#11 Tecnologias

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[ edito rial ]

nu-tech

[ ...e o prateado Ê um adereço high-tech num aparente nu low-tech. ]

Bruno Gil *

* aluno do 5Âş Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra


P OR UM A VELHA ARQUI TECTURA Gonçalo Furtado* 1 – P OR UM A ARQUI TECTURA

Se, na hora de definir o que é a Arquitectura, recorrermos a um dicionário, depararemos com a redutora alusão a arte de construir. Ignasi Solà-Morales procurou enquanto pedagogo enriquecer esta definição, percorrendo para tal várias definições adquiridas por este termo ao longo da história. O termo grego arjéketon, composto por argé e keton, que podemos traduzir como primeiro e construir respectivamente, aludia para uma prática, mas também para o conhecimento que concorre no propósito de construir. Posteriormente, Vitruvio, autor do Tratado de Arquitectura (séc. I a.C.) que serviu de referente até ao séc. XVIII, inaugura uma maneira de entender o arquitecto como técnico do edificar mas também como artista capaz de entender o significado (cultural) daquilo que constrói. (Solà-Morales, in: Introducción a la arquitectura: conceptos fundamentales, 2000) A sua definição mítica remete a Arquitectura para a construção da cabana primitiva, de cuja actividade emergiram técnicas com vista a uma casa duradoura mas também ideias de formas de habitar. Ignasi prossegue com duas definições distintas, que foram importantes para a Arquitectura Moderna do século transacto. Primeiro, a de Morris, que abarca toda a consideração do ambiente físico que rodeia a vida humana e para quem o Design (proveniente de disegno - originar um signo, designar) se refere ás actividades artísticas de criar formas pelo desenho para a vida humana. (Morris, The prospects of architecture in civilization, 1881) Segundo, a de Loos, que reagindo ao delito decorativo e apelando ao essencial arquitectónico, a remetia para um acto despoletador da nossa sensibilidade. (Loos, Architectktur, 1910-13) Estas definições servem a dedução de três arquétipos: a casa fundacional, o design omnipresente, e o apelativo transcendental, e são objectivadas com espaços concretos tomados de Corbusier enquanto arquitecto principal do século XX. Como nos recorda Ignasi, Corbusier, para além da prática artística pós-cubista, envolvia-se com os desenvolvimentos técnicos (como por exemplo os transportes) para se bater POR UMA NOVA ARQUITECTURA. Afrontava a envolvente humana Morrisiana nas suas diversas escalas, tendo baseado a sua casa essencial no esquema estrutural universalizante Dom-inó (1914), permitido pela técnica do betão armado, que, para além duma resposta funcional, propunha um modo de viver moderno para o Homem-Modulor, e expressava as necessidades fundamentais do habitar, a privacidade e uma certa articulação com o exterior. Ainda que numa situação distinta, de refúgio bucólico, tais princípios são sensivelmente os mesmo que harmonicamente organiza nas zonas do Petit Cabanon (1950). Na mesma altura, e esclareça-se que após a catástrofe das Grandes Guerras, constata-se uma pontual resistência á estética da Máquina, que, como frequentemente refiro, tem a sua máxima expressão na comovente sensualidade de Ronchamp (1950-55), uma casa de Deus que silenciosamente apela aos mais ancestrais sentimentos humanos e colectivos, os quais não ouso descrever remetendo para a imagem. Vers une architecture é o manifesto corajoso de um homem do seu tempo contra os olhos que não querem ver, mas também a cartilha subvertida do Pós-Guerra. (Corbusier, Vers une architecture, 1923) Seguir-se-ia o impasse entre a perspectiva técnica Britânica e a metafísica Italiana, mas pouco de significativo mudou relativamente ás pretensões totalizadoras do tipo Corbusiano. [maio 2003] 04.05


2 – P OR UM A VELHA ARQUI TECTURA

A Arquitectura resulta de uma projecção artística individual, e de um esforço técnico colectivo. Define-se para lá da necessária formalização técnica de objectos espaciais. Mas a Técnica pode ser entendida como dimensão cultural, que define uma forma de habitar o mundo, que não é hoje senão um Tecnocosmos, assumindo-se como dimensão arquitectónica crucial na reflexão sobre a essência, limite e futuro da disciplina. (Ressalve-se só que, para nós pós-modernos, a ciência e a tecnologia, como de resto a arte que pode simbolicamente coincidir com a ciência segundo Balman, não manifesta já a fé modernista no progresso rumo a uma qualquer verdade, mas antes a ideia de uma instituição relativa, não alienante e acessível, ao contrário das análises de Thomas Kuhn ou mesmo as descontruções da verdade cientifica de Rorty). Vivemos actualmente imersos num novo quadro tecno-cultural, cuja novidade reside no protagonismo adquirido por Novas Tecnologias. Não menosprezemos a necessidade de lhe conferirmos um sentido cultural humano como apela Pierre Lévy e a necessidade de formular programas artísticos e políticos de hibridação que pautem o nosso relacionamento com a Técnica como apela Bragança de Miranda. (Lévy. A máquina universo, 1987 e Miranda, Mimesis tecnológica, 1998) Mas se as condições de transformação se formam, também, no desenvolvimento da Técnica, e sem menosprezar as necessárias precauções referidas, deveríamos especular, com a provisoriedade que tem qualquer antecipação do devir, sobre os desenvolvimentos que podem ocorrer no infinito potencial que é, segundo Peter Cook, o universo da Arquitectura, e que vejo como enquadráveis na prática disciplinar definida como concepção Morrisiana da envolvente para o habitar humano. (Cook, Unit 20, 2002) Neste sentido, acresça-se como projecto de reflexão disciplinar o impacto contemporâneo das Novas Tecnologias da Comunicação e Biológicas, num momento em que a disciplina atravessa uma crise teórica, parecendo necessários uns projectos que construam lugares atentos à mutação da sociedade. Lugares onde seja possível pensar criticamente, superando o niilismo e positivismo que marca a contemporaneidade (Carrilho, Verdade, certeza e argumentação, 1990). Não interessa tanto, pois, num início de século marcado por orgásticos êxtases e prognósticos de iminente catástrofe, definir um futuro único, mas, tão só, reflectir com base nas potencialidades com que se nos depara o presente. Esses assuntos são o tema dos meus últimos livros, Notas sobre o espaço da técnica digital e M&M – a imprevisibilidade no corpo da arquitectura, centrados respectivamente nesses dois vectores de desenvolvimento tecno-cultural, os quais, se não forem tidos em conta, poderão mais uma vez revelar uma reincidente impassividade disciplinar que só reage quando os factos já ocorreram, senão mesmo, obsolescência e falência de uma comunidade que se quer dirigida às envolventes humanas (Lootsma, vários). É redundante repetir o aí exposto. Apenas acentuaria a ideia de que o retorno á velha Arquitectura é conceber artisticamente novas envolventes para um corpo agora ampliado, pelas dimensões da linguagem e energia de que falava Vitruvio. Pelo menos, nesse sentido, Corbusier estava ofuscado, e deveria ter dito POR UMA VELHA ARQUITECTURA.


3 - P OR UM A ARQUI TECTURA TODA

No tempo de Corbusier, parece que já o “(...) o avião perfurava a abóbada do céu (...) modificando o conceito de fronteiras nacionais (...), /e/ os cubistas faziam (...) sobrepassar a (...) a natureza estática, anulando a convencional hierarquia (...)”. (Pizza, Arte y arquitectura moderna 1851-33, 1999) Tendo em mente esta frase, gostaria de retomar a ideia estratégica de hibridação de Bragança Miranda, não relativamente à Técnica, mas á questão da universalidade com que a Arquitectura se está a reencontrar, e como corolário eventualmente legitimar esta velha Arquitectura junto a outras mais novas. De facto, ainda mal nos tínhamos refeito do papel que a Técnica de Corbusier teve a bombardear, e depois reconstruir a nossas cidades, e já a temos outra vez a destruir-nos os edifícios. Parece que a Nova Monumentalidade, que se ambicionava no tempo de Corbusier e do Plano Marshal, só pode ser hoje encontrada nos mass media nesse clean new world do imaginário genérico. Ulrich Beck referiu na conferência Das Schweigen der Wörker, que podemos traduzir como o silêncio das palavras, que a catástrofe do 11 de Setembro requer uma linguagem conceptual distinta daquela com que agimos e pensamos, capaz de sarar as feridas da perplexidade perante o mundo que herdámos e que possibilite compreender uma actualidade civilizacional onde o risco gerado pela aceleração tecnológica e as dimensões de perigo (ecológico, financeiro e terrorista, etc.) se tornaram inquantificáveis (Beck, Sobre el terrorismo y la guerra, 2002). A civilização de risco mundial de Beck deixa-nos no entanto um benefício, o de nos consciencializar que partilhamos globalmente um destino comum. (É interessante que mesmo o terrorismo, até agora do outro, se tenha também tornado desterritorializado, usando a Técnica emanada sobretudo do ocidente, Técnica esta que, no futuro, estará dotada ainda de maior capacidade de difusão ao serviço de qualquer acto de violência individual - por exemplo a genética, a nanotecnologia, as comunicações, etc.). O resultado desse momento não é pois, paradoxalmente, o abalo da globalização, de que também o terrorismo participa, mas pelo contrário acelerar a cooperação transnacional e novas formas pós-neo-liberais de atender á mobilização civil mundial sem menosprezar os excessos do próprio processo. Cria pois, e bem, uma globalização refundada que questiona o seu carácter imperialista original simbolicamente construído no edifício das Torres gémeas (Chomsky, vários). Esta situação obviamente tem reflexos e analogias com o mundo da Arquitectura, a qual igualmente deverá permitir a coexistência de variadas identidades culturais e intelectuais ao contrário da ambição totalizadora Corbusiana ou do imperialismo Theme Park. De facto, a globalização tem até agora somente construído a uma Cidade Genérica (que obviamente possui um centro de onde se emana a dominação económica) que espacializa uma identidade única em Arquitecturas tematizadas pelo poder das multinacionais. (Kyong Park, por exemplo, é expressivo ao identificar os sintomas deste fenómeno no contexto asiático, nomeadamente nas cidades gémeas recentemente edificadas e em múltiplas construções, onde as atitudes superficialmente contextualizantes dos profissionais ocidentais a que são entregues as encomendas, não conseguem mascarar um novo colonialismo). (Kyong Park, Images of the future: the architecture of a new geography) A Cidade Global, refundada após o 11 de Setembro, possui potencialmente


