenção entenderam? – Que isso cara? Para ai! - Tentavam com estes apelos inúteis, impedir a ação do PM que consistia em usar o cassetete como se fosse uma espada na altura das costelas dos dois. – Cara? Toma um presente que vai te ensinar a me chamar de Senhor. - E então, o Cabo Silva aplicou um golpe muito violento com o seu cassetete no joelho do Mosca, um dos dois rapazes que conversavam. A partir deste momento, Mosca não foi mais capaz

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de se locomover sozinho. Os primeiros focos de revolta começaram a eclodir. A custa de muito sacrifício, e até contrariando a sua natureza, Zezé conseguiu sufocar a reação do pessoal. – Calma porra! A gente tem que entrar. A gente tem que entrar! repetia Zezé insanamente. Ele sabia que a torcida precisava estar dentro do estádio quando o time estivesse pisando no gramado. Afinal, eles haviam viajado para isso. Logo o Cabo Silva voltou ao seu discurso. – Isso é só o começo. Comigo não tem essa de disciplina não. Eu vou “metelhe” a porrada em todo mundo. Primeiro nos engraçadinhos, depois nos sonsos. E assim o pessoal foi entrando no estádio de um certo clube paulistano. Cada um que passava pela roleta, recebia um violento tapa no pescoço, seguido de um comentário sarcástico do Cabo Silva. – Sejam bem-vindos a São Paulo... - E seguia-se uma sequência infinita de gargalhadas. Assim o PM desenvolvia a sua perversidade aplicando mais golpes sobre golpes, chegando a se engasgar de tanto rir dos seus atos violentos. E o bigode dele estava sujo de saliva, após uma das muitas gargalhadas seguidas daquela tosse típica dos altíssimos consumidores de tabaco. Um cara repulsivo... Sem muitos subsídios para desencadear uma reação, a Torcida Organizada se instalou nas arquibancadas tomada pela revolta com o tratamento que havia recebido. Na verdade, nada que o começo do jogo não fizesse esquecer. Afinal, aquele era o comportamento padrão da Polícia Militar em todo o país e eles estavam acostumados. Normal...

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O estádio estava lotado e o Deportivo fez o primeiro gol do jogo aos oito minutos, incendiando os trezentos torcedores que viajaram até São Paulo para assistir à partida. A partir daí, a torcida não parou um minuto de cantar. Na parte de baixo das arquibancadas, mais precisamente no nível do campo, estava o Cabo Silva. Ao perceber a manifestação cada vez mais entusiasmada da Torcida Organizada carioca, o policial virou-se na direção da arquibancada em que se encontravam os torcedores do clube carioca, e, com o dedo indicador, fez um sinal pedindo silêncio para as arquibancadas. Quase automaticamente, um copo de 500 ml, lotado de urina, foi lançado em direção ao Cabo Silva acertando-o em cheio no rosto e cobrindo toda a sua farda. Esta atitude, não poderia gerar outra coisa, senão uma desmoralização coletiva do PM tipo bravo, levando torcedores do time paulistano e até outros PMs às gargalhadas. A reação do Cabo Silva não tardou. Ao término do primeiro tempo, um grupo de duzentos policiais se posicionou na divisa das torcidas e começou a agredir a Torcida Organizada carioca, que não se acovardou e revidou. Muitos feridos de ambos os lados. Apesar da superioridade dos “instrumentos de manutenção da ordem” utilizados pela polícia, o número de feridos era parecido. O Zezé fugiu de todos os confrontos apenas para procurar o Cabo Silva. Num balé alucinante, ele desviava dos cassetetes se abaixando ou pulando sobre os golpes que visavam suas pernas. Até que Zezé viu o Cabo Silva batendo sem piedade em alguém que já estava caído. Sorrateiramente, Zezé chegou a ele e pegou uma maceta de surdo que estava no chão, bem próxima ao massacre que o maldito PM promovia. Com a mão esquerda, ele deu uma cutucada nas costas do Cabo Silva. Quando este se virou, Zezé soltou uma violentíssima “macetada” no rosto do policial, que antes de cair já tinha desmaiado. Ao tocar no chão, o sangue - provavelmente do nariz quebrado - produziu uma poça. Constatada a queda do mal maior, Zezé soltou um grito

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bestial e começou a participar entusiasticamente da briga..., que só terminou com a intervenção de dirigentes do time paulistano e do Deportivo. Os jornais de todo o país aproveitaram o incidente fatídico para criar aquele certo apelo dramático que eles tanto necessitam para impulsionar os negócios: “Kamikazes sim... Em nome da paixão” era a manchete. A foto do Zezé ensanguentado estava em todas as primeiras páginas dos jornais, esportivos ou não. Ele tinha uma expressão de ódio e loucura, e parecia tentar exibir o escudo da camisa. Era como se ele estivesse demonstrando a fonte de tanto orgulho e resistência. O ano é 1974. De acordo com o Seu Leví, torcedor fanático do Deportivo e o mais expressivo presidente de Torcidas Organizadas - e eterno presidente da Kamikazes -, as Torcidas foram fundadas com o intento de criar um certo sincronismo entre as ações do time em campo e a torcida na arquibancada. De acordo com seu próprio depoimento, “não havia a menor graça nem beleza naquela ovação caótica, onde cada um gritava algo diferente”. “Criava-se um murmúrio muito alto que não ia para um lugar nem para o outro”, como até hoje se recorda Seu Leví. O Seu Leví, no começo, via a rapaziada se reunindo, conversando perto do portão dezoito do Maracanã, onde as primeiras intenções de se formar uma Torcida Organizada começavam a se esboçar. A primeira camisa da Kamikazes, foi feita por um torcedor do Cruzado chamado “Ernesto”. Era uma camisa de lã. O Ernesto foi o primeiro a fundar uma Torcida Organizada. Nessa época de encontro do “óvulo com o esperma”, Seu Leví não era muito engajado no movimento. Ele preferia ser mais um observador. Paulista, sim, era um membro genuinamente ativo no mundo das torcidas daquela época, e, o primeiro a fundar uma Torcida Organizada do Deportivo. O Seu Leví teve no seu início de torcedor de Organizada, uma curta e suave passagem pela FIEL DEPORTIVO, mas por motivo de

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preferência pessoal, ele não durou muito por ali. “Tinha muito veado”, ele dizia. Nesta época, quando surgiu a primeira Torcida Organizada, automaticamente dezenas de outras surgiram também. Esta explosão contribuiu para outra etapa de caos na organização do ato de torcer, já que todas as Torcidas queriam impor os seus gritos e cantos como principais. Aos poucos, os Presidentes das Torcidas mais carismáticas, desenvolveram alianças de modo a absorver as Torcidas menos expressivas, até que chegássemos ao número de cinco Torcidas oficiais do Deportivo. Nessa época, o Seu Leví, já um membro ativo da Kamikazes, conheceu o “Gino” que estava assumindo a Torcida Organizada no lugar do Leléu e do Róbson (fundadores da Torcida), que por sua vez haviam entrado no lugar do Armandão – também fundador e que estava de partida para morar em São Paulo. Gino fez o convite ao Seu Leví para ingressar na diretoria da Kamikazes por vê-lo mal aproveitado após a sua saída da FIEL DEPORTIVO. Seu Leví aceitou o convite e começou a participar da Kamikazes, mas muito sem compromisso. A Kamikazes era muito pequena nesta época. Seu patrimônio nesta época era composto por dois repiques, um surdo e uma caixa. Como na Kamikazes havia espaço para o desenvolvimento de um trabalho, o Seu Leví começou a criar, produzir e ter ideias explorando o seu lado profissional, o qual já flertava com a Propaganda e o Marketing. Após algumas noites queimando a cabeça para descobrir um diferencial que desse um impulso na Torcida e a destacasse, o Seu Leví criou as primeiras bandeiras de Torcida personalizadas da História. A Kamikazes foi a primeira Torcida a usar o seu próprio escudo, e, não o do clube, como um símbolo da independência da politicagem interna. Não satisfeito com o escudo apenas, Seu Leví percebeu a necessidade de desenvolver também uma letra diferenciada, que também pudesse somar ao conjunto de características originais que a Torcida, sob a sua batuta, começava a adotar. Por incrível que pareça, o responsável pelo

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desenvolvimento da tipologia da Kamikazes, foi um torcedor fanático do CLUBE DE REGATAS OLÍMPICO: O maior rival do Deportivo. Um rompimento interno, entre os diretores do Deportivo há muito tempo, acabou ocasionando a fundação do Olímpico. O torcedor do rival e amigo convenceu o Seu Leví da sua capacidade criativa e a partir daí criaram uma parceria. – Leví... Vocês escolheram um nome ligado a uma característica tipicamente japonesa. Então vamos fazer algo que se aproxime ao máximo do formato das letras do alfabeto deles. - E assim, foi criada aquela que é uma das nossas marcas até hoje. Esta originalidade fez efeito. A Kamikazes ganhou fama rápido e não tardou a assumir a liderança no ranking da preferência dos torcedores do Deportivo. Uniformes diferentes, bandeiras diferentes... Aí a Kamikazes levantou-se rápido. Ganhou nome. Chegou ao primeiro lugar na preferência e elevou o seu tímido quinto lugar, para o primeiro lugar em número de sócios. Graças ao Marketing do Seu Leví e a criação de hinos que eram executados de acordo com os acontecimentos em campo. Finalmente, a tão incômoda falta de interatividade começava a ser eliminada. A partir daí, o que estava meio nebuloso, acabou se concretizando. A Torcida Organizada se tornara um todo delicioso vício para o Seu Leví. Entre uma boa ideia e outra, o Seu Leví, usando e abusando da autonomia que o Gino lhe conferia, resolveu promover a convergência entre as torcidas rivais, visando dar fim às brigas que já começavam a surgir como um possível problema. Era a natureza do Seu Leví não se acomodar. Depois que viu a Kamikazes do seu modo nas arquibancadas, ele partiu para o desafio de organizar o panorama externo. Após algumas reuniões entre todos os presidentes das torcidas rivais, a iniciativa foi aprovada e as brigas cessaram. Mais uma vez, Seu Leví havia conseguido êxito. Infelizmente, um problema que mesmo o aguçado faro do Seu Leví não conseguiu prever, se instalou para desabilitar a

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brilhante iniciativa do “Centro das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro”, que era como o Seu Leví pretendia batizar esta iniciativa. Como sempre, a polícia e as autoridades entraram no meio, querendo a todo custo reivindicar a autoria do projeto. Eles buscavam pegar uma carona na brilhante iniciativa do Seu Leví, que por sua vez, não dava a mínima para promoção pessoal. Os líderes das Torcidas Organizadas de todos os clubes acabaram se tornando bons amigos. Todos se conheciam há trinta anos. Almoçavam juntos, jantavam juntos, havia brincadeiras diversas como “amigo oculto” no Maracanã, havia frequência nas festas dos filhos uns dos outros, comemoração do dia dos Pais, dia das Mães, etc. Os brigões existiam, mas em número reduzido. As brigas aconteciam basicamente por excesso de cerveja, e, já que a convivência fora estreitada pela Associação, a paz sempre era negociada, alcançada e comemorada com mais cervejas e abraços. Sempre que um possível conflito tinha um desfecho positivo, claro. Bastou que as pessoas sérias da Associação percebessem a aproximação da polícia e dos políticos, para que a iniciativa fosse abandonada. O descrédito tomou conta de todos - como não poderia deixar de ser - e o panorama de violência voltou a se desenvolver. Paulatinamente... Tudo voltou a ser o mesmo. Carniceiros oportunistas vivem do fruto do esforço de outros animais. Não há como tolerar a presença deles por perto. Será que as coisas estariam como estão hoje, se não fosse a intervenção destas... “Autoridades” com seus objetivos sujos? Exatamente nesta época de transformações, um inquietante fenômeno estava sendo observado. Apesar dos seus méritos indiscutíveis como Presidente dos Kamikazes, Gino começava a traficar drogas dentro da Torcida Organizada, além de consumi-las. O irmão do Armandão, conhecido por “Leí Sete”, foi uma das vítimas. Viciou-se e a partir daí, um movimento foi formado com o intuito de depor Gino do cargo de Presidente da Kamikazes. A este grupo de reguladores, foi dado o nome de

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Conselho. O Conselho se tornou o responsável por certas intervenções, principalmente quando certas crises de egolatria tornavam certos presidentes e diretores mais perigosos que o tolerável. O Conselho depôs Gino e elegeu o Seu Leví Presidente por unanimidade. Um golpe seguindo a tradição do nosso país... O Seu Leví não tolerava as drogas. Quando assumiu a Torcida, proibiu o uso de morteiros também, por serem o sêmen de muitas confusões. Muitos estudantes de Direito, Medicina, e outros tantos que seguiam a carreira Militar, eram membros da Kamikazes. Apesar de toda a pompa das suas carreiras, era na Kamikazes que eles permitiam que seus instintos bestiais aflorassem. Mesmo assim, o Seu Leví fazia vista grossa e só abria a boca para falar bem destes componentes. O Seu Leví se orgulhava de ter um grupo tão bem sucedido sob o seu comando. Ele fazia questão de esquecer o lado bárbaro deles e só exaltava as suas qualidades. Ele sempre repetia que até 1980 ninguém havia se desviado na vida. O fundador número um, Paulo César Pedruco, era tido por Seu Leví como “Maluquinho”. Não era viciado, nem assassino, mas era louco pelo Deportivo. Era estudante de Engenharia, mas não perdia uma oportunidade de abandonar tudo para acompanhar o Deportivo pelo Brasil. Pegava as joias da avó e as colocava no “prego” para poder acompanhar o time. Na volta das viagens, ele se virava como podia para encontrar uma maneira de conseguir o dinheiro para resgatar as joias. Ele pensava que a sua avó de nada sabia, mas, apesar de todo o cuidado que ele tomava, ela tinha conhecimento de tudo. E se divertia com as trapalhadas do neto, e, também achava graça dos malabarismos financeiros que ele fazia uso, para combinar a paixão com os compromissos. Paulo César Pedruco morreu num acidente automobilístico no centro do Méier. Ele pilotava um “Dodge Dart”. Quando acelerava, o Dodge levantava a parte dianteira de tão potente. Numa manobra mais ousada, ele perdeu o controle do

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carro e colidiu em alta velocidade com um monumento que dividia ruas no centro do Méier e teve morte instantânea. As primeiras reuniões da Kamikazes aconteciam na casa da tia do Armandão, ou, no porão da casa de Pedruco no Riachuelo. As tias do Armandão começaram a fazer as primeiras camisas da Kamikazes em série. As camisas ainda eram bordadas à mão. Aliás, todo o material era artesanal. As camisas eram encomendadas em Petrópolis e depois moldadas no formato idealizado para a Torcida. Eram cortadas uma a uma e acrescidas de bordados pela mãe do Armandão. Ela também costurava as letras - que eram recortadas uma a uma - nas costas e fazia as bandeiras também, enquanto o Seu Leví as pintava. Remontam desta época, as primeiras manifestações contra a Diretoria do Clube. Numa ocasião de grande repercussão, tivemos a primeira participação de Zezé. Tido por todos como louco, ninguém sabia de onde o Zezé vinha e nem para aonde ia. Ninguém sabia o seu endereço e sempre trajava as mesmas roupas. Quando o Clube resolveu por questões financeiras, vender o craque “Cotoco” para o exterior, Zezé entrou em cena. Um grupo formado por Armandão, Seu Leví (Armandinho na época), Gino e Zezé entrou no Clube com um caixão e um boneco dentro, que representava Rafael de Almeida Magalhães, Presidente do Deportivo na época e responsável pela venda do craque. Pelo caminho o pessoal indagava: – Ué... Quem morreu? E eles respondiam: – Puta que pariu! Morreu Rafael de Almeida Magalhães! E o pessoal ria à beça. O “cortejo” adentrou o Clube sob o olhar incrédulo de funcionários até alcançar a piscina - repleta de sócios - e jogou o caixão lá dentro estabelecendo o pânico no público pouco afeito a tais manifestações, que começavam, na verdade, a serem

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inauguradas. “Olhem o que aconteceu com o nosso Presidente!”, gritava Zezé para todos com cara de choro. Um artista. Graças a esta iniciativa do Zezé e de todos os outros originais Kamikazes, a Torcida conseguiu obter direito de participação nas decisões internas e externas do clube. O Zezé era um capítulo à parte. Uma torcida calada mudava quando o Zezé chegava às arquibancadas. Quando ele pegava no surdo, todos saiam debaixo. O Zezé não era apenas digno do honroso título de “Leão de arquibancada”, porque segundo o Seu Leví, o Zezé era o maior de todos eles. Não foi Presidente de nenhuma torcida. Transitou por todas elas com o objetivo de aumentar a popularidade das menos expressivas. Assim ele migrava de uma torcida para outra de acordo com o seu julgamento. Uma vez, numa parada antes de Campos - cidade do interior do Rio -, o gerente de um restaurante (cansado de tomar prejuízo com as incômodas “visitas” das torcidas) mudou o estoque de mercadorias, mesmo as que deveriam permanecer expostas na loja, para um lugar que ele julgava secreto, visando impossibilitar o furto das mesmas. A rapaziada do ônibus da Torcida entrou no restaurante e comeu. Não roubaram - porque não havia o que roubar, mas também não pagaram. Enquanto isso, o Zezé investigou cada porta de cada depósito até achar onde estavam as mercadorias. Resultado? Por uma fresta de uma das portas ele viu as mercadorias, arrombou a porta e roubou tudo que lá estava, carregando as mercadorias para o ônibus da Torcida. Numa outra ocasião o ônibus quebrou no meio do caminho de volta da cidade do aço. Era necessário que o socorro fosse solicitado. Seria algo demorado enfim. O lugar era exatamente no meio do nada. O Zezé saiu com uma turma para explorar a região em busca de algo para beber. Não tinha bar, não

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tinha nada. Só havia uma favela. Na entrada da favela, ele encontrou um matuto para quem perguntou onde havia um botequim aberto. O cara indicou o local, mas avisou a ele que o bar estava fechado, porque já eram três horas e o botequim fechava as duas. Mais uma vez o Zezé chegou e colocou o pé na porta roubando tudo com a sua gangue. O rompimento entre o Seu Leví e Zezé, se deu pelo comportamento violento e covarde de Zezé em determinadas ocasiões. A “gota d’água que transbordou o copo” caiu num jogo entre o Deportivo e o América, em que um garoto de quatorze anos entrou com a camisa do time adversário equivocadamente na parte da arquibancada do Deportivo. Zezé acompanhou o garoto até encontrar uma posição que julgou adequada para agredi-lo. Com um violento chute, Zezé quebrou a perna direita do menino na altura do fêmur. Este gesto foi à senha para que Seu Leví determinasse a exclusão de Zezé da Kamikazes. O contato entre os integrantes se dava através de recados deixados na casa do presidente da Torcida ou dos diretores. Suas casas se transformavam em verdadeiras centrais de recados. Todos os dias os integrantes se encontravam. Seus lugares favoritos eram basicamente a Praça Sans Peña e o bar em frente ao portão 18 do Maracanã. O Seu Leví chegou a participar de um programa de TV na década de oitenta, tamanha era a sua popularidade. Defendeu não só a Kamikazes, mas também o futebol brasileiro. Naquela época, ele já previa que o nosso presente seria comprometido pela falência dos clubes e o enriquecimento das federações. O Seu Leví tinha ótimas conexões. Ele dizia que havia um paralelo entre a situação dos clubes e a situação do povo. Hoje, as federações são ricas e os clubes miseráveis, assim como os governos são ricos e o povo é miserável.

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No começo das Torcidas Organizadas, o relacionamento entre as mesmas e as diretorias dos clubes, praticamente inexistia. Para se ter acesso às dependências do Clube era um inferno. Havia um candidato à Presidência chamado “Francisco Horta”, que na época era conselheiro do Clube. Ele adorava barrar a todos. Só em 1976 é que o Clube teve um Presidente democrata de fato. O Sr. Horta, ainda no papel de diretor, só recebia a Torcida uma vez por ano e amotinava todo mundo no salão nobre. O presidente democrata se chamava Sílvio Vasconcellos e era tido por todos como um cara aberto, que recebia as torcidas, mas ainda não era o suficiente. Contrariados com o pouco acesso e atenção que as Torcidas recebiam o Seu Leví e o Gino- antes de ter sido literalmente expulso - foram ao Clube falar com o Sílvio Vasconcellos e, quando receberam o sinal verde para ingressar nas dependências do Clube, Gino e o Seu Leví foram direto avisá-lo que as torcidas estavam insatisfeitas e que iriam montar uma chapa para concorrer às eleições para Presidente do Clube. E fizeram o comunicado em tom de ameaça: “Nós vamos montar uma chapa. Pela primeira vez as Torcidas Organizadas unidas vão eleger o seu Presidente”. O Sr. Horta, o candidato da situação, franco favorito, não se cansava de ridicularizar a iniciativa das torcidas. “É barbada”, ele repetia incessantemente. A Torcida unida manteve-se no seu rumo. Seu Leví mandou fazer camisas, faixas, bandeiras e panfletos. Tudo por conta própria. Eles passaram a ir ao clube todos os dias parando cada deportivense sócio e perguntando a cada um: “Você votaria se nós fôssemos buscá-lo e depois te levássemos em casa?”. A maioria, por falta de crença, dizia que sim. Os endereços eram anotados minuciosamente, com pontos de referência e tudo mais que fosse necessário. E enfatizavam: “Nós vamos te buscar em casa! Nós vamos te buscar em casa!”.

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No dia da eleição os integrantes da chapa da Torcida acordaram às cinco da manhã e tomaram conta da Rua do Clube. Ornamentaram a rua toda e colocaram oito Kombis indo à casa dos sócios que haviam disponibilizado seus endereços. Prospectos à vontade. E as Kombis nas portas dos outros. – Não posso ir, eu tenho um batizado. - Alegavam os sócios tentando escapar da peculiar situação. – Mas o Senhor deu a sua palavra! Vamos! Vamos! Ao término da apuração, no final do dia, o resultado: A Torcida Organizada vencera as eleições. Automaticamente a Diretoria e os conselheiros chamaram os vitoriosos para negociar. Neste acerto, entre outras coisas, ficou acordado que a Diretoria de Patrimônio seria dada a Helena Lacerda (presidente da FIEL DEPORTIVO) e cada torcida teria direito a um espaço cativo dentro do Clube. A Torcida Organizada passou a ter acesso e trânsito dentro do Clube, um porta voz foi solicitado pelo ainda Presidente, de modo a agilizar certas negociações mais delicadas etc... Todos os representantes da chapa das Torcidas Organizadas concordaram com os termos. Afinal, todos tinham suas vidas e a única intenção era dar uma boa lição no Sr. Horta. Finalmente a Torcida começou a opinar da escalação do time à escolha do técnico. Na década de setenta, com a promoção de juniores que tinham acabado de conquistar o título de campeões estaduais na sua categoria - eles viriam a ser grandes campeões mais a frente -, foi que as primeiras manifestações como pichações nos muros da sede do clube e declarações de desagrado feitas na mídia tiveram início. Torcedor não tem muita paciência com este papo de “aguardar a safra amadurecer”. Quer resultados imediatos e os meninos não andavam se saindo muito bem. No final prevaleceram as vontades de ambos, já que a diretoria sugeriu uma mescla de novos e consagrados talentos. Uma solução diplomática enfim...

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As brigas começaram a se multiplicar, quando a Organizada Jovem do CLUBE DE REGATAS OLÍMPICO teve a infeliz ideia de introduzir lutadores de boxe tailandês no corpo do movimento das organizadas. Esta atitude gerou uma mudança absoluta no comportamento de todas as torcidas. Todos foram obrigados a mudar junto. Se não fosse para apreciar o prazer da luta, seria para se defender. Mas isso é outra história...

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CapĂ­tulo 2

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30 anos depois...

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A Torcida Organizada ĂŠ a agĂŞncia reguladora dos jogadores e Clubes

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Bem, para melhor entendermos o nicho de todos nós, proponho um apanhado mais abrangente do contexto. No Rio de Janeiro, quatro grandes clubes compõem o cenário do futebol da cidade. Todos estes clubes são centenários e bastante tradicionais. A seguir apresentarei um resumo sobre estes clubes e um pouco de suas histórias, sendo:

DEPORTIVO FOOTBALL CLUB Um dos Clubes que mais concentraram a elite do país desde a sua fundação. O clube foi fundado em 21 de julho de 1902, por um estudante que voltara da Suíça deslumbrado com o esporte, chamado Oscar Cox, que também se tornou o primeiro Presidente do Clube. A preferência quanto à escolha do nome era quase unânime: Rio Football. Após uma pesquisa, os fundadores do Clube constataram que já havia um “Rio Football” na cidade. Desta forma, se viram obrigados a se lançar em uma nova etapa de pesquisas para que um novo nome pudesse ser imediatamente escolhido. Finalmente no dia 26 de julho de 1902, o nome DEPORTIVO foi escolhido. O estatuto do Clube era algo tão imbecil e risível quanto o comportamento da própria elite ao longo da história da humanidade. Sócios eram expulsos por falta de pagamento. Havia uma comissão que avaliava todos que pretendiam se associar ao clube, com a intenção de impedir o ingresso no corpo de sócios de pessoas que fossem portadoras de quaisquer deficiências físicas. Eles julgavam que tais defeitos poderiam gerar constrangimentos no meio social. Meu Deus... No seu primeiro jogo oficial, o Deportivo venceu o Rio Football pelo placar de 8 x 0 no dia 9 de outubro de 1902. O Deportivo começou uma mobilização para fundar uma entidade que gerenciasse os assuntos de um possível campeonato. Daí surgiu a Liga Metropolitana de Football, fundada em 8 de julho de 1905. Em 3 de maio de 1906 teve início o primeiro campeonato carioca, onde o Deportivo sagrou-se campeão. Em 1911, uma ruptura no elenco, fez com que nove titulares fossem para o CLUBE DE REGATAS OLÍMPICO. Assim foi formado o primeiro time de futebol do Olímpico - o que para muitos amantes do

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esporte, foi a maior das tragédias perpetradas no mundo dos esportes, cujos ecos podemos ouvir até hoje. A reboque desta debandada geral, foi criada uma das torcidas mais enjoadas do futebol brasileiro.

CLUBE DE REGATAS DO OLÍMPICO O início do Olímpico primeiro se deu nas águas, em 15 de novembro de 1895. Seu objetivo era a prática do remo e a princípio o seu nome era Grupo do Olímpico. Os esportes terrestres foram ganhando atenção paulatinamente, até que em 1902 o Departamento Terrestre foi inaugurado. A verdade é que o OLÍMPICO só começou a existir em terra a partir da chegada dos cavalheiros advindos do DEPORTIVO. Em 24 de novembro de 1911, foi criado o Departamento de Futebol. O nascimento do OLÍMPICO se deu no dia 17 de novembro de 1895, mas, este foi providencialmente adiado visando o aproveitamento de certo feriado. Portanto, a fundação oficial do Clube é 15 de novembro. O capitão da equipe do DEPORTIVO, responsável pela debandada de quase todo o time oficial do Clube para o OLÍMPICO, desejava com esta atitude formar um novo Clube. Alberto Borgeth escolheu o OLÍMPICO, porque este ainda não praticava o futebol, o que daria no mesmo que criar um novo clube. As primeiras cores do OLÍMPICO foram o azul e o amarelo; que se revelaram muito frágeis frente ao sol muito forte do Rio e à salinidade das águas da Baía de Guanabara. O preto já estava lá de alguma forma (na bandeira original estava entre os remos), e, portanto, bastou acrescentar o vermelho dos flamingos. No dia 03 de maio de 1912, o OLÍMPICO fez o seu primeiro jogo oficial no campeonato carioca. O OLÍMPICO venceu por 16 x 2 do MANGUEIRA. Foi assim que tudo começou para o OLÍMPICO.

CLUBE DE REGATAS MARÍTIMO No dia 21 de agosto de 1898, membros da colônia portuguesa do Rio, fundaram o MARÍTIMO. Após a superação de um grande volume de divergências - que como já vimos eram costumeiras -, o clube

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passou anos tentando se reestruturar sobre os escombros de tanta intolerância. Em 26 de novembro de 1915, o MARÍTIMO voltou com força total anunciando uma fusão com outros três Clubes da colônia portuguesa: O Lusitânia F.C. e o Centro Português de Desportos. Assim foi desenvolvido o Departamento de Futebol. O MARÍTMO tem a passagem mais significativa de todos os Clubes no meu ponto de vista. Foi o primeiro a aceitar negros, mulatos e outras minorias no Clube. É desnecessário registrar o quanto esta atitude desagradou aos outros Clubes... O primeiro jogo, digamos que não foi exatamente um sucesso: 10 x 1 para o Paladino F.C. no dia 3 de maio de 1916. Após três anos, o MARÍTIMO já estava na primeira divisão. O talento de sua equipe era tão superior, que os demais times do Rio, acusaram a equipe do MARÍTIMO de um profissionalismo precoce. Todos alegavam que os jogadores do MARÍTIMO recebiam dinheiro para praticar o esporte. Apesar das queixas, o MARÍTIMO foi campeão antecipadamente no ano de 1923. Revoltados, os outros times da competição resolveram formar outra Liga e não convidaram o MARÍTIMO. O Clube continuou firme, até que conseguiu obter a promessa que os seus jogadores seriam investigados quanto aos seus graus de amadorismo. Nada foi constatado e o MARÍTIMO teve de ser incluído na tal Liga. Mais tarde uma nova determinação foi colocada como condição para que um jogador pudesse entrar em campo: Todos os atletas tinham que ser alfabetizados. Isto impedia que a maioria dos jogadores do MARÍTIMO participasse das partidas oficiais. Perseverante como sempre, a Diretoria contratou um professor para ensinar os jogadores a, pelo menos, escreverem seus nomes na súmula. Desta forma, os problemas foram resolvidos e o Clube pode retomar a sua trajetória.

EXTREMO DE FUTEBOL E REGATAS O EXTREMO é o mais antigo de todos os Clubes do Rio de Janeiro. O Clube de Regatas do Extremo - fundado em 1 de julho de 1894 - propôs a fusão com o Extremo Football Club, o que resultou na versão atual.

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A História do Extremo começou com a proposta de um menino para outro amigo, que consistia em fundar um time de futebol. Isto, durante a aula no Colégio Alfredo Gomes. No dia 2 de agosto, os caras se reuniram pela primeira vez. Um dos participantes, um certo Itamar Tavares que havia morado na Itália, sugeriu as cores (preto e branco) e o formato, por ter desenvolvido uma forte identificação com o JUVENTUS. O primeiro nome foi ELETRO CLUB, mas por sugestão da avó de um dos participantes, eles resolveram adotar o nome EXTREMO FOOTBALL CLUB. O primeiro campo do Extremo foi no Largo dos Leões. As palmeiras serviam de balizas. Em 1905, o EXTREMO se viu obrigado a alugar um campo. O problema é que não havia espaço para arquibancadas, e, assim, o EXTREMO se viu mais uma vez obrigado a procurar outro estádio. O primeiro jogo foi em 2 de outubro de 1904 contra o FOOTBALL AND ATHLETIC CLUB. Um nome patético que serviu para o EXTREMO começar a sua trajetória de muitas vitórias com o pé direito: 3 x 0. A primeira participação do clube no campeonato carioca foi em 1906. Suas campanhas o levaram a ser chamado de “Glorioso”. Na década de trinta, o EXTREMO sagrou-se o único tetra campeão do Rio. No dia 8 de dezembro de 1942, os dois “EXTREMOS’, que ainda se enfrentavam em algumas modalidades, resolveram unir as suas forças”. Estava fundado o EXTREMO DE FUTEBOL E REGATAS. O primeiro título veio seis anos depois, com uma não menos gloriosa vitória, em cima do festejado “expresso da vitória” do MARÍTIMO. Os anos que se seguiram, foram de... glórias e fracassos assim como para todos os outros clubes do Rio. Já a história das torcidas é muito recente. Todas regulam a mesma data de fundação (trinta anos aproximadamente). O momento exato da fundação de cada uma delas é parte do rico folclore que o futebol criou e continua desenvolvendo. Todos os fundadores costumam usar aquele discurso estereotipado da “paixão que envolveu e arrebatou o coração de dez ou doze ou oito jovens (seja lá quantos forem) pelo seu clube; fato este que demandou a organização das torcidas para

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possibilitar uma maior facilidade de troca e acesso às informações referentes aos clubes. Assim como facilitar o acompanhamento do clube pelo Brasil..”. É isso também, mas é inegável que o espírito de se agregar, de se juntar para se divertir sem noções de limite, funciona muito mais para efeito dissertativo no tocante à invenção das torcidas do que estes releases com histórias cheias de poesia... A organização de uma Torcida Organizada atualmente funciona mais ou menos assim:

PRESIDENTE

VICEPRESIDENTE

DIRETOR SOCIAL

RELAÇÕES PÚBLICAS

DIRETOR COMERCIAL

ASSESSOR DE IMPRENSA

DIRETOR FINANCEIRO

DIRETOR DE PATRIMÔNIO

MONITORES

DIRETOR DE CARAVANA

BATERIA, ADEREÇOS E HARMONIA

Até chegarmos ao formato supracitado, muitas fórmulas foram experimentadas. Até porque, o processo de amadorismo passou por vários estágios e o tempo se encarregou da morte do tal diletantismo. Isto, no caso das grandes torcidas. Todas as torcidas, hoje, possuem (pelo menos no que se refere as grandes) registros nos devidos órgãos competentes e funcionam legalmente como entidades sem fins lucrativos. Sustentam-se com a venda de roupas e acessórios com motivos da própria torcida e dos clubes. Mas, é da distribuição de ingressos promovida pelos clubes, que todas dependem diretamente.

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DIRETOR ADMINISTRA TIVO


A Torcida Organizada, além do obrigatório papel de promover a festa na arquibancada, acompanhar o time o incentivando em qualquer lugar que o mesmo vá, tem, também, a função de “agência reguladora” de jogadores e, às vezes, de dirigentes. Os jogadores costumam embarcar numa “viagem” quando alcançam alguma projeção e se sentem genuínos protagonistas de novela. Novela esta que retrataria os costumes mais íntimos de uma realeza qualquer do Século 10. E não são raras às vezes em que entra em choque com dirigentes, comissão técnica e torcida quando chamados à atenção sobre os seus altíssimos volumes de frequência na noite e a consequente queda de rendimento. Foi assim com dois atletas que na campanha de 1984 do DEPORTIVO eram tidos como destaque do time. Após uma sequência de uma derrota e dois empates, uma comissão foi formada pelos Diretores da Torcida Kamikazes, com o intuito de cobrar uma explicação sobre a queda do rendimento do time. Quando um dos dois “astros” foi abordado na saída do treino e perguntado por que o time havia perdido o embalo, ele olhou o grupo com absoluto desdém e perguntou ao nosso porta-voz: – Vocês são da onde? – Nós somos da Torcida Kamikazes. - Respondeu na maior educação o nosso representante. – Ah... Da Kamikazes? Então só pra rimar: Com a minha rola faz as pazes! - Assim o “astro” ironicamente deu a conversa por encerrada, enquanto um exército de puxa-sacos ria em volta. Silenciosamente todos se retiraram. Foram à sala da Torcida e se armaram com alguns dos muitos cabos de inchada que por lá havia e se dirigiram até o estacionamento, aonde estrategicamente se dispersaram. Após ter feito a sua higiene, o “atleta estrela” se dirigiu para o estacionamento - oportunamente o local mais ermo do Clube. Lá nós o aguardávamos. Ao colocar a chave na porta do carro, o nosso porta-voz deu três tapinhas nas costas dele e disse: – Aí estrela... Esta aqui é a minha rola. - Neste momento nosso porta-voz mostrou-lhe o cabo da inchada. – Então? Ela veio até aqui só pra fazer as pazes contigo, como você queria.

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A partir daí, uma sequência de pauladas foi aplicada no “astro”. Nada para matá-lo, mas com o intento de machucá-lo e fazê-lo aprender a respeitar a paixão dos outros. No dia seguinte, as páginas dos jornais esportivos informavam: “destaque do Deportivo fora do próximo jogo devido à contusão no treino”. Simples... Ao se recuperar, o nosso “ídolo” só parou de marcar gols após o apito do juiz encerrando o jogo final do campeonato, quando nos sagramos campeões contra o Marítimo. As Torcidas possuem suas peculiaridades, características... A Organizada Jovem é notória por seus atos de vandalismo e pela ação precursora de atos de barbárie como “arrastões” em dias de jogos, depredação do patrimônio público e privado etc. Seus símbolos são figuras do Islã. Praticantes do terrorismo para alguns, e, para outros, fonte de inspiração e exultação a todo e qualquer tipo de atitude contrária à dominação imperialista. Seja este imperialismo praticado por ricos de todo o mundo, seja o imperialismo literal propagado pelos EUA. Os integrantes da Organizada Jovem são muito perigosos e desrespeitosos, principalmente uns com os outros. Vivem em guerra com todas as outras torcidas e, inclusive, internamente. As táticas aplicadas pela Organizada Jovem em conflitos foram implantadas por Eduardo Chileno. Praticante de guerrilha, Chileno foi o responsável pelas táticas empregadas com bombas artesanais, formações que copiavam a organização de um exército, entre outras características similares. O símbolo da Torcida Organizada Jovem é um canhão. Se auto-intitulam “O exército”. Além da Organizada Jovem, o Olímpico tem a Raiva RubroNegra. Apesar das considerações, a Raiva é uma Torcida com um volume de história de barbárie muito menor que a Organizada Jovem. Por sua vez, a Raiva se promove como “O maior movimento de Torcidas Organizadas do Brasil”, o que ninguém se preocupa muito em contestar, até porque o Olímpico é de fato o Clube com a maior Torcida do país. Os membros da Raiva são um pouco mais comedidos em seus métodos de vandalismo, mas estão a exatos mil anos luz de serem bons moços. O gesto mais significativo da Raiva Rubro-Negra foi à queima de dez mil exemplares do Estatuto do Torcedor no dia em que este fora lançado.

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Um ato de negação à demagogia e verborragia das autoridades. Eu devo admitir que gostei do gesto, aprovei e gostaria de tê-lo feito. O tratamento dado aos torcedores do Olímpico era o mais pejorativo possível. Diz-se que “favelado” é o coletivo de olimpiquista. A primeira Torcida Organizada, a Charanga, foi uma ideia deles. Hoje, ela foi esmagada pela violência dos novos tempos. Seus instrumentos, que eram o combustível da torcida, já que todos os integrantes eram músicos e a própria Charanga uma grande banda que tinha em seu repertório as marchinhas mais animadas, não representam as necessidades destes dias brutos. Eu sinto falta. A Independência Jovem é a maior rival das duas Torcidas do Olímpico. O MARÍTIMO possui apenas esta torcida com finalidades “bélicas”. Os torcedores do MARÍTIMO foram, sem dúvida, os que mais sofreram com o processo de consolidação das guerras entre facções, ou, a anexação definitiva da identidade bárbara a que me refiro. Muitos dos membros da Independência receberam as chamadas “entregas em domicílio”. Recebiam este nome por serem terríveis visitas de rivais em suas casas, quando tudo parecia muito calmo. Seus carros eram queimados por membros da Organizada Jovem, assim como a perseguição era implacável e sem nenhum motivo lógico. Hoje, tudo mudou. A relação entre ambas é cada vez pior, mas as respostas aos atos de violência estão niveladas. Na arquibancada, o comportamento da Independência Jovem não é dos mais inspirados. Eles têm dois ou três momentos em que, quando cantados, podemos ouvi-los do outro lado e só. Possuem um belo patrimônio, porém sem muita empolgação. Bandeiras lindas, faixas lindas, mas... Seu símbolo é uma mascote de um grupo de Rock; grupo este que eu particularmente não sou simpatizante. Violentos como todas as outras torcidas, se tornam mais perigosos quando envolvidos com seus aliados da Luta Jovem do EXTREMO FUTEBOL CLUBE. Não adotam posturas políticas nem sociais. Seus objetivos principais - assim como todas as outras torcidas - são: Roubar (barró), machucar e matar, quando possível. Luta Jovem do EXTREMO FUTEBOL CLUBE. Uma Torcida cheia de controvérsias. A menor de todas é a mais letal de todas.

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Formada basicamente por convidados que compõem uma seleção interessante de escória: Lutadores de artes marciais sem nenhuma filosofia, bondes de Funk, etc. São aliados da Independência Jovem do MARÍTIMO, fato este que gera estranhamento no país inteiro até hoje. É que alianças entre duas torcidas grandes do mesmo estado é um fato que abre precedentes para que todos pensem em fraquezas de um, ou dos dois lados. Na arquibancada também não são nenhum destaque, mas, mesmo assim, se saem melhores que seus aliados da Independência Jovem. Seu presidente, Adalberto, estava no cargo há dezessete anos. Simplesmente havia decretado um estado de ditadura permanente. Seu símbolo é uma caveira no estilo pirata, mas a mascote do seu clube é um pato. Eles tentam desesperadamente substituí-lo pela imagem de um cão. O que seria mais apropriado - e menos ridículo - a pessoas tão violentas... A Kamikazes era a Torcida com o perfil mais comportado. Até playboy eu diria. Apesar disso, os membros que frequentavam o cotidiano da Torcida eram tão “ratos” quanto os membros de qualquer outra torcida. Estilo “sete um” de terno, conhece? Foi o perfil aristocrático do DEPORTIVO que acabou estereotipando a Torcida. Ficamos conhecidos como playboys e fomos ridicularizados por muito tempo neste universo de valores invertidos. Um lugar onde o bonito é fraco; onde o leal é um perdedor nato e o bem educado e estudioso é o alvo de toda e qualquer violência por personificar a palavra elite. Mas vocês vão ver que quando eu cheguei tudo mudou... A Forca Sul era a Torcida Organizada mais antiga que a Kamikazes dentro do DEPORTIVO. Alguns de seus membros e fundadores se tornaram conselheiros do Clube e funcionários. Antes uma elite, hoje, uma representação muito legal da escória que todos nós somos. Sigilosamente desenvolviam estreitas relações com a Organizada Jovem do OLÍMPICO. Uma aliança semelhante à da Independência com a Luta. Só que não oficial. O presidente da Forca Sul, Tucano, vinha a ser padrinho de casamento de cabeludo; Presidente da Organizada Jovem em dois ou três mandatos. A Forca Sul, também funciona no regime “ditatorial”. Na porta do Maracanã eram grandes, mas na arquibancada sumiam. Não é uma bela Torcida - no tocante à escolha e combinação de símbolos e tonalidades. Sinceramente, não sei qual é o símbolo deles até hoje. Mais significativo, seria descrever o canto de anunciação de

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chegada ao Maracanã utilizado pelo bonde de São João de Meriti da Forca Sul: “NOSSO BONDE JÁ É TRADIÇÃO ...OS AMIGOS LÁ DE SÃO JOÃO SEMPRE FECHANDO COM O CERTO O BONDE FORMOU PRA ROUBAR ONDE A FORCA SUL ESTIVER SÃO JOÃO ESTARÁ “

As torcidas são divididas de acordo com as suas localizações na cidade. Cada uma possui sua própria especificação, sua própria maneira de se reconhecer como veremos. Este formato revelou-se o mais eficiente, e digamos o que se universalizou. O bairro da sede da torcida recebia o número “um” na designação e depois, era anexado um coletivo característico de cada torcida. Portanto: Kamikazes - era dividida em Farândulas Organizada Jovem - em Hordas Luta Jovem - em Matilhas Independência Jovem - em Choldras Tomemos a Torcida Kamikazes como exemplo. Na prática, a coisa funciona exatamente assim: Os bairros da Leopoldina, pertencem a Terceira Farândula da Kamikazes. A região onde se localiza a sede da Torcida - o Méier - é designada como Primeira Farândula. Cada divisão, ou Farândula, tem o seu sub-Presidente responsável, que é chamado de Monitor e, que é responsável, pela organização de horários, aluguel de ônibus e agendamento e notificação de reuniões, entre outras tarefas. Estas informações são capazes de criar as ferramentas necessárias para a construção do cenário do que lhes contarei dando mais precisão às informações. Acho que é o básico. Era necessário...

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CapĂ­tulo 3

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Perfis...

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“O estilo há de ser fácil e muito natural”. Padre Antônio Vieira

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Oi! Finalmente acho que chegou a hora de me apresentar. O meu nome é Máicou. Talvez pela obra da ignorância da minha mãe ou pela sacanagem gratuita de algum tabelião filho de uma boa puta. Quem pode saber? Nasci num bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro e por lá vivo até hoje. Cresci num ambiente fértil, propício a simbioses de todos os tipos. Uma bolsa escolar me permitiu estudar junto à playboyzada. Meu pai, um baixo funcionário Federal, tinha direito a algumas regalias como esta. O dinheiro mesmo que é o bom jamais apareceu, mas... O que fazer? O meu contato com os playboys não era dos piores. O problema era a hora do entretenimento. Como conseguir grana para acompanhá-los em seus programas? Impossível, uma vez que em quatro finais de semanas, eles gastavam o mesmo que meu pai ganhava trabalhando pesado na carpintaria dos Correios num mês inteiro de trabalho. Além disso, nunca fui fã de boates e afins. O meu negócio sempre foi ROCK. PUNK e bandas do cenário alternativo brasileiro mais especificamente. A playboyzada por sua vez, sentia verdadeira ojeriza ao PUNK por se sentir ofendida pela maneira como era retratada nas letras das músicas. Na verdade, os playboys e as playgirls conseguiam ser um pouco mais fúteis que as descrições das letras, mas não eram pessoas ruins. O “músculo” da solidariedade deles é que já nascia atrofiado. Uma realidade exatamente contrária a dos meus amigos de infância do bairro. Estes, por muitas vezes, eram tidos como excessivamente cruéis, quando, por exemplo, capturavam gatos e os amarravam - um em cada ponta de uma corda - para logo em seguida, jogá-los nos fios de alta tensão, onde lá morriam por inanição. Ou, também quando introduziam bombinhas de São João nos ânus das rolinhas capturadas em alçapões e as soltavam para vê-las explodindo logo em seguida. Os moleques comemoravam com aquela alegria específica que nasce de um ato de barbárie, enquanto as penas das rolinhas caiam pela rua suavemente. Na contramão de todo o egoísmo - sentimento que os papais e mamães dos playboys assistiam crescer em seus filhos paulatinamente sem “conjecturar” a menor possibilidade de corrigi-los -, os moleques da minha rua eram incapazes de não compartilhar. Fosse comida, fosse diversão. Todos eram convidados a participar de absolutamente tudo, mas com uma condição: Todos estariam juntos para o que desse e viesse.

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Aquele que fosse flagrado fazendo oposição a este “socialismo” todo particular, era imediatamente julgado e punido. Geralmente, o “transgressor” era punido com surras inesquecíveis, confiscos de roupas e, consequentemente, a vergonha de ter que se deslocar nu até a sua casa enquanto toda a vizinhança ria. O panorama do subúrbio carioca nos remete a paixões vividas com uma intensidade inexplicável. Neste caso, trato da paixão pelo futebol que exacerba quaisquer limites lógicos inerentes ao puro e simples entretenimento. Eu, torcedor do DEPORTIVO FOOTBALL CLUB - um time de muita tradição -, e frequentador assíduo do Maracanã desde os oito anos de idade, pude acompanhar com pesar a degradação da sociedade pela janela de uma Torcida Organizada. No início, quando era levado pelas mãos do meu pai, o romantismo imperava no ambiente. A organização era baseada no colaboracionismo. Ao chegar neste ambiente, observei as Torcidas Organizadas - mesmo as de times rivais - convergindo, salvo uma ou outra animosidade gerada pelo excesso de cervejas como já contei. Por volta dos quatorze anos, o que era uma tendência, acabou se transformando no alicerce da minha personalidade: O PUNK ROCK BRASILEIRO. Esta paixão me levou a um total distanciamento dos jogos. Num dado momento, até me esqueci de que havia o futebol. O PUNK e o ROCK nacionais dos anos 80 das bandas ditas alternativas eram, invariavelmente, tomados por uma atmosfera libertária, impregnada de uma necessidade de liberdade de comportamento e expressão que por fim funcionava como um tipo particular de ímã. Todos os “restos” da sociedade convergiam para lá. Fosse trocando informações ou mesclando linguagens, existia o exercício de um alternativismo verdadeiro, ou seja, tomado pela originalidade. Eu e meus amigos costumávamos nos divertir num dos polos mais atuantes deste movimento: O Garage Art Cult. A distância acentuada do nosso bairro até a casa de shows, era algo que para nossos espíritos contaminados pelo fascínio que o movimento alternativo gerava, era um ínfimo detalhe. Trabalhei de Auxiliar de Escritório dos dezessete até os vinte anos numa mesma firma. Saí do trabalho quando me elegi Presidente da

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Kamikazes, digo, me elegeram. Era um escritório de Contabilidade bem modesto na Avenida Paris em Bonsucesso. Ganhava um salário e meio, mais benefícios. Fazia serviço de Office-boy - uma das tarefas que eu tinha mais aversão -, varria, atendia, estacionava... Enfim! Assobiava, chupava cana e tocava violino ao mesmo tempo. Não precisava ajudar com as despesas na casa do meu pai (onde eu morava). Aliás, eu tentava, mas ele recusava sempre. Eu tinha três irmãos. Tinha. O mais velho, Teófilo, morreu de overdose quando eu tinha vinte anos. Os outros dois - Lívia e Márlão -, não eram tão próximos a mim quanto o Téo era. A Lívia casou-se cedo e ambos, tanto ela quanto o Márlão, foram viver suas vidas pelo mundo. Lívia era mulher de um Militar que estava sempre sendo transferido. Eles tinham dois filhos, aliás, filhas: Karina e Hannin. Só tive duas oportunidades de vê-las. A primeira foi no nascimento de Hannin que é a mais nova das duas. Assim pude conhecer a Karina que já estava por aqui. A outra ocasião foi no enterro do Téo. O meu irmão Márlão morava em Porto Alegre. Por lá arrumou uma noiva e enrolava a pobre coitada há mais de dez anos. Mamãe dizia que o Márlão não gostava muito de gente. Vivia melhor com seus objetos, mas sem plantas nem bichos. Um cara silencioso e mal humorado. Até hoje eu não sabia em que trabalhava exatamente, mas... FODA-SE ELE! O meu irmão falecido se chamava Teófilo em homenagem ao meu bisavô materno. Foi o único a escapar - mais ou menos - da maldição dos nomes (uma praga comum aos homens lá de casa). Ele também era da Kamikazes. Deixou de herança para mim os discos de ROCK NACIONAL que, também, era a sua grande paixão. Esta paixão nós compartilhávamos. Tem uma passagem em especial do grupo CÓLERA, que me fez tomar atitudes muito diferentes do que eu normalmente tomaria. Quando eu poderia ter sido perverso e ter exercido o direito à crueldade tão peculiar àqueles dias brutos que vivi, eu fui benevolente e pratiquei a compaixão e o altruísmo. Mesmo que isso me enfraquecesse, bastava um pedacinho daquela letra vir à minha cabeça para que eu sentisse uma sensação tal qual uma dívida com o meu irmão. Era aí que tudo funcionava e tudo que é sentimento nobre emergia. E dizia a letra da canção:

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“PENSE MAIS NA SUA VIDA NA SITUAÇÃO DO MUNDO LUTE MAIS PELA EXISTÊNCIA DA JUSTIÇA E DA LIBERDADE POR TODA A HUMANIDADE POR TODAS AS VIDAS EM GERAL”

A lembrança do meu irmão estava em tudo. Um cara querido por alguns e amado por muitos. Não era violento. Eu guardo cuidadosamente as lembranças que resistiram à ação do tempo e ao bloqueio que o subconsciente aciona numa situação tão traumática. Eu reservo até hoje, metodicamente um horário por dia, só para exercitar estas passagens. No final da tarde eu gosto de escutar o disco do FELLINI chamado “Amor louco” olhando para o crepúsculo. Era o disco favorito dele. Nos shows do CÓLERA que assisti após a morte do meu irmão, ficava aquela sensação do que poderiam ter sido aquelas noites, se vividas com o meu irmão. A ausência do meu irmão era uma ausência cristalizada, às vezes parecia que dava até para tocá-la. Abraçado a esta ausência cristalizada, eu repetia o ritual de ouvir os discos do meu irmão à tarde quando chagava do trabalho, olhando longe no céu. O Téo morreu e não viu o seu filho nascer. A Sônia era a mulher dele na época. Ela era bastante piranha e nós lá de casa nunca fizemos gosto no namoro. O que nos surpreendeu foi que após a morte do Téo ela modificou o seu comportamento completamente, assim que descobriu que estava grávida. Afastou-se da Torcida e mantinha contato com as garotas que formavam com ela o chamado “trenzinho da alegria” apenas pelo telefone. Ela havia inclusive voltado a estudar. A Sônia era uma garota festeira. Gostava de fumar cigarro, bebidas alcoólicas e de sexo. Colocar a rola pra dentro era com ela mesma também; mas, assim como as outras meninas, não curtia drogas. Andavam todas juntas. Todos os dias o dia todo. Sempre próximas à rapaziada, que por sua vez, respirava drogas. Principalmente cocaína e LSD. Mas isso não as influenciava. Mantinham distância daqueles “jogos de meninos”. Há alguns anos, para uma mulher era muito ruim ser uma viciada. Isso desvalorizava e muito o passe delas.

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No grupo que meu irmão frequentava, dentro da Torcida, todos eram roqueiros. O Miami Bass não tinha o apelo atual. O único som diferente que eu ouvi meu irmão curtindo em casa foi SOUL e alguns grupos da gravadora MOTOWN. Eles apreciavam muito, mas não era a preferência do bonde deles. Depois de uma conversa com uma amiga em comum, descobri que a Sônia passou a sofrer de uma depressão crônica após a morte do meu irmão. Quase não falava, não assistia TV e nem tocava mais seus álbuns de vinil favoritos. Tive a certeza que ela amava e dependia afetivamente do meu irmão, pois consegui entender que ele foi a sua única fonte carinho e afeto durante toda a sua vida até aquele momento. Eu sabia que o clima na casa dela era de péssimo a horrível. A brutalidade da vida havia sido absorvida pelos seus irmãos e pai. Eles trabalhavam como “coração amargo” no SEASA. Uma tradição da família. Às quatro horas da manhã (de segunda a segunda) eles transportavam cargas puxando um carro pesado de tantas mercadorias. Este ofício também é conhecido pelo pejorativo nome de “burro sem rabo”. Essa coisa de quinze anos, vestido, baile. Nada disso a Sônia teve direito. Nem bolo de um aninho. Nada. Antes da morte do meu irmão, eu ficava bastante puto por ele se envolver com a Sônia, a quem eu considerava uma puta. Mas depois da morte dele, as coisas começaram a se encaixar no modelo “o que não tem remédio, remediado está”. O tempo suaviza o peso, banaliza o feio e nos adapta ao que foi abruptamente instalado. De posse destas conclusões, resolvi procurar a minha cunhada e sobrinho. Eu tinha todas as dúvidas quanto à paternidade do garoto, mas resolvi contrariar as minhas suspeitas e deixar o meu sentimento fantasiar o quanto ele quisesse, o que ele quisesse. Eu queria explorar o poder do sangue compartilhado. Mesmo que estes pensamentos fossem mandados lá do meu subconsciente, mesmo que as explicações supracitadas não ficassem claramente traduzidas para a prática, eu simplesmente as sentia. Eu sabia que tinha que tomar aquela atitude. Assim ganhei outro sobrinho. Numa segunda-feira em que nos encontramos chovia muito. Acho que este foi outro fator marcante nas nossas mentes. Como se algo começasse sendo lavado. É claro que se chora muito num momento

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assim. É por isso que a vida real é tão emocionante. Nas novelas, filmes, livros etc; um homem forte não chora. Aqui, não tem espaço para estes simbolismos estereotipados de força. Ninguém de verdade, real, é capaz de segurar aquela avalanche de emoção. Aquele rio imenso que começa numa gotinha lá no alto de uma montanha e vai se juntando a outras muitas gotas pela descida. Foi o que aconteceu quando vi o rosto do meu irmão desenhado na cara daquele garoto. Meu sobrinho! Isto é a vida que a arte não consegue imitar. Foi desta forma que comecei a levar o “Teozinho” para jogos tranquilos. Vestia-o dos pés à cabeça com o kit infantil da Kamikazes e a bandeira do Deportivo. Queria que como eu, ele tivesse história e começasse a sentir a atmosfera do Maracanã. Da alegria do gol ao abraço que começava no campo e contaminava a Torcida. O ciclo se reiniciava, como tudo na vida. Pessoas e momentos se despedem, enquanto outros momentos se apresentam, se renovam... Já que não pude fazer o caminho de Santiago de Compostela para buscar a mim mesmo, me dediquei a refazer o caminho de volta ao meu passado na Torcida. Este caminho era o mesmo que o meu irmão tinha feito e refeito diversas vezes nos seus últimos quatro anos de vida. O que eu queria mesmo era estar nos lugares que ele mais frequentou. Não queria pistas, nem respostas. Só queria estar lá. O meu caminho, na verdade, era a busca pelo ponto zero de todo o meu entendimento. Eu só queria me dar o direito de viver a dor necessária que a perda do meu irmão demandava, e, por algum motivo, eu bloqueara. Todos conseguem viver com a ausência daquilo que poderia ser, o suposto... Difícil mesmo, amargo e doloroso é suportar a falta do que, ou, de quem, já estava estabelecido ao nosso lado. Do que era realidade estabelecida. Tudo aconteceu muito rápido. Lembro-me de um final de semana - um sábado - em que almocei e resolvi ir até o Méier, onde se concentrava a PRIMEIRA FARÂNDULA da Kamikazes. De lá saiam para os jogos os membros mais ilustres da Kamikazes como diretores, outros antigos e conselheiros. A Torcida era dividida em FARÂNDULAS de acordo com cada região como eu já expliquei. Eu pertencia, de acordo com a localização da minha casa, à TERCEIRA FARÂNDULA, mas

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como a minha intenção era estar nos lugares onde meu irmão esteve e repetir os seus hábitos, parti para o Méier. Lembro-me bem daquele dia e que não era de todo desconhecido naquele ambiente. Conhecia alguns caras de vista e outros me conheciam também. No começo fiquei meio acanhado e me coloquei na periferia da grande roda que conversava animadamente. Fui num camelô e comprei uma cerveja. Enquanto bebia e observava a movimentação, destacado, na minha, um cara veio em minha direção, parou ao meu lado e perguntou: – Aí... Tu não é o irmão do Téo? – Sou sim. - Respondi sorrindo amistosamente. – Pô aí... Moleque maneiro pra caramba. Faz a maior falta. Quando eu conheci o Téo eu era menor. Explicou-me o cara. – Ele sempre pagava um lanche pra mim ou me dava o dinheiro pra voltar pra casa. Completou. – Qual é o teu nome? - Perguntei a ele interessado realmente – É Tchélo. É Marcelo, mas... Sabe como é né? – Tá certo Tchélo. Eu sou Máicou. – Eu sei... Ele respondeu. – Geral te conhece. Teu irmão é uma lenda responsa. - Depois desta revelação, fiquei mais à vontade, mais falante. Senti-me em casa. O Tchélo era de origem muito humilde. Como havíamos chegado desnecessariamente cedo - o que pude perceber não ser um erro, mas sim, um hábito para a maioria -, pudemos conversar e nos conhecer razoavelmente bem. O Tchélo estava aguardando dois amigos, que pelo visto, ele julgava imprescindíveis para completar o ritual de ir a um jogo. Ele era uma mistura de nordestino com português e rapidamente me deu detalhes da sua biografia. Disse que não conhecera o pai e que sua mãe lavava roupas para fora. Morava na favela do Saci, onde desempenhava o papel de coordenador da Associação de Moradores. Interessei-me por este papo, principalmente quando ele disse que era um trabalho voluntário e não remunerado. Estatura média, cabelo cortado com máquina, um metro e setenta e cinco mais ou menos, Tchélo preservava os traços nordestinos no rosto fechado. Tinha sotaque do nordeste presente em algumas palavras. As suas mãos ásperas tinham cicatrizes. Várias delas...

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Ele trabalhava como camelô vendendo CDs piratas na Rua do Ouvidor no centro do Rio. Ele me pareceu gostar muito de estar vivo, tinha volúpia na maneira de se expressar, apesar da cara super fechada. Não se importava com a repressão das autoridades. O que ele tinha certeza era que as necessidades primárias não queriam saber que um único “sabe-se lá quem”, em algum lugar, tinha de ganhar tanto dinheiro de maneira que se reencarnasse mil vidas na mesma família, não teria como gastá-lo, mesmo que se dedicasse unicamente a este fim nas mil vidas. Achei engraçado o argumento. Se estes não aprenderam a dividir, ele não via o menor problema em tomar a sua parte. Além do mais ele me disse que tinha certeza que os CDs piratas funcionavam como um tipo de caixa dois para as grandes gravadoras, que se faziam de vítimas na mídia, mas tinha arrumado esta maneira engenhosa de burlar o fisco e não pagar imposto a filho da puta de governo nenhum. Afinal, quem sabe da temperatura da panela é a colher né? O traço mais marcante da nossa conversa, era a maneira com que ele falava do trabalho na Associação de Moradores. Ele me informou que a comunidade boicotava a Coca-Cola na favela há seis anos. Há sete anos a comunidade buscou parcerias de modo a amenizar algumas carências como a falta de iluminação na quadra de esportes, a ampliação da praça de esportes de modo que mais uma quadra fosse criada para atender a comunidade que havia crescido muito, enfim... O Tchélo me contava que o Presidente da Associação de Moradores conseguiu chegar até o gerente de distribuição da Coca-Cola daquela área, e, de posse de um documento que detalhava tais necessidades, assim como, também detalhava, o volume de consumo do produto em toda a favela - de modo a justificar o pedido de apoio -, perguntou o que a Coca-Cola poderia fazer pela comunidade, mediante as necessidades apresentadas no relatório. O projeto levado pelo Presidente da Associação propunha à multinacional se responsabilizar por obras de cunho social que seriam realizadas de dois em dois anos (consequentemente, o prazo que este “contrato de exploração” da área venceria e, portanto seria renovado). No contato, o gerente da Coca-Cola disse que só poderia fornecer mesas, cadeiras e três geladeiras da marca. Não quis - mesmo que por diplomacia - aceitar o projeto elaborado com tanto cuidado e esperança. “Deixa ali com a minha secretária, por favor”, disse ele.

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Numa mobilização simples, no melhor estilo boca a boca, os membros da Associação comandaram um boicote em massa a todos os produtos da marca Coca-Cola. Na época, a comunidade foi convocada e uma explicação super original lhes foi dada, mostrando em detalhes o que havia sido pedido e automaticamente negado pela Coca-Cola. Em anexo à reunião com os moradores do morro, Tchélo me contava que fora distribuída uma lista de malefícios proporcionados pelo consumo dos produtos da marca. O objetivo era fazer com que todos entendessem que a marca só pensava em lucro, em ganhar e, não cogitava pensar no bem-estar de nenhum dos seus consumidores o mínimo que fosse. Afinal, eles não tinham a menor obrigação. Eram gringos. Não tinham o menor compromisso com o nosso sangue. Foi um sucesso. Hoje em dia, nem os “genéricos” (Baré-Cola, Rex-Cola, FodaCola, Cheira-Cola, etc.), que foram a solução imediata para suprir o impacto da “difícil” ausência da Coca-Cola na favela, fazem mais parte da preferência da comunidade. Os Guaranás são unanimidade. Principalmente os de copinho que tem açaí misturado em sua fórmula. O pessoal da Associação de Moradores praticava a usura sim, mas numa conotação extremamente benéfica. Ao invés de cobrar as mesmas taxas de juros das financeiras, cobrava sessenta por cento do valor de mercado sobre os empréstimos. Uma parte do dinheiro dos juros era destinada para melhorias na favela e a outra para o pagamento dos funcionários. O dinheiro só era emprestado para moradores da favela cadastrados como voluntários em todos os programas de melhorias para a comunidade. De quinzena em quinzena a Associação exibia vídeos educativos à tarde, onde os atores dos filmes eram membros da própria comunidade. Nesses vídeos, atitudes incorretas eram exibidas como tal ridicularizando os personagens e atitudes corretas eram estimuladas. Esta foi uma maneira de ampliar o alcance das mensagens usando a linguagem moderna e rápida do vídeo - e que todos compreendem melhor que um folheto informativo -, de forma que absolutamente todos pudessem absorver o conteúdo das mesmas, inclusive os analfabetos, que eram maioria na favela. O Tchélo completou dizendo que esta foi uma alternativa à falta de palestrantes, já que a maioria dos universitários que haviam se preparado para desempenhar esta tarefa, sofriam de “morrofobia”. Ele comentou algo que eu até então não havia percebido: O quanto era engraçado como as

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pessoas se qualificavam para democratizar a informação, mas depois fracassavam quando chegavam ao campo empírico. Em suma: A teoria as estimulava, a prática as emudecia. Numa conversa fantástica e surpreendente, o ouvi dizer de forma resumida de certo projeto chamado “Intercâmbio Profissional”, onde todos os profissionais da comunidade doavam uma hora de trabalho quinzenalmente para uma bolsa. O projeto funcionava da seguinte maneira pelo que pude entender: O profissional que fosse solicitado na Associação executaria um serviço para quem o solicitasse gratuitamente. Assim, quando este profissional que serviu a alguém também necessitasse de algum tipo de serviço, teria o direito de recebêlo gratuitamente também. O novo projeto que a favela do Saci estava desenvolvendo, era o “Comunidade sem neurose”. Este projeto foi a primeira coordenadoria integralmente desenvolvida pelo Tchélo. A primeira oportunidade de desenvolver algo grande e estando à frente. A finalidade do projeto era simples como todas as grandes ideias. O objetivo era deslocar crianças de comunidades rivais, separadas pelo tráfico e colocá-las num ambiente neutro, convivendo juntas. Nesse ambiente, elas poderiam estudar, participar de atividades recreativas, receber cuidados médicos preventivos, enfim... O Tchélo, idealizador do projeto, acreditava que as crianças precisavam de um ambiente neutro, mais propício a dissolver as rivalidades que o isolamento em suas favelas fomentava. Para ele seria algo fácil levando em consideração a ótima relação que ele tinha com as crianças em geral. Levava jeito para pedagogia nitidamente. Não tinha oportunidade... Apesar de simples, era um projeto extremamente ousado, porque dependia de uma longa série de concessões que só os líderes do tráfico de cada comunidade poderiam fazer. Ninguém nega que o poder real do Estado é o exercido pelo tráfico. A monarquia que o governo representa não faz parte de nenhum plano. A imunidade, capaz de proporcionar o trânsito livre de favela em favela, de morro em morro, é conferida a bem poucos. Geralmente, estes “embaixadores” são as pessoas que menos usam este privilégio de livre circulação para proporcionar algum benefício real às comunidades. Na verdade a aparição desses “embaixadores” numa favela está diretamente

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condicionada à aparição na mídia. São estes embaixadores fracassados: músicos, jogadores de futebol, atores, entre outras figuras públicas. O Tchélo buscava este título de “embaixador da boa vontade” para poder trabalhar o que ele acreditava ser uma, das muitas atitudes a serem tomadas, visando resolver toda a complexa equação da violência na sociedade contemporânea. E se desse certo? Esta fórmula não poderia ser aplicada na Irlanda? No Oriente médio? Era a pergunta dele. Percebi neste momento, a aproximação de dois caras sorrindo. Um deles era um negão forte pra caralho com um metro e noventa aproximadamente, vestido inadequadamente para a situação. Mais parecia que ele ia a um casamento, da mesma forma que o seu companheiro. Quase o oposto do negão. Magro, moreno claro, um nariz que se destacava de todo o resto. Um boné enterrado na cabeça fazia a sua estatura mais baixa ainda. Os três se cumprimentaram e mesmo sem me conhecer, os recém-chegados me estenderam as mãos. – Este é o Máicou. O irmão do Téo... - Anunciou-me Tchélo. – Ô, sou o Dodô. Legal? - Apresentou-se o baixinho. – Legal! - Respondi. – Bínchi! Uma honra responsa! - Disse o negão. Numa conversa mais rápida do que a que tive com o Tchélo, fiquei sabendo de histórias de torcida e detalhes sobre as suas personalidades. Mas nada tão interessante. O Dodô era um playboy falido que vivia de transações ilícitas. Receptava roubos diversos e passava para os seus contatos. Tinha disposição para o mal, apesar de não ter grandes necessidades. Sua estrutura física era inversamente proporcional ao seu poder letal. O Bínchi comentou que vivia confortavelmente num condomínio na Pavuna. Sua mãe, viúva, trabalhava como funcionária pública e recebia uma gorda pensão do seu falecido marido - o pai do Bínchi - que foi Militar. Tinha dois irmãos. Uma garota de dez anos e um cara mais velho, que assim como o pai viu no militarismo um caminho. A mãe dele recebia uma contribuição financeira mensal deste irmão, que morava em outro estado. Não dava para dizer que eram ricos, mas não

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conheciam grandes dificuldades. Roupas da moda, vídeo games de última geração e eletrodomésticos super avançados, não eram novidades na casa do negão. Um campo propício para o desenvolvimento de atividades ligadas ao ócio, apesar da tradição militar. Ele era o tal “pau que nasce torto” da família. Os três regulavam a mesma idade que eu. Algo entre vinte e cinco e trinta anos. Pronto. Eu já conhecia alguém. Para ser mais específico, o bonde estava formado e eu ainda não sabia. Com estes caras, eu viveria aventuras nunca antes imaginadas...

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CapĂ­tulo 4

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Mergulho na alma de um homem

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“Ética na política é vergonha na cara e amor no coração” Casaldáliga

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E tudo aconteceu mais rápido do que qualquer cálculo que eu pudesse desenvolver. Num momento eu estava chegando pela primeira vez depois de anos ao local de concentração de saída da Torcida sem conhecer praticamente ninguém; em outro eu estava saindo para beber e curtir a noite com os meus novos amigos. Na quarta-feira que se seguiu ao jogo, saímos para beber e conversar. No dia seguinte o Dodô me ligou para avisar que o Bínchi ia pagar umas cervejas na casa dele. Já que a mãe dele estava de férias e havia acabado de viajar com o mais velho e a irmã dele para visitar os parentes em outro estado como fazia todos os anos, a casa estava liberada. Com a casa vazia, pudemos estabelecer o nosso reinado. O Bínchi não fumava maconha, mas também não se opunha ao consumo na sua casa, desde que tomássemos as devidas providencias para que a “marola” não invadisse a casa dos vizinhos. Sendo a casa dele uma casa de militares, com uma rotina rígida, não era difícil de compreender os seus temores. Depois de chapados, nos sentamos na sala ainda escura devido às janelas fechadas para praticarmos a mais letárgica das combinações: Maconha + TV. Só uma persiana entrecerrada, permitia a entrada de alguns - poucos, muito poucos - raios horizontais de luz rajados na sala, que somados à imagem da fumaça do cigarro que eu fumava, subindo, davam um tom todo claustrofóbico ao ambiente. Eu e Bínchi sentados com as costas, afundados no sofá e com o olhar hipnotizado pelas imagens da TV. Dodô sentado no chão recostado numa almofada comendo um biscoito de saquinho e o Tchélo deitado no chão com a cabeça recostada num travesseiro. Assistíamos ao Discovery Channel e o programa era “Hora selvagem”. – Para mim o certo é isto aí. - Cortou o silêncio a voz de Bínchi bastante ébrio. – Tá falando do que moleque? - Indaga um entorpecido Dodô, que nem sequer se virou para dirigir a palavra grosseiramente ao amigo. – Ah! Quem nasce ou fica em desvantagem durante a vida, tinha que morrer. Essa porra de piedade não combina com o ser humano. O ser humano é muito animal ainda, igualzinho àqueles bichos ali na TV. Inventou a piedade, mas nunca aprendeu a praticá-la. Faz questão de

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manter os velhos, os aleijados e menores vivos só por sarcasmo. Hahahahahaha... – Tá rindo por quê? - Perguntou Dodô sem tirar os olhos da TV. E Bínchi o respondeu: – Piedade rima com crueldade. – Num tô entendendo o que você tá querendo dizer... - Devolveu Dodô o até então, menos articulado de todos - como quem dava a conversa por encerrada. Neste momento, a voz do narrador diz: “O único processo a que todos são igualmente submetidos na savana, é o processo de seleção natural”. E então, um bando de hienas ataca um leão velho e solitário que elas acompanhavam há dias aguardando o momento certo para começar a devorá-lo. Durante as horas que se seguiram, outros detalhes foram sendo incorporados ao perfil de cada um deles. O Dodô, por exemplo, não era iniciante no convívio em grupos. Parte da sua família pertencia a uma conceituada “estirpe” de pichadores do subúrbio do Rio. Seus primos haviam sido fundadores de uma das maiores turmas de pichadores do estado, chamada LSI (Legião Satânica da Irmandade). Ele dizia que diariamente convivia com alguns dos principais desocupados da cidade, pois estes tinham o hábito de se reunir diariamente na casa de sua avó, onde seus primos moravam também. Por lá, passavam integrantes das principais turmas de pichadores do Rio, os quais cultivavam relações muito amistosas entre si e sem nenhuma rivalidade. A GE (Grafite da Escuridão); a AM (Amantes da Maconha); a GC (Gang Comunista) entre outras galeras eram presenças constantes no seu cotidiano. Aos poucos ele ia me contando que havia sido criado num estilo meio parecido com “capim”: Sem cuidados, à própria sorte. O pessoal da sua casa só começou a se dar conta do problema que ele se tornara depois de crescido. Ou seja, quando já era tarde demais. A ausência de limites foi a marca da sua criação, até porque, quem não quer saber de educar não tem a menor paciência para dissuadir uma criança de suas manhas e choros. É melhor fazer as suas vontades e vê-la parando de encher o saco o quanto antes. Assim nascem os mimados... Como uma maldição, apesar de todos pertencerem a uma mesma classe média, seus primos e primas e até a sua irmã, não haviam conseguido concluir sequer o ensino médio. Nenhum deles. O seu primo

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favorito, o Neném, era gerente do morro da Luz. Começou a carreira como assaltante comum e seu talento o levou a um convite para assumir uma “responsa” numa das muitas bocas de fumo do morro. Mais precisamente a gerência do ”pó de três”. Os dois primos não perdiam uma oportunidade de exercitar a parceria bem sucedida na vida do crime. Um sempre ligava para o outro. O Dodô gostava de praticar assaltos médios com o Neném. Começava com o bote num bom carro parado atrás de outro carro num sinal qualquer. De preferência que estivesse sendo dirigido por uma mulher, e, na sequência “choravam” mercadinhos, farmácias, açougues etc. Além de assaltos, Dodô assumia a responsa de passar uma carga de pó ou de maconha no morro do primo uma vez ou outra. Só pra tirar uma onda. Portar um fuzil e tal... Também rendia um dinheirinho... Servia também pra manter o status junto as garotinhas do morro, que em sua maioria absoluta, gostavam de render homenagem e trepar apenas com quem fosse vagabundo e pudesse lhes conferir a possibilidade de ocupar o cargo de primeira dama um dia. Só a possibilidade já basta para elas. Até hoje é assim... O Tchélo era sofredor de verdade. Não gostava de falar do passado, e, quase sempre, também não gostava de falar do presente. O seu trauma vinha do tratamento dado pela polícia a sua mãe e parentes. Depois quando crescido foi a vez dele. Ele começou a contar a história de uma marmita que o policial havia pedido para ser revistada e estava na posse de seu tio quando este saia da favela para o trabalho. Quando o policial viu que havia apenas macarrão e um ovo frito na marmita, aplicou um violento tapa nas mãos de seu tio que nada pode fazer. Foi tudo. O Tchélo havia encontrado em mim alguém capaz de ouvi-lo. Mais pelas ideias atuais com que ele contribuía na sua comunidade, que me chamavam muito a atenção. Bínchi fora criado nas grandes turmas de Clóvis, ou bate-bolas. As turmas de Clóvis dos bairros Marechal Hermes e Oswaldo Cruz são famosas em todo o Rio de Janeiro por suas ações de muita violência. Todos os carnavais, um festival é organizado na Praça de Marechal Hermes, com o intuito de premiar a turma mais original. O festival é famoso e comentado em todo o subúrbio carioca. Esta notoriedade impulsionava as turmas a não medirem esforços para alcançarem o

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prestígio do título. Como o festival é realizado no Carnaval, as turmas passam o ano inteiro cometendo diversos delitos como sequestros, assaltos diversos etc. Tudo com o intento de conseguir a maior quantia de dinheiro de maneira a superar seus concorrentes no quesito ostentação. Nossas conversas eram reveladoras. Detalhes sigilosos eram descritos de uma forma tão minuciosa e alegre, que nem parecia que se cometiam tantos pecados. Era inevitável que o mundo do futebol, fosse o nosso tema favorito. Todos os mundos e formas de se apreciar o futebol eram discutidos. Eu tinha as minhas próprias ideias sobre as, digamos camadas sociais, que compunham o universo do futebol. De qualquer forma, gostava de jogar os temas e saber as opiniões de cada um, até porque nunca fui um cara de opiniões formadas concretas e imutáveis. E assim, os temas que mais me intrigavam iam e vinham em visões novas. – Comecei a pensar uma coisa. Sei lá... Por que será que noventa e nove por cento dos jogadores de futebol são semianalfabetos? É estranho ver uma gente tão mal preparada ganhando tanto dinheiro. - Soltei no ar aquela proposta de debate e aguardei as respostas surgirem... – Pô! Isso é claro, né? - Começou a explicação Dodô. – Primeiro, o cara vê o outro na televisão. Cheio de ouro no pescoço, uma loura gostosa do lado, milhões transbordando do bolso... Aí este cara que tá vendo aquilo tudo fala: “O maluco não estudou nem até a quarta série e tá assim? Vou querer também”. Aí, o cara da televisão, o jogador, que querendo ou não é um exemplo, incentiva geral da molecada seguir a ideia de que é possível ganhar muita grana sem estudar, sem se preparar. Afinal, ele, o jogador analfabeto, é um exemplo vivo disso. Ali no programa de TV, a personificação da malandragem como meio de vida, dando vários depoimentos. É o motivo pra continuar a não se preocupar em se educar, sem pensar em reivindicar porra nenhuma. Mesmo vivendo mal pra caralho, jogando lixo no chão, fumando dentro do ônibus e acreditando que da mesma forma que aquele cara conseguiu, também será igualmente possível conseguir. A televisão mantém o clima do onírico na vida dos caras. Fica a massa de babacas acompanhando aquilo como se fosse um conto de fadas que qualquer dia desses baterá na porta deles. Segundo: Fica muito mais fácil para o empresário que promove um cara desses meter a mão no dinheiro dele também. - Encerrou Dodô seu depoimento surpreendente no tocante a qualidade dos argumentos.

