#03 Cidades

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manuel graça dias brasília da congestão à disseminação globalização # 03 [ junho 2002 ]

€ 2,5


[ ficha técnica ]

[ índice ]

DI RECTOR

[ editorial ] w e are building a new city

Pedro Jordão

Pedro Jordão

p03

REDACÇÃO Bruno Gil, Carina Silva, Carlos Guimarães, Carolina Ferreira, Irina Sales Grade, Joana Alves, José Brites, Marta Pedro, Pedro Canotilho, Vera Pinto

brasília, brasílias

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Mário Krüger

manuel graça dias | sobreposição vs. extensão

p08

COLABORADORES Javier Cenicacelaya, João Paulo Cardielos, Mário Krüger, Pedro Brígida, Sandra Pinto, Vasco Pinto

Irina Sales Grade & Joana Alves

as nossas cidades, de hoje!

p16

GRAFI SM O

João Paulo Cardielos Bruno Gil, Eduardo Nascimento, Mário Carvalhal, Pedro Jordão, Rui Aristides

da congestão à disseminação

p18

I M P RESSÃO Imprensa de Coimbra, Limitada TI RAGEM 400 exemplares

Pedro Jordão

identidade, contexto e globalização

p20

Javier Cenicacelaya

I SSN 1645-3891

[ 1º acto ] casa na rua de sobre ribas

p24

P ROP RI EDADE

XM com projecto base de Paulo Antunes & Sofia Almeida

NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura CONTACTOS NUDA/AAC – Núcleo de Arquitectura Departamento de Arquitectura Faculdade de Ciências e Tecnologia Universidade de Coimbra Colégio das Artes Largo D. Dinis 3000 Coimbra tel [ darq ] : 239 851 350 fax [ darq ] : 239 829 220

[ prova final ] e para além das torres? Sandra Pinto

[ contaminações ] as cidades obscuras José Brites

[ cheese-ham files ] #3 Vasco Pinto

e-mail: nuda_aac@hotmail.com

[ ? ] J ohn P aw son

nu [junho 2002]

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[ editorial ] Pedro Jordão

Cidades

estes corpos que habitamos.

Tecidos vivos que se constróem na complexidade das experiências humanas. A cidade não é estática, é o mais dinâmico produto humano, mutante incansável, transforma-se em cada instante. Interessam menos as formas e mais os fluxos. Por isso o fenómeno urbano não se apreende com facilidade – e porque é sempre mais difícil dissecar os corpos que nos são mais próximos. Precisamos distanciar-nos um pouco. E precisamos admitir que a complexidade da cidade escapa sempre, a partir de um certo ponto, ao arquitecto e ao urbanista. Do mesmo modo que não é possível, como é na arquitectura, estabelecer doutrinas ou teorias globais como foi tentado pelo Pós-Modernismo. O resultado é sempre incipiente, porque fragmentado. Torna-se mais importante perceber a cidade, discuti-la, do que condicioná-la. Ninguém sabe lidar com o que desconhece. E não se construirá o futuro da cidade tentando evitar questões inevitáveis como a densidade, a dispersão ou a globalização, como foi discutido na conferência internacional Identidad, Contexto y Globalización, organizada por Javier Cenicacelaya. Daí, também, o esforço de investigação contínua de Rem Koolhaas. Não criou modelos nem conceitos, mas identificou-os. Como a sua Cultura da Congestão, a cultura do século XX, simbolizada pela Manhattan que Manuel Graça Dias e Egas José Vieira tentam recriar em Cacilhas, sobre o Tejo, em frente a Lisboa. É a procura da densificação, da verticalidade numa cidade horizontal. Não deixa de haver alguma artificialidade no gesto, mas este permite-nos introduzir novas questões num meio que geralmente as ignora. Mas as cidades, independentemente do seu modelo e dimensão, acontecem sempre para além do planeado. E quando se lhes corta essa liberdade, falham. É, de certo modo, o caso de Chandigarh e de Brasília, demasiado rígidas, demasiado acabadas. Não deixam de ser lições valiosas. Que encontram a sua antítese provável no modelo da Cidade da Diferença Exacerbada, preconizada por Koolhaas como a expressão urbana da cultura do novo século, a da Disseminação. Ao carácter único dos primeiros exemplos opõe-se um carácter múltiplo, de crescimento exponencial e aparentemente ilimitado. Já não falamos de uma cidade mas de um sistema. Entretanto, ao longo destas páginas, lançamos questões, esperando suscitar a interrogação, muito mais do que a resposta. As hipóteses são ilimitadas. Cada um tem a sua percepção, cada um tem a sua cidade. ps: a NU será interrompida durante os meses de verão voltando a ser publicada em Outubro.