o benefício de poder ser multi-discursiva. Atenta aos excessos da globalização pós-colonialista, mas também atenta aos igualmente perversos excessos de uma suposta protecção identitária totalizadora (que de resto é uma falsa questão, como em boa hora e com as devidas distância demonstrou num espaço preciso, mas totalizado, o nosso Inquérito á Arquitectura). Trata-se de um impasse como o que sentiu Corbusier relativamente à Técnica. Mais do que criar fortalezas às entradas, ou privarmo-nos daquilo que de bom podemos exportar (liberdade democrática ou Arquitectura), também a Arquitectura local deverá permitir a coexistência de diversidades num ambiente cosmopolita. Porque, à semelhança do que refere Beck, de que a civilização do risco mundial é uma oportunidade para a cooperação global, também a Arquitectura local poderá ver este fenómeno como possibilidade de partilha generosa da sua eventual boa arquitectura. Só assim esta nova casa fundacional Vitruviana, que conforma um ambiente Morrisiano agora global, nos poderá sensibilizar Loosianamente enquanto cidadãos do mundo que partilhamos um mesmo destino, pautado, entre outras coisas, pela Técnica. À semelhança dos escombros modernos das Grandes Guerras, sobre que se banalizou a estratégia Corbusiana, também o Ground Zero (que convém referir é distinto do pós-Iraque aguardando construtores ocidentais) se constitui como Terrain Vague em versão pós-moderna. O silêncio no Terrain Vague, confidenciou-mo Ignasi, apenas aguarda a infiltração artística no discurso inevitável da produtividade técnica. A imprecisão do vazio é igualmente a predisposição da expectância e sobretudo o encontro da liberdade alheia à imitação da envolvente produtiva convencional. Lugar de encontro e da artisticidade silenciosa - como refere Del nomadismo al erotismo. (Solà-Morales, in: Anyplace ou na passagem La forma de làbsència: terrain vague do texto introdutório do UIA 96) E esse lugar é também o de

POR UMA ARQUITECTURA TODA.

Porto 2003

* arquitecto, docente da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, autor de Notas Sobre o Espaço da Técnica Digital e co-comissário do evento Arquitectura – Prótese do Corpo (Porto, 2002)

[Este artigo compila alguns apontamentos que integraram comunicações proferidas em Barcelona (1999), Lisboa (2000) e Nova Iorque (2002)] 1.1 – Marc Laugier, Cabana primitiva, 1753 1.2 – Le Corbusier, Modulor, 1946 1.3 – Le Corbusier, Vers une architecture, 1923 1.4 – Le Corbusier, Ronchamp, 1950 2.1 – Ted Krueger, Media augmented exercise machine, 2001 2.2 – José Sousa, Flesh H, 2002 2.3 – Marcos Cruz, Hyperdermis, 2000 3.1 – s.a., s.t., 11 de Setembro 3.2 – s.a., s.t., 11 de Setembro 3.3 – s.a., s.t., 11 de Setembro 3.4 – s.a., s.d., Ground Zero / Terrain Vague 3.5 – s.a., s.d., Ground Zero / Terrain Vague [maio 2003] 06.07


Pedro Maurício Borges Bruno Gil + Eugénio Borges + Vera Pinto *

O Prémio Secil é atribuído de dois em dois anos a uma obra de Arquitectura. Este ano, foi atribuído à Casa João Pacheco, na Ilha de S. Miguel, da autoria do Arq. Pedro Maurício Borges. Implantada sobre um campo verde, marcado por muros baixos de pedra vulcânica negra, a casa, mais do que uma integração neutra, constitui paisagem assumindo-se como sinal de obra humana. O habitar que oferece através de um desenho que passa ao largo de caminhos que levariam a uma mediatização assegurada, trabalha a partir de elementos da arquitectura moderna, manipulando-os como massa fresca. A sua arquitectura oferece-se à apropriação de quem a habita, tão tranquila como o mundo onde a casa aconteceu. Vítor Figueiredo Presidente do Júri Este texto comprova, passados catorze anos, um reconhecimento a um personagem que insiste em surpreender os menos atentos pertencentes ao mundo nacional da arquitectura. Porquê passados catorze anos? Certamente, poucos se aperceberão que o vencedor surpresa (?) do Prémio Secil 2002, o mesmo Pedro Maurício Borges, em 1988 fora vencedor do Prémio Revelação nos Prémios Nacionais de Arquitectura. No início de carreira ganha o prémio, com a ampliação dos Pavilhões da Secretaria Regional da Agricultura e Pescas para a Feira Açores 1988, em Santana, Rabo de Peixe. Durante os últimos catorze anos entre Lisboa – onde levanta de raiz o atelier –, Coimbra – onde exerce actividade como docente do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra – e os Açores – onde ia encontrando possibilidades concretas de trabalho – desenvolve uma vontade clara e descontraída, atitude assumida de um arquitecto que defende acima de tudo o trabalho de atelier.

Uma sala pequena, uma mesa grande e uma certa informalidade de quem já se conhece… um ambiente pouco propício a entrevistas. A conversa decorre descontraída, entre perguntas e respostas; o assunto – arquitectura ou arquitecto? Quem é Maurício Borges? Como é a sua arquitectura? A resposta será conhecê-lo.

[ entrevista a Pedro Maurício Borges ] Vamos começar pelo início, pela escola. O que representou o curso tirado em Lisboa? PMB_ No meu tempo quase que se argumentava, ou pelo menos era a ideia que eu tinha, que o que fazia a escola, ou a grande vantagem, era não haver escola. Cada um poderia escolher os seus modelos, os seus cromos, e seguir uma determinada tendência. Estamos em plena festa pósmodernista, onde, o mais sóbrio era o Rossi. Por exemplo, os tipos que andavam na onda do Rossi, não andavam só a pôr cruzinhas e frontões nas casas: copiavam os desenhos, a maneira de desenhar do Rossi, o professor reconhecia o referente e, pronto, ficava tudo bem. Uma escola que pratica a ausência de escola, a ausência de uma ideia comum a todos os professores dessa escola de como ensinar e o que ensinar para fazer um arquitecto, não me interessa, é uma má escola. Uma escola que tem uma ideia clara do arquitecto que forma, faz opções e arrisca, exclui coisas que põem em causa a didáctica escolhida, mas tu tens um referente sólido que adoptas ou não, até podes inclusivamente entrar em transgressão e em conflito com a escola. Numa ausência de escola o que é que fazes? Sendo tu aluno

[maio 2003] 08.09


de arquitectura, coleccionas imagens, nada mais te é exigido. O que acontecia em Lisboa é que havia aqueles tipos que vinham do Porto, faziam o primeiro e o segundo ano no Porto, e depois vinham para Lisboa_ era mais fácil, eram bons alunos em Lisboa, não tinham que fazer o sexto ano, eram arquitectos em menos um ano do que no Porto. Estes alunos, chegavam a Lisboa e brilhavam, sabiam desenhar, tinham uma metodologia para fazer projecto, o processo, embora com alguma retórica, não era aleatório. Na altura reconhecias qualquer aluno da escola do Porto, todos sabiam desenhar e usar o desenho com uma certa cultura arquitectónica, eram militantes da arquitectura, tinham um empenhamento, uns mais apaixonados que outros, de qualquer modo havia ali um interesse que nós não tínhamos, via-se que a arquitectura podia ser assunto, até de paixão. Naquele tempo em Lisboa tinhas o pósmodernismo que se propagandeava como movimento, quase uma vanguarda. Embora muita gente suspeitasse da consistência do fenómeno, o fenómeno existiu. Foram anos fáceis para muita gente, qualquer composição simétrica com janelas neopombalinas e um frontão lá em cima a coroar o eixo da entrada era fácil, era um receituário fácil. Por ser um fenómeno da moda e por haver uma certa ansiedade em estarmos na moda, em sermos tão actuais como noutro sítio qualquer, arrastou muito boa gente. Eu era aluno, se fosse arquitecto não sei se me teria envolvido na mesma festa. Outra questão interessante, era o hedonismo que estava envolvido nesta ideia, o desdramatizar do exercício da prática da arquitectura – deixemo-nos de merdas, de erudições: a arquitectura tem que ser festiva, tem que usar a cor. A escola do Porto afirma-se nessa altura por resistir ao apelo do fenómeno, foi uma espécie de reacção tipo Reforma protestante. Tanto, que houve aquela famosa exposição Depois do modernismo, em Lisboa na Sociedade Nacional de Belas Artes, com pintura,

arquitectura, música, cinema, em que o Porto recusou participar. Digamos que havia dois campos, neste principio dos anos oitenta, ou eras pós-modernista ou eras contra. E dentro do ser contra, eras neoracionalista, próximo do racionalismo italiano, havia um neo-modernismo difuso, com referentes difusos. E o que é ensinar em Coimbra? PMB_ No terceiro ano há uma ideia muito clara do arquitecto a formar. É um ano em que não me interessa a arquitectura que tu fazes ou o modelo que te referencia, interessa-me sim a maneira como a fazes, que de certa forma é só uma. Educamos os alunos numa determinada maneira de fazer arquitectura. Eles podem estar a testar a arquitectura que querem, mas o modo como têm que gerir o processo de projecto, o tal método, é o mesmo. Eu não posso deixar de dizer que há arquitecturas que se acomodam melhor a este método, a certas metodologias, do que outras, que pedem maneiras diferentes de fazer que não são aquelas que estão a decorrer na sala de aula. O terceiro ano é um ano de consolidação duma metodologia de projecto, que passa pelo domínio dos instrumentos base, não é só o desenho enquanto capacidade de pensar, é também através do desenho proporcionar uma resposta a um problema. Quando uma aluna me lê um poema para fazer um projecto, sob o ponto de vista desta metodologia, só me interessa se ela também souber pegar num lápis, numa folha de esquisso e for decompondo, interpretando, dando medida a um programa, que se confronta com o sistema construtivo, com um sítio concreto numa cidade, que se confronta desde a escala do território, até à escala do detalhe construtivo. Aí, a estratégia do projecto, que pode ser uma estratégia biográfica que não a metodologia, passa por ir buscar não ideias