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– Isso é neurose. - Respondi a tudo aquilo meio que no deboche. – É rapaz! - Continuou defendendo a sua tese Dodô. – Vê os caras de pagode e música sertaneja também... - Finalizou colocando várias dúvidas na minha cabeça a partir daquele momento. Cada vez mais era possível se surpreender com os posicionamentos originais deles sobre cada ponto. Família, amigos, amor. Tudo. A religião não era o forte deles. Todos eram batizados na Igreja católica, mas ninguém seguia a rotina de cultos da Igreja. A família do Tchélo era evangélica e ele também acompanhava os cultos de livre e espontânea vontade. Bínchi e Dodô eram de família Cardecista. Na verdade suas famílias haviam migrado de movimentos como o Candomblé para a religião de Allan Kardec. Suas noções, impressões do além-mundo também me chamavam a atenção. É claro que no estado alterado em que nos encontrávamos, divagar sobre os mistérios da vida e da morte era um lugar comum. Todos ficam meio filosóficos numa situação assim. Às vezes divertidamente filosóficos; intrigantemente filosóficos... – E a morte? Como deve ser esta parada? Indaguei. - Entre um tapa e outro, Dodô, lutava contra a falta de concentração e tentava formular uma frase. – Eu acho que cada um dos três bilhões e meio de habitantes da Terra, vem de um planeta diferente. Todos estão aqui para obter e fornecer informações, que por menor que pareçam, seriam muito preciosas, e, desta maneira, poder levá-las para seus mundos no momento de suas mortes. A Terra é como se fosse um campo neutro escolhido por Deus para desenvolver a tolerância, a permuta e a convergência entre todas as suas criações. Hoje o nome deste campo é Terra, mas já se chamou CAOS. - Disse Dodô. O Dodô era o cara do olhar distante. Com uma regularidade impressionante, eu o flagrava olhando para o nada, fixamente, distante mesmo... Foi esta concepção da vida na Terra do Dodô, que levou o Tchélo a desenvolver o projeto “Favela sem neurose”. O Dodô havia repetido muitas vezes que era a sua maior vontade doar os seus órgãos. Tudo que pudesse ser aproveitado, mesmo que para o uso de estudos universitários, ele gostaria de disponibilizar. Ele dizia: “Não servi pra nada em vida, mas posso adiantar os outros na minha morte”.

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– E de onde você tirou esta ideia? - Genuinamente interessado perguntei-o. – Ah... Senti... - respondeu reticente, sem super dimensionar o valor da resposta. – E você Bínchi? – O quê? – Tem alguma posição sobre o assunto que estávamos discutindo? – Ó responsa... Eu só acho que todo cidadão estadunidense reencarna na África. Só isso que vem a minha mente. E só há uma maneira de quebrar esta armação, este ciclo de culpa e castigo. Alguém precisa ir aos EUA correndo e avisá-los que existe um sistema, num certo lugar do globo que está ameaçando a tal democracia: É o “miseralismo” africano. Os cidadãos desta parte do planeta são impedidos de exercer a tal democracia. Bem, na verdade eles estão tão deteriorados em todos os sentidos, que não são mais capazes de exercer sequer o direito a ser um humano. Que, por favor, alguém avise ao império para enviar suas tropas com todas as armas possíveis e capazes de combater o inimigo mais eficiente da liberdade tão apregoada por eles: A primeira Ministra da África, a Dona Miséria. Frente aos olhos da opinião pública do mundo, esta tem sido a maior e mais competente desafiadora do devaneio, digo, sonho estadunidense. O Tchélo era mais complicado para soltar alguma coisa, mesmo estando ele numa onda. Depois de muito insistir e conduzir a coisa pude ouvi-lo. – Eu acho que todos nós neste mundo somos dignos de pena. Às vezes eu nem me lembro que sou tão ou mais digno de pena que todos os outros. Sinto-me estranhamente privilegiado. Mas sei que sou um coitado também. – Como assim “pena” Tchélo? - Pedi maiores detalhes. – Ah... Tenho pena do Rico pela sua arrogância, que faz com que coisas maravilhosas afastem-se dele e do pobre pela sua miséria. Eu não acredito no inferno que me ensinam lá na Igreja sabe? Aquela coisa estreitamente atrelada ao sofrimento físico como punição. Até pra mim que não tenho estudo é difícil de aceitar tudo que eles dizem. Como a alma abandona o corpo e a dor física continua a acompanhá-la, sendo a alma uma sombra? Eu acredito que quando morremos e somos condenados pelos nossos pecados, somos postos num cárcere, cuja

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ausência é a palavra de ordem. Ausência de luz e também de escuridão; ausência de som e de silêncio. Ausência, ausência, absoluta ausência... A etapa seguinte neste outro mundo seria a do castigo ativo, onde os condenados são mergulhados por verdadeiras eternidades em poços onde as piores sensações que proporcionamos às pessoas principalmente aquelas que nos amaram em vida e que tanto magoamos - são apresentadas em estado extremamente concentrado. Nesses poços é que somos mergulhados e esquecidos. Por uma eternidade inteira, estarão os pecadores mergulhados no “poço da mágoa”, em outra eternidade no “poço da saudade”, em outra eternidade mais à frente no “poço da ingratidão”, e assim sucessivamente. Antes de ser decidido se as almas vão para o céu ou para o inferno, todas as almas - as boas e as ruins - são levadas por um breve átimo ao paraíso. Deste modo, os amaldiçoados podem ter a exata ideia do que perderam e desta forma, teriam ampliados incomensuravelmente os seus volumes de estertor. – Pô... - Tive que me manifestar. – Faz muito mais sentido que o inferno de Dante com suas lanças, caldeirões com óleo fervendo e correntes. Faz sentido Tchélo. Se deixarmos de ser matéria, esta “pungência” não pode ser capaz de nos afligir. É como tentar socar uma sombra mesmo... E assim permanecemos trocando ideias. O Bínchi levantou a bola para o tema da qualidade de vida. Como o mundo poderia ser melhor para aqueles que assim o desejassem? – Para mim, as verdadeiras cidades mundiais deveriam ser desenvolvidas em territórios tidos como inúteis tipo desertos, áreas congeladas e fazendo uso de toda a tecnologia disponível. Só viveriam nestes lugares, pessoas que se propusessem a desenvolver um progressismo real. Sem racismos, homofobismos, sionismos ou quaisquer outros “ismos” que depreciassem quaisquer etnias ou opções de vida. Qualquer evidência de corrupção, ou, de quebra da regulamentação desenvolvida como ideal para o bem comum, seria punida com a expulsão do infrator para o seu país de origem. Na bandeira leríamos “Liberdade sem libertinagem”. – Mas isto é utopia... - Desdenhei. – Ué? Você não tem a tua utopia? Todos têm. mundos menos absurdos que este. - Argumentou.

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Todos sonham com


– Por exemplo? – Ah Máicou... A utopia de consertar a sociedade brasileira. Esta é de doer. – Por quê? - Perguntei estupefato, me sentido ofendido no meu nacionalismo. – É o povo que é o dono da sociedade. Nós temos o direito de restaurá-la. – É impossível restaurar o que nunca se fragmentou, pelo simples fato de uma sociedade do povo nunca ter existido. Os filhos da elite aprendem a nos explorar desde que estão no berço. É uma tendência maléfica que só se aprimora ao longo dos tempos. Eles transformam os heróis em vilões e vice-versa. Tudo com muita propriedade. A única saída para nós seria este racha no mundo em duas ordens: A neoliberal e a progressista. E que cada um viva o fruto das suas escolhas. É por isso que tenho este preconceito tão profundo contra os ricos. Cara, não posso ver gente rica que logo me vem a mente que se ele tem tudo pra esnobar, é porque em algum momento ele roubou algo que era de todos nós por direito. – O que te fez desenvolver esta concepção? É meio próxima do anarquismo... – Acho que foi a constatação de sucessivas omissões e mancadas dos que se propõe a nos representar. Às vezes sinto inveja dos minerais, vegetais e dos ditos irracionais. Depois que os donos do mundo aprenderam a colocar em prática o significado da palavra semântica e desenvolveramna até alcançar o “sofisma”, que é o aperfeiçoamento quase tecnológico do poder de convencimento, as maneiras de seduzir o povo e convencêlo, passaram para outras formas quase irrecusáveis como a publicidade. Eles partiram do medo imposto pela força dos períodos medievais, para o apelo quase irrecusável da beleza e das técnicas de oratória, onde ladrões bonitos e com a barba bem feita, aprenderam a trabalhar com mentiras imensas, e, principalmente à negação do óbvio. Estas mentiras viraram ferramentas, principalmente quando aqueles que os observam, se iludem e acreditam numa emoção que por sua vez é minuciosamente calculada. É o tal do sofisma. Para aprender a mentir bem também existe cursinho cara... – Eu entendo... - Tive que me render aos argumentos – Eu também já senti isso. Mas qual seria a solução num âmbito micro? O que eu e você poderíamos fazer? – Eu falei com o Tchélo... Mas ele tá de viadagem. - Por quê? - Perguntei sem nada ter entendido.

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– Era pra ele se candidatar, mas é um cara cheio de vergonha... Tem “discursofobia”. - Aí o Tchélo resolveu se manifestar. – Ah... Me deixa na minha bicho.... – Mas existe uma ideia pra uma candidatura ou é só uma sugestão? Indaguei tentando obter mais da conversa. – Eu tenho a ideia, aliás, eu já estou com tudo montado. A campanha teria a nossa cara. – De quem foi a ideia da campanha Bínchi? – É nossa responsa. Eu, Tchélo e Dodô. É para avacalhar com o esquema deles. O bagulho é assim... – Meu irmão; o bagulho é o seguinte... -interrompeu Dodô -. Eu acho uma indecência este tipo de comportamento que TODOS estes políticos adotam. Eles dizem que amam a cidade e em época de eleições “imundecem” a cidade toda e depois, quando as eleições acabam são incapazes de recolher um galhardete sequer. Fica tudo na conta da Comlurb. Se você olhar para a cara deles nas fotos dos galhardetes e outdoors, estão todos rindo nas fotos. Todos parecem ter dezenove anos de idade. Isso é para ver o quanto é baixo o nível de identificação destes políticos com o povão. O lógico seria que todos aparecessem com cara de muito putos, ou então chorando. Rindo, jamais. Eles usam esta técnica de massificação da imagem, porque não possuem obras úteis feitas em prol do povo. Não há nada que sustente a lembrança do eleitor. Tem que poluir a nossa visão sem perguntar a nossa opinião. Precisam ser onipresentes para que a hipnose em massa seja gerada. Só assim conseguem se eleger. E então comecei a ouvir a ideia deles para uma campanha política. Silenciosamente me mantive enquanto Bínchi e Dodô se atropelavam na explicação do projeto. O primeiro seria criar um informativo que tinha a seguinte mensagem na primeira página: “É FUNDAMENTAL PARA A NOSSA HIGIENE E COMPLETO SUCESSO DESTA CAMPANHA, QUE, AO TERMINAR A LEITURA DESTE INFORMATIVO E VOCÊ NÃO RESOLVA GUARDÁ-LO, ELE SEJA DEVIDAMENTE DEPOSITADO NUMA DAS CESTAS DE LIXO DA CIDADE. MUITO OBRIGADO“ VIRE A PÁGINA POR FAVOR

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Na parte de trás da folha, seria detalhado até que ponto um vereador poderia fazer algo pela comunidade de quem estivesse lendo o prospecto, tipo: “Primeiro: Se um candidato a vereador te prometer aumentar o salário mínimo três vezes, dê a ele o teu melhor soco porque ele mente. Um vereador não tem poder para mexer no salário mínimo sozinho”. Seriam feitas duas listas: Uma informaria o que seria possível ser feito no cargo de vereador. A outra informaria as principais mentiras utilizadas como ferramenta normalmente pelos “um sete um” da política. O “santinho” seguia a mesma premissa. Na frente à mensagem de zelo pela cidade. No verso uma foto três por quatro xerocada no alto, antes do texto, e, algumas dicas embaixo como: “Certifique-se que o candidato da sua preferência nunca foi eleito”. Caso ele esteja tentando o seu segundo mandato, pergunte-se: “Por que as coisas continuam como estão, se ele já teve uma chance de mudar tudo”? Ao contrário dos políticos profissionais com seus santinhos coloridos e fotos de trinta anos atrás, o próprio Tchélo estava processando as cópias da campanha eleitoral que ocorreria dentro de dois anos. Sem nenhum acordo ou patrocínio, a campanha que eles estavam desenvolvendo era fruto dos favores de bons amigos e das economias, principalmente do Tchélo, na barraca de CDs piratas. As faixas seriam pintadas à mão. Eles haviam conseguido comprar dois rolos de murim - o material usado para confeccionar faixas. – As nossas faixas não cumprem o propósito das faixas dos políticos profissionais. Elas servem apenas para avisar os nossos muitos amigos, os quais não “batemos de frente” há tempos, que estamos tentando chegar e fazer algo não por eles, mas por nós todos. – Pô... Isso aí é sinistro. Maneiro mesmo. - Respondi com certo entusiasmo que até então eu não tinha percebido na minha vida. O Bínchi dizia que o Tchélo era a sua verdadeira aposta, mas como a posição do Tchélo sobre a possibilidade de se tornar um político - ou sequer tentar se eleger - era impossível, ele resolveu chamar a responsabilidade para si.

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– Pô! Alguém tem que fazer alguma coisa. Não da mais pra ficar “debaixo do edredom”. Eu falei para o Tchélo que se ele tentasse se eleger, eu até cagaria por ele, mas ele não admite. Daí eu resolvi usar as ideias que tivemos juntos sobre as táticas de campanha anticonvencionais e colocar o “bloco na rua”. Mesmo correndo o risco de ser acusado de populista, que é o principal argumento dos elitistas da política contra aqueles que tentam fazer algo realmente funcional para o povo, eu resolvi tentar. Eu já te mostrei as nossas ideias. – O que você achou Máicou? Na “moral”, fala aí... – Bem, mediante os argumentos que para mim estavam muito bem fundamentados, não sabia mais o que acrescentar, o que dizer. Limitei-me a dizer a verdade. – Eu faria tudo igual, isto é, se eu tivesse o potencial de desenvolver tais ideias. No meu ponto de vista... É tudo perfeito. Tudo funcional e objetivo. Exatamente como o povo necessita. Tudo para ontem. É perfeito. Neste ponto do nosso convívio, tive a oportunidade de perceber que mesmo não sendo brilhante sociologicamente, o nego Bínchi estava longe de ser uma “comédia”. Tinha atitude. O Dodô que estava mais quieto olhava para a TV, mas não parecia estar prestando a menor atenção no que estava rolando na tela. Estava longe. Eu estava muito curioso para saber o que motivara um cara com um perfil como o dele a participar daquela mobilização. Afinal, ele era nitidamente um playboy. Mesmo que falido e completamente maluco. Mas um playboy em sua essência. – E aí Dodô? O que cê tá pensando sobre tudo isso? – Sabe qual é responsa? Eu tenho dois filhos. Preciso ver um futuro pra eles. Eu vivo da condição da minha mãe, da minha tia e sou profissional de pista. O Tchélo não pode nem chegar perto de uma agência de emprego e o Bínchi que tem vários cursos, ninguém emprega porque nasceu preto e articulado. Só queria ser uma pessoa do bem ao contrário do que sou hoje. Só isso... Parece que na verdade, na verdade a democracia só divide igualmente duas coisas entre pobres e ricos: A violência e as doenças pesadas do novo mundo. Por isso a indústria do sequestro cresce tanto e é tão bem vinda... – Ah, não! Peraê Dodô. Cê tá querendo me dizer que você é a favor da indústria do sequestro? Tá louco cara. Eu sou completamente contra. -

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Antecipei-me aos ideais bandidos que o Dodô esboçava naquele momento e fiz questão de deixar bem claro o quanto eu era contra tudo aquilo. Mas ele parecia ter algo mais a dizer sobre o assunto. – Eu também sou contra responsa. Posso concluir? Então... Num mundo de bilhões de pessoas, meia dúzia concentra todo o dinheiro possível, mesmo não tendo como gastar uma fração de tudo que eles acumulam durante a vida. De algum outro lado do mundo, num canto escuro e úmido que não interessa a ninguém que tenha condições de fazer alguma coisa, está a maioria sem dinheiro para o básico, às vezes até falta grana para comprar um rolo de papel higiênico. Enquanto isso, nós, os sem nada, ficamos vendo o desfile de estilos de vida desta gente no glamour das revistas de fofoca vendidas a R$ 1,00. E a porra da televisão mandando: “Compre! Compre!”. Que ferramenta um moleque que vai crescendo com estas carências de supérfluos que o sistema atual cria e coloca na cabeça de todos vai usar? Ele é obrigado pelas mensagens que os comerciais criam e jogam para o subconsciente, a participar daquela roda viva de consumo. Seja lá como for... A renda, no final, acaba sendo distribuída pela mão cruel da violência, via sequestros e outros crimes hediondos. Cara... É o sistema. Não fui eu que inventei. Quando eu nasci ele já estava aí. Essa porra toda já estava aí! Tchélo resolveu resumir o assunto. – A única solução para as classes “D” e “E”, no tocante a alguma conquista genuinamente significativa no campo da qualidade de vida, seria uma greve de consumo. Só devíamos comprar arroz, feijão, ovo, farinha, leite, remédios, peças inteiras de fazenda para as nossas costureiras confeccionarem nossas roupas, assim como nossos calçados que seriam produzidos por nós mesmos e livros. - Neste momento fui arrebatado por uma analogia maravilhosa que esta ideia criou com o meu passado e que vocês verão mais à frente. Na medida em que os donos do mundo aumentassem o nosso poder de compra, começaríamos paulatinamente a voltar a viver o sonho do capitalismo. Na verdade começaríamos né? Porque até agora, na festa dos caralhos capitalistas o povo tem entrado com o cu. Assim o depoimento de Tchélo sobre os seus ideais foi encerrado. A conversa descambou pra mais pura das sacanagens e mentiras que todos os homens gostam de contar em grupo. Na verdade a vida não se resume só a esquentação de cabeça.

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Principalmente para nós, que em nossas vidas sempre gostamos de foder com tudo. Nosso bonde estava fechado. Pude sentir que a chapa com eles fervia, e nós, iríamos pichar os nossos nomes no muro da História das Torcidas.

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CapĂ­tulo 5

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Minhas cicatrizes

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“Aquele que compete conosco fortalece os nossos nervos e aguça a nossa habilidade. Nosso antagonista é nosso colaborador” E. Burke, Reflexões Depois de um campeonato carioca impecável no quesito “estratégias bélicas”, começamos a sofrer uma enorme - porém positiva pressão para assumirmos a diretoria após o “golpe de estado” que os

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membros do Conselho, Conselho Fiscal, fundadores e o ancien régime começavam a planejar. A diretoria, que estava no cumprimento do mandato na época estava desviando parte da arrecadação dos ingressos que o clube cedia. As ações começaram a levantar suspeita, após a comprovação dos vários compromissos em atraso (tais como contas de luz, condomínio e o aluguel da sala da sede). O presidente em exercício era o Renato Maluco. Muito esperto e sagaz em muitas funções da vida bandida, mas completamente inábil na arte da organização financeira. Em suma, uma presa fácil para os ratos responsáveis pela parte burocrática da Torcida. O Deportivo jogaria a sua primeira rodada do campeonato brasileiro contra o Sport de Recife e o Renato Maluco seria o único a viajar. É que havia um monte de conveniências da parte dele. Primeiro: Ele era nascido em Recife e por lá viveu até os nove anos. Segundo: A mãe dele estava enterrada lá e há muito tempo ele não fazia uma visita ao seu túmulo. Na verdade, desde que veio para o Rio. Hoje, com quarenta anos, criado por conta própria e educado sob o duro regime das leis das ruas, Renato Maluco amoleceu quando soube em que local o Deportivo estrearia no campeonato brasileiro. – Eu vou levar a faixa pra Recife brother. Sozinho e de avião. – Pô, qual é Renato Maluco? Você vai querer ir de avião cara? A gente vai de ônibus. Com esta grana da pra três pessoas viajarem de ônibus cara... Qual é? - Argumentava inutilmente Jorge Ricardo, o Diretor de Patrimônio. – Não! Quem vai sou eu e foda-se, final! Embate terminado. O que o Renato Maluco não sabia, é que um conluio poderoso se formava para destituí-lo do cargo de presidente. Enquanto ele estivesse visitando a sua terra natal, conselheiros, membros atuantes e o ancien régime da Torcida, tramariam o seu impeachment com base nos argumentos das contas atrasadas e num possível desvio do dinheiro das credenciais. Afinal, o dinheiro arrecadado com a venda de credenciais cedidas pelo clube em uma única rodada era o suficiente para que todos os compromissos de um mês inteiro fossem honrados. Como o Deportivo jogava em média quatro vezes por mês no Maracanã, era claro que algo estava errado. Mas certamente o que mais incomodava a todos os mentores do golpe, era o fato do repasse das vendas das

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credenciais não estar sendo depositado periodicamente nas contas bancárias dos “donos da Torcida”. Eles tinham que levar as suas partes e aquilo era um absurdo. O problema começou a crescer como fermento, quando alguns membros do conselho que partilhavam de opiniões contrárias sobre o esquema de partilha de credenciais unidos a outros antigos em atividade, souberam o que estava sendo planejado, e, ao invés de incentivar o golpe, começaram a forçar o movimento pela antecipação das eleições como exigia o estatuto em caso de comprovação de desvio financeiro no movimento do caixa da Torcida. O grupo da oposição tinha como objetivo a compra de uma sede ampla e confortável. Sabiam mas não admitiam o esquema de “pensão camuflada” em vigor. Era a luta do bem contra o mal. Rapidamente dois grupos antagônicos se formaram e estes não reconheciam a existência um do outro. Pelos nossos laços de amizade e consideração, resolvemos antes de tudo fechar com o grupo que apoiava o golpe. Claro que sabíamos que “golpe” não significava algo em que acreditássemos, mas àquela altura do campeonato estávamos de acordo. Muita democracia em Torcida Organizada é sinônimo de libertinagem. O cálculo é simples: Assumiu a responsabilidade e se revelou incompetente, “rala peito” e da à vez para outro que esteja disposto e capacitado. Simples. No exato dia do jogo contra o Sport Recife, a diretoria que o Renato Maluco havia nomeado -nome a nome -, se juntou ao Conselho, Conselho Fiscal e aos membros atuantes mais influentes, com duas finalidades: Assistir ao jogo e determinar o fim da era Renato Maluco na presidência da Kamikazes. Nós estaríamos presentes, mas como meros coadjuvantes. Havíamos conversado entre nós quatro dias antes e chegamos à conclusão que não seria bom para a nossa autoestima, conviver com este ato de extrema traição, que seria a retirada do Renato Maluco da presidência, sem a presença dele para se defender das acusações. Não votaríamos. Os “golpistas” nos subestimaram desde o primeiro momento. Desde quando Pedrinha, Amadeu e Marcelo Lesma (membros do conselho) nos convocaram para nos expor tais problemas internos, em nenhum momento a nossa opinião foi solicitada sobre aquilo tudo que estava acontecendo. Ninguém estava interessado em saber se queríamos

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ou não tomar o poder. Não fomos consultados em nenhum momento. A conversa deles era “você faz isso e você vai fazer aquilo etc”. Tudo bem. No momento... – Máicou, o caso é que tá rolando “mão de onça” no dinheiro da Torcida Organizada. A gente vai dar o golpe e tomar a Torcida. Nós do conselho queremos vocês. - Sem em nenhum momento perguntar pelo nosso interesse em tudo aquilo. – E a diretoria do cara? - Perguntou Tchélo. – Tá todo mundo com a gente. - Não fiquei surpreso até porque eu já detinha esta informação. Naquele momento uma característica saltava aos nossos olhos: A deslealdade. Todos em busca de uma oportunidade para promover o caos, e, deste caos, tirar algum proveito financeiro. O Renato Maluco estava na Torcida há mais de vinte anos. Não nos importava os motivos, não importava o quanto às denúncias fossem sérias. O Renato Maluco tinha crédito. Tinha que estar lá. Isso seria justo. Principalmente se levarmos em consideração, que ele não era o Diretor Financeiro e não entendia nada de contabilidade. Mas disso todos sabiam e ninguém estava interessado. Foram eleitas as “marionetes” ideais de acordo com o préjulgamento dos golpistas. Muito deste equívoco de avaliação se deu pelo desprezo dos responsáveis pelo golpe para conosco e para com as nossas ideias. Eles nem sabiam que tínhamos ideias. Eles tinham uma concepção pré-estabelecida na cabeça, de que não passávamos de bárbaros, trogloditas e mercenários com menos de duas funções no cérebro. Este, sem dúvidas, foi o mais infantil e determinante dos seus erros. Afinal, tínhamos maldade no coração. E muita. No dia da reunião, não tivemos sequer a oportunidade de assistir ao jogo. A urgência para destituir Renato Maluco do cargo era tanta, que o Deportivo ficou em segundo plano para todos. A reunião transcorreu com momentos que oscilavam entre o diálogo e a histeria. Quando tudo já estava decidido, vi Amadeu pegando o telefone e ligando o viva voz. – Alô? Renato Maluco? E aí? Tá tudo bem?

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– Tá lóide. Como tão as coisas aí? – Ó...Tô te ligando pra te dizer que a direção geral da Torcida acabou de votar pela tua saída da presidência. – O quê? Mas como cara? Que bagulho é esse que você tá me dizendo? Pobre Renato Maluco... – Ó Renato Maluco, tu não é mais criança, tá me entendendo? Tem sala atrasada, telefone, condomínio... Há mais de seis meses. Não dá pra deixar correr até completar um ano. O conselho existe pra isso. – Eu tô indo para aí. – Pode ficar aí e curtir as tuas férias. Quem vai assumir é a galera do “B.I”. (era a maneira como nos identificavam: “Bonde Implacável”). Máicou é o novo presidente. – Mas o cara é meu braço, meu amigo... Ao ouvir aquilo, eu me senti muito mal. Mas ao mesmo tempo eu sabia que era o melhor a ser feito. Se não assumíssemos, abriríamos o caminho para ratos maiores tomarem conta do patrimônio. Entre morrer de gangrena e cortar a perna... – Pois é. Mas tá disponível pra ajudar a Torcida. A Torcida tá precisando de sangue novo. Gente mais preparada. – Eu vou acabar de fazer o que tenho de fazer aqui e já tô voltando. – Tá tranquilo. Faz como você achar melhor. A amizade continua. - E depois desta frase, Amadeu bateu o telefone sem dizer um “até logo”, ou um “boa viagem” para o até então amigo. Renato Maluco era um cara responsa que não costumava pedir muitas coisas para os outros. Ele tinha uma postura antagônica ao assistencialismo que todos adotavam como estilo de vida numa torcida, e isto era facilmente notado. Ele se defendia no mundo de todas as maneiras honestas possíveis e imagináveis, mas quando o dinheiro sumia da pista, ele não pensava duas vezes em ir à boca de fumo da favela da Foca Peidona (uma comunidade da zona oeste, próxima à exuberante Barra da Tijuca), onde morava num quartinho com banheiro do lado de fora e sem cozinha, e pedir ao gerente do movimento uma carga de Brizola para "levantar o dinheiro das despesas da semana". Ele virava vapor sem nenhum constrangimento. A fome não tem ética né? Tão pouca paciência. Ele havia sido um dos dez moradores que invadiram o terreno primeiro, que era uma área de preservação ambiental, e que até hoje o

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governo não havia reclamado nem perturbado. Com isso a favela ia crescendo e crescendo. O posto de "fundador" lhe rendia alguns privilégios com a rapaziada do movimento. Além de ser antigo no lugar e nunca ter dado uma demonstração de mancada ao longo dos mais de quinze anos em que vivia na comunidade da "Foca Peidona", Renato Maluco não era de bobeira. Como ele mesmo dizia: "ferramenta de se viver a gente tem que improvisar é toda hora". Às vezes eu o encontrava em um ônibus qualquer da linha 355-Madureira/Praça Tiradentesvendendo sacos de bala de "iorgute", ou chocolates de marcas famosas falsificados, imitações baratas dos originais. Outras vezes ele estava na linha do 940-Ramos/Madureira- vendendo para os passageiros, combinações de duas canetas, uma lapiseira, uma borracha e um caderninho, ou, outra combinação que consistia em: três lixas de unha, uma tesoura pequena, três paus de laranjeira e um pequeno recipiente de acetona. Teve suas passagens como viciado e chegou a ter a sua própria boca de fumo. Mas agora, com quarenta anos, parecia ter se encontrado com relação a isso. Vivia muito mais com o instinto do que com cálculos e preparações. Era uma pessoa admirável dentro da sua simplicidade absoluta. Ele acreditava piamente que a sua sobrevivência estava diretamente atrelada ao seu código de conduta. Código este, que tinha lá quatro ou cinco regras apenas. Tinha, por obrigação com a sua sobrevivência, aproveitar todas as oportunidades que lhe saltassem à frente, mas não olhava para a mulher dos outros nunca, nem trapaceava os próximos. Também não gostava de se exceder no comportamento, forçando demais a sua aceitação num ambiente. Todas as vezes que nos encontrávamos num ônibus qualquer da vida, ele me presenteava com o que ele estivesse vendendo. Se fosse doce eu aproveitava e comia ali mesmo. Se fosse coisa de mulher, ele dizia que era pra eu levar pra minha mãe. Bem, inimigos não eram necessários para aqueles que têm amigos como os do Renato Maluco. O que tínhamos certeza era de uma coisa: Na aposta total que eles faziam na nossa subserviência. Já tinham até escolhido a nossa Diretoria. Haviam colocado Pedrinha como tesoureiro e Amadeu no financeiro. Tudo resolvido, tudo adequado... Tínhamos um problema relativamente grande que era o crescimento do movimento que julgava necessária a convocação de eleições diretas. Nestas eleições, somente os sócios rigorosamente em

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dia e com mais de um ano de carteira poderiam votar. Era isto que determinava o estatuto. O grupo que defendia as diretas detinha um grande número de sócios da Torcida com mais de um ano e em dia. O estatuto, especificamente, dizia que “em caso de fraude comprovada, o Presidente deveria ser afastado e o vice, automaticamente nomeado. Em caso de dupla omissão comprovada, ambos deveriam ser destituídos dos seus cargos e eleições diretas deveriam ser convocadas imediatamente”. Neste caso, o conselho resolvera “rasgar” a convenção no melhor estilo das tradições futebolísticas brasileiras. Renato Maluco de Recife ainda ligou para seus aliados aqui e a notícia do golpe se espalhou e revoltou por todos os lados, dividindo a todos. Em menos de dois dias, o ambiente da sede era dos piores. Como seria o próximo jogo? Estava claro que uma guerra interna seria deflagrada. Até então eu não tinha visto nada parecido, mas, todas as informações históricas davam conta que este era o acontecimento mais brutal de uma Torcida Organizada: A guerra interna. A guerra civil. E assim, prevendo o pior, nós aguardamos. Teríamos um jogo complicado em Minas Gerais contra o recém-promovido à primeira divisão América Mineiro. O jogo realizar-se-ia numa cidadezinha do interior chamada Torresmos de Minas, cuja fama dos habitantes era das piores quando o assunto era receber visitantes. Reunimo-nos na garagem da minha casa para preparar apetrechos e ferramentas que seriam necessários à viagem. Confeccionamos mais de cinquenta BOMBI (BOMba de bolas de BIlhar). A bomba de bola de bilhar era a ferramenta de guerra de torcida mais prática. Tanto na produção quanto na sua utilização. Consistia num pedaço de papel celofane, pólvora pra caralho e a bola de bilhar em cima. Depois fazíamos um embrulho e dávamos um nó com qualquer tipo de corda na boca que se formava acima. Depois era só mirar e jogar. O efeito do impacto era devastador. Quando não causava sérios danos físicos, proporcionava um campo propício à nossa invasão, já que todos que estivessem próximos à explosão, tinham seus sentidos avariados, e sendo assim, se tornavam presas fáceis. No dia da viagem para Minas, todos se encontraram para sair da concentração costumeira: A nossa sede no Méier. A princípio, pensei que sairíamos nos agredindo desde o primeiro momento. Mas felizmente vi que não era bem assim. Por um momento cheguei a pensar

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que tudo não passava de um mal entendido, tamanho era o clima de festa que os dois grupos partilhavam. A viagem transcorreu com o clima de tensão em suspenso. Eu aguardava mais temeroso pelo batizado (ritual de iniciação aplicado a todos os membros de Torcida Organizada na primeira viagem), que pela tal “guerra civil”. Acabei tendo uma surpresa agradável, quando o Pedrinha anunciou: – Sem batizado hoje. Vamos guardar as nossas forças pra batalha que tá nos esperando com a oposição quando a gente chegar lá. – Mas e a tradição que... - Interrompendo Dodô antes do final da frase, Pedrinha foi definitivo. – Tradição é o caralho porra! Quem sabe sou eu, porra! - E assim o Dodô falou pra mim: “Se deu bem nessa hein filho da puta? Eu tava doido pra te esmagar nesse batizado”. Sorte minha? Ninguém ousou contestar o Pedrinha depois deste pronunciamento tão delicado. Na verdade todos sabiam que aquela ordem, na verdade, era um valioso conselho capaz de reduzir consideravelmente o volume de danos físicos. Precisávamos estar preparados sem o desgaste da zona costumeira da viagem. Precisávamos estar descansados. Desta forma, silenciosamente fomos até Minas Gerais. Sem festas, sem zonas, sem bagunças. Só uma expectativa flutuando como éter na atmosfera. Os dois lados chegaram ao mesmo tempo na cidade. Dividimonos em grupos e começamos a zanzar pela cidade praticando pequenos furtos e outros micro delitos. As vítimas eram quaisquer estabelecimentos que vendessem comida e bebida. Dinheiro sempre é bom, mas sinceramente, nunca era a nossa prioridade numa viagem. Então, depois de nos alimentarmos farta e gratuitamente, começamos a busca pelo combustível da alegria: Álcool. Quando a onda da bebida começou a bater, eu pensei: não é possível que numa situação tão divertida, o pessoal pense em violência. Depois que vi o Amadeu conversando animadamente com o Lito, um dos líderes da oposição, fiquei mais tranquilo ainda.

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O jogo era às dezesseis horas e como já estávamos na porta do pequeno estádio, começamos a cumprir o ritual de entrar antes da multidão para organizarmos a festa. Eu estava satisfeito de bebida, com a sensação de ter bebido até um pouco além do que devia para alguém que precisava manter a atenção. Ao entrarmos, percebi o pessoal se aglomerando no bar do estádio e... Mais cerveja e mais golpes tipo: “Ô cumpadi! Cadê as minhas cervejas rapá? Eu já te dei oito tickets aí porra. Anda. Tô com sede”. E os pobres dos garçons - roceiros matutos -, se tornavam reféns do poder intimidatório da rapaziada, e cediam apavorados às ordens. O clima era de quase festa com vários membros das duas correntes conversando animadamente e contando histórias. Mas, o decorrer das horas, mais o volume de álcool e outras substâncias tóxicas - no organismo, começou a digamos... Aquecer instintos até ali congelados, adormecidos. A bebida funciona para alguns, como o espinafre para o Popeye. Todos se tornam valentes, fortes. Neste caso, o estopim da pancadaria poderia ser qualquer coisa. Um olhar mal interpretado, uma pisada (mesmo que leve) nos pés de alguém ou até mesmo um leve e natural encontrão de ombros, o que seria mais que natural no meio de um tumulto aonde muitos vem e vão. E foi exatamente assim. Justamente por este motivo, que uma discussão começou na área de circulação do estádio em frente aos bares. – Porra! Tá doidão filho da puta? Num tá me vendo não caralho? Alguém disparou. Eu ouvi a gritaria, mas não consegui ver quem soltara na cara de Amadeu esta frase como se fosse um tiro. – Vai te tomar no cu rapá! Tu derrubou a minha cerveja toda em cima de mim e acha que vai falar o quê? – Ah maluco... Foram as últimas palavras que ouvi daquela discussão especificamente. O que se seguiu, foi um violento soco na cara de Amadeu e a generalização da porradaria por todo o estádio. Rápido assim. De um lado vi o Bínchi distribuindo pernadas, do outro o Dodô com uma barra de ferro nas mãos, repelia como podia a investida de três caras que, apesar de estarem trajando o uniforme da Kamikazes, eu nunca os tinha visto antes na Torcida. Os caras que sofriam com as pernadas do Bínchi, eu também não conhecia. De estalo me veio à ideia,

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que aqueles caras não eram da Torcida, mas sim “mercenários” importados de algum bonde de baile funk para reforçar as tropas da oposição. Uma prática muito comum nos dias de hoje. Era notório que esta seria uma viagem especialmente perigosa para os opositores do nosso sistema, levando em consideração que o nosso grupo tinha se revelado como o mais brutal de todas as torcidas do Rio durante o campeonato carioca. Eles teriam muito trabalho. Precisavam muito de reforços ou caso contrário seriam esmagados muito facilmente. Num átimo, quando percebi o quanto a briga estava equilibrada e desenvolvida, consegui descobrir de onde eles haviam conseguido arregimentar tantos simpatizantes. Eles eram do morro do Coice. Um deles na euforia da briga soltou um grito de guerra típico deles: “morro do coice Lado B”. Um lugar que vocês conhecerão com mais detalhes logo adiante... Eu estava meio preocupado, porque percebi que a polícia mineira não tardou a se mobilizar para conter a cacetaria que havíamos começado a patrocinar. Até este ponto eu não havia entrado na briga efetivamente. Só havia me desviado de uns socos e de umas mesas e garrafas que haviam voado na minha direção. Eu não consegui achar o Tchélo. Somente quando alguém caiu em cima de mim, é que pude alcançar outro ângulo e pude vê-lo de joelhos abaixado com as mãos na cabeça com um grupo de aproximadamente dez em cima dele. Ele sofria todos os tipos de golpes imagináveis. Era um linchamento. – “Fila” da puta! - Eles gritavam enquanto desferiam os golpes. Com raiva, muita raiva na voz. Levantei-me calmamente empurrando o cara que havia caído desmaiado em cima de mim, de maneira a tentar evitar ao máximo a surpresa de um golpe traiçoeiro. Quando percebi o mínimo corredor de três metros que se abrira a minha frente - e que me permitiria tomar o impulso necessário para o único golpe que me era possível executar naquele momento -, corri o mais que pude e saltei o mais perto dos caras que linchavam o Tchélo e soltei um longo e gutural grito: – Coé Bínchiiiiiiiiiii.

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Antes de cair no chão, dei a primeira pesada no meio das costas de alguém que gritou feito uma franga e já parti socando outros, que mesmo em maioria, ficaram sem reação. Durante um minuto ou mais, ou menos, só deu eu. Depois eles acordaram do susto e levei um bom chute na perna e outro na boca do estômago. Fui salvo de um estrago maior com a chegada providencial de Bínchi distribuindo socos e caneladas sem economia. Juntamo-nos e fizemos um isolamento em volta do Tchélo. Não tínhamos como ajudá-lo a se levantar. Só podíamos tentar impedir que ele fosse agredido mais e mais. Enquanto apanhávamos muito mais que batíamos, gradativamente fui sentindo a diminuição dos golpes que vinham e miravam basicamente a minha nuca. Foi inevitável desviar o olhar do centro do tumulto pra saber o que acontecia. Era o Dodô que acabara de chegar e formara um tipo de triângulo com o Tchélo no meio, caído... Os nossos inimigos, também portavam alguns pedaços de madeira arrancados de algum lugar do bar, que irresponsavelmente estava passando por obras. Vi que Bínchi tinha o rosto totalmente banhado por sangue. Havia um “beiço” de pele na cabeça dele. Mais precisamente na testa. Estava horrível. Cada vez que ele se movimentava, aquilo se movimentava junto, como uma franja. Quanto mais ele se movimentava, logo mais sangue jorrava. A briga estava animadíssima. Lembrei-me que seria interessante tentar fazer um “relatório de avarias”. O meu estado não era nada diferente dos outros. Da direita vi um cabo de enxada que desceria por mais uma vez na minha cabeça e coloquei o braço esquerdo para me defender. Foi imediata a sensação do osso rachando e eu caindo para trás, perto do muro. Sem querer o Tchélo - ou o que sobrou dele - me presenteou com uma “deliciosa” cama de gato involuntária (tropecei no amigo enquanto andava de costas devido o impacto da porrada e cai batendo as mesmas no muro. Depois do choque no muro, vim “escorrendo” por ele até o chão). Apesar de ferido, consegui cair acordado. Bem ferido. Aliás, bastante fodido. Meus lábios não resistiram a dois socos diretos e explodiram. A polícia surgiu do nada e varreu a todos que estavam de pé com golpes daqueles cacetes do tamanho de uma pessoa e coturnadas. Apesar de alguns golpes dolorosos, foi o que salvou Bínchi e Dodô, que se jogaram no chão ao lado de Tchélo, numa atitude tipo “eu não estou em condições de guerrilhar. Eu não tenho nada a ver com isso”.

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O pessoal da Forca Sul que assistia a tudo da arquibancada rindo, zoando e aplaudindo, resolveu tomar partido quando a polícia chegou. Desceram em grupos divididos e começaram surrando violentamente um grupo de nativos, os quais já haviam nos advertido antes da viagem, eram metidos a bravos e gostavam de agredir covardemente os visitantes, mesmo sem motivos. A Forca Sul era ótima em guerras. O que se seguiu foi uma dessas insólitas alianças. Os “golpistas” se juntaram aos “oposicionistas”, que por sua vez se juntaram à Forca Sul. O Nélio - líder da oposição - foi em direção ao Amadeu, fazendo um sinal que era um pedido de calma. – Agora fudeu Amadeu. Vamos nos unir senão a gente vai morrer caralho! – Demorou Nélio. Vamos botar pra quebrar nessa boceta. - E formou-se a aliança a jato. Deitado pude ver. Os dois deram as mãos e levantaram os braços para todos verem. E num grito selaram o acordo: “União Deportivôôôôôôô!”. E assim se formaram vários grupos de resistência, visando desconcentrar os poderes, já que esta era a tática utilizada pela polícia para conseguir um rendimento mais eficaz dos seus cassetetes: Manter todos acuados juntos. Era mais fácil para eles manter o rebanho junto. O “serviço” rendia mais. Depois de dispersarem os grupos, confundindo os policiais completamente, eles voltaram a se unir num grande grupo, enquanto os policiais continuavam dispersos correndo individualmente atrás de cada pequeno grupo de desordeiros. Foi uma grande demonstração de experiência em conflitos de massa dada pelos líderes unidos. E gritavam: “ÍÍÍÍÍÍÍÍ vamô invadi”. E repetiam isso sem parar. Um corredor com um metro de largura no máximo dividia os dois grupos. Frente a frente. Todos os soldados que vi tinham medo de verdade no rosto. E por pouco não foram esmagados, não fosse a sagacidade do capitão, que vendo a situação ficar fora de controle, lançou três bombas de efeito moral em cima da fila de vanguarda da

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gente. Elas foram prontamente devolvidas pela rapaziada, que aguardava as bombas explodirem para devolvê-las, improvisando camisas como isoladores para a alta temperatura das mesmas. Mesmo sem medo das bombas, elas acabaram cumprindo o seu papel, que era descompactar o nosso grupo. Alguém da diretoria do clube teve a “brilhante” ideia de abrir os portões do estádio e a cidade, certamente, foi brindada com o maior espetáculo de barbárie de toda a sua História. Os ambulantes de porta de estádio tiveram suas mercadorias saqueadas, além de serem espancados. Cada caixa de isopor fora quebrada e o dinheiro deles usurpado. Era demais! Os Kamikazes lutavam e sorriam e roubavam e bebiam... Coisa de gente sociopata. – Quem foi o imbecil que abriu os portões? Quem? Queeeeeeeeeeeeeeeeemmm? - Gritava o capitão em fúria total, babando. – Imbecis! Vamos trancar o portão de novo diabo! Com isso, metade do nosso contingente ficou preso dentro do estádio. Dois soldados em pânico seguravam o portão de ferro e quem tentasse fazer força contra eles e abrir os portões para sair do estádio, outros dois soldados, que faziam a contenção dos tais “guardiões do portão”, aplicavam violentos golpes nas mãos dos mais ousados que tentavam abrir o portão. Eu, deitado com um violento ferimento na perna direita que eu acabara de descobrir (talvez por ter parado de me movimentar e consequentemente meu sangue ter esfriado), tive a oportunidade de descobrir outros tantos ferimentos que se espalhavam por todo o meu corpo. Enquanto contabilizava meus ferimentos, tive a oportunidade de testemunhar uma das tacadas determinantes da estória. Enquanto eu, Tchélo e Bínchi permanecíamos deitados, Dodô - o que visivelmente parecia ser o menos avariado do nosso quarteto - se levantou e sorrateiramente começou a se dirigir para um recuo que havia ao lado do portão de saída que estava sendo vigiado pelos guardinhas, mas do lado de dentro, pois não havíamos conseguido sair junto com o bonde que estava aterrorizando a cidade. – Porra moleque! Vai aonde filho da Puta? - Perguntava Bínchi com cara e voz de desespero, mas por dentro amando aquilo tudo. – Eu vou ali... - Respondeu Dodô sem condições de ser mais específico.

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– Peraí que eu vou contigo. Não vai sozinho não caralho! Desesperava-se Bínchi já começando a se arrastar e- m direção a Dodô. Dodô passou pelo tumulto correndo e chegou a um pipoqueiro que estava exatamente no recuo, apavorado com aquilo tudo que presenciava. Ao chegar ao objetivo, Dodô perguntou algo a ele, que por sua vez também perguntou algo ao Dodô. Pela cara do pipoqueiro, ele havia se dirigido ao Dodô para perguntar algo como “O que você falou?”. Pronto! Esta foi a senha para Dodô aplicar um violento soco na cara do pipoqueiro - senhor idoso que caiu sentado. Dodô abriu a janelinha da carrocinha e pegou a panela cheia de óleo que fervia e correu em direção ao portão, acertando o conteúdo da panela em cheio nos rostos dos dois soldadinhos que faziam a guarda do portão. A rapaziada arregaçou o portão com pesadas e buscou agredir o máximo de soldados possível gritando nomes de demônios e afins. Chamei pelo Tchélo. Ele levantou e olhou para mim. Puta que pariu. Eu fui obrigado a rir no meio daquele oceano de desgraça. Quando ele levantou o rosto na minha direção, seu nariz estava nitidamente quebrado. Somente três dentes da frente resistiram e a boca estava cheia de sangue. Os olho fechados de tanta porrada. O sangue escorria ainda vivo pelos cantos da boca. Ele olhou para mim e sorrindo, com aquela cara toda arrebentada e inchada falou: “Que merda hein?”. Bínchi era um cara forte para o caralho. Mesmo todo fodido, trouxe o Dodô em segurança da missão do portão, onde se sentaram ao meu lado. – Da pra andar neguinho? - Ele me perguntou. – Não. Acho que quebrei o braço e o fêmur. - Relatei a ele. – E tu Tchélo? – Posso tentar. - Respondeu o nosso amigo todo quebrado e ensanguentado. – Vamos pra aquele lugar ali, no recuo e aí a gente sai do estádio e se esconde lá por fora, valeu? - Falava Bínchi apontando para o recuo. Todos concordaram. O Bínchi se sentou e começou a me puxar pelo braço direito que era o braço bom em meio aquela nuvem de gás que cobria tudo. “Se a gente chegar lá fora, a gente tem uma chance de dar um pinote. Lá fora tá menos concentrado de vermes e de gás. Os roceiros já se mandaram”, explicava assim o seu plano enquanto o Tchélo se

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esforçava para guardar alguns dos seus dentes perdidos que não foram esfarelados. Que cena! Meu Deus! Que cena... Conseguimos sair e ficamos atrás dos muros de um bar em frente ao estádio. A saída foi relativamente tranquila. O foco do pior já estava em outro ponto da cidade. Por lá nos mantivemos por um bom tempo. Às vezes passava um de nós correndo a toda e gritando com uns PMs perseguindo. Às vezes passavam vários de nós correndo atrás de alguns PMs. O pessoal se expandia pela cidade agredindo qualquer um que estivesse nas ruas. Fosse padre, fosse mulher grávida, fosse criança. Qualquer um era violentamente surrado. Isso proporcionou um ambiente de pós-guerra na porta. Quando julgamos tudo estar mais calmo e conseguimos sair nos arrastando, vimos Amadeu conversando com um senhor que chorava copiosamente (mais tarde fiquei sabendo que se tratava do Presidente do América). Quando aparecemos, alguns rastejando e outros engatinhando, o Amadeu tratou de fazer um ótimo uso daquela imagem chocante. – Ali o que eu tô dizendo pro senhor. Ali. Olha porra, o retrato da incompetência. - E então, após proferir estas palavras de modo a exercitar o remorso do Presidente, ele correu para nos ajudar. – Meu Deus! Desculpem-me! - Repetia o senhor. – Puta que pariu. Porra! Olha os moleques. Todos arrebentados. - O Amadeu, naquele momento desmentia o capitão da polícia que dizia que nós havíamos iniciado o tumulto. Amadeu nos defendia alegando que a polícia havia chegado batendo sem tomar conhecimento do que estava acontecendo. Ele fez um bom uso da informação da tradicional falta de modos da população e aproveitou pra jogar tudo na conta deles. Ele aproveitou para dizer que a briga entre dois membros da Kamikazes fora um fato isolado e que todos se mobilizaram apenas com o intuito de apartar o tumulto. Amadeu alegou que o volume de pessoas que apartavam a briga serviu de pretexto para a polícia aquecer os seus piores instintos e blá, blá, blá... Vários “miguéis” foram lançados embasados na vasta experiência do Amadeu em tumultos generalizados. O presidente do clube silenciou. – Ô presidente. Por que o senhor, num gesto de humanidade, chama uma ambulância pra levar estes rapazes urgentemente? E com a cabeça o Presidente do Clube concordou e s- e dirigiu ao que parecia ser um

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funcionário particular. Ele falou algo no pé do ouvido deste cara, que fez uma expressão de muito puto para nós e, com a cabeça, também disse sim ao presidente. Enquanto isso, o Amadeu falou algo discretamente no ouvido do Nélio usando um conjunto de gestos para se expressar. Gestos estes que expressavam uma grande raiva com tudo aquilo. O Nélio, que parecia levar um estrondoso esporro, nada respondia. Contrariando toda e qualquer expectativa, ele manteve a cabeça baixa, enquanto o Amadeu falava e abria e fechava os braços. Uma ambulância chegou e eu fui recolhido de maca. Tchélo subiu amparado pelo Bínchi que por sua vez se amparava no Tchélo. Dodô não tinha muitos cortes. Talvez pelo fato da potência devastadora das várias madeiradas que ele recebeu na cabeça terem sido amortecidas pelo seu indefectível boné, ele ainda estava de pé. Mas havia inchaços assustadores na sua testa. Seu nariz estava nitidamente quebrado também. Eu vi o exato momento em que ele se sentou na ambulância e desmaiou. – Caralho! Que dor de cabeça. - Resmungou Tchélo. Amadeu veio logo em seguida. – Anda com esta merda, porra! Leva os caras pro Hospital Caralho! - E aplicando várias porradas na ambulância ele apressou a nossa ida. E fomos rumo ao hospital municipal deles. Apaguei depois que o enfermeiro ministrou uma dose de “sabe-se lá o quê” em mim. Só acordei quando percebi uns solavancos e uns gritos me incomodando lá dentro da minha cabeça. Pensei: “Chegamos no hospital”. – Anda vambora porra! Acorda a Cinderela aí Bínchi. E ninguém se mexe hein caralho? Senão vou distribuir caroço de azeitona. - Era a voz do Nélio. Reconheci muito longe... O panorama era o seguinte: Nós estávamos no meio de uma estrada de chão batido com mato e mais mato dos dois lados. Capim alto dos dois lados para ser mais preciso. Quando sai, carregado por alguém que não me lembro quem era, vi a ambulância parada meio de lado, a caminhonete que os oposicionistas haviam alugado, estava posicionada

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na frente da ambulância (como se tivesse fechado a mesma) e o motorista e o enfermeiro debruçados no capo da ambulância numa posição pra lá de ridícula, com a bunda para o alto as mãos entrelaçadas na nuca e as pernas abertas. – Ô moço! Pelo amor do sagrado. Nois somo é chei de fi pracriá. Nóis num tem nadica de ver com isso não sô. – Cala boca porra! - Gritava Nélio fazendo o tipo ensandecido, com os olhos arregalados e se tremendo. Puro teatro, mas ajudava a manter as coisas sob o seu controle. O medo é uma ferramenta muito útil. Estava acontecendo um resgate. Depois de algum tempo é que consegui entender. Nélio foi o último a subir na caminhonete. Ele queria ter certeza que tudo estava a seu gosto. Deu um tiro para o alto e falou: – Se os dois saírem do lugar, eu vou voltar e vou voltar pra comer a bunda de vocês dois. Tomar no cu hein porra? Caralho... - Ele entregou o oitão para o Bínchi que estava sentado no banco do carona. – De olho neles porra! Se um dos dois respirar com força “estala” neles. O Nélio havia nos resgatado sozinho no meio do nada a partir de um plano dele e do Amadeu. – Era isso que o Amadeu tava falando contigo como se tivesse te dando um esporro? - Perguntou o banguela Tchélo. – Num tá vendo? – Mas por que vocês fizeram esse resgate? – Tinha ódio no ar responsa. Os roceiros tavam tramando um bagulho pra quem fosse pro hospital. O que era eu não ia pagar pra ver. Vim pegar vocês. E assim partimos para o Rio. Fiquei impressionado com a atitude do Nélio. Antes estava de frente conosco como o nosso pior inimigo. Quando acordei, ele era o meu salvador. Fiquei observando aquele cara dirigindo com a maior atenção e velocidade possível. Assim começamos a nossa volta pra casa. – E os caras? E o resto da Torcida? - Eu estava desesperado de verdade pra saber; preocupado mesmo com todo mundo.

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– Num esquenta não responsa. É todo mundo piranha. Todo mundo assobia, chupa cana e toca violino ao mesmo tempo. Eles vão dar o jeito deles. Alguém ligou pra imprensa e tem um montão de jornalista lá. Vai ficar ruim pra eles fazerem alguma covardia agora. - Tranquilizou-me o Nélio. – É tu que vai ser o Presidente? Perguntou-me rindo. – É. - Respondi meio sem graça com aquilo tudo. – Teu irmão pelo menos era gente fina. Agora vamu vê você... - Finalizou a conversa deixando bem claro que iria depositar alguma confiança em mim. Ali nascia uma amizade forte como o titânio. Depois da demonstração de coragem e clareza de objetivo, fui cativado imediatamente. Nada de democratas e golpistas. Apenas Kamikazes unidos. Os meus ferimentos na perna, pude curar com antibióticos, já que eu não a quebrara como havia pensado. O meu braço infelizmente não teve a mesma sorte e tive que me operar e colocar uma chapa de aço e oito parafusos. Uma operação bem sucedida que me colocou em “rota de colisão” com o mundo de novo em menos de três semanas. O número de pontos que levei na cabeça e nos lábios não consegui guardar. Quando as pessoas viam o meu aspecto e o tamanho do estrago, elas costumavam perguntar quantos pontos eu tinha levado, e eu, na sacanagem, respondia: “Só sei contar até cem”. Nossa primeira providência como presidência da Kamikazes foi custear o implante dos dentes do Tchélo. Ele já tinha problemas demais, mesmo com todos os dentes na boca. A segunda foi enviar um fax para todas as torcidas Organizadas do País. Cujo texto era:

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Rio de Janeiro,

de

de

.

À Torcida “X” A partir da presente data, a Torcida Kamikazes se resume aos membros que neste documento são citados. Em caso de agressão a quaisquer pessoas que estejam trajando o nosso uniforme considerem a real possibilidade de estarem agredindo nada mais que meros civis, ou, o “povão”. Estes são os verdadeiros troféus da Torcida: Máicou da Silva Santos Rua: Agnaldo Vidal, 179 - Vicente de Carvalho Marcelo Raimundo Vieira (Tchélo) Beco Senhora Amália, casa 18 - Bairro do Lido Eduardo Luís Benzer Corrêa (Dodô) Rua Dimitri, 33 apto. 304 - Caxambi Matheus Leonardo Vasconcellos (Bínchi) Av. Automóvel Club, 1099 Condomínio dos Pássaros Bl. 19 apto 401 Pavuna

Grato pela atenção Máicou da Silva Santos Presidente

Foi o primeiro duro golpe para aqueles que acreditavam que se iniciava uma época de obediência absoluta. Na real, a Kamikazes entrava numa época de violência e reciclagem. E nenhuma atitude, pelo menos imediatamente, poderia ser tomada por nenhum lado da Torcida. Afinal houve um consenso geral quanto aos nossos nomes. Nós rimos por último.

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CapĂ­tulo 6

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Uma epopeia ao contrรกrio

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“Para novos tempos, novos heróis” Clube da Miragem

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Em algum lugar da cidade... – Não! Você não vai. Onde já se viu? Sair num calor destes para ir ao banco? Coisa que você nunca fez!!! Manda o motoboy vir entregar aqui em casa. Este sol é muito perigoso para você que não está acostumado. – Não Lydia! Eu estou aposentado! Não estou morto. Mesmo com todo este luxo e conforto dentro e fora desta casa, pelos jardins, etc., às vezes, a clausura deste ambiente me faz sentir algo como um enfisema pulmonar. Ou seria um equizema? Bem, o que sei é que preciso respirar, ver a vida e as pessoas existindo. Que mal pode haver nisso meu amor? E de mais a mais, sol é vida. - Dizia o Dr. Eduardo. O doutor Eduardo era um advogado renomado que, por recomendações médicas e fraternais - uma vez que além de seu médico particular, o Dr. André, era, também, seu amigo desde os oito anos de idade - teve de se aposentar por causa do coração. Com setenta e um anos de idade, o Dr. Eduardo sabia que a sua aposentadoria era prematura, uma vez que ele era um dos três advogados criminalistas mais solicitados da cidade do Rio de Janeiro. Mas... A opinião dos filhos pesou muito na hora de decidir e o Dr. Eduardo resolveu seguir o conselho de todos preferindo se dedicar a partir daquele momento, ao aproveitamento da fortuna que havia acumulado ao longo de uma vida muito útil. O problema é que até aquele ponto, ele não havia encontrado a maneira adequada de como este aproveitamento se daria, uma vez que não havia lugar no mundo para aonde ele não tivesse viajado, restaurantes que não conhecesse e outros prazeres que o dinheiro pode proporcionar que ele não tivesse experimentado. O Dr. Eduardo ainda estava ministrando em doses "homeopáticas" a sua liberdade excessiva cumprindo pequenas tarefas inúteis. Falo daquelas tarefas que poderiam ser realizadas por milhões de pessoas disponíveis para realizá-las para ele. Às vezes ele ia levar o cão de sua esposa, a Dona Lydia, para ser tosado, outras, ele ia ao mercado sob o pretexto de comprar uma pasta que estava faltando na dispensa, enfim. Tudo sob os protestos veementes de Dona Lydia, que odiava ver o Dr. Eduardo zanzando por aí. Ela morria de medo que isso se tornasse um hábito e ela, que pensava ter chegado o momento de aproveitar a companhia do Dr. Eduardo por mais tempo, tivesse que se conformar com a solidão sem jeito até os últimos dias de sua vida.

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– Eu vou ao banco e pego o dinheiro para pagar o jardineiro e volto para almoçar. Pronto! – Vou chamar o Celso para ir contigo... – Que Celso o quê? Não quero motorista babá! Eu sei dirigir muito bem e nunca sofri de falta de paciência no trânsito. Celso? Com licença Lydia... - E saiu o Dr. Eduardo rindo alto e sozinho sem um motivo muito claro. Enquanto isso, no centro da cidade, perfumado pelo monóxido de carbono e outros venenos, um Dodô revoltado efetua alguns pagamentos para a sua tia como parte da rotina que era o sistema de rodízio regulamentado por todos em sua casa. Cada semana, um dos desempregados da casa - que eram todos os primos que moravam sob o mesmo teto -, ficava responsável pelos pagamentos das contas, que, claro, só de sacanagem, nunca venciam na mesma data. Ele atravessa a Presidente Vargas para pagar uma conta de material de cama e mesa um dos muitos artigos vendidos em casa por sua tia - no último pedacinho da Rua Uruguaiana. O calor, o sol, tudo indescritivelmente desagradável. No bolso apenas o dinheiro para a volta para casa. Nem um dinheiro a mais para uma "água mineral da bica". Aquela vendida pelos camelôs. Pois bem. O Dr. Eduardo entra no banco Sudameris e em menos de quinze minutos sai conferindo a quantia sacada com o propósito de pagar o jardineiro de seu super apartamento e possivelmente para outras despesas menores. Um Dodô destruído pelo cansaço, dobra a esquina e de longe, com olhos de águia avista o Dr. Eduardo calmamente contando um vistoso bolo de notas de alto valor - facilmente identificadas pela sua coloração amarelada - tranquilamente na calçada em frente à porta do banco. Dodô atravessa a rua e coloca o envelope com os recibos dos pagamentos dentro das calças. Sem perder o Dr.Eduardo de vista por um minuto. Ele da um pique quando vê o sinal da Presidente Vargas milagrosamente se fechando naquela hora em que ele passava e corre, corre, corre... Uma oportunidade única, onde vários elementos estavam cosmicamente posicionados. Ao passar ao lado do Dr. Eduardo, Dodô da um salto e faz um giro completo sobre o próprio eixo no alto, como um bailarino, ao lado do coroa e da um bote certeiro no bolo de notas que estava na mão esquerda dele. O Dodô sempre gostou de efeitos sonoros nas suas "aventuras", e no exato momento do

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bote ele emitiu um som tipo: "nhammm". Um tipo diferenciado de molecagem. A marca do artista. Não sei se pela pirueta, ou pela onomatopéia inusitada, especialmente criada por ele para ocasiões tipo “botes num roubo”, ou por falta de costume na prática com situações deste calibre, o Dr. Eduardo levou um minuto ou mais para processar o acontecido. Enquanto isso, Dodô corria calmamente, sorrindo e batendo os calcanhares na bunda, enquanto o sinal fechado lhe permitia uma travessia tranquila para uma das pistas do meio da Presidente Vargas, para logo depois ganhar a Rio Branco e sumir pela São José. O Dr. Eduardo, depois que percebeu que tinha levado um bote, ainda conseguiu pegar o sinal aberto e correr atrás de Dodô, mas a idade e, principalmente a falta de malícia, não permitiram que nenhuma chance fosse dada para o Dr. Eduardo recuperar a vantagem que Dodô conquistara. Os camelôs riam e comentavam "o coroa tomô um bote aí". Os transeuntes olhavam como se ainda fosse possível ver o replay do lance. Ao pegar um ônibus qualquer na 1º de Março, Dodô aguardou calmamente para ver quanto havia arrecadado neste delicioso biscate. O ônibus passou em frente à rodoviária e por lá mesmo ele saltou. Foi no reservado de um telefone público, e fingindo estar usando o mesmo para não atrair ratos maiores que ele próprio, contou o dinheiro. Perdeu a força nas pernas. Havia mais dinheiro que qualquer imaginação poderia criar. Na hora ele ligou a cobrar para sede e fez questão de saber quem lá estava. Todos estávamos. Automaticamente ele partiu para o Méier. Por lá uma feijoada foi agilizada. Arroz branco, farofas de toucinho e linguiça e também de banana, feijão carreteiro com costela defumada, linguiça de paio, carne seca, orelha de porco, rabo de porco, joelho de porco e todas as outras imundícies que amamos comer, além de couve mineira picadinha, laranja, caipirinha em baldes, sucos e várias garrafas de Guaraná Antártica, porque ninguém do bonde bebe Coca-Cola. Água mineral bem gelada e duas caixinhas de cerveja na “humildade e no talento”. Por este banquete fechamos a sede antes da hora do almoço e fomos pra casa da Suzana - diretora do Farândula feminina - em Realengo, para desfrutar da sua culinária e do seu maravilhoso quintal cheio de sombras de árvores. Ela defendia um troco na época tomando conta de um montão de crianças em casa. Ela era formada em pedagogia e tinha um talento natural com crianças, mas nem isto fazia dela uma opção diferenciada. Desde que se formara não conseguia emprego, sob a

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velha alegação da falta de experiência. O pessoal dizia que ela e o Tchélo tiveram uma “parada”, um romance no passado. Independente destes dramas, esta era uma terça-feira abençoada pela fartura das coisas que realmente gostaríamos de aproveitar, de comer e de beber. E que quase nunca tínhamos oportunidade... Num lugar granfino qualquer da cidade, o Dr. Eduardo, mais calmo depois do susto e com um copo d’água com açúcar na mão, conversava com a Dona Lydia: – Que moleque mais ligeiro... Imagina ele como mensageiro, ou num cargo que precise de um raciocínio rápido... Filho de uma puta talentoso... – Só você mesmo para rir de uma situação destas Eduardo. Só você... – Acho que encontrei uma maneira fantástica de investir o meu tempo... - Disse o Dr. Eduardo meio enigmático. – O que meu bem? – O meu tempo! – Como assim? – Vou investir o meu tempo transformando rapazes como aquele em pessoas bem sucedidas. – Mas você não pode mais trabalhar meu bem. A sua saúde não suporta mais rotina. – Trabalhar? Agora eu vou é me divertir apostando nesses meninos. E como você sabe que eu não jogo pra perder... Vou me divertir incentivando vencedores que estão incubados dentro de cada um moleque como aquele. E assim, o casal de velhinhos trocou um gostoso abraço bem apertado. Felizes e gratos por terem perdido só dinheiro. Para eles, apenas dinheiro...

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2ª PARTE

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NĂŁo me convidaram pra esta festa, mas... Foda-se.

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O Dodô estava chegando na Kamikazes por intermédio do Ranes, quando este havia acabado de sair da cadeia por assalto à mão armada. Eles se tornaram mais amigos depois da liberdade do Ranes, porque na época da prisão dele, o Dodô ainda era muito moleque. Os dois formaram uma dupla bem sucedida, onde o Dodô sempre respeitava a hierarquia e observava os movimentos do Ranes nas suas ações conjuntas. Fosse roubando um reloginho num ônibus, fosse aguardando alguém sair do shopping com suas compras para dar o bote... Prestar muita atenção era a principal virtude do Dodô e, pelo visto, o acompanhava desde bem novo. Com os “negócios” da firma indo de bom a melhor, rapidamente a dupla estreitou mais ainda os seus laços e aproveitaram para investir em “ferramentas”. A primeira delas foi um “oitão” com coronha de marfim. Uma arma tão clássica, definitivamente não combinava com dois patifes tão sem classe. Mas foi o que a oportunidade das ruas jogou nos peitos deles e, óbvio, eles trataram de segurar rapidamente. Apesar de seus baixos objetivos eles tinham estilo. Começaram a ampliar o campo de ação e se revezavam no uso da “peça”. Hora um ia “trabalhar” com a ferramenta, hora outro. E assim eles se entendiam perfeitamente na busca de seu objetivo, que era o de adquirir outro revólver de modo que pudessem formar juntos de novo nos mais diversos assaltos que a cidade possibilitava. O Ranes sabia que o Dodô torcia pelo Deportivo, mas que não tinha o hábito de acompanhar os jogos. Em contra partida, o próprio Ranes era um dos ratos mais pichados da Kamikazes com a sua cabeça a prêmio em vários mundos. O convite para acompanhar a Torcida não tardou: “Vamo lá Dodô. Só de marola”... E assim a ponte foi feita para mais esta subdivisão da vida subterrânea que eles levavam. Eu já contei como eles se conheceram? Pois então, o Ranes era um dos muitos pichadores desocupados que frequentavam a casa da avó do Dodô. Lá onde era o QG das gangues de pichadores mais famosas da cidade. O Ranes sempre brincou muito com o Dodô. Sempre considerou ele um menor esperto e gostava do estilo dele. Sendo assim... O primeiro jogo do Dodô foi Deportivo x Extremo. Não quebrando a tradição, dentro e fora do Maracanã a violência foi absurda. O medo, a emoção, a raiva de uma pessoa que até então não se tem o menor motivo para se odiar e que nunca se viu na vida entre tantas outras sensações nunca antes experimentadas, fizeram com que Dodô

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rapidamente se apaixonasse por aquele universo cheio de regras novas e até então impensadas. Aproveitando-se do fato de ter chegado com um padrinho forte, Dodô adquiriu uma postura mais próxima da arrogância, com brincadeiras agressivas de péssimo gosto e aplicando pequenos golpes nos outros membros da Torcida. Era mesmo assustador até para os mais antigos, ver um moleque de treze anos com tanto talento para deflagrar uma granada por minuto. E era justamente o que ele fazia. Era o Dodô que encabeçava alguns dos mais violentos ataques da época, indo a reuniões de outras torcidas de surpresa e devastando a tudo e a todos. Era ele também quem fazia questão de dar os tiros na ida e na volta dos jogos. Fossem estes no Rio ou fora dele, enfim. Obviamente que um estilo de vida tão rápido e moldado num desprezo tão absoluto à máquina do Estado, não poderia ter um prazo de validade tão longo. Ranes foi preso num lance amador. Numa tacada das mais tolas, digna dos bandidos mais cabaços e inexperientes do Rio. Num domingo de sol, ele mais trinta amigos ao voltarem da praia resolveram, na hora de ir embora, praticar um arrastão nas areias de Copacabana. Como ele mesmo disse depois, “era só para arrumar um dinheiro para o lanche da volta”. Infelizmente, a fome - vontade de comer neste caso seria um termo mais adequado - não é um motivo plausível para atenuar uma sentença de roubo. E assim o Ranes voltou para mais uma temporada no presídio. Mas antes de ir para lá, comeu o pão que o diabo amassou numa delegacia até ser julgado. Delegacia é foda. Numa cela para dez, ficam oitenta. O estresse é constante pela falta de espaço, pela falta de ar, falta de educação, etc. Claro que o Dodô percebeu o quanto as coisas mudariam sem o seu temido padrinho por perto para garantir-lhe as regalias. Afinal, como seriam os movimentos daqueles que foram subjugados pela lúdica crueldade de um garoto cheio de instintos ruins e com um repertório infinito de brincadeiras repulsivas tais como tapas em pescoços, tapas em testas, usurpação de tudo que alguém estivesse portando - mesmo que o objeto não lhe despertasse o menor dos interesses - e outras mil inconveniências mais. Ele sabia ler nas entrelinhas do esgoto em que vivia. Na verdade os meios alternativos de se viver são ambientes muito práticos. Não tem essa viadagem de textos e subtextos. É o que tem que ser feito e o que acontecerá se o que é necessário não for feito. Ponto final. Esta visão era uma parte do Dodô. A ficha da necessidade da

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execução de um gesto com alto teor de coragem e ousadia lhe caiu rapidamente. Só um ato aterrorizante e improvável de coragem de sua parte, poderia render-lhe o respeito necessário. Pelo menos pelo tempo que ele precisasse para que uma atitude mais condizente com sua nova condição de “órfão” fosse desenvolvida. Para que ele pudesse começar um novo estreitamento baseado em boas atitudes com os Kamikazes, o que poderia ser determinante na sua tentativa desesperada de evitar a iminente vingança - ou, por que não dizer, vinganças? - daqueles que por ele foram subjugados. Ainda havia uma hipótese pior: Ter que se afastar daquele ambiente ao qual ele já se via tão íntimo. Tão próximo. Só havia uma maneira: Impressionar para emudecer. Num dia qualquer de uma semana qualquer, a informação de que um canal de TV iria gravar um comercial com as principais torcidas nos respectivos estádios dos seus clubes, chegou até os ouvidos do Dodô, que andava preocupado pra cacete com tudo que estava acontecendo. Afinal, ele não queria mais deixar de formar com o bonde da Torcida. De todos os nichos subterrâneos que ele havia participado, a torcida organizada havia falado mais alto em seu peito como estilo de vida. Os contatos com a TV foram feitos e ele descobriu que numa terça-feira, a Raiva do Clube de Regatas Olímpico seria gravada fazendo festa na arquibancada do estádio. As gravações eram marcadas para as nove da manhã em ponto. O Dodô, nesta tal terça-feira, acordou às seis da manhã e partiu para a Gávea, bairro onde se localiza o Estádio do Olímpico. Às oito e trinta da manhã, ele chegou à porta do estádio com uma camisa bem antiga da raiva, bastante surrada mesmo. O que lhe rendeu o primeiro esporro. – O filho da puta! Tu não sabia que não era pra botar essa porra velha? Quem gosta de molambo é cu de Judas porra! - Dirigiu-se a ele o membro da Raiva conhecido como Nagô. – Foi mal porra! Eu só tinha essa lavada. Preferi chegar limpo que de roupa nova e suja. Deixa eu entra aí cara? Vai ter almoço de graça e eu tô com uma fome do caralho. Faz uns três dias que só tô comendo uma coxinha ou outra quando dá. - Suplicou Dodô com uma retórica, que só os mais habilidosos moradores das ruas possuem. Só os mais políticos ratos podem ludibriar os mais antigos ratos.