p 02.03


Brasília, Brasílias Mário Krüger *

à direita - esquisso do gesto primário de Lúcio Costa para o Plano Piloto | ao centro – Plano Piloto de Brasília mostrando a rede nu [junho2002]


Sentei-me na cama e nesse momento caíram- me do tecto as palavras. Foi assim que José Saramago descreveu, numa recente entrevista, como lhe surgiu o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis1. No relatório para o concurso do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil, lançado a 19 de Setembro de 1956, Lúcio Costa colocou que não pretendia competir e, na verdade, não concorro; apenas me desenvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer,já pronta2. Estava iniciado o começo do fim da transferência da antiga capital do Brasil, a cidade de Rio de Janeiro, e o epílogo de uma saga com uma permanência de dois séculos. Com efeito, desde a gestão administrativa do Reino de Portugal pelo Marquês de Pombal que estava prevista a mudança da capital para o interior do Brasil e, em 1890, a Constituição Provisória do Brasil determinava a mudança da capital, o que somente se viria a concretizar no mandato de Juscelino Kubitchek (JK). Em 1955, no comício da cidade de Jataí, estado de Goiás, e em plena campanha, JK incluí a 31ª meta no programa eleitoral, após ter sido interpelado por um popular se iria cumprir o que estava previsto na constituição. Em 1956, JK propõe ao Congresso a criação da Novacap, a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil. No ano seguinte o Congresso fixa a data de 21 de Abril de 1960 – um dia antes da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil - para a transferência da capital e Lúcio Costa ganha o concurso nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil promovido pela Novacap. Se bem que 1960 represente o ano da morte da antiga capital do Brasil e as palavras proferidas pelo popular que interpelou JK no comício de Jataí possam ter caído também do céu e, ainda, o autor do projecto sugira que se desenvencilhou de uma solução possível, uma longa maturação disciplinar e projectual está, no entanto, subjacente ao discurso de Lúcio Costa. Neste longo itinerário é de destacar o projecto do edifício do Ministério da Educação e Saúde, em colaboração com Oscar Niemeyer, em 1936, tendo sido consultor deste empreendimento Le Corbusier, bem como o projecto para a Cidade Universitária

no Rio de Janeiro de 1937, em colaboração com Niemeyer, Jorge Moreira, Eduardo Afonso Reidy e outros e, ainda, o pavilhão do Brasil em 1939, também em colaboração com Niemeyer, para a feira internacional de Nova Iorque. Estas obras primeiras, chamadas de lucianas pelos arquitectos brasileiros, irão marcar a paisagem de Brasília pelo que representam o ideário do Movimento Moderno no Brasil, nomeadamente, a mestiçada adopção dos cinco pontos para uma nova arquitectura de Le Corbusier – janela em comprimento, cobertura em terraço, planta livre, fachada livre e uso de pilotis, já presente no edifício do Ministério da Educação e Saúde, bem como na reversão da relação figura-fundo, sugerida no projecto da Cidade Universitária e debatida nos congressos dos CIAM, dos quais vieram a resultar a Carta de Atenas, publicada em 1946, que preconizava, além disso, a segregação das quatros funções urbanas – habitar, trabalhar, circular e lazer. É com inegável simplicidade que Lúcio Costa nos diz que a solução nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz 3 . Este gesto irá marcar todo o desenvolvimento posterior da cidade pelas escalas que Lúcio Costa adopta para desenvolver o projecto. Tratava-se de conciliar a escala monumental com a doméstica, a gregária e a bucólica. A escala monumental, concebida para conferir à cidade a marca efectiva da capital de um país quase continental, está configurada, basicamente, pelo eixo monumental que é constituído pela Praça dos Três Poderes, a esplanada dos Ministérios e o seu prolongamento, com edifícios projectados por Oscar Niemeyer que se tornaram, desde a sua inauguração, o ex-libris da nova capital. Os edifícios do Congresso Nacional, do Palácio Presidencial, do Ministério das Relações Exteriores e do Supremo Tribunal de Justiça, a par dos restantes ministérios que ladeiam a Esplanada e, ainda, da nova Catedral, constituem um marco na legibilidade do espaço urbano pela importância objectual que adquirem pelo facto de se ter operado, simultaneamente, a reversão da relação figurafundo. Em resumo, formas geométricas quase puras em espaço aberto configurando uma ideia de cidade num parque.