Habitação Unifamiliar Fonseca Macedo Termo da Lagoa, S. Miguel, Açores 1996 - 1998




proponente, mas ele não percebeu. O Mies tinha uma frase, que eu nunca sei bem como é – Nem todos os vegetais têm que ser rosas. – Nós só estamos a falar disto por uma razão, porque hoje parece só haver arquitectura quando é de autor, o que é absurdo. Era bom que a arquitectura mediana fosse boa! PMB_ Sem ter que se perceber que é do Marcelo, que aquela é do Joaquim, do Fernando… Mas é a onda. Em nome da originalidade fez-se tanta porcaria! Há várias maneiras de nos emocionarmos com a arquitectura, ou com outro tipo de experiência estética, que passa também por reconhecer um exercício de inteligência. Quando falo da inversão do contexto, acho que este confronto com o que existe, ou que vai existir, é sempre um exercício de criação, de ficção, mas é sempre, um exercício de inteligência, de racionalidade, e nesse sentido a medida como forma de adequação, não só ao desenho do sítio, do contexto físico, mas até ao contexto histórico. A Casa da Música é um projecto contra natura na rotunda da Boavista, mas será sempre um projecto resultante das condições históricas. O Porto, que tem a melhor escola de arquitectura de Portugal, que exportou e continua a exportar os nossos melhores arquitectos, no entanto não tinha produzido uma arquitectura de ruptura. A Faculdade de Arquitectura do Porto é construída com a paisagem, construída para estar naquela encosta, não tem o valor de deslocação, de estranheza que a Casa da Música vai ter. Eu posso até não gostar do projecto, achar que é completamente descabido e que a medida está errada, mas reconheço a necessidade daquele projecto. Talvez o que eu mais gosto no Prémio é reconhecer uma arquitectura que é feita com os meios mais banais, sem gastar rios

Habitação Unifamiliar Bessa

de dinheiro em chapa de zinco, sem as tecnologias idealizadas pelas escolas de arquitectura e pelas arquitecturas que se impõem. É feito com o material que está à mão, sem o conformismo disso. A arquitectura de autor utiliza sempre os mesmos meios de sistemas construtivos e de pormenores de luxo; na realidade, a construção banal não os usa. É possível trabalhar com a construção, a tecnologia e a mão-de-obra mais corrente e fazer boa arquitectura. Com tijolos, tijoleiras, reboco, pode até fazer-se uma arquitectura de ruptura. Um bom exemplo é a Casa do Tractor dos as*, que é, simultaneamente, um projecto que podia não ter sido feito por um arquitecto, é de certa forma uma arquitectura anónima, é feita de materiais que estão à mão. É no modo como jogam com os materiais, com uma disposição formando uma composição abstracta, que a tornam uma peça contemporânea. Duas casas de habitação nos Açores, e são diferentes. Em quê? PMB_ No sítio. Uma está na costa norte, mergulhada na paisagem; a outra está por cima de tudo, domina a paisagem e tem a rainha das paisagens em frente, o mar. As casas têm algumas coisas parecidas, o uso dos desníveis para demarcar as funções e também para se irem adaptando aos declives, a não recusa em se assumirem como objecto na paisagem, uma através da chaminé do forno, a outra através do óculo. Enquanto que a casa do norte, a do Pacheco relaciona-se com igual intensidade entre a topografia próxima e a distante, a casa do Fonseca Macedo relaciona-se primeiro com a topografia distante quer a da ilha quer a do horizonte do mar, só depois é que vai conformar-se à topografia próxima. Estes projectos foram sempre feitos com outros colegas, foram sempre uma luta entre a ansiedade e o desejo de fazer uma arquitectura mais contemporânea e eu achar


que era inadequada a resposta, e por fim estarmos todos de acordo quanto a isso. Fizemos uma obra em Estremoz que era uma ampliação de uma azenha. Estivemos imenso tempo a tentar pôr um volume de cobertura plana, puríssimo, com umas proporções que fossem contrastantes com a do existente para resolver a ampliação. Tu não encostas esta arquitectura, um volume, um sólido a uma casa de duas águas, baixa, com vãos. Os volumes têm que estar separados, como é que os unes? Como é que fazes essa passagem?, porque esta passagem deverá ser imaterial. Como não resolvíamos bem essa situação, fizemos à alentejana: estendemos as duas águas para fazermos a ampliação – como eles fazem. Claro que depois abrimos vãos e demarcamos debaixo dessa cobertura a ampliação, mas aí a escala da paisagem não entra. Lembro-me de estar a fazer esse trabalho com mais dois colegas, andarmos às voltas com aquilo, e ao se estenderem as duas águas não houve qualquer espécie de resistência. Mas, há um projecto de habitação que fiz com o Miguel Figueira em Regalheiras de Lavos, a sul da Figueira da Foz. Aqui tens umas casas destas de arquitectura vernacular, com quintal; aqui tens um contexto diferente (para além do Alentejo, para além dos Açores); no litoral tens uma paisagem mal urbanizada, contudo não deixa de ter alguns elementos caracterizadores: um deles o uso de chapas de fibrocimento, outro o uso de blocos de betão por rebocar. Aquilo que antigamente era feito, que vem na sequência de uma tradição, com blocos de adobe, eles substituem por blocos de betão... Fizemos este projecto, uma ampliação que é feita assim – com blocos de betão – e que dá uma coisa muito mais up to date! É tão, ou mais, contextualista do que os outros. E outros projectos, que não tenham como programa a habitação?

[maio 2003] 12.13

PMB_ Fizemos um projecto para Montemoro-Velho de reconversão do Solar dos Alarcões para Biblioteca Municipal. Está feito o projecto de execução. Existe este solar, o telhado caiu, basicamente o que vamos fazer é um projecto dentro de um edifício que já existe; não é uma recuperação, não é uma reconstrução; digamos que é ir habitar um corpo que já está desenhado. Aqui há já muito desenho prévio; acredito que as casas têm uma personalidade, determinado tipo de carácter. Das coisas mais frequentes que ao longo destes anos tem acontecido é as pessoas quererem transformar uma casa e pedirem um projecto de arquitectura. Acaba por não ser preciso projecto nenhum, o que elas querem é, ou destruir completamente a casa, o que é estúpido e mais vale comprar outra, ou então querem só alargar a sala, ou então o que pedem não precisa de projecto, não precisa de arquitecto para nada. Temos um jazigo no cemitério de Ponta Delgada que gosto imenso. Quer se queira quer não, tenho duas obras atravessadas na garganta; uma é o Pavilhão Gimnodesportivo de Oeiras, outra é uma pequena ampliação que é uma espécie de caixa de madeira construída debaixo de uma pérgola. Havia esta pérgola de madeira numa composição de uma casa de quinta açoriana. A composição estava acabada, fechada com a pérgola, era difícil fazer uma ampliação, e a ideia era precisamente essa – ampliar para ali a casa – a dona não usava aquele espaço exterior coberto. O que fizemos foi manter a composição fazendo uma cobertura plana, mantendo a pérgola e construindo por debaixo dela um corpo com persianas, como se fosse um exterior que se pudesse desmaterializar a qualquer altura. Esta obra mete água por todos os lados. O Pavilhão de Oeiras (projectado em coautoria com os arq.ºs Eugénio Castro Caldas e Nuno Távora) entrou em decadência três meses depois de ser inaugurado;

Pavilhão Desportivo Municipal de Oeiras S. Julião da Barra, Oeiras, 1991-1992


obviamente que a minha responsabilidade na casa da Ana Mafra, da ampliação debaixo da pérgola, ou a nossa responsabilidade, minha, do Eugénio e do Nuno, no caso do pavilhão é muito relativa, ou poderá mesmo ser inexistente, mas não consigo ser indiferente a esse mau desempenho ou insucesso da obra. O sucesso formal não redime o desastre construtivo. De que altura é o Pavilhão de Oeiras? PMB_ A casa do Prémio é muito antiga, o estudo prévio é de 93, por isso o pavilhão deve ser de 90, ou anterior. A mão-de-obra na construção do pavilhão não era lá muito qualificada, foi por isso que falhou. Aqui está uma situação em que quando tu percebes que tens esta mão-de-obra mais vale reveres o grau de dificuldade de construção pormenorizada pelo projecto. Tem alguma participação assídua em concursos para uma ou outra obra pública? PMB_ Ao longo destes anos já fizemos vários concursos, mas nunca ganhámos. Ficámos em segundo no Complexo Científico da Universidade dos Açores, com um projecto que tinha problemas, mas que era o melhor! (risos). Ganhou a engenharia! Ficámos em segundo no concurso de ideias para a Barragem do Fratel. Com o Rabaça e o Vítor Canas ficámos em segundo num concurso para um tribunal em Santa Maria, esse muito mal perdido. Algumas menções honrosas... Houve um concurso em que ficámos em último, eu e o Miguel Figueira para o Pavilhão da Trienal de Milão; para nós ficar em último foi... só poderíamos mesmo ficar em último, quer dizer o nosso projecto era o melhor (risos). Entregámos os painéis e fomos celebrar, já estávamos a fazer contas em relação ao que íamos fazer ao dinheiro! A que lugar é que pertence afinal? Se é à Figueira da Foz, se é a Lisboa, se é

aos Açores, se é a Coimbra, se a outro lado?... PMB_ Já fui da Figueira... nasci em Lisboa, depois fomos para Angola, estivemos em Luanda e em Nova Lisboa, depois viemos para Torres Novas, depois estivemos em Mangualde, depois fomos para Bissau, de Bissau fomos para Leiria, finalmente fomos para a Figueira, chegámos quando entrei para a Escola Primária, tudo nos meus primeiros seis anos. Cresci na Figueira, eu era da Figueira, é uma cidade muito feia mas ainda hoje gosto daquilo, cada vez vou lá menos, é uma cidade onde não se faz nada, acabo por lá não ir mas tenho lá amigos, mas já não sou de lá, mas também já não sou de Lisboa, também não sou daqui (Coimbra); acabo por ser quase que mais açoriano do que continental, mas também não sou de lá. O meu pai era militar... Em relação ao Prémio Revelação (ampliação dos Pavilhões da Secretaria Regional da Agricultura e Pescas para a Feira Açores 1988, em Santana, Rabo de Peixe), como decorreu esse processo? PMB- Prémios Nacionais de Arquitectura – Primeiras Obras. Foi em 1988, tinha 25 anos. Acabei o curso em 86, fui para os Açores com 23, e fiquei dois anos. Em Julho de 86, com mais dois colegas, fomos a uma entrevista. Em Setembro sabia que ia ficar a dar aulas no Ciclo Preparatório onde tinha sido aluno, ia ser colega das minhas exprofessoras. Estive para não ir para os Açores; telefonam-me numa quinta ou sexta-feira a dizerem quero-vos cá na segunda-feira, estou interessado em vocês, os três. Acabámos por ir, fomos para a Divisão da Habitação da Secretaria Regional do Equipamento Social, onde trabalhávamos num programa que consistia na recuperação de habitação degradada. A maior parte das vezes fazia-se um diagnóstico das reparações, uma espécie de caderno de