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– Toma aqui menó. Leva este surdo lá pra dentro. - Mandou Nagô Dodô executar a sua primeira tarefa. E depois de levar o surdo, ele voltou para continuar a ajudar Nagô, que se encontrava sozinho descarregando o patrimônio da Torcida. E voltou de novo, de novo, de novo... Até que conquistou a confiança do mesmo por inteiro. Sucesso na tarefa “conquista da confiança”. Já lá dentro, a gravação transcorria normalmente e Dodô participava de tudo. Nem muito discreto nem muito participativo. Na dele apenas. Misturado a vários membros na mesma condição dele: Alguns famosos outros totalmente desconhecidos como ele. Às doze horas o almoço foi anunciado e todos partiram para o refeitório do Clube. Dodô preferiu se dirigir ao banheiro e por lá permaneceu uns dez minutos. Ao sair, não partiu para o refeitório, mas sim, direto para as arquibancadas onde estava acontecendo a filmagem. Lá, sem nenhum vigia, repousava o material da Raiva. Duas faixas enormes das oficiais, bandeiras, instrumentos etc. Tudo esticado nas arquibancadas. Ele olhou para um lado e para o outro. Depois de comprovar que por ali não havia ninguém, começou a dobrar a faixa oficial da Raiva (aquela que era utilizada no Maracanã) e uma bandeira com o mapa do Rio de Janeiro. Depois e dobrá-las cuidadosamente, ele começou a se dirigir para fora do Estádio pela garagem do clube. Um segurança o interceptou no meio do caminho... – ÔÔÔ! Para aí! Tá indo pra onde com isso aí? - Dodô gelou e tremeu na base como nunca tremera antes. Um medo novo, todo particular. O que dizer? Como sair daquela situação? Como agir de maneira que seu ato de extrema coragem não fosse denunciado no último instante prestes a ser premiado com o sucesso absoluto? Uma única ideia veio imediatamente à sua mente. Ele só poderia torcer para que ela fosse suficientemente boa. – O Nagô me mandou levar estas peças que já foram usadas no comercial pro carro, que é pra não confundir com as que tão no caminhão... - Disse ele aproveitando para arriscar tudo com a sua calma calculada colocando o material roubado no chão para enxugar a testa molhada de suor que nada tinha a ver com o calor, mas sim com a sensação de nervoso e medo.

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– Ah... Tá bom então. - Disse o segurança do Clube. – Quer uma ajuda? – Tá tranquilo! O carro tá logo ali. Não precisa não. Depois de manter-se por mais um tempo simulando um descanso ao lado do segurança, ele saiu de forma desengonçada e lenta levando primeiro a faixa para a calçada e depois voltando para pegar a bandeira, de modo a não despertar a mais leve das suspeitas no segurança. Calmamente. Assim ele rumou a um ponto de táxi. Lento. Ansioso. Embarcou no primeiro táxi que estava disponível e falou para o motorista: – Para o Méier, por favor. - Durante a viagem, ele não conseguiu parar de rir um minuto. Como um tolo, ele olhava o Rio pela janela e sorria. Mesmo sem sentir que estava sorrindo, ele sorria. Chegando ao Méier, ele tocou a campainha da sede da Kamikazes com a camisa da Raiva e cheio de “troféus”. Os mais valiosos troféus jamais conquistados na história da Torcida Kamikazes. Pelo olho mágico, Faustão levou um grande susto e teve que ser mais forte que as milhões de dúvidas que surgiram em sua mente ao ver Dodô trajando uma camisa dos “alemão”. – Que porra é essa piranha? - Perguntou Faustão intrigado. – Eu trouxe este presentinho pra nós amigo. Tem Raiva? Enfia o dedo no cu e rasga... Quem manda nessa é porra é a tal da Kamikazes. Anunciou o belo feito de coragem Dodô, com este discurso com entonação e linguagem todas particulares. Faustão chamou a todos para que vissem o que estava na frente dele. Ninguém parecia acreditar que um filha da puta de um moleque havia feito aquilo sozinho. Depois que todos conseguirem se refazer do impacto daquela cena, Dodô teve que contar a história umas dez vezes. Cada um que chegava pedia para que ele repetisse com minúcias de detalhes a sua aventura heróica. Ao sair da sala ele se despediu de todos. Alguma voz perguntou: “O Dodô... E esta camisa da Raiva que tu tá vestindo?” E ele, com um sorriso cínico no rosto respondeu: “Vou devolver pro meu primo”.

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Durante os anos que se seguiram, recebemos centenas e centenas de telefonemas com pedidos e ameaças a nós e a todos os nossos familiares por conta dessas peças do patrimônio da Raiva. É difícil quando a pernada vem de um lugar tão inesperado... Tão baixo... O Dodô aproveitou muito bem a nova chance e passou a tratar a galera de maneira mais familiar. Recomeçou a sua história na Torcida e nunca mais, - a partir dali - deixou de fazer algo por um Kamikaze. Alcançou sua redenção. Deu duro por isso. Mereceu.

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CapĂ­tulo 7

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Por dentro da sede, Por dentro do Clube.

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“Nós não sabíamos o que queríamos, mas sabíamos o que não queríamos (...) o nosso sentido era especificamente destruidor” Mário de Andrade

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Salvo os funcionários, alguns membros de Torcidas Organizadas e alguns jogadores, a “fauna” que habita o clube é basicamente composta por raposas e aves de rapina. As menores sendo devoradas pelas maiores e, outras tantas, conseguindo criar alianças com base na subserviência absoluta, de modo a poder ganhar mais um dia dentro daquele ambiente. Todos os diretores e conselheiros pertencem aquele tipo execrável de ser humano que tem um sorriso congelado e as mãos estendidas para um aperto. Todos! Além destes cartolas (misters em falsidades aplicadas), haviam alguns sócios particularmente parecidos no item tocante à falta de caráter. Esses sócios se aproximam das Organizadas ocultando o desprezo absoluto que sentem pela nossa gente. Devido à necessidade do estreitamento do contato - seja pela conveniência da política interna e a consequente necessidade de apoio, seja pela necessidade de público para seus projetos diletantes, repletos de demonstrações de amor burguês pelo clube e falta de talento -, seus gestos tendenciosos eram conhecidos de longa data. Como o caso de Héctor por exemplo. Gordo, branco como uma vela, grande e desengonçado. Voz melíflua. Contraia os olhos quando se expressava ou ouvia alguém e estava sempre disposto a fazer uma promessa, que se esquecia de cumprir, ou melhor, que fazia questão de esquecer logo assim que encerrava uma conversa com aquele que lhe pedisse um favor, e que, de acordo com o seu julgamento, não tivesse como lhe dar nada em troca. Burguês da Lagoa, Héctor almeja o patamar de artista multimídia. Tipo ”Jean Cocteau”. É músico, produtor cinematográfico, artista plástico e designer, mas na verdade o talento é o seu maior inimigo. Passa o dia buscando no clube inspiração para suas obras, o que é impossível. O clube não faz milagre. No clube todos têm livre acesso aos seus corredores. Uma construção com cem anos e repleta de vitrais franceses e outras viadagens. Este livre acesso, permitido aos líderes e membros influentes de Torcidas Organizadas, não é fruto de prestígio conferido a estes pelo clube. É que devido à impossibilidade quase absoluta de se encontrar um diretor responsável por um setor em sua respectiva sala de trabalho para resolver problemas urgentes (visto que estão sempre em passeios pelo clube ou em “reuniões” secretas), o ingresso às dependências sociais e administrativas é liberada. “Se quer falar com alguém, ache você mesmo”, é o lema dos funcionários. Aliás, o ingresso às dependências do clube, nunca chegou a ser controlado. Esse trânsito

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livre nos proporciona espetáculos insólitos (como o de diretores agarrando suas secretárias em salas de almoxarifado) e constrangedores (como flagras em outros diretores vivendo tórridos momentos homossexuais com funcionários ou entre eles mesmos). O nosso acesso, mesmo depois destes fatos seguidamente presenciados por anos e anos, nunca chegou a ser ameaçado. Afinal, nós somos insuperáveis na sutil arte da “desatenção forjada”. Os sujos amam isso. Amam... O clube havia nos cedido um cubículo há muito anos atrás por ocasião da eleição vencida pela Torcida - exatamente um espaço sob uma escada - há trinta anos. Era o que chamávamos de “sala”. Não era possível que mais de duas pessoas ocupassem o ambiente ao mesmo tempo. Nesta sala concentrávamos noventa por cento do material, o qual era utilizado não só em dias de jogos, mas, também, em dias de treinos. Eram bandeiras, faixas e instrumentos de percussão em farta quantidade. A passagem mais significativa, digamos assim, da Kamikazes dentro do clube, foi por ocasião duma solenidade que comemorava os cinquenta anos da conquista do troféu Shoppenhour. Um troféu conquistado no exterior e que foi responsável pela introdução do Deportivo no cenário internacional. Era considerado um título muito expressivo devido ao seu alto grau de dificuldade e por reunir os cinco melhores clubes do mundo de cada ano de acordo com o ranking da FIFA. Era um sábado à noite e era condição determinante para o ingresso no clube no dia da festa, que se trajasse terno. Toda a aristocrática elite que compunha a diretoria do clube estava reunida. Infelizmente nem todos de nós tiveram oportunidade de participar do evento, uma vez que não foram postos ingressos à venda, e sim, uma quantidade de convites limitados e disputadíssimos, os quais foram miseravelmente distribuídos à nossa escória. Acabou sobrando para nós o usufruto dos maravilhosos uísques que indefectivelmente eram servidos em solenidades de tal calibre. Isso para não falar dos maravilhosos canapés. Chegamos ao clube e tudo transcorria naturalmente. A noite era de fartura como esperávamos, mas tudo estava tão entediante... Havia um grupo onde o cantor era um pentelho falando com o público e cantando com voz de locutor de rádio AM tarado. Ele cantava “New

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York, New York” e outra canção. Na sequência, o grupo voltava a tocar a porra da “New York, New York”. Um desfile de mulheres com maquilagem carregadíssima - o que não dissimulava seus aspectos mumificados - e vestidos indecifráveis para mim, um pobre jovem suburbano. Protocolo, cerimônia, sorrisos... Um saco. Mas quando tudo parecia naufragar na irrefutável realidade de uma bebedeira comportada, vimos alguém se movimentando em desalinho, rápido demais se comparado aos gestos calculados e elegantes dos velhos decrépitos que participavam do evento. Era Marcos “o alto”, chegando suado com um terno visivelmente disforme e todo amarrotado. Ele estava vindo de algum outro lugar onde tinha perdido o controle. Possivelmente ele teria feito uma escala na favela do Jacaré, a sua favorita. Talvez três, quem sabe quatro números acima do necessário para atingir alguma elegância; assim era o terno de Marcos “o alto’. Visivelmente pancado de brizola, Marcos ”o alto” foi saudado com alegria. Era a nossa promessa de diversão e de algum fato inusitado. Marcos “o alto” usava um acessório que em nada combinava com o ambiente. Aliás, como tudo em Marcos “o alto”, este era mais um detalhe em colisão com o ambiente. Era uma sacola de plástico de supermercado com alguma coisa arredondada dentro. Pelo menos este era o formato que se apresentava o plástico. – Caralho aí... - Falou Marcos apertando as mãos de todos com os olhos arregalados que iam de um lado para o outro e passando a língua nos lábios incessantemente com uma cara de assustado. Parecia estar procurando algo. – Fala Marcos “o alto”. - O incentivei a continuar. Dei corda... – O maluco do Sabão lá... - Ele se referia ao gerente da maconha da favela do sabão, a qual era uma das favelas que compunham o complexo do Jacaré e quem ele jurava ser seu amigo. – Hã? Que que tem ele? - Perguntei como quem queria saber mais. – Me deu um bagulho da favela aí... – E o que é? - Eu quase certo que era uma droga boa, me desencantei quando vi o conteúdo da sacola de supermercado. – Pô! Um sinalizador da Marinha aí... - Respondeu ele, como quem revelara um segredo.

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– Como assim? - Perguntou Dodô chegando mais perto para tentar entender usando os olhos. – Um sinalizador da Marinha que veio de brinde da última vez que eles compraram uns armamentos. Um soldado foi lá na favela e essa porra veio junto. Ele pediu pra eu jogar essa porra no valão, mas aí eu prendi pra mim. Ele deu. Eu trouxe. Eu trouxe aí... Porra... Eu trouxe. Entreolhamo-nos e acho que todos concordaram que em matéria de sandice, Marcos “o alto” tinha acabado de se superar. Apesar daquela loucura, aquilo tinha cheiro de molecagem. Acho que todos pensaram em uma mesma maneira de se divertir e espantar aquele marasmo. – Seguinte... - Começou a propor um desafio Dodô. Vai valer uma camisa oficial da Kamikazes. Eu vou colocar o sinalizador no meio do salão. Quem for lá e abrir o bujão ganha a peça. – Eu não concordo! - Disse. – A parada é pra já. Geral casa todo o dinheiro que tem. A gente separa o do táxi pra voltar e coloca o que sobrar no saco do mercado. Quem for lá e botar pra fuder leva o saco com a bolada. Todos concordaram. O sinalizador tinha a forma de um pequeno bujão de gás de cozinha. Tinha uma alavanca que deveria ser puxada para dar início ao processo, o qual era iniciado a partir do contato do material que estava dentro com o ar. Isso geraria uma combustão dentro do salão nobre do Deportivo. Seria uma ótima molecagem e disso não passaria. Até porque a aparência frágil daquele bujão não sugeria problemas e, sim, algumas boas gargalhadas. Pois assim foi feito. O Dodô colocou a lata no meio do salão. Este gesto sequer foi percebido. Talvez por sermos invisíveis para aquela gente, talvez pela penumbra do salão, ou ainda, por tudo isso junto. Marcos “o alto” foi o primeiro a se dispor. Afinal, qualquer esforço era válido para manter o embalo da cocaína. A noite ia ser longa como ele bem sabia. Era melhor garantir o subsídio financeiro para bancar tudo que ele precisaria. – Eu vou, eu vou, eu vou... Porra... Eu vou! - Ele repetia sem parar mordendo os lábios. Indo e voltando. Com a testa toda suada. A esta

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altura, bêbados e chapados - graças a uma parada estratégica por um dos muitos lugares sugestivos do clube para fumar um baseado -, não pudemos resistir à entrada na montanha russa da gargalhada. – Puta que pariu. Caralho. Eu vou lá... Ninguém me segura que... – Porra! Eu vou. Eu vou lá. E assim ele ficou. Num looping. Indo e voltando. Ninguém esperava quando Dodô partiu - ele mesmo - para o meio do salão e sem nenhuma cerimônia puxou a alavanca do sinalizador. A coisa começou lenta e continuamos a rir, mas virados de costas para disfarçar o nosso comportamento suspeito. E então, depois de alguns minutos, o Dodô bateu nas minhas costas e disse: – Cara! Olha isso! Quando me virei para atender ao pedido do Dodô, uma fumaça laranja espessa já tomava boa parte do salão. Exatamente aí pude começar a ouvir os primeiros gritos, porque o conjunto parou de tocar. Muito fogo saia da lata e muito mais fumaça ainda. Em questão de segundos, o salão, que era fechado, estava tomado pela fumaça laranja. O pânico generalizado. Todos tentavam descer as escadas do salão ao mesmo tempo. Atitude esta que gerava todo tipo de acidentes. Nós fomos para debaixo da mesa de frios. Nós sabíamos o que era, mas os convidados pensaram se tratar de um incêndio. Um servente do clube que tentou pegar a lata para colocá-la do lado de fora do salão sem nenhuma bandagem nas mãos, teve como resultado - e não poderia ser outro - uma queimadura horrível nas mãos. O sinalizador caiu das mãos dele e ao tocar no solo, o impacto fez um jato muito espesso de fumaça sair, fato este que gerou um aumento intolerável de fumaça dentro do salão. Ele ficou um tempo enorme gritando de dor, desesperado sem ninguém ajudá-lo no meio daquele tumulto. Por quase trinta minutos o sinalizador agiu decretando o fim antecipado da festa. Conseguimos sair de fininho e mantivemos o anonimato, já que ninguém havia nos notado. Na segunda-feira na sede do clube não se falava em outro assunto. Muitos apostavam na nossa participação direta. Principalmente aqueles que muito bem nos conheciam, como os funcionários e a rapaziada das outras Organizadas.

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Mas ficamos na nossa. Não dissemos nem que sim e nem que não. Um dia para ser esquecido... Ou lembrado para sempre? Os objetivos de se frequentar a sede do clube são vários. Saber das novidades e tirar proveito delas é o primeiro deles. Depois, temos as razões menores como a busca por brindes (camisas oficiais do clube principalmente), contatos, pedidos de patrocínio para projetos que nunca saem do papel (ou que na verdade nunca existiram nem na teoria), venda de rifas, etc. Nós sempre dávamos aos jogadores e dirigentes a conversa de um parente muito doente, de uma conta de luz que venceu e poderia ser cortada a qualquer momento, enfim... Resgate de credenciais e negociação de subsídios para viagens - como pagamento do aluguel de ônibus -, também faziam parte dos motivos das nossas idas ao clube. Já na sede da Torcida o espaço é bem mais democrático. É o ponto de convergência de toda a “rataria” e até de alguma elite. Qualquer coisa que fosse exposta sem o devido cuidado, sumia. São as mãos mais leves de todo o mercado “negro de trabalho”. Não há muita falsidade nem “setes” na sede, porque todos os frequentadores são antigos conhecedores de todos os truques. Sendo assim, poupa-se o esforço inútil de se tentar enganar alguém. A sede da Kamikazes era uma sala comercial minúscula no centro do Méier. Própria para um escritório de contabilidade ou de advocacia com dois funcionários no máximo. Nosso horário de funcionamento era comercial, mas, o pico, era de quinze às dezoito horas de segunda à sexta em números que variavam de vinte a trinta pessoas. Parecia uma cadeia de delegacia com todo mundo fumando ao mesmo tempo. Quando a quantidade de pessoas excedia este número, mantínhamos a porta da sala aberta e o pessoal expandia os nossos domínios para o corredor do prédio. No mesmo corredor aonde transitavam pessoas de caráter idôneo rumo aos seus compromissos com dentistas, advogados e afins, estavam toda sorte de párias da sociedade. A finalidade da sede era em primeiro lugar manter o status de entidade séria. Depois, o de fazer o registro, emitir carteirinhas, venda de material, recebimento de mensalidades, venda de passagens para jogos fora do estado do Rio, etc. Somente os funcionários da sede, o Presidente e o Vice possuem a chave da sala. É expressamente proibida pelo

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estatuto do condomínio, a circulação de pessoas pelas dependências do mesmo fora do horário comercial. Mas para um membro de Organizada, não é problema quebrar este tipo de convenção no meio. A sala se torna um tipo de residência oficial, onde todos dormem quando existe a necessidade ou a conveniência. Em grupo de quatro pessoas - a formação mais tradicional -, o pessoal da sede costumava passear pelo Méier procurando o que roubar, alguma oportunidade por menor que fosse de se dar bem. Às vezes estes grupos voltavam, às vezes se dirigiam diretamente para os morros e favelas preferidos para empenhar objetos confiscados durante estes “passeios”. Aos sábados nos concentrávamos na rua detrás à sede no Bar do Júnior. Um paraíba muito responsa e inteligente à beça que fazia Matemática na UFRJ. Quase sempre arrastávamos umas mulheres. Quem trabalhava como auxiliar administrativo na sede tinha o privilégio de fazer daquele ambiente um motel. Como a sede abria às dez da manhã, as horas anteriores eram utilizadas para exercitar o esporte a dois. Este é outro dos nossos palcos principais...

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CapĂ­tulo 8

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Domingo eu vou ao MaracanĂŁ

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“Gosto da garotada meio drogada de downtown que picha muros e trens Gosto da sua falta de treino, de sua técnica primitiva Acho que às vezes você se machuca Quando fica tempo demais na escola Acho que às vezes você se machuca Quando tem medo de ser chamado de tolo Este é o problema com os classicistas” Lou Reed & John Cale – Trouble with Classicists

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Dia de Maracanã é todo dia, mas o domingo é um dia clássico. A cidade acorda respirando os ares do jogo em questão. Para nós, membros de Organizadas, a qualidade do dia está diretamente ligada ao adversário que teremos. Sendo um clássico estadual, eu, em particular, sempre acordava às cinco da manhã com uma terrível diarréia de nervoso. Foi assim no primeiro clássico como membro efetivo da Kamikazes: Deportivo x Extremo. Acordei, vesti o meu traje de sempre (bermuda até o joelho, tênis e meia e uma camisa branca) e parti pra rua com a promessa de tomar um café no botequim. Mas com o passar das horas, fui tendo certeza que ingerir algo além da minha própria saliva, seria impossível. Os nervos muito estimulados travam a minha garganta dando a mesma sensação de cheirada. O meu estado de nervos não era dos melhores, aliás, era um dos piores que eu já tinha experimentado. Depois de ouvir tantas estórias horríveis, a expectativa da novidade era tão cruel pra mim quanto os momentos que antecedem uma tragédia para Kafka: Piores que o seu desfecho. O protocolo dizia que todos deveriam ir até a sede para dar contenção ao patrimônio da Torcida Organizada. Surpreendentemente, o pessoal não se atrasava tanto quanto poderia se esperar de gente tão vagabunda. Os jogos aos domingos se realizavam às dezesseis horas. Às oito da manhã o pessoal do patrimônio se reunia para escolher as bandeiras que iriam ao jogo. Separar o material para a venda (bonés, camisas, adesivos, etc.) era trabalho do auxiliar administrativo da sede. Escolher os bambus para as bandeiras e afinar os instrumentos era com a galera do patrimônio. Mais precisamente o pessoal da bateria claro. O tempo que levava para organizar tudo isso era mais ou menos o mesmo tempo estipulado para a chegada do pessoal da contenção. Nós não tínhamos muito compromisso com a segurança do material, digo, o nosso bonde em particular. Dentro da organização, não era nossa tarefa tomar conta do patrimônio. É claro que se existisse a ameaça de alguém usurpá-lo, nós estávamos preparados para defendê-lo, mas a opção pelo primeiro núcleo não era exatamente voltada para esta preocupação. A questão é que o Méier era neutro já que nenhum de nós morava lá. Dava para pintar e bordar... Além disso, ficava fácil para todos se deslocarem até lá. Era um meio termo para todos.

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O nosso bonde era formado por doze loucos além de mim, Bínchi, Dodô e Tchélo. Sevilha, um dos integrantes, tratou logo de batizá-lo e rapidamente ficamos conhecidos como “B.I”. ou Bonde Implacável. Muitos clássicos depois, contra o Olímpico, Extremo e Marítimo, o nosso valor foi aumentando. Fosse pelo número quase infinito de “bolas” que demos nos “alemão”; fosse pela nossa dignidade na hora de tomar uma “casa de caboclo”. Afinal, não existe um bonde invencível e de mais a mais, apanhar faz parte da vida do pobre. Num domingo desses da vida, nos preparávamos para enfrentar o Marítimo pelo primeiro turno do Campeonato Brasileiro. Uma coisa estava diferente. Pela primeira vez eu os enfrentaria na condição de Presidente após o golpe. A rotina tensa de um domingo de Maracanã, para alguns é absorvida como um dia de folga no parque. A diferença entre a ansiedade e a diversão, está no número de vezes que o ritual de ir ao Maracanã é repetido ao longo da vida. Os neófitos têm tremedeiras nas pernas e um pensamento que é repetido como um mantra na hora que o porradeiro estanca: “Eu não devia estar aqui”. Os experientes conquistam uma relação de intimidade com o perigo a ponto de procurá-lo. Sempre. Seja na saída, seja na chegada. Os integrantes mais respeitados, mais famosos e reconhecidos recebem o privilégio de puxar o bonde. Estão sempre na vanguarda do grupo, na linha de frente. Eles sentem onde está o cheiro da guerra e conduzem todos, rumo a um destino de conflito e destruição. A Torcida em dias de clássicos é mais disciplinada, menos descuidada. Na primeira Farândula, de onde eu normalmente saía para ir ao Maracanã, não eram usuais rituais de congraçamento como churrascos e outras festinhas em dias e clássicos. A primeira Farândula era um dos pontos de concentração mais visados e por isso a atitude era mais nervosa. Em dias de clássicos estaduais, quase não havia festa. Ao contrário dos dias em que jogávamos com clubes de outros estados, o que praticamente eliminava a possibilidade de confronto. Eu disse praticamente, porque não eliminava o risco de alguma torcida cujo clube estivesse de folga na tabela, ou jogando fora do Rio nos atacasse de surpresa.

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Às vezes, resolvíamos sair de outras Farândulas menos visadas para não criar uma rotina que facilitasse o planejamento de ataques por parte do inimigo. Aí sim podíamos ficar razoavelmente bêbados. Dentro deste clima, saíamos numa atitude literalmente kamikaze. Atravessávamos a cidade dentro de um ônibus comum como se fôssemos alvos móveis. Os passageiros eram os menos culpados e ao mesmo tempo os mais punidos. Numa ocasião, quando eu voltava de uma visita à casa da minha madrinha e não pertencia a Kamikazes ainda, assisti à Torcida Raiva do Olímpico de Duque de Caxias estuprar uma garota no trem. O vagão estava calmo, era uma tarde de domingo, a maioria dormia e ninguém, mesmo aquele com a imaginação mais fértil, poderia imaginar o que estava para acontecer. Voltando da Central, o trem parou na estação Derby Club - que é a estação do Maracanã - e uns quarenta integrantes uniformizados da Raiva entraram causando um mal estar instantâneo nos que já estavam dentro do vagão. Começaram a cantar músicas de guerra enquanto duplas se destacavam e circulavam pelo vagão abordando um por um. Eu ouvi a conversa deles quando abordaram alguém do meu lado: “aí fafavô. Tiru o reloju aê”. E um violento tapa na cara cumpria o papel de ponto final da frase. Um senhor, velhinho, levou uma sessão de socos difícil de ser resistida até mesmo por um jovem, apenas por terem eles descoberto um chaveiro do Extremo para fora do seu bolso. Eu não tinha dinheiro, mas tinha um cordão e uma pulseira de prata que, infelizmente, “choraram” pra eles. Todos fomos revistados; isso eu pude ver. Enquanto isso, atrás da aglomeração que eles faziam no corredor do vagão, surgiram os primeiros gritos de uma mulher. Uma jovem: “Não, para! Isso não, isso não...” Eu estava curioso para saber o que estava acontecendo, mas não ousava olhar para o lado. Eles recolheram tudo e na estação seguinte, saíram correndo na velocidade da luz em fuga. Pude ver então o que realmente acontecera. Uma garota de dezoito anos aproximadamente havia sido violentada. O nariz estava quebrado com muito sangue fresco ainda descendo. O olho direito estava bastante inchado e piorando, se fechando. A saia estava levantada e a blusa, arreada até o umbigo, formando um tumulto de pano na barriga. A calcinha num canto e ela chorando. Um estupro num lugar e situação inacreditáveis. Para nós que saíamos do Méier havia um lugar de extrema tensão que era a Avenida Vinte e Quatro de Maio. Na volta, os problemas aconteciam na Radial Oeste, Mangueirinha e Méier, claro.

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Sempre havia um “comitê de recepção” aguardando a nossa chegada à sede. No Maracanã fazíamos o contorno por todo o anel até encontrarmos com os nossos rivais e iniciarmos uma violenta pancadaria. Os inimigos faziam do mesmo jeito. Hoje não existem mais confrontos dentro do Maracanã. O presidente da casa conseguiu num gesto de comprovada competência, dar um ponto final nos conflitos. Eu tive meus momentos de ataque no Maracanã, mas devo confessar que nada, nenhuma briga, por mais animada que fosse, tinha uma pequena parcela da beleza da atmosfera que a torcida tem quando está quase pronta para dar o seu espetáculo na arquibancada. Afinal, a torcida existe para isso: Torcer. Depois que o material sobe a rampa do Maracanã, o patrimônio se divide. Parte vai para as arquibancadas ainda completamente vazias, onde são estendidas as faixas nas grades de proteção. Outra parte fica na concentração, lugar em que a rapaziada dá os últimos retoques de afinação nos instrumentos. Depois que tudo está afinado e as bandeiras devidamente colocadas em seus respectivos bambus, a bateria começa a aquecer. A concentração se localiza antes do túnel de acesso às arquibancadas, correspondente ao local em que a torcida tradicionalmente se posiciona nas arquibancadas (no caso da Kamikazes, atrás do gol). Quando a entrada é liberada, o pessoal sobe a rampa do Maracanã ouvindo a bateria, que a esta altura, já está super aquecida. Os Kamikazes vão se agrupando e cantando músicas criadas desde a fundação da Torcida até os dias de hoje. Quando faltam quinze minutos para o início da partida, o diretor de bateria apita duas vezes. Isto significa que é o momento da bateria começar a se preparar para se posicionar nas arquibancadas. Cinco minutos depois, o diretor apita três vezes e quer dizer que é a hora da bateria subir para recepcionar a chegada das bandeiras. Depois de mais cinco minutos, o apito soa mais duas vezes, que é a deixa para subirem as bandeiras. Uma a uma, as bandeiras vão entrando pelo túnel de acesso às arquibancadas seguindo a hierarquia da Torcida. Primeiro o Presidente, depois o Vice e assim sucessivamente. A minha bandeira personalizada, era a que tinha o rosto de VLAD TEPES – o Conde Drácula - desenhado. O maior símbolo de resistência bem sucedida na história da humanidade para mim. Na sequência vinham Bínchi - com uma bandeira das mais expressivas cujo desenho era um Saci Pererê comendo a bunda do Tio Sam; Tchélo por

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sua vez fazia uso de uma bandeira muito grande, a maior de todas, com um desenho do nosso planeta Terra com braços e uma feição muito triste com um ramo de flores mortas na mão esquerda e um cogumelo atômico na parte de cima e em volta dela a pergunta: “Por quê?”, Dodô tinha uma bandeira bem menor com o rosto do nosso ex-Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso com muitos braços em volta atirando-lhe notas e moedas e a frase em cima: “A César o que é de César..”. Na arquibancada os cantos seguiam uma sequência de acordo com os acontecimentos de dentro de campo. Quando as bandeiras entravam na arquibancada e eu como presidente corria de encontro à torcida, ouvia-se: “DE-POT-TI-VO DE-POR-TI-VO” Até a chegada da última bandeira era este grito de incentivo ao clube que era repetido entusiasticamente. Vem a festa do time chegando a campo. Em seguida, normalmente quando o jogo já está em andamento, o encarregado de arquibancada assume o seu posto em cima do corrimão do túnel, o que o posiciona de uma forma de modo a privilegiar a visão de todos os seus comandos, exatamente de pé neste corrimão. Logo em seguida à sua subida, ele dá início ao grito de guerra da Torcida. A execução era simples. Ele gritava as frases e a Torcida as repetia. Havia uma coreografia para este momento especial de apresentação da Torcida, que consistia em alternar a posição dos torcedores que participassem do grito. No momento em que o encarregado de arquibancada soltasse a sua frase, como quem solta uma pergunta, os integrantes permaneceriam sentados na arquibancada; na hora de participarem falando suas frases, todos se levantavam, e assim alternavam os movimentos durante este primeiro momento. É assim ó: “EU SOU UM GUERRILHEIRO QUE SOZINHO MATO MIL” (Diz o encarregado de arquibancada) “Eu sou um guerrilheiro que sozinho mato mil” (Responde a torcida)

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“EU SOU DA KAMIKAZES A MAIS TEMIDA DO BRASIL” (Encarregado grita) “Eu sou da Kamikazes a mais temida do Brasil” (Responde a torcida) “SE É PRA LUTAR” (Encarregado grita) “Se é pra lutar” (Responde a torcida) ‘SE É PRA MORRER” (Encarregado de arquibancada) ‘Se é pra morrer” (Responde a torcida) “TORCIDA KAMIKAZES DA PORRADA PRA VALER” (Encarregado grita) “Torcida Kamikazes da porrada pra valer” (Responde a torcida)

“KAMIKAZES” (Encarregado grita) “Porrada!” (Responde a torcida) “KAMIKAZES” (Encarregado grita) “Porrada!” (Responde a torcida) “KAMIKAZES” (Encarregado grita) “Porrada!” (Responde a torcida) Então todos se levantam e juntos, entoam um mesmo canto. “EU SOU DA KAMIKAZES EU SOU O BICHO VAI PEGAR E NINGUÉM VAI ME SEGURAR NEM A PM!!!”

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Do outro lado, o grito que sempre mais me chamou a atenção, pelo seu conteúdo e poder motivacional, era o da Organizada Jovem. A execução era em coro, tipo uníssono: “ATACA! MASSACRA! IMPÕE O TEU VALOR NÃO TENHO MEDO DA MORTE AO INIMIGO CAUSO HORROR SADDAM HUSSEIN SADDAM HUSSEIN SADDAM HUSSEIN SADDAM” E todos que estavam de pé, começavam a alternar suas posições entre o de pé e o sentado, e todas as vezes que se levantavam eles cruzavam os pulsos quando diziam o nome de Saddam, no que parecia ser uma saudação utilizada em alguma época pelo Império romano. Bem, não deveria me arriscar a dizer isso, visto que meu conhecimento da história é abaixo de zero... Todas as figuras do Islã (como Aiatolá Khomeini e Osama Bin Laden) tinham uma representação na Organizada Jovem em forma de bandeiras ou camisas, assim como outras figuras ideologicamente contrárias ao imperialismo estadunidense e que durante suas vidas deixaram claro que não viam com bons olhos o “american way of life” como: Che Guevara, Fidel Castro e Yasser Arafat. Enquanto todos cantavam juntos a última estrofe, a Torcida executava a coreografia conhecida como “a serra”, ao comando do apito do diretor de arquibancada. Cada degrau de arquibancada mantinha os seus componentes abraçados, lado a lado, alternando movimentos laterais de degrau para degrau, ou seja: Quando a massa abraçada do degrau debaixo ia para a direita, a massa do degrau de cima ia para esquerda e assim sucessivamente. A coreografia é simples, mas causa um efeito de deslumbramento em quem a assiste de longe. A sequência seguia com o hino do Deportivo, considerado por muitos especialistas o mais belo do Brasil. Sua apresentação é

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desnecessária, visto que todos o conhecem. Caso o Deportivo fizesse um gol, ou sofresse um revés, a sequência de canções de ode ao crime era devidamente interrompida para dar lugar ao incentivo ao time. Num só grito nas arquibancadas: “DE-POR-TI-VO DE-POR-TI-VO” Depois de estabelecido o ritmo de jogo, a Torcida começava a sequência de cantos de apologias às drogas e ao crime novamente, tais como: “BATE BATE UMA RAPA APERTA UM PRETO (ÊÔÊÔ) SE LIGA QUE É O DEPORTIVÔ SOU KAMIKAZES!!!” Ou: “ALEMÃO TU PASSA MAL QUE A KAMIKAZES JÁ CHEGOU JÁ CHEGOU (CHEGÔÔÔÔ) ÔÔÔÔ É UM BONDE SÓ DE CRIA FORMADO POR MATADOR (MATADÔÔÔÔÔ)” O clima é de festa com a bateria sempre caprichando em ritmos como FUNK CARIOCA E SAMBA, onde só o surdo fala. “A... ...KAMIKAZES É UMA FESTA FUMAR BAGULHO DO BOM E DAR PORRADA NA TORCIDA DE CUZÃO” Agora em fila indiana, continuávamos a executar a serra numa versão menos cansativa. Olhando para as costas do integrante seguinte,

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íamos e vínhamos. Tudo obedecendo ao toque do apito do diretor de arquibancada. E mais músicas: “HOOLLIGAN É O CARALHO SOU GUERREIRO BRASILEIRO ASSALTO BANCO SOU TRAFICANTE FUMO E CHEIRO O DIA INTEIRO”

Bastava a Torcida dar o menor sinal de cansaço, para que Faustão e Renato Maluco entrassem em cena com seu sistema todo peculiar de “motivação participativa”. Cada um se colocava numa das laterais das arquibancadas, na periferia daquele que era um grupo compacto formado pela Torcida. Era basicamente a forma de um retângulo de pé. Tanto Renato quanto Faustão se posicionavam em cada uma das laterais, com um bambu de três metros nas mãos cada. Bastava que o volume de euforia baixasse um micro ponto para que os dois entrassem em ação: “Canta seur filhos das putááááááá´!” Gritava Faustão com sua voz rouca e alta, aplicando violentos golpes de bambu nas costas dos integrantes da Torcida que ousassem parar para tomar fôlego. “É pra tocar o zaralho seur lóidi”. Repetia o gesto do outro lado Renato Maluco gargalhando insanamente. Era como se estivéssemos nas galés da época do Império Romano. O pior é que funcionava. Eles batiam e gargalhavam e ninguém ousava se curvar para escapar dos golpes. À margem de onde se concentrava a Torcida Organizada no Maracanã, eu sempre encontrava um cara com o olhar cansado e bastante sério. Careca, gordinho e de olhos verdes com poucos dentes na frente da boca. Esse era o Iranir. Um cara que não faltava a um jogo do Deportivo no Rio. Era o maior consumidor de cigarros que eu conhecera na minha vida, mas não se limitava só a isso... Num desses jogos do campeonato carioca, onde o Deportivo jogava contra o Madureira e parecia que nenhum dos dois havia entrado em campo de tão tedioso que estava o jogo, eu tomei a iniciativa de me aproximar. Não era uma questão de curiosidade, mas de cumprir o dever de integrar a todos. Isso é que faz a Torcida grande e com bastante dinheiro de várias

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mensalidades recebidas, escorregando diretamente para os nossos bolsos. – E aí responsa? Máicou! É uma honra! - Apresentei-me humilde e cordialmente. Sempre jogando a isca... – Iranir. - Respondeu ele me estendendo a mão com uma cara de quem nunca mais iria ver uma novidade na vida. – Eu sou Presidente da Kamikazes e... – Eu sei quem você é. - Deu aquela resposta que na verdade não me surpreendeu tanto. Afinal, àquela altura, todo mundo já me conhecia. – Beleza. Tu não tá a fim de participar da Torcida responsa? – E quais as vantagens? - Mostrando-se mais sociável, mas com a mesma cara, ele se mostrou disposto a, pelo menos, ouvir a proposta. A partir daí comecei a desfiar aquele monte de vantagens que só interessam a pessoas, que como ele, frequentam regularmente os jogos tais como: Descontos nos ingressos, em caravanas, na linha de roupas, etc. Ele se mostrou interessado e saquei do bolso uma proposta que ele pegou e olhou com um dos olhos, porque a fumaça do cigarro preso no canto da boca irritava o outro. – Tá tranquilo. Semana que vem eu te entrego ou então eu vou na sede de vocês. – Tá formado. - Neste momento, resolvi convidá-lo para mais uma cerveja. Havia um esquema para comprar cerveja, que consistia em descer a rampa do estádio e encontrar com os camelôs nas grades do portão. Ao chegarmos, não permiti que ele colocasse a mão no bolso para pagar nada. O jogo rolando e a gente dentro do estádio bebendo cerveja. Depois da terceira latinha ele começou a me passar a sua biografia. Era triste. E muito. Ele fora jogado num orfanato quando recém nascido, de onde só saiu aos dezoito anos. De parentes, só uma irmã que não gostava dele por perto. Amigos, de acordo com ele, só apareciam no seu barraco na favela da flauta quando desejavam um lugar seguro para dar uma cheirada ou, então, quando ele mesmo bancava a orgia. Recentemente ele havia descoberto que estava muito doente do coração e só aí, quando me revelou isso, eu vi alguma suavidade no seu rosto. Como se fosse uma sensação de alívio. Talvez pela morte que se aproximava... Sei lá. Em menos de uma hora pude ver

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quem era o meu novo “amigo”. Mais uma das muitas almas solitárias que penam por aí como eu. Em busca de migalhas. De qualquer migalha. De qualquer coisa parecida com um sentimento. Um abraço na hora de um gol, uma palavra dirigida a ele na forma de um comentário, enfim. Algo que mesmo não acontecendo sempre, lhe dava a sensação da existência num plano mais normal, de viver uma vida mais normal. De ser notado. De pertencer. O desprezo às vezes desaparecia, quando perguntavam a ele “qual foi o jogador que saiu” ou “quem ia entrar”. Fui até a arquibancada com ele e dei-lhe um abraço me despedindo. Afinal, tinha muita coisa acontecendo ao mesmo tempo e eu precisava aproveitar a oportunidade de encontrar todos ali para resolver o máximo possível destas coisas de modo a não precisar ficar me deslocando muito pelo Rio no meio da semana. Desde então nos tornamos amigos e quando os jogos eram mais calmos, ele sempre saia pra beber no bar do portão dezoito com a gente. Gostava de pagar a sua parte. Era um cara legal... O Tchélo no surdo era uma figura muito engraçada. Todo suado, sem camisa e com os olhos arregalados, tocava e gritava “vâmu, vâmu, vâmu... Porrááá, vâmu!” Era comum recebermos gringos, turistas estrangeiros levados pela direção do Maracanã. A ojeriza a estrangeiros era uma característica comum a todos da Torcida. Mas com alguns era diferente. Havia uma pré-disposição maior para rechaçá-los. Era o caso dos judeus. Gostavam de se misturar, tirar fotos com os instrumentos e nunca queriam comprar nada. Pedir-lhes para comprar uma camisa então, era o mesmo que lhes dirigir uma ofensa pessoal. Aliás: Pior. Quando estes chegavam, havia um grito todo especial quando a resposta para pergunta “de que lugar vocês são?” era “Israel”. Bastava um de nós deter a informação e começar o grito para que todos acompanhassem. “HAMAS HAMAS JUDEUS AO GÁS”

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Enquanto isso, eles iam saindo de fininho. Era horrível para eles, porque a Kamikazes vivia em eterna campanha por um Estado Palestino. Azar o deles. O Bínchi não odiava tantos os judeus quanto odiava os playboys. Ele tinha um preconceito contra os ricos declarado. Talvez por ser negro e por saber e sentir bem as agruras de uma aversão étnica, ele poupava os judeus. Mas os ricos... Ah os ricos! Bastava chegar alguém com aquele perfil estereotipado: Topete alça de boquete, corpinho sarado e roupas de grife para que ele buscasse uma forma de abordá-los. Ele usava normalmente a isca das drogas. Chegava perto dos playboys e dizia: ”Sejam bem-vindos a Kamikazes eu sou Greg, topam?” E abria as mãos mostrando sacos de Brizola e maconha. Os olhos dos meninos brilhavam. – Demorou, demorou. Aonde vamos? - Era a pergunta padrão dos playboys afoitos para se intoxicarem. – No banheiro dichavadinho. Tá tranquilo. Vamos! - Respondia Bínchi. E todos se dirigiam ao banheiro. A partir de gestos combinados, a galera percebia que era hora de se dirigir ao banheiro para formar o “comitê de recepção”. Ao chegarem, toda a cortesia se transformava em puro terror. – Anda porra! Me dá o relógio. Tira o tênis. E porrada em cima de porrada nos playboys. – Vou fazer uma plástica nesse teu rostinho de princesa. Dizia o negão, batendo sem poupar esforços para fazer um bom trabalho. Depois de uma sequência de ameaças, todos saiam imediatamente do Maracanã para fazer uso daquilo que fora pilhado. Enquanto os playboys ficavam nus, aliás, cobertos apenas pelo seu próprio sangue, desmaiados no chão daqueles banheiros fedorentos e lotados de uma mistura execrável de água e urina por todos os lados... O fato que certamente gerou uma atitude mais enérgica por parte da direção do Maracanã quanto ao posicionamento deles sobre as guerras dentro e nas proximidades do estádio, foi algo horrível. A partir daí tudo mudou. Eu pude presenciar este fato. Claro que fatos

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terrivelmente semelhantes, ou até piores aconteciam sempre, mas desta vez um elemento motivacional extra fez com que as autoridades tivessem que tomar uma atitude: A ocasional presença da imprensa. Num jogo contra o Olímpico, jogo este ocorrido num estadual em que eu não era presidente da Torcida ainda. O Deportivo havia sido derrotado pelo escore de dois a zero. Lembro-me que não era final, mas a simples derrota do Deportivo para o Olímpico, era motivo para manifestações exageradas de revolta por parte de alguns. Aliás, manifestações exageradas nunca faltavam na pauta dos dias de jogos. Saí do Maracanã, ou seja, desci a rampa um pouco atrasado, porque ficamos aguardando o Dodô num local combinado, em frente ao banheiro. O local de sempre. Como de costume ele havia se estendido em conversas mais do que o conveniente para um dia de jogo contra o Olímpico, quando é necessário não descuidar em momento algum da segurança. Pois bem, quando o Dodô chegou ao ponto de encontro, descemos a rampa e vimos o patrimônio da Kamikazes todo espalhado na beira da calçada com dois caras desconhecidos agachados, tomando conta de faixas e instrumentos e bandeiras. Em cinco minutos - tempo que decidimos retardar a nossa partida por acharmos aquela atitude muito estranha -, um grupo de quinze membros da Raiva partiu correndo para cima do nosso patrimônio saídos do nada, visando roubá-lo claro, e como de praxe, transformá-lo em um troféu valioso e expor tudo na Internet. Ao se aproximarem, algo em torno de dez metros, começamos a correr para cima deles também com a intenção de reprimir a tentativa de roubo deles com o máximo de porradas diferentes possível, mas uma multidão de trezentos Kamikazes se precipitou, gerando até um certo susto no nosso grupo, já que não esperávamos pela formação. A armadilha - ou escama - havia sido formada e, os dois desconhecidos agachados com ares de descuido, eram dois policias civis amigos de Faustão. Eles aguardavam a chegada de qualquer um que se lançasse ao desafio aparentemente fácil de usurpar tudo deles. Eles eram a isca claro, porém, devidamente armados. Ouvi tiros. Ouvi gritos de invasão. A multidão de trezentos que estava escondida embaixo da rampa do metrô, partiu com grande ímpeto para cima dos quinze membros da Raiva. Eles pouco puderam fazer além de tentar uma fuga. Em qualquer situação como esta, existem os que se safam e os que se fodem. E foi exatamente alguém se foder o

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que vi, quando um cara de vinte e um anos presumíveis, tentou fugir do linchamento. Ele parecia tentar uma fuga extraordinária, aproveitando a reduzida de um ônibus na “curva das Kombis” para se agarrar no “puta que pariu” externo da porta traseira do ônibus. O ônibus reduziu a velocidade numa proporção muito menor do que ele havia calculado e ele errou o seu objetivo. Caindo no chão com a perna direita embaixo da roda traseira. Sem ter a menor ideia do que acontecia, o motorista continuou o seu trajeto esmagando a perna do rapaz completamente. Por incrível que pareça, os Kamikazes chegaram batendo, chutando o rapaz mesmo depois de acidentado. Ele havia desmaiado. Devo admitir que senti pena. Muita pena. Enquanto eu sentia piedade, outros cinco que haviam sido pegos pela multidão eram linchados o mais rápido possível e jogados no rio Maracanã. Ser rapidamente letal era fator determinante numa operação dessas. Se houvesse muito requinte nos métodos empregados, haveria tempo para a chegada da polícia. Isso, claro, impediria o sucesso da operação. O resultado final foi mais um inválido e outros tantos com sequelas permanentes em mais um conflito num domingo de Maracanã. Depois do desfecho da história, resolvemos caminhar até a “Mangueirinha” onde estavam os nossos ônibus estacionados, ao invés de pedir que os motoristas viessem até nós. Bem, a Mangueirinha ficava antes do começo da São Francisco Xavier e era um dos lugares onde tradicionalmente marcávamos o ponto. Não sempre, claro. Afinal, quem faz merda, precisa adotar a rotatividade como filosofia de vida. Mas, neste final de semana em especial, pedimos para que todos os nossos motoristas nos aguardassem lá mesmo. Parados. E assim foi feito. Ao chegarmos na “Mangueirinha”, nos aglomeramos em frente aos ônibus. Depois da tacada de “sorte” que déramos na porta do Maracanã resolvemos apostar mais ainda nela e resolvemos todos, unanimemente, ir andando até o Méier. Uma caminhada muito grande, mas o espírito aventureiro somado à vontade de aparecer opera verdadeiros milagres na preguiça coletiva. Logo no começo vimos um grupo de dez caras com camisas da Organizada Jovem que nos xingaram e fizeram milhões de gestos obscenos. Mas estavam muito longe para tentarmos correr e pegálos. Limitamo-nos a continuar andando e a responder os seus xingamentos e a pedir-lhes que, ”por favor”, nos aguardassem. Depois de meia hora de caminhada, vimos um cara andando na nossa frente

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calmamente com a camisa do Olímpico oficial. Era povão, não era de nenhuma Torcida Organizada. Estava ouvindo um radinho de pilha. Parecia não ter a menor ideia sobre o fato de correr algum risco. Exatamente neste final de semana, estávamos comemorando a inauguração de mais uma Farândula, a quadragésima segunda de Queimados. O monitor e fundador de mais este segmento da Torcida era o Joseph. Um bom menino: Organizado, persistente e sobre tudo apaixonado pelo Deportivo e pela Kamikazes. Não mediu esforços nem recursos para ver o seu sonho realizado. Conseguiu aglutinar o número de sócios exigidos, e até superou a expectativa abrindo uma sub-sede, o que não era necessário. Seu comportamento era até criticado por alguns, pelo excesso de indulgência e cavalheirismo em momentos onde ninguém abre mão de toda a covardia possível. Pois bem. Neste domingo o destino de Joseph estava diretamente ligado ao de um verdadeiro otário da Kamikazes conhecido pela alcunha de “falso crente”. Contrariando todos os pedidos - já que éramos terminantemente contra a violência gratuita contra o torcedor classificado como “povão” -, falso crente partiu com quatro dos seus títeres para cima do rapaz que caminhava pacificamente ouvindo o seu radinho de pilha, e, não satisfeito em tomar-lhe a camisa, ainda aplicou uma sequência de socos e chutes no rapaz. – Me dá esse pano de chão aqui seu filho de uma puta. - Chegou ordenando falso crente. – Coé maluco. Tô voltando pro meu chatô responsa. Tu me esculacha e ainda quer me levar? - Reclamou o rapaz. – Quero levar não! Já tô levando. - E o grupo de cinco, após aplicar uma banda no rapaz, começou a retirar à força a camisa dele. Metade de nós ficou contra a atitude daquele palhaço e a outra metade se omitiu. Eu ainda ouvi alguém falar com o rapaz: “Ô amigo, fica aí que nego vai devolver tua peça, não rala não”, disse esta tal voz com firmeza. O rapaz, tranquilo, começou a se distanciar resmungando algo como “tá tranquilo choque. Vocês venceram, vou vazar. Valeu. Vocês são bons mesmo”, e saiu assim. Ironizando-nos e aumentando gradativamente a sua velocidade nos deixando discutindo. Não percebi mais ele depois de alguns minutos. Continuamos andando, até que

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passamos na porta da primeira entrada do morro da Mangueira conhecida como Candelária. Quando metade do bonde havia passado pela entrada da favela sem nenhum contratempo, eu ouvi uns dez disparos de pistola. Abaixamo-nos o mais rápido possível. Ouvi um grito assim: “aí, 1 x 1, valeu? A camisa pelos defuntos. Filhos das puta”. Depois de ouvir isso, vi um cara sem camisa correr para dentro da favela. Olhei ao meu redor e todos ainda estavam abaixados. Exceto o Joseph que estava deitado de cabeça pra cima e tossindo. Aproximei-me na maior velocidade possível e constatei que ele havia levado um tiro na altura do fígado. Não estava bem. Estava virando os olhos e isso não era sintoma de saúde. Na hora surgiram vários telefones e acionamos os bombeiros que, graças a Deus, não tardaram a chegar. No máximo dez minutos. Os Bombeiros cumpriram a rotina dos primeiros socorros. Com muita insistência, consegui obter um diagnóstico parcial. O fígado do Joseph tinha ido pra casa do caralho mesmo. Explodiu. Tudo por causa de um filho da puta que sumiu, evaporou quando constatou a consequência dos seus atos. Joseph ficou internado uns três meses e saiu bem, dentro da medida do possível depois de ter o fígado explodido. Ele era outra vítima de um domingo de Maracanã...

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CapĂ­tulo 9

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A ocasiĂŁo faz o... Desbocado.

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“A vida confidenciou-me tantas histórias que é meu dever recontá-las às pessoas que não podem ler o livro da vida”. Elly Hillesum

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A segunda-feira é inevitável para todos. Para trabalhadores e estudantes, significa um estado de desagrado físico também, mediante o volume de obrigações e surpresas desagradáveis de todos os tipos existentes. Mas para nós era como iniciar qualquer outra coisa. Uma dose cavalar de indolência e aquela sensação de estar correndo num sonho. Sabe como é? Por mais que você se esforce tentando alcançar uma velocidade satisfatória, o ar fica carregado da sensação de que você pouco conseguiu progredir. O peso nas pernas... Como se estivesse correndo dentro d’água. Assim era a segunda-feira para nós quando por algum motivo, íamos passar a noite de domingo para segunda na sede da Torcida. Desenvolvendo o ritual do habitual mediante uma escala desenvolvida por nós mesmos, um de nós quatro ficava encarregado de juntar todos os trocos da noitada, promovendo pequenos saques nos bolsos alheios e, de acordo com o sucesso destes furtos autorizados, era possível determinar qual seria a qualidade do nosso café da manhã. Geralmente tínhamos queijo e presunto, pão francês, maionese, um litro de café bem forte e uma garrafa de refrigerante. Não muito raramente tínhamos tão somente pão com margarina esquentado na chapa. Às vezes ficava mais complicado e só podíamos pagar um carioquinha para o desjejum. Quem buscava o café também resgatava a correspondência que, geralmente, tinha a cara da segunda-feira, ou seja: Burocrática. As contas da Torcida chegavam aleatoriamente. A conta de luz chegava no começo de mês, telefone e condomínio da sala no dia quinze e o aluguel da mesma dia vinte e oito. O termo “Organizada”, como vocês podem constatar, é um mero título, uma abertura para a entrada dos termos politicamente corretos se instalarem no meio exato de uma das repúblicas do caos, a qual representávamos muito bem. Acordei com um barulho de porta sendo aberta. O escalado tinha voltado com o café da manhã. O casamento mais sólido criado concomitante à invenção do álcool havia acordado dentro de mim: Ressaca e dor de cabeça. Troco de posição e percebo Dodô absorto olhando uma correspondência em especial por muito tempo e com um olhar grave. Sem me conter e fazendo uso da ausência de educação que me era permitida - e até certo ponto esperada -, dei um pulo do chão onde dormia e de assalto, tomei as cartas das mãos dele que não teve tempo de esboçar a mínima reação. Ele colocava o café sobre a mesa e

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começava a cortar o pão sem levar em consideração o mundo ao seu redor. Passo as cartas uma a uma. Propagandas e mais propagandas como sempre e... Mais propagandas. Até que algo me chamou a atenção. A última carta. Era uma carta do Quartel Central da Polícia Militar endereçada ao GRÊMIO RECREATIVO SOCIAL CULTURAL TORCIDA ORGANIZADA KAMIKAZES DO DEPORTIVO FOOTBALL CLUB. Um frio me tomou a base da espinha. Na hora me vieram à cabeça todas as merdas que eu havia feito desde que cheguei a Kamikazes e, qual delas minhas merdas ou as merdas dos outros - seriam o motivo daquela correspondência. Pronto. Demorou mas aconteceu. A merda tinha voltado para o cu. Finalmente haviam descoberto algum dos mil e um “sete uns” que nós havíamos aplicado por aí. Quando olhei para o Dodô, senti raiva daquela cara tranquila, comendo pequenos pedaços de pão recheado com queijo e presunto. Era uma calma tão profunda que me senti ofendido. – Você viu isso moleque? Foi o que perguntei a ele num tom bastante hostil. – O quê? - Respondeu-me com uma pergunta sem tirar o olhar do vazio e com a boca cheia de uma mistura de pão, queijo e café. – Caralho! É uma carta da polícia porra! - A simples pronuncia da palavra “polícia”, serviu para causar um mal-estar instantâneo. Dodô teve uma reação muito diferente do seu tradicional estilo. – Ah porra! Segunda-feira, de manhã e vem você com estas pilhas? Ó, não faz assim não. Nós estamos te recebendo com o maior carinho e... Usando de absoluto sarcasmo ele tentava mostrar que não cairia no que parecia ser um truque. Uma brincadeira de mau gosto da minha parte. Aí eu amassei as cartas que estavam na minha mão esquerda produzindo um bolo de papel, com o qual cometi o pecado de esfregar exatamente em cima do pão que ele saboreava tão concentrado. Mexer na comida de alguém custa caro... – Porra! Qual é responsa? Vai começar a zoar o bagulho? Vou foder com tudo também... Ó Caralho, hein? Tomar no cu tá? - Respondeu Dodô ao meu ato de desrespeito vociferando contra mim em altíssimos brados.

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– É pra você se ligar na gravidade do que eu tô falando porra! - Tentei amenizar a reação dele, demonstrando algum desespero, falando alto e batendo com a mão na mesa. Depois fiquei calado com cara de monstro. Não me intimidava com nenhuma manifestação deste tipo. A máxima que eu mais gostava de ouvir na sede era a que dizia que “carinho de homem é porrada”. Dodô empurrou a cadeira pra trás, se levantando num gesto brusco. A mistura do tombo da cadeira com as palmadas na mesa e os gritos, finalmente acabaram por acordar as duas “belas adormecidas”. – Ô! Da pra ficar na moral aí? – Estou com a maior dor de cabeça. Esboçou alguma reação Tchélo. – Num da não cumpadi... Levanta aí... - Respondeu Dodô, como quem chama alguém para iniciar uma discussão junto. Finalmente tivemos alguma participação de Bínchi ao acordar. “Aí, na moral. Vocês dois parecem marido e mulher cara. Porra! Vou te falar legal..”., disse o negão sem noção de nada e com a cara toda amarrotada. Ele procurava por alguma coisa. Ele ainda estava que meio que no mundo do sonho, meio que acordado. No momento em que a atenção dos quatro convergia para um mesmo ponto, resolvi aproveitar a oportunidade e acusar o recebimento da carta da polícia. – Aí responsa, tô boladão, mas com motivo valeu? Iniciei o desenrolado. – Então fala aí cara. Começou a manifestar algum interesse Bínchi. – Esta merda aqui na minha mão é uma carta da polícia pra gente. Enquanto falava, aproveitei para balançar o envelope e assim chamar mais a atenção deles ainda. – Caralhoooooo! Responderam todos, quase em uníssono. – Quem tá fodido? Quem vai depor? Indagava aos berros Bínchi. – Eu não sei. Não tive coragem de abrir ainda. – Então abre esta boceta porra. Exigiu Bínchi, finalmente acordado e mais participativo. Quando algo referente à polícia chegava a nós na sede da Torcida Organizada, fosse por telegrama, fosse por fofoca, fosse pelo

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jornal ou televisão, todos sentiam presságios. Era uma tradução sintomática da expressão “quem deve teme”. Olhei para todos que estavam na minha frente, antes de abri-la. Claro que o meu olhar era pura tensão. Os três também tinham a mesma expressão de pânico no rosto. A expectativa era total quando rasguei uma das laterais do envelope e retirei a carta. Fiz uma leitura silenciosa do texto e enquanto descobria o conteúdo da carta pensava no que estava passando pela cabeça dos três. Um devia estar repetindo “Não posso ser preso de novo, não posso ser preso de novo”. O outro pensava “será que descobriram aquilo?”. Primeiro mantive a leitura silenciosa. Até o final. Mantive o suspense. “Fala, senão eu vou te bater muito”, dizia Bínchi para mim. “Eu também, eu também vou te esmagar”, concordava Dodô. O Tchélo era o mais calmo. Aliás, ele estava totalmente calmo. Ou era um cara que nada devia, ou... Que nada temia. Eis que então resolvo revelar o conteúdo da carta. Por uma questão de ausência absoluta de senso de limite para certas brincadeiras, mantive o tom grave no meu rosto mais acentuado. Soltei um longo suspiro no melhor estilo “não há mais nada a fazer”. E então comecei a seguinte leitura:

Rio de Janeiro, 15 de maio de 2000. A Diretoria do G.R.S.C.T.O. KAMIKAZES DO DEPORTIVO FOOTBALL CLUBE “O Quartel General Central da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, tem o orgulho de convidar o Grêmio Recreativo Social Cultural Torcida Organizada Kamikazes do Deportivo Football Club para o primeiro Congresso sobre Torcidas Organizadas, que realizar-se-á dia oito de junho de 2000, a partir das nove horas no auditório do quartel Central da PM do Rio de Janeiro. A presença é obrigatória, sendo a ausência considerada descumprimento do dever civil e como tal será penalizada de acordo com as sanções previstas em lei. Além das penalidades individuais aplicadas aos seus respectivos diretores, a Torcida que se ausentar ao debate, será obrigada a cumprir uma penalidade de dez rodadas de

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suspensão, sendo assim impedida de utilizar faixas, bandeiras, instrumentos etc. Um debatedor deverá ser indicado. Respeitosamente Major Cel PM Milton Gonçalves Varga

Seguiu-se uma sequência de gestos que simbolizavam alívio. Profundos suspiros, interjeições, abraços, leveza dos ombros, enfim... Até que se lembraram de mim e do terror que eu impusera a eles. Mesmo naqueles poucos minutos. Na verdade eu não tinha tanta culpa assim, porque só passei a me divertir com o pânico deles após a leitura da carta. Até então eu era refém do medo tanto quanto qualquer um. Afinal, eu também tinha as minhas histórias não autorizadas, digamos assim. De qualquer forma eles não quiseram saber, e por conta da minha infeliz escolha quanto ao formato de passar-lhes a informação, o castigo foi implacável. Eles não haviam levado nada na esportiva. Tudo começou com uma paulada que me acertou no cotovelo direito, um soco no meu tórax e, a esta altura, eu já não conseguia ver de que direção vinham os golpes. Dava para sentir apenas a diferença entre os golpes. Uns com pés e mãos, outros com uma madeira pesada. Eles me aplicaram esta surra, me xingaram e até me cuspiram por acharem que eu sabia que o assunto não era de tamanha gravidade há muito mais tempo do que eu me fizera acreditar. Claro que um Quartel da Polícia não é um lugar muito seguro para nós que andamos na contramão, mas, nesta ocasião, seria bem mais agradável que dentro de uma delegacia em frente a um detetive e a um escrivão. Por assim dizer, eles tinham certeza que eu estava representando um papel desde o primeiro momento com a finalidade única de vê-los passando por este desconforto e me divertir com tal situação. Rir do pânico alheio. É... Torcida é assim: Deu mole bata. Não importa quem seja. Na dúvida bata.

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Esta atitude pela qual fui julgado e condenado injustamente pela rapaziada é uma atitude tão sádica quanto normal no nosso nicho. Tentei me defender, argumentei, mas uma sessão de espancamento consequência de uma atitude considerada pérfida, debochada, só poderia ser encerrada após todos se darem por satisfeitos no tocante às suas necessidades de vingança, ou justiça. Assim perdi um dente da frente. Após a surra, ainda deitado no chão e sangrando, fiz a pergunta inevitável. Naquele momento eu não queria falar nada. Só pensava em matar. O problema é que eu sabia o quanto seria difícil escolher entre nós, quem seria o debatedor. Daí a necessidade de adiar os meus instintos bárbaros e iniciar imediatamente o, digamos, diálogo. – Quem vai falar na casa dos vermes? Dei o primeiro passo. – Claro que é você filho da puta! Respondeu Bínchi me golpeando com outro chute violentíssimo na minha coxa direita. Aquela que nunca mais havia se recuperado depois da briga em Minas. – E... E... Eu? Eu? Eu? Eu é o caralho. Respondi tentando me levantar e recebendo outra banda do Dodô. – Fica quieto aí crocodilo. Te tomar no cu da bunda rapá. Acabou o amor responsa! Vociferou Dodô. Visivelmente alterado, o que eu ainda não tinha visto durante a nossa convivência. – Ô Dodô! Não é assim não! Eu te esculacho, hein playboy? Perder pra tu na mão é macumba. Tu só cresce no poder desse macaco e do Tchélo responsa. Desabafei pra não ficar muito na defensiva, pra não pegar muito mal. Tipo um teatro. E ele partiu pra cima de mim imediatamente. – Vai te fudê, filho de uma puta! Vai tomar no cu! Tu é otário. Tirando onda com geral, rindo da cara de geral cumpadi. Num momento em que a diplomacia fracassava e a discussão beirava a violência novamente, um grito de ordem rasgou a sala e todos olharam para a mesma direção: – Eu vou. Eu vou ser o debatedor, disse Tchélo. Um silêncio de perplexidade se instalou na sala. Só após alguns segundos todos conseguiram assimilar o que havia sido dito. – Como é que é? Sem entender nada, disse Bínchi coçando a cabeça.

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– Tá maluco? Tu não sabe nem comer de garfo e faca... Quer se debatedor? Ironizou Dodô. Bínchi e Dodô acabaram se rendendo ao poder sarcástico desta última observação e riram pra caralho. Riram tanto que chegaram às lágrimas. Tchélo não se sentiu ofendido com o acesso de risos e manteve-se na sua inexorabilidade. Sério e obstinado. – Eu quero a responsabilidade. Disse Tchélo abafando os risos com sua voz alta. Gradativamente o riso foi dando lugar à certeza de que ele falava sério. Aproveitei a oportunidade para sair em sua defesa e, consequentemente, passar este fardo para outro. Claro... – Quer saber responsa? Acredito no amigo. Além do mais, o que o Tchélo pode dizer de comprometedor? Bínchi se aproximou do Tchélo lentamente. Ergueu a mão esquerda e colocou-a sobre o ombro dele e olhou diretamente nos olhos do Tchélo antes de dizer a primeira frase. – A obrigação é desse filho da puta. Ele é o presidente. Ele tá aí pra isso. Tu já é de favela. Vai ficar pichadão. Quero dizer, mais pichado ainda. Ele tá aí pra quê? Pra enfeite? Bínchi terminou a frase e continuou apontando pra mim com o indicador e olhando nos olhos do Tchélo. – Mas eu só quero fazer responsa. Entende? Não é pra livrar a cara de ninguém. Eu quero experimentar a sensação. É por mim e por mais ninguém. Todos por fim acabaram concordando. Afinal, o que o Tchélo poderia fazer - ou dizer - de tão comprometedor? Se foder é uma escolha pessoal. Cada um sabe de si e pronto. Cada um cava seu próprio buraco. No dia do tal congresso, cada um deve ter acordado com uma sensação própria. Cada idiossincrasia criou a sua própria expectativa sobre o dia que nós seríamos obrigados a viver. Na minha mente eu pensava em apertos de mãos, tapinhas nas costas, sorrisos, enfim. Diplomacias exacerbadas, que nada mais são que a essência da falsidade. Eu quase não ouvia o que os outros diziam ao meu lado. Na minha cabeça, parecia que uma equipe de som havia se instalado tocando repetidamente “Johnny vai à guerra da Plebe Rude”. Vesti um personagem pra ficar mais calmo...

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Encontrei os quatro no botequim embaixo da sede acabando de tomar café. Cumprimentamo-nos e entramos no carro discretamente uniformizados e fomos encontrar com o nosso destino. Quando lá chegamos, encontramos um ambiente surpreendentemente calmo, sem o menor aparato externo de segurança para nos receber. No estacionamento, uma placa indicava que duas vagas haviam sido reservadas para nós. Nós quatro e o quinto elemento: O Márcio carcará, o nosso piloto. Saímos e nos comunicamos apenas com o olhar dizendo “vamos lá porra!”. E assim o fizemos. Bem, sobre o Márcio carcará eu posso afirmar que ele era um cara que me agradava. Gostava mesmo da companhia dele. Tinha história dentro da Torcida. Tinha perdido o dedo mínimo da mão esquerda numa briga em São Paulo. A sua idade eu não sabia, mas dava para deduzir que era algo em torno de quarenta e cinco anos. Trabalhava como segurança em vários lugares. Ele era uma genuína ratazana de Maracanã, que, para mim, a principal qualidade era pouco se importar com a vida da “alemãozada”. Como segurança era muito solicitado, pois matava sem muita reflexão e tinha uma habilidade incomum para desaparecer. Ele costumava dizer coisas do tipo “marcou toca na alça de mira minha pistola tá treinada pra disparar sozinha”. Conhecia a maioria dos cambistas que exploravam e ganhavam dinheiro com a paixão dos outros. As suas vítimas favoritas eram os turistas. O cambista favorito dele era um tal de “general” que era uma das peças mais importantes da máfia do câmbio negro que funcionava livremente dentro do Maracanã. O “general” comprava os ingressos pela melhor cotação. Ganhava na quantidade e tinha um capital de giro invejável. Facilmente negociava dez mil ingressos. A rede de contatos do general, tal qual o seu capital de giro, também era invejável. Depois dos ingressos comprados, eles eram colocados à venda dentro das bilheterias do Maracanã com a conivência de fiscais e bilheteiros; os quais vendiam os ingressos. No bonde do “general” não havia peneirador (aquele que vende ingressos aos transeuntes um a um). Este era o mundo do Márcio carcará. Meio policial, meio bandido; ele era a prova cabal que os opostos se atraem. Afinal, o Márcio carcará havia sido expulso da PM por ter sido pego em flagrante tentando extorquir a vagabundagem do morro do Anel, que, cansada de levar botes seguidos dele, conseguiu armar uma situação de flagrante com filmadora e tudo. O que acontecia

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é que ele agora transitava por outro lado, dando continuidade ao seu mercantilismo todo peculiar. Sei que a vingança dele contra os bandidos do morro do Anel foi sinistra. Ele formou uma polícia mineira com outros nove camaradas de confiança dele e juntos subiram o morro. Mataram todos que estavam nos becos. Culpados ou inocentes, bastava o azar de estar na hora errada, no lugar errado, ou seja: No caminho deles. Os jornais noticiaram que havia sido uma guerra entre facções rivais o motivo daquela carnificina. Nós sabíamos antecipadamente que ia acontecer, porque o Márcio carcará, havia nos encontrado no Maracanã e avisado que nada do que acontecera ficaria barato. Quem não estava envolvido na denuncia que o fez sair da polícia e, infelizmente o encontrou pela frente, teve a sorte de apenas morrer. Mas aqueles que foram devidamente identificados foram torturados numa parte do morro, onde eles mesmos, os vagabundos, torturavam e finalizavam suas vítimas. O feitiço tinha virado contra os feiticeiros. Todos apareceram com suas cabeças sobre bandejas. Uma bandeja para cada cabeça. Uma foto muito bizarra na capa do jornal “O Povo”, o jornal da massa. A tosco, bizarro e irônico modo, era algo muito parecido com a capa do primeiro disco dos Secos e Molhados. Combinei uma quantidade de ingressos para que ele fizesse a nossa segurança. Ele sorriu. Percebi que poderia ter economizado alguns ingressos, já que pela sua reação, a proposta havia sido muito maior do que ele esperava. Tudo bem perder pra ele. Na portaria nos identificamos e fizemos a nossa inscrição e a do Tchélo como debatedor e recebemos nossas credenciais. Dirigimo-nos ao imenso corredor dos elevadores e subimos ao terceiro andar, onde fomos “recebidos” por um cartaz que dizia: “Seminário Rio driblando a violência e torcendo pela paz”. Tinha um bonequinho desenhado com o uniforme da PM com uma flor na mão esquerda e uma bola embaixo do pé direito. Sorrindo. O auditório era um lugar grande mesmo, mas que com toda a sua capacidade, me pareceu insuficiente para abrigar tanta gente. Chegamos pontualmente às nove horas, mas todos pareciam ter chegado mais cedo. Talvez por isso, por termos sido os últimos a nossa chegada causou certo impacto. Isso causou em todos nós uma sensação de centro das atenções e todos começaram a encarnar seus personagens de

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celebridade. Da entrada do auditório até os nossos lugares na primeira fila, eram uns cinquenta metros de distância. Sobre o tapete, digo, carpete, caminhávamos eu e Tchélo na frente e Márcio carcará, Dodô e Bínchi atrás. Silenciosamente. O queixo levemente erguido com a cara fechada para combinar e os braços balançando. A sensação era a de que absolutamente todos nos olhavam passar. Sentamos nos lugares reservados para nós e calmamente, fomos nos ambientando. Finalmente pude me situar e observar detalhadamente o ambiente. Além do conforto proporcionado pelas poltronas aveludadas e anatômicas e pelo ar-condicionado central, havia uma limpeza indescritível no tocante ao carpete. O bufê servia água mineral, café, biscoito e refrescos ao lado do palco, onde se realizaria o debate. Todas as empresas de rádio, televisão e jornal do Rio de Janeiro estavam presentes cobrindo o evento. Foi somente aí que precisei o tamanho e a importância de tudo aquilo. Câmeras, flashes, gravadores, microfones etc. O circo estava montado. Neste instante, o Márcio Carcará se virou para mim para fazer o seu primeiro comentário. – Porra aí! Que bagulho grande. Já viu os “alemão” da Independência? Tão perto dos caras da Luta. Um lambendo o cu do outro. Tá todo mundo olhando para cá. – Tô vendo. Tô me fingindo de morto. Só isso. - Respondi. A Torcida Independência e a Torcida Luta, como eu já contei, são aliadas. Mesmo sendo do mesmo estado, do Rio de Janeiro, ambos movimentos conseguiam contrariar todas as expectativas e serem amigos declarados. Para todos os integrantes de quaisquer Torcidas Organizadas nos dias de hoje, era inadmissível uma aliança deste tipo. Era uma relação de subserviência mútua que criava certo ar de desrespeito para as duas agremiações. Era como se uma só fosse capaz de sobreviver com o suporte da outra. Os integrantes de ambas as facções assistiam aos jogos em comum misturados. Um na torcida do outro. Que graça isso poderia ter? Na verdade, nós que vivíamos o cotidiano, sabíamos muito bem que ambas as agremiações eram plenamente capazes de viverem suas vidas sem precisar de ninguém, pois tinham o mesmo número de associados que todas as demais tinham. O fato é que as duas Torcidas eram repletas de boas amizades e nós, que não compartilhávamos daquela irmandade, morríamos de inveja.