Feira Açores 1988 Santana, Rabo de Peixe, S.Miguel, Açores 1988 [maio 2003] 14.15


encargos, não chegava a ser um caderno de encargos, para os fiscais darem guias de material para as pessoas levantarem cimento, blocos, areia, ou telha. Mas, muitas vezes, como estas casas eram as mais pobres não tinham casa de banho, então dezenas de projectos que fizemos eram pôr casas de banho numa arquitectura que estava mais do que acabada, formalmente; era a casa arquetípica, popular, micaelense. Pôr uma casa de banho ali era quase tarefa impossível quando não se queria desvirtuar a f o r m a . C l a r o q u e s e a l t e ra va , forçosamente. Era mais fácil quando o agregado familiar era tão vasto que a Secretaria propunha mais um quarto, raramente dois. Aí já tinhas volumetria de construção para poderes trabalhar, compor e integrar a casa de banho. Era também projectar sabendo que se ia construir com blocos, reboco e telha. Mas como é que surgiu então a Feira? PMB_ A Feira surge porque realmente trabalhávamos a sério. Nós, o tempo que lá estávamos, estávamos a trabalhar; no funcionalismo público, como se sabe, trabalha-se pouco, regra geral. O meu Director Regional propôs-me para a Feira, nem sabia no que me estava a meter. Passados dois anos, quando voltei, acabei por ir trabalhar para o atelier Bugio e paralelamente fiz os painéis para concorrer para os Prémios Nacionais. Ao contrário de agora, nessa altura não conhecia o Alexandre Alves Costa, o Manuel Mendes, não conhecia ninguém e ninguém me conhecia, isso é que foi incrível. Deram-me o Prémio Revelação e ao José Carlos Portugal, e deram o grande prémio ao Manuel Botelho. Depois as menções honrosas foram dadas também a conhecidos; eu era o único, por assim dizer, não conhecido. Passados tantos anos o Secil atribuído a um ilustre desconhecido... A história repete-se... (risos)...

Há uma coisa importante, se eu tivesse tido outras encomendas se calhar tinha feito outros projectos, noutros contextos. Gosto do trabalho do Gehry... se pudesse fazia outras coisas; apetece-me fazer outras coisas! Estas duas casas (Açores), gosto imenso delas, acho que são casas bem feitas, mas são muito conservadoras! Não é a questão da continuidade agora, é a dos valores, é o tipo de materiais... há uma série de coisas que vêm, nem sequer por um gosto burguês, vêm por uma questão pragmática de a casa não vir a dar trabalho. Há uma questão importante de que ainda não falámos e que ilude ou pode iludir a questão do contexto, embora, o contexto acabou! O contexto é mesmo muito complexo. A outra questão que tem grande parte da produção da arquitectura contemporânea por refém é a questão da imagem. Faz-se hoje muita arquitectura plana uma vez que o interesse dela, e aquilo que propõe, é o seu consumo enquanto imagem. Daí a força dela, também. Reconheço algum interesse nisso apenas por este aspecto que é – uma arquitectura que se consome num olhar e para isso acontecer é preciso que a imagem seja forte e sintética, sem detalhe – por isso, é uma arquitectura que é mal construída, porque não tem mesmo espessura, não interessa o detalhe, interessa a expressão da ideia. Depois há a arquitectura que funciona a partir da manipulação das imagens. Raramente as revistas de arquitectura informam do projecto; na maior parte das revistas nunca chegas a perceber o projecto; não consegues sintetizar a informação porque ela não te é dada. Coimbra, 4 de Abril de 2003

* alunos do 5º ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra




Arquitectura Têxtil Miguel Garai *

O espaço contínuo natural. O espaço natural é um espaço contínuo, regido pelo ritmo a-b-a, em que o pleno, o cheio, o convexo, se encontra localizado entre dois vazios que, como tal, apresentam direcção e delimitação indeterminada, visto que o ritmo se cumpre em todas as direcções do plano e do espaço. O espaço natural fala-nos de indeterminação de limites, pois a existência do vazio nos extremos significa que nada começa e nada termina. Um ritmo onde a unidade plena se encontra sempre no meio, entre as coisas. Que não desempenha uma relação localizável dos seus elementos, mas sim um movimento transversal, sem princípio nem fim, em que a indeterminação dos limites afirma o valor flexível dos mesmos. O espaço natural é de carácter heterogéneo e tem um sentido de organização livre, temporal, alógica e irreflectida. O recinto fechado. Na natureza não existem espaços fechados. Grutas, umbrais, bosques, estreitos e angusturas, comprimem o espaço sem fechá-lo. Foi o Homem o criador de espaços fechados com porta, construídos para se abrigar dos perigos do exterior. São recintos de ritmo b-a-b, em que o vazio a se encontra na posição interior em relação aos cheios b, que o protegem e que configuram os seus limites. Os animais selvagens suportam mal o encerro ou o cativeiro em espaços fechados. Também o Homem necessita do exterior e do contacto com a natureza para encontrar o seu equilíbrio. Cobrir e fechar. Cobrir um espaço, ou fechá-lo ao exterior, cria duas condições espaciais qualitativamente diferenciadas. O recinto criado, ao cobrir um espaço a imitar a natureza, é aberto, de carácter contínuo, heterogéneo e de limites indeterminados, indicando a primazia e a autonomia do cheio sobre o vazio. É uma construção que não mede o espaço, ainda que no seu interior existam lugares b-a-b, possíveis de medir. No entanto, ao fechar-se um espaço, constróise um recinto de limites fixos e de carácter interior, oposto ao exterior natural. O espaço interior. O espaço interior é um espaço finito, em que o cheio b ocupa os limites e no seu interior faz-se patente o valor da intimidade, como diria Gaston Bachelard. De carácter descontínuo e energia centrípeta, o espaço interior é mensurável dentro de um contexto iconográfico de referências fixas. A cobertura como primeiro elemento arquitectónico. O tecto é o elemento arquitectónico mais antigo, dizia Adolf Loos, parafraseando as ideias de Gottfried Semper sobre a origem têxtil da arquitectura. Como primeiro elemento construtivo artificial, ou seja, criado pelo Homem, o tecto apresenta a capacidade de criar um lugar sem fechá-lo. Defendido dos raios solares e das chuvas, este abrigo resulta num espaço qualitativamente distinto do espaço exterior que o rodeia. Apresenta as mesmas características de continuidade do espaço natural exterior, pois é possível atravessá-lo em todas as direcções, sendo reconhecível como espaço singular, cuja identidade oferece a capacidade de distinção e de nomeação. Este primeiro espaço, coberto mas aberto, criado pelo Homem à imagem da natureza, resulta num espaço artificial mais próximo dela, tendo as mesmas características e o mesmo sentido de organização. Territorialidade espacial. O cobrir ou fechar de um espaço, para além de distinguir recintos de carácter distinto, confere diversos graus de territorialidade ao recinto, segundo o modo como assentam as construções. Enquanto que a cobertura, como as nuvens, não territorializa mas flutua no espaço, um pavilhão ligeiro, de limites flexíveis inspirados na cobertura, apenas necessita de cimentação, [maio 2003] 18.19


sendo pequeno o seu grau de territorialização. Um edifício fechado de limites fixos apresenta graus maiores de territorialização e necessita de fundações mais ou menos profundas e pesadas para subsistir. A arquitectura têxtil manifesta um acontecer desterritorializado. Territorialidade material. O conceito de territorialidade pode aplicar-se também aos materiais segundo o seu nível de essencialidade material. O transvase de matéria a material implica a perda de graus de desterritorialização, pois os materiais manipulados têm algo de nómada, se analisarmos o percurso que realizam através da sua viagem de industrialização. Arquitectura têxtil. Chama-se arquitectura têxtil àquelas arquitecturas que apresentam características construtivas e espaciais que provêm do sentido original da cobertura. O seu acontecer busca, tal como aquelas tendas ou cabanas primitivas, arquitecturas organizativamente descentradas, de limites flexíveis e construídas com materiais ligeiros. O seu carácter heterogéneo carece do sentido euclidiano do espaço e da sua capacidade de repetição. A sua falta de vocação de identidade e o seu sentido quotidiano fá-los significarem mais como objectos de carácter genérico do que como formas com identidade de sujeito. O material têxtil. Os materiais têxteis foram sempre ligeiros, leves e de tamanho pequeno. Obtidos, ao princípio, directamente da natureza, como as peles, as canas, os ramos ou ervas, resultaram mais tarde em materiais manipulados como as peças de tela, madeira, cerâmica ou pedra, mas sempre mantendo as suas características originais de leveza e tamanho. Os contemporâneos, como chapas, lâminas ou feltros, mantêm, mesmo assim, essas qualidades têxteis. Cobertura e material têxtil. O imaginário da cobertura está intimamente ligado ao material têxtil. A cobertura, juntamente com os seus materiais têxteis, apresenta um sentido construtivo de unidade aglutinante. Entende-se como unidade aglutinante o equilíbrio entre a unidade do conjunto e a unidade individual de cada peça construtiva que forma o conjunto. As unidades individuais de cobrição, como as telhas, as lajes ou as chapas, mantêm, desde a sua colocação, uma individualidade de expressão diferenciada, relativamente à totalidade da cobertura. Pode entender-se a c o b e r t u ra c o m o c o n s t r u ç ã o q u e c o n j u g a a u n i d a d e c o m a d i ve r s i d a d e . A cobertura é uma membrana ventilada. A justaposição aberta dos elementos constituintes da cobertura tolera a passagem de ar através de si, permitindo a ventilação natural do espaço interior, pois a matéria têxtil mantémse aliada ao sentido de autonomia que deriva do ritmo a-b-a, construtor do espaço contínuo natural. A cobertura não constitui uma construção integrada, na qual os materiais se encontram aprisionados pela massa e despersonalizadas no interior do muro. Se o século XIX significou o aligeiramento do material e a utilização de lajes de pedra de dois centímetros de espessura nas fachadas, a inovação tecnológica actual tornou possível eliminar a construção integral, substituindo-a por uma construção de encerramentos ventilados industrializados, técnicos e ligeiros. A qualidade de superfície. O sentido de extensão longitudinal relaciona a cobertura e o material têxtil com a qualidade de superfície. Qualidade de duas dimensões que carece de profundidade ou terceira dimensão. Superfície plana não significa superfície homogénea. Na superfície tudo é entre, lugar interessante, estratégico. Da superfície depende a forma do objecto, a interacção com a


envolvente e a associação com outros materiais. Cobrir e sustentar entendidas como funções diferenciadas. A arquitectura têxtil concebe a sustentação da cobertura com independência da cobrição a seu serviço. Não sucede assim com o sistema mural que concebe o muro como elemento arquitectónico que fecha e sustenta ao mesmo tempo. A têxtil é uma arquitectura segmentária que distingue entre encerramento e sustentação, como o fizeram a arquitectura gótica e também o Movimento Moderno. A distinção entre fechar e sustentar refere-se a elementos sustentadores, que suportam, e elementos sustentados, que fecham e delimitam o espaço entre interior e exterior. Afastada a cobrição do trabalho de sustentar, aparecerá a cobertura como elemento técnico que, para além de cumprir funcionalmente, apresenta as premissas da ligeireza, superficialidade, estandardização, moldabilidade e adaptabilidade às pendentes. Características todas elas coerentes com a sua função. Também apresenta afectos que implicam vectores de velocidade que escapam ao valor do trabalho, dando por suposto que isto se cumpre. Poderíamos chamá-los de acção livre, actuando sobre o exterior das peças, dirigindo-as através dos aspectos mais decorativos, próprios das jóias e dos vestidos. A relação material-forças. As suas estruturas contestam a gravidade de modo indirecto, não necessariamente vertical. A sua arquitectura não passa por uma relação forma-matéria como acontece com a arquitectura arquitravada e com o mundo clássico, onde as respostas, imersas no sistema ortogonal vertical-horizontal, estão já preestabelecidas. A sensibilidade da arquitectura têxtil passa por uma relação material-forças, a partir da qual os elementos sustentadores podem inclinarse, buscando a direcção e a o impulso das forças. O sistema material-forças afirma-se como irredutível à atracção e ao modelo das forças gravitacionais, ainda que não as contradiga. Não é que as demais forças desmintam a gravidade ou contradigam a sua atracção, mas sim que afirmem um suplemento e que o mesmo sistema se instale nesse suplemento. A sustentação carece do sentido de representação no imaginário têxtil e o seu acontecer enquadra-se em objectos sem presença, onde a resposta estrutural se estabelece no processo construtivo e não previamente. O método indirecto. O campo da arquitectura têxtil aparece unido a um tipo de multiplicidades acentradas, não métricas, que ocupam um espaço sem medi-lo. A resposta desta arquitectura às forças exteriores realiza-se de um modo indirecto, sem afrontamentos, através de elementos intermédios que, pelo seu carácter leve, necessitam de pouca massa e dispõem de muita energia. O método indirecto tem um sentido temporal e económico e, na sua escrita fragmentada, observa-se a proliferação de pequenos motivos que procedem em relações dinâmicas extremamente complexas a partir de relações formais de carácter simples. Este método, que enlaça o natural e o artificial, não implica a incerteza na resposta. É um método imerso num sentido dinâmico da arquitectura que diversifica e torna mais complexa a resposta. Uma arquitectura de objecto que foge da presença. O sentido de objecto explica o espírito que caracteriza a arquitectura têxtil. Um objecto que responde à semiótica impessoal da cobertura. Nasce do exterior, não desde o apoio concreto de um lugar definido, mas desde a extensão homogénea e infinita natural, onde nenhum ponto como sinal é possível e, por isso, a significação carece de sentido. Os encerramentos, de limites ambíguos, não necessariamente verticais, serão construídos à margem do sujeito, apresentando características de ligeireza e superficialidade, como indica o acontecer imaginário da cobertura. As essências difusas determinam a corporeidade material do espaço contínuo, cujo realismo sensorial penetra no mundo material e vive no concreto. Foge da globalização totalitária e desdobra-se num mundo sem horizonte, ali, onde os limites actuam como mediadores para construir o espaço.


Aritmética mais que geometria. A arquitectura têxtil é numérica. Não se relaciona bem com a geometria elementar, companheira das essências ideais. Sem dúvida, esta arquitectura tem a sua geometria, mas é uma geometria menor, operatória, de traço. Nas suas figuras, o número é independente de uma métrica precisa, visto que se guia por premissas como em volta de ou junto a. São figuras formadas por vectores que indicam graus, intensidades ou acidentes que consolidam objectos de individualização própria a à margem do sujeito. Ocidente e oriente. O universo aberto do impreciso e do complexo governa a resposta ao exterior da arquitectura têxtil, que nunca é directa ou manifesta. Enquanto que a orientação precisa do sol, um ponto longínquo como referência, um Norte que guie os nossos passos, capaz de ordenar um espaço e torná-lo homogéneo, o espaço contínuo que governa a arquitectura têxtil é um espaço ocidentalizado, próximo, entre as nuvens, do contacto táctil ou manual. Nesta sensibilidade, os caminhos não impõem a sua presença, limitando-se à sua actividade funcional. A d o b r a , o f r a g m e n t o e o s v é u s i n s c r e v e m -s e n a s e n s i b i l i d a d e t ê x t i l . A dobra, como linha que escapa à geometria e à sua manifestação, liberta uma potência de liberdade que se expressa com esse rasgo temporal. É aquele acidente que põe em relação o interior com o exterior, buscando uma ambiguidade de relação entre espaço e matéria. Não nega a forma mas turva-a, indeterminando o contorno. É, por isso, um signo ambíguo, que não pesa, pois da tensão que existe entre o encolhimento e a extensão advém força. O fragmento é de carácter reflexivo e não precisa da presença do inteiro para ser definido. Baseado no casual, no ritmo ou no acontecimento, expressa-se num marco de variedade e multiplicidade, onde o indivíduo se actualiza na comunicação através de pequenas percepções que põem em relação o uno e o múltiplo. Os véus são elementos que mantêm afinidade com a aliança e o secreto. Ocultam a personalidade do sujeito, diluindo a sua imagem ao animar a incerteza e a causalidade na apreciação dos seus limites. O véu oculta mais do que expressa, buscando imagens que dispersam e diluem a integridade do sujeito. É amigo da sombra, criando multiplicidades sem limites fixos e permitindo o vago, o fluido e as metamorfoses que evidenciam a precaridade do sujeito, quando não a dissolução das formas. Telhado e tecido têm sentido de pele. Confeccionar, atar e coser são características relevantes do vestido e também o são na manufactura da cobertura. Aqui, a linguagem fala-nos do sentido das palavras. Telhar e tecer, podem ser entendidas como actividades similares que têm origem num mesmo princípio têxtil. Assim o entendeu Gottfried Semper no seu livro O Estilo, de grande influência na arquitectura do século XIX, sobretudo em Otto Wagner, que construía as suas fachadas sujeitando as peças de revestimento como ligeira pele cosida à estrutura.

* arquitecto, docente da Escuela Superior Técnica de Arquitectura de San Sebastian, Universidad del País Vasco, e autor de ARQUItectura Textil, editado pela ESTASS, de onde se extraiu o presente texto. [maio 2003] 20.21


A P onte Sobre o Rio Kw ai

[a propósito de arquitectura low -tech ] José Brites* Ponto primeiro: Low-Tech (com maiúsculas) não existe. O que existe é low-tech (com minúsculas)... Eu explico; diz-se, low-tech, de algo (e não necessariamente um objecto arquitectónico) concebido com recurso a um mínimo de meios ou feito para assim parecer. Mas não há, nem houve, nenhuma corrente propriamente dita cuja designação fosse essa. Quando muito, a low-tech terá sido uma tendência que ganhou uma certa popularidade: a ideia foi ficando, o termo ganhou um lugar no vocabulário e o conceito acabou por se instalar. A low-tech surge na Europa conturbada dos anos 60 e 70 prolífica — em contestações ao Aparelho, aos costumes conservadores do bemparecer, aos hábitos de consumo — como reacção à procura pelo luxo, pelo produto comercial e pela high-tech dispendiosa. A arquitectura low-tech vem pelo mesmo trilho, mas a estas premissas acrescenta influências do Brutalismo dos anos 50 e lições da construção tradicional. Uma das características do Brutalismo consistia em assumir e dar ênfase aos materiais de construção, à estrutura do edificado (o nome advém do béton brut de Corbusier). Esta abordagem à arquitectura era tendencialmente anti-esteticista e vinha no seguimento de um Modernismo pós-guerra que procurava a sua identidade e um regramento mais rígido para si e para a arquitectura. À cabeça do movimento vinham Le Corbusier (Unité d’Habitations de Marseille; Saint Marie de la Tourette) e Peter e Alison Smithson, casal de arquitectos britânicos responsável pelo projecto da escola secundária de Hunstanton, em Nortfolk no Reino Unido (1954). O projecto causou sensação: elaborado segundo linhas rígidas, deixava deliberadamente à vista os elementos estruturais que o compunham: betão, vidro e estruturas metálicas. Porém, com o decorrer dos anos, estas características provaram-se penalizantes para o edificio no aspecto funcional, exigindo reparações profundas. A obra de Ridolfi vem como um exemplo da construção-tradicionalfeita-para-ser-tradicional mais do que da construção-low-tech-feitapara-ser-low-tech, mas é um bom exemplo na mesma, pela prática que apresenta. Para abreviar a história de Mario Ridolfi direi apenas que foi um arquitecto italiano que em meados do século XX se virou para a construção tradicional. Daí em diante, Ridolfi explorou a fundo o conhecimento e as potencialidades de construção e de expressividade dos materiais e técnicas tradicionais: a pedra, a madeira, o ferro trabalhado, o azulejo. Nessa linha elaborou dezenas de obras, entre as quais a Casa Lina (1966). Progressivamente, Ridolfi incorreu numa espécie de autismo arquitectónico: alheio ao seu tempo, trabalhava activamente sem se preocupar grandemente com as grandes tendências que então grassavam. Se pecou foi pela exagerada abstracção a que se remeteu, mesmo laborando em prol da enorme herança arquitectónica que reuniu. Pronto, isto era para falar das origens da coisa. Do antes. Agora vem o depois. Para isso decidi pegar nas instalações da expo 2002 em Murten-Morat na Suíça, projectadas por Jean Nouvel, como exemplo. Furtando-me às justificações semi-metafóricas e semi-metafísicas do autor, preferi atentar no aspecto formal da obra: amontoados de brita,