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Pontualmente às nove e quinze o evento foi iniciado. Gráficos e estatísticas imperavam num desfile de todos os tipos possíveis - e até os inimagináveis - de tecnocracia. Estudos complexos sobre o panorama contemporâneo eram apresentados um após o outro. Pacientemente assistíamos a tudo e vez por outra tecíamos algum comentário. Quase sempre ridicularizando ou divergindo do que era dito com um semblante sério. Fazendo o tipo super interessado, mas sacaneando cada uma das figuras com cara de C.D.F. que aparecia. Às onze e quarenta e cinco foi anunciado que o sorteio para decidir o nome do mediador do debate seria feito naquele momento. Depois seguiríamos com o almoço. O sorteado foi o capitão Allan Lopes de quem eu jamais ouvira falar. Ao anúncio do nome do “felizardo”, seguiu-se a indicação do lugar onde se encontrava o refeitório. “Um ótimo apetite a todos os senhores”. Lá chegando aproveitamos para nos servir o quanto antes, visando repassar a pauta que havíamos preparado juntos. E assim o fizemos. Também queríamos manter a distância dos outros; mais por desconfiança mesmo. Após o almoço arriscamos um passeio pelo estacionamento para fumar um cigarro, mas não tivemos companhia por lá também. Melhor. Às treze horas um sinal foi acionado convocando a todos. Voltamos a ocupar os nossos lugares sentindo a ansiedade crescer devido o aumento da proximidade do momento mais esperado do evento, que era o debate. Infelizmente o recomeço foi exatamente igual à primeira etapa. Gráficos, estatísticas... Enfim. Para constrangimento - ou punição pelo caráter enfadonho dos seus temas - daqueles que apresentavam seus estudos, o sono se tornara um inimigo mais implacável ainda após o almoço. Algum de nós não conseguiu resistir ao poder de “Sandman”. Inclusive, tivemos alguns exemplos que não eram lá muito dignos de menção, já que a ocasião era de certa solenidade. Ouvíamos, de vez em quando, roncos muito altos e, estes que roncavam, quando cutucados, acordavam tossindo e fungando escandalosa e indecentemente, o que elevava o constrangimento em níveis muito próximos de uma comédia.

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Às quatorze horas as atividades demonstrativas foram interrompidas. Felizmente. O palco foi ocupado pelos funcionários da equipe de sonorização responsável pelo evento que começaram a instalar e testar os microfones. Outros funcionários posicionavam mais cadeiras, blocos, canetas. Copos d’água também foram disponibilizados. O debate ia começar. Entre os debatedores estavam os membros das principais Organizadas rivais mais expressivas. A ordem, da direita para a esquerda, de acordo com os nomes nas placas em cima da grande mesa era: Independência Jovem, Luta Jovem e Organizada Jovem, seis militares graduadíssimos, o renomado sociólogo Rubem César Hernandes, o radialista Roberto Canário, um deputado representante do governo do Estado, outro vereador, o representante da Associação de Moradores do bairro da Tijuca, o Pastor Glauber Félix, o Padre Azevedo, o Presidente da União das empresas de ônibus e, também, o representante da empresa de trens. Por fim o representante da SUDERJ, além - claro - do nosso representante. Um oficial se certificou que tudo estava de acordo e tomou posse de um dos microfones para um breve anúncio com aquele semblante tomado pelo tédio. “Dando prosseguimento ao ciclo: Rio driblando a violência e torcendo pela paz, vamos chamar ao palco os debatedores. Queiram, por favor, subir ao palco os senhores“... E assim todos foram chamados um a um. O Tchélo estava surpreendentemente calmo, mas como ele era de uma lentidão absoluta usualmente, vi que ele não havia entendido muito bem o que estava acontecendo. Pensei que isso era o melhor que poderia ter acontecido para ele. De fato o era. Finalmente o Capitão Alan Lopes anunciou o início do debate explicando as regras. Pediu que o bom senso fosse obedecido e, que em momento algum, os debatedores falassem ao mesmo tempo. Mais um discurso sobre as consequências da decadência da nossa sociedade e quanto era importante aquele passo para todos os envolvidos com o universo mítico do futebol e blá, blá, blá... Depois de meia hora aproximadamente falando, o Capitão Alan passou a palavra para a “estrela da companhia”: O sociólogo Rubem César Hernandes. Representante do ONG “O Rio é legal”. A partir daí começamos a ouvir atentamente as palavras do senhor Hernandes. “Os valores precisam ser resgatados. Não podemos vê-los partindo e simplesmente acenar com as mãos num adeus complacente. A sociedade como um todo precisa se mobilizar com passeatas, abraços simbólicos e outras atitudes similares

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em todos os seus segmentos”. Este seria o resumo do que o sociólogo defendeu. Comecei a me desinteressar talvez pela homogeneidade das defesas dos temas. Como vacas de presépio - que na verdade são Lobos , um a um, os ícones apresentaram suas “variações sobre a mesma defesa”, digamos assim. Aos poucos, alguns líderes - principalmente os militares, é claro - foram revelando uma grande saudade de certos comportamentos e táticas adotadas num passado recente. Havia uma nostalgia indisfarçável dos tempos da subserviência imposta por demonstrações de brutalidade. Ironicamente tentavam nos intimidar, mandando-nos mensagens intrínsecas que diziam “se fosse há algum tempo, vocês veriam em que lugar estaríamos realizando este debate”. Velhos decrépitos apertando desesperadamente as mãos, tentando não perder um grão da coisa valiosa que eles buscam desesperadamente reter, ao mesmo tempo em que muito dessa mesma coisa valiosa transbordava por entre os seus próprios dedos. Na sequência tivemos o Presidente da Associação de Moradores do bairro da Tijuca, que foi o responsável por um dos momentos mais sinceros do evento. Relatou os casos de barbárie mais impressionantes como o de verdadeiras multidões que jogavam garotos moradores do bairro que circulavam com suas camisas “erradas” pelas imediações do estádio, dentro do rio Maracanã. Ele disse que esta tinha se transformado na rotina do bairro, principalmente em dias de clássicos estaduais de futebol. Falou das táticas que os moradores foram obrigados a adotar para driblar a violência dos conflitos entre as Organizadas. Ele explicou que a Associação de Moradores se viu obrigada a confeccionar e distribuir uma cartilha, um guia de sobrevivência para os moradores. Ficamos sabendo que mesmo os moradores que não apreciavam futebol, se condicionaram a acompanhar as tabelas dos campeonatos para não serem surpreendidos ao chegarem ou saírem de casa. Ali pude perceber um abandono, uma carência, um drama. Tudo me pareceu muito verdadeiro. Logo em seguida os cartolas tiveram a sua chance. Sempre dando um jeito de se eximir de qualquer responsabilidade como bons ratos de porão que são. A verdade é que a cartolada era um pouco refém das torcidas devido aos acordos políticos feitos entre eles. Muitos

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cartolas eram eleitos para câmaras Municipais, Estaduais e até para o Congresso a partir do uso e do abuso dos integrantes das facções. Estes membros, que eram naturalmente seduzidos por vários tipos de promessas, das mais básicas às mais criativas (como um emprego quando o candidato apoiado fosse eleito, uma cirurgia, uma bolsa de estudos para o filho, etc.), colavam cartazes por toda a cidade, penduravam galhardetes, pichavam muros, distribuíam santinhos e executavam o que mais fosse necessário para realizar o pesado trabalho que uma campanha política de rua demanda. Além das promessas faraônicas feitas para cada membro de Organizada envolvido com o processo de divulgação das campanhas, era oferecido um lanche por dia, uma ajuda de custo (referente à passagem de ônibus) e uma diária. O lanche às vezes era servido. Composto unicamente de um copo de chá (ralo e sem açúcar) e um pão francês meio dormido com uma fatia de mortadela. O correspondente financeiro nunca era pago. Ou o líder da equipe não repassava os devidos valores quando os candidatos pagavam embolsando tudo, ou, simplesmente os candidatos aplicavam doses cavalares de retórica nos ouvidos de todos buscando convencê-los que “valeria a pena esperar pela recompensa”. Por estes motivos, os cartolas não podiam degradar a imagem das Organizadas como gostariam. Apresentaram volume de palavras sem nenhum conteúdo. Falaram, falaram, falaram e nada disseram. Quebrando de forma tímida a sequência de soluções dadas pelos déspotas maquilados e suas ideias embasadas na repressão pelas vias da obliteração da violência, estavam os representantes das Torcidas Organizadas. Na sua maioria semianalfabetos, sorrisos falhos, intimidados e acuados pelo ambiente e, também pelo ritual do congraçamento entre “Lobos”, “aves de rapina” e outros carniceiros da nossa peculiar fauna. O primeiro a falar foi o representante da Independência Jovem conhecido pelo pseudônimo de “Canjica”. Ele, um cara de vinte e oito anos presumíveis, um metro e setenta e uns setenta quilos, tinha o rosto coberto por manchas de queimaduras de fogos. Branco sim, mas só até chegar ao pescoço. O rosto, além de vários buracos, tinha várias tonalidades de pigmentações, enfim. Diziam que ele tinha adquirido aquela aparência confeccionando uma enorme cangalha de fogos, que num descuido de alguém que fumava por perto, explodiu no rosto dele.

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Ele estava transtornado naquele momento com as sobrancelhas contraídas e as mãos trêmulas. Levou quase um minuto para articular a primeira frase, tamanho o grau de gagueira. De tudo que foi dito pelo Canjica, poderíamos aproveitar uma única passagem: “Os cara tá com fome, os cara róba né?”. E um constrangimento coletivo estabeleceu-se. O primeiro retrato fidedigno da realidade acabara de se manifestar. Muitos estudiosos que ali estavam, especialistas formados e pósgraduados, nunca tiveram a oportunidade de um contato tão próximo com um espécime tão selvagem, tão brutalizado pelas condições do seu próprio meio ambiente. Quase inimaginável. O elo perdido havia sido encontrado. O Márcio carcará, despertando de sua letargia, disse-me que o motivo real daquela aparência que o rosto do Canjica tinha adquirido, era fruto de um contato infeliz com fogos de artifício sim, mas não por conta da tal explosão acidental de uma cangalha. Ele havia sido alvo de uma morteirada de doze por um à queima roupa num conflito na Francisco Bicalho com a Organizada Jovem por ocasião de uma final de Taça Guanabara. O Márcio sabia das coisas. Quando o segundo representante chegou a cinco minutos de sua participação, o terceiro representante resolveu intervir e responder a algumas acusações que lhes foram dirigidas naquele momento. Ambos trocaram acusações. Cada um denunciou a natural usurpação de patrimônio, as “escamas” (armadilhas), enfim... Não foram capazes de manter o protocolo. Não foram capazes de manter o ódio longe daquele circo. O evento paulatinamente foi tomando outro rumo... O Adalberto era o segundo representante de uma Organizada na ordem do dia. Presidente vitalício da Luta Jovem, visto que ele nunca perdia uma eleição. Caso isso acontecesse ele invadia a sede da Luta com os seus asseclas, agredia e ameaçava o vencedor, que nunca era alguém disposto a enfrentá-lo, que era obrigado a abandonar o cargo. Assim ele estabelecia seus “golpes de estado”. Logo, ele nunca perdia uma eleição. As lendas sobre ele diziam que seu patrimônio particular era composto de dois apartamentos na zona sul do Rio de Janeiro: Um na Santa Clara e outro na Barata Ribeiro, ambos em Copacabana. Além dos dois imóveis, dois automóveis zero quilômetro estilo picape. Tudo adquirido graças ao acúmulo de capital proveniente da venda dos ingressos doados pelo clube à torcida, e que por ele eram negociados com os cambistas.

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Por mais que o Capitão Alan Lopes tentasse restabelecer a ordem, o ódio entre ambos representantes fazia desta uma tarefa impossível de ser realizada. O comportamento do representante da Luta Jovem, assim como o da Organizada Jovem era surreal, se nos lembrarmos por um minuto do local onde estávamos. Nada mais desagradável num conflito generalizado, que encontrar com o Adalberto. Ele fugia completamente do perfil da maioria, apesar das cicatrizes espalhadas pelo seu rosto. O desenho das cicatrizes no seu rosto eram muito parecidas com o das linhas das palmas das mãos. Cada uma delas era fruto de uma ocasião específica em muitos anos de guerra. Era uma torcida que quase não tinha em seu grupo, integrantes que torcessem realmente para o EXTREMO FUTEBOL E REGATAS. Os seus participantes eram recrutados em academias, já que a tradição da Torcida era de lutadores de Jiu-Jitsu. Aqueles que frequentavam os jogos na Luta não apreciavam futebol. Estavam no Maracanã apenas pelo culto à violência. O Adalberto era lutador assim como todos os membros da sua diretoria. Eles conheciam muita gente no circuito das academias, o que era determinante na formação de um batalhão bastante apto em assuntos referentes a conflitos. Apesar de toda esta qualidade como guerreiros eles não descartavam o uso de armas de fogo. Em qualquer conflito com a Luta era necessário estar preparado para uma eventual troca de tiros. Os conflitos mais complicados logisticamente da minha vida como integrante de uma Organizada, foram aqueles que tive com a Luta Jovem. O Adalberto era uma massa compacta de músculos e muita raiva no coração. Acho que gente como ele deve ter sofrido pelo menos um tipo de abuso em alguma época da infância, onde ainda não pudesse se defender. Pisava forte no chão, cabelo cortado com máquina, bem curto. Andava com os braços quase abertos, tamanho o excesso de musculatura distribuídos numa carcaça de um metro e noventa centímetros aproximadamente. De cor branca e vestido com roupas de grife, ele representava um tipo de estilo todo peculiar: O pitboy. A Organizada Jovem era a Torcida que tinha as características mais violentas. Por serem torcedores do time mais popular, obviamente as camadas mais humildes da população se concentravam no corpo desta Torcida. A Organizada Jovem chamava pra si a responsabilidade de ser a representante da favela e de outras ditas minorias. O que era

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motivo de vergonha para alguns, para eles era a bandeira principal. Portanto, ali todos os órfãos de cidadania se sentiam em casa. O Presidente da Torcida que naquele momento se envolvia num bate-boca apimentado com o Adalberto, era conhecido como Curupira. Aliás, os presidentes das principais Torcidas do Rio estavam completamente envolvidos num super bate boca. Exceto o Tchélo... O biótipo do Curupira era esguio. Ele era uma simbiose de várias favelas. Era o seu nicho. Mulato, um metro e oitenta, uns setenta quilos... Trocava o “L” pelo “R” sempre. No idioma nheengatu não havia plural nem a letra ”L”. A herança é fortíssima neste aspecto e até hoje o povo fala “excrusivos”, “frauta”. Se for intrínseco ao povo não pode estar errado enfim. Não aparentava marcas, mas era de conhecimento público que ele havia sido baleado pelo menos em três ocasiões. Era o próprio pessoal da Organizada Jovem que fazia questão de evidenciar que tinha muito pouco - ou nada - a perder. Essa postura não era um mero elemento intimidador. Bastava que houvesse uma necessidade, qualquer necessidade, a mais ínfima delas, para que a Organizada Jovem deflagrasse uma guerra. Foram eles os precursores da prática de arrastões na ida e na volta dos jogos, assim como a introdução de lutadores de artes marciais nas Torcidas Organizadas. O Capitão Alan Lopes demorou demais para tomar a atitude que todos esperavam dele desde o começo daquela palhaçada. Pediu para que os microfones de ambos fossem desligados e os advertiu, ameaçando-os de prisão por desacato à autoridade (e não eram poucas as autoridades presentes no ambiente). Finalmente os ânimos foram serenados. Rapidamente serenados. Algumas perguntas passaram a ser dirigidas a ambos, já que uma participação interpolou-se à outra. Foram solicitadas sugestões para a erradicação, mesmo que em longo prazo, da violência generalizada em dias de jogos. E, pelo menos em um ponto eles convergiram: Da necessidade de um acompanhamento mais próximo dos efetivos da polícia. Assim como também a designação de um único lugar para que todos os grupos da mesma Torcida, vindos de vários bairros do Rio, se concentrassem e saíssem juntos rumo ao Maracanã. Todos os grupos de todas as regiões juntas num mesmo lugar tornariam as coisas muito mais fáceis para a polícia, tendo em vista que os esforços seriam coordenados para um mesmo lugar.

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Pareceu-me perfeita esta solução. Do início das movimentações até o momento da dispersão a polícia estaria presente. Era o que todos queriam há muito tempo, mas, talvez por omissão, nunca havia sido cogitado pelas autoridades. Os policiais - dos recém-formados aos mais experientes - e os técnicos adoraram a sugestão. Naquele momento ficou decidido que esta prática seria adotada para o clássico seguinte em caráter emergencial. Uma reunião foi marcada para um acerto mais detalhado dos procedimentos que todos os envolvidos deveriam adotar. Finalmente - e já era hora - a palavra chegou ao Tchélo. De todos ele era o único com o olhar diferenciado. Ele estava muito compenetrado, atento, mesmo quando os argumentos mais prolixos tomavam o ambiente de assalto. Parecia que todos estavam torcendo pelo desfecho daquilo tudo. Tinha acabado de começar a terceira fase: O depois do pós-almoço. Ninguém esperava mais nada a não ser o encerramento do evento. Eu estava feliz e aliviado por tudo ter se resolvido assim. Cumprir-se-ia apenas um protocolo com a assinatura de todos no final. A pauta do Tchélo estava decorada e era repleta de estereótipos do tipo: “Faremos todos os esforços possíveis para somarmos aos esforços da polícia e do Governo do Estado à nossa boa vontade”. Claro que eu sentia algo como se estivesse perdendo a oportunidade de uma vida. Algo como uma última oportunidade. Mas para que polemizar? Quem tinha plenas condições de executar ou sugerir uma grande ideia, preferia se perder com deslumbramentos patéticos com seus “altos conhecimentos em Power Point”. Os especialistas preferiram o silêncio e a omissão. Era claro que nós tínhamos tomado a atitude certa sendo meramente participativos. Por que nós devíamos falar algo? Não... Eu só pensava em chegar à sede, pegar o faturamento do dia, comprar muita maconha, umas cervejas e sair à noite. Enquanto o Tchélo resolvia os seus problemas com a posição do microfone eu pensava nele. Uma pessoa inofensiva com os amigos e previsível. Isto me tranquilizava. Saber que eu podia contar com ele, uma pessoa que sempre (mesmo contrariando as sua crenças particulares) respeitou as determinações da Diretoria e do Conselho, era motivo de tranquilidade para mim. A inexorabilidade era o seu traço

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mais marcante; entretanto ela vinha depois, muito depois mesmo da disciplina que ele tinha. O que fosse decidido pelo coletivo, ele acatava. Ouvindo o anúncio, despertei deste “desenho” do perfil do meu amigo. “E agora finalizando o evento teremos a participação do representante do G.R.S.C.T.O. KAMIKAZES DO DEPORTIVO FOOTBALL CLUB”. A esta altura, o capitão Alan Lopes estava visivelmente entediado e com um leve mau humor, que apesar de leve, não pôde passar despercebido. Foi sucinto como quem mandava um recado para o próximo participante: “Esperamos o mesmo poder de resumo de você”. Ao contrário de todos os outros participantes, o Tchélo se levantou da cadeira. Observou minuciosamente o panorama girando a cabeça levemente. Viu as pessoas sem posição nas poltronas, que mesmo sendo de todo confortáveis, não foram capazes de aplacar o mal-estar que a permanência de cinco horas na mesma posição pode proporcionar. Ele abaixou a cabeça e quando resolveu levantá-la, já estava com outro tipo de olhar. Colocou as mãos nos bolsos, como quem não sabia em qual dos dois estava o que ele procurava. Do bolso esquerdo saiu uma folha de ofício dobrada em quatro. Não era o mesmo papel que havíamos escrito a pauta. Olhando para o papel, ele desfez a dobra. Olhou para o conteúdo, suspirou e começou a sua participação. “Senhoras, senhores... Boa tarde. Hoje, pelo que me parece, todos fomos convidados a testemunhar a falência múltipla dos órgãos que compõem a nossa sociedade. Ninguém, senhoras e senhores, foi capaz de apresentar uma solução criativa até o presente momento. Todos se candidatam, prometem, e, depois de eleitos e confortavelmente instalados, se desculpam. São estes, os verdadeiros elementos decompositores incrustados no cadáver dos antigos e obsoletos valores. Os que se alimentam deles. Basta um vagão, qualquer vagão sair dos trilhos, para ouvirmos estes líderes de todos os segmentos, que aqui se propuseram discutir uma saída ou uma solução, evocar os antigos valores como índios que evocam os seus antepassados”. Quem dormia acordou. Todos se entreolhavam buscando um rosto que pudesse, pelo menos, lhes dar uma noção do que estava acontecendo. Eu não entendi, ou, não queria entender nada. Fiquei petrificado. Nem para os lados ousei olhar. Ele deu prosseguimento calmamente à sua participação. “A postura adotada pela sociedade, esta postura de repressão festiva, é, suspeitamente conveniente, pois mantém

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o panorama estagnado. Brada-se aos quatro ventos a disposição do Estado de impedir, em não admitir a abertura para a sociedade quanto aos temas polêmicos. Ora, o governo não abre espaço, mesmo que seja do tamanho do buraco de uma agulha, para ouvir o que a sociedade realmente quer. Afinal, apenas para destacar o intuito deste depoimento, eu vos pergunto: Por exemplo, seria realmente lucrativo para os barões da droga, os quais muitos compõem Câmaras Municipais, Estaduais, parte do Congresso, e num passado recente, até a Presidência da República, ter o Estado regulamentando e vendendo as drogas? Conclusiva e definitivamente não! A questão senhores líderes da sociedade aqui presentes, é que agora, hoje, o povo sabe disso. Agora o povo sabe que é mais interessante a ilegalidade, a se submeter à tributação; a ter responsabilidades profissionais, legais, preventivas e de recuperação. O povo já sabe que para os barões, ou, tubarões da droga, é inadmissível repartir o bolo. Seja lá de que fração deste bolo que estejamos falando. O povo já sabe que em todos os setores da sociedade, um conluio semelhante é formado e renovado a todo o momento buscando a manutenção da concentração de riquezas e, principalmente, de oportunidades. Este é o principal dos motivos que destaco como causa de violência dentro das Organizadas: A certeza que, quem tem dinheiro, não tem responsabilidade. A Torcida Organizada é uma resposta da juventude, à violência que é ter de diminuir um item a cada mês da lista de compras”. Meu Deus! A esta altura todos tinham percebido que se tratava de um esculacho em todas as autoridades que ali estavam. É claro que dividiríamos tudo. É claro que sofreríamos algum tipo de represália também. Mas ele continuava obstinado. Ele e a sua inexorabilidade maldita, iriam nos levar a puta que nos pariu. Não adiantava fazer “sinal de negativo” com o dedo, ou colocar as mãos na cabeça, cara de desespero não... Ele via o nosso desespero e falava olhando para nós. “Para piorarmos, sempre para piorarmos, temos um Juiz da Vara de Infância e Adolescência, recentemente promovido ao cargo de desembargador, que é inacreditavelmente incompetente ou vive num mundo de altistas. Ao decretar o fim dos bailes FUNK, o Senhor Miro Furlan não fundamentou a sua brilhante atitude em nenhum estudo sobre onde a sociedade sofreria o impacto desta determinação. Com uma atitude próxima a de um comediante, o Sr. Miro Furlan acreditou que este problema, dependia da sua mágica assinatura para ser resolvido de

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maneira peremptória. Patética ou tendenciosamente acreditou que, no momento em que sua assinatura decretasse a proibição da realização dos bailes nas casas e ginásios que promoviam tais eventos, seus frequentadores também desapareceriam. Isso Senhores! Todos desapareceriam e a sociedade estaria livre dos marginais funkeiros. Como qualquer um que não estudou uma fração do que ele estudou para ser o que ele é sabia, a realidade recusou o onírico proposto pelo Sr. Miro Furlan e se encarregou de migrar todos os grupos de todas as favelas para as Torcidas Organizadas. O que foi espremido tinha que sair em algum lugar; jamais simplesmente desaparecer. E este é um líder senhoras e senhores. Um líder, cujas decisões reverberam em suas vidas. Em nossas vidas. Incapaz de resolver um problema, visto que os bailes FUNK continuam sendo realizados e agravou incomensuravelmente outro, que foi o nosso mundo nas Organizadas”. Eu estava plenamente consciente que aquilo tudo havia sido premeditado. Pouco ou nada podia ser feito. Ele girava a “metralhadora” meticulosamente, sem deixar nenhum dos participantes sem o seu tiro de misericórdia personificado. “E outro excelente exemplo do que digo: O Sr. Roberto Canário, que trabalha como locutor em uma rádio, que tem em sua programação o líder de audiência no horário da tarde nessa instituição tradicional de todos os brasileiros, principalmente dos amantes do Futebol, que é o Rádio AM. É público. É notório. O referido programa dedica oitenta e cinco por cento do seu tempo a ridicularização de casos particulares, dramas muito pessoais como estupros, outros abusos, acidentes, assassinatos e a constatação do fracasso da maneira mais brutal possível, que é o que uma mãe sente ao ver o seu filho morto numa sarjeta qualquer. Onde estariam guardados os valores dentro desses monstros que há mais de trinta anos ganham a vida ironizando o sofrimento do povo? Que sabem, eles sabem, mas não levam em consideração o fato de que por trás da história de um bandido, existe um parente aflito buscando acertar desesperadamente, pois deste acerto, depende a vida de alguém que infelizmente, apesar de tanto amor, escorregou pelos becos do crime e não conseguiu mais voltar... O sagrado valor ao direito, respeito e consideração à vítima de uma tragédia estaria convenientemente em estado de pausa? Onde estaria? Estaria guardado no bolso? Não! No bolso não há espaço para valores, já que este se encontra cheio de dinheiro. Dinheiro. Por este motivo, os valores saem convenientemente de cena; para logo depois voltarem no

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formato de discursos apaixonados pela humanidade, exatamente no momento em que estes discursos voltarem a render dividendos novamente em outros programas da mesma rádio em horários que, de acordo com os seus estudos estratégicos de marketing, apontarem uma audiência com um perfil mais ortodoxo. Até rezar eles rezam... Até quando esta ambiguidade será tolerada? Principalmente em se tratando da tão discutida qualidade de liderança. O Sr. Roberto Canário é um dos maiores negadores da realidade que é a revolução ética que está em curso na nossa sociedade. Ele e seus debatedores, em sua maioria políticos renomados e intelectuais cansados de pensar futilidades como se quem veio primeiro foi o ovo ou a galinha, estão sempre pregando a nostalgia de tempos que não mais voltarão, ao invés de buscar aperfeiçoar o novo mundo que ainda não nos foi apresentado lá embaixo e só ouvimos falar”. Neste momento o riso foi generalizado no auditório. Todos não conseguiram esconder o constrangimento por terem no riso, dado razão aos argumentos do Tchélo. Isso poderia produzir algumas adesões, mas não nos salvaria dos castigos que a “Santa Aliança” do futebol nos submeteria. “Vejam que absurdo, senhoras e senhores, com todo o radicalismo expressado e exercido por eles, no alto de suas várias faculdades concluídas, são incapazes de reconhecer e coibir o patrocínio e o culto à violência, feito às suas vistas. Em sua própria casa. Suspeito, não acham?”. O Capitão Alan teve uma atitude, uma reação perante aquilo tudo, que muito me inquietou. Ao invés de explodir num pedido de ordem, ele cobria o rosto com uma das mãos e lentamente virava o pescoço da direita para a esquerda na altura dos olhos como uma massagem. Eu queria apenas não estar ali. Eu pensava em muitas coisas. Entre elas pensava que não seríamos capazes de punir o Tchélo. Isto é, se é que houvesse algo que ali fora dito, que fosse digno de punição. Segurei-me na cadeira e continuei olhando para frente, só para frente... Depois de um comportamento passivo durante todo o congresso, o Pastor Glauber Félix achou ter encontrado num dado momento, a oportunidade para divulgar suas convicções religiosas, e propagar o seu comportamento e o de sua Igreja como uma panaceia. A metralhadora verbal do Tchélo disparava contra todos. Fossem eles seus

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opositores diretos na mesa tentando interromper as suas opiniões falando qualquer merda ao mesmo tempo; fossem aqueles que mesmo calados, representassem alguma instituição maligna disfarçada de filantropia. Todos tinham que saber que, mesmo sem eles levarem em consideração o reflexo das suas omissões e o desvio de dinheiro praticado, nós aqui em baixo, sabíamos o que eles não estavam fazendo. O que o Tchélo estava tentando dizer é que não adiantaria mais trocar a legenda do filme e colocar uma piada, quando as imagens que vemos são de puro drama e tragédia no cotidiano. Não adiantará. Esta era a mensagem do Tchélo. “Este comportamento que você esta adotando é próprio do Diabo. O que você demonstra, com este desrespeito infundado contra estes ilustres ocupantes desta mesa, é prova definitiva que você é um dos muitos asseclas fiéis do inimigo”. Sem pensar muito no ridículo de tais afirmações, o Pastor Glauber fechou o rosto como quem coloca um ponto final em algo. Confiante. Certo de ter terminado aquele embate, que para ele não passava de balela. Neste instante, o Tchélo ficou mais sério e dirigiu seus pensamentos ao Pastor com o seu dedo indicador em riste apontando para ele. Nada poderia ser mais ameaçador, dizendo: “Mas Pastor Glauber... O que dizer das Igrejas regidas pelo Cristianismo? O que dizer de todas elas? Quem desvia as verbas da saúde é de carne e osso e tem nome. Aliás, nomes estes que todos aqui conhecem muito bem. Não há nenhum Diabo da Silva na lista dos investigados pela CPI do desvio de verbas nos Hospitais Municipais. Nem é o Diabo de Almeida que corrompe menores e as leva para motéis de beira de estrada, ou para trás de sacristias, onde defloram suas inocências aproveitando suas carências de recursos, ou proporcionando mais uma experiência traumática àquelas que há muito são constantemente violadas. O diabo é a tua Igreja e a Igreja Católica, que de tempos em tempos, nos dá uma demonstração de suas habilidades no tocante ao “controle da natalidade” e nos brinda com verdadeiros genocídios mesclando vários tipos de interesses. Sejam estes genocídios diretos como a Santa Inquisição, sejam eles indiretos como a simples proibição do uso de camisinhas neste momento da história do planeta, em que vivemos a epidemia da AIDS de caráter letal. O diabo é a tua Igreja colocando no bolso o dízimo obrigatório daqueles que nada ganham. Nós sabemos quem são os culpados. Não é suficiente que o senhor, que pelo que me concerne não possui uma obra de teologia, um

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tratado mínimo que seja no vosso curriculum, ache que pode nos convencer das verdades que o seu devaneio cria, ou que as suas conveniências divulgam, como se estivesse falando para a sua plateia de aleijados existenciais, que não sabem andar sozinhos sem as muletas para almas que a sua Igreja vende. O microfone é livre, mas as mentes não são esponjas de absorver qualquer coisa. Portanto, seja menos patético e procure adotar um comportamento mais adequado às presenças e ao que está se discutido aqui. Todos estão se esforçando para alcançar uma solução factual”. O tema gerou uma série de considerações por parte do Tchélo sobre a igreja (ou as igrejas), que até então, não tiveram espaço para penetrar na sua apresentação. “Sejamos francos e objetivos. Coloquem o IBGE ao nosso dispor e tracem um perfil da miséria. Vocês poderão constatar que a maioria quase absoluta dos miseráveis, vem de família onde a mãe solteira, cria cinco, seis, sete e às vezes até mais filhos. Já que o controle da natalidade é expressamente proibido pela Igreja, e como a Igreja, além de formadora de opinião é uma das engrenagens de controle do Estado, eu vos faço uma proposta: Proponho que a Igreja seja responsável pela educação, saúde, alimentação e transporte de toda criança órfã e de todas aquelas que viverem sobre a responsabilidade de uma mãe solteira ou de uma família sem recursos. A sociedade mundial não pode, não deve se omitir, pela sua própria sobrevivência, às determinações irresponsáveis e radicais das Igrejas em mais esta era de sandices estipulada por estas instituições. Num futuro, esta certamente será conhecida como a ‘Idade do Absurdo’”. Outro que até então não havia se manifestado, até por estar parecendo apenas cumprir um protocolo naquele lugar, era o Padre Azevedo. Um gringo bobo e cheio de manias que transformou a iconoclastia em profissão e, também, numa maneira de se destacar. Aquele sotaque asqueroso impregnando os ouvidos dos participantes gerava certos comentários tipo: “Volte para o teu chiqueiro porco branco”. Tudo dentro de certo anonimato claro. Ele fazia questão de rebater a última rodada de acusações do Tchélo com um mínimo de envolvimento possível. Como todo padre ele também era um tipo de “rato” e havia percebido que aquele ambiente estava preste a se tornar hostil à sua presença. Aliás, a presença de qualquer um que desafiasse aquelas verdades ditas com tamanha seriedade e simplicidade. O que todos sempre quiseram dizer na verdade. Disse o Padre Azevedo: “As Pastorais da criança são a prova de que você fala a mais absoluta das besteiras”. E a platéia respondeu com um uníssono tipo

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“aaaahhhhhhhh”. O Capitão Allan pela primeira vez solicitou respeito ao ambiente. Tchélo aguardou o silêncio se restabelecer de forma paciente, como havia conduzido até então a sua apresentação. Quando percebeu que tudo estava calmo rebateu: “O sofisma não poderá salvá-lo da lógica dos fatos Padre. Se as Pastorais são tão eficientes, porque nós que vivemos a vida na prática, nas ruas andando, trabalhando e não dentro de mausoléus cheios de múmias animadas e curvadas pelo peso do ouro que carregam em seus pescoços, temos a nítida impressão que tudo piora a cada minuto? Por que as crianças se multiplicam nas ruas? Seria uma ilusão gerada pela nossa sublime ignorância? Uma miragem fruto da nossa paranóia? Então por que o padre não nos ensina a enxergar com a ótica exata, a complexidade destes cálculos que salvarão a sociedade sem quaisquer tipos de resultados”? A partir daí o Tchélo foi ovacionado. Os gritos eram tamanhos, que o padre olhou para os debatedores visivelmente desconcertado com a simplicidade das perguntas e das respostas que dever-se-iam surgir, que suavemente foi descendo até o assento do seu banco com um sorriso fracassadamente sarcástico no rosto. O seu natural. A partir daí os desaparecidos do debate, começaram a tentar remendar o horror das apresentações de seus iguais. Foi a vez do deputado representante do governo do estado tentar se pronunciar pegando uma carona no apoio dado pela platéia de militares, jornalistas, estagiários e outros ao Tchélo. “Eu acredito que devemos lutar integralmente pela extinção destas deficiências apontadas pelo Senhor. Pelo Senhor... Como é mesmo o nome do Senhor Cavalheiro?” Perguntou o deputado ao Tchélo que não lhe deu a oportunidade de saber tal informação, que na verdade nada mais era, que outro joguinho de sofisma premeditado para diminuir o ritmo daquele massacre genuinamente popular em seus questionamentos. ”Deputado, deputado, por favor, deputado. A última coisa que eu gostaria na vida seria interrompê-lo. Mas, por favor... A sociedade vive em estado de náuseas crônico devido aos seus oportunismos. Sempre vestindo o discurso das desculpas como se fosse uma armadura. Os senhores são eleitos por serem aqueles, que entre tantos, julgamos serem capazes de driblar estas adversidades que acabamos de mencionar, as tais “dificuldades intransponíveis”. Ora, se a regra é se eleger para criar estas desculpas e apresentá-las no lugar de resultados, acho que posso ser mais competente que isso. Candidatarme-ei às próximas eleições”.

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Acho que a partir daí, o Tchélo percebeu que as coisas não poderiam render muitos momentos mais. Aqueles déspotas não suportariam mais a humilhação de um “Zé Ninguém” descortinando as suas mais profundas armações de uma maneira tão simplória. O auditório todo já participava com gritos de incentivos, e também não permitindo que os acuados debatedores, os quais na verdade deveriam ser as estrelas do debate, se defendessem. Acho que a partir daí, ele caprichou num tipo de opinião que finalizasse a sua participação, criando analogias entre os presentes e suas atitudes tendenciosas. Algo exatamente assim: “O conjunto de líderes que estão nesta mesa debatendo este tema, faz parte de um grupo que se fosse um produto, seria um daqueles que já chegam ao mercado com o prazo de validade vencido. A Igreja que já queimou gente por praticar homeopatia - e o dedo indicador voltara a apontar para o Padre Azevedo sentado com um olhar de ódio. Bem diferente do sarcasmo habitual e sob um tsunami de vaias - na idade média, proibindo o planejamento familiar, a partir da proibição explícita dos métodos contraceptivos usando o sagrado nome de Deus; proibição esta, que também é responsável pelo aumento descontrolado das chamadas DSTs a partir da negação da natureza humana. Resumindo a ópera: A Igreja continua matando gente inocente. Mas também continua mantendo os seus segredos como o gerenciamento de leilões de crianças para práticas pedófilas entre os seus membros. E o que dizer do Sr. Rubem César Hernandes? O senhor que é formado pela UERJ em sociologia, MBA e PHD em Harvard... O senhor veio aqui apenas para mostrar que estudou tanto e que tomou a vaga de alguém na universidade pública e que sempre estudou em colégios públicos como eu, apenas para nos dar umas desculpas? Ou que a solução para toda a violência é outro abraço no prédio da Secretaria de Segurança? Afinal, com qual conclusão um homem experimentado como o senhor vai nos brindar? A minha conclusão é que se o mundo está à beira do abismo como todos aqui fizeram questão de deixar bem claro, a culpa é unicamente dos senhores. Nós do povo é que não participamos de nenhuma etapa deste processo, a não ser quando escolhemos algum de vocês para nos representar. A palavra “governo”, nada mais é que a semântica de “nobreza”. Nossas medulas são sugadas para o sustento de pessoas tendenciosas e despreparadas como vocês”. Todos estavam estupefatos como alguém que é pego em flagrante. A euforia havia dado lugar a um tipo de reflexão. “E digo

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mais: Enquanto o Estado continuar usando as fôrmas, tais quais a de um bolo para resolver as situações inusitadas criadas por esta era de revoluções tecnológicas, éticas e comportamentais, o mundo será paulatinamente destituído de todos os seus avanços de civilidade. O “nós somos contra”, ou “o Estado não pode admitir” como solução, como resposta definitiva para tudo ou simplesmente como justificativa para toda esta omissão, nos levará à barbárie quando o povo constatar a inutilidade do Estado e a sua figura representativa. Numa previsão mais otimista, poderemos alcançar a anarquia quando todos constatarem que os impostos arrecadados pelo governo impetuosamente, nada mais são que uma taxa de manutenção dos privilégios da nobreza, ou de uma nobreza. A democracia é sinônimo de monarquia em seus resultados finais. É hora dos senhores, líderes, tocarem a merda com as mãos e transformá-la em adubo. E não se esqueçam de dar um último recado ao seu time quando voltarem para o seu covil: De nada adianta a notícia da balança comercial em alta, se isso não se traduzir em uma ferramenta útil para o aumento da qualidade de vida. Muito obrigado”. Imediatamente após a sua participação, Tchélo recebeu voz de prisão anunciada pelo microfone pelo Capitão Alan. Eu me lembro de ter dado um violento tapa em meu próprio rosto e ter dito em voz bem alta: ”Que merda!”. Nada mais restou ao Capitão Alan Lopes senão encerrar o debate. Assim, como se nada tivesse sido dito, como se nada tivesse acontecido: – Encerra-se aqui o primeiro ciclo de debates sobre a violência no esporte promovido pela parceria entre o Jornal Nosso Momento e a Secretaria de Segurança e Desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro. Agradecemos a todos os presentes e blá, blá, blá, blá, blá... Não pudemos falar com o Tchélo que saiu algemado. Na Delegacia, sentado numa cadeira dura e, olhando para o nada, nós o encontramos. Nada falamos da mesma forma como ele se manteve em silêncio também. Antes que fizéssemos uma tentativa de nos comunicar, fomos surpreendidos pela chegada do sociólogo Rubem César Hernandes, do radialista, do Presidente da Associação de Moradores, dos Presidentes das Associações das Empresas de ônibus e trens, além

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de repórteres e quase todos os estudantes e técnicos que estiveram presentes ao evento. Eles foram até lá prestar solidariedade e dar uma pressionada na polícia para tratarem o Tchélo bem. Só foram embora às vinte três horas e quinze minutos, quando a saída dele foi anunciada. Eu só queria manter a minha programação que era fumar o máximo de maconha possível e beber algo. Porra... Chegamos à sede por volta da meia-noite e meia. Enquanto o Bínchi abria a porta o telefone tocou. Ninguém queria atender, porque àquela hora tínhamos uma sequência de trotes telefônicos, os quais nos forçavam a tirar o telefone do gancho quase sempre. Mas por impulso entrei e peguei o telefone: – Alô. Quem é porra? – Eu quero falar com o Tchélo. – Eu tampo o microfone do aparelho e o aponto para o Tchélo que entende e vem atender. Ele liga o viva-voz e diz: – Fala... – Parabéns pela atitude. - Era uma voz de homem. – Você falou tudo que eu sempre desejei falar. A gente percebe, vive os “pobremas”, mas na presença deles do poder a gente fica intimidado. Mas apesar deste respeito, no próximo encontro “eu posso te tirar pra dançar”. Fica na moral e na atividade que tu é meu alemão. – Valeu. Teu recado tá dado - Respondeu o Tchélo. – Saúde pra tu. – Pra você também. Assim encerrou-se a misteriosa ligação. Depois disso nenhuma palavra foi dita. Cada um foi desenvolver os seus planos. Tudo em absoluto silêncio. Nada mais foi dito.

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CapĂ­tulo 10

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A diferenรงa entre o sucesso e o fracasso

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“Basta um uniforme e um distintivo de prata E estamos brincando de polícia pra valer, estamos brincando de polícia por dinheiro”. Dead Kennedys – Police truck

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Parte I

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Nosso louco amor...

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Dando sequência à tarefa de organizar os grupos das Torcidas e tentar coibir a violência e o seu aumento, reuniões foram programadas individualmente com cada diretoria de cada Torcida. Ao longo dos dias que se passaram desde o Congresso, uma suspeita foi se transformando em certeza: Seria impossível planejar e executar em tão pouco tempo toda a logística necessária para o sucesso de tamanha operação. Era lógico que cada grupo, de cada bairro, de cada Organizada, de cada clube precisaria de uma abordagem individualizada e específica. Não bastava jogar o projeto. Era necessário que houvesse um amadurecimento da ideia a partir de treinamentos constantes. A ideia da tolerância era algo fundamental para algo tão pretensioso. No estado em que as coisas estavam era quase uma utopia difundir e esperar uma absorção tão rápida destes conceitos, mas num mundo tão rápido, era normal trabalhar visando que as respostas fossem igualmente rápidas. Mesmo que essa rapidez gerasse uma falta absoluta de qualidade no desenvolvimento e no resultado dos projetos. O responsável da Polícia Militar por todo o plano era o Tenente Coronel Eduardo Rossi. Um homem austero. Era um cara movido a números e resultados. Chamava a todos de senhor e seus objetivos eram claros: Sucesso e reconhecimento. Achei natural, afinal todos trabalham para isso. Ele em especial devia ter superado todas as suas expectativas e virado noites organizando tudo aquilo que nos mostrou. Até o dia daquela reunião eu devo confessar que não sabia lá muito bem qual era a utilidade de pesquisas, estatísticas e afins. Quando sentamos à mesa soubemos detalhes de nosso próprio comportamento que nós mesmos desconhecíamos. O Tenente Eduardo Rossi estava na cabeceira da mesa. À sua esquerda Seu Leví, eu e Bínchi, à direita, Dodô e o Márcio Carcará. Preferimos deixar o Tchélo na geladeira e nem chegamos a comentar que teríamos esta reunião, porque certamente ele brigaria para estar no nosso bonde. Simulamos um sorteio para ver quem iria ao clube coordenar a limpeza de faixas e bandeiras, e claro, ele foi o sorteado para cumprir esta tarefa. Minuciosamente as cópias dos mapas com descrições absolutamente perfeitas das esquinas, ruas que conhecíamos muito intimamente, pontos clássicos de conflitos, nos eram apresentadas. “Esta primeira página diz respeito aos locais de concentração da Torcida Kamikazes espalhados por todo o Estado do Rio de Janeiro. Os círculos

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maiores indicam os principais pontos de conflito para a Torcida dos senhores. Nestes pontos principais teremos reforços no patrulhamento, porque são pontos comuns para as grandes torcidas em dias de clássicos. Um destacamento com aproximadamente três viaturas acompanhará cada grupo, num total de seis policiais. Em cada um dos três pontos indicados mais uma viatura irá se somar a cada grupo, fazendo com que cheguemos ao Maracanã com o número de seis viaturas em cada grupo compacto. Teremos cerca de cinco minutos para desembarcar os torcedores. A partir do desembarque, a responsabilidade pela tramitação desses torcedores, assim como a venda de ingressos passará a ser dos senhores exclusivamente. Recomendamos de antemão que ao desembarcar, os torcedores já estejam de posse dos seus ingressos. Após o jogo os grupos deverão ser reunidos na saída dos túneis correspondentes e levados ao começo da rampa do metrô. Chegando lá, encontrarão os ônibus previamente estacionados. O embarque deverá ser feito em dez minutos no máximo. Os torcedores serão levados até o local de dispersão, onde poderão partir para as suas casas”. Assim era o plano do Tenente Eduardo. – Mas e na esquina da Ana Meirelles? - Perguntei. – Como na saída dos grupos, um destacamento da polícia estará de prontidão para evitar que os torcedores que estejam trafegando a pé sejam surpreendidos por grandes grupos rivais após terem sido dispersados. – E o patrimônio? - Levantou outra questão importante o Sr. Leví, já que o material era o que as Organizadas tinham de mais valioso e mais visado. – Uma viatura com quatro policiais acompanhará o patrimônio do local indicado pelos senhores até o Maracanã. Depois, do Maracanã de volta ao local de partida. – Aí tá ótimo! - Entusiasmou-se o Sr. Leví com um sorriso largo de tranquilidade. Nestas reuniões que exigiam uma proximidade maior com a cúpula da polícia, nós gostávamos de contar com a presença do Sr. Leví. Ele não era um mero títere que servia apenas para dar um rosto mais responsável para a Torcida Organizada e camuflar as nossas intenções maléficas. Quero dizer, também um pouco disso rolava, mas o Sr. Leví era inteirado do assunto, sabia conversar e dava ótimas sugestões.

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Apesar de estar um pouco defasado - ele pertencia ao meio há exatos trinta e cinco anos - ele tinha conhecimento de causa. Era impossível que aquilo que fosse dito por ele não fosse recebido como um documento assinado e autenticado em cartório. Mesmo que tudo desse errado, nada fosse cumprido e a Kamikazes desse outro espetáculo de selvageria pelas ruas do Rio. Como estávamos em época de campeonato brasileiro, não tínhamos claro, o mesmo volume de clássicos cariocas em sequência como no campeonato estadual. Isso deu algum tempo para a polícia e a nós para que aquela imensa articulação fosse miseravelmente jogada para os integrantes de todas as Torcidas Organizadas do Rio. Pelo menos todos teriam acesso à teoria do planejamento, que mediante a um termo de responsabilidade, nos faria responsáveis diretamente por qualquer quebra de compromisso firmado no trajeto definido. Até o velho Leví assinou o documento. De acordo com a tabela do campeonato, o primeiro clássico carioca a passar pelo teste era Deportivo x Olímpico, o qual seria realizado três semanas após aquela reunião. O prazo para levar o planejamento da polícia ao conhecimento de todos era suficiente. O que precisávamos era de tempo para ver a coisa toda funcionando na prática. Ter um ambiente mais ou menos propício para desenvolver o projeto era algo que dependia de vários fatores. O principal destes fatores era a posição dos clubes na tabela. Se os dois estivessem ocupando até o sexto lugar, isso era a certeza de muitos problemas. Se apenas um dos clubes ocupasse alguma das seis primeiras posições e o outro estivesse abaixo na tabela, a polícia teria a certeza de qual dos dois contingentes seria mais volumoso e, consequentemente saberia para qual dos dois grupos encaminharia um número maior de policiais. Se ambos estivessem mal no campeonato, as coisas se tornariam mais fáceis ainda, porque as torcidas ficariam reduzidas aos que vivem o cotidiano, os que são mais fanáticos e as Diretorias de cada Torcida que têm a obrigação de colocar a Torcida na arquibancada. O pessoal que aprecia o Maracanã movido pela empolgação representa a maior parte do volume. Basta que o time esteja bem posicionado na tabela para ver gente que você nunca viu, e provavelmente nunca mais verá. Gente que vai ao Maracanã exclusivamente para dar o “barró” (entenda-se roubar) no que (ou em quem) for possível na saída. Esta modalidade de torcedor se concretizou nas Torcidas, após o fechamento dos bailes FUNK como já foi dito. A migração foi absoluta modificando dramaticamente o perfil das

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Organizadas no Rio de Janeiro. Ontem fanfarrões bagunceiros e um pouco quizumbeiros. Hoje, hábeis ladrões especializados em assaltar com requintes de crueldade toda a sorte de transeuntes. Senhores e garotos transitando com camisas de clubes rivais (ou não) mesmo que sem nenhum vínculo com as Organizadas; o chamado “povão”. Famílias, pessoas nos pontos de ônibus, pessoas dentro dos ônibus, no metrô, trem, enfim. Todos passaram a ser considerados alvos por esses bondes. A posição na tabela só o futuro poderia revelar. O tamanho da multidão que teríamos em mãos era uma incógnita; incógnita esta diretamente ligada à colocação de cada clube, portanto. Bastava-nos desta vez, apenas ocuparmos a cômoda posição de obediência imposta pelo estado do Rio e pela polícia. E assim seria. No dia dezesseis, uma quarta-feira, o dia da reunião quinzenal do Conselho Deliberativo da Torcida Organizada Kamikazes, foi determinado que a concentração deveria ser feita num outro lugar conforme determinação do próprio Quartel General da Polícia Militar -, que não fosse a sede como de costume. A decisão da polícia tinha como base para a tomada de tal atitude o volume de conflitos ocorridos no bairro do Méier, por este concentrar duas grandes facções rivais (nós e a Independência do Marítimo) e muito tradicionais. As duas facções estavam estabelecidas no mesmo lugar e como parte da política de “minimização de danos” fomos “gentilmente” aconselhados a escolher um “outro buraco” para, de lá, sairmos. Este fato tornaria o controle proposto muito mais fácil visto que o itinerário de ambos os grupos era obrigatoriamente o mesmo, independente do ponto da cidade que saíssemos. Só existia uma via capaz de levar todos ao Maracanã sem uma alternativa sequer. Isso afunilaria os grupos de uma forma desastrosa caso o tempo de saída de cada uma das Torcidas não fosse meticulosamente planejado. Era razoável a decisão de deslocar um dos grupos para um lado oposto da cidade. A polícia teria tempo para determinar a saída de um grupo primeiro que o outro. Mesmo que os grupos rivais saíssem ao mesmo tempo, o encontro seria impossível devido à distância de um ponto de saída de um grupo para o outro. Escolhemos ir para São Gonçalo - do outro lado da “poça”. Foi a maneira de não nos condicionarmos à única via existente. Nós chegaríamos ao estádio pelo lado oposto. Pela Praça da Bandeira, Radial Oeste...

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Nossa concentração foi deslocada para São Gonçalo local este de forte tradição na Torcida Kamikazes. A Farândula de São Gonçalo era composta em sua maioria por parentes, amigos de longa data, compadres e outras tantas relações e conexões estreitas que a vida urbana cria. Vários laços além dos proporcionados pela Torcida uniam a todos. Na hora da escolha houve muitos risos, como se algum motivo de extrema satisfação - que me era totalmente desconhecido - estivesse secretamente sendo compartilhado. A não ser pelo velho Leví que fez questão de colocar aquela unanimidade toda quanto à escolha de São Gonçalo em xeque. “Essa porra vai ser foda! Um monte de silvícolas juntos, e mais: Num volume muito maior... Tô dizendo...” E assim uma pergunta meio indireta ficou no ar para ser respondida. O Conselho da Torcida Kamikazes na prática é vitalício. Entra ano e sai ano, aquelas seis pessoas intimamente ligadas ao universo da Kamikazes estão de frente no Conselho. Ou são ex-presidentes ou exdiretores que se “aposentaram” da militância cotidiana, mas exercem uma forte influência nos rumos tomados pelo bonde. Também mordem uma fatia generosa do bolo de dinheiro feito com a venda dos ingressos. De acordo com o estatuto, eles têm plenos poderes de veto às decisões da Diretoria vigente, o que fortalecia e muito a consciência do desenvolvimento de um lobby frequente entre todos. O Conselho era responsável por arquitetar todos os golpes de tomada de poder dentro da agremiação. Bastava a Diretoria não corresponder em algum aspecto para que eles intercedessem automaticamente. A Organização do Conselho era feita da seguinte forma: PRESIDENTE DO CONSELHO 1º CONSELHEIRO TESOUREIRO 2º CONSELHEIRO SOCIAL 3º CONSELHEIRO PATRIMONIAL 4º CONSELHEIRO FINANCEIRO 5º CONSELHEIRO DISCIPLINAR 6º CONSELHEIRO PARA ASSUNTOS INTRACLUBE O Conselho, de acordo com o estatuto vigente na época, era eleito a cada dois anos juntamente com a Diretoria, esta sem limites de

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reeleições. Outra página rasgada no estatuto. Nesta época em que eu era o Presidente da Torcida, o Conselho era composto por membros conhecidos da galera como Cláudio Lambreta, Ramon Tá Bom, Nilo, Dexter, Quito e Jó. Velhos ratões que conseguiram perpetrar as suas presenças no conselho. No cotidiano, mesmo munidos de todas as ferramentas, não auxiliavam a Torcida em nada, não atendiam telefonemas, não articulavam nenhum tipo de benefício junto ao clube... Nada! Nenhum suporte. Mesmo tendo ligações íntimas que iam desde os auxiliares de serviços gerais até o presidente dentro do clube. Mas bastava o rateio das credencias não chegar às suas contas bancárias para que uma reunião extraordinária fosse convocada imediatamente. Todos os membros do Conselho eram ex-presidentes, exceto o Jó, que havia desempenhado a função de Diretor de Caravanas por mais de dez anos. O Jó era um habilidosíssimo estelionatário que por várias vezes salvou a Kamikazes de ficar sem poder viajar com seus cheques sem fundo. Principalmente quando o clube ainda não adotava uma política de suporte financeiro à Torcida. Claro que por diversas ocasiões os ônibus eram substituídos por lotações tipo Kombi, cujo custo é menor, fazendo assim com que o montante financeiro excedente fosse parar nos cofres de presidentes e diretores da Torcida. Isto fazia com que à Torcida - massa - fossem negadas algumas viagens. A fórmula era simples: Nos clássicos nacionais mais expressivos, os ônibus eram colocados à disposição na quantidade que fosse necessária. Entretanto nos jogos de menor tradição ou com o time em queda na tabela - mesmo com a alta procura de associados -, o clube era responsabilizado pela escassez de vagas e ingressos. Mesmo sem ter a menor ideia do golpe, o clube era responsabilizado pelo racionamento de vagas. Como os integrantes comuns não tinham trânsito no clube e nenhum acesso à diretoria do mesmo, o risco do esquema das viagens ser descoberto era bem próximo do impossível. O auxílio viagem, um tipo de benefício oferecido pelo clube, que na verdade não só auxilia o aluguel dos ônibus como também cobre todos os custos das viagens, era o campo favorito do Jó. Com cheques sem fundos, ele proporcionou várias viagens a Kamikazes pelo país e depois ia naturalmente ao clube pegar o reembolso com dezenas de

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notas fiscais frias. Depois de uma temporada no Acre, onde tentou se estabelecer como pastor e montar uma igreja, ele voltou e se candidatou ao conselho. Por sua popularidade a sua eleição foi barbada. Assim ele permanecia convenientemente instalado no cargo de conselheiropatrimonial, o que lhe rendia sem o menor esforço, uns três salários mínimos e meio aproximadamente por mês, mesmo sendo terminantemente proibido pelo estatuto a remuneração de diretoria e conselheiros. Encontramo-nos no dia estabelecido para a reunião do Conselho. No começo da reunião, logo na apresentação dos argumentos iniciais, ninguém parecia estar levando nada a sério. Só quando o Seu Leví abriu a boca é que todos se calaram. “É... Todos estão se divertindo... Rindo... Tá certo... Espero que todos saibam exatamente o que espera vocês se algo não for cumprido como o determinado pela PM. O nome completo de todo o Conselho já está no GEPE. Eles obrigaram os meninos da Diretoria a passar um fax com a cópia da identidade de um por um de vocês. Espero que tudo isso já seja de conhecimento de vocês.”... Depois que este questionamento do Seu Leví ficou instalado no ar, um desconforto físico foi gerado, que somado à pressão da situação exercida pela presença da Polícia Militar no projeto, acabou forçando o Conselho a fazer algo que há muito não fazia: Tomar uma atitude. Depois de uma singela sugestão e nenhuma outra ideia eles votaram. Votaram naquele formato “quem for a favor levante a mão”. Ficou decidido então que no domingo seguinte - o que nos daria mais duas semanas após esta reunião para o acabamento “caprichado” do projeto - um encontro seria realizada em São Gonçalo com todos os monitores de todas as Farândulas. Esta seria uma maneira de nos cercarmos de todos os cuidados e conhecimentos, apontarmos possíveis falhas, etc. O Sr. Leví como Presidente do Conselho tinha presença obrigatória. Além do mais, ele gostava de passar o domingo longe da sua família. Junto à rapaziada da Torcida, o Seu Leví não era tratado como velho. Era mais um elemento do grupo que, além de tudo gozava dos privilégios da hierarquia. Às vezes, o Seu Leví parecia com os vampiros do teatro descritos pela Anne Rice no livro “Entrevista com o vampiro”. Ele era por demais obsoleto em seus valores. Não conseguia acompanhar o processo que promovia as ruínas do nosso tempo. Estava

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sempre reclamando e querendo saber por que nos tornávamos cada vez mais brutais. Mas no fundo ele sabia... As reuniões entre a Kamikazes - Rio e a Kamikazes - Niterói, eram muito frequentes quando eu era menor. Era um verdadeiro acontecimento. O meu irmão se preparava de tal modo que aquilo me sugeria um grande acontecimento realmente. Por ser muito pequeno a minha presença sempre era vetada, apesar de implorar usando os olhos para me expressar. Fui crescendo, crescendo até que resolvi tentar convencê-lo a me deixar acompanhá-lo numa reunião. E ele dizia: – Não vai de jeito nenhum. Se você não sabe, hoje tem um campeonato de futebol mirim lá no Clube e eu te inscrevi. Você vai pra não deixar os outros moleques na mão. De mais a mais aquilo não é ambiente para crianças. Eu tentava retrucar, mas ele não queria saber que eu tinha crescido. Não entrava na cabeça dele que eu não era mais uma criança. Mas como numa família suburbana quem manda é o mais velho... – Mas eu não sou mais criança pô! Eu já tenho doze anos. Deixa eu ir aí Téo? Pô, qual é maninho? – Não moleque! Sem chance! Nãããããããoooo! - Era inútil tentar qualquer argumento. O tempo foi passando. O meu irmão morreu e depois desse acontecimento eu passei uns bons anos sem frequentar os jogos, o Clube, a Sede, enfim... Afastei-me de todas as coisas que faziam da vida um culto à curiosidade, ao prazer de tentar descobrir. A volúpia ficou tão fraquinha... Até parecia ter se escondido dentro de mim. Estava tão bem escondida que desisti de procurá-la. Obviamente que a curiosidade pela reunião entre a Kamikazes-Rio e a Kamikazes-Niterói também se extinguiu, desapareceu. Quando voltei a frequentar a Torcida, esta celebração entre os dois grupos já não existia com a mesma regularidade e badalação. Vários motivos contribuíram para a dissolução dos grupos e da tal famosa reunião. As diversas formas de ataques criadas pela “alemãozada” durante o trajeto, o afastamento de muita gente criativa e engraçada que resolveu voltar à sociedade se casando, estudando, entre outras tantas opções, foram fatores determinantes para a desarticulação das reuniões periódicas que havia entre eles. O que se tornou prática comum era o

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deslocamento de pequenos grupos de no máximo dez integrantes vestidos civilmente para não despertar maiores suspeitas. Sempre. Assim os laços que eram genuinamente fraternos, foram se transformando em “nós” mais simples, até que esta fase de reuniões históricas se tornou mais uma lembrança no conjunto de tantas outras lembranças da Torcida Kamikazes. Outras parcerias se fortaleceram de acordo com as relações que os novos integrantes trouxeram para dentro da Torcida no processo de reciclagem inerente a uma agremiação desta natureza. Assim, as inflamadas e até míticas reuniões entre a Kamikazes-Rio e a Kamikazes-Niterói foram esquecidas. Até aquele momento, nós continuávamos frequentando as reuniões, mas de uma forma completamente sazonal e burocrática. Afinal, no papel de presidente e diretoria, tínhamos que cumprir a nossa obrigação, aparecer e pagar umas cervejas, fingir ouvir algumas reclamações e fingir, também, aceitar algumas reivindicações e por aí íamos. Os lendários Kamikazes-Niterói passaram a atravessar a ponte somente em ocasiões muito específicas como os dias de jogos, eleições da Torcida e festas de fim de ano. Assim as relações foram se desfazendo e assim eu fui me esquecendo de me interessar pelos detalhes desses encontros. A viagem para Torresmos de Minas serviu para trazer todos de volta. A maioria estava vivendo suas vidas, mas morrendo de nostalgia. Bastou alguém aparecer com um bom argumento em nome do “ideal Kamikazes”, para que todos fossem movidos ao campo de batalhas, na mais cruel das batalhas: A Guerra Civil dentro de uma Torcida Organizada. No domingo de manhã - sete e meia exatamente - os componentes das Farândulas Rio da Torcida Kamikazes foram chegando à portaria da sede no Méier. Alguns aos grupos, outros sozinhos, outros em duplas e mais um numeroso grupo de pessoas vindas dos mais diversos lugares de entretenimento que havia para se curtir pela noite. Viradas, cansadas, muito bêbadas e muito drogadas. Quando o primeiro de todos os grupos supracitado por lá chegou, já encontrou com o Seu Leví de pé na porta da sede. A partir daí, numa rua paralela à rua marcada para ser o ponto de partida, na parte de cima cheia de casarões, vários integrantes se concentravam para “dar um levante”, outros preferiam manter a onda do álcool, outros tantos fumavam vários baseados e ainda havia quem usasse tudo ao mesmo tempo. O congraçamento era total. Que festa! O horário de saída estabelecido no quadro de avisos era às nove horas em ponto. Exatamente neste horário,

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o Seu Leví começou a conduzir o grupo formado por aproximadamente cento e cinquenta componentes, objetivando chegar à Praça XV aonde pegaríamos uma barca rumo a Niterói. “Vai ser foda” comentou reservadamente comigo Seu Leví, coçando a testa calva e olhando para o chão com o olhar perdido, preocupado. Antes de nos dirigirmos ao ponto, o seu Leví dava sinais precoces de cansaço. Ele sabia o quanto aquele dia seria grande, bem grande. Do ponto de encontro ao ponto de ônibus, toda a sorte de vandalismo foi praticada como um direito. Ao atravessar a Rua da Sede rumo ao ponto do ônibus que nos levaria à Praça das Barcas - uma via de mão dupla -, eles pararam o trânsito dançando, rindo, fazendo sinais obscenos e símbolos de apologia ao crime. Batendo palmas e cantando canções de guerra. As cestas de coletas de lixo públicas, não escaparam da sessão de depredações. Alguns não se furtavam à oportunidade de mijar no meio da rua e na frente de senhoras que passavam indo e voltando da padaria, mães com seus filhos e outros adolescentes que passavam pela rua. Vários morteiros eram soltos, muros pichados com as iniciais T.O.K. (Torcida Organizada Kamikazes). Aqueles que tiveram a má sorte de cruzarem o nosso curto caminho até o ponto de ônibus com suas camisas de clubes rivais, mesmo não ostentando camisas de qualquer facção “alemã”, eram agredidos “suavemente” com safanões, chutes na bunda e pescotapas. O Seu Leví protestava enquanto nós nos divertíamos vendo aquele show de barbárie. Ele não conseguia fazer que suas palavras surtissem efeito. Quando saímos rumo ao ponto, ele ensaiou algumas palavras de ordem, mas apesar da contundência do que o velho Leví dizia ninguém estava interessado em se comportar de acordo com a expectativa dele. “Olha aqui, eu exijo o mínimo de comportamento e decência. Vocês pensam que eu sou babaca? Babaca é a ponta do meu caralho. Toda a vez que se atravessa a poça de mijo é a mesma selvageria. Eu espero que vocês hoje tenham o mínimo de postura, porque esta não deixa de ser uma missão para o governo. Já que estamos indo até lá para planejar o sucesso desta missão proposta pela Secretaria de Segurança espero o empenho de todos. Seus restos, suas maçãs podres. Agora vamos que está na hora”. Assim, Seu Leví liberou a todos para começarmos a nossa trajetória. Em momento algum eu pensei em perguntar em como seria do outro lado. Claro que eu esperava pelos piores obstáculos, ou melhor, dizendo, as dificuldades rotineiras pelas

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quais um grupo de Torcida Organizada que desperta a atenção de outros espíritos ruins camuflados pelas ruas, acaba tendo de enfrentar. No ponto de ônibus praticamos velhas patifarias e armações. A viatura da polícia passou lentamente observando a todos. Os baseados são deslocados estrategicamente da linha de frente - rente ao meio-fio para a última fileira, mas não são apagados. Eles nos olharam e nós olhamos para eles. O velho Leví era o primeiro da multidão. Ele estava próximo ao meio fio, enquanto todos nós ficávamos dois passos atrás dele. A maioria se concentrava dispersa ou escondida atrás da banca de jornal. Esta era a única tática que nos permitia ingressar num ônibus, porque ao ver uma multidão como a nossa, qualquer motorista fingia não nos ver e passava voado pelo ponto. O velho Leví e mais alguns insuspeitos que já estavam no ponto fariam sinal, o motorista pararia e nós então adentraríamos o coletivo quando este não pudesse mais acelerar. Quase nunca dava polícia e depois que exercíamos o controle do coletivo - algo bem próximo de um sequestro -, os passageiros não conseguiam sequer esboçar uma mínima reação de contrariedade, ou fazer algum tipo de pedido de ajuda. O nosso ônibus parou e a Farândula - na assepsia da palavra - praticou a abordagem invadindo o coletivo pelas janelas e pulando a roleta. O primeiro grupo domina o quanto antes o motorista para que este não tente uma gracinha querendo acelerar o ônibus e machuque alguém no ato da invasão, numa tentavia de fuga desesperada. Dentro do ônibus o horror é absoluto. O consumo de álcool e drogas era frenético. Vários assaltos eram cometidos enquanto todos cantavam gritos de guerra. O código de ética - por assim dizer - obrigava o ladrão a saltar no primeiro ponto após o roubo. Assim, quando a polícia nos abordasse, a vítima poderia nos acusar, e mesmo assim, nós permanecíamos negando tudo tranquilamente, já que os objetos roubados não estariam em nossa posse. Mais tarde nos encontrávamos todos no local de destino marcado previamente e o fruto dos roubos era repartido, ou compartilhado, já que muitas vezes já chegava às nossas mãos convertido em brizola, maconha ou bebida. Saltamos do coletivo sob os protestos dos passageiros que reclamavam seus pertences. Mais do que rapidamente surgiu um morteiro doze por um que foi acionado e direcionado especialmente aos passageiros, quebrando uma das janelas e explodindo lá dentro. Foi à senha para a saída do motorista na mais alta das velocidades possíveis

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para um ônibus de passageiros. E nós sob o efeito do coquetel de substâncias, ríamos até nos engasgarmos, enquanto o seu Leví praguejava contra nós. “Seus marginais! Eu denuncio. Eu juro que um dia.”... Enquanto isso o grupo começava a pensar em se manifestar com os primeiros gritos: “Leví Giesta o velho que não presta, Leví Giesta o velho que não presta”, e assim, o coro da multidão abafava os protestos do velho. Enquanto isso, alguns aproveitavam para exacerbar a sacanagem com o velho chutando e alisando de forma masculinamente ofensiva sua bunda. Ele inutilmente tentava impor alguma moral. “Tira a mão daí”, ele se virava para impor algum limite às brincadeiras desrespeitosas para um lado, mas aí o ataque surgia de outro lado. “Essa porra não é o cu da tua mãe não”, e todos gargalhavam enquanto esperávamos a chegada dos bilhetes para ingressarmos na barca. Os bilhetes foram distribuídos pelo Bínchi e fomos passando pelas catracas à medida que cada um recebia o seu. Dentro da barca nos dividimos em busca de oportunidades e de coisas e pessoas que pudéssemos pilhar. Para mim bastava a paisagem diferente. Nós que vivíamos constantemente cercados por todos os principais símbolos do urbanismo (a fumaça dos canos de descargas mais diversos, prédios e mais prédios, pressa, etc.), não podíamos perder a oportunidade de apreciar qualquer coisa que fosse diferente. Eu pensava no quanto o visual da Baía de Guanabara e a distância do Rio suscitavam sensações de contestação sobre a nossa qualidade de vida. Naquele momento todos pareciam ter algo mais interessante para fazer, e, talvez, por isso, tive a oportunidade de sentir um prazer, uma alegria indescritível enquanto via a cidade do Rio de Janeiro ficando pequena pela distância. Enquanto isso, na minha viagem particular, percebi uma interferência, um distúrbio diferenciado. Mais exaltação, mais gritos, socos nas chapas de aço provocando muitos estrondos. Desperto do meu paraíso particular e escuto mais uma das músicas de provocação, só que desta vez as vozes vinham de longe. Muito me inquietei e resolvi me dirigir para a outra extremidade da barca para investigar o que estava acontecendo e de onde vinha aquela manifestação. Quando cheguei à ponta oposta da barca - o que seria a sua frente -, pude identificar com exatidão que um grupo tão numeroso quanto o nosso se concentrava na

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estação das barcas de Niterói. Tive a certeza absoluta que se tratava da “alemãozada” quando entendi o que gritavam. Em uníssono eles cantavam e batiam palmas: “AIPIM OU MANDIOCA PAU NO CU DO CARIOCA” A esta altura estávamos há minutos, poucos, talvez quatro minutos de chegar à estação. Aí quando nos aproximamos o máximo possível, os Kamikazes responderam com uma inocente e singela canção que eu nunca ouvira antes: “COMO DIZIA JOSÉ LEWGOY FILHO DA PUTA É QUEM MORA EM NITERÓI” Desloquei-me para a saída descendo as escadas num ritmo acelerado, alucinado. Fui tomado por uma cólera extrema, quando vi o rosto do velho Leví contorcido pelo medo. Encostado numa viga da barca tão rente, que mais se parecia um quadro. Ele parecia buscar se defender de algo pavoroso naquela posição de extrema defesa. A raiva me motivou quase me cegando. Um gosto que era um misto de sangue com chá de boldo se instalou na minha boca. Dirigi-me ao primeiro grupo. Não consegui passar pela barreira humana e me conformei com a posição que conquistei. Ali, eu ia começar mais uma luta, mas este pensamento não me parecia ser compartilhado por todos. Muitos riam, gritavam e falavam “é agora” ou então “vamos lá porra”. Eu pensava que não havia sido uma boa ideia ter se drogado tanto. Estavam todos aparentemente fora de si. Todos pareciam aguardar algo extremamente divertido acontecer. A minha concentração se dissolveu naquela situação bizarra. Eu não estava entendendo nada. Os portões da barca foram abertos e o primeiro grupo correu para cima do “comitê de recepção”, abrindo caminho para a segunda, terceira, quarta fileira, etc. Ao meu lado direito estava o Bínchi fechando as mãos e no lado esquerdo estava o Dodô mordendo os lábios. Não era de raiva. Ele estava pancado de brizola. Este era o índice que indicava

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que ele havia alcançado o máximo nível de pancação: a autoantropofagia. Corri quando surgiu o primeiro espaço à minha frente e percebi os primeiros focos de conflito a uns cinco metros. Neste momento todos se espalhavam e uma confusão tão grande se estabeleceu, que pensei estar tendo um teto preto. O motivo de todo este estranhamento é que do outro lado, vindo contra nós e soltando morteiros em nossa direção, estavam várias camisas da Kamikazes. Exatamente isso! Os nosso inimigos portavam camisas da Kamikazes e riam pra cacete enquanto batiam e apanhavam. Esta confusão estabeleceu-se de forma generalizada e a partir de um tempo comecei a reconhecer meus amigos de longa data. Todos ali nos atacando e sendo atacados e parecendo se divertir muito com tudo aquilo. A multidão tentava se proteger enquanto corria e corria. Resolvi buscar um lugar seguro e me colocar à margem daquela sandice de modo que eu pudesse entender o que estava acontecendo. Não me foi possível alcançar o entendimento do que estava acontecendo à minha frente. Era impossível que eu agredisse o Rato, Coelho, Linha, Flores e todos os outros que estavam no meio daquela confusão e, que inclusive, chegaram a ser grandes amigos do meu irmão e não saiam lá de casa. Seria uma vingança por causa do ocorrido em Torresmos de Minas? De repente e sem nenhum motivo aparente, o conflito se encerra. Alguns sangrando muito sorriem. Outros que estão no chão feridos são erguidos e quase todos se abraçam. Imediatamente todos começam a gritar em uníssono com os punhos cerrados para o alto: “EU SOU DA KAMIKAZES EU SOU VOU DAR PORRADA EU VOU E NINGUÉM VAI ME SEGURAR NEM A PM! DE-POR-TI-VO! DE-POR-TI-VO!”