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pilhas de troncos de árvores, contentores de carga obsoletos, restos de tendas militares fora de uso — todos escondem pavilhões de exposição. Mas isto tem um truque, e por isso é que eu disse aspecto formal. Os pavilhões de Nouvel parecem low-tech, mas para os conceber foi preciso um montão de high-tech. Lá está, parecem; é a questão da superfície outra vez, da forma e do conteúdo, ou melhor ainda, do produto final e da técnica de concepção. É uma farsa bem montada, na medida em que a obra, independentemente de ser boa ou má, é feita para parecer uma coisa que em boa verdade não é. Convenhamos que, em termos de concretização e de efeito conseguido, a obra está excelente; mas sobretudo consegue manter-se fiel ao princípio de criar algo a partir de... bem, a partir de tralha, de desperdícios, de lixo. O facto de se poder apelidar de low-tech as instalações da expo 2002 em MurtenMorat é legítimo, ao invés de muitas obras que se refugiam a posteriori no conceito para justificarem lacunas de concepção, como já acontecia com muitas fraudes que à sombra do Brutalismo de Corbusier encontravam p r e t e x t o p a ra l e g i t i m a r r e d u ç õ e s n o c u s t o d a s o b ra s . Pondo de parte o latim arquitectónico, low-tech é, em última análise, uma alcunha que se atribui a algo que se concebe e que não apresenta grandes caprichos materiais ou de execução. É o produto de uma ou mais eventualidades do processo de construção. É um desenrasca para colmatar outro desenrasca. Como em todas coisas os melhores exemplos são os de todos os dias: onde houver uma engenhoca qualquer, um rasgo de criatividade construtiva ou uma solução improvisada para um problema haverá low-tech. Como quando no bar do Departamento comentava com o Luís Filipe Rocha a ideia dele de transformar um carro abandonado numa casa: — Os pés para ali, a cabeça para além: temos uma cama. — Um fogão e tal: uma kitchenette. Aqui isto, ali aquilo, meia dúzia de panos para não se ver tudo lá dentro e — Pronto!, uma casa toda maneirinha. — Não é o Ritz, mas também, no seu perfeito juízo, ninguém se lembrava disto... — A questão é que há gente a morar em coisas destas sem metade dos luxos desta aqui... Pondo isso de parte, se virmos bem, low-tech está em toda a parte: os brinquedos das crianças angolanas são low-tech, a cenografia da Bonifrates é low-tech, os Stomp usam percussões low-tech (de forma muito pouco low-tech), o auditório do Departamento é low-tech (na verdade, todo o Departamento é low-tech), a ponte sobre o rio Kwai era low-tech...

* aluno do 3º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra


Telearquitectura [arquitectura virtual]

Rui Aristides + Daniel Beirão*

Downloading………..

CY B ER SP A CE – TH E N EW M EETI N G R OOM A tecnologia permitiu reunir todo o mundo no mesmo espaço, espaço virtual no qual se trocam ideias, se fazem negócios e no qual se faz intercâmbio de informação e conhecimento. Criado em 1948 pelo matemático Norbert Wiener e popularizado em 1984 pelo escritor William Gibson no seu romance Neuromante, este novo mundo foi chamado de ciberespaço. O estudo desenvolvido por Wiener tratava não só do controlo automático das máquinas por computadores e por outros aparelhos electrónicos, como também do cérebro e do sistema nervoso humano e a relação entre estes com os sistemas de comunicação e controlo. Esses estudos servem actualmente para a investigação da inteligência artificial. As novas tecnologias não se contêm na informática, na telecomunicação e no digital, sendo geradoras de toda uma nova cultura que se tem vindo a desenvolver desde os anos 1960 com o gradual aumento dos recursos de informação e comunicação. A informática, a rádio, a televisão, os satélites e os cartões magnéticos proporcionam

a esta nova sociedade uma gestão digital de recursos económicos, humanos e intelectuais. Ao mundo mecânico sobrepõe-se um mundo digital, um universo imaterial, atemporal, instantâneo, fluido e interactivo. O Ciberespaço, com a sua própria organização social e económica, estabelece novas relações entre o homem , o tempo e o espaço, apoderando-se dos modos de conduta do ser humano no mundo real (material), definindo novos limites e leis na natureza das relações humanas. Suportado por um elevado grau de actualização, o ciberespaço propõe ao observador o papel principal e imprescindível no sistema. O suporte informático e digital desenvolve no observador a noção de realidade virtual copiada do mundo real, uma simulação dinâmica da nossa realidade. Ao entrar neste novo mundo o observador altera-se, uma nova identidade é afirmada através do nickname, a sua presença torna-se mutável, correspondendo aos seus desejos instantâneos, existindo a possibilidade de consciência física do observador noutras formas que não a dada á nascença no mundo real (material). Com a navegação no virtual obtêm-se as informações mais diversas, o sujeito insere-se num ambiente artificial dominado pela autocondução e interactividade, originando uma mudança radical deste em relação ao objecto, transformando-o

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num observador interno, agora integrado num ambiente virtual que dilui os limites entre o observador e a sua envolvente. Agora, com a introdução de artefactos que se podem incorporar no indivíduo é possível facilitar a sua introdução no ciberespaço e diminuir as interferências do mundo real(material); com a massificação dos meios electrónicos e aumento de capacidade dos computadores pessoais aliados à Internet e à telefonia digital é possível proporcionar comunicação à distância em tempo real (teleconferências).

global não ocorreu. Questões culturais passaram para primeiro plano. O conhecimento de civilizações ancestrais como a egípcia ou a maia, tornou-se herança comum às pessoas. A distância e o tempo são encurtados para se inserirem na mesma gaveta individual. O fenómeno da globalização revela-se motivador da diferença individual, já que somos estimulados de formas diferentes pelo conhecimento e pelo contacto com múltiplas culturas. A variedade perdeu um lugar específico e vive agora nas nossas cabeças e, principalmente, nos infinitos bits dos nossos computadores pessoais.

TRANS

Assiste-se ao tomar forma de uma nova linha tecnológica que reflecte um mundo caracterizado pela transnacionalidade, transdisciplinariedade e trans-sensoralidade, no qual o indivíduo possui um complexo informativo e não linear.

O ciberespaço acelerou, entre outras coisas, a proliferação de conceitos, a actualização constante da arquitectura e a sua inevitável globalização. Mas, ao contrário do que seria de esperar, a globalização não é, de maneira nenhuma, sinónimo de uniformização ou convergência dos processos criativos. Pela primeira vez na história da humanidade, são tomadas como nossas todas as tradições deste planeta. A matéria bruta da arquitectura deixou de ser uma concepção exclusivamente enraizada em etnias locais. Etnia local deu lugar a etnia planetária e, ao contrário do que era esperado, a homogeneização

A globalização abriu-nos as portas, na medida em que podemos acompanhar simultaneamente as escolas de arquitectura holandesas e americanas, assim como podemos investigar a arquitectura inca e egípcia. O arquitecto agora tem a possibilidade de prescindir do carro, do comboio e das suas pernas para fazer a promenade arquitectonique já que, como uma identidade sem corpo pode, em minutos, visitar em profundidade qualquer edifício do mundo, não tendo absolutamente nenhuma relevância a sua


localização geográfica(material) e temporal. As barreiras reais do tempo e do espaço quebram-se no mundo virtual.

PC HARDDRIVE – THE NEW CONSTRUCTION SITE As novas tecnologias revolucionaram as formas de criar e de produzir, na industria, no comércio, nos serviços, nas artes em geral e na arquitectura em particular. Alterou o modo de ver cidade e cultura e por conseguinte, alterou o seu processo de crescimento e construção. O desenho assistido por computador é actualmente uma ferramenta de trabalho fundamental como resposta ao mundo imediatista do mercado, aumentando a produtividade do arquitecto e o rigor no desenho. Estas características formalizaram a utilização do computador como elemento quotidiano da criação arquitectónica. Mas a utilização da tecnologia não se encerra no desenho assistido por computador. A introdução da realidade virtual como ambiente de trabalho na arquitectura revolucionou a forma de pensar projecto e de o formalizar, assim como o acesso á arquitectura como produto de consumo. A concepção em ambiente virtual permite que o

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projecto ganhe uma nova expressão através de uma comunicação ultra realista dos seus aspectos materiais. Esta potencialidade permite ao arquitecto comprovar resultados e permite ao cliente ter uma imagem expressiva numa linguagem puramente visual e, portanto, facilmente compreendida.

TELEARQUITECTURA O ciberespaço, conjugado com os programas informáticos de visualização do espaço virtual, permite ao arquitecto multiplicar a sua bagagem cultural e artística e adicionar mais uma ferramenta ao seu método de trabalho. Estes aspectos são notórios no trabalho de Dennis Holloway que submerge nas civilizações pré-históricas da América do Norte para, através de uma intensa investigação arqueológica, projectar novas ideias de espaço. Num pólo oposto, Marcos Novak , desprendido de quaisquer referências históricas, cria espaços líquidos e navegáveis, baseados em algoritmos matemáticos e na música. O atelier de arquitectura holandês NOX cria espaços pelo tacto, luz, som, cor, todos os sentidos organizados como fluídos. Tanto Holloway, como Novak, e NOX mostram uma arquitectura que se define pelo abraçar das novas ferramentas e de uma bagagem cultural globalizante e trans, gerando e tirando partido do desenvolvimento de uma arquitectura única e


exclusivamente em ambiente virtual, oferecendo cenários de realismo virtual concebidos a pensar nas novas dinâmicas comunicacionais. Os desafios que as novas tecnologias da comunicação colocam à arquitectura, não se limitam ao mero domínio prático dos seus instrumentos. A arquitectura dificilmente poderá escapar às novas noções que interrogam o valor comunicacional do espaço.1 Sendo o edifício a representação da sociedade tecnológica do seu tempo, este é cada vez mais um objecto robotizado, um agente de acção dinâmico e dinamizador de informação e identidade, animado pela economia mundial e pelos processos de globalização. O ferro, a madeira, o betão e a pedra como arquitectura que limita, guia e localiza o Homem, perde referências reais à telepresença. As novas possibilidades oferecidas pelo ciberespaço pedem a fusão da matéria com a imagem e a sua fluidez no tempo. Em análise, estes avanços podem ser enquadrados no contexto global da evolução humana e numa verdadeira revolução doméstica em que, tudo pode ser adaptado às necessidades individuais dentro do carácter globalizante e uníssono da cidade virtual. O mundo é introduzido no lar. A propagação dos média e a difusão dos métodos de trabalho em ambiente virtual, que se vão tornando mais e mais parte integrante das nossas vidas, desvanecem

e atenuam a barreira entre o que é real e o que é virtual, possibilitando cenários que temos conhecido na ficção científica. Inicia-se uma nova era de telediálogos, telecompras, teleescola e teletrabalho, posto que os meios de comunicação digitais permitem o acesso ao tratamento e manipulação de dados à distância. A cidade virtual sobrepõe-se progressivamente ás cidades reais adaptando-as com mais vigor às formas de telepresença. Neste sentido, a perda de afecto ao território, devido às possibilidades de apreensão da realidade à distância, oferecidas pelas novas tecnologias - multimédia, informática, telefonia digital, internet, tvcabo, teleconferências, sistemas gps – contribui para a crise da materialidade. Noutro sentido, as novas tecnologias promovem o controlo absoluto do ser humano numa escala mundial. Estes fenómenos estão a conduzir a um novo conceito de cidade e a uma nova arquitectura, telearquitectura.

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Archimedia click

* alunos do 2º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra


[1ºacto] Gonçalo Azevedo + Pedro Baía *

localização: sala do nuda darq_departamento de arquitectura da u.c. dono de obra: nuda/aac [núcleo de estudantes de arquitectura] projecto: gonçalo azevedo & pedro baía colaboração: antónio correia agradecimentos: a. joana couceiro; bruno gil; inês dantas; d. licínia salgado; arq. armando rabaça; arq. mário henriques; arq. pedro maurício borges; prof. doutor vítor murtinho; prof. doutor josé antónio bandeirinha; gabinete técnico da reitoria da u.c. patrocínios: epicentro, loja de mobiliário; macoimbra, materiais de construção. construção: maio 2003

auditório dos alunos [nuda] 0

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20m

O nosso espaço é por definição, um espaço de transição, mutação, impermanência... As nossas cidades, ruas, edifícios, compartimentações de compartimentos de sistemas: o nosso playground... somos nós que o jogamos, usamos, abusamos, alteramos, destruímos, para fazer renascer, preservamos,... decidimos. A impermanência faz parte das nossas vidas. Ao mesmo tempo, o nosso modo de viver leva-nos a tentar encontrar espaços de concentração, (efémera) permanência, que permitam o acontecimento, a interacção, a performance, a interferência...

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1

5m

A proposta aqui introduzida contextualiza-se numa escola de arquitectura, pretende ser mais do que um manifesto demagógico, por isso a propomos, por isso é proposta, real, construível. Traduz uma necessidade. Um desejo que representa um abrir de possibilidades: a apropriação efémera, impermanente de um espaço. A proposta é, então, criar um auditório para os alunos, utilizando materiais básicos e eficientes. O local escolhido é a sala do Nuda. A ideia foi criar um sistema simples e económico, em que a estrutura seria feita de vulgares andaimes, recobertos por placas de madeira; materiais cedidos por uma empresa de construção que a nós se queira associar. O orçamento total aproximar-se-ia do custo 0, estando a construção a nosso cargo, demonstração de uma intenção operativa. Um auditório dos alunos para os alunos, para a escola, uma escola viva. Auditório enquanto palco de actividades, da criatividade, da dinâmica de uma escola que respira e atrai. Um íman no claustro, que concentra energias, vontades mas no entanto consciente da sua efemeridade.

* alunos do 5º Ano do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra


[ prova final ] João Gomes*

Um arquitecto foi chamado a participar da resolução de um problema e fê-lo como julga que se resolvem os problemas, sobretudo os que se referem à elaboração de um projecto: apoiando e promovendo o aumento do número de pessoas a pensá-los responsavelmente, sem diluir a própria responsabilidade. Partiu de ideia apontada na primeira visita, porque considera que não se projecta somando bocados de informação, e que esta serve, se aplicada a uma ideia, para a corrigir e a definir. E que a ideia está no "sítio", mais do que na cabeça de cada um, para quem souber ver, e por isso pode e deve surgir ao primeiro olhar; outros olhares dele e de outros se irão sobrepondo, e o que nasce simples e linear se vai tornando complexo e próximo do real – verdadeiramente simples.(...) Álvaro Siza Vieira Para projectar, o arquitecto assume-se hoje como um manipulador, que necessita combinar conhecimentos complementares com o intuito de criar edifícios e espaços que estejam em harmonia com a actividade do homem e com aquilo que o rodeia. Trata-se da capacidade de analisar dados, de seleccionar aquilo que é útil e de os transformar de forma a participarem na criação de um projecto. Para iniciar um projecto é necessário que desde o primeiro momento se comece a esboçar a ideia de arquitectura que ao longo do processo se vai gradualmente identificando. A ideia é algo de inerente à actividade projectual. Existem ainda os conhecimentos que retemos, da memória e da história, e que normalmente chamamos de modelos. A capacidade de reconhecer os valores do passado e de conhecer os valores do presente ajuda-nos a construir o projecto a partir de uma base de referências suficientemente abrangentes, o que permite maior solidez na resposta. Necessitamos ainda, para projectar e consequentemente construir, da colaboração de

vários especialistas. A técnica é um dos elementos de definição da intenção projectual. Temos que estabelecer uma relação de contenção de modo a que não se considere a técnica como algo de neutro ou sem expressão, nem se valorize em demasia. O nosso conhecimento das especialidades deverá consistir essencialmente na capacidade de transformar uma determinada opção técnica em mais um elemento constituinte do projecto. É a partir de uma decantação disciplinar que conseguimos explorar a capacidade das especialidades em reduzir e simplificar os elementos e isto só se consegue na presença de equipas multidisciplinares. Este pluralismo em termos metodológicos só resulta se existir um moderador que saiba relacionar, regular e corrigir todas as partes que estão em jogo no processo projectual. Um sítio vale pelo que é, e pelo que pode e deseja ser – coisas opostas, mas nunca sem relação. Álvaro Siza Vieira Por muito que se possa ambicionar é impossível desligarmo-nos do lugar onde se constrói. Daí a insistência pela visita e desenho do lugar, como meio de análise. É importante o reconhecimento do lugar através da leitura das suas características de modo a que a intervenção da Arquitectura possa reforçar e muitas vezes transformar a sua identidade.

O Lugar, com as suas componentes físicas, sociais e históricas feitas de sobreposições, transformações, exigências e interpretações contraditórias traduzse, no fundo, num conjunto de situações que se analisam e dão origem ao nosso espaço de trabalho. A posição do arquitecto será valorizar e esclarecer os factores segundo uma ordem e é deste modo que a ideia de Arquitectura ganha corpo, sendo corrigida sucessivamente pelas referências complementares como o Programa e a Construção.

[maio 2003] 30.31


O objecto que produzimos estabelece sempre novas relações com o sítio onde se implanta, procurando um novo equilíbrio entre os edifícios e o espaço envolvente e é sobre essa influência na determinação da arquitectura que parece fundamental reflectir. O projecto transporta em si o desejo de transformar o Lugar. A vontade de transformação parte necessariamente da leitura crítica, e por isso subjectiva, do Lugar e vai-se sedimentando à medida que o projecto é desenvolvido. O complexo processo de interpretação do Programa é crucial para a dinâmica do projecto. Analisar um conjunto de funções que se podem articular de modo a construir um determinado edifício tornase num longo processo de experimentação. Quantificar e determinar a forma das áreas adequadas a cada função, estudar as suas proporções e a importância destas na estrutura geral do projecto, são factores importantes na procura da forma arquitectónica. A primeira abordagem formal tem de ter em conta a clarificação da estrutura programática, permitindo que se estabeleça um sistema de relacionamento com regras específicas para a compreensão do projecto e da importância relativa das partes que o constituem. O Programa identifica-se ao longo do projecto e a interpretação crítica do mesmo é essencial ao seu desenvolvimento.

descoberta

da

essência

do

Programa.

Repetir significa melhor identificar a unidade, revelando a capacidade de variação dentro da mesma regra e transformando o discurso sobre materiais e os processos construtivos num dos fundamentos para melhor entender a estratégia de conjunto. José Gigante osé Gigante O sistema construtivo, os materiais, o desenvolvimento de um determinado pormenor, deverão ser sempre entendidos no interior da resolução global de um projecto, surgindo tais opções diluídas numa lógica de conjunto. Assim, a construção não será entendida apenas como a materialização de uma ideia mas sim geradora dessa mesma ideia. As condicionantes referentes à caracterização física do objecto não podem ser consideradas como limites à amplitude criativa da obra. Cada vez mais informado pela interdisciplinaridade que o configura, o projecto deverá reconhecer, no interior da sua prática integrada, o carácter libertador de tais referências face à tentação sempre latente de assimilação literal dos modelos. Assim, ligada obrigatoriamente ao desenho, a construção será entendida como instrumento de projectação. O modo de construir o edifício deverá ser referência permanente no projecto, desde o seu início, porque o pensamento construtivo está implícito na concepção projectual, da qual é indissociável.

À medida que os contornos de uma hipótese de solução começam a surgir, o Programa ganha consciência da sua capacidade de gerar forma. A reflexão sobre o mesmo tornar-se-á então progressivamente mais operativa, à medida que se for libertando da sua inicial abstracção. A progressiva definição da identidade da obra, na sua ideia transformadora do lugar, assume-se a partir daí como referência permanente para a

* arquitecto licenciado pelo Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra


[ contaminações ]

The Sims Online

BE SOMEBODY ELSE. WITH EVERYBODY ELSE.