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Assim pude entender o que acabara de testemunhar. Um peculiar ritual de congraçamento entre os brutos da Kamikazes-Rio e os outros brutos da Kamikazes-Niterói. Entre sangue, dentes e narizes quebrados - entre outros ferimentos -, nos dirigimos ao local marcado para a realização da reunião, onde um churrasco apoteótico nos aguardava como sempre. Olhei para o Bínchi enquanto ele levantava um avariadíssimo Dodô e o ouvi dizer: “Porra! Aqui é animado pra caralho, hein? Hahahaha!”. E o velho Leví resmungava num canto: “Estes filhos da puta. Até hoje tô sem dois dentes”.

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Parte II

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Um dedo não se parece com os lábios, mas ambos são feitos de carne.

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Ir a São Gonçalo para mim não era nenhuma novidade. O tempo em que estive afastado da Torcida, não estive afastado de todo da vida. Na verdade eu comecei uma nova vida. Não me lembro com clareza, mas acho que andei por aí, vagando, perseguindo cacos da presença do meu irmão. Pálidas sensações dele em lugares onde ele passou, riu, amou e foi amado. Criei um museu todo particular de lembranças, sentimentos e outras sensações. São Gonçalo - mais precisamente Itaboraí, que era bem mais para dentro de São Gonçalo -, fazia parte de meu, digamos, trabalho de resgate do meu mano. Tudo isso se tornou possível graças a um cara chamado Sérgio Espírito Santo vocalista de uma banda Punk chamada Tubarões Voadores e um dos três maiores articuladores da cena alternativa do Rio de Janeiro na época. O Cólera, que era a banda favorita do meu irmão - e que acabou se tornando a minha também -, tocava regularmente nos eventos que o Sérgio Espírito Santo promovia. O meu amigo mais próximo nesta época era o Lobo que morava no bairro do Caramujo em São Gonçalo. Eu sempre me deslocava para a casa dele. Onde ele morava, era um lugar recôndito que em muitos momentos lembrava os piores buracos da Baixada Fluminense. Ele morava com a tia e mais oito primos. O Lobo não sabia nada sobre seus pais. Pelo menos nunca sabia responder nada se perguntado. Ou não queria responder nada. Poderia ter vergonha ou se sentir muito rejeitado e, por isso talvez, não gostasse de tocar no assunto. Do jeito que fosse eu respeitava. Como nunca fui muito curioso quanto às particularidades alheias, me satisfazia o fato do Marivaldo (este era o nome do “perigoso” Lobo) ser um cara solidário e legal demais. Apesar de nitidamente revoltado, nunca permitia que a sua raiva e frustração se projetassem para fora de si. Nunca estava sem paciência. Sempre tinha algum tipo de literatura libertária debaixo do braço. A rua do Lobo não tinha luz e na porta dele corria uma vala negra. Galinhas andavam pela rua com seus pintinhos comendo todos os tipos de lixos nojentos existentes. Era uma rua esburacada absolutamente sem calçamento. Cavalos amarrados nas portas das casas se banqueteavam com o capim que crescia fartamente nos lugares onde deveria haver calçadas para os pedestres. Era muito comum à noite ouvir gritos dentro de casa e nos vizinhos, porque o volume estrondoso de ratos era muito maior do que as frágeis casas podiam resistir. Na sua maioria eram casas com tijolos à mostra sem acabamento e sem laje. Os telhados de amianto eram um

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pesadelo que assava quem dentro das casas estivesse no verão e, não protegia do frio, já que havia vários desníveis no encaixe dos mesmos, o que proporcionava aberturas por onde passavam muito frio e os ratos. Toda vez que eu estava por lá o Lobo me chamava para cumprir a função de tapar os buracos da casa com uma mistura de jornal e breu, mas os ratos não permitiam uma vida útil maior que algumas semanas para o serviço. Nunca comíamos em casa. Sempre estávamos atrasados para a hora do almoço e toda a comida servida em casa, tinha que ser feita e consumida rapidamente e sem deixar sobras, porque os ratos não pensavam duas vezes ante a possibilidade de organizar um ataque às panelas. Nem os ossos dos frangos - quando havia frango - que sobravam das refeições, podiam ficar dentro da lixeirinha da pia da cozinha. O Lobo não tinha quarto. Dormia num canto da sala, num colchonete destes que a gente enrola e coloca num saco depois que acorda. Como a casa era muito úmida ele forrava o chão com o máximo de jornais possível antes de colocar o seu colchonete, que já tinha muitas partes dominadas pelo mofo. Colocar a sua “cama” para tomar um sol no varal era tarefa obrigatória no final de semana. Ainda assim era obrigado a ficar vigiando, pois se saísse e a chuva caísse, ninguém de casa se lembraria que aquele era um dos seus bens mais valiosos e certamente o esqueceriam se ensopando na chuva. Ele trabalhava numa oficina mecânica e pedalava uns dez quilômetros para ir ao trabalho e mais dez para voltar. O Lobo tinha tentado voltar a estudar umas seis vezes, mas não conseguia obter êxito. Ele nunca desistia. Ia até o final do ano letivo sem faltar uma aula. O problema é que ele chegava sempre muito atrasado, porque tinha de pedalar mais uns seis quilômetros até o colégio. Como já estava cansado demais depois de um dia de trabalho super pesado, o rendimento como ciclista não era o mesmo. Além disso, estava cumulativamente mal alimentado e mal descansado. Na sala brigava com o sono, mas acabava sempre acordando no final da aula, com alguém esbarrando uma mochila nele enquanto todos saíam. Ele dormia literalmente em cima dos livros. Não possuía registro profissional. O seu cheiro natural era de graxa e óleo. Tinha o olhar mais triste que eu já vi até hoje. Parecia que sempre tinha uma lágrima na beirinha da pálpebra pronta para cair.

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O grupo do Lobo se auto intitulava “Os Pesadelos”. As suas ideias não tinham lá uma engrenagem muito específica, mas no tocante às finalidades das mesmas eu sempre me curvei. Claro que, para se ter uma grande ideia num grande contexto, é necessário um grande conhecimento. Neste caso principalmente político. Inclusive - e por que não dizer principalmente? - do lado “O príncipe de Maquiavel” da coisa. Talvez o valor mais importante que eu tenha absorvido neste grupo e que se tornou parte de mim foi a perda da inocência. A certeza da necessidade, da obrigatoriedade de duvidar de quaisquer promessas, mesmo que seja com alguém olhando nos nossos olhos. Porque afinal, para se fazer isso, também existia um treinamento. Algumas ideias deles eram no mínimo interessantes, como a greve de consumo. Uma ideia intimamente estreita às ideias de Bínchi, Tchélo e Dodô. A ordem, até porque o dinheiro faltava até para o mínimo, era só comprar comida, material de higiene pessoal e remédio. Todo o restante deveria ser substituído por ideias criativas e no fim do mês os valores seriam comparados. Por exemplo: Ônibus eram substituídos por bicicletas ou caminhadas. Avaliava-se quanto era gasto com a manutenção das bicicletas e dos sapatos. Na bicicleta os custos se resumiam a remendos nas câmaras e os sapatos - coturnos de exército -, levavam uma vida inteira para apresentar algum sinal de desgaste. Como nacionalistas, usávamos gandolas, calças e outros itens do exército mesmo correndo o risco permanente à repressão da PE (Polícia do Exército). O Lobo tinha um projeto (e chegou a escrever várias cartas para o comando militar), que pedia a liberação do uso das roupas militares para os civis, como uma maneira de estreitar o relacionamento com o povo e fazê-lo parte daqueles que defendem e amam o país. Assim, como o seu projeto também previa um aumento da pena daqueles que fossem presos por qualquer crime, e que, no momento da prisão fossem flagrados trajando roupas militares. Estes seriam enquadrados no crime inafiançável de “desrespeito a símbolo nacional”. Era uma das ideias do Lobo. Quando somos jovens, não entendemos por que coisas lógicas e prioritárias não acontecem. As explicações “técnicas e científicas” para a ausência de atitudes e resultados dos líderes de cada segmento, fazem com que busquemos alternativas ou simplesmente coloquemos em xeque questões como pagamento de impostos, já que os impostos representam uma parte importante dos nossos microscópicos salários. Partes essas, que são usurpadas sem que a nossa opinião seja

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sequer consultada se desejamos contribuir para algo ou não. Isto é a democracia. Isto é o direito de escolher. Com este amigo pude me familiarizar com São Gonçalo. Pude constatar que os personagens só trocam de nome. Que todos pareciam viver a mesma vida e até no mesmo endereço, já que todos os lugares eram igualmente desprezados pelas autoridades. Autoridades - já que falamos nelas - que só apareciam por lá no período de campanha eleitoral com suas gangues de asseclas instruídas a costurar todo o tipo de acordo abjeto como dar cestas básicas em troca de votos (só até as eleições, claro), um pé de sapato (o outro era entregue somente após a certeza do candidato ter sido eleito), uma das partes da dentadura (a de cima ou a de baixo) e o que mais a criatividade maquiavélica de um político pudesse criar. Um dia eu cheguei mais cedo a um encontro - desses corriqueiros que sempre marcávamos para de lá sairmos para outro lugar - na rua do Lobo e parei para beber um refrigerante num boteco de porta de garagem e logo, logo vieram me dizer que a mãe e o pai do Lobo foram presos quando ele ainda estava na barriga de sua mãe. O pessoal disse que ele nasceu dentro de um presídio e no final de tudo, a tia dele acabou assumindo a responsabilidade de criá-lo no melhor estilo “onde comem nove comem dez”. O povo aumenta um pouco, mas não cria as coisas a partir do nada. Pelo que entendi da fofoca, os pais do Lobo tinham transgredido a lei praticando o crime de latrocínio, já que tinham assassinado o gerente de um mercadinho e roubado - juntos - a féria do dia. Neste dia o motivo do atraso do Lobo foi uma visita mais prolongada à casa da sua namorada que se chamava Letícia. Uma garota ótima de uma família humilde, mas não miserável como a do Lobo. Ela cursava o segundo ano do segundo grau normal e pretendia ser veterinária. Eles só tinham permissão para se ver nos fins de semana, já que, cada um ao seu jeito, trabalhava e estudava. O pai da Letícia era um senhor de bigode grosso, óculos “raiban” e mãos repletas de anéis e calos. Calos estes, frutos das obras feitas em sua casa, onde ele era o mestre de obras, o pedreiro e o auxiliar deste e, também, o engenheiro. Tudo ao mesmo tempo. Apesar da aparência super tosca era um homem simples e divertido. Sempre era agradável quando aparecíamos.

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Contava-nos piadas maravilhosas e só permitia a nossa saída da sua casa depois que ele julgasse que nós estávamos devidamente alimentados. Seu Astolfo, o pai da Letícia, era Policial Civil há mais de vinte anos. O Lobo me disse implorando todo o meu segredo que, de acordo com os boatos, o seu Astolfo era integrante de um grupo de extermínio na localidade. O grupo de extermínio é um tipo de organização muito comum por bandas similares àquelas. Era bastante difícil de acreditar nisso vendo aquele senhor que de tão simpático chegava a ser bobo. Um palhaço. Ele tinha como grande projeto para nós o ensino das artes etílicas já que nessa época nem eu nem o Lobo bebíamos. Nesta época nós não usávamos drogas e isso poderia ser motivo de gozarmos de tamanha liberdade na casa do seu Astolfo. O Lobo não apreciava o uso de narcóticos por suas convicções ideológicas. Eu por jogar a responsabilidade da morte do meu irmão no tóxico. A minha raiva tinha que ter um foco. Acredito que esta reação foi normal, levando em consideração o caráter completamente novo do momento que vivi. Principalmente pelo fato de ter perdido a única pessoa que tinha tempo para mim. Depois dissolvi este radicalismo e vi que o que matou o meu irmão foi ele mesmo, o seu fastio do mundo. Além do mais, eu não poderia negar para sempre o instrumento utilizado pelo meu irmão na sua escolha pelo tipo de morte que seria a sua. E se ele tivesse escolhido um carro para se matar jogando este de encontro a um muro? Eu só andaria de charrete? Claro que não. E assim, o tempo se encarregou de dissipar tais pensamentos e me tornei um ávido consumidor de todas as drogas, inclusive aquelas que não inventávamos. O Lobo sempre foi um cara bastante tímido. Ele era engajado e fiel à sua ideia de consciência política; consciência esta que misturava todos os “ismos” possíveis numa tentativa muito lógica e brilhante de depurar o melhor de cada um deles. Seu objetivo era alcançar uma espécie de miríade ideológica. É um cara legal que foi muito importante para mim. Na minha formação. Ele me ensinou a viver sem resmungar. Eu apenas o observava interagindo com o seu ambiente e sentia uma grande inspiração para continuar. O ser humano é muito afeito a certas mesquinharias. A crueldade é inerente à humanidade. Várias classes de crueldade são facilmente identificáveis, bastando que o momento exija uma escolha.

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No meu caso a crueldade que sempre aflorava dentro de mim era a comparativa. Eu olhava para o Lobo e pensava: “Minha vida não é tão ruim. Eu poderia estar pior. Eu poderia estar no lugar dele”. Aquela coisa de olhar para trás e parar de reclamar da ausência das coisas que você queria tanto ter, depois de constatar que tem gente bem mais fodida que você. A Letícia era uma namorada dedicada. Sempre estava em casa. Tinha duas amigas apenas que frequentavam a sua casa, basicamente para estudar, desenvolver projetos em grupo e coisas relativas à escola. Ela não era Punk, mas tinha consciência do movimento e sua grandeza, e tinha suas opiniões sobre o mesmo. Ela dizia que o movimento pareceu perder em essência, a partir do momento em que se expandiu pelo mundo e que a morte de Sid Vicious revelou que a base de tudo era, no mínimo, um anarquismo inconsequente, bobo, de pessoas que não tinham nenhuma consideração nem responsabilidade com aqueles que os amavam. Esta tese da Letícia foi muito importante para mim, apesar da sua dureza argumentativa. Acho que a partir daí eu comecei a encarar o meu irmão como um Sid Vicious. A Letícia ouvia Chico Buarque quando chegava da rua à noitinha na sua varanda. Sempre. O seu disco favorito era o “Construção”, que ela fazia questão de colocar para gente ouvir sempre. O Lobo gostava tanto deste trabalho do Chico, que falava em montar um dia uma banda de versões Punks das músicas do Chico. Eu gostava da ideia e a Letícia também. Ela estava longe de ter algum encanto físico. Eu costumava dizer para o Lobo que ele tinha arrumado uma namorada só para poder se alimentar na casa dela. Ele ficava vermelho e fugia do assunto. Eu sabia que ele gostava muito dela, mas era um pouco disso também. Assim, encontrei alento e consolo neste lugar humilde, mas maravilhoso que é São Gonçalo. Depois a vida mudou, porque afinal, tudo tem que se encaixar. As coisas não podem ficar flutuando para sempre sem uma definição. Tive que arrumar um emprego, voltei a estudar, montei um grupo de Rock e o contato com o Lobo foi lentamente se dissolvendo. Numa época em que uma linha telefônica levava anos para ser instalada e o celular só existia nos filmes de ficção, era difícil fazer a manutenção de uma amizade tão distante,

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principalmente se os dois lados estão muito ocupados buscando desesperada e freneticamente sobreviver como era o nosso caso. Nas minhas primeiras férias como trabalhador, logo no primeiro dia, acordei bem cedo e fui procurar o Lobo. Gritei o nome dele na porta e a priminha mais velha dele - uns doze anos talvez - veio à porta com o mais novo no colo. Perguntei pelo Lobo e ela me explicou que ele teve uma discussão séria com o novo namorado da mãe dela e tinha saído de casa. Ela continuou contando que ele pegou as coisas dele e foi embora. Fiquei pensando nos pertences do Lobo: O colchonete, uns vinis do Cólera, do Sex Pistols, do Olho Seco, do Ratos de Porão que não tinha como ele ouvir já que a casa não tinha toca-discos. Umas cartas, algumas poucas fotos, algumas revistas em quadrinhos e umas mudas de roupas. Aquele rostinho tão novo e tão castigado pela dureza de uma vida pesada, dizia algo como se ela nunca teria oportunidade de viver uma vida comum, com o mínimo imaginável como água da bica limpa para beber. Ela começou a chorar e eu perguntei por que ela estava chorando. Ela enxugou as lágrimas com as costas das mãos e balançou a cabeça olhando para o chão como quem diz “não” se mantendo em absoluto silêncio. Balancei a cabeça para cima usando a mesma linguagem e disse com o gesto, mas em silêncio também, “eu entendo”. Assim fui embora. Saindo dali, me senti meio tonto sem saber exatamente por onde começar a minha busca. Pensei na Letícia de imediato, claro. Mas enquanto andava, descendo em direção ao ponto de ônibus rumo a casa dela, me lembrei que valia a pena parar no ”cospe grosso” para beber um refrigerante. Como lá era o centro de informações da rua, eu poderia conseguir alguma informação ou uma pista que fosse. Lá o rapaz que me atendeu disse que “não sabia de muita coisa”, mas podia dizer que a briga tinha sido feia. O rapaz me contou que o que se dizia, é que o namorado da tia do Lobo estava “tomando umas liberdades” com a menina mais velha dela. Quando ele chegou da escola o surpreendeu. Quando eu andava por lá, esse tal namorado da tia dele não estava na área ainda. O rapaz “que nada sabia” aproveitou para me dizer que as brigas eram constantes e que o tal namorado devia

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dinheiro em todas as biroscas das redondezas. Eu ouvi tudo aquilo meio que envolvido num certo estertor devido à avalanche de perguntas que surgiram simultaneamente na minha cabeça. Num átimo de lucidez tive a presença de perguntar para onde ele tinha ido. O rapaz disse que não sabia dando um sorriso de constrangimento (infelizmente justo neste momento, ele começou a se sentir constrangido pelo fato de saber tanto sobre a vida alheia). “Olha, não sei não. Mas,...”, Aí segurei a curiosidade e deixei-o completar o processo da farsa do esforço para se lembrar da informação. Estava claro que aquilo era uma manobra de valorização da informação. Deixei o teatro rolar. “E de repente como um milagre...”. “Ah é... Dizem que foi pra São Paulo. Mas é o que dizem”, completou a informação. Não era o suficiente para mim. Dali resolvi partir para a casa da Letícia. Lá eu sabia que encontraria algumas respostas mais exatas. Enquanto eu me dirigia para a casa dela fiquei me perguntando por que eu não estava lá para ajudar o meu amigo. Meu amigo responsa. Dava para ter dividido o peso da situação pelo menos. Com menos de dois anos da morte do meu irmão, me vi em outra situação de omissão involuntária. Mais uma vez perdi a oportunidade de dizer tudo que queria dizer para alguém especial, simplesmente por achar que haveria tempo de sobra a meu favor. Ao chegar à casa da Letícia comecei a me preocupar com qual tipo de abordagem deveria ser utilizada. É claro que alguém que desaparece por tanto tempo perde alguns diretos básicos como o “direito a esclarecimentos”. Esta conclusão pesou muito, mas seria um grande ato de insensatez voltar da porta de entrada do meu objetivo por medo ou por não saber o que dizer. Concentrei-me, respirei fundo e toquei a campainha; uma novidade que não existia quando eu andava por ali. A Letícia apareceu na porta e sorriu. Pensei muito mais aliviado no momento que se seguiria. Pude começar a organizar as perguntas numa ordem lógica. Fiquei mais tranquilo enfim. – E aí Máicou? Quanto tempo! - E abrindo o portão ela me abraçou forte e me beijou no rosto. – Oi Letícia. Como estão as coisas? – Mais ou menos né? Você já deve estar sabendo o que aconteceu com o Marivaldo...

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– É. Eu acabei de passar na casa da tia dele e a filha mais velha dela me disse que ele tinha ido embora. – Ela te contou o que aconteceu? – Não com detalhes. Fiquei sabendo de uma história que o cara da tendinha me contou... Não sei se é verdade ou mentira. A gente pode conversar? – Claro. Entra. Sentei-me e recebi um copo de café da mãe da Letícia, que naquela época em que eu frequentava a casa delas, era a bebida que eu mais gostava. Mas não consegui sentir o mesmo sabor de sempre. Algo estava diferente. Havia um porta-retratos em cima da mesa da sala com a foto do Lobo que também não existia. A casa estava aparentemente normal com aquele barulho tão característico da panela de pressão cozinhando o feijão. Olhamos um nos olhos do outro e fomos direto ao ponto. Pude ouvir a confirmação do episódio da briga, assim como fiquei sabendo que o tal namorado da tia do Lobo havia sido bastante machucado. A polícia esteve procurando pelo Lobo já que uma queixa foi registrada por quem não se sabe. O Seu Astolfo usou da sua influência no meio da “poliçada bandida” para amenizar a gravidade do caso. Conseguiu. Mas o problema é que os filhos do namorado da tia do Lobo eram assaltantes e disso ninguém tinha ideia. Eles foram à casa da tia do Lobo procurá-lo enquanto ele estava no trabalho. Sorte a dele. No dia seguinte ele considerou mais prudente bater em retirada. Assim que saiu da casa da tia, o Lobo apareceu na casa da Letícia e conversou com o seu Astolfo que prontamente ofereceu-lhe o sofá da sala pelo tempo que fosse necessário. Quando passei a frequentar São Gonçalo o contexto do movimento Punk era povoado de fanzines de todo o Brasil. O intercâmbio de ideias era intenso e, desde esta época, eu já viajava bastante acompanhando o Lobo pelo Brasil. Principalmente para São Paulo. O pessoal do movimento Punk não tomava conhecimento de certas rivalidades que a mídia amava - e ama -fomentar. Sendo assim, não se adotava procedimentos bairristas no meio do movimento PUNK. Éramos convidados a participar de Congressos, reuniões, etc. Se não tivéssemos a quantia de dinheiro necessária para ir, eles nos enviavam o que faltava pelo reembolso postal. A volta era uma outra história, sempre uma outra aventura.

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Fazendo uso desta influência o Lobo contactou seu amigos de São Bernardo, de acordo com o que a Letícia disse. Ele recebeu uma proposta para trabalhar num posto de gasolina, onde ganharia três salários, além de ter a carteira assinada. Ia poder continuar estudando, teria um horário mais organizado, além de ter um quarto com banheiro e uma pequena cozinha totalmente independentes nos fundos da casa de um conhecido. Ele poderia morar lá sem ter que pagar aluguel - só pagaria a conta de luz. Letícia me disse que ele aceitou a proposta e estava se adaptando bem. Ela me mostrou duas cartas onde ele pedia para que ela me procurasse para, pelo menos, me deixar ciente do acontecido. Mas eu havia desaparecido... Perdi o contato. A vida foi andando para outro lado e quando se é jovem não se insiste muito em certos tipos de coisas. Basta que qualquer coisinha dê errado, para que tomemos nossas mochilas e procuremos outro nicho. Quando se é jovem, morremos e renascemos com muita facilidade. Reinventamo-nos com uma agilidade enorme. De hora em hora se preciso for. Com estas lembranças na cabeça fiz silenciosamente o trajeto até o local da reunião da Kamikazes. Acho que fiquei num transe e nem percebi a viagem terminar. Fui despertado com uma, do nosso vasto repertório de brincadeiras de mau gosto, que na verdade era um emblema, um símbolo daquele momento da minha vida. Duas situações que não aparentavam a menor diferença no tocante à loucura que a desigualdade do cotidiano sugere. Aquelas árvores e ruas que eu conhecia tão bem. Lá onde nos encontrávamos para depois irmos para algum outro lugar, ou simplesmente, onde íamos visitar pessoas muito amigas e solidárias. Nunca fui do tipo sensitivo. Sempre fui péssimo com essa coisa de intuição. Mas eu sabia que toda a história daquele lugar seria reescrita na minha cabeça. Infelizmente como a tudo que se relacionava às pessoas da Torcida, isto não era uma simples tendência, mas sim um fato.

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Parte III

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Transplante de vistas para aqueles que foram cegos pelo amor.

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Ao chegar ao cenário da reunião pude encontrar com todos os integrantes. Os ativos, os sazonais e os afastados, aqueles que sempre apareciam nas reuniões de São Gonçalo para beber e conversar, mas já tinham abandonado o dia-a-dia da Kamikazes há muito tempo e os totalmente ativos. O local da reunião era uma praça aberta com muitas árvores nas redondezas. Em mesas de concreto - com bancos também de concreto -, senhores jogavam baralho, enquanto outros, de pé, observavam atentamente o carteado como se esperassem a vez para jogar também. Na verdade, eles não eram meros aposentados matando o tempo na praça apostando um dinheirinho. Todos ali eram seguranças estrategicamente posicionados (pais, amigos, irmãos de componentes, enfim). Todos ali eram PMs. Alguns na reserva (outros na ativa) buscando se misturar com a paisagem e coibir com o máximo de violência possível qualquer tipo de ataque da “alemãozada” que ousasse por lá botar a cara. Não era possível dizer com absoluta certeza que aquele ambiente era invulnerável, mas podíamos confiar que havia um grande poder de reação concentrado. Afinal, havia uma preparação, uma expectativa permanente de que sorrisos pudessem se transformar em sangue a qualquer instante. Era a tradição do lugar como contarei mais à frente. E todos - de todos os lados - sabiam disso, o que inibia qualquer iniciativa do inimigo. Conseguir ter o fator surpresa como arma naquela situação era impossível. Só restava o confronto direto e anunciado à distância, e, a esta possibilidade, nem nós nem os “alemão”, estávamos dispostos a dar uma chance. Mesmo que ínfima. Antes mesmo do primeiro aperto de mão eu já estava com dois copos de bebidas nas mãos. Na direita cerveja e na esquerda caipirinha. À minha frente, sem me dar muita atenção, estava o Nélio. Ele estava devorando uma asa de galinha e não achou que a nossa chegada fizesse muita diferença. Ele tinha uns doze anos de Kamikazes e, nesse período, passou por fortíssimas emoções. Vejam bem: Eu não disse grandes emoções. Falei “fortíssimas emoções”. Ele se casou aos vinte e dois anos logo após ser aprovado no concurso do Desipe. Alugou uma casa (tipo quitinete), mobiliou a casa e decidiu viver a vidinha dele. Abandonou a Monitoria da Farândula de São Gonçalo e só aparecia nas reuniões para beber uma cerveja com os amigos, no melhor estilo “tô afastado”. Até então tudo muito bem feito, mas havia um fato extremamente paradoxal incrustado no meio desta história. A Bia, esposa do Nélio, fora integrante e militante da Organizada Jovem do Olímpico. Em São Gonçalo a

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Organizada Jovem era a maior e, por assim dizer, a única rival da Kamikazes nos idos de 1988, 1989, 1990... Claro que alguns kamikazes não se omitiram e manifestaram ojeriza à ideia de ver o Nélio casado com alguém tão intima, tão arraigada às tradições de um inimigo tão verdadeiramente perigoso como a Organizada Jovem. Mas o Nélio queria era alcançar a paz. Queria dar uma chance a ela e à felicidade. Sem dúvidas no coração. Afinal, dizem, o amor faz a gente agir assim. A gente acaba descartando o “SERASA” comportamental, que é o conjunto de informações sobre a vida pregressa de alguém: As ideias dadas pelos amigos perdem o valor. A Bia, além de Diretora da Horda feminina da Organizada Jovem, trabalhou como Auxiliar Administrativa na sede da Torcida, que se localizava no centro da cidade por dois anos. Além de ser envolvida até a medula com aquela gente, o pessoal questionava, e muito, a vida pregressa da Bia. Afinal, quais experiências ela havia se proposto a viver por lá? Em quantos bacanais ela figurou? Alguns de nós dizíamos com certeza que em seus bairros, seus vizinhos que pertenciam à Organizada Jovem, afirmavam que ela era uma boqueteira incansável sem fazer distinção de hierarquia. Podia ser soldado ou diretor. Bastava colocar a rola dura na sua frente para que ela abocanhasse até os ovos e só soltar depois do “neném ter gofado” e ela ter tomado a última gotinha de porra. Assim... Como quem bebe água de coco. Ela topava todas, além de servir de “moeda de troca” nas transações com as Torcidas aliadas da Organizada Jovem. Ela fazia parte da linha de frente das principais piranhas da Organizada Jovem, e, quando alguém da Organizada Jovem queria comer alguém de uma Torcida aliada, ela era oferecida como um objeto de barganha. A Bia fazia o tipo “linda e frágil”. Talvez tenha sido este trunfo natural para envolver a presa, que fez o Nélio ficar cego e não conseguir acreditar em pelo menos uma coisa, de tudo que foi dito sobre ela. O futuro está sempre em movimento, mas neste caso, já começava a criar as raízes da árvore que daria frutos muito amargos. A linda garota de pele branca, cabelos loiros verdadeiros até a cintura e franjinha, rostinho e pezinhos de boneca e fala de criança, tinha outras muitas mulheres dentro de si. Bia e Nélio se conheceram num famoso baile Funk de São Gonçalo chamado Tamoios. Por lá as Torcidas se encontravam - e se digladiavam -em etapas do festival de galeras (um campeonato que

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reunia comunidades de favelas e morros e Torcidas como numa gincana. Muito popular no começo dos anos noventa). As galeras das favelas se inscreviam, assim como as Torcidas, e, durante o baile do final de semana, se empenhavam em cumprir tarefas propostas pela organização do baile que visava desviar desesperadamente a atenção destes jovens para outro foco que não a violência. Era algo como “o baile da maior galera”, o do domingo seguinte poderia ser o “da galera mais enfeitada” etc. Após o cumprimento das tarefas um júri dava nota aos primeiro, segundo e terceiro lugares da semana. Essas notas eram somadas durante um semestre e aquela galera ou Torcida que somasse o maior número de pontos era declarada vencedora. O prêmio era um troféu e o direito a um baile na comunidade do vencedor. Neste ambiente competitivo, Bia e Nélio se encontraram. Claro que aquela velha conversa da “proibição gera o desejo”, se encaixou perfeitamente aos dois. Numa história meio Romeu e Julieta eles conseguiram fazer valer suas vontades, apesar das juras de morte que ambos sofreram. Para muitos era só uma questão de tempo até um dos dois - e pelo visto todos sabiam bem em quem apostar - pular fora do barco. O problema maior na visão daqueles que observavam atentamente de fora o desenvolvimento do digamos... Romance, era que uma traição poderia não significar somente ter um amante. Traição poderia significar uma armadilha mortal. O que seria facilmente dissimulável depois que uma história razoável fosse apresentada junto com um álibi perfeito. Assim os Kamikazes começaram a temer por suas próprias seguranças, já que o Nélio continuava sendo o monitor da Farândula São Gonçalo (mesmo que de uma forma totalmente omissa e burocrática, só no papel) e continuava a ter acesso, também, a informações sigilosas. A Bia era uma mulher muito persuasiva além de gostosa para caralho. Todos começaram a se perguntar se o Nélio seria capaz de resistir às suas artimanhas caso ela resolvesse traí-lo ou sofresse algum tipo de pressão do seu antigo bonde para nos armar uma “escama”. Um sentimento de desconfiança se instalou profundamente no âmago dos Kamikazes e em pouquíssimo tempo a angustia era generalizada. Todos votaram pelo afastamento do Nélio. Ele não se ofendeu. Não fazia muita questão de continuar mantendo aquele mundo. A amizade continuou, mas com ele afastado. As escalas de trabalho do Nélio não combinavam com a necessidade de monitoramento que a Bia exigia. O Nael, melhor amigo

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do Nélio, ficou informalmente responsável por dar umas olhadas incertas nas redondezas da casa enquanto o Nélio estivesse na batalha. Numa dessas incertas, o Nael viu a Bia de conversa com um cara de moto no portão de casa na maior cara de pau. Eles moravam numa rua sem conhecidos, num bairro bem afastado do lugar onde o Nélio havia nascido e sido criado. Sabendo disso a Bia deve ter pensado que poderia aprontar, na certeza de não estar sendo monitorada. Neste dia, Nael foi testemunha de um longo, demorado e apaixonado beijo na boca no exato momento da despedida do tal motoqueiro. Aquela moto não deixava dúvidas. Era a moto do Paulão, monitor da Horda de São Gonçalo e quase dono e senhor da Bia nos tempos de solteira. Aplicou-lhe várias e várias surras quando ficava numa onda de birita e brizola. A droga favorita dele era o “baseado envenenado”, ou, “free base”. Uma mistura de maconha com brizola que deixa qualquer um num estado lamentável. Todos os meus contemporâneos eram profundos apreciadores desta mistura. Pelo visto, o “rei” Paulão estava fazendo a manutenção da sua “majestade” na área do Nélio. Claro que o Nael aguardou o Nélio cumprir o seu expediente e contactou o seu amigo imediatamente quando o relógio chegou à hora propícia. – Alô bundão. Quer mamar no boi? - Atendeu o telefone Nélio reconhecendo Nael pelo identificador de chamadas do telefone celular. – Fala filho da puta. Se liga... – Hã? – Tô precisando desenrolar um assunto de extrema urgência contigo. – Não posso comer carne de porco não. Já te avisei... - Continuou Nélio mantendo o tom de brincadeira. Afinal, não passava pela cabeça dele a mínima ideia do que estava acontecendo. – Olha só responsa... Esta conversa é no talento. Pode me encontrar agora? – Porra meu irmão! É 1h30 da manhã... Não da pra esperar? Tô cansado pra caralho. É dinheiro emprestado? - Nélio continuou mantendo o mesmo tom. Quero ver minha mulher responsa. – É sobre isso mesmo que eu queria falar contigo... E Nael manteve as reticências bem destacadas. – Qual foi? Fala? Qual foi rapá? Aconteceu alguma coisa com ela? Fala! Fala porra!

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– Calma! Não aconteceu nada com ela. Eu acho que tem alguma coisa para acontecer com você... – Como assim? Fala... – A gente conversa quando você chegar, senão tudo que eu roubei este mês vai ser pra pagar conta de telefone. – Tá! Tá! Tá! Já estou chegando responsa. - E assim Nael começou a se movimentar para o lugar marcado. O ponto de ônibus onde o Nélio saltaria vindo do trabalho. Ao se encontrarem o Nael começou a relatar minuciosamente o que tinha visto e fez questão absoluta de dar a sua opinião sobre o quanto aquilo tudo era passível de punição severa. Ele contou para o Nélio que a rua estava cheia quando as intimidades foram tomadas no portão. Agora, além do perigo do que estaria surgindo por trás daquilo tudo, havia o ridículo que a vizinhança o faria passar na primeira oportunidade. O Nélio teve uma ideia então. Ao chegar em casa preparou o terreno todo dizendo para a Bia que na terça-feira - o dia seguinte - ia ser obrigado a fazer um plantão no presídio para compensar uma falta que ele tivera sem atestado médico. Por este motivo ele chegaria pela manhã e não pela madrugada como de costume. Talvez às oito horas. Que era para ela não se preocupar com o atraso e blá, blá, blá... Ele sabia que esta liberdade seria uma boa oportunidade para que ela, como boa piranha que era, interpretasse o conjunto de coincidências como uma oportunidade de ouro para que suas putarias fossem realizadas debaixo do seu teto. O Nélio foi ao médico bem cedo e conseguiu um atestado médico e não foi trabalhar. Ficou na casa do Nael e se preparou para o pior. Preparou-se para flagrar a mulher amada com o seu maior inimigo. A reação dele chegou - a certo ponto - ser surpreendente, porque todos julgavam que ele estivesse cego de amor de maneira a não querer ver o óbvio. Mas ficou provado que a palavra de um bom amigo continuava tendo o seu valor e o desenrolado do amigo Nael foi mais poderoso. Coisas que só o Nael poderia dizer despertaram um instinto que parecia dormir um sono tranquilo dentro do Nélio. Após um dia inteiro de concentração eles dois se dirigiram para casa do Nélio num horário intermediário, onde encontraram a moto na calçada estacionada. O grupo de vingadores era formado por Nélio, Nael

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e Seu Ramon (pai do Nael) que portava uma pistola quarenta e cinco para qualquer eventualidade. Eles deduziram com facilidade onde estaria o Paulão e fazendo uso das chaves e de alguma precaução, entraram no sapatinho no terreno e conseguiram não serem notados. Lá dentro, a euforia dos dois patifes era tanta, que não era qualquer ruído que conseguiria desconcentrá-los. Além do mais, eles tinham a tranquilidade e a certeza de saber que o único que poderia surpreendêlos estava ocupado demais longe dali. O Nélio não iria abrir a porta. O combinado era arrombá-la enquanto o seu Ramon daria a cobertura de arma em punho. No exato momento em que a porta fora arrombada, o Paulão e a Bia estavam se agarrando no sofá. Ele estava só de sunga e ela peladinha. A cena causou a Nélio uma onda de sensações distintas, que se misturaram e se tornaram uma só coisa ruim dentro dele, como ele nunca havia sentido. O Nélio gritou “filhos das puta” - nesta mistura equivocada de singular com plural que é o que o suburbano fala quando esta com raiva -, e desferiu um golpe com um cabo de enxada, que ele usava como ferramenta de vingança, tão violento no Paulão - que teve o azar de ser o alvo mais acessível - que ele perdeu todos os dentes do lado esquerdo e teve afundamento generalizado dos ossos da face no mesmo lado. Sem perder muito tempo com o “quase cadáver” ele se dirigiu até a cozinha - para onde a Bia tinha corrido para se esconder -, operando no seu rosto uma plástica traumatizante àqueles que vissem no que ela se transformou. Uma sequência infinita de socos foi à ferramenta usada por Nélio para modificar o aspecto da moça para todo o sempre. O Nael continuava batendo no que tinha sobrado do Paulão, até que o Seu Ramon cometeu um erro fatal. Impediu que o Nélio e o Nael matassem o Paulão e expulsou-o do ambiente, logo que ele despertou, fazendo com que ele fugisse a pé, enquanto o Nélio ateava fogo na moto, que funcionava como uma extensão da personalidade do Paulão. Eu não estava na pele dele, mas posso dizer que pelas demonstrações de amor àquele objeto, doeu muito mais vê-la queimando do que a dor de perder os dentes. A Bia ficou desmaiada no quarto, já que depois de tê-la arrastado pelos cabelos por toda a casa, foi lá o lugar que o Nélio escolheu para seu último gesto de vingança. Ele chamou o Nael e perguntou: “Quer comer uma piranha?”. O Nael nem chegou a responder. Rindo, ele abaixou as calças, virou a Bia de bruços e começou

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a violentá-la enquanto ela gritava “Não! Para!” e soltava vários outros lamentos. O Nélio também a estuprou, gozou e cuspiu na cara dela, depois a abandonou desmaiada. O quarto parecia ser o palco do ocaso de Bia. Mas não foi... Era melhor que continuasse viva para se lembrar daquele castigo e funcionar também como um tipo de prova viva da ira dos Kamikazes. Eles foram embora e o Nélio com o passar dos dias foi adotando atitudes mais normais. Vingou-se e provou para si e para os outros que não era corno, mas sim um cara traído, e isso, a traição, que nasce e cresce no silêncio da alma de cada um, ele não tinha como controlar nem evitar. As notícias iam chegando e davam conta de um grande estrago. O Paulão estava internado surdo de um ouvido. A Bia tinha perdido a sua beleza para todo o sempre, pois tinha deformidades irreversíveis para os seus limitados padrões financeiros. Todos lamentavam o desfecho que tivera esta história. Mas, se enganaram redondamente aqueles que acreditavam ser este o desfecho. De definitivo mesmo só o sumiço da Bia. Ela nunca mais foi vista. Ela nunca mais poderia ser a mesma. Seis, sete, oito, nove meses se passaram. Tudo parecia estar dentro de uma normalidade aparente. Nélio reassumiu o seu posto de monitor sem nenhuma oposição. Muito pelo contrário, para felicidade de todos em São Gonçalo. Passou a planejar com afinco e dedicação a sua candidatura para a Presidência dos Kamikazes. Enfim... Tudo andando para um caminho mais normal. Num destes dias normais Nael, Nélio e os outros Kamikazes voltavam de um jogo calmo contra um time pequeno do interior do Rio pelo Campeonato Estadual, quando das sombras, já na esquina da rua que era usada como ponto de encontro pela rapaziada, saiu alguém de um carro estacionado e gritou: “Vem cá Nélio! Vou te matar filho da puta! Cadê você? Cadê? Cadêêêêê?”. Após o anúncio todos correram e vários, muitos disparos foram efetuados. Confusão e correria. Todos dispersam fazendo uso de uma das muitas táticas para confundir o inimigo. Menos de um minuto depois todos ouvem o som de um carro saindo em disparada, o que era a senha para que, com o máximo de prudência possível, eles se reencontrassem. Todos foram chegando à esquina de volta e a cada um que aparecia a

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sensação de alívio ia aumentando. Primeiro o Leite, depois o Vala, Marco e... Nélio. Todos muito espantados, mas, vivos. Todos tentavam chegar a alguma conclusão em tempo recorde. Esta é uma reação normal quando somos surpreendidos. A afobação da necessidade do entendimento. – Caralho! Quem era? - Ofegante o Nélio perguntou, mas sem buscar um destinatário específico. – Tu viu cumpadi? Era o Paulão. Eu vi legal a caroça dele amigo. Falou Leite. – Era ele sim. Com duas pistolas aí... Sinistro da parada do bagulho da situação... - Expressava seu pânico “Vala” no alto do medo que os seus dezesseis anos permitia sentir sem abalar a sua moral. – Foi sinistro, foi sinistro... - Repetia fora de si a mesma frase. – Fica calmo menó. Já tá no talento. Senta aqui na pedra. Calma... Começou Nélio a cuidar da sua galera. A esta altura o grupo todo tinha se formado na esquina com exceção do Nael. Apenas ele não havia aparecido ainda. A rapaziada começou a caçoar enquanto pedia para que ele aparecesse. “Sai de cima da árvore Nael. Tá tranquilo agora. Tá entocado pra não pagar a cerveja, né filho da puta?”, e todos se divertiam fazendo piadas sentindo-se aliviados após aquele susto todo. Menos o Nélio. Enquanto a galera desceu a rua para procurá-lo, o Nélio resolveu fazer o sentido inverso e subir a primeira rua de frente para a esquina. Era uma rua mais íngrime e depois do pico começava um declive. Logo na descida, bem no começo mesmo do meio fio, de bruços estava o Nael deitado. Numa posição em que era impossível distinguir onde era o braço ou qualquer outra coisa. O Nélio deu um berro e todos partiram na direção do grito. Eles chegaram quase todos juntos em tempo de testemunhar os últimos momentos de Nael. Virando os olhos e com o ritmo da respiração completamente alterado, ele emitia sons como quem estivesse sufocando numa crise de asma. Aí, um profundo suspiro foi solto e uma pessoa muito divertida deixou de existir. O Fim. Uma cratera emocional havia sido irreversivelmente criada e uma culpa imensa depositada na história do Nélio para sempre. Possivelmente este era o motivo daquele ar de descaso que o Nélio adotava para com tudo e todos.

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Na reunião estavam presentes as garotas da Farândula feminina. Todas as Farândulas de todo o estado tinham sua Farândula feminina. Afinal, ninguém vive sem mulher. A Farândula de São Gonçalo, porém, era um capítulo à parte. As meninas mais animadas e que sabiam fazer a alegria de alguns felizardos em um número muito expressivo. Belas presenças, mas só as mais atentas tinham o direito de exercer uma participação mais ativa. Política de Torcida Organizada não é um campo propício para pessoas desatentas, claro. Somente aquelas que tinham disposição de sobra para se envolver intimamente com um “alemão” se preciso fosse gozavam de alguns privilégios. Isso, claro, dependendo da importância das informações que poderiam ser obtidas. Antes que ficássemos altos demais para tratar dos assuntos sérios que aquele dia exigia, eu convoquei todos aqueles que estavam envolvidos no projeto. O velho Leví iniciou as atividades falando da importância daquela reunião e do quanto seria bom para a saúde das arquibancadas se conseguíssemos dominar o ódio infundado contra as pessoas pelo simples fato destas vestirem outros uniformes e blá, blá, blá... Claro que o velho Leví falou muito mais do que isso, mas de aproveitável mesmo, muito pouco. Apresentei as cópias dos mapas que recebi da PM no dia da nossa reunião com eles. Enquanto eu falava do plano de concentração em um único lugar e dos seus benefícios, aos poucos, mais pessoas foram parando com as conversas paralelas e foram se aproximando e fazendo parte da conversa. “E todo mundo aqui na praça? A guerra não vai ser inevitável e generalizada?”, alguma voz perguntou saída da multidão. Essa pergunta, o Dodô respondeu, já que antes da reunião havíamos desenvolvido uma estratégia de rodízio para responder a todos. Desta forma, poderíamos demonstrar o entrosamento e a segurança de toda a Diretoria. “Eu sei que aqui ninguém tem medo de filho da puta nenhum. Mas o caso é que não vamos ter oportunidade de tentar movimento nenhum, nada mesmo. Do mesmo jeito que eles também não. Em cada ponto de concentração indicado pelas lideranças de cada facção, estarão duas viaturas com dois “vermes” cada. Essas viaturas vão nos escoltar no trajeto de ida e volta”. A resposta parece ter satisfeito a galera. Já que não seria possível guerrear... Que praticássemos a paz. O pessoal, normalmente, não era de fazer muitas perguntas. O plano era simples e todos tinham um entendimento estratégico muito

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amplo do assunto “Torcida na rua”. Não era nenhum mérito. A grande maioria estava ali há cinco anos no mínimo. Depois que o Bínchi tomou a palavra e recebeu o silêncio como resposta quando perguntou se alguém tinha alguma dúvida, resolvemos declarar oficialmente o início dos festejos. Tivemos um torneio de futebol que foi ganho pelo time do Nélio. A praça, toda enfeitada com bandeiras e faixas, atraia muitos penetras com camisas do Deportivo. Como a boca era rica todos foram bem chegados. Tiramos fotos e cantamos. O Tchélo tirou o atraso e beijou na boca depois de um longo jejum. Eu fiquei bêbado e maconhado. Foi um domingo especial. Na volta, como não havia jogo na cidade e o Deportivo estava de folga na tabela, tivemos uma viagem muito tranquila e sem a excitação da ida, já que todos estavam arruinados pelo excesso de diversão. Alguns dormiam e até babavam com as cabeças balançando nos bancos dos ônibus.

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Parte IV

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Anatomia de um ataque

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A semana seguiu tumultuada com os preparativos para o clássico a mil quilômetros por hora. Fitas, bolas coloridas, papel picado, bandeirinhas de papel com palito de churrasco, apitos... Todos estes itens somados aos ensaios da bateria tomaram integralmente o tempo da Diretoria e dos integrantes mais dedicados. Muitos saiam do trabalho e se dirigiam diretamente para a Sede do Clube onde estavam sendo feitos todos estes preparativos. Todos queriam dar a sua contribuição. Havia uma motivação especial para aquele clássico, que apesar de pertencer à tabela do campeonato brasileiro, também, era extremamente carioca. A despreocupação com o quesito segurança desonerava - e muito - a responsabilidade da gente, dando a todos, espaço na mente para criarmos outros elementos festivos, ou, até mesmo, relembrarmos aqueles detalhes que andavam meio esquecidos, meio que sem tempo de receberem a atenção merecida. O retoque das bandeiras era um desses detalhes que andavam no canto da parede. A nossa sede esteve movimentada como se fosse uma final. Era a décima oitava rodada e os clubes ocupavam posições medianas na tabela (o Deportivo era quarto colocado e o Olímpico era quinto). Claro que estas colocações estavam longe daquelas que as torcidas sempre almejam para os seus times, mas também, não seria um jogo desprezado pela massa. A julgar que o campeonato estava mais ou menos no meio e que os primeiros colocados podiam tropeçar várias e várias rodadas, as torcidas se motivaram. Realmente não havia desinteresse da massa. Havia o atrativo de ser este o “clássico da paz”, já que a Polícia Militar e o Estado do Rio de Janeiro resolveram trabalhar juntos e executar uma ideia que todos achavam ótima. Na quinta-feira à tarde eu atendi um telefonema. Fiquei surpreso quando identifiquei a voz. Era o Nélio, nos convidando a todos para um evento no Clube Tamoios. – Torcida Kamikazes, boa tarde! – Máicou? É tu? – Sou eu! Nélio? – Qual é responsa? E aí tudo na paz? – Tudo corrido à beça, mas tranquilo. E aí? Que que tu manda?

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– Por aqui beleza. Com esta resposta fiquei mais tranquilo. - O Nélio não era do tipo que apreciava monitorar a sede ligando constantemente. Ele aparecia de vez em quando por lá sem maiores intenções. – Se liga... – Fala. – Sábado tem show do Claudinho & Buchecha lá no Tamoios. Todo mundo aqui vai curtir. O pessoal combinou o seguinte: Vamos fazer um churrasco antes de ir pra lá e outro churrasco quando a gente voltar. Até a hora da gente partir pro jogo. Eu tô ligando pra dizer que vocês estão intimados a comparecer. Se fizerem uma desfeita... Ó! É pra vir em peso o bonde da primeira Farândula, porque tá tudo arregado. Tá ligado no Kid? – Tô. O gerente do morro do Coice né? – Isso, isso. No sábado é aniversário dele. Ele é Deportivense. Pediu-me para organizar um festão sem miséria. Ele quer ver o bagulho como? – No talento! - Respondi – Demorou. - Não fui capaz de administrar tal felicidade. Se todos topassem, além de não precisarmos acordar cedo no domingo, dava pra passar bem e sem fome de sábado para domingo. Dava para comer, beber e se drogar fartamente. Festa de gerente é festa de rei. – Tá tranquilo Nélio. Vai trabalhar hoje? – Vou. – Então não esquece de ficar atento no celular, que mais tarde eu vou te dar uma ligada valeu? – Tá maneiro. Mas liga mesmo. Agita essa parada aí Máicou. Aí a gente pode ficar envolvido mais tranquilo e de chefe. Demorou rato? – Já é. – Tem um tempo que a gente não inventa uma história... – Tá tranquilo meu responsa. Fiquei feliz pelo convite. – Valeu. Tamos aí. – Até mais tarde. – Falou. Era perfeito. A nossa responsabilidade se resumia a conduzir a galera que se concentrasse na primeira Farândula para o local onde o Nélio indicasse. Normalmente não havia caminho indicado. Nós fazíamos o nosso itinerário na estrada. Mas como desta vez havia uma festividade, tínhamos um propósito em nos organizar. Comecei a ligar para todos e pedi para que alguns desses me ajudassem a contactar as

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pessoas do grupo - que era formado por aproximadamente cento e cinquenta cabeças que faziam questão de sair da primeira Farândula. No final da tarde tínhamos uma lista de cento e trinta e quatro membro que toparam a proposta e estavam loucos para curtir o embalo proposto pelo Nélio. Alguns poucos que trabalhavam no sábado, ou tinham família e filhos, optaram por nos encontrar no ponto de encontro no domingo de manhã. Assim, era só marcar o horário de saída no sábado e partir para São Gonçalo. Claro que todos a esta altura sabem que Claudinho & Buchecha definitivamente não era o meu padrão de som. Mas sou carioca e ser carioca é ter o ecletismo como característica inerente. Eu gostava dos dois, da história de obstinação dos caras. Além de tudo, os Kamikazes de São Gonçalo amavam os dois. Primeiro por serem ambos, tanto o Claudinho quanto o Buchecha, crias de São Gonçalo; segundo por serem considerados caras extremamente simpáticos por todos, e, mesmo sendo notórios torcedores (fanáticos) do Olímpico, o pessoal da Kamikazes de São Gonçalo não conseguiu deixar de amá-los. No “Rap do Salgueiro”, eles citam a Kamikazes como uma das galeras mais responsas do Rio. De mais a mais, eu gostava de dar dinheiro para aqueles dois crioulos. Eles eram um símbolo vivo que dias melhores existem. Não perdia uma oportunidade de assisti-los. É claro que esses dias melhores estão muito bem escondidos. Mas eles existem. Sempre achei os caras talentosíssimos naquilo a que se propunham: Música popular para gente simples como eu. Tenho todos os CDs (alguns originais, mas a maioria pirata claro!) até hoje. Quando o Claudinho morreu recentemente, a Farândula de São Gonçalo passou um mês trajando luto. A praxe era marcar os compromissos pelo menos uma hora e meia antes do horário necessário para sairmos como vocês já sabem. Portanto, se precisássemos sair às doze horas, a concentração era marcada comumente às dez e meia. Era o único jeito das coisas funcionarem. Seguindo esta lógica marcamos a saída para o embalo em São Gonçalo às onze horas. Assim até às quatorze horas estaríamos na estrada. Seguindo a rotina de vandalismo e atentados violentos ao pudor, furtos, roubos e toda a sorte de delitos, nos dirigimos a São

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Gonçalo. Na saída das barcas, o mesmo capítulo de “selvageria afetiva” entre os dois grupos. Muitos abraços, gritos de guerra e sangue depois, nos dirigimos ao local onde seria realizado o churrasco. Ficou decidido que o churrasco da tarde, o de antes de irmos ao baile dos Tamoios, seria na favela e o de depois do baile seria na praça de onde partiríamos para o jogo. Estava perfeito para nós que só queríamos nos divertir até virarmos do lado avesso. A favela do Coice havia acabado de ser retomada pelo Kid. Ele era cria da favela. Até a última investida dele para obter o controle definitivo da favela, o nome da comunidade era “Iutá” em homenagem à terra dos Mórmons. Não sei ao certo se foi homenagem ou os Mórmons batizaram o local por conta deles. O que sei é que quando o Kid retomou a favela, colocou uma bandeira do Brasil no ponto mais alto e rebatizou a mesma. Ela virou a favela do Coice. O Kid dizia que o coice é uma arma importante para se defender dos traíras que sempre atacam por trás. Por mais contraditório que parecesse, o rapaz com o codinome em inglês era nacionalista. Ao seu modo, mas era um nacionalista. Ele morreu na “jaula do leão”. Prática de execução muito comum nos morros e favelas do Rio, que consiste em jogar especialmente alcaguetes ou membros de outras facções que fossem capturados, num cubículo com cinco, seis, sete cães da raça Pit Bull famintos há vários dias. Justamente neste último perfil, o Kid acabou fatalmente se enquadrando ou sendo enquadrado. Grande Kid. Na sua luta pela expansão do seu império resolveu invadir um morro vizinho, chamado morro do Cão. Ele e seus comparsas subestimaram o poder de fogo e a estratégia dos traficantes do morro do Cão. O morro estava reforçado aguardando a invasão. Como quase sempre acontece quando alguém se embriaga de poder e se descuida do sigilo falando mais que o necessário, um “X-9“ ouviu e vendeu a informação da invasão. Os que seriam invadidos redobraram o seu preparo, inclusive pedindo reforço de contingente para outros morros e favelas aliados. Quem conseguiu voltar da guerra e teve com o Kid ao seu lado, disse que ele levou um tiro de G3 que arrancou a perna esquerda dele na hora. Ele ficou no chão gritando e pedindo ajuda. Uns quatro “braços direitos” tentaram ajudá-lo, mas foram capturados também e morreram na jaula pelo que se soube. Os demais “soldados”, que viram tudo aquilo acontecer, fugiram enquanto era possível. O Kid não teve enterro. Também não havia um corpo para ser enterrado...

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A festa foi das melhores. Para os Kamikazes, que estavam num número próximo a trezentos e cinquenta, o Kid mandou encher três piscinas de plástico de cinco mil litros com cerveja, vodka, caipirinha, batida, energéticos etc. Bastava que o nível das bebidas abaixasse só um pouquinho que fosse para alguém aparecer e completar o que faltava. Pó, maconha, cigarros... Tudo farto em quantidade e qualidade. Às vinte horas chegaram os ônibus fretados pelo Kid para levar o bonde ao baile. Acomodamo-nos onde era possível, principalmente em cima dos ônibus e fomos até o nosso destino xingando todos pelo caminho, que não ousavam sequer nos olhar. Todas as atenções se voltavam para a nossa chegada na porta do Tamoios. Cantávamos assim: “BOTA O CU NA JANELA PRA SAUDAR QUEM CHEGOU EU SOU DO COICE, KAMIKAZE, SÃO GONÇALÔ” O Nélio pediu pra que o bonde organizasse uma fila e começou a distribuir os ingressos. Na entrada nos concentramos no local tradicionalmente ocupado pela Kamikazes, que era bem próximo ao bar. Depois que todos estavam lá dentro, o Nélio apareceu distribuindo tickets de cervejas à vontade e gritando “é sem miséria, hein?”. Depois de agrupados fomos dar um passeio pelo baile. A ordem era festejar e não arrumar problema. Show do Claudinho & Buchecha não podia ter vacilação. De qualquer forma ninguém parecia muito disposto a arrumar problemas. Além do mais, um grupo tão numeroso quanto o nosso, intimidava a iniciativa dos outros bondes. Passeamos pelo baile “de lordes”. Quem conseguia articular a fala, tentava conquistar uma mulher e por aí foi a noite. Na hora do show todos nos reunimos o mais próximos do palco possível e dançamos, cantamos, subimos no palco e imitamos a dança sensual das stripers... Enfim. Uma noite memorável. Às cinco e meia da manhã o baile terminou. Ao sairmos demos de cara com os nossos ônibus e aquele sol. Aquele sol, que mesmo tímido por detrás das nuvens, demonstrava que o domingo seria quente. Quando chegamos à praça completamente exaustos, as churrasqueiras, que já nos aguardavam montadas foram imediatamente acesas de novo. As três piscinas de bebida pareciam não terem sido tocadas em nenhum

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momento. Estavam transbordando de cervejas e todas as outras bebidas. No embalo da cocaína nos preparamos para encarar o terceiro tempo dos festejos. Começamos a dar “levantes” sucessivos e quando percebemos não havia mais cansaço. O sol começava a brilhar e os Kamikazes restantes - aqueles que não puderam curtir a noite por motivos pessoais , chegavam cedo para aproveitar a festa. De carro, de moto, vindos de todas as partes. Loucos para descontar o atraso, bebiam o mais rápido possível, buscando desesperadamente alcançar o nível etílico dos que por lá pernoitaram. A esta altura, digamos dez ou dez e meia da manhã, nos divertíamos no impulso. Embalados pelos “estimulantes” recebidos com uma regularidade impressionante. Energéticos lícitos e ilícitos abundavam. Procurávamos consumir todo o possível, dando vazão ao nosso lado fanfarrão, hedonista. Num momento, quando eu estava quase perdendo som e imagem devido ao acúmulo de todo o tipo de excesso cometido desde a tarde de sábado, o Nélio veio a mim. – Porra! Tô te chamando faz uns dez minutos. Tu não tá me ouvindo não porra? Reclamou comigo, mas com um sorriso na cara. – E foi mal aí... Respondi meio sem tom certo na voz. – Tô teoricamente acordado. As vistas estão abertas, mas já não estou vendo nada. Mas o que manda Nélio? Tá tranquilo responsa? Mesmo não gozando da plenitude dos meus sentidos, pude perceber a inquietação dele. Comecei a pelo menos tentar criar opções de diálogo, para que ele se sentisse um pouco mais à vontade para falar o que fazia dele uma criatura tão ansiosa naquele ambiente de total descontração. A todo segundo ele dava uma olhada para os lados. Daí ele colocou o braço esquerdo em volta do meu pescoço e continuou. – Sabe qual é? – Hã... - Tentei responder. – Vai rolar um ataque. A gente vai dar um baque nos” alemão”. Tá a fim de formar? Já é ou já era? - Sabendo do esquema de segurança minucioso que havia sido montado em parceria com a polícia, até despertei do meu transe psicotrópico e fiquei curioso. – Mas como vocês vão fazer isso? É missão suicida! – Tu tá onde responsa? No grupo jovem da Igreja? É a Kamikazes porra! Já é ou já era? Ó... Num peida não hein? - Ele foi incisivo, como quem

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dizia que existia uma explicação sim, mas que só teria acesso a ela quem estivesse disposto a participar da ação. – Tá tranquilo. Eu quero ir. Eu vou nessa parada. – Demorou responsa. Disposição! E aí ele apertou a minha mão e trouxe as duas mãos para junto do seu peito e olhou dentro dos meus olhos com cara de puto. - Tudo cena. O sim funcionou como um tipo de chave. A partir do momento em que aceitei participar do que quer que fosse que ele estivesse armando - e sem saber de nenhum detalhe -, um entusiasmo foi desencadeado com uma intensidade muito maior devido à confiança cega que nele depositei. Devo confessar que na minha cabeça, aquilo não passava de mais uma entre tantas outras conversas de bêbados que àquela altura eu já tinha escutado. Ninguém seria tão suicida a ponto de procurar um problema de dimensões enormes, como seria o de se livrar da responsabilidade de um ataque num momento onde os olhos de toda a opinião pública, estariam voltados para a capacidade da polícia e do Estado de administrar o problema “Torcidas Organizadas”, nos acompanhando bem de perto. Mas eu havia me esquecido de um detalhe, que na verdade não era um detalhe e sim o fator principal daquele momento: O nome do Nélio funcionava como uma grife e era isto que fazia toda a diferença. Finalmente ele resolveu me explicar detalhadamente qual era o seu plano. Numa esquina de um bairro vizinho, seria estabelecida uma concentração pirata da Kamikazes. Tipo uma reuniãozinha para que todos se juntassem rumo à reunião principal, caso a polícia nos perguntasse o porquê de não estarmos obedecendo ao plano de concentração num único lugar. Lá as “ferramentas de trabalho” seriam distribuídas. No momento em que conversávamos uma rapaziada dele, ou seja, conhecidos extra-Torcida estavam fazendo um levantamento para avaliar qual “Horda” da Organizada Jovem estaria mais vulnerável. Na verdade, eles estavam finalizando esta pesquisa, visto que estavam há uma semana e meia levantando estas informações. Desta maneira, a Horda que fosse escolhida para ser atacada, seria vítima, em primeiro lugar, da nossa superioridade numérica, além de termos a exclusividade da mais preciosa das armas: O fator surpresa.

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O Nélio fez questão de acelerar a conversa e me adiantou que enquanto estávamos batendo aquele papo, o grupo de ataque já estava se dirigindo para a concentração pirata que havia sido escolhida. O Kid tinha fornecido o ônibus e estava bancando o churrasco que pela tal concentração pirata estava rolando também. Era um disfarce perfeito. Um churrasco inocente era realizado enquanto o grupo era reunido com a finalidade de se dirigir para a concentração oficial. Caso a polícia nos abordasse, ou qualquer outro problema surgisse, a resposta seria que estávamos nos dirigindo para a concentração pré-estabelecida com a polícia. O grupo de ataque era formado por aproximadamente noventa pessoas. A maioria dos “soldados” eram moradores do morro do Coice, que a bem da verdade, pouco ou nada se importavam com a rivalidade entre os clubes. Só pensavam em matar por toda a sua vida, como diriam os Ratos de Porão. Naquele grupo poderíamos encontrar deportivenses como o “Navalha, Tuti e Bejin”. Mas para todos, a questão importante era a guerra, só a emoção da batalha era o que importava. Se houvesse a possibilidade de pegar a Horda do morro do Arame da Organizada Jovem seria perfeito. Afinal, a favela do Coice e a do Arame eram donas da maior rivalidade na localidade. Nos bailes Funks, pertenciam a lados opostos (o Coice era do lado A e o Arame lado B). As facções criminosas de ambas as favelas haviam disputado num passado médio, o controle de pontos de vendas de drogas, o que fazia deles rivais por serem, também, governados por facções criminosas rivais. Mas o objetivo não eram eles. Seria perfeito, mas a finalidade maior era agredir o máximo possível, quem quer que cruzasse o nosso caminho com uma camisa da Organizada rival. O monitor oficial da Kamikazes era o Nélio, mas na situação vigente, desde que ficou sabendo dos planos de monitoramento da polícia, o Batata é que foi o escolhido para ser inscrito como representante. Depois da morte do Nael, o Batata assumiu o papel de braço direito do Nélio. O Batata tinha visão e maldade no coração. Um cara como ele dificilmente seria surpreendido em alguma situação. Ele nunca falava besteira. Talvez fosse porque ele quase nunca falasse nada. Também quase nunca ria. Era um cara gordo e careca. Lembro-me bem dele numa ocasião na porta do Maracanã. O Deportivo jogaria a final do campeonato com um time do interior. Eu estava com o ingresso na mão

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na porta do corredor das catracas e o jogo já tinha começado. Um rapaz que estava na minha frente teve que voltar por não saber que o seu filho (ainda um bebê de colo), teria que pagar ingresso também. Eu perguntei a ele o que estava acontecendo quando o vi voltando na contramão da fila com um semblante triste e o garoto no colo. Ele me explicou o que havia acontecido na entrada e me disse que teria de voltar para casa, porque sabia que os ingressos estavam esgotados desde o começo da tarde do dia anterior. Eu saquei o meu ingresso do bolso e falei para ele entrar com o garoto. O rapaz me abraçou e me beijou. Eu falei: “Vai que eu dou o meu jeito”. Quando me virei para voltar e começar a busca por outro ingresso, o Batata era o próximo depois de mim na fila e estava olhando o que estava acontecendo. Acho que só ele viu o que aconteceu. Ele olhou para mim e sorriu. Foi a única vez que eu vi o Batata sorrindo. Não sei se este era o motivo do bom tratamento que ele me dispensava. Mas é fato que eu gozava de uma consideração especial junto a ele. Havia um diferencial muito claro no meu tratamento quando comparado aos outros. Eu ficava lisonjeado toda vez que conseguia conquistar a confiança e a amizade de tipos peculiares como ele. Era um indicador da qualidade do meu nível de liderança. Como Presidente eu me sentia cumpridor da minha obrigação, que era corresponder ao máximo às expectativas das pessoas que estavam sob a minha gestão. Às onze horas e dez minutos vimos uma pequena correria na esquina onde a rapaziada fumava uns baseados e cheirava sacos e mais sacos de brizola que o Kid não parava de mandar. Num primeiro momento - já que tratávamos do assunto -, pensamos se tratar de um ataque. Paranoia pura. Bastou um olhar mais atento para o começo da rua, para que víssemos uma viatura da polícia se aproximando. O policial que dirigia a viatura parou o veículo no começo da rua e um pedestre se aproximou dele. Os dois conversaram rapidamente e como se respondesse, o pedestre apontou em nossa direção. Pelo horário não foi difícil deduzir que se tratava de parte do destacamento que faria a nossa escolta até o Maracanã. Eram dois policiais novos, aparentando um ter uns vinte e cinco anos e o outro uns trinta anos. O policial que conduzia a viatura era o único que se comunicava. O outro saiu do carro quando chegou à praça, investigou minuciosamente o ambiente dando uma boa olhada em tudo e depois se sentou - mesmo com aquele calor absurdo - de novo no

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banco do carona da viatura. Exatamente onde estava quando a viatura chegou e de lá não se moveu mais. O policial que falava se aproximou de nós certamente por termos sido o único grupo que não se dispersou com a chegada deles. – Quem é o chefe aqui? - Perguntou ele. – Quem tem chefe é índio... Senhor. Aqui tem representante e monitor... Respondeu o Batata levando aos que estavam a nossa volta à loucura. Enquanto ríamos sarcasticamente, o policial se empenhava em demonstrar que não se abalaria com aquele tipo de comportamento. Que havia recebido um treinamento para lhe dar com a nossa falta de bons hábitos, mas por dentro, doido para nos aplicar uma sessão de porradas bem dadas na cara. – Tá bom, tá bom seja lá quem for você. Cadê o monitor? - Retrucou o policial devolvendo o sarcasmo com o desprezo absoluto àquela merda de título. – O meu romaneio diz que vocês estariam num volume de quinhentos a seiscentos integrantes. Aqui não estou vendo cem... – Pois é. É que a nossa organização trabalha com uma margem de erro bastante folgada... Fez questão de responder Nélio. - O policial contevese e não demonstrou nenhuma irritação. – Então você é o monitor? - Indagou a Nélio o policial. – Não senhor. O monitor é o rapaz aqui. - Prontamente desfez a suposição do policial apontando para o Batata. O policial não se conteve. – Já que tu não é porra nenhuma, então por que tu tá falando pra caralho? Vai baixar noutro terreiro, anda, anda, rala. - E esta foi a deixa para nos afastarmos e começarmos a dar o andamento prático que o plano pedia. Afinal, já era onze e meia. Quando me virei para acompanhar o Nélio, o meu olhar cruzou com o do policial que estava dentro da viatura. Ele nos observava atentamente em silêncio passando seguidamente nos cabelos crespos, porém cortados bem rentes ao couro cabeludo, uma dessas escovas muito comuns em bancas de camelôs. Daquelas que você fixa entre os dedos. Não demonstrei surpresa, medo ou susto quando constatei que ele nos observava quando nossos olhares se cruzaram enfim. Afinal, eu já tinha algum tipo de experiência naquele tipo de situação de modo a não me denunciar com gestos bruscos ou sustos. Mas é claro que eu entendi que aquele policial havia nos decifrado e nos identificado. De alguma forma ele me passava a ideia de que já detinha a certeza que alguma merda bem fedorenta sairia de nós.

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Difícil para ele seria saber o que “comeríamos”, digamos assim, para que nossos intestinos maléficos processassem esta tal merda fedorenta. Infelizmente para ele - e felizmente para nós - este seria um segredo muito bem guardado. Enquanto nos dirigíamos ao carro que nos levaria a concentração pirata, o Fusca azul do pai do Nélio, atentei para a presença de quatro caras bebendo e conversando entre si animadamente em frente as barracas onde as bebidas estavam sendo distribuídas. Durante o tempo todo em que estive no ambiente, eu não os havia notado. Era impossível um grupo tão peculiar não ter sido notado. Um grupo com características muito parecidas com qualquer grupo de policiais à paisana de folga se divertindo, é algo muito fácil de identificar. Mas como eu tinha outros interesses que exigiam a minha mais absoluta concentração, dei de ombros e me satisfiz com a ideia de que eram eles outros penetras, ou até mesmos, policiais considerados na área, curtindo as suas folgas e bebendo uma cerveja gratuita. Afinal, o que não faltava na pracinha eram os policiais. Todos gostam de moleza. É claro. Todos têm o direito. É claro. Somos brasileiros. Um dos policiais destacados para nos acompanhar (o que se comunicava), demonstrava franco interesse em participar da festa, mesmo que no seu lugar próximo à viatura. O Batata, que sabia de “psicologia policial”, mandou a Tatinha e a Lita (duas das mais belas mulheres da Farândula feminina) levarem dois pratos de churrasco e duas garrafas de cerveja para os policias. “Ô Tatinha, Lita! Junto! Rápido!” – Gritou o Batata terminando de preparar os pratos. “Vão lá as duas entregar estas encomendas para os dois vermes. Ó! Aquela simpatia valeu? Vejam se eles soltam alguma coisa. Se não soltarem tá tranquilo. Só distraiam os dois para eles se esquecerem de monitorar o movimento da rapaziada que já está ótimo. Agora vai porra! Vai, vai, rala...” As garotas não se ofendiam com o tratamento de cachorro que o Batata dava a elas. Elas queriam era tirar alguma vantagem dele. – O que você vai dar pra gente em troca? Perguntou a mais tesuda das duas, a Tatinha. – Amanhã eu vou levar as duas pra dar um rolê no shopping, demorou? Respondeu Batata, dando tapinhas na bunda da deliciosa Tatinha. – Valeu! Responderam as meninas, que de posse dos pratinhos lotados de carnes, partiram em direção aos PMs.

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Parece que a estratégia deu certo. Até o policial que estava sentado na viatura, com cara de quem ia causar algum problema, saiu do carro todo solicito para receber as meninas. Pronto. Aqueles dois não dariam mais problemas. O Batata deixou um moleque encarregado de não deixar a cerveja deles acabar. E assim foi. A hora da saída determinada por nós mesmos no fax foi às treze horas. Portanto, o tempo era curto. Entramos no carro e andamos uns dez minutos, até chegarmos à praça “Odilon Felipe Neto” no bairro do Brejo. Lá acontecia um churrasco, como o Nélio já havia mencionado que tinha mais cara de álibi do que festa. Quando estacionamos e saímos do carro, o pessoal veio imediatamente nos saudar. Mas imaginem qual não foi a minha surpresa, quando vi os elementos que chamaram a minha atenção no churrasco - aqueles com cara de policiais de folga -, encostados num Monza com insulfilm conversando do outro lado da calçada. Os quatro estavam de óculos escuros, calça jeans, tênis Olimpikus, blusões surfista para fora das calças, e, claro, algumas peças de ouro. Enquanto eu fazia este levantamento particular das indumentárias dos quatro, fui desperto da minha análise pela chegada abrupta de um Gol branco também com insulfilm. O carro para onde eu estava com o Nélio e buzina uma única vez. Pareceu-me só haver o piloto dentro do Gol, já que o vidro estava à meia bomba. Eu estava de pé no meio-fio de frente para a porta do carona. De repente, escuto um pedido de licença e sou obrigado a dar um passo para o lado de modo a poder possibilitar a entrada no Gol branco de um dos quatro elementos de blusão. Na minha posição pude ouvir o curto diálogo deles. – Cadê? Perguntou o elemento de blusão que depois obtive a confirmação, era de fato um policial militar amigo do Nélio. – Ali, ali. No saco de papel responsa. O jogo é rápido. Respondeu o piloto do Gol com uma voz rouca. – Hã... Respondeu o cara de blusão pegando o saco e finalizando a história. Eu fazia ideia do que poderia ser aquilo, claro, aliás, eu fazia mil ideias. Vi o elemento de blusão surfista sair do Gol e se dirigir ao Monza. O Gol saiu imediatamente em disparada. Os outros três elementos que estavam encostados no Monza, ao constatarem que o quarto elemento se

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aproximava voltando ao grupo entraram imediatamente no Monza, deixando o banco do carona vago para que ele - o que havia feito o resgate do saco no Gol - se sentasse. Eles saíram em disparada e o Nélio, que conversava com uma rapaziada do outro lado da rua, fez um sinal tipo “calma” para mim. Algo como “tudo está sob controle”. Logo após a saída do Monza o Nélio começou a agrupar todos e a acomodá-los dentro do ônibus. Eu, normalmente, levava umas duas horas para conseguir o que ele conseguia em dez minutos. Antes de todos atenderem ao pedido do Nélio e se acomodarem no ônibus rumo à guerra, o Nil - um dos cabeças do ataque - apareceu com um saco de lixo preto dos grandes, de onde saíram várias e várias caixas de morteiro tipo 12x1. As caixas de morteiros eram rasgadas com o máximo de urgência e os morteiros colocados nas cinturas sob as blusas. Por trás do tumulto gerado pela aglomeração da distribuição de morteiros, um grupo de quatro rapazes fazia várias viagens até o ônibus estocando um número enorme de cabos de enxada, barras de ferro e paralelepípedos. Todo este material era colocado num fundo falso sob o assoalho do ônibus pirata. Depois que todos estavam acomodados, tive a infeliz iniciativa de perguntar ao Nélio, detalhes sobre a concentração principal dos nossos rivais. – Ô Nélio... Como é a concentração dos “alemão”? Daí como se tivesse esperando por esta pergunta, ele se volta para mim e diz: – Tu quer ir lá vê? A gente passa longe, por um contorno que tem. É uma praça que tem muito trânsito. Vamu lá cara. A gente troca de camisas e coloca um boné. Vamos? – Tá. Acabei cedendo. - Eu percebi que estava num ponto da história, onde nada mais poderia ser ponderado. Um lugar onde não se poderia dizer não para nada. O que mais eu poderia responder? Eu já tinha ido longe demais para me permitir alguma cautela. Agora teria de ir até o fundo. Então me veio aquela sensação de novo. Dor de barriga tipo cólica e uma tremedeira incontrolável nas pernas. Eu só repetia o mesmo mantra: “Eu não devia estar aqui, eu não devia estar aqui”. Trocamos de camisas no carro. Colocamos os bonés e lá fomos nós. Depois que o Nélio disse “chegamos”, devo confessar que meu

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espanto pela proximidade dos pontos me assustou muito mais. Depois de seguirmos uns cinco minutos em linha reta, fizemos umas três curvas e chegamos ao local. A concentração matriz (ou principal), para onde todas as Hordas deveriam se dirigir para formar um único contingente, também era numa praça, assim como o nosso ponto de encontro. Havia uma quadra de futebol de terra batida com uma cerca de arame e tubos de ferro cujo intuito era impedir a bola de ser lançada nas casas da frente nos dias de campeonato na favela. Pelo jeito as grades já não protegiam mais nada. Devido à ação do tempo só restaram linhas de arame enferrujado. Muito capim. Três gangorras sendo uma delas quebrada, balanços, mesas de concreto com bancos de concreto, sendo alguns destes bancos profundamente tortos, vitimados pela ação das raízes de uma amendoeira. A praça era localizada na subida da favela do Pinto de onde vinha cem por cento do contingente comandado por um cara chamado Dente. Fizemos meio contorno na tal praça e pegamos a pista à direita. Não sei por que, mas aquele trajeto do contorno da praça durou bem mais que os segundos necessários na minha mente. A noção de tempo e espaço havia sido drasticamente alterada pela ação do excesso de adrenalina. Antes de terminamos o tal contorno o telefone celular começou a tocar insistentemente. Na nossa cumplicidade silenciosa achamos que seria melhor nos movimentarmos para onde estivéssemos completamente fora do campo de visão deles, para aí sim atendermos ao telefone. Finalmente o Nélio pediu para que eu atendesse ao telefone. – Alô? – Coé Nélio? Tá babado na central deles responsa. - Conversava a pessoa pensando estar falando com o Nélio. Resolvi passar logo o telefone para as mãos dele. – Fala! Hã? Tá. Tá. Então qual vai ser? Sei... Sei onde é. Quanto? Ah não. Dá tempo. O pessoal já tá organizado. Em seis minutos. Já é. - E assim ele se despediu com algo novo para contar. Assim, após ter desligado o telefone, Nélio me explicou que a Horda vinda do “burro” - um apelido dado para um conjunto habitacional - estava atrasada. Ele falou que os caras do Monza estiveram por lá procurando algum bonde vulnerável e viram o ônibus deles sendo guinchado. Isso nos dava uns quarenta minutos até que a garagem da empresa de ônibus enviasse outro. Estávamos voltando

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rápido para a nossa concentração clandestina. Rapidamente ao chegar como tudo estava organizado nós partimos. Andamos uns quinze minutos de ônibus até que chegamos à avenida principal que atravessava toda São Gonçalo: A Avenida “Padre Pedófilo”. O nosso comboio que era formado pelo ônibus e pelo Fusca azul - além do misterioso Monza que não estava às nossas vistas -, seguia as instruções do Nélio e estacionou numa rua paralela à avenida principal. O Nélio conhecia muito bem o lugar. A paralela ficava no alto. Na esquina avistávamos uma Kombi que vendia lanches e cervejas. Enquanto eu me ambientava com o lugar, só ouvia gritos de incentivo tipo “vamos lá”, “é rápido”, etc. De trás do ônibus saíram Nélio, Thuga e Big vestidos com trajes da Kamikazes dos pés à cabeça. O Nélio chamou todos para uma última conversa onde disse: “Todos vão seguir para a segunda esquina. Aquela que é uma rua sem saída. O Nil sabe qual é a rua. Ele já participou deste esquema outras vezes e vai dar as dicas certas para vocês. Eu vou ficar de isca na esquina bebendo uma cerveja na Kombi com o Thuga e o Big. Quando eles virarem a esquina vão poder ver a gente de longe”. Tudo aconteceria num espaço de três esquinas. A Padre Pedófilo é uma avenida de mão dupla. A Kombi ficava posicionada na calçada que dava mão para a Horda vinda do burro, levando em consideração que quem saltasse do ônibus, estaria na calçada onde as três “iscas” se encontravam. O telefone tocou e pela agilidade das respostas deduzi o óbvio. Lá vinham eles, seja lá quem fossem. O Nélio gritou: “valendo”. Todos começaram a se deslocar calmamente, mas de maneira firme para a rua sem saída. Rapidamente chegamos à rua que seria o palco do acontecimento. Dei uma olhada para trás antes de dobrar a esquina e perder o contato visual com o Nélio. Do louco Nélio. Ele estava conversando animadamente com o cara da Kombi e pegando mais uma cadeira, já que o número de cadeiras disponíveis na calçada era insuficiente para os três. O movimento de transeuntes também era quase inexistente. Domingo de tarde todo lugar vira fim de mundo. O bonde do Nélio ficaria na esquina do meio junto à Kombi bebendo cerveja e nós, na rua dobrando a terceira esquina à direita. Eles viriam da primeira esquina dobrando a direita para entrar na Padre Pedófilo. O Nil organizou tudo na rua e ninguém contestou absolutamente nada. Posições, iniciativas, enfim. Tudo. Bastava

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aguardar, o que era o mais difícil a se fazer. Um silêncio absoluto foi determinado tomando aquela ruazinha. Não consegui manter a disciplina e sob os protestos do bonde, me dirigi até a Kombi para me colocar lado a lado com o meu comparsa. Eu precisava tomar uma atitude, afinal eu não poderia permitir que nenhuma história em que eu estivesse presente, o meu nome e atuação fossem coadjuvantes. Eu era o Presidente da Torcida. – Qual foi Máicou? Deu algum problema lá? – Não. - Respondi ofegante. – Eu quero ficar aqui. – Porra! Tá maluco? – Eu vou ficar. Não tem cão nessa boceta pra me fazer sair daqui! – Tá bom, tá bom. Não da mais pra discutir. Não tem tempo. Pega uma cadeira ali. – Não. Eu quero ficar assim. Não quero me sentar. Foi uma resposta infeliz. – Se liga. Se você quer ficar aqui e participar tu vai ter que seguir quem já fez. Do contrário a gente vai abortar a missão e os caras vão querer cobrar de tu, valeu? Então fica na moral, pega uma cadeira com o bigode ali na Kombi e acompanha a experiência sem estragar nada. Decretou o Nélio. Eu obedeci. Para ser sincero fiquei mais tranquilo. Sabia que teria de correr e muito -, mas estava com os caras certos. Também já havia entendido que se caísse, ou qualquer outra coisa não saísse certo, fatalmente não teria chance de sobreviver, já que até a ajuda chegar saindo da rua, eu possivelmente já teria sido massacrado. Enquanto eu pensava nisso tudo com um copo de cerveja na mão, o telefone do Big tocou. – Já? Valeu! Tá, tá, tá... - Falava o Big apressadamente. Depois de encerrar o diálogo, ele participou o conteúdo do mesmo a todos da mesa. – Aí Nélio! Os caras tão vindo. Já tão na rodoviária. O teu telefone tá jogando as ligações na caixa postal. – Merda de operadora! - Reclamou Nélio. – Liga para o Nil e avisa ele Nélio. - Pediu Big. – Bem lembrado.

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O aviso foi dado. O ônibus deles estava a menos de três minutos de um contato visual. Uma expectativa imensa tomava conta de mim. Um dos grandes momentos de ansiedade de toda a minha vida. Com o olhar fixo na esquina de onde eles surgiriam. O sinal de pedestres ficava de frente para mim. Verde e vermelho e... Nada. Verde e vermelho e... Nada. Meus olhos estavam petrificados, fixos enquanto os outros esfregavam as mãos e riam. Felizes. Dissimulados. Estranhos... O sinal continuava verde e vermelho e... Nada. O tempo e o espaço haviam sido mexidos de novo. Verde e vermelho e... Finalmente o ônibus da Organizada Jovem vira a esquina. No meu campo de visão, um veículo branco, todo deteriorado com aproximadamente dez integrantes no teto. Alguns sentados, outros de pé praticando “surf rodoviário”. Nas janelas várias metades de corpos eufóricos se projetavam para fora balançando os braços e cantando algum tipo de grito que eu não conseguia identificar. Nós quatro nos mantivemos cenicamente concentrados e como eu era o único de frente, fazia sorrindo - como se estivesse falando sobre outra coisa - a locução de cada passo deles. Eles falavam comigo olhando uns para os outros. – E aí Máicou? - Perguntou Big olhando para o Nélio. – Já viram a gente? – Não! Tão distraídos xingando os outros na rua. Mas atenção! - Alertei com uma voz branda a todos. Calmamente. – O que foi? - Perguntou Nélio com aquela calma indefectível. – Já viram a gente. Tão pulando do ônibus ainda em movimento e vindo pra cá. Quando alertei dos saltos do ônibus eles resolveram dar a primeira olhada. Juntos pudemos ver uns trinta e cinco, talvez quarenta integrantes da Organizada jovem a uns trinta metros de distância do local onde estávamos parados. A frieza dos meus companheiros foi um fator de destaque para mim. O aprendizado que eu sabia que levaria comigo para toda a minha vida, era justamente esta frieza, este calculismo num momento tão extremo. O Tuga ainda teve toda a calma para dar mais um gole do seu copo de cerveja, enquanto digamos, apreciava a aproximação dos inimigos correndo e gritando em nossa direção. Quando a Horda chegou a uns quinze metros de distância, eu já experimentava, senão a pior, com certeza uma das três piores sensações da minha vida. Mas precisava resistir ao impulso maior de sobreviver,

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de me defender, que naquela circunstância, queria dizer “corra imediatamente”. Eles ainda se entreolhavam, mas permaneciam impassíveis, frios e demonstrando estarem profundamente acostumados à pressão de situações como esta. Na verdade pareciam confortáveis, em casa mesmo, sob toda àquela pressão. Afinal, estamos falando do Nélio e seu bonde. Quando aquele bando chegou a pouco mais de dez metros de distância, o Big se levantou e todos levantamos juntos. Então ele abriu a contagem. – Cavalheiros... Três, dois, um... VAAAAAAAIIIII!!!!”. E saímos derrubando cadeiras, mesas, garrafas, enquanto o bigode reclamava por seu pagamento. Depois que aquele montão de gente passou correndo em perseguição à gente e gritando “pega”, “pega caralho”, “porra”, ele deve ter entendido o que estava acontecendo. Começamos a correr em direção à esquina da rua marcada. Senti que algo havia me atingido. Possivelmente uma pedra na altura do meu ombro direito. Continuei correndo com toda a minha força. Era perto, mas parecia tão longe. Finalmente conseguimos dobrar a esquina à direita. E continuamos correndo. Não consegui ver nada. Ninguém. Pensei: “Meu Deus. Será esta a rua errada? Cadê o bonde?”. A rua era cheia de amendoeiras nas calçadas e carros particulares estacionados também nas calçadas. Era um lugar bastante residencial. No ritmo em que estávamos correndo, logo passamos da metade da rua sem saída e os “alemão” começaram a virar a esquina. Quando perceberam que a rua era sem saída, pareceu-me que foram tomados por uma ganância de sangue maior ainda. Rapidamente eles cruzaram a metade da rua também correndo em bloco, concentrados. Eis que então o pessoal da operação clandestina começa a surgir pulando de cima dos galhos das amendoeiras, saindo de trás dos carros que estavam estacionados, e, até, de dentro de alguns quintais de algumas casas, cercando o grupo de rivais por trás. Em bloco. Quando pensaram em se virar para se defender, a outra metade do nosso contingente se agrupou na frente deles. Viraram o recheio de um sanduíche. Os nossos rivais, num tempo de vinte segundos, estavam cercados por um grupo de quarenta e cinco Kamikazes na sua retaguarda e outros quarenta e cinco na sua vanguarda. Todos os nossos “soldados” portavam cabos de

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enxada, morteiros, paralelepípedos, barras de ferro, etc. Sem perda de tempo ou qualquer poesia o ataque começou. Eles tentavam se espalhar em pânico enquanto os Kamikazes resolveram se agrupar e formar um único bloco empurrando os nossos rivais para o muro onde a rua terminava. O supercílio de alguém veio na ponta da barra de ferro do Big. Um verdadeiro massacre começava a ser promovido. Infelizmente para nós, os integrantes mais notórios, num conflito somos os mais visados. Todos desejam o título de “iconoclasta da hora”. Torna-se muito mais difícil para um famoso participar de um confronto generalizado. Soma-se ao risco inerente de um conflito o fato de serem cobiçados por serem ícones. O cálculo é simples: Aquele que conseguir matar, causar um grande dano físico, ou apenas brigar e sair sem maiores prejuízos de um confronto direto com um destes ícones, ascende - e muito - na hierarquia do universo das Torcidas Organizadas. O “sequestro” é uma prática importada dos bailes Funk. É uma técnica que consiste em criar uma briga dentro da briga principal. No puro improviso, como músicos de Jazz, os participantes do sequestro nada combinam. É uma ação de puro entrosamento. Imagine as duas linhas de frente dos dois grupos trocando golpes. Numa situação dessas, numa guerra dividida em dois blocos distintos, os ataques e as defesas são movimentos coletivos. Se um indivíduo errar um movimento de ataque, ou seja, atacando enquanto o bloco a que ele pertence estiver voltando ou estiver parado na base, ou também, caso permanecer parado na linha de frente enquanto o grupo recua, ele estará no grupo de risco dos possíveis sequestrados. Depois que o indivíduo que comete um destes dois erros é pego por algum membro da linha de frente rival, outros membros se juntam rapidamente à ação da captura. Enquanto isso, a retaguarda avança para a linha de frente para dar cobertura aos que sequestraram, fazendo o “refém” passar para trás de uma nova linha de frente. A função da nova linha de frente neste caso é impedir o avanço do grupo de resgate formado pelos rivais, enquanto a vítima é linchada na quarta ou quinta fila. Nesta ocasião quem fazia questão de se colocar na linha de frente em evidência era o integrante da facção Organizada Jovem conhecido pela alcunha de “Defunto”. A ficha criminal informal dele (aquela que é super minuciosa, mas você não encontra no lugar onde ela

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deveria estar: A delegacia.), era “invejável”. Tráfico de drogas, furtos, roubos, estelionato, receptação de roubos, e até, dois estupros. Ele estava visivelmente embriagado e drogado. Comecei a perceber que ele estava pecando pelo excesso de confiança e iniciativa, e pelo baixo poder de avaliação do perigo da situação. Pecou muito. Numa ida solitária ao ataque, ele levou um abraço de “tamanduá” e foi capturado. Quem o abraçou - o Big era especialista nisso e não perdeu a sua chance - foi puxado para trás por outros dois amigos, finalizando o sequestro numa ação que envolveu três pessoas como se fossem uma só. Perfeito. Num sincronismo que poderia fazê-los caras muito ricos numa companhia dessas de dança da vida. A linha de frente agiu rápido e avançou a quantidade de passos necessária. Como a nossa quantidade de “soldados” era muito superior e, além disso, tínhamos muitas armas brancas, nenhum dos companheiros do Defunto teve como encontrar uma brecha para resgatá-lo. Atrás da nossa linha de frente, para onde ele havia sido levado, ele já era esperado com cabos de enxada, barras de ferro e paralelepípedos. Após uns dois minutos, poucos minutos mesmo, eu o vi agonizando. Depois de terem feito o estrago irreversível eles se afastaram do Defunto como quem perde o interesse. Eu me aproximei para dar uma boa olhada e comprovei o tamanho dos danos. A parte da testa fora completamente afundada. Uma substância muito parecida com gelatina de cor creme escorria por muitos buracos da cabeça dele. Sangue. Muito sangue. Àquela altura eu já sabia que Defunto havia passado de um mero pseudônimo para uma condição peremptória. Ali, no chão de uma rua desconhecida, agonizou e logo depois morreu um futuro. Mais outro futuro... Os pertences de Defunto foram rapidamente saqueados. O cordão de ouro, que era uma marca registrada dele, com um pingente igualmente de ouro que era uma letra “A” - talvez a inicial do seu desconhecido nome - havia arrebentado muito antes da primeira paulada. A carteira estava sem dinheiro. No bolso esquerdo dez papelotes de cocaína com um carimbo com o seguinte termo: “Chupa cabra”. O que caracterizava a droga como sendo de procedência do morro do Extra. No bolso direito tinha talvez trinta gramas de maconha em pedra embrulhados num pedaço de jornal de maneira muito tosca. Nos bolsos de trás foram encontrados vários guardanapos, que, provavelmente, serviriam para a confecção dos baseados. Junto aos guardanapos, também encontramos várias carteiras de identidade e CPFs. Possivelmente estes documentos pertenciam às prováveis vítimas do Defunto. Ele gostava de chegar ao Maracanã jogando estes

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documentos como confetes num baile de carnaval. Esta atitude - acredito eu -, servia para corroborar a imagem maligna que ele sempre buscou passar de forma obsessiva. Às vezes acho que todos nos dedicamos a muitas formas de renovar nossos votos de crueldade por tantos motivos, que deixamos de perceber o principal deles: É que, às vezes, só queremos intimidar para nos defender. Os poucos retardatários da Organizada Jovem que entraram na rua do conflito, ao se depararem com o massacre, fugiram voltando desesperadamente pelo caminho da rua sem saída que já tinham percorrido. Ao alcançarem a rua principal, se depararam com o tal Monza, que com a janela do carona aberta efetuou diversos disparos na direção dos rivais atingindo a um grande número dos pretensos fugitivos que pensaram estar fazendo o certo dando o fora daquele pesadelo. Depois o Monza fugiu sorrateiramente seguindo em linha reta. Por hora sem ninguém saber nada. Ao comando do Nil - dado logo após o som dos disparos chegarem até nós -, todos correram em direção ao ônibus. Estávamos todos satisfeitos com o estrago causado. Muitos feridos gravemente, outros tantos mortos. A operação foi um sucesso! Quando conseguimos assimilar e processar o que tinha acontecido, a sensação de proximidade com o inferno foi se revestindo de um crescendo como numa progressão geométrica. Era claro que o Estado não aceitaria passivamente uma humilhação tão expressiva. O que ocorreu foi uma desobediência, uma quebra de acordo onde o governo depositou confiança como nunca havia feito antes. Poderia ser também que tudo aquilo não passou de um teatro e os nossos governantes fingiram acreditar em nossas palavras de honra, para criarem um terreno propício à nossa traição, e desta forma, terem suas justificativas para aplicar sanções terríveis sobre nós. Trocando em miúdos: Eles aguardavam que nos enforcássemos com nossa própria corda. Podia ser isso também. É interessante registrar, como nada se comentou entre nós sobre o episódio e ao mesmo tempo quantas atitudes de vanglória foram desabilitadas visando um maior cuidado, uma maior preocupação. De certo mesmo é que a nossa atitude não passaria impune. Havia muitas fontes capazes de nos descobrir - o serviço reservado da polícia era só uma delas -, o que tornava qualquer

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tentativa de “manter a disciplina e o silêncio pelo medo” impossível. Até aqueles que estavam do nosso lado poderiam nos entregar - mesmo que sem querer - por mais contraditório que isso parecesse. Alguém buscando informações que fosse sagaz na arte de massagear um ego de um “lóide” até o ponto certo, seria alguém igualmente capaz de arrancar absolutamente tudo dele. Em suma, estávamos bem fodidos e muito mal pagos. Mas era tarde demais para pensar nestas consequências agora. A partir de tais conclusões uma paranóia específica e coletiva se instalou de uma forma tão densa dentro do ônibus, que o silêncio se materializou. O futuro não seria azul. Era claro que todos pensavam na mesma coisa, porque todos estavam com a mesma expressão. Assim voltamos para a nossa concentração oficial com o status de mais uma galera que chegava do seu bairro para se juntar ao contingente que seria escoltado até o Maracanã. Ao chegarmos fomos saudados como heróis. Eu e Nélio chegamos primeiro, porque voltamos no Fusca. Era prudente que não fôssemos vistos chegando junto com o “novo grupo”. Os policiais eram muito desconfiados e poderiam juntar as peças. Bínchi, Dodô e Tchélo vieram a mim ansiosos por detalhes. Eu aproveitei para me vangloriar e deixá-los com a boca cheia d’água. – Calma garotos. Deixem o tio passar. - Falei. – Ahh! Vai tomar no teu cu veado. - Retrucou Bínchi. Senti que rolou um certo ciúme quando o Tchélo pediu a palavra. – Pô... No sapatinho, hein? Nem me pareceu que a gente fecha junto... Disse Tchélo sem esconder a sua decepção para comigo. – Fui convidado mano. Eu nem sabia ao certo o que ia rolar. Mas fica tranquilo. Agora que eu aprendi a fazer a gente vai praticar sempre. Agrupamos todos e partimos para o Maracanã. Tudo muito tranquilo e sem nenhum fato pitoresco. O Deportivo venceu pelo maravilhoso placar de 3 x 1. Voltamos com a escolta de acordo com o planejamento e dispersamos. O plano de Estado era um sucesso. Pelo menos enquanto as notícias do massacre não chegavam. Eu, Bínchi, Dodô e Tchélo fomos dormir na sede depois de dispersarmos o nosso contingente no Méier. No dia seguinte compramos jornais. Todos eles. O máximo que havia era uma nota no rodapé da página de um deles, cujo título era “confronto entre torcedores deixa três mortos em São Gonçalo”. Nós sabíamos que o número de mortos exato era oito. Quatro

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baleados e quatro à base de muita porrada. Ouvimos rádios AM durante toda a segunda-feira e nada. Mais uma vez a mídia ou desprezava os últimos acontecimentos, ou atendia a um pedido de alguém - ou seria “alguéns”? - que teria muito a perder com a repercussão da carnificina, e consequentemente, a constatação do fracasso do plano antiviolência. Para nós isto representava outra reprise. Na segunda-feira às dezesseis horas aconteceu o enterro do Defunto (cujo nome de batismo era Luiz Henrique Almeida). Enquanto ele era velado por volta das quatorze horas e trinta minutos, o sol era insuportável e de acordo com relatos dos agentes duplos (aquele que pertence a uma Torcida, mas tem boas relações com os rivais por serem do mesmo bairro, ou terem estudado junto, etc), dentro da capela se sentia um cheiro forte e desagradável. Os participantes da cerimônia (parentes, amigos, integrantes da Organizada Jovem), começavam a buscar algum conforto para o olfato do lado de fora, na calçada, onde havia um tradicional bar de porta de capela. Enquanto todos se refrescavam com cervejas, água, refrigerantes, etc, o Monza todo filmado com os vidros fechados, passa em frente à capela e ao bar - que eram colados, parede com parede -, onde a maioria dos participantes da cerimônia se encontrava. Numa velocidade de aproximadamente vinte, talvez quinze quilômetros por hora com a mala do carro aberta e uma caixa de som super potente tocando o hino do Deportivo num volume insuportável. Eram os amigos do Nélio colocando mais terror ainda naquela situação. Todos, absolutamente todos correram se dispersando. Todos correram e buscaram se abrigar. Várias camisas da Organizada Jovem fugindo para todos os lados, se jogando ao chão, senhoras idosas chorando... Um clima daqueles. Para finalizar, o integrante do Monza, mais precisamente o do lado do carona, abaixou uma pequena parte do vidro o suficiente para encaixar o cano do morteiro doze por um para fora do carro. O disparo dos fogos foi um ingrediente de pavor final de extremo desrespeito a dor alheia. Na hora do sepultamento, com o contingente reduzidíssimo, composto por uns poucos parentes e amigos mais corajosos que permaneceram após todo este terror, a mãe do Defunto se aproximou do caixão aberto no momento da despedida final (aquela que é feita no meio do percurso até a cova), olhou para o corpo cheio de bandagens e para aquele rosto que se tornara irreconhecível depois de tanta porrada,

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se aproximou e colocou um papel dentro do bolso da camisa gola polo que compunha a mortalha do Luís Henrique. Chorando sem expressão, aquele rosto petrificado possivelmente por vários outros massacres da vida, se aproximou dele mais um pouco e soltou um desabafo bem baixinho. “Não se preocupe meu filho. Ele vai receber o que é dele. A gente se vê em breve”, finalizou a pobre da mãe. O que tinha no papelzinho? O agente duplo - o Cláudio do Merengue - nos revelou que depois de muito indagar, acabou descobrindo que no papelzinho estava escrito o nome do Nélio. Um tipo de macumba, uma vingança, um símbolo da expectativa que ela tinha da justiça. O Defunto não teve epitáfio. Ele foi enterrado em cova rasa. Ah sim! A letra “A” do pingente de ouro era a inicial do nome de sua mãe: Albertina.

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CapĂ­tulo 11

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A viagem dos seus sonhos.

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“Saudações a quem tem coragem Aos que estão aqui pra qualquer viagem” Barão Vermelho

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Pelo menos alguns itens, devo admitir, foram otimizados no tocante aos regulamentos do campeonato brasileiro como um todo. A perda do mando de campo - que antes era adiada e elevada à condição de “solução final” sendo esta evitada ao máximo -, se tornou um castigo, uma punição comum àqueles clubes que tinham tradição de exercer, ou melhor, de exceder, os seus direitos de mando de campo e nunca eram devidamente punidos. Eram aqueles clubes que tinham tradição de permitir e incentivar que suas torcidas cometessem atos de vandalismo e violência, buscando intimidar adversários e árbitros. Dentre suas práticas mais costumeiras, estava o arremesso de objetos em campo mirando jogadores dos times adversários, árbitros e auxiliares (ou bandeirinhas). Neste campeonato até um simples copo d’água que fosse arremessado pela torcida para dentro de campo, passou a representar um verdadeiro filme de horror para os dirigentes. A perda do mando de campo, devido ao mau comportamento da torcida (isso caso o vândalo responsável não fosse detido), obrigava o clube punido a escolher um estádio com cento e cinquenta quilômetros de distância daquele que havia sido previamente escolhido para receber os seus adversários quando o mando de campo pertencesse a este clube. Esta história de ficar jogando objetos dentro de campo era uma postura típica de torcedores do “povão”, gente que não era de Organizadas. O pessoal de Organizadas tinha uma postura que era mais afeita à invasão de campo mirando um filho da puta qualquer que estivesse prejudicando o seu clube (seja este filho da puta o Juiz, os bandeirinhas ou até mesmo um jogador de sua própria equipe que estivesse fazendo corpo mole em campo). Numa destas manifestações extremistas do “povão” o Deportivo perdeu o mando de campo por um jogo. No jogo contra o Olímpico (aquele mesmo da rodada passada onde fizemos aquela lambança), o pessoal perdeu a paciência com o árbitro e seus auxiliares no primeiro tempo. Contra o Olímpico os nervos estão sempre mais suscetíveis. Um impedimento mal marcado e o “povão” revoltado fez chover um sem número de objetos dentro de campo. Sapatos, copos d’água, rádios, pilhas e até uma dentadura estavam relacionados no relatório do árbitro enviado à Federação e disponibilizado horas mais

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tarde ao público via Internet. Fiquei pensando: O que estava pensando a criatura que jogou uma dentadura em cima da porra do juiz? Que ela fosse mordê-lo sem uma boca para comandá-la? Que ela atacaria o árbitro através do poder da mente? É foda cara... Acabamos perdendo o mando de campo. Deveríamos nos preparar porque poucos dias depois o Deportivo recebeu a punição - perda de mando em um jogo -, e, também, recebera propostas de várias cidades do Brasil que desejavam pagar para que o “jogo da punição” fosse realizado em seus estádios principais. Iríamos passar no mínimo duas semanas na estrada (já que numa quarta-feira teríamos um jogo fora contra o Santo Antônio em São Paulo, depois o jogo da perda do mando de campo que seria vendido para a Bahia provavelmente e finalmente o último jogo da sequência de três fora de casa em Minas Gerais); duas semanas estas que viriam muito a calhar depois de tudo que aconteceu. Era época de Copa do Brasil e o campeonato fica naturalmente mais lento, com um jogo por semana às vezes. Seria providencial sair das vistas do governo e de suas consequentes retaliações. Eu podia apostar que àquela altura eles já tinham os nomes dos responsáveis pelo massacre em São Gonçalo sobre suas mesas. Seria fácil. Qualquer policial do serviço reservado poderia levantar estes nomes sem o menor problema. Faria bem sair de cena. Bem, teríamos algumas longas semanas de viagem. Na sede choviam telefonemas de pessoas desesperadas por uma vaga nos ônibus. Até aqueles que não tinham coragem de viajar ligavam para saber detalhes. Para estes, investir algum tempo tentando falar com a sede sobre a viagem já era um prazer, uma aventura. Mesmo que não fizessem uso das informações. Era como concorrer a Megasena com um único bilhete de seis números: Era impossível ganhar, mas já valia o investimento no bilhete só para ter em mãos o direito legitimado de sonhar. Quem você ajudaria? Quem você esmagaria? De qualquer forma não faz diferença. A Megasena só serve para criar fortunas para os filhos da elite ou recuperar aquelas outras fortunas que foram perdidas por pessoas influentes. Enquanto o povo tem os jogos Federais como sua única esperança de dias melhores, os filhos dos ricos, políticos, empresários e outros espécimes da fauna de patifes, anunciam um vencedor que nunca existiu e levam tudo. Eles escondem oportunamente sob o religioso direito ao anonimato que os ganhadores possuem, toda

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uma trambicagem. E o pobre do povo vai perdendo seus valiosos reais durante a vida. Reconstruindo e construindo fortunas para os donos do mundo de sempre. O certo é simples: Se ganhar tem que dar satisfação a todos que jogaram e aparecer nos meios de comunicação. Tem que estar preparado para assumir a responsabilidade de ser rico. Se não está preparado não joga. Enfim. De posse de informações como preço, horário de saída, quantidade de ônibus e outras informações que não comprometessem a nossa segurança - como o local da saída, por exemplo - o “lóide” (termo cunhado pelo Renato Maluco para caracterizar o tipo não muito esperto de uma Torcida Organizada) ficava em casa sonhando com mil e uma aventuras possíveis do lado de pessoas as quais ele sempre ouvia dizer que eram capazes de cometer os maiores atos de loucura. O máximo de contato que os “lóides” tinham com a rapaziada do dia-a-dia da Torcida era feito na arquibancada do Maracanã. Sem diálogos diretos, salvo raríssimas exceções, como em casos de esclarecimentos sobre festas da Torcida ou preços e chegada de material. O pessoal do dia-a-dia não estava disponível. A maioria fazia questão de ser arrogante no alto das suas ausências absolutas de paciência com a postura de fãs que os “lóides” adotavam. O telefone da sede não parava. O Dodô (o nosso experimentado Diretor de Caravanas) quase jogou a toalha. É bastante desagradável fazer o trabalho de peneira. Idosos ligavam querendo ir, casais, pais com filhos ainda pequenos, enfim. Gente que não fazia a menor ideia do ambiente de uma viagem num ônibus de uma Organizada. O Dodô mantinha o telefone das nossas coirmãs deportivenses no seu campo visual. Bastava alguém não se encaixar no perfil, para que ele providenciasse um remanejamento. “Olha, só tem vaga nos ônibus da Fiel Deportivense”, dizia ele. Assim ele conseguia promover a seleção que seria benéfica para ambos os lados. Já havíamos testado e comprovado. Aqueles que não tinham o perfil acabavam prejudicando a viagem. Ninguém está livre de sofrer um acidente ou de se machucar bastante num conflito ocasional. O que fazíamos questão de frisar era justamente essa linha de raciocínio. Se para nós, que vivíamos intensamente cada nuance de perigo oferecida pela vida numa Torcida Organizada, tudo era muitíssimo perigoso, imagine para gente que não passava de torcedores comuns e bem intencionados? Quando alguém é ferido num conflito, alguns participantes diretos da briga passam a se dedicar unicamente à proteção do(s) ferido(s). É muito oneroso para o

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grupo ter alguém caído no chão, principalmente do ponto de vista da logística. Cada elemento do grupo fora de combate representava um total de três soldados a menos. Precisávamos eliminar estas possibilidades ao máximo. Por isso só viajávamos com as pessoas que escolhíamos a dedo. Aqueles que tivessem mais chances de manterem as suas idoneidades físicas. As duas ocasiões que mantinham a sede transbordando de gente eram respectivamente as vésperas de clássicos e a semana que antecedia uma viagem. O pessoal ficava num alvoroço só. Os tipos que não tinham grana, mas tinha tempo, começavam a bater cartão indefinidamente na sede buscando uma brecha - mesmo que do tamanho de um buraco de agulha -, que os possibilitasse a viajar de graça. Na maioria das vezes todos que se propunham a esta verdadeira romaria, conseguiam alcançar os seus intentos (que era o de viajar a qualquer custo) pelo caminho da insistência. A organização de uma viagem ficava a cargo de uma reunião antecipada como tudo que acontece numa Organizada. Geralmente viajávamos em número de dois ônibus. A cada viagem selecionávamos um número de dez iniciantes - no máximo- por ônibus. Por serem iniciantes não tínhamos como precisar como seria a adaptação deles à estrada. Não poderíamos arriscar ter um bando de homens correndo mortificados. Dez era um número bom. Uma das providências mais urgentes era o contato com os aliados. Geralmente este contato era feito de quatro dias a uma semana antes da nossa viagem. Desta forma, era possível proporcionar tempo suficiente aos nossos anfitriões para que uma série de providências fossem tomadas. Dicas de segurança, cardápio, remessa dos “vales rango” via sedex, agenda de possíveis entretenimentos, enfim... Afinal todos tinham as suas vidas. O mundo não podia para pelo simples fato da nossa chegada repentina. Era necessário ter antecedência neste tipo de coisa. Era como ligar antes de ir à casa de alguém. Assim o nosso Relações Públicas, o Sr. Bínchi, começou a fazer as articulações possíveis. Sim! Possíveis, porque nós não possuíamos alianças em todo o Brasil. Então os contatos começaram visando acionar os nossos amigos existentes.

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– Alô. Por favor, eu gostaria de falar com o gago. – Quem pretende? – É Bínchi da Kamikazes do Rio de Janeiro. – Ô firmeza! Só um instante. - Enquanto o Gago era chamado, uma sequência de cheques roubados era analisada sem grande interesse pelo Bínchi. Não seria possível aproveitá-los. – Alô. Que-quem fala mesmo? É tu nego Bi-Bi-Bínchi? - Era o gago falando. Claro. – Sou eu mesmo! Como tá aí parente? – Tu-tu-tudo bem! – Ó. Estamos chegando. - Avisou Bínchi. – No sábado. Vocês tão de folga na rodada por causa da Copa do Brasil, né isso? – É isso! Pó-po-pode chegar mano! Vamos fazer uma fé-fe-fe-feijoada. – IIIIIIII. Tá bonito. - Feliz respondeu o aliviado Bínchi com menos esta responsabilidade nas costas. – Ó, traz uns do bom aí mano. Valeu tru-tru-truta? – O Dodô já reservou com o primo dele pra não ter surpresa desagradável. Vai ter farinha da boa. – Ma-ma-manda um abraço pr’ele aí e pro Ma-Ma-Maicu também. – Eu mando. Então até lá. – Paz – Paz. A minha amizade com os paulistas começou meio que numa marcha lenta. O Bínchi, o Tchélo e o Dodô conheciam uma galera grande por conta das viagens que eles já tinham feito antes mesmo de serem da Diretoria. Na época que eu tinha me afastado. O Armandão - um dos fundadores da Kamikazes e que há mais de vinte anos morava e trabalhava em São Paulo -, quando foi até a sede da Juventude de Drácula nos encontrar para trocar umas informações, fez questão de acabar com os meus receios. “Olha malandro, a parte de vocês é fazer unicamente a manutenção do que nós conquistamos”, se referia a uma sólida e fiel amizade concretizada por ambas as Torcidas ao longo dos anos. E foi o que tratei de fazer. O meu primeiro contato com eles na condição de Presidente foi na ocasião de um “Rio - São Paulo”. Era um torneio que acontecia antes do começo dos campeonatos estaduais. Uma espécie de pré-temporada.

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Ao chegarmos à sede da Torcida Juventude de Drácula, acabei ficando sozinho com umas cervejas depois de ter cumprido o expediente e ter sido apresentado a todos. Depois do estranhamento inicial resolvi dar um passeio para conhecer os detalhes da sede deles. Era uma diferença enorme da nossa esfarrapada tradição. Havia várias salas, banheiros, vestiários, duas quadras de futebol de salão, cantina, fumódromo, metódromo, camarotes, etc. A Juventude de Drácula, assim como todas as outras Torcidas Organizadas de São Paulo, também era uma Escola de Samba. Em dias de corte de samba ou ensaios as duas quadras de futebol de salão se transformavam numa única quadra de samba. Enquanto eu passeava notei que um grupo de dez, talvez doze caras - entre diretores e outros desconhecidos - me acompanhava com os olhos e continuavam conversando. Tipo como se estivessem falando de mim. Dei uma de “João sem braço” e resolvi passar próximo ao grupo para forçar um contato, ou, até mesmo, ouvir uma “piada”. Rumo à direção deles me dirigi. – Aê carioca. – Sim? Eu? - Virei-me com aquela cara de desentendido, colocando o dedo indicador da mão direita no meu próprio peito. – Faz favô truta. - Dirigiu-se a mim um cara branco, muito magro, sem dentes e com uma touca enterrada na cabeça, apesar do atípico calor na capital paulistana naquela ocasião. – Tu que é aí o Presidente dos Kamikazes aí mano? – Sou sim. – Tu que é o Máicou então? – Sou eu por quê? - Respondi sem arrogância para deixá-los à vontade. Queria que eles tentassem tirar uma onda com a minha cara. – Então chega mais na conversa mano. Eu quero te fazer uma pergunta. Falou o magrelo. – Pode falar cara. – Tu tem a capacidade de levar a gente pra curtir um samba no Rio meu? - Pensei rápido e antes de pesar as consequências da minha resposta disparei. Aquele “capacidade” caiu na minha cabeça de forma ofensiva e sarcástica demais. Como se antes da minha resposta, já duvidassem de mim.

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– Claro que sim. Difícil é ganhar dinheiro responsa. - Respondi na maior segurança, mas já ciente que tinha arrumado mais uma merda para resolver. – É que nóis quer curtir um samba lá e... Tu pode levar nóis numas quebrada boa? – Já tá combinado! O próximo jogo entre a gente é na rodada tal e tal e... Por aí fomos combinando. Sei que tínhamos um mês e mais um pouquinho para organizar tudo. – Firmeza. – Falou. E assim tive que começar a correr. Para a minha sorte Dodô, Bínchi e Tchélo acharam a ideia maravilhosa e não viram os empecilhos que eu vi para trazê-los ao samba. Eles não só compraram a ideia, como também resolveram deixar eternizado na memória da paulistada o dia em que eles vieram ao Rio curtir um samba. O primeiro passo – pensei - era ir até a casa do Seu Geraldo, pai do Damião; um amigo meu do local onde eu trabalhava e que acabou se tornando um grande amigo do meu pai. O Seu Geraldo era da locução da Mocidade Independente. Ele anunciava a programação ao longo da noite. Tinha mais de quarenta anos de samba e de Mocidade Independente. Conhecia geral. Tinha na mão o que pedisse. Por isso é que resolvi bater primeiramente na porta dele. – Ô Seu Geraldo! Como vai? – Ah! Máicou. Tudo bem? E teu pai? – Tá tudo bem seu Geraldo. Ele trouxe a cachaça de Minas que o Sr. Pediu. Ele vem aqui na sexta. – Ôpa. Valeu! Mas... Diz. Tu veio aqui só pra dizer isso ou... – Sabe o que é Seu Geraldo? Eu... – Hã? É pra pedir manda logo que eu tô de saída. – Não, é que eu tô precisando de uns favores... – Uns? Puta que pariu, então vamos lá: Primeiro... - Disse Seu Geraldo com aquela fala desembaraçada. Ratão de samba... Daí eu comecei a explicar que tinha prometido para os paulistas trazê-los, pois era um sonho deles curtirem um samba de qualidade aqui e blá, blá, blá... Não deixei de dizer que eles eram - na maioria - da

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Diretoria da Escola de Samba Juventude de Drácula, que eles eram muito gente fina e eram fãs da Mocidade, etc. Enfeitei o pavão o máximo possível para conseguir convencê-lo. No final valeu a pena. O Seu Geraldo era maneiro. Não criou muita resistência para me ajudar. – Vou te liberar um camarote e vou ver se consigo uns bilhetes de cerveja com o Deputado. – Pô Seu Geraldo... Não sei nem como agradecer. – Mas eu sei: Devolve o que eu tô te emprestando intacto e não me arruma nenhuma confusão na quadra. - Disparou o Seu Geraldo sem nenhuma cerimônia. – Vai rolar aquela moral especial? - Perguntei por um favor que iria elevar o meu status ao de celebridade do samba junto aos paulistas e que seria um segredo só meu e do Seu Geraldo. – Vamos ver, vamos ver... - Fez questão de não dar certeza sobre a realização do que eu havia pedido, numa tática que tinha como objetivo não me dar muita moral. Ele sabia que não podia me dar nenhum poder porque eu extrapolava. Basicamente tudo resolvido. Combinamos pegar parte do dinheiro da venda das credenciais do jogo e fazer uma recepção sem miséria. O objetivo era fazer a paulistada enlouquecer no Rio com as mulatas e com o samba. No dia do jogo fomos até a Via Dutra resgatar os ônibus deles. Depois fomos à praia e foi aquela vergonha boa de passar. Os caras literalmente deitaram e rolaram nas areias da praia de Copacabana. Brancos pra cacete. Depois fomos ao clube para que os caras almoçassem e pudessem tomar um banho. Finalmente pudemos partir para o jogo. Depois de tudo resolvido fomos para o Maracanã. Os paulistas gritavam “farinha” e o Dodô, que foi até o estádio no ônibus deles junto com o Bínchi, distribuía farta quantidade de cocaína. Ao mesmo tempo vários baseados no estilo “vela” eram acesos e rolavam simultaneamente. No Maracanã as cadeiras especiais e arquibancadas eram dos compadres, mas no campo o clima era de guerra. O Deportivo ganhou de 1 x 0 num jogo que teve até briga dentro de campo. Enquanto eles se

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agrediam dentro do gramado nós cantávamos canções juntos nas cadeiras com bandeiras das duas Torcidas misturadas. No Maracanã a Torcida visitante não pode mais ocupar as arquibancadas. São todas obrigadas a ficar nas cadeiras como parte das medidas de segurança. Após assistirmos a vitória do Deportivo e com as carteiras lotadas do dinheiro da venda das credenciais, nos separamos para nos prepararmos para a noite. Os paulistas voltaram para o clube, onde o Tchélo e Bínchi também se arrumariam para depois conduzi-los à quadra da Escola de Samba. Eu fui para outro lado com a desculpa de passar na Escola de Samba para acertar os últimos detalhes. Às nove e meia eu estava na porta da Mocidade como havíamos combinado. Eles não demoraram muito para chegar. – Caralho Máááicou. Que beca é essa mano? Ôôôôô! Humilhou. Nóis veio na simplicidade meu... - Reclamou muito de mim o Sapo, Presidente da Juventude de Drácula na época. – Fica tranquilo responsa. Tô cumprindo uma exigência da Escola. Vocês são nossos convidados. - Aproveitei para esnobá-los indo à forra daquele “cê tem capacidade?” que eles haviam soltado na quadra deles para mim. Eles se referiam a minha roupa pega emprestada - mas que disso eles não sabiam - com o Seu Geraldo. Camisa bege de seda por dentro da calça que era de linho branco, sapatos brancos, cinto branco, capanga pendurada na mão esquerda. De assessórios tinha anéis e cordões de prata. O “defunto era exatamente do meu tamanho”, ou seja, Seu Geraldo e eu vestíamos exatamente o mesmo número. Só os sapatos que eram de número diferente. Mas como todos ao meu redor viviam no samba, não tive problemas para compor o meu visual com mais conforto pegando os sapatos emprestados com outro. Na porta distribui as entradas e dei a cada um dez bilhetes de cerveja. Adverti a todos para que respeitassem o ambiente e evitassem tomar certas liberdades com as mulheres, a menos que estas lhe concedessem tais regalias. “Mancada no samba é vala na hora”. Indiquei o endereço dos camarotes para caso alguém se perdesse na quadra lotada e imensa se comparada à deles. Tudo resolvido puxei o bonde e

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fui o primeiro a entrar, permanecendo na parte da “revista” feita pela segurança, até que todos fossem liberados. Quando o último de nós cumpriu a rotina, adentramos juntos a quadra e... “Atenção senhoras e senhores. Acaba de adentrar os umbrais da Mocidade Independente, o Doutor Máicou da Silva Santos”. - Anunciou o Seu Geraldo atendendo ao pedido pela “moral especial” que eu havia feito. Automaticamente levantei a mão esquerda tal qual um político e saudei a todos que, mesmo sem saberem quem eu era, me aplaudiram. O pessoal quer é prestigiar. Pronto. A partir daí a paulistada enlouqueceu. – Tu é foda mesmo aí ô Máicou. - Falou “Tripa”. O magrinho sem dente. – Que nada, que nada... - Respondi fazendo uso daquela falsa modéstia. Pensei: “Porra! Eu sou o maior filho da puta mesmo”. E ria sozinho. E assim curtimos o samba a noite toda. Cerveja, Uísque e alguns paulistas conseguiram até confiscar algumas das mais belas mulatas que estavam na quadra naquela noite. A partir daí começou um novo capítulo da nossa irmandade com os paulistas. Houve uma reciclagem feita em cima da amizade construída pela velha guarda da Kamikazes e da Juventude de Drácula. Desde então bastava o Rio ou a vida me encher o saco para eu correr direto para São Paulo. Amo São Paulo. O contato com São Paulo estava encaminhado. Era o local mais fácil de viajar devido à proximidade das duas cidades. Logo, os laços de amizade e intimidade eram mais fortes. Essa história de rivalidade que a televisão vivia vendendo não colava pra gente. Nós iríamos para a Bahia - para onde a venda do jogo havia sido confirmada - e Minas Gerais. Na Bahia não tínhamos amigos e nem simpatizantes, mas em Minas a nossa situação era peculiar. O Cruzado, clube tradicionalíssimo do futebol nacional, tinha duas grandes facções e outras tantas menores. A “Crime Branco” e a “Mancha Azul”. Sempre fomos aliados da Crime Branco, até que eles surpreenderam a todos no mundo das Torcidas Organizadas anunciando uma aliança com a Organizada Jovem, e assim, desfazendo anos e anos de amizade e cumplicidade entre nós. Essa atitude gerou uma reação tão grande da Torcida do Cruzado, que parte dela se rebelou e fundou o “Pavilhão Sem Vínculos” que manteve o nosso ambiente fraternal. A Mancha Azul se manteve completamente inalterada no tocante à sua postura sobre a nossa aliança. O Bínchi era o nosso RP, mas a maior amizade existente era a que eu tinha com o RP da Mancha, o

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“Splinter”. Eu nunca perdia uma oportunidade de ir à frente de uma caravana quando havia um jogo em Minas. Lá nós saíamos e curtíamos Belo Horizonte até percebermos que o dia acabara de nascer. Lindo. – Alô filho da Puta. É tu Cara de Rato? - Perguntei já sabendo com quem falava por se tratar de um celular. - Fala Dona Virginiana! - Era assim que o Splinter gostava de me tratar pejorativamente. – Ó... Tô invadindo, hein? – Putz! Tem coisa que eu nem sei se ocê vai gostar. – O quê que foi meu irmão? - Perguntei ansioso já esperando ouvir a maior das merdas. Afinal, tudo era merda ultimamente. – É que eu tomei a liberdade e... – Fala irmão! – E comprei seis ingressos para o show do Skank que eu sei que oces adoram. Mas é pro dia do jogo à noite. Cês tem responsabilidade de voltar com a caravana? – Não! Isso é fácil de resolver. Caralho! Tu é foda. Valeuuuuuuuuuu. Os caras vão ficar loucos! – Vou depositar o dinheiro amanhã. Quanto? – Ô... Deixa quieto. É presente da Mancha “prôcess”. - Foi a resposta que eu ouvi com aquele sotaque carregado de “ésses”. O Skank falava da Kamikazes na canção “Indignação” do seu primeiro disco. Além desse prestígio nós adorávamos o som e os caras eram boleiros. Eu acompanhava o Samuel Rosa desde quando ele pertencia a um grupo chamado Pouso Alto e o Splinter sabia disso. O planejamento era assistir ao jogo, despachar o bonde sob o comando do Érick - um dos que sempre estavam à espreita de uma oportunidade para exercer seu espírito de chefia dentro da Torcida. Era exatamente isso. Não era liderança, mas sim chefia. O Érick tinha cara de galã de novela, de playboy, daqueles bem afetados. Ele se esforçava muito para contrariar esta expectativa e não poupava atitudes. Estava sempre dando lições de moral e companheirismo. A parte de Minas estava fechada e a volta já tinha um responsável, o que nos possibilitaria ficar na cidade para assistirmos o show. Na segunda-feira (véspera da viagem), o Dodô havia conseguido fechar e enviar o romaneio de viagem para a empresa de

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ônibus contratada. O romaneio é um documento exigido pela Polícia Rodoviária Federal, onde devem constar os nomes completos dos ocupantes do(s) ônibus(s), número do documento de identidade e suas respectivas cadeiras ocupadas. Mera formalidade, mas sem o envio de um fax contendo estas informações, as empresas não costumavam liberar seus ônibus. Não que os donos de empresas de ônibus fossem tão corretos, mas a ausência deste documento acarretava pesadas multas para eles. A coisa tendia a piorar caso um menor de idade sem autorização do responsável estivesse no ônibus. Daí termos outro motivo pela preferência pelos ônibus piratas. Os piratas não exigiam documentação e jogavam com a sorte e, também, com a facilidade de corromper um policial rodoviário federal com quantias módicas, insignificantes. Com todas as providencias legais devidamente tomadas o horário da viagem foi marcado. Como o primeiro da sequência de três jogos era em São Paulo, não havia necessidade de uma grande antecedência na saída. Marcamos a saída para as sete e trinta da manhã de terça-feira, pois o pessoal exigiu que chegássemos um dia antes para aproveitar o samba que rolaria na quadra. Calculávamos que o pessoal chegaria às nove e meia da manhã. E assim o fizemos. Às oito e trinta da manhã os ônibus já estavam estacionados na rua de trás à rua do endereço da sede da Torcida. Era um local bastante seguro nos dias de semana durante o horário comercial e aos sábados até às quatorze horas. Devido ao grande volume de comércio, o número de seguranças particulares abundava. Claro, devido ao fato de sermos estabelecidos, também contribuíamos com a segurança particular. Aproveitávamos o fechamento do movimento semanal para distribuir prêmios para os seguranças ou pagar algumas rodadas de cervejas. Na verdade éramos os que mais faziam uso da segurança. A título de curiosidade, outros dias e horários, quando não podíamos contar com a segurança particular do comércio dos arredores da sede, nos concentrávamos na sede do clube. Simples! Às nove horas terminamos a contagem e começamos a dividir o número de integrantes, de modo que a força de ataque ficasse equilibrada em todos os ônibus. Eu e Bínchi no ônibus número um, que é o ônibus de frente, o mais bem preparado para situações de conflito. Dodô - e sua inseparável prancheta de acrílico - e Tchélo como

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responsáveis pelo ônibus número dois. É necessário dividir, também, a liderança. Só assim é possível conquistar. Conquistar o precioso direito de voltar inteiro para casa... Eu e Bínchi fomos os últimos a embarcar. Eu ainda ouvia o Bínchi resmungando que achava que devíamos ter contratado escolta e blá, blá, blá. Ao entrar no ônibus eu sempre fazia um discurso rápido. Todos estavam felizes. Nas nossas mochilas todo o nosso material básico: Cigarros, muitos gramas de maconha que nos foram enviados pelos muitos amigos gerentes de bocas de fumo espalhados pelo Rio, bebidas, os nossos preciosos “vales alimentação” e outros gêneros. Tudo que fosse comprometedor era colocado no teto e no fundo falso do ônibus. Lá atrás do ônibus ficava a concentração da patifaria. Sentados nos braços das poltronas, outros de pé próximos ao banheiro, fumando vários baseados antes mesmo de sairmos. Renato Maluco já tinha montado a sua “tendinha” dentro do ônibus. Ele vendia sanduíches, sucos, brizola, maconha, cigarros (maços e varejo), comprimidos, etc. No mesmo “ saco de gatos”, estavam Ninho, Lelé, Boca de Ralo, Tuti de São Gonçalo e PC. Todos viciados, favelados e desocupados. Também, só na condição de desocupado tempo integral para participar de uma viagem tão longa. O ônibus partiu e começamos a pegar a estrada. Assim que começou a viagem eu ouvi o primeiro “doze por um” sendo disparado pelos caras da parte de trás. Automaticamente à entrada dos ônibus na primeira via expressa, o Boca de Ralo se levanta e todos o acompanham. Ele começa a cantar uma singela música:

É HORA DE BRINCAR É HORA DE ALEGRIA É SÓ ACOMPANHAR O QUE DIZ A MELODIA Esta música era a senha para o começo das atividades de “batismo”. O grupo que comandava o evento era o mesmo de dez que se concentrava nas últimas poltronas. Mas é claro que o ônibus todo participava (desde que já tivessem participado de uma viagem pelo menos). Todos, sem exceção, haviam passado pela mesma terrível

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experiência. Logo, não viam a hora de transmitir aquela tradição ao novo grupo de iniciados. O grupo de dez que iniciava os “festejos” ia de poltrona em poltrona onde estivesse sentado um novato. E cantavam: “Vamos bater palmas. Pá, pá, pá, pá, pá”, e então, todos aplicavam juntos violentos tapas ao mesmo tempo no escolhido e seguiam: “Vamos bater pé. Pé, pé, pé, pé”. Neste momento, outro novato era arremessado no corredor do ônibus e violentamente chutado. Os responsáveis por aplicar os golpes não escolhiam lugar. Rosto, estômago, testículos... Qualquer lugar era um bom lugar. Depois repetiam o ritual, desde a música sarcástica até o último golpe com todos os novatos. Quanto mais um dos iniciantes demonstrava a sua irritação, quanto mais houvesse protestos, mais a brincadeira tomava ares cruéis. Mais torturas com menos espírito lúdico. Os “antigos” diziam que qualquer um novato que manifestasse qualquer descontentamento quanto aos métodos aplicados no batizado, estariam manifestando uma posição contrária às tradições da Torcida. Afinal, todos os antigos um dia foram novatos. Todos passaram com fé pelas provações da primeira viagem como homens. Sem reclamações nem choradeiras, independente do volume de agressões. Era considerada inadmissível, uma petulância indescritível se dar o direito de manifestar alguma insatisfação. Na verdade era uma honra que os acompanharia como um selo, um certificado de qualidade. Pelo menos fingíamos acreditar nesta balela para agredir os outros, nós que éramos considerados antigos viajantes da Torcida Organizada. O ritual de iniciação - ou batismo - era mais um dos muitos demonstrativos de nossa selvageria. O princípio era bem simples: Todos “marinheiros de primeira viagem” tinham que se submeter a toda a sorte de torturas que fossem imaginadas pelos integrantes mais experientes. A justificativa para tamanha violência era a necessidade de despertar a raiva e o ódio neles; ingredientes fundamentais para que os iniciantes se tornassem o mais próximos de invulneráveis, se despindo de toda a compaixão e loucos para descontar as covardias sofridas dentro do ônibus nos “alemão” que tivessem o azar de encontrá-los pela frente. Resumindo: Era para o bem deles... Contrariando a fé na crença que toda a pessoa que resolve ingressar numa Torcida Organizada tenha que passar por um ritual de batismo, a realidade restringe esta convenção única e exclusivamente, às ocasiões de viagem, dentro dos ônibus somente. É fantasioso acreditar

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que a cada nova adesão a Torcida se mobilize para dar as ”boas vindas” a todos que chegam. Se existe algo parecido, devo confessar que foge completamente ao meu conhecimento. Portanto, o “privilégio” de receber o calor humano dos membros mais antigos é único daqueles que se lançam à aventura de uma viagem para acompanhar o seu time. “Passeio” -viagem muito curta - não vale. Apanha-se, mas não vale. Idas a cidades vizinhas não conferiam ao suposto estreante em viagens, o “certificado de batismo”, mesmo que este passasse por todos os percalços a que são submetidos os “iniciantes” na arte da viagem. Se algum membro que viajou para uma dessas cidades vizinhas, acreditasse ter conquistado o direito a uma nova história, com viagens tranquilas a partir de então, sofreria uma grande e terrível decepção na primeira meia hora de uma nova viagem. Isso além de outros tantos hematomas extras. A vida nem sempre é boa... Depois de todos os novatos devidamente agredidos a primeira fase do batismo estava encerrada. Enquanto os carrascos descansavam e tomavam fôlego para iniciar uma nova seção de torturas, os dez iniciantes eram trancados no banheiro do ônibus durante um período de tempo significativo da viagem. Isso mesmo! Num banheiro onde muito mal cabe uma pessoa eram colocados oito, nove, dez garotos. De tempos em tempos algum filho da puta ateava fogo numa folha de jornal, abria a porta com uma promessa falsa de alívio e jogava a folha queimando no meio deles. O alívio prometido na verdade era mais um sufoco. O pânico dentro do banheiro era absoluto, enquanto nós ríamos pra caralho do lado de fora. A tortura que eu mais gostava era a da “corda”. Depois da primeira seção que era o “passeio na ilha grande” - ou uma estadia no banheiro -, todos eram obrigados a despir-se, mantendo-se apenas de cuecas. Essa atitude tornava os tapas mais eficientes. Os novatos eram amarrados de cabeça para baixo assim como as suas mãos também eram imobilizadas. Todo o ônibus se revezava aplicando socos, chutes e principalmente tapas na região dos rins, o que doía e ardia bastante, enquanto os novatos estavam na posição de morcego dormindo. Se chovesse durante a viagem os iniciados eram colocados de cara na janela e viajavam tomando chuva, independente da temperatura que

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encontrássemos. Se viajássemos a noite toda, mesmo quando tudo parecia calmo e todos pareciam dormir, alguém levantava, acordava um novato - às vezes todos eles - e uma nova seção de espancamento era iniciada. Esta era uma atitude bastante irritante que gerava inúmeros protestos e revoltas por parte dos batizados. Mas como reclamar era uma heresia, todos eram obrigados a acordar para que “sanções” adequadas ao tamanho do abuso cometido com a reclamação fossem aplicadas. A medida preferida neste caso de insurreição era o corredor polonês. Os novatos iam e voltavam inúmeras vezes, enquanto nos colocávamos um de frente para o outro deixando somente espaço para que eles passassem pelo meio do corredor do ônibus. Depois de cansados de tanto bater íamos para as poltronas e fazíamos com que eles coubessem no porta objetos que fica acima das poltronas. Ali os iniciados ficavam até a tortura seguinte ou à volta ao banheiro. Eu, Dodô, Bínchi e Tchélo tínhamos nossos próprios planos para esta viagem. Pretendíamos nos destacar do grupo logo após o último jogo para fazermos uma visita à tia do Dodô no interior de Minas. O Dodô nos contou que o tio dele, marido da sua tia, havia falecido há seis meses e que seus primos estavam pelo mundo. Alguns trabalhando, outros estudando. Ao todo eram onze filhos que a “tia Maria” (este era o nome da tia do Dodô) havia colocado no mundo. Oito rapazes e três mulheres. O Dodô nos convidava para fazer este passeio há muito tempo. Ele não perdia a oportunidade para exaltar as qualidades “terapêuticas” da cachaça que seu falecido tio produzia na fazenda, além do volume impressionante de belas mulheres que se concentrava no minúsculo centro da cidade. Ele sempre disse que elas enlouqueciam com a chegada de forasteiros e essa era uma das nossas intenções: Fazer contato e persuadi-las a nos acompanhar até a fazenda, pelas matas... A viagem continuava até que chegou o momento da primeira parada para a alimentação. Antes de pararmos, os avisos e recomendações eram devidamente feitos. – Cavalheiros! Aquele que prejudicar o grupo devido à falta de eficácia em seus métodos será devidamente cobrado dentro do ônibus. Tenham cautela e boas ”compras”. - Encerrou o breve pronunciamento Dodô. – Não se esqueçam de pegar o “vale refeição” com o Sr. Bínchi. Bom apetite! - Assim foram todos autorizados a começar o banquete.

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O “vale refeição” era como chamávamos o golpe da comanda. Na maioria destes restaurantes, o sistema usado para controle do consumo é o da entrega da comanda no exato momento do ingresso no recinto. Em caso de perda desta comanda uma multa de quase um salário mínimo deveria ser paga. Nesta comanda os funcionários marcam o que vai sendo consumido preenchendo os campos “bebidas”, “salgados”, “refeição”, etc. Tudo de acordo com a quantidade consumida. Ao sair do recinto a apresentação da comanda é fundamental. É com base no que está marcado nela, que o funcionário do caixa calcula o valor da refeição que foi feita. Pois bem. Semanas antes da viagem pedíamos aos nossos muitos integrantes que viajavam a trabalho pelo país, que forçassem o erro do funcionário que distribuía as comandas fazendo uso de suas aparentes idoneidades. Eles normalmente aguardavam a entrada do restaurante receber um número grande de clientes - geralmente a chegada de um ônibus de viagem ou de excursão -, para se valerem da confusão. Assim eles entravam, recebiam a comanda e a colocavam no bolso imediatamente para logo depois dizerem: “Você ainda não me deu a minha comanda”. O funcionário levado pela aparência e tom sério do nosso integrante não pensava duas vezes para atender a sua solicitação e dar-lhe outra comanda. Assim, o nosso integrante de posse de duas comandas usava uma para se alimentar e pagar o valor integral da mesma. Normalmente. A outra ele guardava e a trazia para nós. Esse procedimento de captação de comandas era feito o máximo de vezes em um maior número de restaurantes possível. Ao voltar para o Rio o nosso integrante nos passava a comanda - ou comandas – adquirida(s) e nós a repassávamos para uma gráfica qualquer. Encomendávamos os talões de acordo com as nossas viagens. Todo integrante ao sair do ônibus para se alimentar recebia uma comanda de nós. Ao entrar no restaurante recebia outra dos funcionários da recepção. De posse de duas comandas, podíamos comer infinitamente preenchendo uma das duas comandas. Numa das comandas normalmente colocávamos um biscoito, ou um guaraná para não levantar suspeitas. A outra comanda, a cheia, sumia na hora de passar no caixa e a que apresentávamos era a que constava um refrigerante. Os restaurantes de beira de estrada quase nunca trocavam o formato das boletas. Isso fazia das comandas uma moeda forte no mundo das Torcidas Organizadas. Na verdade, a maneira mais comum

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de obtê-las com maior facilidade é fazendo encomenda às nossas aliadas e, desta maneira, comida não era problema durante as viagens. Sendo assim após a distribuição dos vales fomos ao almoço. Devia ser umas três e meia da tarde e todos estavam famintos depois de tantos baseados. Ordeiramente entramos de modo a não despertar dúvidas sobre o nosso comportamento, o que consequentemente faria o gerente do estabelecimento acionar a polícia. Geralmente os gerentes de restaurantes de beira de estrada, não davam uma oportunidade sequer para um ônibus que fosse identificado como sendo de Torcida Organizada. Bastava que este parasse no estacionamento do estabelecimento para que a polícia fosse imediatamente acionada. Sem motivos. Com o esquema da comanda a polícia não era empecilho para o sucesso do golpe. Mas a cautela dizia que “sempre que for possível manter a polícia à distância, não deixe de fazê-lo”. Rapidamente todos se dispersaram em grupos. Alguns foram para a churrascaria do restaurante, outros para o setor de sanduíches e salgados, o pessoal da laríca correu para cima das tortas, enfim. E assim o pessoal comia o quanto podia. Na hora de sair, todos já sabiam que a regra era um por vez. Todos se banqueteavam quando a turma de retardatários apareceu. O Bínchi - que havia ficado para trás por estar distribuindo os “vales” -, Boca de Ralo e mais uns três ou quatro. O primeiro a passar na roleta do restaurante foi o Vado “Boca de Ralo”. Tido como louco até pelos loucos, Boca de Ralo havia passado duas vezes pela prisão. A primeira vez por assalto à mão armada e a segunda por furto. Ele gostava muito de assaltar velhinhas na porta de bancos (a famosa saidinha de banco), mas a sua especialidade mesmo era o furto de rádios de carro. De longe, observando aquela movimentação, percebi que de todo o grupo, o mais apressado para passar na roleta era ele, e devido a sua vasta experiência, julgava que ele já tivesse tempo suficiente de aprender que tais precipitações e demonstrações de ansiedade não eram benéficas ao grupo. Logo, a minha inquietação parecia se responder quando vi o Boca de Ralo se dirigindo ao banheiro, só contendo o seu ritmo alucinado quando percebeu que à sua frente estava um deficiente físico se locomovendo com muita lentidão com suas duas muletas de alumínio. Vi que a pressa do Boca de Ralo não passava de uma necessidade desesperada por uma boa cagada num banheiro legal.