Como é que isto pode ser viciante? À primeira vista, parece o jogo mais aborrecido possível, soporífico até. Em vez de combates intergalácticos, de lutas com mortos-vivos em castelos labirínticos ou de roubos de automóvel, passas o tempo a trabalhar, a falar ao telefone, a ver televisão, a escovar os dentes, a dormir, a ler o jornal, a nadar, a fazer churrascos, a cuidar dos filhos, a comprar novos adereços para a casa, a estudar, a ir à casa de banho, a encomendar uma pizza, a lavar pratos, etc. E como é que se ganha o jogo? Simplesmente não se ganha, lava-se pratos até morrer e ponto final. Just like in real life. É este o jogo de computador que se tornou no maior best-seller de sempre: The Sims. Tu crias e incarnas uma família de subúrbios perfeitamente normal (ou não... a piada é mesmo essa!), e tens como objectivo controlar o seu dia-a-dia. Nada de lutas do bem contra o mal, simplesmente pões o teu Sim a dormir quando está cansado, fazes o jantar quando está com fome, leva-lo à casa de banho quando está apertado e convidas um vizinho ou vizinha para companhia quando se sente sozinho (soa a algo de realista?). Em poucas palavras, o objectivo final do jogo é teres o Sim bem alimentado, saudável, cheio de sucesso, enfim feliz. E é já também realidade (e absoluta felicidade) para alguns milhares de gamers o último desenvolvimento do jogo, o The Sims Online, que na verdade se está a tornar em algo mais do que um jogo. Através da internet, criou-se um mundo paralelo, com pequenos bairros dentro de pequenas cidades num pequeno grande país virtual. Isto permite que milhões de Sims possam viver, trabalhar e conviver num mundo muito parecido com o nosso. O pai destas e de outras brincadeiras tem actualmente 42 anos e chama-se Will Wright. A história deste simulador começou quando, em 1981, Wright decidiu fazer o seu primeiro jogo de computador. O jogo, chamado Raid on Bungeling Bay, é descrito pelo próprio como “um jogo estúpido de andar-a-voar-por-aí-de-helicóptero-a-matarpessoas”. O objectivo consistia em voar sobre várias ilhas e bombardeá-las intensivamente. Mas a certa altura Wright começou a criar um fascínio por aquelas pequenas ilhas habitadas e a reparar que se divertia mais a criá-las que a destruí-las. Apareceu aí o Sim original (leia-se simulation). Wright, sem saber, descobriu com isto uma nova forma de divertimento. Logo na altura começou a ganhar forma o SimCity, um jogo em que o jogador faz o papel de Mayor de uma cidade cheia de crime, com centrais eléctricas, auto-estradas e uma populaça extremamente temperamental. Este jogo exige um equilíbrio e atenção constantes para conseguir manter a estabilidade na cidade. Escusado será dizer que isto, na altura, não foi visto como divertimento (na verdade, soava mais a trabalho)


e como tal nenhum editor quis publicar o jogo. Mas a piada dos jogos de Wright é precisamente essa: não se joga por ganhar, joga-se sim por jogar. E foi o que se provou quando em 1989 Wright lançou o SimCity pela sua própria empresa e este se tornou um best-seller instantâneo. Depois de criar e lançar para o mercado mais alguns simuladores como o SimFarm ou o SimHospital, Wright criou o The Sims em 2000. Com uma ideia básica, o dia-a-dia de uma família de subúrbio com todas as suas dificuldades, o impacto foi tremendo mais uma vez e o jogo conta já com 20 milhões de unidades vendidas em 17 línguas. Isto a contar com os pacotes de expansão que de tempos a tempos são lançados para o jogo evoluir, criando novos pontos de interesse. E não sei até que ponto será estranho o facto de, de todas as formas possíveis onde o comportamento humano se manifesta, aquela que inspirou o jogo de computador mais vendido de todos os tempos ter sido o subúrbio americano. Afinal, o lema do jogo é constrói...compra...vive. O tema é a vida contemporânea. A estrela és tu. Ao contrário de outros jogos, não cria uma ficção e oferece-nos situações familiares onde podemos realmente ter sucesso. E a verdade é que nós nos babamos pela hipótese de fazermos o que sempre quisemos fazer e ser quem sempre quisemos ser, durante as vezes que quisermos. Mas o jogo tornase sério a partir do momento em que temos pessoas verdadeiras a controlar os seus Sims, e a interagirem com pessoas colocadas no outro lado do mundo, porque a maior parte de nós recria no jogo as suas próprias relações interpessoais. Não se joga simplesmente o The Sims. As pessoas expressam-se a si e às suas vidas no jogo, com sentimentos bem reais. Wright acredita que o jogo ajuda as pessoas a compreenderem a sua vida, pois são perceptíveis padrões no jogo que não o são na vida real. “Parece um jogo mas os jogadores não o jogam como um jogo. Cada jogador traz os seus objectivos para dentro dele, e vai-os mudando, tal como acontece na vida real.” Os jogos online em geral estão a ser um sucesso, não só como suporte para a competição mas também como um suporte para a comunicação e interacção social. Até os shoot-em-up beneficiam desse factor. O The Sims Online sobressai porque a interacção social é a sua razão de ser, e não uma mera possibilidade como tantas outras. Por cada pessoa que critica o mundo dos videojogos por serem propositadamente viciantes, existe outra que fala do mundo virtual como um sitio onde se pode aprender, explorar, viver e mesmo apaixonar. Consegue ser viciante como a vida real. Mas não será real?

[maio 2003] 32.33


[ Cheese-Ham Files ] #11

Designo ergo sum Esta é a narrativa sincera de uma perturbação particularíssima que me atrapalhou durante alguns anos da minha formação, um abcesso se quiserem, uma coisa afinal bastante ridícula, mas que se interpunha incisivamente entre mim e a minha capacidade de progressão espiritual. A minha questão como então lhe chamava, — e devo acrescentar o poder que têm estas coisas miudinhas e aberrantes de ser enormes escolhos no nosso caminho — criava-me alguns embaraços, não matava, mas moía, andava ali... Lembro-me bem de ter tentado explicar o problema e o que para mim ele significava, na esperança de alguém me saber tranquilizar, mas ninguém parecia reconhecer à questão o devido valor, nem sequer compreender a minha íntima incomodidade. Tudo bem, a cada um os seus dilemas e a capacidade última de os resolver. A questão tratava, no fundo, de compreender o limite, o alcance e a especificidade da arquitectura, enquanto ofício e profissão no mundo. Tinha, em grande parte, a ver com o instrumento próprio da disciplina: um matemático é alguém que domina uma técnica e uma linguagem específicas, de modo a extrair delas alguma operatividade e substância, um engenheiro seria alguém que maneja com segurança e eficiência, instrumentos próprios da engenharia, como a estática e a resistência de materiais, de modo a obter resultados elevados e reconhecíveis — quais seriam então os instrumentos próprios da arquitectura? Hesitei durante algum tempo entre a retórica e o senso comum. O primeiro seria a forma criativa e sintacticamente articulada de conseguir fazer passar a outros um determinado número de convicções pessoais, o que, numa cultura que sempre associou sofistas e aldrabões, estava bem longe de ser lisonjeiro. Que fosse o senso comum o verdadeiro instrumento da arquitectura, era ainda mais risível e perturbador. Teria eu andado os seis anos (na verdade mais alguns) de um curso universitário a desenvolver a minha capacidade de senso comum, como queria Descartes tão ironicamente: a coisa de longe mais bem distribuída entre os Homens? O assunto era uma enorme pedra no meu percurso e eu não queria crer que fosse apenas mais um lamentável paradoxo, deveria haver de facto algum princípio estruturador a enformar o corpo e âmago da arquitectura. Não sei em que dia consegui resolver o dilema, mas a força própria da revelação e a ascese que isso significou formaram para mim a evidência nítida e última de não poder existir aqui nenhum engano: o instrumento único da arquitectura é o projecto, é esse o seu sistema e o seu método, aquele que fez de Bruneleschi, segundo quer a lenda, o primeiro archi-tecton, o primeiro entre os carpinteiros.

A resposta era ao mesmo tempo simples e maravilhosa, nem história, nem teoria, népias de disciplinas especulativas: just work, bom senso (ou estupidez natural, se preferirem), alguma intuição e o N e w M e t r i c H a n d b o o k . Eis-nos chegados ao mundo fantástico dos auxiliares de projecto, as verdadeiras bíblias da disciplina que substituem na actualidade o papel que antes tiveram os tratados de Vitrúvio, Serlio e Vignola, ferramentas definitivamente práticas, ilustradas e extensivas, que reúnem e explicitam os preceitos às vezes nada elementares do saber fazer em arquitectura, segundo universos ideológicos implícitos que deverão naturalmente ser tidos em conta. Entre o N ew M etric anglo-saxão ou o alemão N e u f e r t (Arte de projectar em arquitectura), cada um escolha o que quiser ou tiver à mão: o melhor será sempre o que estiver mais carregado de marcas, post-its e anotações. Do primeiro só sei dizer que as medidas mínimas que estabelece são standards quase absolutos e que também existe em versão CD-Rom (francamente muito pouco económica). Para a habitação, podem ainda ser considerados Casaa p a r t a m e n t o -ja r d i m (Neufert-Neff), para a construção o Schmitt (Tratado de construção), para o desenho técnico o Luís Veiga da Cunha da Fundação Calouste Gulbenkian é um clássico, que contém ainda uma boa selecção de Tabelas técnicas (as verdadeiras são as do Rei dos Livros), Desenho técnico moderno (Lidel, 2002) tem a vantagem e o inconveniente de pertencer definitivamente à era informática. Terminologias e colectâneas de legislação ficam definitivamente para uma outra edição. Yours sincerely, Vasco Pinto

[maio 2003] 34.35


[ ? ]

Francesco dal Co Francesco Dal Co, arquitecto e docente de História da Arquitectura Contemporânea no Instituto Universitário de Arquitectura de Veneza (IUAV), é um dos mais prestigiados críticos de arquitectura europeus. De 1988 a 1991 foi director da Bienal de Veneza, ensinou na Universidade de Yale (1982-1991) e desde 1981 dirige o sector de arquitectura da editora Electa de Milão. É director da revista Casabella desde 1996 e fundou o prémio de arquitectura Andrea Palladio. É autor de numerosos ensaios, entre os quais: De la vanguardia a la metropoli (com M. Cacciari e M. Tafuri), Gili, Barcelona 1972; La città americana, Laterza, 1975; Storia dell'architettura contemporanea (com Manfredo Tafuri), Electa, Milano, 1976; Hans Meyer e la venerable scuola di Dessau, em L'architetto nella lotta di classe, Marsilio, 1972; Abitare nel moderno, Laterza, 1981; Carlo Scarpa. Opera completa (con G. Mazzariol), Electa, Milano 1984; Mies reconsidered, The Art Institute of Chicago, 1986; Tadao Ando. Le opere, gli scritti, la critica , Electa, Milano 1994; Frank O. Gehry. Opere e progetti, Electa, 1999.

Escolha e relacione-se com: uma cidade... Istambul. uma obra de arquitectura... Palazzo Te de Giulio Romano. um artista... Zurbaran. um livro... Ernst Jünger, An der Zeitmauer. um filme... Quanto mais quente melhor (Some like it hot). uma experiência... Rjoanij. uma influência... Jünger. um objecto de consumo... Caneta Parker. um vício... Philip Morris. uma palavra... Arquitectura. um futuro... Existe?


I SSN 1645-3891

#11

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