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Dissolvi a minha concentração no Boca de Ralo quando o meu pedido chegou à mesa. Uma maravilhosa visão de arroz, feijão, farofa de toicinho, salada, e, dois bifes tipo “orelha de elefante” com batatas fritas. Para completar um Guaraná Antártica de dois litros para ser servido num copo com várias pedras de gelo. Perfeito. Apesar de toda a conveniência que o esquema das comandas nos proporcionava, nem todos eram capazes de aquietar os seus instintos bárbaros. Mesmo estando muito bem alimentados partíamos para o roubo de talheres, lembranças e outras inutilidades que pudessem ser roubadas. O truque certo era aglomerar um grupo num dos setores da lanchonete. Os setores eram divididos, mas acabávamos sobrecarregando os funcionários visto que todos íamos juntos, e apenas um funcionário atendia a todos os pedidos. Enquanto um fazia o pedido, outros faziam tumulto e pediam ao mesmo tempo. O tempo que o balconista levava virado para buscar o pedido de um era suficiente para a ação dos ratos da Kamikazes. A esta altura a prateleira dos biscoitos tinha apenas a metade da quantidade que estava exposta ao chegarmos. A pilhagem ia muito bem até porque o pessoal tinha talento de sobra para a arte do roubo. Os iniciados após se alimentarem fartamente, receberam ordem para sair e aguardar do lado de fora do restaurante e que cada um se colocasse embaixo das quatro janelas que haviam do lado direito do restaurante. Caixas e mais caixas de picolés e sorvetes eram abertas ao mesmo tempo e, aos poucos, cinco, seis integrantes da Kamikazes se juntavam para escolher um picolé. Na rodinha formada a missão de transportar a caixa de sorvete cabia ao melhor observador. O lance precisava ser rápido e a certeza que ninguém estivesse olhando absoluta. A sorte... Bem, a sorte não se calcula; apenas podemos torcer por ela. E assim as caixas de picolés e sorvetes eram transportadas para fora do restaurante pelas janelas e finalmente levadas para o ônibus. Com sorte não fomos vistos. Nenhum dos objetos roubados poderia ser consumido antes da chegada de todo o nosso bonde. Tudo tinha de ser dividido fraternalmente, e, nisso, os iniciados tinham o mesmo direito que os combatentes mais velhos. Era justo. Por coincidência - para aqueles que acreditam em coincidências -, no estacionamento do restaurante acontecia uma vasta exposição, cujo tema me pareceu ser o “peão de boiadeiro”. Como nunca me interessei muito pelos assuntos relativos ao campo, dei uma rápida olhada na

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direção do evento e logo me distrai com outra coisa. O mesmo não posso afirmar sobre a rapaziada. Aquela ocasião repleta de pessoas bem intencionadas que buscavam vender os seus produtos honestamente, era vista como uma oportunidade de ouro para o grupo de “aves de rapina”, afoito por conseguir levar algum tipo de vantagem e roubar o que quer que fosse. Não importando o que fosse. Apenas pelo prazer de usurpar algo de alguém. O Ninho era um desses caras genuinamente cleptomaníacos. Tinha um nariz imenso e salivava muito quando falava. E falava muito e rápido. Era meio gordo e tinha uma prótese na boca que correspondia aos quatro dentes superiores da frente. Era rápido como um raio e como eu disse falava quase sem intervalo. Esperto, mas nitidamente desequilibrado. Este era o Ninho. Muito corajoso ele era tido como o desbravador do grupo. Via oportunidades de roubo onde ninguém via. Quando o nosso estoque de drogas acabava ele é quem se lançava ao desafio de buscar outras fontes juntamente com o seu inseparável companheiro, o Boca de Ralo. O Ninho não havia entrado no restaurante, talvez seduzido pelos muitos atrativos da feira. Pelo menos foi o que me responderam quando por ele perguntei. Deduzi rapidamente que o bolso de alguém ia “chorar”. Terminado o almoço e o processo de pilhagem dado como satisfatório começamos a nos deslocar para a saída paulatinamente. Eu como Presidente e exemplo, tinha que me posicionar dentro do ônibus para, caso algo desse errado, eu tivesse que sair do meu conforto com cara de muito puto depois de um comportamento exemplar de minha parte dentro do restaurante. Na mesa estávamos eu e Dodô. Bínchi e Tchélo se divertiam jogando vários tipos de biscoitos, caixas de bombons, etc. pela janela, enquanto os novatos se revezavam levando as mercadorias para dentro do ônibus. Eles contornavam o restaurante por trás, beiravam a lateral da feira de exposições e chegavam ao ônibus. Posso afirmar que a nossa primeira refeição coletiva no trajeto foi um verdadeiro sucesso. Reunimo-nos em frente aos ônibus (eu, Tchélo, Bínchi e Dodô) para decidir quantas paradas mais nós teríamos. Nesta hora ouço o Bínchi falando algo mais ou menos assim:

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– Ah... Fala sério! Olha lá! Na moral estes caras se superam... - Sem complementar a frase ele virou o rosto como se não quisesse acreditar no que via. – Caralho... Que porra é essa? Não tô entendendo de onde ele tirou aquilo. - Perguntei sem dar o menor sinal de surpresa. Era o Boca de Ralo que saia do restaurante usando duas muletas. Muito semelhantes às duas muletas que estavam com o deficiente que entrara com ele no banheiro. Quando ele se aproximou o Tchélo não resistiu e perguntou: – Que porra é essa Boca de Ralo? - Indagou Tchélo com os braços cruzados e com toda a calma possível de modo a não chamar a atenção. – Botei o aleijado pra dormir no banheiro ué! Deixei ele sentado no vaso, tranquei a porta por dentro e fiquei escoltando até o banheiro ficar vazio. Demorou pra caralho, mas só sai quando não vi ninguém. Aí eu pulei o reservado. Agora que eu tô saindo. Nem comi. - E assim ele foi para o ônibus copiando o andar do deficiente. – Caralho! Vamu ralá! Rápido! Rápido! Vai dar merda. – E tu filho da puta? Perguntou Tchélo para o Ninho. – Que porra é essa? - Era o Ninho chegando no mesmo momento parecendo ter marcado hora pra chegar junto com o seu parceiro de trapaças. – Tô bonito patrão? Pode falar. Tô bonito? - Repetia Ninho com aquele sorriso insano acabando de chegar. Ele havia saído da feira de exposições com uma calça de peão, botas de peão, camisas de mangas longas, lenço no pescoço e um chapéu de peão. O detalhe mais significativo é que ele havia entrado de shorts, camiseta e tênis sem meias. Prevendo o tamanho dos problemas que aquele perigoso tipo de entretenimento nos causaria, bati palmas e falei para que todos entrassem nos ônibus. Ao entrar no ônibus fiz uma contagem rápida e, conforme a comprovação do número certo de ocupantes, mandei os dez novatos para dentro do banheiro e pedi para o motorista partir o mais rápido possível. Safamo-nos. Assim seguimos rumo a São Paulo. Quando conseguimos cruzar a fronteira dos estados vimos à primeira barreira da polícia. Obviamente eles aguardavam gente como nós. Em todos os jogos esta era a rotina. Em absoluto silêncio vimos o policial militar subir as

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escadas do ônibus e dizer: “Boa tarde. Os senhores estão entrando no estado de São Paulo, onde é terminantemente proibido o porte e uso de drogas e armas. A Polícia Militar e o Estado de São Paulo sentem-se honrados em recebê-los e para a segurança de todos os senhores, seus pertences e o veículo passarão por uma minuciosa revista”. Após este comunicado decorado do almanaque de conduta da Polícia de São Paulo o policial atravessou o corredor indo direto à poltrona do Lelé. Este era um caso todo especial. O Lelé era um bufão por opção e um estrategista nato. Ele gostava de chamar a atenção para si e desviar os olhares maldosos dos policiais de todos os estados em que passássemos. O prazer do Lelé era criar personagens. A cada viagem ele aparecia com uma fantasia diferente. Um típico torcedor da geral do Maracanã. Era no Mercadão de Madureira que ele adquiria seus “kits metamorfos”. Às vezes ele era um soldado com capacete de plástico, cinto com cantil, rádio transmissor e pistola de plástico e roupas camufladas. Outras vezes ele era pirata, árabe... Desta vez ele vestia o seu traje de super-homem. O policial se colocou ao lado dele, que mesmo percebendo a presença do policial, continuava olhando para frente. Parado. Duro. Com os olhos arregalados. Até que o PM se dirigiu a ele: “Queira se levantar por gentileza”, falou o PM. Sem nada responder ele levantou-se, se posicionou no meio do corredor, onde foi minuciosamente revistado. Não satisfeito com o resultado da revista o policial deu outra ordem. “Tire toda a roupa por gentileza”, disse o verme paulista. Isso gerou protestos automáticos assim como a resposta silenciadora do policial. – Vocês podem se calar ou irem presos por desacato. – Senhor! - Aproximei-me fazendo aquele tipo acanhado. – Quem permitiu que você se levantasse? Quando eu entrei no ônibus não recomendei que todos permanecessem em seus lugares? Perguntou-me o policial gritando ao ponto em que senti gotas da sua maldita saliva no meu rosto. É fato que algum pessoal de São Paulo, principalmente a polícia, nos odiava. Eu não tirava as suas razões. Afinal, eles já tinham problemas demais, e ter a nossa presença, era um indicativo claro de mais merda dentro daquela privada que era ser policial numa cidade grande. – É que eu sou o Presidente da Torcida e é o meu dever avisá-lo que este rapaz é deficiente mental. - Assim comecei o jogo. Era inevitável o

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constrangimento do policial. Eles eram treinados para identificar certas situações com mais facilidade que nós normais. Não perceber que havia algo de errado com um cara vestido de super-homem era um indicativo bastante incômodo de incompetência. Foi ridículo. – Então saiam! Saiam todos para que o veículo seja revistado. - Gritou o PM, só que desta vez num tom bem mais brando. Era uma maneira de se retratar por ter revistado um retardado. Quem vive conhece... Claro que o Lelé (Luís Antônio) não era retardado. Além do mais, Lelé era um apelido de infância colocado por sua mãe que faleceu ainda na sua infância. Por este motivo ele decidiu preservar o apelido. Ao sairmos do ônibus fomos recebendo instruções para nos colocarmos lado a lado na lateral do ônibus com os braços para o alto e as duas palmas das mãos encostadas na lataria dos ônibus. Como o pessoal é indisciplinado, uma animada conversa foi iniciada, mesmo com todos se sentindo horríveis naquela posição ridícula. Rapidamente aquele que parecia ser o líder da operação nos advertiu. – Silêncio porra! Esta porra aqui tá parecendo um piquenique meu! Quem é o responsável? – Sou eu senhor. Apresentei-me, mas sem sair da posição. – Você não acha que tá muito cedo? O jogo é amanhã às vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos... – É que nós vamos à quadra da Juventude de Drácula senhor. - Respondi pausadamente olhando nos olhos dele. – Perdeu alguma coisa lá? - Insistiu num tom abusivo o Sargento da PM paulistana. – É que eu vou visitar o meu afilhado. Já se passaram quatro meses desde a última visita. - Falei aquilo tudo fazendo uso de alguma emoção calculada. Neste momento, finalmente o gelo foi quebrado. Veio a calhar a história, mas era tudo verdade. Eu e o Tóta éramos amigos e juramos um para o outro, depois que conseguimos nos salvar de uma investida dos rivais da Belzebus, sozinhos, que daríamos os nossos primeiros filhos para o outro batizar. Como ele foi pai primeiro... O Tóta não tinha cargo atualmente na Juventude de Drácula. Quando nos conhecemos ele era

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Diretor de Bateria. Hoje ele trabalhava de contínuo num banco e estava bem mais calmo. – Ah! Quer dizer que você vem a São Paulo sempre? - Soltou a pergunta um PM mais cordial fazendo uso de um tom mais ameno. – Sim senhor. Além de ter muitos bons amigos em São Paulo eu adoro a música feita em São Paulo. – É? Eu sou músico da banda da polícia. Quem você aprecia aqui? – Ah... Quando soltei aquele ar de reticências, percebi que ele achou que eu não seria capaz de responder a um nome sequer, mas... – Bocato, Itamar Assumpção, Vange Leonel e por aí... O policial que estava revistando dentro do ônibus saiu e sem ter conhecimento do já animado papo que acontecia disse: – Está tudo limpo capitão. - Com uma cara sisuda ele deu o seu aval. – Está bem. Podem prosseguir viagem. – Desejam escolta? - Começava a se preocupar conosco o capitão, após se aproximar da parte da frente do ônibus e poder ver o Boca de Ralo com as mãos para o alto com as suas duas muletas encostadas na lateral do ônibus. O capitão abaixou os braços do Boca de Ralo, pegou as muletas e entregou-as como quem diz “desculpa”. – Não! Muito obrigado senhor. Daqui até a quadra deles são no máximo trinta minutos. Não há necessidade de escolta. Como o Senhor pode ver, nós somos um grupo pacífico. Agradeci a proposta, mas na verdade querendo vê-los bem de longe. – Está bem. Não parem para nada. Vão! – Saúde senhor! - Despedi-me na maior das políticas. – Obrigado. Assim fomos nós. Mais uma vez o “truque do porta lixo” havia funcionado e as drogas não haviam sido descobertas. O truque era de uma simplicidade ímpar. Entre o banheiro e as últimas duas poltronas do lado direito, havia um espaço onde fica - em todos os ônibus de viagem - uma cesta de lixo. Nós fazíamos várias bolas de papel com jornal, embalagens do que havíamos consumido, etc. Junto àquele monte de lixo nós misturávamos as drogas embrulhadas com papéis que amassávamos até que tudo chegasse ao formato de “bola de papel” e

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tudo tivesse um visual homogêneo. Os PMs nunca desconfiavam. Era mais eficiente que um fundo falso. Às sete e meia da noite aproximadamente nós chegamos à sede da Juventude de Drácula, que já fervia com uma feijoada animadíssima ou o que sobrou dela - que estava rolando desde as duas da tarde. Samba, cerveja, as paulistanas nisseis - às quais eu desenvolvi uma apreciação toda especial - e os amigos. O perfil deles era o do tipo fanático. O pessoal do Rio dizia que o fanatismo dos paulistas era fruto da ausência de praias, mulheres bonitas e outros tipos de diversão. Eu discordava em quase todos os pontos. Entretenimento foi o que nunca vi faltar a São Paulo, além de belíssimas mulheres como as nisseis, por exemplo. Neste clima viramos a noite. No dia seguinte não tivemos café no desjejum. Tivemos cervejas. O ritmo continuou frenético e assim vimos o dia passar. Depois de várias e várias cervejas e muito bate-papo, a hora de nos dirigirmos ao estádio havia chegado. São Paulo é um lugar tão grande, que menos de dez ônibus era uma quantidade pífia de pessoas para causar algum problema. Ao todo somávamos sete ônibus. Os nossos dois e cinco dos nossos aliados. Como sempre éramos os últimos a entrar aproveitamos aquela seleção ocasional e improvisamos uma reunião. – Aí truta. Firmão? Tá na hora de balançar a roseira dos “Belzebu”. É fita? - Incitou-nos o Presidente da JD, o Sapo frente à possibilidade de atacarmos a Torcida Organizada mais expressiva do Santo Antônio e rival absoluta da gente naquela noite. – Demorou Sapo. Vem no ônibus um de vocês comigo para indicar o caminho valeu responsa? - Apertei-lhe a mão fazendo este pedido. – Firmão! – Valeu disposição! Amigo responsa... - Encerrei o assunto com aquele ar de guerra para colocar geral mais ativo. Estávamos bêbados e isso não era o ideal. Algo sempre dá errado quando estamos bêbados. O Sapo era um cara bem gordo de pescoço inchado. Adorava as drogas do Rio. Quando chegávamos era aquela recepção. Ele me perguntou o que nós queríamos fazer e eu respondi que todos queriam dar um “baque” nos Belzebus, a maior Torcida do nosso adversário

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daquela noite. Perguntei a ele se seria possível e qual seria o grau de dificuldade da operação. – É moleza mano. Hoje não tem ganso, porque é jogo interestadual. Os “Belzebu” devem tá a pampa lá na porta do “shoppis”. Vai tá fervendo deles. Tem como fazer sem grandes dificuldades. Tem que tá atento... Percebi que era possível a partir do momento que ouvi o Sapo falando com cautela. – Então vamos pra concentração deles. - E começamos a subir para o ônibus. – Toca o bonde piloto. Começamos a nos dirigir para a entrada lateral de um shopping. Acho que era Morumbi Shopping o nome. Tudo no mesmo bairro do estádio deles. O Sapo a esta altura era um genuíno coquetel de drogas ambulante. Ele não havia perdido a bússola, mas apresentava um estado bastante alterado. Suava! Quando chegamos à última curva, antes de uma imensa reta que nos levaria direto à concentração dos Belzebus, o Sapo falou alguma coisa no ouvido do motorista que parou o ônibus. – Aí mano. Daqui até lá são uns quinhentos metros dobrando a esquina aqui à direita. Me aguarda fazer uma visita no saco de farinha que a gente sai correndo junto até pegar todo mundo na calçada do shopping. – Como é que é? Todo mundo correndo? Mas vai espantar geral deles. Não. Eu tenho outra ideia. Fica aí. - E destaquei o Sapo das minhas iniciativas. Sair correndo numa linha reta de quinhentos metros faria deste o ataque mais infeliz já organizado no mundo das Torcidas. Chamei o Tchélo, Dodô, Bínchi, Érick e PC (que era o nosso intelectual). Pedimos para que o restante do nosso bonde, sob o criterioso e experiente comando do Renato Maluco nos desse cobertura. No auxílio estariam Boca de Ralo e Ninho fazendo o reforço. Qual fosse o resultado do nosso contato com os Belzebus eles estariam lá. Então depois de uma pequena trama, dobramos a esquina e entramos na grande reta que nos levaria até eles em trajes civis. Escolhi o Érick e o PC, não só por serem bons de brigas, mas por estarem, assim como nós quatro, adequadamente vestidos para dar a impressão de estarmos nos dirigindo ao shopping para consumir ou passear.

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No trajeto não olhávamos na direção deles ao mesmo tempo. Apenas um olhava e fazia um rápido relatório. Disfarçadamente analisávamos e comprovamos que não havia polícia. Vimos que muitos deles estavam deitados e sentados na calçada do Shopping. Foi aí que uma ideia passou pela cabeça do Érick. – Coé Máicou? Se liga! Vamos passar batidão pra dentro do bagulho. Quando a gente tiver lá dentro, conta até três e sai pegando geral que tiver deitado. Na surpresa. - Rimos como se o Érick contasse algum caso engraçado e todos aceitaram a ideia. – Demorou! - Respondi. – Já é. - Bínchi se manifestou favorável àquela ideia. Assim seria. Quando passamos por eles, tomamos o cuidado de não falar nada para que o nosso sotaque não nos denunciasse. Entramos no shopping e nos viramos automaticamente. Os “gênios” que deveriam aguardar o primeiro contato físico para irem ao nosso encontro, resolveram antecipar o momento assim que nos viram entrando no shopping. A ideia do Érick era boa, mas não fora compartilhada com o nosso grupo de apoio. Isso rendeu uma precipitação. Quando ensaiávamos a contagem regressiva para o ataque surpresa, vimos pelo espelho da porta giratória de entrada, que todos se levantavam buscando uma melhor visualização de algo. Eles não conseguiam identificar os ônibus, mas pareciam estar em alerta olhando para o começo da grande reta onde estávamos concentrados. Então, quando eles menos esperavam - e alguns mais covardes corriam para dentro do shopping para se refugiar -, nós saímos do shopping e os pegamos. Alguns de frente. Outros como Judas, pelas costas. Nem mulher escapou. Uma deliciosa covardia... – É a Kamikazes cuzão! Fala que é a Kamikazes do Rio filhas das puta! Gritavam todos. A massa de Belzebus correu junta para a entrada principal do shopping e essa foi a sorte deles, devido a intervenção dos seguranças do shopping. Os nossos ônibus chegaram bem em tempo de ver o Bínchi desmaiar um dos Belzebus que fugiam com uma pernada quase letal. Cortesia dos anos e anos a serviço do boxe tailandês. Todos da JD batiam palmas e gritavam “aê carioca”, “aê”. A rivalidade entre os Belzebus e a

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Juventude de Drácula era imensa. Daí o motivo de tamanha ovação para o ato do Bínchi. Corremos e entramos rapidamente nos ônibus. Nem nos preocupamos em roubar os casacos que fossem possíveis – troféus tão importantes. O nariz quebrado de um gordinho que continuou sentado e um babaca desmaiado foram os melhores troféus possíveis. Partimos para o estádio comemorando como se já tivéssemos vencido a partida. O pessoal dos ônibus cantava: “PORRA, CARALHO, PIROCA NO TEU CU KAMIKAZES E JD DÃO PORRADA EM BELZEBU” Eu sempre amei São Paulo ao contrário de muitos dos meus conterrâneos. O oposto do amor era o que eu sentia pelo trânsito da cidade. Levamos uns trinta e cinco minutos para chegar ao estádio. O importante e peculiar nisso tudo, é que o shopping, a briga e o estádio estavam num mesmo bairro. Nestas ocasiões nos tornávamos vulneráveis, ali, parados e dentro dos ônibus. A tática consistia em todos saírem dos ônibus e cobrirem o percurso ao lado dos mesmos caminhando. Com toda a paciência do mundo começamos a jornada a pé. Uns e outros subiam no ônibus para consumir um tóxico. Depois desciam para que outros subissem. Nesse rodízio fomos aliviando o tédio que aquela tarefa representava. Depois de tanto caminharmos e pararmos, conseguimos chegar na rua reservada aos visitantes. Tudo com cara de jogo. Absolutamente nada suspeito. Famílias comendo sanduíches e bebendo refrigerantes, ambulantes vendendo penduricalhos do Santo Antônio... Enfim. Começamos a passar por entre os torcedores e mantivemos respeito total a idoneidade física deles. Claro que ouvíamos uns xingamentos e os devolvíamos. Mas o “povão” do Santo Antônio era simpático. Sorria, xingava, brincava, pedia para tirar fotos com a gente, dava cerveja... Nós ficamos à vontade na chegada. A hostilidade que existia partia do pessoal da Juventude de Drácula com o povão do Santo Antônio e vice-versa. Nada de desesperador, porém. Enquanto passávamos pelo meio da rua, percebi que no meio daquela rivalidade festiva não havia encontrado ainda um policial. Eu estava meio letárgico depois de tanta bebida e pílulas, mas percebi isso.

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Ouvi um som muito peculiar. Era uma pedra que caia próximo de nós. Não tão próximo a mim, mas o suficiente para me despertar. Na nossa frente, uns cento e cinquenta metros, me deparei com uns duzentos Belzebus completamente uniformizados e enfurecidos fazendo chover pedras sobre nós. Como sempre os prejudicados eram os desavisados. Vários torcedores caídos, sangrando. Crianças chorando ao lado de seus pais desacordados e completamente ensanguentados devido à ação das pedras. – Aê, filhos das puta. Agora a treta é com vocês, seus cariocas maloqueiros. – Aê filhos de uma puta. É a união KJD. - Anunciou Sapo. A chuva de pedras parou. Foi a senha para uma tomada de atitude. Surpreendendo a todos, o primeiro a partir na direção ao robusto grupo de Belzebus foi o... Boca de Ralo. Imitando o andar de um deficiente ele partiu fazendo uso das “suas” duas muletas. – Coé meu, ôôô! Vai pra lá, mano. Tu não tá na condição de brigar com ninguém. - Protestavam os Belzebus contra a imprudência daquele cara deficiente, de muletas indo de encontro à morte. Uma presa fácil. – Vocês vão pagar seus pela-saco. - Gritava o Boca de Ralo, mantendo o andar que deixava as pernas para trás e as muletas na frente. O nosso grupo chegava perto. Passo a passo. Eles estavam prontos para entrar em confronto mediante a comprovação do alcance do limite de segurança ser alcançado pelo nosso grupo. Num lance rápido ouvimos outras palavras que significariam outra reviravolta no panorama. – Vaza filhos da puta. É a Kamikazes do Rio porrrraaaa!!! - Era o grito do Boca de Ralo. Numa fração de segundos, o Boca de Ralo surpreendeu a todos - menos a nós que sabíamos que todas as suas atitudes descambariam na mais pura violência. Só não poderíamos imaginar como... - e iniciou uma frenética sequência de “muletadas” na linha de frente dos Belzebus. Assustados recuaram e nós avançamos gritando e correndo para cima deles. Não tínhamos paus nem barras de ferro. Uma clássica briga na

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mão. Durou pouco. Menos de quinze minutos. O suficiente para que ambos os lados causassem um estrago até onde não havíamos calculado. Um dos integrantes deles, em fuga, fora atropelado e machucou um pouco a perna esquerda. Uma belíssima confusão de plástica incomparável. Só terminada após a chegada da polícia, seus cavalos e suas espadas. Esta fórmula dispersa tudo e todos. Mais policiais chegavam. Alguém jogou várias bolas de gude para derrubar os cavalos. Voltamos em direção aos ônibus e lá permanecemos. Calmos. Afinal, aquele era o local determinado para a nossa permanência até a hora do começo do jogo. Faltavam umas duas horas para o início. Sabíamos que mesmo depois daquela merda toda tínhamos boas chances de assistir ao jogo. Ficamos calmos e aguardamos a polícia vir até nós. Enquanto o representante do Deportivo não chegasse para distribuir os ingressos, estaríamos expostos a todo tipo de humilhações pensei. – Quem é o representante? - Eu reconheci aquela voz. Dizem que coincidências não existem, mas desta vez eu tive que discordar e aproveitar o fato do capitão músico, aquele que tinha nos revistado na estrada, aparecer de novo na minha frente. – Sou eu senhor. – Você? Você que arrumou esta merda toda carioca? – Não senhor! Posso me aproximar do senhor para conversarmos em particular? No talento? Com todo o respeito meu sinhô? Era eu dando uma de bom moço da favela. – Vem aqui! - Disse ele. – Pô capitão, chegamos aqui para aguardar a chegada do representante do clube com os nossos ingressos, porque ele não tem hora né? Chega cedo, tarde... – E aí? - Resmungou o capitão. – Enquanto ele não chegava vocês resolveram matar o tempo baixando a viola nos outros? – Nããããão senhor. Capitão, não havia um policial para nos garantir a segurança. Eles estavam a nossa espera com pedras. Olhe os torcedores deles que estavam na rua. Todos caídos com pedradas. - Comecei a pesar o argumento. – Por isso pedi para conversar reservadamente com o senhor. Pode perguntar aos feridos se o que digo é ou não é a verdade. Aproveitei para finalizar me colocando numa situação limite. Como sabia que a razão estava comigo deixei as coisas funcionarem naturalmente.

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Nesta hora o Capitão se afastou de mim e gritou o Cabo Santos. “Por gentileza...”, e o capitão começou a falar e gesticular ininterruptamente. Pela distância em que os dois se posicionaram para ter a conversa, não era possível para nós ouvirmos o conteúdo do assunto. Mas certamente o cabisbaixo Cabo Santos estava levando uma daquelas chamadas. Eu podia apostar que os Belzebus haviam subornado os policias para que eles deixassem o caminho livre para que pudessem executar a sua vingança. Era claro! O único lugar do Brasil que eu via a polícia não se mancomunar com as Torcidas Organizadas para fuder os visitantes, por mais incrível que fosse, era o Rio de Janeiro. Digo ao que se referia à idoneidade física dos visitantes. Bastava o mínimo esboço de iniciativa de agredir os visitantes no Rio, para que a cavalaria fizesse questão de exercer a sua famosa repressão com requintes de sadismo. O representante do clube chegou e além de nos entregar a quantidade de ingressos solicitada, se prontificou a ficar até a solução do embate. O nosso representante era um senhor de meia idade chamado Hugo. Ele era o nosso representante em todas as nossas viagens fazendo o papel de ponto de analogia entre nós e os membros da diretoria. Enquanto o Hugo falava sem parar no telefone celular, o capitão músico me chamou com a mão. – Pois não senhor? – Já chegaram os ingressos? – Sim senhor! – Então organiza a fila. O Cabo Santos vai conduzi-los em segurança até as suas acomodações dentro do estádio. - Resolvi pedir outra conversa particular com o Capitão e mais uma vez fui prontamente atendido. – Sabe senhor... – Fala porra. – Pô... o Cabo Santos? Pelo que eu pude entender foi por causa dele que nós quase ficamos de bigode em SP... - Tentei alterar a organização, mas o que eu queria mesmo era confirmar o meu papel de vítima e deixar claro que sabíamos que ouve uma omissão. – Pode confiar nele. Ele sabe que se outra omissão acontecer aqui, ele será transferido para o interior do interior de SP.

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Obedecemos à determinação do Capitão e seguimos para as catracas e formamos uma fila indiana. Entramos no estádio sem maiores problemas, subimos a rampa e entramos no túnel que levava à arquibancada. A primeira coisa que procurei foi o cordão de isolamento. O cordão de isolamento era composto por um policial em cada degrau, um vão de vinte metros, depois outra sequência de policiais posicionados também de degrau em degrau. A nossa torcida era composta basicamente por torcedores do Deportivo que viviam em São Paulo, alguns Torcedores de Clubes rivais do Santo Antônio e outros aficionados por futebol. O jogo foi maravilhoso e o Deportivo goleou o Santo Antônio pelo elástico placar de cinco tentos a zero. O clima foi dos mais tranquilos dentro das dependências do estádio, como da mesma forma foi a nossa volta para a sede da Juventude de Drácula, onde pernoitamos depois de mais algumas doses de várias substâncias. Precisávamos descansar depois de um dia tão “maravilhosamente” cheio, aliás, precisávamos tentar descansar, o que presumíamos não ser possível. Havia um coral de roncos com vários estilos. Dos mais graves aos mais agudos com assobios, além do repulsivo odor, fruto da simbiose das várias “fragrâncias” de chulé com outros tantos tipos de “cc” dos mais variados. A imensa sala que foi cedida para o nosso descanso estava tomada por estes elementos. Você convive, mas nunca se acostuma... Às oito horas e trinta minutos um relógio despertou em algum canto da sala e eu acordei todos, o quanto antes. O pessoal da Juventude de Drácula já tinha preparado uma montanha de pães com margarina, café no capricho (bem forte), ferveram leite em grandes quantidades e nos deixaram comer à vontade. De acordo com a nossa rota, a nossa próxima parada seria a Bahia para o jogo “vendido” para assistir o Deportivo jogar contra o Acalanto. Claro que depois da indubitável e magistral vitória contra o Santo Antônio todos estavam mais animados que nunca. Bastavam duas vitórias seguidas e uma leve combinação de resultados para o Deportivo assumir a liderança do campeonato. Depois que todas as providências foram devidamente tomadas, me aproximei do meu querido irmão Tóta com aquela cara de até breve. “O próximo é você. Lá. Daqui a seis rodadas” - era um jogo com o Marítimo que eles teriam pela frente. Disse naquela de tristeza por me despedir. “Tá falado meu truta!”, respondeu ele secando o nariz com o antebraço.

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Depois de me despedir da Dona Antônia, a responsável pela cantina e pelas maravilhosas refeições, falei com o Sapo e com toda a rapaziada cuidadosamente. Mesmo sabendo que era uma difícil tarefa comportar a todos, tendo em vista que no Rio não tínhamos uma sede tão ampla, convidei um por um dos que estiveram conosco nestes loucos dias de aventura e diversão para passar uns dias no Rio conosco. Era impossível não dar um jeito de retribuir tudo aquilo que eles sempre faziam pela gente. Entrei no ônibus e acenei. Partimos. Quando pegamos a primeira rua à esquerda e perdemos a sede de vista voltamos a nossa rotina de viajantes. Como todos estavam com suas barrigas cheias acabaram não resistindo e adormecendo mais um pouco. Aproveitei para apreciar São Paulo da janela. Meu Deus! Lembrei-me da primeira vez que estive em São Paulo. Quando sai do ônibus e pisei na rodoviária comecei a chorar. Nunca contei isso a ninguém, porque estes rompantes de sensibilidade são interpretados como “tendências viadísticas”. Só tinha um amigo meu comigo, o Julho. Foi mais fácil enrolá-lo com uma história de poluição e tal. Eu tinha ido comprar uns discos. Quando me situei no que eu estava vivendo, aí pensei: “Caramba! Aqui é a terra do Nau, do Fellini, Ratos de Porão, Vultos, Mercenárias, Titãs, Harry, Cabine C, Maria Angélica não mora mais aqui, Gueto, Akira S e as garotas que erraram, Rumo, Vzyadoq Moe, 365, além, claro, do Cólera. Quando este pensamento se organizou na minha mente, senti uma dor no peito e um nó na garganta. A emoção me derrubou. Gostaria de escrever uma declaração de amor, mas o que eu via pela janela, só me fazia sentir ódio. Como podia aquele lugar lindamente moderno, cheio de cabeças donas de pontos de vistas tão diferentes - e ao mesmo tempo tão sensatos -, sofrer de tamanho descaso. Se o Rio é o polo cultural do Brasil, São Paulo é a fábrica de produção de vanguardas. Aquela paisagem cheia de gente morando na rua (tal qual o Rio), quase sem parques, sem árvores, aquele ar pesado e o medo no rosto de quem dirige (tal qual o Rio). Eu estava indo embora, mas o meu coração ficava ali. Preocupado. Desde que cheguei a São Paulo, pensei em procurar o Lobo, mas o tempo era insuficiente. Eu prometi enquanto ia embora que ao término do campeonato voltaria com a finalidade de cumprir duas tarefas: procurá-lo e me divertir mais com o meu afilhado. Feitas estas

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promessas, que soaram dentro de mim como um genuíno compromisso, consegui ficar mais calmo. Depois de mais tranquilo quanto ao desenvolvimento das minhas responsabilidades, voltei às obrigações mais imediatas. – Todos os lóides para o banheiro. – Ahhhhhhhhh! Qual é Máicou? Pôôôôôô... A gente fechou junto compadre... - Reclamavam os novatos, que tiveram desempenhos exemplares, surpreendentes. Revelaram-se verdadeiros bárbaros. Batiam e apanhavam e gargalhavam como se fossem demônios. – Foda-se. Agora é pista de novo. Vamo, vamo, vamo... E assim voltamos a nossa “deliciosa” rotina de espancamentos e humilhações dirigidos aos novatos. A viagem rumo ao Estado da Bahia foi uma exata repetição da nossa viagem para São Paulo. As viagens eram todas iguais. Pilhagem, desgraça, abusos e desrespeitos. Numa dessas estradas da vida, escuto o pedido em coro da rapaziada para que o motorista atendesse a necessidade fisiológica coletiva que até então não havia acontecido: “ÃO ÃO ÃO PARADA PRO BARRÃO” Todos ao mato com um rolo de papel higiênico coletivo. Depois de satisfeitos voltamos aos ônibus, sem essa “viadagem” de lavar as mãos, para começarmos o processo de confecção de outros vários e vários baseados. Antes de prendermos os novatos liberamos a todos para participar da ”maconhança”. Depois de alimentarmos as nossas mentes um certo espírito de filantropia baixou na rapaziada. Resolvemos não trancar os novatos no banheiro, mas mandamos todos para o portabagagens sobre as nossas cabeças. Ficavam espremidos, mas pelo menos ficavam deitados e esticados. Era um oásis no meio daquele inferno. E assim fomos até a Bahia, oscilando entre filantropia e sadomasoquismo. Corredor polonês e mais corredor polonês. Andamos horas e horas em estradas repletas de mato. De um lado e de outro mato, somente mato por horas e horas. Com a cabeça entediada comecei a criar resultados a partir da analogia entre a situação do povo sem um pé de laranja que fosse. Só pasto sem gado na minha

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frente. Terras e mais terras de uma improdutividade vexatória. Seus donos tinham mil jogadas legais para obter dividendos, vantagens excessivas tratando aquelas terras como se fossem peças de museu. Isso mesmo! Afinal, pelo que me concerne, só peças de museu tem esse poder de se valorizar paradas, intocadas, inexploradas. O governo não quer saber de nada quando o assunto é o povo. Outra regra numa viagem era o rodízio dos integrantes na cadeira ao lado do motorista visando mantê-lo esperto na estrada, ou até mesmo, impedi-lo de continuar dirigindo, caso o seu cansaço desse algum sinal. Aprendemos à força a necessidade de se adotar esta técnica, quando numa viagem ao Rio Grande do Sul, o nosso ônibus caiu numa ribanceira de quase vinte metros e fomos salvos de uma queda maior, porque ele colidiu com uma árvore e nela ficou parado até a chegada dos bombeiros. Hoje, a maioria de nós estaria no caixão se não fosse uma dose extra de sorte. A viagem inteira o Renato Maluco gritava rindo: “Cocheiro filho da puta! Taca esta porra dentro do abismo”... Enquanto isso, alguns riam e se divertiam. Outros pediam, disfarçando o medo, para que aquelas brincadeiras parassem. “Se o diabo existir o ônibus vai parar dentro do abismo. Taca essa merda na ribanceira porra!”, acrescentava Galinho, um dos viajantes mais tranquilos, mas que gostava de perturbar também. E todos empolgados e drogados cantavam: “MEU PAU INTEIRO NA BUNDA DO COCHEIRO” Neste acidente, o motorista alegou que os freios falharam na curva, mas poderia ter sido qualquer outra pane, já que o ônibus em questão era pirata e, para manter a regra, estava em péssimas condições. Poderia ter sido uma dormidinha... Quase todos tiveram prejuízos nos ossos. Eu tive uma costela quebrada apenas, graças a Deus! Foi uma única fratura, mas ela me machucou bastante até a chegada do socorro. Dizem ter demorado três horas, mas eu não fui obrigado a passar por tanto sofrimento, tendo em vista que “apaguei” enquanto alguém gritava comigo assim: “Qual é Máicou! Não dorme não filho da puta! Ô irmão! Dorme não cara”. Acordei com a visão de um bombeiro e uma

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sensação de conforto crescente. Nessa hora algo doce (talvez morfina) dava um rolé pelas minhas veias. Este acontecimento modificou o comportamento de irresponsabilidade - levado para o mais além dos limites possível - que adorávamos praticar. Era básico como cagar lendo bula de remédio: Durante toda a nossa viagem um dos responsáveis mais experientes, estaria ao lado do “cocheiro”. Continuamos a viagem e mais porrada nos novatos. Isso eu gostava de fazer. Comigo havia acontecido o mesmo, e já que eu não morri... Acreditava que todos fossem capazes de passar pelo mesmo. Na Bahia procuramos chegar o mais próximo possível do horário do jogo. E em termos de logística a nossa nota foi dez. Chegamos faltando menos de duas horas para o início do jogo entre o Acalanto e o Deportivo. Enquanto passávamos pela cidade, éramos vaiados e hostilizados, mas nada fora do normal. Em cima do ônibus, nas janelas, a porta da frente aberta; eu e Bínchi fazendo coro com os demais cantávamos: “É FERRO É CANO NA BUNDA DO BAIANO” Ao chegarmos ao estádio fomos recepcionados, como de costume, pela Polícia Militar do Estado da Bahia e fomos colocados isolados. O policial responsável nos chamou com aquele sotaque divertido. – Ô carioca! Ô carioca! O seu... Máicou. - O policial teve que se esforçar para entender a letra. – Sim senhor. - Respondi, mas prendendo o riso pra não levar um “coro baiano”. – O Seu Hugo deixou os ingressos dos senhores reservados já na roleta. Ele disse que o número tá certo. É noventa e seis é? – É sim senhor! – Então os senhores já podem subir para as arquibancadas, por favor. É a maneira mais adequada de garantir a segurança dos senhores.

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Sempre desconfiado, me intriguei com o excesso de sorrisos e cochichos dos soldados da PM olhando e apontando para nós. Chamei a rapaziada do esquadrão de frente enquanto os mais afoitos e empolgados se dirigiam para as catracas, tomados completamente pelo clima de euforia. – Coé rapaziada! Tem um bagulho estranho aê! Os vermes tão rindo demais. Vamos ficar ligados. – Ô Maicou, vamos chamar quem já tá querendo entrar de volta e vamos de frente então? - Sugeriu calmamente Érick. – Boa ideia. Alô geral! Chega aí pra contagem antes da entrada. Chamei a atenção de todos, o que foi fácil já que a liberação das catracas dependia de mim. – Conta aê Bínchi. - Deixei a falsa responsabilidade com o negão e desloquei a todos nós da linha de frente para o nosso lugar: A primeira fila. Liberei a passagem sendo eu mesmo o primeiro a passar e me concentrei logo na frente das catracas aguardando os demais. A sequência da nossa infantaria, depois de reunida, aguardou a passagem do último Kamikaze. Tínhamos que andar para o lado esquerdo e subir uma rampa. Assim o fizemos e quando viramos a tal rampa, tomamos um susto. Tivemos um impacto. Havia um “despacho” gigante de macumba tomando toda a rampa horizontalmente nos esperando. De lada a lado da rampa. Estátuas de entidades que são usadas normalmente em rituais de magia negra, alguidares com farofa e outros com frangos mortos, várias e várias velas nas cores preto e vermelho (as cores do acalanto) acesas, charutos e diversas garrafas de cachaça envolvidas com fitas vermelhas, duas ou três cabeças de bodes pretos, etc. Num ímpeto coletivo, partimos correndo para cima das provocações, que não tinham nenhum caráter religioso, mas meramente intimidatório. Sem a menor combinação prévia, como se já soubéssemos o que fazer, o bonde partiu bestialmente para cima dos símbolos e começou a promover o quebra-quebra de tudo. A maioria de nós pegou os charutos, bebeu e levou algumas garrafas de cachaça, ensaiaram uma pelada com as cabeças de bode, chutaram os alguidares e depois se abraçaram para subirem o restante da rampa. Eu, que já estava mais atrás na contenção da PM (tarefa que eu mais detestava), arrisquei uma olhada para trás e pude ver os soldados da PM, todos boquiabertos,

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indignados com tamanho ato de ousadia. Mas não podíamos nos omitir ao tratamento desrespeitoso dado aos orixás e mostramos a nossa aversão àquela brincadeira com uma religião séria. O uso da macumba pra fazer palhaçada não pode ser tolerado jamais. Afinal, é a religião oficial do nosso país. Entramos na arquibancada fazendo festa. Cantando. Claro. “SE DEUS É POR NÓS NÃO TEM DIABO CERTO PUTA QUE PARIU A KAMIKAZES É SOCO RETO”.

Na arquibancada, enquanto batíamos palmas, fumávamos os charutos e bebíamos da cachaça posta no falso despacho por eles, fugia a nossa percepção que os acalantenses tinham os seus “camicazes” ignorando a corrente de policiais que nos separava da torcida deles. Um integrante de uma Organizada detonou um morteiro doze por um para cima de nós. Como vocês já aprenderam a lição o prejudicado é sempre um inocente. Uma senhora que assistia ao jogo com a camisa do Deportivo acompanhada de um senhor que aparentava ser o seu marido e mais duas crianças foi atingida em ambas as pernas. Uma bolha horrível se formou rapidamente, enquanto o histerismo tomava conta dela e das crianças. Os meninos eram seus filhos mesmo e choravam à beça enquanto seu marido tentava controlar a situação. O torcedor agressor, identificado como integrante da Torcida Tubarões, foi recolhido à prisão. Enquanto isso, nos reunimos para acalmar a senhora até o socorro chegar. Esquecemos do jogo e o Deportivo emplacava um, dois, três gols só no primeiro tempo. Nesse ínterim ficamos amigos da senhora acidentada e de seu marido. Descobrimos que a sua família, menos o menino mais novo, era toda do Rio e que tinham se mudado por conta dos compromissos profissionais do marido. O nome dela era Dona Claudimar e disse para nós que amava a Bahia. Ironicamente o acalanto era o clube baiano que eles mais simpatizavam e torciam. O Dodô tomou a iniciativa e presenteou a todos da simpática família com peças exclusivas da Kamikazes. Era uma prática comum também preparar uma mala para

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viagem com todos as peças disponíveis no estoque da Torcida para vendermos pelos lugares em que passássemos. Os preços eram super inflacionados e usávamos o dinheiro para eventuais despesas. Ficamos amigos, rimos e trocamos afinidades e informações sobre o Rio atual, já que há cinco anos eles não vinham à cidade. Não pretendiam mais voltar para o Rio. Eles amavam a Bahia. Quando os bombeiros a levaram, aplaudimos e gritamos o nome dela em coro que sorria e dava adeus. Os garotos e o marido estavam bem mais calmos e sorriam daquela farra toda. Fiquei feliz por comprovar uma solidariedade capaz de proporcionar uma sensação maravilhosa de conforto. O Deportivo venceu este jogo por três a um. Como a praxe exigia aguardamos a evacuação total da torcida do Acalanto para, só então, recebermos a liberação e assim nos dirigirmos aos nossos ônibus. Agora rumo a Minas Gerais. Os Orixás não gostaram de serem mal solicitados... A viagem a Minas transcorreu na maior calma. Sem incidentes tivemos tempo para relaxar e recarregar as baterias. Como havíamos conversado com o Érick sobre a possibilidade dele assumir a responsabilidade dos ônibus na volta, tudo começava a se acomodar de modo que pudéssemos tirar as tão sonhadas férias na fazendo da tia do Dodô. Ao sairmos do jogo iríamos direto para show do Skank e de lá, não importando a hora que saíssemos, afinal estávamos de férias, partiríamos para aproveitar os prazeres do campo. Em mais uma tacada de mestre chegamos à porta do estádio, uma hora e quinze minutos antes do início do jogo. Na verdade, era a nossa obrigação acertar cálculos de navegação já que éramos profissionais em viagens especiais. Os ingressos estavam nas mãos do Hugo que nos esperava ansioso com seu ar de pressa costumeiro. Ao seu lado estava o Splinter. Peguei os ingressos e os conferi. Às vezes vinham dez, doze a mais. Aproveitei o tempo que me sobrava, e, enquanto todos iam para as arquibancadas, comecei a vender os excedentes e a conversar com o “Cara de Rato”. – E aí veado velho? – Seu cu “rapais”. - Sorria Splinter.

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– Ó. Eles estão voltando daqui para o Rio direto. O esquema é aquele de sempre. Você vem aqui e... – Vai ensinar o vigário a estuprar garotinho “rapais”. - Fingia se chatear comigo Splinter, depois de mais uma tentativa de explicar-lhe o que ele já estava cansado de saber. – Então valeu. Vou subir. Pau no cu do Cruzado. – Igualmente. - Abraçamo-nos rindo na sacanagem e cada um seguiu o seu caminho. Em mais um jogo nervoso, catimbado, disputado, conseguimos arrumar um empate. A péssima arbitragem conseguiu gerar um clima tão desconfortável dentro de campo, que cinco atletas foram expulsos. O Deportivo era líder com aquele empate, mas não isolado, já que estava apenas dois pontos na frente do nosso arquirrival carioca o Olímpico, que apresentava uma recuperação interessante, muito peculiar mesmo... Tivemos uma saída tranquila e nem vimos a torcida do Cruzado, tamanha a eficiência da polícia mineira. Também não tivemos a menor oportunidade de aprontar “uma das nossas”. Os policiais mineiros nos conhecem bem demais para nos dar algum tipo de espaço. Quase não tivemos oportunidade de nos despedir do pessoal da Torcida que ia seguir viagem, tamanha a marcação implacável do esquema da polícia. Eles queriam que todos embarcassem no ônibus e que ninguém ficasse em Minas. Felizmente depois de uma conversa serena com os cabos responsáveis, obtive a permissão para fazer as últimas recomendações ao Érick e ao restante, que mesmo embriagados prometeram dar uma colaborada. Desde que o Érick não enchesse o saco deles com aquela mania de patrão. Assim foi. Eu ligaria na segunda-feira à noite para saber maiores detalhes da volta deles. Assim fiquei tranquilo. Ao sairmos, Splinter nos aguardava na calçada com uma Kombi, na qual partimos imediatamente para um dos muitos bares do centro de BH onde todos os nossos amigos da Pavilhão Independente se encontravam reunidos à nossa espera numa mesa gigantesca. Ao chegar, pensei vendo toda aquela alegria de grandes amigos: “Que ótimo que o resultado do jogo foi um diplomático empate”.

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Aproveitamos para visualizar o panorama e dar ênfase ao aspecto “presenças femininas”. Havia muitas mineirinhas que se uniram para nos conhecer, afinal, novidades são promessas de possibilidades de um futuro diferente. Recebemos muitos olhares e sorrisos discretos. Como nenhum de nós quatro poderia ser considerado um galã, as chances ficavam igualmente distribuídas. Primeiro saudamos um a um, perguntamos sobre seus familiares, enfim. Ouvíamos que o pai de um estava doente e internado por causa de um derrame, ou, que a mãe do outro estava sofrendo com a osteoporose... Aquela coisa de gente próxima. Perguntei como andava a política interna do Cruzado para os ingressos e fiquei sabendo que por aqueles dias estava tudo mais folgado. Conversei aproximadamente meia hora em particular com o Abílio (Presidente da Pavilhão Independente), numa mesa destacada. Na conversa ele me disse que as coisas tiveram uma melhora dentro do clube com relação a tudo, porque o número de integrantes da Pavilhão Independente havia basicamente triplicado. Numa tacada de mestre, o Conselho e a Diretoria da Pavilhão determinaram a suspensão de novas adesões. Ele me explicou que esta era uma maneira de ter garantida, sem esforços absurdos, a entrada nos jogos de todos os integrantes da Pavilhão Independente com os recursos que a Torcida dispunha atualmente. A notícia deste pequeno gesto de responsabilidade se alastrou e todos começaram a se interessar pela Pavilhão como um opção aos destratos das Torcidas tradicionais. A lista de pretendentes foi apresentada no clube, que não pode mais fingir que aquilo não estava acontecendo. No momento eles negociavam com a Diretoria de Futebol do Cruzado um aumento no número de um tipo ingresso que todos os clubes disponibilizavam por um preço até setenta por cento abaixo do estipulado pela tabela da CBF para venda. Uma das regalias exclusivas para Torcidas Organizadas e cambistas que trabalhassem para Diretores, dirigentes e Conselheiros de Clubes. Encerrado o papo de presidente para presidente voltamos a nos juntar ao grupo. Conversamos animadamente sobre a época em que o Skank se chamava “Pouso Alto” e “Capitão Marvel” tocava na rádio. A primeira música que eu ouvi deles. Depois, numa dessas empatias mútuas, que só a vida pode produzir, sem nos conhecermos pessoalmente - o que poderia justificar a citação, mas não era o caso -, o Skank mandou um alô para a Kamikazes na música “Indignação”. Foi emocionante. Hoje, ainda não nos conhecemos pessoalmente - e por que

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eu conheceria um cara famoso? Só outro arranjo da vida para proporcionar um encontro desses já que vivemos em mundos tão distantes. Mas como além de excelentes músicos, os caras também são boleiros como nós... Poderíamos curtir um encontro ocasional e beber umas cervejas juntos. Na conta deles é claro... Depois de dezenas e dezenas de rodadas de vários tipos de bebidas o clima foi se tornando propício à sedução, aos flertes. Aos quatro “meninos do Rio” havia mais de dez garotas de Minas dispostas a conhecer-nos. Tivemos a oportunidade de conversar com todas, mas as que mais chamaram a nossa atenção pertenciam a um grupo de primas. Três delas eram de uma cidade muito simpática do interior chamada Leopoldina e a quarta, a anfitriã, era de Belo Horizonte mesmo. As quatro haviam planejado tirar as suas férias juntas, já que desta forma, a grana rendia mais, levando em consideração que todas as despesas possíveis eram divididas entre elas. Era possível desta forma visitar mais lugares. Elas estavam na cidade há quatro dias e decidiram seguir a sugestão da prima local, que sempre participou de Torcidas Organizadas e hoje, fazia parte da Mancha Azul. As meninas eram lindas e a noite se fazia uma grande promessa, já que todos que estavam no restaurante iriam ao show do Skank. Não houve necessidade de aguardar o show começar. Rapidamente estávamos abraçados, lado a lado na enorme mesa. Raquel era o nome da anfitriã que ficou com o Bínchi; Roberta com o Dodô; Eduarda como Tchélo e Virgínia comigo. Como precisávamos urgente de um banho levei a questão ao Splinter. – Pô Cara de Rato. Estamos precisando de um banho. O que você sugere? – Ué? Vamos lá pra casa agora. Ou vocês podem fazer uso do banheiro do Hotel dos Viajantes. É micharia que eles cobram por um banho. Neste momento, com ares de ofendida, a Raquel tomou para si a palavra e a responsabilidade pela nossa higiene. – Que banheiro de viajante que nada! Vocês vão é lá pra casa agora mesmo. - Adiantei-me e fiz logo o papel de bom moço. – Sabe o que é Raquel? É que a gente não quer dar trabalho sabe? – Que trabalho o quê? Vai ser tranquilo.

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– E os teus parentes? - Indaguei com aquele ar de preocupado, mas louco para ir logo pra debaixo de qualquer chuveiro. – Eu moro sozinha Máicou. Vocês não vão incomodar ninguém. - Era perfeito. Como tínhamos horário manifestei a minha intenção de deixar uma quantia de dinheiro antes de partir para a casa das meninas, de modo que a conta fosse anestesiada. Atitude que foi prontamente rechaçada pelo bonde que estava na mesa. Eu já sabia que ninguém aceitaria o nosso dinheiro. Despedimo-nos e partimos para a casa das meninas, na verdade um apartamento no centro de Belo Horizonte. Tudo muito bem arrumado, tudo muito feminino. Como tínhamos pressa, nos descuidamos do “reconhecimento da área de combate”. Não fazia diferença. As garotas realmente eram boas pessoas. Além do mais contávamos com a “segurança” do Splinter que nos levou até o apartamento na sua Kombi. “Agora que eu já sei onde é, eu venho depois buscar ocês”, disse Splinter para que elas ouvissem. Para que elas se ligassem que existia alguém monitorando a nossa movimentação. Havíamos marcado com a rapaziada de voltar ao bar para de lá partirmos juntos para o show. E foi desse jeito. Não perdemos um segundo e voltamos com o louco do Splinter voando na pista. Enquanto as garotas gritavam horrorizadas, nós ríamos e pedíamos mais velocidade. Ao voltarmos para o bar o pessoal estava bebendo a última rodada de cerveja com a conta já paga. A próxima rodada seria no show. Partimos em carreata para assistir ao show. Uma noite da mais pura felicidade. Felicidade pela segurança que só o fato de estarmos entre amigos de longa data nos proporciona, felicidade por termos nos dado bem com as garotas mais gente boa que poderíamos encontrar no mundo, felicidade por assistirmos um grupo tão simpático e competente ao vivo. A apresentação começou com “Indignação”, depois, “Let me try again”, “Uma partida de futebol” e por aí foi. Dançamos, namoramos, fumamos da maconha maravilhosa que tínhamos levado e deixamos todos muito loucos e bebemos a noite toda. Como o espetáculo teve um atraso, começando quase à meia-noite, começamos a pensar em sair da

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casa às duas e meia. Enquanto nos dirigíamos para a saída comecei a ensaiar a minha despedida. Eu devo confessar que estava meio contrariado, que não queria me despedir da Virgínia sem comê-la. Uma mulher deliciosa como ela não podia passar simplesmente pela vida de um homem e desaparecer. Mesmo acreditando nisso, pouco poderia fazer. Elas estavam com suas passagens compradas para as cinco e meia da manhã para Ouro Preto. – Foi um prazer Virgínia. – Como assim? Vocês vão para a casa de alguém? – Vamos viajar sim, mas não tão cedo quanto vocês. A gente vai para a casa da tia do Dodô. - Os caras estavam destacados cada um num canto fazendo o mesmo que eu: Despedindo-se por fora e se lamentando pelas bocetas perdidas por dentro. – Pô! A gente nem pôde se conhecer direito. Queria ir com você... Surpreendeu-me a deliciosa Virgínia. – Mas você pode? - Ainda surpreso, tentando reagir, me manifestei de qualquer jeito. – Você esqueceu que estamos de férias? - Senti uma sensação misturada que crescia dentro de mim. Agora tínhamos tudo para concretizarmos uma gostosa sacanagem. Chamei o Dodô para explicar-lhe o que estava acontecendo e o que a Virgínia tinha me proposto e se havia alguma possibilidade de levá-las conosco. Prontamente ele disse que seria perfeito e que não haveria problema algum. Que bastava perguntar ao restante das meninas se estavam todas de acordo, para que começássemos a tomar as providências. Todas vibraram e disseram que aquela proposta vinha a calhar. Já que elas conheciam Ouro Preto de trás para frente, não havia motivos para repetir a viagem. Então partimos para o apartamento da Raquel, onde pretendíamos apenas pegar as roupas e pertences de todos que estavam lá e partir imediatamente. Despedimo-nos de todos e partimos para o apartamento. A nossa viagem para a fazenda da “tia Maria” se tornava cada vez mais interessante. Poderíamos contar com tudo que nos era divertido. Ia ter sexo, drogas e preguiça. Nós também merecíamos umas férias de toda aquela insanidade dos últimos meses na Torcida. O Deportivo ia bem - era o primeiro colocado na tabela -, assuntos sérios pendentes não tínhamos. Se havia esta coisa de momento propício para

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um relaxamento, aquela era a hora. De mais a mais, nós três (eu, Bínchi e Tchélo) nunca tivemos a oportunidade de apreciar o campo. Seria uma semana da melhor qualidade. Embarcamos às nove e quinze da manhã para Varginha. Dormimos durante toda a viagem. Estávamos quase quarenta e oito horas no ar - desde a saída da Bahia. As meninas eram muito carinhosas e cada um dormiu nos braços da sua, digamos, respectiva acompanhante. Ao chegarmos, uma leve decepção, fruto da nossa ignorância, tomou conta de nós. Varginha não era roça. Era pequena, mas muito bem cuidada. Tinha bancos, postos, lojas, etc. A nossa ignorância não nos permitiu ver que ali era o centro da cidade. Nós deveríamos pegar outra condução até a região rural. O que nós queríamos era ver mato logo na chegada. Pegamos um ônibus e fomos rumo a tão almejada “mata”. Mais duas horas numa estrada horrível, mas com paisagens das mais lindas. Ao saltarmos, ainda tivemos que andar por uma hora até a fazenda. Ao chegarmos pude comprovar que a fazenda não era bem uma fazenda, mas sim um sítio. Totalmente decrépito. A cerca estava tombada quase que por completo. O capim tinha quase dois metros de altura e tomava quase toda a extensão da propriedade, com exceção de uma pequena faixa de terra, que descobrimos ser o caminho até a porta de entrada. Tinha um espaço que me pareceu ser a horta particular da “tia Maria”. Havia muita merda de vários tipos de bicho pelo chão. Uma boa quantidade vinha do cu das galinhas, outra boa quantidade vinha dos porcos, cabras, cabritos, patos e cachorros que, inexplicavelmente não viviam enclausurados. Muito pelo contrário; tinham trânsito livre até dentro de casa. E a casa? Ah, a casa... Um cheiro pesado, agudo, fino e cortante exalava de todas as partes da casa. Muitas teias de aranha, mas, verdade seja dita, o chão estava bem varrido. O Dodô pediu - super constrangido e sem nada entender - que colocássemos a nossa bagagem em cima de um móvel que parecia muito com uma escrivaninha. Até pensamos em nos sentar no sofá, mas ele estava com uma aparência molhada. Todos achavam que aquele cheiro indescritível, horrível, partia dali mesmo do sofá. O Dodô tinha se lançado à busca da tia Maria. Enquanto permanecíamos em suspense, fiquei pensando no que ele nos contara sobre a “fazenda”. Ele nos contou que na infância suas férias só eram férias de verdade, quando duas semanas eram reservadas para

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serem aproveitadas na fazenda. Quando vi a entrada da “fazenda”, comecei a ouvir a voz do Dodô, dizendo que a “fazenda” era tão limpa, organizada e colorida, que parecia cenário de programa infantil. Sempre havia um pé de frutas carregado, esperando, todo receptivo, aguardando a molecada da casa trepar em seus galhos. O fogão à lenha exalando um perfume de milho, doce... Os mais velhos bebendo café ou cachaça na cozinha conversando e fumando cigarros de palha (mesmo os adeptos de cigarros industriais), enquanto vários tira-gostos de vários tipos diferentes eram servidos. Tinha até charrete e a casa estava sempre cheia de pessoas legais. Ouço um chamando e desperto naquele outro lugar. – Tia Maria! Ô tia Maria. Tia Maria... - Dodô parecia ter encontrado a sua tia. – Oi! Dodô menino? Oi! - E a tia Maria apareceu para abraçá-lo. Nós que estávamos na entrada da sala ficamos observando os dois se confraternizando. Estava um pouco longe. A sala era imensa e na nossa reta havia um corredor onde ficavam os quartos. Muitos. De um lado e do outro do corredor. Depois deste corredor, existia o que parecia ser outra sala, onde o Dodô e a tia Maria se abraçavam. Percebi que ele levou um longo período sem mexer os lábios, só olhando para o rosto da tia Maria, segurando a cabeça dela com as duas mãos, numa demonstração de carinho que até aquele momento eu não o tinha visto praticar. A tia Maria estava na condição de viúva há algum tempo, acho que seis meses. Mas o processo de degradação da propriedade já estava em curso há mais tempo que isso. Talvez desde quando o tio do Dodô adoeceu e não tinha ninguém para ajudá-lo na manutenção da propriedade. Seus filhos partiram pelo mundo em busca de aventuras. Dois moravam em Belo Horizonte e por lá faziam alguma faculdade, pelo pouco que o Dodô achou necessário comentar. A única filha mulher se casou com um pastor de uma destas tantas igrejas evangélicas que existem pelo mundo. O rapaz recebera a incumbência de difundir a religião em algum buraco da África e antes de viajar, eles se casaram. Pelo panorama que nos era apresentado involuntariamente, os filhos não davam notícias há um bom tempo. Nem parentes, nem amigos. Tudo sugeria uma desolação extrema. Um abandono absoluto. E a tia Maria parecia estar entregando os pontos mediante as marcas do desapego que percebemos quando ela se aproximou e o Dodô nos apresentou.

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– Tia, estes são os meus amigos lá do Rio. Este é o Bínchi, este o Tchélo e este aqui é o Máicou. – Meus filhos muito prazer. Eu recebi uma carta do Dodô avisando que vocês vinham, mas me distrai com outra coisa sabe? Não sei onde eu estava com a cabeça. Não preparei nada de especial para vocês comerem. – Não precisa ser preocupar. - Rapidamente procurei eximi-la da responsabilidade de nos alimentar, apesar de estar até meio fraco de tanta fome. – Essas aqui tia são as nossas namoradas. - Assim as meninas foram promovidas de meras acompanhantes a namoradas. Naquele momento, eu também tinha certeza de que elas estavam morrendo de fome. Eu já nem me lembrava da última refeição. – Que meninas bonitas! - Entre sorrisos, estes foram os últimos comentários da tia Maria antes de se dirigir à cozinha. – Ó! Vocês fiquem à vontade. Eu vou preparar um suco, porque vocês devem estar com sede. Depois vou fazer um angu com couve. Vocês gostam? – Claro tia. Não era para a senhora se preocupar. - Respondeu Dodô. – Tudo bem meu filho. Não me custa nada. Eu vou. Vocês fiquem à vontade. A tia Maria não me parecia bem. O Dodô falou em sessenta anos, mas me parecia ela ser dona de muitos outros. O rosto estava retalhado de rugas e com um aspecto sujo. O vestido dela estava com aquele cheiro horrível que sentimos ao entrar na casa. Pareceu-me que ela não tomava banho há alguns dias. O Dodô ficou visivelmente abalado e ninguém mais do que eu, que ouvira muitas vezes as histórias sobre os bons tempos da “fazenda”, seria capaz de me aproximar do que estava passando pela cabeça do meu mano. Optei pelo silêncio. O suco veio a nós numa jarra junto com os copos, todos em cima de uma bandeja. O suco tinha uma aparência de água barrenta, mas muito clara. Nem de longe parecia com um suco de maracujá tal qual ela anunciara. Mas algo mais estava por ser revelado. Quando tomamos os copos em nossas mãos para nos servirmos, vimos que todos estavam absolutamente imundos. Engordurados a ponto de vermos impressões digitais numa gordura quase fossilizada. Os copos traziam micro-pedaços de sabe-se lá o que do lado de fora. Disfarçadamente

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todos embarcaram na sutil sugestão do Dodô. Que a tia Maria nos desculpasse, mas que a sede que tínhamos era de água. Rapidamente as meninas correram com a bandeja para dentro da cozinha, fingindo providenciar outros copos para água, e assim, lavando-os devidamente de modo que pudéssemos pelo menos beber água. – Mas porque vocês tão lavando esses copos? É só guardar no armário... Falou a tia Maria sem noção do estado dos copos pelo visto. – Pode deixar tia. As garotas são boas de serviço. Despistou Dodô. Enquanto todos se concentravam na cozinha aguardando o resultado da assepsia dos copos, a tia Maria iniciou os preparativos do angu. Ela pegou uma panela das grandes e começou a acrescentar os ingredientes. Conforme ela misturava o angu na água com uma colher de pau e seus resultados não eram alcançados, ela não se furtava a dissolver os caroços do angu com as mãos. Caralho! Imundas mãos com unhas longas com uma sujeira de cor escura e espessa sob as mesmas. Sem a menor cerimônia, a pobre tia Maria, assim, começou a fazer o nosso jantar. Não poderíamos comer aquilo. Dávamo-nos por vencidos. O que mais poderíamos comer naquele fim de mundo? Sem uma birosca por perto. Aliás, não tínhamos nem vizinhos. As árvores frutíferas estavam sem nada nos galhos. O pessoal devia passar por ali e roubar tudo presumindo ser um lugar abandonado. Era fato consumado: Iríamos passar uma noite de muita fome. Enquanto eu já me dava por conformado com aquele destino cruel e doloroso, percebi que o Bínchi piscava para mim como quem fazia questão que eu acompanhasse os seus olhos. Seguindo a sua indicação, visualizei uma peça de toucinho pendurada no teto da cozinha. Meu coração se encheu de alegria. Quando abaixei a cabeça, encontrei o Bínchi piscando, balançando a cabeça e rindo para mim. Daí ele convocou uma reunião na sala. – Vamos para a sala galera. Deixem a tia Maria trabalhar, chega de atrapalhar, vamos, vamos... - Insistia ele empurrando todos para a sala com aquela encenação. – Peraí. Reclamou a Raquel sem nada entender. – Nós já vamos, calma. - Estranhavam aquela pressa excessiva as meninas. Quando todos chegaram na sala, inclusive o Dodô, ele não se fez de rogado e foi logo dando o recado.

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– Gente, tem uma peça de toucinho dando mole no teto da cozinha. – O quê? - Perguntou Raquel meio sem entender. – Olha na cozinha Raquel. Tem uma peça de toucinho pendurada no teto. - Ela foi lá conferir e voltou ainda sem entender. – Hã, e aí? – É. E aí? - Todas começaram a perguntar. – É o seguinte: A gente aguarda a tia Maria ir dormir certo? Aí... – E aí? - Curiosa, Virgínia se pronunciou antes do desfecho do plano, dando mostra da sua ansiedade. Nervosa, faminta... – Calma! Aí, quando estiver tranquilo a gente da o bote no toucinho. Vocês garotas, fazem uma comida maneira com ele. Deve ter arroz à beça naquele vidro verde que tá em cima do armário da cozinha. – Eu vi o vidro. É verdade. - Concordou Virgínia com um sorriso de constrangimento por ter confessado ter olhado para onde não era da sua conta. – Pô! Uma comida limpinha aí... - Comentou Tchélo com os olhos fechados e esfregando as mãos, como quem já sonhando com uma refeição caprichada. – Eu vou lavar as panelas. - Prontificou-se Eduarda. – Eu vou lavar os talheres. - Disse Roberta – Certo, certo, mas a gente precisa aguardar a tia Maria dormir. - Fez questão de controlar o frenesi que surgia o próprio mentor do plano, Bínchi. – Demorou! - Selou o acordo Dodô. Enquanto acertávamos os detalhes, a tia Maria chegou na sala. – Ó! A janta tá pronta. Vocês querem que eu bote no prato pra vocês? – Não tia! - Respondeu Roberta com um sorriso amarelo. – Não. Pra que se incomodar? A gente vai aguardar a fome apertar mais um pouco. - O filho da Puta do Dodô despistou com a velha malandragem a pobre da tia Maria. – Então sendo assim eu vou me deitar. Vocês sabe que na roça a gente deita cedo né? Além do mais tô com uma dô nas costa... - E assim ela se despediu dos hóspedes e foi para o seu quarto. – Boa noite meus filhos! Nos quartos tem lençóis pra todos. – Boa noite tia Maria! - Responderam todos. E no exato momento que a tia Maria fechou a porta do seu quarto começamos a operação. Dodô foi até a janela da tia Maria para ter certeza que ela estava dormindo. Tchélo e Bínchi se propuseram a fazer

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o resgate do toucinho que estava no alto, bem no teto da casa. Pendurado. Como bons trapalhões, quase nos denunciaram, quando, por pouco, um não caiu de cima do ombro do outro. Só assim eles conseguiriam somar uma altura suficiente para o resgate. Quando o Tchélo se segurou numa das vigas, finalmente ele se sentiu seguro para começar a retirar a peça de toucinho. Eu acompanhava tudo com uma faca pega para soltar o toucinho que estava amarrado com um barbante bem grosso. Joguei a faca e o Tchélo devidamente apoiado a segurou prontamente. Ele cortou a corda e a carne veio abaixo encontrando os meus braços como apóio. No exato momento que a peça de toucinho caiu nos meus braços, Dodô entrou na cozinha. Sem falar nada, ele foi para trás de um dos armários e desamarrou um nó que fez a corda cair sobre nós ridicularizando aquele esforço todo. “Como vocês pensam que a tia Maria amarrou isso aí em cima caralho?”, perguntou. É muito natural que peças de carne, secas ao sol e salgadas, sejam postas nos tetos das casas uma vez que não havia geladeira nas casas. Não havia eletricidade. Algumas casas tinham gerador a querosene, mas era raríssimo. Começamos a preparar refogados e a escolher o arroz. Cebola, pimentão, alho,... Aquele cheiro bom tomando conta da cozinha era o prenúncio de uma noite com muita comida na barriga. Consequentemente, isso queria dizer ter energia para fazer sexo selvagem durante o tempo que fosse necessário, digo, possível. Passamos um tempo discutindo se o toucinho deveria ser feito na mesma panela com o arroz (de modo que ambos pudessem absorver o sabor um do outro, otimizando o poder gastronômico do prato), ou se deveríamos servir tudo separado. O Dodô foi à pequena horta da tia Maria e trouxe alface, alguns quiabos e umas cebolas que conseguiram resistir. Agora teríamos salada também. O toucinho era suficiente para os oito, levando em consideração que as meninas -mineiras espertas - o cortaram em bifes bem finos e depois misturaram no alho. A salada ficou bonita, mas infelizmente não tinha azeite. Tudo bem. O sal e um pouquinho de óleo iam funcionar.

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O jantar foi servido. Para beber outro suco de maracujá, que havia sido providenciado graças à outra minuciosa peneira do Dodô no quintal. Sentamo-nos falando baixo e tomando todos os cuidados para não acordar a tia Maria. O combinado era dizer a verdade quando ela procurasse pelo toucinho, o que certamente seria o nosso almoço no dia seguinte. Mas naquele momento, a ordem era não ser pego em flagrante para não ofuscar o brilho da nossa astúcia. Todos comeram três pratos. Claro que as meninas se comportaram, mas, pobrezinhas, estavam precisando comer. Nada sobrou. No final, no pirex onde estavam as tiras de toucinho, só sobrou um pouco do molho com alho e um pouquinho de óleo, que foi prontamente misturado aos “finalmentes” do arroz. Mais uma vez repartimos a última porção. Começamos a limpeza da louça. Satisfeitos. Com a colaboração de todos, rapidamente deixamos a cozinha impecável. Fomos dormir e eu, posso responder por mim. Tive uma noite indecentemente foda. A Virgínia era o sonho de consumo de qualquer hétero. Porra! Que seios. Pontudinhos. Sensíveis. Beijei seus pés (lindos e pequenos), depois os tornozelos. Beijei suas costas, orelhas, pescoço por quase uma hora. Ela pedia para que eu parasse, implorava para que eu parasse. Sua pele completamente arrepiada, mais parecia uma lixa. Mas eu continuava e continuava e continuava... Assim foi a nossa noite. Pela manhã, talvez nove horas, talvez meio-dia, sinceramente não fazia a menor ideia acordamos. A tia Maria, claro, já estava de pé. Sentei-me com a Virgínia na sala ao lado do Tchélo e Bínchi. O Dodô vinha arrastando o tênis, sem camisa e de mãos dadas com a namoradinha dele para se juntar a nós na mesa de jantar, visto que ninguém se arriscava a se sentar no sofá fedorento. Finalmente a tia Maria chegou, nos deu bom dia, mas sem nos olhar. A sua atenção estava voltada para o teto numa procura por algo que nós sabíamos bem o que era. – Tá procurando alguma coisa tia Maria? - Não se conteve o sobrinho mais filho da puta do mundo, prendendo o riso antes de confessar que tínhamos assaltado o toucinho e deliciado tudo sem ela. – Estranho... - Respondeu ela intrigada.

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– O que foi? - Perguntou Dodô, esperando que ela desse uma entrada, para que ele pudesse enfim contar. – É que tinha uma peça de toucinho ali no teto... - Começou a dar a tal entrada tia Maria. – Hã? - A esta altura todos riam com uma cumplicidade infantil. – Um toucinho... Um toucinho que eu estava usando numa simpatia. Eu tenho que passar aquela peça um mês e meio nas feridas das minhas pernas pra elas secá tudo. Eu já passei quinze dias, mas ainda faltam quinze dias. Neste momento a tia Maria levantou o seu vestido até a altura dos joelhos para ilustrar o que ela falava. A coleção de feridas mais nauseabunda nos fora apresentadas naquele momento. Automaticamente cada um correu para uma saída da casa. O que os outros fizeram eu não sei, mas me lembro que vomitei por muitas semanas. Depois dessa não nos restava outra opção. Partimos. Deixamos as garotas em BH e sei que da última vez que o Dodô tentou fazer contato, ele só ouvia o som de alguém vomitando do outro lado da linha. O Cara de Rato disse que a Virgínia pediu para que ele nos passasse um recadinho: “não liguem mais para a minha casa enquanto o mundo for redondo”. É... A vida tem dessas coisas.

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Um estranho em seu lar

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“Em casa, em casa, você estará em casa e um dia todos eles voltarão para casa. O que isso significa? Não tem de significar nada. Você só tem de murmurá-lo, murmurar... Ou cantar uma canção sem palavras com o violino dele”. Anne Rice

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Ao voltarmos para o Rio de Janeiro depois da nossa bizarra viagem, percebemos que o ambiente, a atmosfera, o clima, era nitidamente hostil à nossa presença. Era uma repulsa daquelas bem sólidas. Os buchas e os comédias se afastaram da sede automaticamente ao chegarmos. Até os nossos amigos considerados “braços”, também não conseguiam disfarçar o receio de permanecer ao nosso lado. Ao espremer o Érick, pudemos ter uma visão ampla do panorama adverso do bagulho. – Cavalheiros... Tá sinistrão para vocês. Vários amigos, de vários lugares, inclusive de dentro do GEPE, tão dizendo que o Claudinho e o Major Marcos querem um de vocês. E não é para namorar pelado não... – Qual foi responsa? Que que tá rolando? - Começava a inquisição sob o comando do implacável Bínchi. Que puxou uma cadeira, se sentou e demonstrou um interesse pelo assunto, que por si só significava um tipo de intimidação. Era uma técnica de persuasão inerente àquele crioulo. E o Érick não seria o primeiro a resistir. – Tá geral falando na cidade que os “P2” foram lá em São Gonçalo, chegaram lá vestidos com o uniforme da gente e pagaram cervejas para alguns buchas... – E aí? Fala! - Insistiu Bínchi no seu estilo anti trégua. – Quem falou do ataque que vocês deram, nem tava no bagulho tá ligado? Aí os vermes falaram a pampa e deixaram geral de ego duro. Começaram falando que o bonde tava pesadão, que tava geral certo de quebrar os “alemão” mesmo... Aí os egos de geral gozou. – E aí? - Dodô com calma pediu para que ele finalizasse a história. – Aí, esses comédias que só ouviram falar e não estavam presentes no acontecido, inventaram herói... – Hã? - Indaguei. – Disseram pros “P2” que vocês quatro tramaram a história e executaram o Defunto. – Como é que é? - Juro que tive uns cinco minutos de bloqueio auditivo. – É responsa! - Fez questão de confirmar Érick. – Porra! E quem foram estes comédias? - Indagou Tchélo se levantando e deixando a cadeira cair. – Ó, não sei de nada hein? Quem bateu o boletim pra mim foi o Nélio. Liga pra ele. Não sou delator, valeu? Eu liguei pro Nélio porque os vermes estão sufocando. Eu tinha que saber qual era pô! Todo dia tem dois aí procurando vocês.

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Ao ouvirmos este último detalhe pegamos as nossas coisas e saímos imediatamente da sede. Visivelmente Bínchi era o mais revoltado. Muito mais revoltado por estar levando a fama de linchador sem sequer estar sabendo o que ia acontecer no momento do crime. As nossas fontes dentro do GEPE davam conta que, tanto o Presidente da SUDERJ quanto o comandante do GEPE, haviam tomado o episódio da armadilha como um insulto direto, um desafio feito com o único intuito de desmoralizar as instituições e debochar das autoridades desafiando-as com a quebra do acordo feito na ocasião do Congresso de Torcidas. Em todos os lugares, instituições e similares existem membros de Torcidas Organizadas de todos os clubes. É como se nosso movimento funcionasse na clandestinidade, secretamente em alguns lugares. A associação com Torcidas Organizadas dentro da polícia é expressamente proibida, mas como todas as outras proibições, esta era mais uma desprezada com facilidade. Vários policiais quando não estão a serviço do Estado, fazem biscates na segurança e contenção de Organizadas. Esta proximidade nos permitiu confirmar as péssimas histórias que nos recepcionaram. Estávamos na sexta, e, no domingo, teríamos uma rodada importante. Seria “A rodada do campeonato”. Um jogo importantíssimo. O Deportivo poderia finalmente se isolar na liderança do campeonato. Sabíamos que seria uma situação nova, que talvez a polícia adotasse um tipo de comportamento que nunca havia adotado antes. Enfim. De certo mesmo, nós só tínhamos era a conclusão que as coisas nunca mais voltariam a ser como antes. Tomamos as providências rotineiras e às doze e trinta estávamos na porta do Maracanã para entrarmos com o material. Na cara de pau. O funcionário abriu o portão para que o pessoal do patrimônio entrasse e imediatamente tivemos a primeira demonstração de intolerância extrema. Um soldado desceu a rampa correndo e gritando: “O palhaço! Coloca este pano de chão em cima deste cadáver sujo. Aqui não é a casa da tua mãe pra tu entrar sem camisa”. Sinceramente aquela era nova. Obrigatoriedade? De camisa? No Maracanã? Esta foi a primeira demonstração de intolerância das muitas

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outras que nos esperavam. E realmente várias pequenas outras covardias foram sendo cometidas na revista daqueles que ingressavam no estádio com uma camisa da Kamikazes, com o pessoal da bateria, com os bondes que chegavam, com aqueles que vendiam as credenciais... Pelo visto, o dia ia ser difícil. O Deportivo vencia pelo placar de um a zero aos vinte minutos do primeiro tempo, não tomando o menor conhecimento do nosso drama nas arquibancadas. Qualquer música que cantássemos, a repressão era imediata. Os vermes vinham, gritavam, xingavam, agrediam e depois levavam alguém detido. Ficamos resumidos a um grito na arquibancada: “DE-POR-TI-VO!” Com a nossa situação sendo acompanhada por todos os torcedores na arquibancada, uma revolta coletiva extrema começou a ser gerada, àquela covardia imposta pela polícia. Não tardou para que a provocação costumeira e usada em todo o Brasil à instituição surgisse. “PUTA QUE PARIU A PM É A VERGONHA DO BRASIL!!” Todo o estádio participava do coro o que nos dava a ilusão de estarmos sendo respaldados. Talvez movido por este respaldo foi que Bínchi resolveu interceder com algo mais que diálogo, no momento em que os policiais se uniram para aplicar diversos golpes de cassetete num menino que havia acendido um sinalizador para comemorar o segundo gol do Deportivo. O menino era coincidentemente filho de um dos expresidentes da Torcida, e, também um dos nossos desafetos. Naquele momento as nossas diferenças foram suplantadas e os aproximadamente dez “vermes” que se encontravam por perto, dispostos a exercitar a supremacia tirana da força, tiveram que olhar para um espelho que refletia o seu próprio mal. Fazendo uso das técnicas mais brutais de luta, Bínchi causou muitos danos aos PMs. Diria vários danos. Todos nos envolvemos numa gigantesca confusão que infectou boa parte das arquibancadas. Mas o Bínchi se destacou. Ficou marcado por ter

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desmaiado e quebrado alguns ossos dos covardes PMs. Se algum dia o feitiço virou contra o feiticeiro, aquela situação era um destes dias. Em meio ao violento estado de porradaria instalado, mais e mais policiais chegavam, assim como mais e mais torcedores do “povão” se juntavam a nós. O caos na Terra. Ao perceberem que todos os policiais que chegavam para reforçar o grupo que estava na arquibancada vinham diretamente para nós, o bonde da Torcida começou a forçar a nossa saída. Era a única maneira de proporcionar um desvio estratégico e um consequente alívio para todos. Além do mais, estávamos feridos. Nada se comparados ao negão. Uma suspeita de fratura no braço esquerdo e a cabeça quebrada em vários lugares. Por todo o rosto havia bastante sangue. Dali fomos direto para o hospital Getúlio Vargas no bairro da Penha, graças à interferência dos nossos amigos soldados do GEPE que pertenciam a Kamikazes. Um sufoco inexplicável até conseguirmos um táxi. Antes de embarcar no táxi, olhei para o ônibus da PM que serve de cadeia provisória para aqueles que são presos no estádio. Estava lotado. Todos muito feridos. Não poderia fazer muito e por isso partimos para buscar atendimento para o Bínchi que já estava desmaiado. Na verdade, ninguém pegaria prisão perpétua ali. Seria um sustinho e todos seriam mandados para casa. O caso éramos nós. Tudo rápido. Tudo a jato. Tudo se passava em flashes. Num flash eu estava entrando no táxi e no outro eu estava chegando ao hospital. O policial de plantão nos olhou, anotou algo numa prancheta e nada perguntou. Algo levantou suspeita para o Dodô. – Coé Máicou. Vamu ralá que sinistrou o bagulho. Rápido assim. - Logo que chegamos algo o avisou. Nada perguntei. Fui até o guichê onde o Tchélo fazia a ficha do Bínchi e disse a ele para que esquecesse aquilo tudo. Que fôssemos embora imediatamente. Ele também nada comentou, provando o quanto a nossa parceria era estreita. Carregamos o Bínchi ainda desmaiado com o braço inchando como se fosse um efeito de cinema. Entramos num outro táxi e, ao virarmos a esquina para buscar atendimento num

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hospital particular, vimos um carro subindo a rua em direção ao hospital em alta velocidade. – Caralho! O que tá acontecendo ali? Será que é outro fodido chegando? - Perguntou Tchélo. – Não é não responsa. Tu me viu falando no celular Máicou? Perguntou-me Dodô. – Vi. Quem era? – Era o Torres do GEPE. Aquele que a gente da quinze ingressos por jogo e fica todo alegre, sabe qual é? – Sei. – Ele ligou para avisar que tinha partido um bonde só de “quebra” pra sacudi a gente dentro do hospital. Só veio quebrador sinistro. Em silêncio nos dirigimos a uma clínica particular. No boletim dissemos que havia ocorrido uma briga no estacionamento do nosso prédio. Sem maiores detalhes. O complô estava caracterizado. Era a nossa obrigação não cumprimentar o azar. Devíamos abandonar os estádios e nos recolher para o bem da nossa sobrevivência. Mais uma vez recorremos ao pessoal de São Gonçalo, que não se furtou à oportunidade de nos ajudar. A merda toda começou a feder graças a alguém de lá, mas soubemos entender - após a absorção do impacto da realidade - que ninguém era mais adaptado às pressões que o universo das Torcidas criava, que o bonde de São Gonçalo. Por lá ficamos um bom tempo nos escondendo como bandidos até percebermos que a poeira havia abaixado.

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A Rodada final

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“Na longa e solitária estrada da vida ando de mãos dadas comigo mesmo” Lou Reed

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Finalmente, depois de tantas idas e vindas, a última rodada havia chegado. Como o último resultado útil para efeito de tabela ocorrera numa quarta-feira, só tínhamos três dias para preparar todo o necessário. A final seria decidida no último jogo da última rodada e, como se não fosse o suficiente para me castigar pelas minhas duras e radicais opiniões contra o sistema de pontos corridos, o campeão não só sairia na última rodada, mas também num mesmo jogo. Pelo segundo turno o Deportivo enfrentaria o seu “bebê de Rosemary”: O Olímpico. No último jogo teríamos de enfrentá-los na condição de segundo colocados, pois eles estavam um ponto à nossa frente depois de várias combinações que nos prejudicaram. Uma vitória simples seria o suficiente para que nos sagrássemos campeões. Sabíamos da facilidade que o Deportivo teria para executar esta tarefa, levando em consideração que no primeiro turno havíamos batido o Olímpico tão facilmente. No jogo “da carnificina” lembram? Foi assim que aquele dia ficou conhecido. A Torcida passou a cantar músicas e mais músicas sobre aquele dia. O que não nos ajudou em nada. Ninguém entendia muito bem o motivo que levou o Deportivo a chegar em segundo lugar na final - leia-se última rodada. Uma série de erros absurdos das arbitragens gerou revolta da Torcida, principalmente pela falta de atitude do departamento jurídico do clube, que via o Deportivo ser “assaltado” jogo após jogo e não tomava uma providência. Nós estávamos afastados mesmo depois dos últimos episódios e por isso, a nossa atuação só voltou a ser digna destas páginas apenas nos dias que antecederam o jogo final. O conselho da Torcida nomeou alguns membros para ocuparem os nossos cargos enquanto estávamos foragidos a nosso pedido. Na rodada final, claro, nós não poderíamos (nem que assim quiséssemos) ficar de fora do processo. Portanto, a narrativa recomeça concomitante à nossa volta depois do exílio em São Gonçalo. Durante o tempo de preparação para a final, talvez o único problema, seria uma superstição que dizia sobre certo “super poder” que era conferido ao Olímpico nas finais devido ao peso de sua camisa. Tolices. Crendices que não funcionavam conosco. O nosso histórico em confrontos diretos nos dava uma vantagem confortável no que se referia ao número de vitórias decisivas em confrontos diretos entre ambos os

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clubes. Tudo poderia acontecer num certo pé de igualdade. Seria emocionante. A verdade é que estatísticas em finais de campeonatos não valem nada. O poder de superação e adaptação é tudo. Depois de termos assistido o Deportivo sofrer todo tipo de revés durante o campeonato, tínhamos certeza absoluta que o time seria campeão. Os jogadores tinham perfil de campeões e conseguiram criar uma atmosfera vitoriosa em tudo e em todos à sua volta. Um grupo de jogadores que teve seus pontos conquistados legitimamente em campo, outros tantos pontos usurpados em várias e várias rodadas por decisões tendenciosas de árbitros vendidos e assim mesmo conseguiu chegar à final. Isso só poderia ser um sinal. Com tudo isso os jogadores não desanimaram um instante sequer e se mantiveram unidos sem uma mancha de vaidade. Afinal, o que pensar de um grupo de jogadores, onde alguns recusaram convites para abandonar o clube no meio do campeonato para ingressarem em campeonatos milionários em outros continentes? O que dizer de jogadores, que indo completamente na contramão do discurso ultra capitalista dos outros atletas e suas roupagens e sofismas sobre independência financeira, respondiam da seguinte maneira à mídia: “Só vou para o exterior por cima. Só vou depois que for campeão no meu país”. Uma atitude assim derrota o adversário antes mesmo do jogo começar. Principalmente o Olímpico, que havia perdido nada menos que seis jogadores para a ganância - de jogadores e empresários - de se dar bem no exterior. A ganância deles e de seus empresários e outros cartolas. Esta questão gerou uma discussão ética na semana do jogo final, onde uma enquête popular revelou que o povo pensava que a CBF deveria se portar da seguinte maneira quanto à transferência de atletas para o exterior: Todo jogador revelado no clube só poderá "buscar a sua independência financeira" no exterior depois de dar o retorno à Torcida do clube que o revelou em um dos seguintes formatos: 1º. Ao completar 25 anos. 2º. Ao sagrar-se campeão estadual três vezes (neste caso não implicando a idade o atleta estará liberado das suas obrigações e livre para buscar a sua "independência"). 3º. Ao se sagrar campeão nacional.

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4º. Ao sagrar-se campeão da Taça Libertadores da América. 5º. Ao sagrar-se campeão da Copa do Brasil e mais um título Estadual. 6º. Ao sagrar-se tri-campeão de juniores e também campeão Estadual, ou também, campeão da Copa do Brasil. Simples... Na quinta-feira de manhã partimos para a sede do clube. A paz e quietude tradicionalíssimas da nossa bucólica sede na zona sul do Rio, havia sido substituída pela loucura dos dias que antecedem uma final tão importante. Fila para comprar camisas na boutique do clube, arquibancadas lotadas de torcedores assistindo aos treinos e a movimentação do pessoal do patrimônio das Torcidas para organizar a festa nas arquibancadas no domingo. Precisávamos encontrar o Marcos Henrique (responsável pela distribuição dos ingressos e um dos reis máximos de toda a falsidade) para esclarecermos as circunstâncias da final. Nós tentaríamos obter pelo menos quinhentos ingressos a mais levando em consideração que haveria um aumento natural do nosso bonde. Ao chegarmos, encontramos com o Faustão e o Renato Maluco, vindo da direção da nossa sala no clube. Eles estavam ajudando na troca das peles dos elementos da bateria e passaram pela direção procurando alguém que lhes pagasse um almoço. – Fala lóides! - Era o Renato Maluco sorrindo para nós com aquele nariz torto. Apesar de termos tomado o lugar de Presidente dele no golpe, ele soube identificar com exatidão os “Judas” e nos apoiou quando declaramos nossa independência e elegemos a nossa diretoria. Sempre fomos bons amigos. – Fala! Tão fazendo o que aqui? Pedindo esmola? - Aproveitei para dar uma sacaneada básica nos dois. – E coé Máicou? Vai te tomar no centro do teu cu rapá. Tamo lá fortalecendo a Torcida. Isso é obrigação de vocês. - Começou a se expressar com sua “delicadeza” costumeira o meu favorito: Faustão. – Calma meninas! Sem frangagem. - Fez questão de desacelerar a encarnação o crioulo mais chato do mundo. – Vamos almoçar juntos no salão?

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- Ihhh! Demorou! Que horas? - Faustão como sempre parecia estar faminto. – Cheguei aqui às oito da manhã e só deu pra comer dois doces de abóbora e meia paçoquita... – Daqui à uma hora e meia, mais ou menos. A gente vai resolver um bagulho com o Marcos Henrique e... - Neste momento, todos ficaram estarrecidos com uma visão. Não podíamos acreditar. O Tchélo esfregava a vista e contraia as mesmas tentando reduzir a miopia. Não era possível, mas estava acontecendo. João Caneta, um dos caras mais pichados integrantes da Organizada Jovem, dentro da sede do nosso clube. Olhamo-nos e já partimos para cima dele, mas dois seguranças chegaram rapidamente a nós contendo a nossa iniciativa. – Coé amigos? Fiquem aí que o bagulho é maior do que vocês imaginam. – Que que esse cara tá fazendo em solo santo Souza? - Tchélo perguntou para o chefe da segurança, que era um dos caras mais gente fina que eu conheci na vida. – O Chicão chamou ele aqui pra peneirar ingressos na final. – O quê? - Dodô perguntou ao Souza com um sorriso de nervoso no rosto. – Como é que é responsa? - Escandalizou-se Renato Maluco. – Pois é meus amiguinhos. Ele tem as costas quentes no clube. Ele penera para o Chicão. – Ahh! É mesmo é? - Se interessou Renato Maluco. – Interessante... - Observou Faustão quase simultaneamente ao comentário de Renato Maluco. Os dois se olharam e começaram a coçar o rosto num gesto próprio de quem muito se interessara por algum assunto. Uma súbita pressa tomou conta do Renato Maluco e de Faustão que, se apressaram em seguir o Souza sabe-se lá para quê. A “peneira” a que o Souza se referia era a venda de ingressos feita por cambistas abordando um torcedor a um nas proximidades dos estádios. Havia formas mais seguras para a venda de ingressos, como a utilizada pela máfia das bilheterias que é composta exclusivamente por funcionários do Maracanã. O princípio desta máfia é simples: Os funcionários das bilheterias não vendem os ingressos da casa. No lugar destes, são colocados à disposição do público os ingressos trazidos pelas conexões mafiosas para dentro da bilheteria. Para gozar desta conveniência, o portador dos ingressos que desejasse disponibilizá-los no sistema da

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máfia, se via obrigado a pagar um tributo aos mafiosos maiores. Talvez fosse este pagamento deste “pedágio” que o Chicão estivesse tentando fugir chamando o João Caneta para peneirar.

Exercendo o direito de transitar livremente pelo clube escolhemos um para encontrar o Marcos Henrique, já que nenhum funcionário do clube tinha a menor ideia da sua localização. Como eu sabia que era certo dele estar nas dependências do clube, saímos eu, Dodô, Bínchi em direção à sala da Torcida Organizada, enquanto o trabalho duro e desagradável de procurar o cartola dentro do clube havia ficado com o Tchélo. Claro que ele falou pra cacete, protestou, mas de acordo com o nosso sistema particular de rodízio, de nada valeram os seus argumentos. Era a vez dele de procurar pelo “Judas”. Ao chegarmos na sala ficamos surpresos com a quantidade de voluntários, que num bom humor maravilhoso, picavam papel, lavavam bandeiras, etc. Enquanto o pessoal da bateria trocava as peles e afinava os instrumentos... Enquanto isso, o pessoal voluntário cantava o nosso hino e as nossas músicas mais indecentes sem parar sob os olhares cheios de ojeriza e asco que os sócios mais grã-finos dirigiam a nós. Chamei Dodô e Bínchi num canto e perguntei o que eles achavam da ideia de bancarmos um lanche reforçado para geral. Os dois aprovaram a ideia de cancelar o almoço prontamente e também fizeram questão de ir pessoalmente buscar o pequeno banquete. Logo Renato Maluco e Faustão voltaram do seu misterioso passeio pelo clube. – Ai Máicou. Tá tudo dado. - Já chegou no ambiente desfazendo o mistério Faustão. – Como assim Faustão? - Gostaria de obter mais detalhes. Eu queria me distrair com alguma conversa. – O Souza abriu o jogo para nós que o Judas do Caneta penera ali na Radial Oeste. – E ai? – E ai nada né responsa... - Desconversou Faustão. Também não prolonguei o assunto. Tinha um baseado rolando no dichavado dentro da sala, e eu, claro, não queria perder a minha vez por causa de conversa fiada.

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Depois de meia hora chegavam Dodô e Bínchi numa pick up de um mercadinho. A reboque trouxeram dez caixas de cerveja, sacos de gelo, pães, queijos, presuntos, refrigerantes, frutas, balas, chocolates, água mineral, pizzas e outras guloseimas. O pessoal fez festa como se fosse um gol numa final aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo. Sob o efeito de um bom bagulinho comemos pra caralho. Começamos a beber cerveja e não tardaram aparecer garrafas de cachaça que foram automaticamente convertidas em litros e litros da mais deliciosa caipirinha. Neste meio tempo, enquanto a festinha rolava solta, apareceu o Tchélo com uma cara assustada, branca, como se tivesse visto um fantasma. Chamou-me no canto onde eu estava parado, destacado, curtindo uma super onda de bagulinho e falou: – Caralho cara! Tu não tem noção do que ouvi responsa. E eu meio doido demais: – Viu o Presidente fazendo meinha? – Pô cumpadi ai... Os cara maluco... Os cara do conselho maluco ai... Pedi calma para ele. – Ô Faustão, ô Faustão. Traz um copo de cerveja pro Tchélo que eu acho que ele deu um rabisco no sapatinho. – Responsa... Não tô brincando. Os caras tavam fazendo uma reunião bisonha. - Ele parou de falar quando percebeu a aproximação do Faustão com o copo de cerveja. Ele aceitou o copo e deu um gole firme. Ele precisava de uma bebida. Sentindo que o clima era pura neurose e por ter muitas outras possibilidades de diversão acontecendo ao mesmo tempo, Faustão se voltou para a festa. Daí, mais calmo, ele começou a tentar fazer algum sentido para mim. – Máicou... – Hã? Vai me explicar este bagulho ou não? Tá rolando uma festa cara... – Entrei pela porta do primeiro corredor. Quando tentei passar pelos seguranças para procurar o Marcos Henrique lá dentro fui barrado. Os seguranças disseram que não passava ninguém, que tava proibido até pra gente. Achei estranho pra cacete né? Nunca vi isso. Eu fui à sala do Montanaro, que também estava vazia, e peguei aquele atalho que faz a

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gente ter acesso à porta dos fundos do corredor de reuniões. Lá não tinha nenhum segurança, aliás, não tinha ninguém. Tava tranquilão e eu sai invadindo. – E ai? – Ouvi uma falação do caralho e me aproximei no sapatinho. Sabe aquela sala que tem uma mesa grande pra caralho? – Sei. Aquela que ia ser a sala de registros do Deportivo na mídia? – Isso cara. Lá mesmo. – Então... – Fui chegando no sapatinho para não tomar uma chamada. Se fosse assunto muito sério eu ia voltar pelo mesmo lugar. Aí responsa, eu ouvi aquele velho que não gosta de mim, o Ribeira, dizendo: “É um bom preço. Nós não esperávamos chegar tão longe mesmo. E de mais a mais este dinheiro vai proclamar a nossa independência financeira. Isso sem falar que nas altas esferas do gabinete do Ministério, teremos este registro de bons serviços prestados”. – Não tô entendendo Tchélo... – Escuta. Tem mais. O Marcos Henrique falou: “Tudo bem. Eu concordo em vender o título. Nós só precisamos organizar o romaneio da tragédia. Temos que tomar providências banais tais como encomendar o chopp, etc. Temos que despistar”. – Peraí Tchélo. Você tá me dizendo que ouviu os caras combinando de vender o título mais fácil da nossa história? – É! Eu ouvi. – Tu tá louco. – Cara, aquele filho da puta do Ribeira dizendo que o pedido partiu do governo eu não vou esquecer. É uma maneira de inebriar a maioria do país que é torcedor fanático do Olímpico. É uma maneira, pelo que entendi, de desviar a atenção e abrandar a revolta pelos altos índices de inflação e de desemprego que vão arrebentar logo depois das eleições. O desemprego este mês vai arrebentar e o mais importante: Eles tão forçando a barra para aprovar aquele projeto que entrega o petróleo pros gringo, liberar a base de Alcântara e dar sinal verde pro império instalar a ALCA logo. Tudo numa tacada só. Pelo que eu pude entender, vamos ter vários eventos que vão desviar a atenção do povo numa sequência de cinco anos. Enquanto isso eles botam no nosso cu. Este é só um deles, eu...

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– Para, para, para que eu quero descer. - Fiz questão de interromper aquela sandice toda. – Eu sei que tu odeia o Ribeira, mas... Porra! Passou do limite da teoria da conspiração e da paranoia. O Tchélo não demonstrou nenhum aborrecimento pela “trava” que eu havia lhe dado. Ele estava tão transtornado, tão absorto naqueles pensamentos, que seus olhos e seus gestos transbordavam insanidade. Parecia que ele havia perdido o controle da coordenação motora. – Tá bom. Vou ralá então... - Disse Tchélo num estalo. Tipo se despedindo e andando sem dar tempo para receber um aperto de mão sequer. – Ô rapá. Volta aqui estranho. Vamos fumar um baseado e beber cara. Tá sobrando. Para com isso... Volta aqui caralho... Ô! Porra! Não adiantou o meu apelo. Ele foi embora repetindo pra si mesmo que tinha muito que fazer e tal... Neste instante o Renato Maluco chegou perto de mim e me puxou pra um desenrolado mais individualizado. – Vamos se divertir responsa. Olha as cachorras que acabaram de chegar, olha. Era um grupo de doze mulheres mais ou menos. - Logo, logo eu já tinha esquecido do Tchélo. Quando os olhares se cruzaram e a orgia parecia estar tomando um formato mais definitivo, já tinha alguém me chamando outra vez. “Maicou! Vamos na minha sala resolver o domingo?”. Era o Marcos Henrique. Não podia perder a oportunidade de resolver tudo. Para ser sincero achei que tudo foi resolvido com uma facilidade surpreendente. Até as quinhentas credenciais foram colocadas no romaneio sem as discussões costumeiras. Feliz da vida chamei um táxi pelo telefone e chamei Dodô e Bínchi para partirmos. Estava pensando em dormir, mas eu sabia o quanto seria difícil conseguir tempo para fazê-lo. Ao invés de irmos para sede da torcida onde pernoitaríamos, desviamos o caminho para uma das casas de massagem mais caras do Rio de Janeiro. Cada um de nós escolheu uma das piranhas mais caras da zona. Depois de fodê-las nos sentamos para beber uma garrafa de uísque das mais caras também. Sai do ar e só me lembro do Dodô e do Bínchi me carregando. Estava tocando “Paris, Paris” do Kid Abelha dentro do puteiro. Como não havia mais clientes às cinco da manhã as prostitutas aproveitavam para fazer um

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relaxamento com as suas músicas favoritas e suas bebidas. Nós ainda estávamos lá até essa hora. Não dava pra sair andando. Na sexta-feira voltaríamos ao clube para fazer o resgate dos ingressos combinados. Liguei para o Tchélo, que me respondeu alucinadamente que andava muito ocupado e desligou o telefone na minha cara. Liguei para o Bínchi que estava se dirigindo para uma reunião na Pavuna, pois de lá ele pretendia puxar um bonde monstruoso. Coisa de seiscentas cabeças. O Bínchi andava muito revoltado com os acontecimentos que decretaram o nosso afastamento dos estádios. Àquela altura era nítido que ele desejava declarar guerra a todo instante contra eles. Seja lá quem fossem eles. Eu não conseguia dissuadi-lo desta péssima ideia. Ainda faltava dar um papo no Dodô. Eu tinha certeza que ele iria me acompanhar até a sede. – Coé Dodô? – Alô filho da puta. – Vamu no clube pegá os ingressos? – Já tão lá? – Claro! Hoje é sexta-feira. Tá marcado pras três horas. Vamu? – Pô ai... Num vai dar. O meu primo me chamou pra ir lá no morro o quanto antes, porque tá precisando me da um papo. Ele ligou ainda agorinha. – Pô, logo hoje meu irmão? - Protestei meio puto por ter que cumprir aquela responsabilidade sozinho. – Vou lá e aproveito pra pedir uma contenção de uns armamentos também e o reforço de um bonde. Os ingressos a mais tão de pé? – Tão sim... Respondi meio desanimado. – Então separa cinquenta pra mim. Ó... – O quê? – Vou reservar quatro pistolas valeu? Uma pra cada um de nós. Pra gente num ficá boiando na pista na mão valeu? – Tá manêro. Fazer o quê? - Parti para o clube sozinho. Sem grandes possibilidades transformei o que poderia ser outra diversão em dever. Parti para a sede do clube e voltei no mesmo táxi para a sede da Torcida. No sábado promovi a última reunião à tarde com os monitores no clube. Aproveitamos para juntos escolhermos as bandeiras que mais representavam o nosso espírito, assim como também

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tivemos o cuidado de escolher todas as outras bandeiras que estiveram presentes em nossos títulos. Horários, pagamentos, quantidades, cuidados... Tudo. Absolutamente tudo. Tudo organizado com antecedência. Os jornalistas como de costume estavam em polvorosa com a final carioca do campeonato brasileiro. A única entrevista coletiva dada pelos dois clubes antes da final estava marcada para aquela tarde. Simultaneamente. Num estilo coletiva de boxe. Às quinze horas o presidente da Federação de Futebol anunciou as regras da coletiva, tais como o número de perguntas permitidas a cada jornalista, etc. Foram adotados critérios para a escolha dos repórteres que fariam as primeiras perguntas (lógico que as melhores perguntas eram feitas pelos primeiros jornalistas, que, consequentemente, trabalhavam para os maiores jornais). Abandonamos as tarefas da organização da festa e fomos para a cantina do clube para assistir a entrevista. Os mesmos estereótipos de sempre. Poucas novidades dignas de serem mencionadas. Jogadores de futebol, basicamente, são uma mistura de "com certeza" no começo de todas as frases, com o altruísmo representado pela necessidade de fazer a qualquer custo todos acreditarem que ninguém vai pensar ao máximo em se destacar individualmente. Aí sai: "Pretendo ajudar a todos os meus companheiros a fortalecer o grupo e levantarmos a taça juntos". É sempre assim... De interessante mesmo só uma colocação do Lauro Leoni, técnico do Deportivo. O Lauro Leoni era um típico técnico de futebol. Era um cara de meia idade que nunca gaguejava quando falava, até porque falava muito pouco. Tinha uma cara sisuda naturalmente e era tosco pra caralho nas suas considerações. Ele sabia que aquela onda de "luz, câmera, ação"; aquela cinematografia toda não combinava com os próprios caras criados no futebol. Apesar disso ele não achava que a espetacularização fosse uma palhaçada. Ele sabia que aquele circo rendia muita grana e que de um jeito ou de outro era sábio respeitar aquilo tudo, porque afinal era aquela presepada que fazia o futebol ser tão rentável. Para ele, aquilo tudo era uma parte chata à beça, mas necessária. Como um exame da próstata. Na metade da entrevista uma jornalista, que era sobrinha de um conhecido editor perguntou a ele:

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– Seu Lauro... Como o senhor trabalhou o favoritismo na cabeça dos seus jogadores? Ele tirou o boné da cabeça e olhou pra ela bem dentro dos olhos. – Você tá há muito tempo no futebol minha filha? Quantas vezes você viu uma final ser de acordo com a lógica? Vou te ensinar uma coisa. Esse negócio de favoritismo é conversa. Quem ganha à vida no papo é político - os risos foram contagiando inevitavelmente todos os outros jornalistas -. Basta o meu time perder a concentração personificando o favoritismo, achando que ele é uma pessoa e que vai entrar em campo com eles pra resolver, que um ano de trabalho vai pra dentro do ralo. Favoritismo hã... Faça-me dois favores... Próxima pergunta. Nós que assistíamos a coletiva sentimos a força, a coletividade, a compreensão da necessidade da humildade para se alcançar a vitória, que nós, torcedores, ainda não tínhamos tomado conhecimento. Que ainda não sabíamos estar presente. A certeza foi arrebatadora. Seríamos campeões. Fiquei tranquilo e parti pra minha casa. Já que os meus chegados estavam super ocupados resolvi aproveitar a calmaria para aparecer em casa para ver o pessoal. A galera na esquina me saldou com alegria. Pedi umas cervejas e ficamos conversando. Depois de horas e horas matando a saudade dos meus amigos de infância, me dei por vencido pela cachaça e fui para casa. Quando cheguei, percebi uma movimentação atípica no meu chatô. Rapidamente descobri que nada tinha a ver com a minha chegada. Foi a minha mãe quem virou para mim e estava prestes a começar uma conversa muito marcante na minha vida. Certamente tão marcante quanto aquela que anunciou a morte do meu irmão. – Meu filho... - Aquele tom grave tinha uma pitada de hesitação, de receio escondida. O seu amigo Dodô... – Sim mãe, ele ligou? – Ele morreu. Senta aí. Ele morreu. - Disse-me com a sua inabilidade natural para dar notícias pesadas. Com ela não havia essa coisa de traumas; se acontecer é para ser administrado sem frescuras. No subúrbio é assim. – Como é que é mãe? Isso não é possível. Nesse momento, enquanto a senhora me diz isso, ele tá na maior segurança com o primo dele... Não!

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Não! Que loucura é essa porra? Tá todo mundo ficando piroca da cabeça de repente? - Comecei a responder a fisionomia de todos à minha frente. Aos gritos. Não era brincadeira, até porque a minha mãe não brincava. Nunca. – Foi a irmã dele que ligou. Ela falou que teu celular só cai na caixa postal. Eu havia me esquecido do meu celular. Ele estava sem que eu desse uma carga na bateria sabe-se lá desde quando. Era uma tática que eu costumava adotar sempre. Era a única maneira de se ter alguma privacidade e ritmo no trabalho de organizar as coisas. Desnorteado com a constatação de que ela realmente havia me ligado - e por isso havia descoberto que meu telefone estava fora de serviço -, comecei a ver lógica mesmo não querendo admitir. Resolvi carregar o celular e deixá-lo ligado. Mas como? O que aconteceu? A caixa postal como sempre transbordando de recados. Depois que liguei o telefone, não foi necessário aguardar mais que um minuto. O telefone tocou e vi o nome no visor: “Gisele”. – Máicou? – Fala cara! Era o Bínchi. – Tá sabendo de alguma coisa estranha? – Que que tá pegando? O pessoal tá com umas notícias aqui que eu não tô entendendo. – Ó responsa... O Dodô subiu no telhado. Ficou de bigode. Sinistro... Fez questão de confirmar o acontecido sem demonstrar nenhuma afetação, nenhum abalo... – Como é que foi esse bagulho? – Os “alemão” tomaram o morro. Prenderam o primo dele e tomaram o celular dele. Começaram a ligar para todos, chamando geral pro aniversário do matuto e que ia rolá uma marola de respeito e talento. Aí, geral acostumado com as festas lá, né? Foram todos pra lá... – Acho que os caras ligaram pra tu também. Teu telefone não tava na agenda do primo do Dodô? Nesse momento dei uma conferida nas mensagens e ouvi uma conversa embolada de alguém obviamente bêbado ou drogado falando pra chegar no morro que ia ter pagode e tal... A minha sorte foi o telefone estar desligado. Como eu não tinha nada para fazer e estava me

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sentindo meio abandonado, certamente eu teria ido para o morro curtir a tal “festa”. – Que que tem o Dodô Bínchi? – O Dodô... Bem o Dodô foi pro microondas. - Foi aí que ouvi o som do Bínchi chorando pela primeira vez em todo o nosso tempo de convivência. Fiquei tão desorientado, que desliguei o telefone lentamente sem sequer pensar em me despedir, ou pelo menos consolar o amigo que estava nitidamente arrasado do outro lado da linha. Coloquei a mão na boca como se alguma coisa horrível pudesse sair de lá de dentro. A lágrima desceu. Aquela confusão gerou um turbilhão de todas sensações de náusea que eu já sentira na vida. Tudo isso culminou na erupção do vômito mais doloroso fisicamente que eu tivera o desprazer de experimentar. Todos me cercaram para me levantar. Eu só pensava numa coisa: Não seria mais possível para o Dodô ceder os seus órgãos para transplante. Muito depois quando acordei, na cama da minha mãe, o Tchélo estava ao meu lado, sentado, lendo calmamente uma revista. Ele não me deu o direito de ter nem o primeiro momento de sofrimento logo assim que acordei. Ele foi direto e reto como uma régua. – Se liga Máicou... - Ao perceber que eu havia acordado, começou a conversa fazendo uso de uma voz ríspida para começar aquele papo. – Tu vive na vida tanto quanto o Dodô viveu pra saber que o próximo pode ser você ou eu... Foi a vida que a gente escolheu. Sem remorso, sem pena. A gente tem um compromisso com os nossos vivos amanhã. Isso não nos da o mínimo direito de nos fragilizarmos. A gente chora nas missas de sétimo dia e um mês dele. Agora precisamos nos concentrar, porque além do perigo natural, temos uma conta pra acertar com eles que é aquela parada do Defunto, né? Tu sabe que eles podem criar uma situação. - Então... Assim, o Tchélo fez questão de me ativar todas as noções que um líder deste segmento de sociedade deveria ter bastante claras em qualquer momento. Ele tinha toda a razão. Aquelas palavras foram bastante claras e diretas até o meu coração, e depois, se alojaram no meu cérebro. Dali levantei e fui tomar um banho. Arrumei-me e me despedi do pessoal saindo rápido com o Tchélo. Fomos para sede da torcida. Seria mais prático amanhecer lá.

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Desligamos os celulares e contrariando todos os nossos cronogramas fomos dormir cedo. Toda a promessa de festas havia se esfarelado. Já deitado no chão sobre uma bandeira, perguntei ao Tchélo algo que me intrigava: – Tu sumiu cara. Qual foi? – Não esquenta! O que é meu tá tudo resolvido. Como a minha aptidão no momento para desenvolver qualquer assunto era zero, fechei os olhos e dormi surpreendentemente rápido.

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É hoje

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“Os momentos que antecedem uma tragédia são piores que o seu desfecho” Kafka

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Acordei às seis da manhã. Na verdade eu não consegui dormi direito depois que acordei para fumar um cigarro às duas e dez da madrugada. O barulho dos ponteiros do relógio estavam me incomodando demais. Lembro-me de alguns cochilos de trinta minutos no máximo. Eu nunca havia percebido o número de decibéis que o ronco do Tchélo alcançava. Aliás, todas as vezes que o bonde estava junto ninguém dormia: Desmaiava-se. Um trem poderia passar do nosso lado e isso não seria notado. Dei uns chutes nele e falei: “Levanta! É hoje!”. E ele fez uma cara feia, passando as mãos de maneira brusca pelo rosto e levantou-se de uma vez só. Aproveitamos para descer o quanto antes e desta forma curtirmos um desjejum na mais absoluta paz. Às oito e trinta começaram a chegar os grupos e os solitários que pertenciam à primeira Farândula. O de sempre... Grupos de quinze pessoas, de dez, três... O já tradicional clima de tensão havia chegado também. Poucas diversões que pudessem nos privar de nossa consciência e atenção eram vistas sendo aproveitadas. Para relaxar, apenas uma garrafa plástica de refrigerante de dois litros com caipirinha bastante forte e alguns poucos baseados, finos de cadeia apenas para relaxar. É fundamental usar estas “ferramentas” para alcançar um mínimo de distanciamento da tensão excessiva. Muita tensão trava o reflexo. Aquela resposta simultânea necessária como resposta a certas ações que sofremos. Atitudes estas tão necessárias em situações de risco extremo. Os nervos ficam rijos e o corpo acaba não obedecendo aos comandos quando estamos muito tensos. É um risco. Medo é legal, porque aumenta a atenção, mas tensão é ruim. Às onze e trinta tudo estava preparado. Estava surpreso por ver como tudo corria relativamente bem. Como a minha cabeça estava com problemas para manter um mínimo aceitável de concentração, fiz uso da prancheta do Dodô, com a lista dos compromissos a serem honrados. BANDEIRAS BATERIA ÔNIBUS SEGURANÇAS SEGURANÇAS

ok ok ok (em aberto) (em aberto)

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E assim fui podendo manter um contato visual mais próximo daquilo que estava sendo realizado. O nosso horário de partida para o Maracanã era doze horas em ponto. Então às onze e trinta era o momento ideal para obter uma confirmação junto aos monitores do avanço do planejamento. Duas Farândulas ainda não haviam confirmado a chegada da escolta. Pavuna, de onde o Bínchi havia decidido sair com um bonde para entrar para a história, tamanho o volume de pessoas e carga de malignidade, e, Nova Iguaçu. Liguei primeiro para o tula (monitor de Nova Iguaçu). – E aí Tula? Beleza? – Mais ou menos... Hoje o Dodô vai fazer uma falta do caralho. – Pra todo o sempre. E os cara da contenção? - Cortei qualquer clima de sentimentalismo e fui logo ao objetivo. – Já ligaram. Tão em Nilópolis já. Já tão chegando. Hoje não tem trânsito. Eu acho que em cinco minutos eles... Peraí, peraí... Chegaram! – Ah então tá manero. Tá manero. Falou Tula. Vou desligar, porque os caras da Pavuna estão com o mesmo problema, valeu? – Valeu! – Mantem contato. – Demorou... Assim que desliguei fiz contato com o Bínchi. Se ele me dissesse algo que não me agradasse eu estava pronto para largar a Primeira Farândula e ir voando para a Pavuna. – Alô Bínchi? Tudo bem chegado? – Tudo tranquilo. Tu tinha que tá aqui. Têm umas quinhentas cabeças no bonde. - Comentou eufórico o negão. – Tá, tá, tá... Mas e os seguranças? – Já chegaram. Só tem sinistro. Só coroa da Civil de bigodão e óculos Ray-ban. Já me deram o papo que é só quebrador. – Ah bom... Então tá tranquilo? – Tá! Se liga... – Hã? – Tá bem de cabeça responsa? – Eu tô. E você? – Beleza. Os ingressos do bonde tão separados?

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– Fica tranquilo. Tá tudo organizado valeu? Agora vou me adiantar que a gente já tá saindo. – Valeu responsa... Aí! – É com a gente mesmo de novo. – Demorou. Fui! – Valeu. Depois de nos despedirmos anunciei que era chegada a hora. Tchélo já estava agilizando o processo e organizando o pessoal nos ônibus, distribuindo as BOMBI e morteiros. No fundo falso do ônibus, barras de ferro em número suficiente para o bonde. Logo após o embarque do último kamikaze eu estava pronto para dar a ordem para gente zarpar, quando escutei: – Ô Máicou, porra coé amigo? Vai deixar a gente na pista? - Eram Faustão e Renato Maluco. – E isso são horas? Vocês são piranha velha amigo pô... - Aproveitei pra reclamar e colocá-los nas suas respectivas posições de atrasados. E errados... – A gente foi atrás de uma situação... - E interrompi a conversa antes dele terminar a frase. – Se for revolver vão no carro. No ônibus não vai ninguém de peça. – Tá tranquilo meu shock. Confia na gente. Não tem “revolvi” nenhum. Fez questão de desfazer a suspeita rapidamente Faustão. Devo confessar que fiquei com a pulga atrás da orelha com aqueles dois. O volume sob a blusa oficial da Kamikazes de cada um deles era muito suspeito. Não me pareceu ser uma pistola, mas fiquei intrigado sim. Bem, vida que segue. Partimos rumo ao Maracanã e por onde passávamos havia confusões horríveis. Não dava para separar polícia de torcedores. Na Vinte e Quatro de Maio, o ônibus foi alvejado por várias pedras. Aliás, não só pedras, mas todo o tipo de objetos contundentes que vinham de todas as partes. “Abre a porta cochêro filho da puta!”, gritou alguém lá de trás do ônibus sendo prontamente atendido. E todo mundo na rua. A porta aberta era a nossa saída de emergência. Aquele que tentasse ser mais divertido que o necessário, teria uma surpresa conosco. Estávamos preparados. Sempre preparados.

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Acabamos passando pela zona de guerra e não tivemos contato físico ou visual com nenhum “alemão” de fato. Tocamos o bonde cantando nossos hinos de guerra num comboio tão grande quanto assustador. Sons de disparos de vários calibres cortavam o ar. Morteiros que eram soltos das janelas. Terror. Prazer. Finalmente chegamos ao Maracanã e conseguimos colocar o material para subir rapidamente. Posicionei-me à frente dos portões e aguardei a chegada das demais Farândulas bebendo cerveja moderadamente. Enquanto eles chegavam eu resolvia a questão dos ingressos e armazenava o dinheiro numa pochete. Tudo transcorria calmamente, até que às quatorze horas - mais ou menos - houve o primeiro indício de tumulto. Corre para cá, corre para lá. De repente, do meio do tumulto, surge uma camisa do Olímpico na ponta de um cabo de vassoura sendo incinerada. A massa alucinada gritava: “DE-POR-TI-VO!” Chamei o Tchélo e passei a pochete que ficava a cada meia hora mais cheia de dinheiro. Estava precisando dar uma mijada. Dirigi-me para debaixo da passarela do metrô, que era o lugar conhecido pela singela alcunha de “mijódromo”. Quando pensei em colocar a rola pra fora, o pessoal da antiga que estava do outro lado da rua me gritou. Fui até lá e me convidaram para beber umas na conta deles. Eles me respeitavam bastante àquela altura. “Pode encher o copo que eu só vou até o estacionamento dar uma mijada. Eu não tô aguentando mais”. Chegando no estacionamento fui adentrando o imenso labirinto de carros buscando alguma privacidade. Afinal, o volume de pessoas que transitava por ali era absurdo. Foi quando próximo do ponto que julguei ser o lugar ideal para uma relaxante esvaziada da bexiga, ouvi um som de tapa de mão aberta. – Anda filho da puta! Me dá! Me dá porra! Anda, anda... Eu vi dois caras com a camisa da Organizada Jovem e de touca ninja roubando um cara. Pensei em voltar correndo e chamar a rapaziada para chegar sacudindo os dois. Mas alguma coisa me convidou a me aproximar deles me esgueirando entre os carros.

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Abaixado como um leão camuflado na savana que espreita a sua presa. Quando me aproximei vi que o cara que estava sendo roubado era o João Caneta. Isto mesmo. O cambista oficial do Chicão. Vi que os dois caras não estavam só a fim de roubá-lo. Queriam esculachá-lo, porque não tinham pressa em tomar-lhes os valores e partir. Primeiro, ficou claro, que eles queriam era bater bastante. “Ai, ai, ai cara. Eu sou da Jovem porra! Sou eu o Caneta caralho”, tentava inutilmente dissuadi-los de seus intentos João Caneta. Aliás, um incrédulo João Caneta. Na sua cabeça não era possível que ele estivesse sendo roubado pela sua própria torcida, da qual ele era um membro influente há anos. Os Kamikazes também não poderiam se aproximar dele devido às suas costas quentes. O improvável havia acontecido. A dupla que estava roubando o João Caneta tinha algo de muito familiar. Um era grande e gordo; o outro era forte, mas não tão grande e tinha uma fala profundamente anasalada. O gordo aplicou-lhe uma banda violenta, que fez o João Caneta bater com a nuca em cheio na lataria de um carro, o que fez com que ele caísse desmaiado. Depois de constatarem que tinham dado um prejuízo satisfatório no Caneta, os dois fizeram uma saudação estapeando as mãos e riram se abraçando. Rapidamente esvaziaram o bolso do desmaiado e conseguiram encontrar um bolo de dinheiro, outro bolo de ingressos e uma bola de jornal cheia de brizola dentro, que parecia ser o que menos importava. Os dois saíram abraçados e depois de darem os dois uns dez passos, se viraram um para o outro e tiraram as toucas ninjas. A minha suspeita fora confirmada: Faustão e Renato Maluco, que, já sem as toucas, voltaram a se abraçar. Livraram-se da camisa da Organizada Jovem e, abraçados, se dirigiram para o caminho de volta a nossa concentração na porta do Maracanã, como se estivessem executando um passo de balé. Ridiculamente engraçados aquela dupla de ratos. Eu me distrai tanto com aquilo tudo acontecendo na minha frente, que esqueci de mijar. Lembrei-me em tempo de fazê-lo, depois de quase urinar nas calças. O oportunismo daqueles dois me fez dar umas boas risadas. Pensei: “Há quanto tempo aqueles dois estavam tramando isso?”. Que ratos!

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Voltei para me encontrar com os velhos e beber a minha cerveja. Apesar do Dodô, eu não conseguia mais parar de rir. Não conseguia evitar. – Tá rindo de que Máicou? - Perguntou Tito de Inhaúma. – Naadaa... Naadaa... Lembrei de um negócio... dissimuladamente.

-

Respondi

Antes que eu conseguisse dar a primeira golada no meu copo de cerveja, alguém veio correndo em minha direção e quase nos trombamos e caímos. Pensei que fosse algum bêbado eufórico, mas numa olhada mais criteriosa, vi que era o Tchélo totalmente apavorado, sem controle para ser mais preciso. – O Bínchi foi preso. - Percebi que ele fez um grande esforço para dizer a frase completa. Ele sabia quanto tudo aquilo faria mal para todos, junto ao acúmulo de merdas que já tinham acontecido. – Porra! Onde? - Encarei da forma mais natural possível. Afinal, eu já havia perdido a conta das vezes que havíamos sido presos nesses anos. Alguma coisa não estava bem encaixada, já que o Tchélo era o mais frio de nós, mas... – Cara! Deu no rádio que ele matou cinco na Pavuna. – Cadê os caras que tavam com ele? Tem alguém aí? - Perguntei por uma testemunha do fato. O Tchélo chamou um garoto de uns dezesseis anos. – Coé! Ô! Chega aí! – Coé responsa! Qual é o teu nome? – Piolho! – E aí Piolho? Que aconteceu na Pavuna? – A gente tava na praça em formação. Umas seiscentas cabeças. Foi horrível cumpadi. - Visivelmente transtornado, a toda hora o Piolho interrompia a narrativa. – Calma. Fica calmo e me conta: O que rolou no bagulho? Vai... – Quando a gente ia sair pra entrar nos ônibus, tava rolando um churrasco da Independência Jovem numa paralela da rua onde os ônibus tavam estacionados. Tinha uns cem deles. Eles foram esmagados. O Repolho da Independência de Acari morreu de porrada. – E aí? – Pô Máicou, a porrada veio comendo até a praça e quando eles viram o Bínchi de frente eles ficaram alucinados. Partiram pra cima, mesmo

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vendo que tavam na desvantagem. Aí os seguranças apareceram e largaram o prego pra cima deles mesmo vendo que a gente tava metendo a porrada. Morreram vários. Acho que mais de cinco. – Caralho! E como prenderam o Bínchi? – Pô... Acho que ele deu mole. – Qual foi Piolho? Ele deu os tiros? – Não! Na hora dos tiros, ele tava na linha de frente brigando na mão e puxando o bonde. Foram os caras da contenção. Uns caras que eu nunca vi. A contenção da gente é de responsa. Tu conhece legal... Só aplica pra cima se a gente tiver tomando prejuízo. Esses caras que atiraram pareciam moradores, sei lá... – E aí? – Aí geral vazou, mas guentaram ele. Tinha muita gente querendo ele. O Leno jogou uma pia no coco do Bínchi, ai ele caiu. – E o Seu lôro aplicou tiro neles? – Num deu nem dava pra da mais. Lotou de verme rápido. Só deu pro Seu lôro sair voado. Os caras acusaram o Bínchi e bateram muito nele. Ele bateu em vários também. Acho que ele quebrou o braço. – Caralho... - Ficava cada vez mais boquiaberto com o volume de merdas que não paravam de acontecer. – Os caras da Independência Jovem foram pra delegacia de testemunha. – Pronto. Fudeu. Acabou a final pra mim. Vou pra lá. Toca o meu telefone. Número desconhecido. – Alô? – Coé responsa é rápido. É Bínchi. – Que merda que tu se meteu? Filho da puta... – Depois, depois. Escuta. – Hã? – Não deixa ninguém vim pra cá. Fica geral aí. – Eu tô indo agora. Fiz logo questão de avisar. – Ô meu irmão, se liga no papo. Eu já tô com advogado aqui. Já pedi o exame de balística. Fica tranquilo. No máximo amanhã eu tô saindo. Se liga no bonde que nós temos responsabilidade. Eu não quero ser culpado depois por alguma coisa que der errado por falta de comando. A guerra é assim: Se perde e se ganha. Faz o certo pra neguinho não cobrar da gente depois, valeu?

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Mais uma ideia dura, porém precisa. Como poucos são capazes de dar em momentos tão difíceis. Fiquei calmo e mesmo contrariado, tive que admitir que ele estava certo. A Torcida precisava de comando e nós estávamos ali era para isso mesmo: Sacrificarmo-nos em troca da idoneidade física do máximo possível de Kamikazes. Qualquer mole que fosse dado, seríamos cobrados da pior maneira possível. Seja lá qual fosse esta maneira. – Falou macaco. Se liga então. Depois que o último kamikaze chegar no seu bairro eu vou para aí. – Aí tá certo. Demorou! É campeão porra! Taca fogo no Maracanã! – É com a gente. Valeu. – Valeu. Desliguei e fiquei uns cinco minutos meio perdido. O Tchélo chegou para mim e disse que tava na hora. “Até os Petrópolis, “atrasildos” já chegaram. Vamos?”, disse ele. Concordei e subimos de mãos dadas a rampa do Maracanã. Todos nos olhavam, mas ninguém teve a coragem de perguntar qualquer coisa. Ao chegarmos na concentração da bateria dentro do estádio, estavam todos parados. Todos com cara de cu, tristes pra cacete pelos últimos acontecimentos. Tomei a minha bandeira favorita - a com o rosto do príncipe Vlad Tepes estampado, o Conde Drácula - e chamei para mim a Torcida. – Kamikazes! - E o Tchélo ligado, respondeu no ato. – Porrada! – Kamikazes! – Porrada! E a partir desta segunda resposta, todas as vozes já estavam comigo. Os antigos choravam e se abraçavam num momento genuinamente comovente. A bateria começou a botar para quebrar e começamos um verdadeiro aquecimento. Com raiva, raça e festa. Tudo junto. Um híbrido genuíno enfim. O apito tocou e a bateria partiu. Depois foi a nossa vez. Tive uma sensação única, quando passei pelo túnel e cheguei às

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arquibancadas e vi uma única bandeira antes das outras chegarem sendo tremulada animadamente com os dizeres “Dodô saudades hoje,de ontem e para sempre”. Aquele rosto desenhado com aquele riso cretino. Em polvorosa, o bonde que já estava nas arquibancadas nos recebeu e começamos o espetáculo das arquibancadas com distribuição de bolas nas cores do Deportivo, apitos, bandeirinhas e outros adereços. Faustão e Renato Maluco apenas sorriam com seus bambus que mais pareciam lanças. Cheios do dinheiro roubado do Caneta, os dois fumavam um charuto. A Torcida estava impecavelmente animada. Linda. Eu fui para o meio do bonde e me misturei aos lóides. Aquele pequeno gesto de quebra do protocolo levou os Kamikazes a um estado de múltipla euforia, que sinceramente, eu nunca desconfiei ser capaz de proporcionar. Aos quinze minutos o nosso atacante Vidal partiu do nosso campo num daqueles contra-ataques fulminantes e encontrou a defesa do Olímpico igual a xota de puta: Toda arregaçada. Ele dispara como uma flecha e na entrada da grande área, finge que vai chutar e dribla o goleiro, que se preparou para uma bomba. Sem nenhuma humildade ele entrou com bola e tudo. A arquibancada explodiu. Eu nem sei o que aconteceu ao certo. A euforia era tanta, que só depois de cinco minutos é que pude ver que o placar permanecia zero a zero. – Ué? Que caralho é esse Fabio? - Perguntei para o Diretor de Bateria. – Ele anulou esse filho da puta. - Disse Fabio Metaleiro que além de Diretor de Bateria, era também conhecido por ser o dono da casa de música alternativa mais expressiva do Rio: O Garage. Olhei para o Tchélo que permanecia imóvel com os braços cruzados encostados na divisa de acrílico com o corpo apoiado na perna esquerda e a direita dobrada. Ele me olhou e levantou a aba do boné com o dedo indicador e suspendeu as sobrancelhas como quem diz “não te falei?”. Eu me lembrei, claro, daquela conversa fiada de venda do jogo, mas eu me recusava a acreditar e desviei o olhar dele com raiva. Negando aquilo tudo com a cabeça. Ele não poderia estar certo. Aquela sandice não poderia se transformar em realidade.

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O jogo continuou com o Deportivo massacrando, massacrando, massacrando e... Gol do Olímpico. Todos viram que o atacante deles aplicou um drible muito eficiente, mas fazendo uso da mão esquerda, o que tirou de uma só vez o nosso goleiro e o nosso zagueiro de jogada. Isso não vale. Todo o Maracanã viu menos o juiz e os seus assistentes. A revolta se generalizou. Apesar da revolta crescente o jogo em si e a sua atmosfera, se encarregavam de desfazer aquele sentimento, nos direcionando para a vibração, a esperança. Quinze minutos após o gol do Olímpico, o Deportivo estava completamente concentrado, demonstrando vontade e equilíbrio. Numa jogada que começou na lateral direita - meio sem pretensão -, o nosso meia “Lúcio”, recebeu a bola na meia lua e com um drible de corpo levou toda a zaga do Olímpico. Na hora exata do chute, o cabeça de área que vinha correndo lá do meio campo, aplicou um violento chute por trás, bem no pé de apoio do Lúcio. O pênalti mais claro que eu já havia presenciado em toda a minha vida. O maldito filho da puta do juiz se furtou ao dever de marcar. Não satisfeito em não marcar o pênalti, o maldito juiz aguardou o Lúcio se levantar e aplicoulhe um cartão amarelo para corroborar a sua interpretação de simulação. A situação estava ficando cada vez mais revoltante. Fim do primeiro tempo e o placar moral era dois a zero Deportivo. O placar real era um a zero eles. Os comentaristas no rádio estavam histéricos, horrorizados com tamanha roubalheira. Todos estavam em silêncio com caras de puto multiplicada por cem. Só ouvíamos o barulho dos passos. Em nada aqueles momentos me lembravam as finais que eu havia testemunhado. O segundo tempo havia começado. Tudo muito suspeito. Logo com um minuto de jogo, Lúcio foi mais uma vez lançado e encontrou os dois cabeças de área desprevenidos, assim como toda a fraca zaga do Olímpico. Fazendo uso do seu oportunismo, Lúcio viu que o goleiro fechava o único ângulo possível para a sua conclusão. Mas malandro que era, ele já havia visualizado Émerson Pulo, um dos dois atacantes, só, atrás de dois zagueiros que acompanhavam Lúcio e seus dribles. O passe foi perfeito e para a habilidade de Émerson Pulo, só foi necessário escorar a bola dada com açúcar e creme de leite pelo seu parceiro Lúcio e marcar o nosso gol de empate. Lindo gol. Lindo. Mas... O bandeirinha

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do lado esquerdo ao ataque do Deportivo marcava impedimento. A partir daí, alguns torcedores do Deportivo começaram a sair do estádio, desistindo de assistir ao jogo. Então o jogo ficou morno. O Olímpico não tinha um time de campeões e o pessoal do Deportivo sofria com a arbitragem a ponto de não ser capaz de desenvolver um ataque. O Deportivo não ameaçava. Até que aos trinta e oito minutos, num chutão, o Olímpico chegou até a nossa área. Alguém caiu antes da meia lua e o juiz marcou pênalti a favor do Olímpico. Na minha opinião não existiu na história da humanidade um filósofo - por mais competentes que todos fossem -, que seria capaz de criar nos dias de hoje, um argumento suficientemente bem fundamentado, de maneira a justificar a função exclusiva e solene dada aos árbitros de futebol. Eu sei que o poder de decidir uma partida de futebol é dado a um homem, porque é a única maneira de controlar e manipular os resultados e, também, roubar a sensação de uma genuína emoção e dar fôlego a negócios sujos como a compra e venda de resultados. Nada justifica - a não ser os tendenciosos motivos supracitados - o desprezo absoluto pela tecnologia capaz de permitir uma análise precisa do lance, de uma maneira simultânea. Se a televisão goza destes recursos, porque as entidades maiores do futebol não os possuem? O Olímpico cobrou o pênalti e perdeu. Uma defesa simples do nosso goleiro, devido à péssima cobrança feita por sabe-se lá quem. O árbitro ordenou que a cobrança fosse repetida, por ter interpretado que o goleiro havia se movimentado de uma forma não permitida, acho que para frente, sei lá... Sabíamos que se tratava de outro engano, mas àquela altura já não fazia mais diferença. Em festa de rola, entramos com a bunda: Olímpico dois a zero. Aos quarenta e três minutos do segundo tempo marcamos o nosso tão árduo gol numa bola recuada do zagueiro do Olímpico. Como se os deuses tentassem interceder sobre toda aquela sujeira: Um gol contra. Este não havia como anular. A placa subiu mostrando um minuto. Ninguém reclamava mais nada. O apito final e os campeões comemoravam constrangidos, meio que sem saber como agir. Vimos os nossos verdadeiros campeões partindo para cima do juiz e dos

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bandeirinhas, distribuindo socos, bandas e pontapés. Até a polícia chegar ao local do tumulto já era tarde. O juiz já estava providencialmente bastante machucado e os dois auxiliares bastante fodidos também. Depois de terem agredido ao máximo os árbitros, os jogadores correram para nós que gritávamos: “DE-POR-TI-VO CAMPEÃO!” E nos saudaram do gramado comemorando. Depois engrenamos “é campeão” que se fundiu com a comemoração morna dos adversários. Os jogadores do Deportivo permaneceram em campo, até a hora da entrega do troféu. Nós não paramos de infernizar cantando o nosso hino e gritando a escalação do nosso time de heróis. Quando o Presidente da CBF entregou o troféu nas mãos do Capitão do Olímpico, disparamos a maior vaia que o Maracanã já presenciou. Quando os jogadores partiram juntos para dar a volta olímpica tradicional, os nossos jogadores que estavam no gramado com as mãos na cintura de costas para nós partiram de encontro a eles. Aí enlouquecemos. Muitos choravam nas arquibancadas e gritávamos: “É campeão! É campeão!”. Ao se encontrarem os jogadores do Olímpico pararam. Pararam porque ouviram um som diferente de palmas que não era para eles. Toda a torcida do Olímpico se levantou e aplaudiu os jogadores do Deportivo, que davam a primeira volta olímpica sem troféu da história do futebol. Em retribuição eles aplaudiram a torcida do adversário. As sociais do Deportivo estavam desertas. Os ratos abandonam o navio primeiro. Recolhemos o material e partimos. A torcida perdedora sai sempre primeiro. Perfeito para arquitetarmos as nossas perversidades. E assim o fizemos por toda a cidade. Agredindo o máximo de torcedores possível do Olímpico. Instalamos horas de puro caos. Tudo foi quebrado. Tudo foi pichado. Nada foi de graça. Após a nossa liberação do estádio, a ordem era promover o caos legitimando, a barbárie como se fosse uma genuína e legal ferramenta de protesto. A maioria preferia sair em blocos de 200, 300, 500 e provocar mais horror do que estrago. Na verdade um grupo tão numeroso assim, não consegue transitar

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livremente num dia tão especial como é o dia de uma final. A polícia é omissa, mas não é tão tola a ponto de deixar a coisa correr tão livre. Cientes deste empecilho possível que seria a intervenção dos "vermes", alguns grupos da Kamikazes seguiram seus próprios caminhos rumo às suas perversidades e outras “humanices”. Eu, Tchélo, Faustão, Renato Maluco e outros quinze, partimos em direção à estação de trem para nos dirigirmos ao Méier. Na verdade, não tínhamos objetivos e o que realmente desejávamos era cavar alguma oportunidade, onde o “fraco e indefeso” estivesse ao nosso alcance. Na Praça da Bandeira, quinhentos enfrentariam outros quinhentos em outra guerra assustadora e cheia de mortos, onde o jornal não noticiaria nada. Uma guerra cheia de detalhes sangrentos e toques e mais retoques de crueldade, sadismo. Preferimos algo diferente desta vez... Como era de se esperar, dentro do trem, vários torcedores do "povão" do Olímpico riam e comemoravam ostentando seus uniformes de péssima qualidade adquiridos num camelô qualquer há dez anos. Dedução esta óbvia devido ao aspecto das camisas. Entramos no vagão e nos posicionamos estrategicamente sem nos comunicarmos. Éramos um contingente grande entrando no trem sem nenhuma conexão entre nós. Pelo menos era o que eles pensavam. Não portávamos uniformes, nem camisas da Kamikazes. Éramos invisíveis. O som de um rádio de pilha na AM muito alto e distorcido foi me causando um crescendo de ódio, que se expandia a cada gargalhada e abraço comemorativo que eles trocavam. O meu ódio estava tão maior agora que eu não conseguia mais avistá-lo por completo. Como se fosse uma defesa, uma forma de me concentrar para o momento do ataque principal desliguei meus tímpanos daquele "zumzumzum" todo. Por pouco, devido a este “nirvana”, quase perdi o começo da ação que fora deflagrada por Renato Maluco na outra extremidade do vagão. Sons de tapas e "anda logo porra!", "Vambora!", era o que eu mais ouvia. O "Bocetinha" ficou encarregado de recolher as camisas que eram roubadas e devidamente colocadas dentro de um saco de ráfia que estava num canto próximo a um banco, cheio de espigas de milho. Eu ouvi uma voz de moleque dizendo "ô moço! Não faz isso não!" e logo em seguida aquele som característico do estalo da palma da mão na pele sensível do rosto. As

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espigas realmente foram para o chão do trem e o saco serviu como "pinico" para colocarmos as camisas do Olímpico roubadas. Sacudimos geral roubando tudo que era possível, e o que não era possível, destruímos. Saímos na estação do Méier dando o ultimato a todos. Ninguém iria ousar se mover mesmo. Ao chegarmos ao Méier nos dirigimos a um dos muitos cruzamentos da Dias da Cruz. O Bocetinha distribuiu as camisas do Olímpico e todos nós nos vestimos com as camisas dos “alemão” e nos juntamos num sinal para comemorar a vitória do nosso "amado time" campeão. Cantávamos músicas do Olímpico, gritos de guerra, bebíamos cerveja num grupo de dezoito cabeças. Todos que eram torcedores do Olímpicos e que ao passar na rua simpatizavam com a nossa alegria, e se juntavam a nós para a confraternização, eram devidamente surrados pelos integrantes do círculo. Despidos por inteiro, tinham seus objetos usurpados um a um e, para finalizar, eram jogados desmaiados e nus na calçada. Um preço justo a ser pago por uma felicidade tão ofensiva para nós. O tempo desaba quando a felicidade alheia te ofende. É quando tudo vai ao chão. Desta forma íamos migrando de esquina em esquina para evitar o reconhecimento da polícia ou de quem quer que fosse. De hora em hora num sinal de trânsito diferente, promovendo a mais sórdida das armadilhas, cuja isca era a alegria do inimigo. Nada mais perfeito. Nada mais cruel. Depois dessa “festa” fui à delegacia passar a noite com o amigo e pude ver alguns “braços direitos” por lá. Saí às cinco da manhã com a promessa de que tudo se abrandaria e fui abrir a sede. O show da vida tinha que continuar. Logo que eu abri a sede pela manhã, recebi um telefonema estranho do Tchélo. – Alô filho da puta. – Fala ladrão de pinico! – Tá mais tranquilo? - Fez questão de se inteirar do meu estado. – É... Fazer o quê? - Respondi. – Tá vindo pra cá?

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– Não irmão. Tô não. Eu tô indo pro norte com a minha mãe visitar a minha avó. – Ué? Assim do nada? - Indaguei assustado. – É... É... Que ela tá doente pra caralho sabe qual é? Tô arrumando as minhas coisas.

Achei muito reticente aquela resposta. Claro que o que estava acontecendo não era aquilo que ele me dizia, mas ele fez questão de cortar o assunto e entrou em outra conversa importante. – Ó. Quarta-feira tem o “enterro” do Dodô... – Como assim? – Vai rolar um enterro simbólico no jazigo da família. Vão enterrar os pertences favoritos dele às dez da manhã lá no Jardim da Saudade. – Ah... Então vai ver que era isso que a irmã dele estava desesperada ligando pra cá direto. Tem várias ligações dela registrada no identificador. – É isso mesmo. Então falou. A gente se encontra lá. – Demorou. E tudo correu dentro da rotina comigo levando a Sede e avisando o bonde da cerimônia. Na quarta-feira às sete da manhã parti para o bairro de Sulacap, localidade do cemitério. Lá encontrei o pessoal todo, já que não marcamos de sair juntos de um ponto em comum. O Tchélo, o Faustão, Renato Maluco... Tchélo estava no celular falando com o Bínchi na cadeia. Ele colocou o telefone em cima de uma tumba e veio a mim. -– O Bínchi pediu para que eu deixasse o telefone ligado durante a cerimônia, porque ele queria ouvir. - Disse Tchélo. – E tu cara? O que aconteceu? Tá muito misterioso. – Vamos pra li que eu tô precisando desenrolar uma ideia no sapatinho contigo. - E assim nos destacamos. – O caso é o seguinte irmão: Ganhei um dinheiro forte ai. – Ganhou no bicho? - Perguntei com deboche. – Não. – Herança? Fala logo caralho. – Eu te falei que o Olímpico ia ser campeão não te falei?

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– Ah, porra! Lá vem você com essa porra desse papo de novo... - E olhando para ele vi uma seriedade tão grande nas feições dele que interrompi o que ia dizer. – O que você fez? - Refiz a pergunta. – Peguei um dinheiro emprestado na boca de fumo e apostei tudo no Olímpico. Um dinheirão, uma fortuna. A cotação tava sete por um e chegou a dez por um. Nego tava certo que o Deportivo levava essa mole. Os caras da banca ganharam muita grana. Quase todo mundo apostou no Deportivo. – Caralho... Filho da puta... Ganhou muito? Quanto? Quanto? Perguntei tomado pela euforia. - Ele queria ter um carro, mesmo que velho, para poder transportar com um pingo de conforto aquele monte de CDs piratas que levava pra cima e pra baixo todos os dias até o centro da cidade. Tarefa esta que ele cumpria fazendo uso do Metrô lotado. – O que eu ganhei da para comprar uma casa pra minha mãe num bairro legal, um carro zero pra passeio e outro zero pra carga e sobrou o suficiente pra abrir um negócio. Não vou precisar voltar um dia a trabalhar para filho da puta nenhum responsa. Nunca mais. – Não acredito. - Eu estava sem reação. – Eu te avisei não foi? Tu não me deu ideia... - Me respondeu mantendo a seriedade. – Já que eles nunca podem repartir, eu fui lá e tomei. Fiquei abismado. Não perdi a minha viagem e aproveitei para encher ainda mais a bola da conquista dele. Eu tinha que admitir que aquela fora uma tacada da mais pura rataria. Oportunidade e senso. Na minha cegueira fanática, deixara de identificar uma boa chance. Mas ficava a lição e a felicidade por ver alguém verdadeiramente necessitado poder vislumbrar um amanhã menos miserável. – Pô meu cumpadi, então já que tá sobrando me arruma um dinheiro aí? - Soltei o pedido mais num tom de brincadeira do que levando a sério. – Claro que separei uma grana pra você. - Surpreendeu-me ele. – Sério? – Pro negão também. Se vocês toparem, podemos ser sócios. Enquanto falava estas últimas palavras, Tchélo se dirigia à saída e eu permanecia parado.

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– Você é foda cara! Que bom que você é meu irmão! - Falei pra ele enquanto ele continuava andando. Sem virar para mim, ele levantou a mão esquerda, e num gesto de desdém à minha pseudo emoção e consideração carregada de sarcasmo no tom dramático da minha voz, ergueu o dedo médio fazendo uso do universal gesto do “vai se foder!”. Sabia que iríamos ficar no barato uns meses sem nos vermos. Ficar longe era o melhor a fazer para quem tinha arrebentado tanta grana. Com todo este dinheiro, a coisa mais banal a acontecer, seria tomar um baque de PMs bandidos. Muito mais que sensato era urgente sair do Rio. Ao chegar no portão ele virou para trás, olhou para mim e, sem falar uma palavra, levantou e abaixou a cabeça para mim sorrindo num gesto rapidinho tipo: “Até já!”. Aproveitei para ter um momento particular de despedida enquanto parentes e amigos partiam. Sentado, ao lado do jazigo, em silêncio profundo, eu contemplava as formigas que passavam na minha frente. Algumas carregavam fragmentos de algo, outras carregavam nada. Enfim. A vida continuava a mesma. No lugar dos parentes e amigos, que um pouco antes se lamuriavam e choravam, um silêncio absoluto tomou os seus lugares. Eu, meus pensamentos e algumas lembranças. Só! Pairava um silêncio tão dominador, que cheguei a pular de susto quando o telefone tocou. – Alô? – Máicu? É tu? – Sou eu! Sapo? – Ô truta. Meteram a mão em nóis. Aqueles merda não tinham nem pose de campeão. Foi bagulho arranjado meu! – Pois é... - Concordei, mas sem poder entrar em detalhes... – Só. E vocês vão mexer com isso? – Tem um parágrafo no estatuto do torcedor que permite ao torcedor pedir a anulação de um jogo se ele julgar que o resultado foi manipulado, ou, que houve erro da arbitragem. Estamos pensando em organizar a primeira greve de torcedores do mundo. Ninguém vai aos estádios nem vai dar audiência para os canais que estiverem passando os jogos e nem comprar nenhum artigo referente a qualquer clube. Ou para este esquema descarado de lavagem de dinheiro do narcotráfico mandando e trazendo jogador pra fora do país o tempo todo, ou, a gente

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vai curtir campeonato de bola de gude. Porra! É foda responsa. O clube começa com um time o campeonato e na terceira rodada já não tem mais ninguém. Já que não tem defesa do consumidor pra nos defender contra este tipo de estelionato aplicado pelos clubes, estelionato este que consiste em começar o campeonato com atletas de nível e antes da metade do mesmo só ter perna de pau pra oferecer pra gente, vamos começar a nos defender. Quem sabe a gente não passa a curtir o vôlei? Já faz tempo que os caras do vôlei estão fazendo por merecer uma moral da massa... – É mesmo? Só vocês pra vim com essas inovações. – A gente tenta né? – Mas... - Um momento reticente se instalou. Senti a dificuldade na voz do amigo. – Fala responsa! O que te fez me ligar? - Indaguei forçando com um tom tranquilo a organização de raciocínio dele. – Primeiro eu queria te dar os nossos sentimentos em nome de toda a Torcida pelo acontecido com o Dodô, certo mano? – Valeu Sapo! – Sinistro aí... A dor é nossa também. Se quiser vim distrai a cabeça aqui, a sede é tua. – Pô valeu responsa! Valeu! Uma das coisas que eu mais gosto é ir pra aí. – O segundo assunto, é que a rapaziada tá formando um grupo de PUNK e nóis qué você na voz fita. – Como é? - Meu coração se aqueceu de alegria e bateu acelerado. Uma coisa que eu sempre sonhei fazer e não passava mais pela minha cabeça. – É. Tá faltando um cara de atitude. Só pode ser você. Se você canta não interessa. Pelo menos tu conhece todas as letras do Cólera. – Cara... É o meu sonho. – Ó. A melhor notícia é que tem gravadora já. Sabe o selo “Foda-se”, daquele maluco que mora na Casa Verde? – Qual Sapo? – Aquele que o pai dele tem uma cadeia de frigoríficos? – Ah sei! Tô ligado. Que que tem ele? – Então. Ele já pediu a prioridade do lançamento pra ele. Silêncio! Índice mais que perigoso de boas notícias num mesmo momento causam uma perturbação no raciocínio inimaginável.

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– E aí? Topas? – Pô... Claro! Claro! – Então a gente se fala depois. Vou dar a notícia pros cara. Abraço. – Abraço Sapo. Seis meses depois o Bínchi saiu da cadeia quando inspirou o prazo que permitia mantê-lo em cárcere sem julgamento, com planos de processar o Estado. O negócio aberto por nós três, uma casa de show ao vivo, bar e leitura de textos, poesias - que mais se pareciam com letras de músicas -, deu cria. Tornamo-nos donos de três casas. Duas no Rio e uma em São Paulo. Eu gravei um CD como vocalista e letrista da banda PUNK “A realeza do esgoto”, intitulado “O amanhã foi ontem”... Hoje, estamos em turnê pelo Brasil divulgando o trabalho. Mas... Devo confessar que... Mesmo depois de todas estas melhorias na vida, uma coisa permanece intocada na minha visão: Enquanto o mundo desaba aqui fora, lá dentro, alguns membros da nobreza, têm tempo e tranquilidade para perceberem coisas como “o quanto a poeira que cobre os móveis é similar à delicada penugem de filhotes de aves”.

FIM

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Fabio Pandora Nascido no vento. Radicado na capital do Rio de Janeiro. Bicho das esquinas. Usuário, dependente químico dos submundos, muitos, tantos… Entre bêbados, cônjuges abandonados, suicidas a longo prazo e todas as gentes emocionalmente mutiladas que viajam no mesmo trem desgovernado que atravessa a vida, movido à mágoa, frustração, arrependimento, e, também, à indelével sensação de um nó que se avoluma na garganta a cada passo que damos rumo à noite escura. Fabio Pandora se tornou o retratista lambe-lambe numa dessas praças da vida, onde vez ou outra surge um destes seres escombros, que então, sentam-se ao seu lado e pagam por três fotos. Assim, à base dos negativos que ficam, é montado o organograma do reino dos seres abissais. Aqueles que só - e tão somente - conseguem se sentir em casa sob a mais absoluta das pressões… Presidente da nação onde o hino é o silêncio profundo e a bandeira é incolor e tremula presa a uma linha qualquer, num dia qualquer, por um vento qualquer. Senhoras, senhores… Este é Fabio Pandora.

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