rodoviária | à esquerda – esquisso de Oscar Niemeyer para a Praça dos Três Poderes p 04.05


A escala doméstica manifesta-se pela introdução de unidades de vizinhança, compostas por superquadras residenciais associadas a entrequadras comerciais e de equipamentos, que se distribuem ininterruptamente pelos 16 km de extensão do eixos sul e norte, perpendiculares ao eixo monumental. Em cada superquadra foi previsto um único acesso para transporte de automóvel que se une aos eixos sul e norte o que, associado aos operadores urbanísticos de projecção, bem como de gabarito e de reversão da relação figura-fundo, caracteriza uma nova maneira de conceber o habitar residencial colectivo. Com efeito, a introdução da projecção como instrumento de desenho urbano permite que o urbanista não perca o controle da forma edificada pois fica indicado, em planta, o perímetro rectangular dos blocos de habitação colectiva o que, associado ao facto de estes blocos não poderem ter mais de seis pisos de altura (gabarito), condiciona e dirige fortemente as opções do projecto individual de cada bloco. Obtêm-se, assim, uma configuração urbana residencial com forte presença na paisagem, que se contrapõe aos espaços livres preconizados pela reversão da relação figura-fundo que são, exclusivamente, de domínio público. À escala da edificação, os cinco pontos também comparecem mas agora sujeitos a uma mestiçagem local. Os pilotis, quando comparados com os do Bloco de Marselha de Le Corbusier, são mais esbeltos – suportam somente seis pisos - permitindo maior área de uso pedonal ao nível do piso térreo. A cobertura em terraço é praticamente inexistente – os blocos habitacionais estão implantados numa cidade-parque que supre as necessidades e os desejos de contacto com o exterior colectivo. A janela em comprimento e a fachada livre subsistem, mas agora mitigadas pela introdução generalizada

do brise-soleil e do combogó (parede exterior perfurada para permitir ventilação cruzada), que se adaptam melhor ao clima tropical de planalto que se verifica em Brasília. A planta livre somente comparece nos espaços sociais dos alojamentos como resultante da generosa área e das geometrias simples, em geral rectangulares, que apresentam. Além disso, pelo uso ininterrupto de pilotis em 16 km de extensão, o espaço do piso térreo transformase num espaço semi-público que é atravessado em todas as direcções, obtendo-se, assim, uma grande permeabilidade espacial urbana apesar de se utilizar, como instrumento de desenho, a projecção, que deixa de funcionar como barreira. A separação de funções urbanas é obtida à escala doméstica pela introdução de entre-quadras comerciais, somente com um ou dois pisos, que são intercaladas entre as quadras residenciais. Obtém-se, assim, uma segregação de funções urbanas para o comércio de uso diário e ocasional que não interfere com os usos domésticos das q u a d ra s r e s i d e n c i a i s , a p e s a r d e s e r e m imediatamente acessíveis para quem as habite. Os blocos habitacionais das quadras residenciais apresentam, em geral, três acessos verticais com alojamentos dispostos em prumadas de esquerdo/direito, diferenciando-se, tipologicamente, das soluções europeias em galeria que vieram, posteriormente, a ser adoptadas. Pelas generosas dimensões que apresentam, tanto na conformação exterior da massa edificada como na organização interna dos seus espaços, os blocos habitacionais são evocativos das primeiras impressões que Pero Vaz de Caminha teve ao chegar a Terras de Santa Cruz: foram-se lá todos e andaram entre eles e, segundo diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação de casas, em que haveria nove ou dez casas, as quais diziam

unidade de vizinhança | superquadras residenciais na Asa Norte | esplanada dos Ministérios – Eixo Monumental | o virar da nu [junho 2002]


que eram tão compridas cada uma como esta nau capitânia. E eram de madeira, e das ilhargas, de tábuas, e cobertas de palha; de razoada altura e todas em uma só casa, sem nenhum repartimento.4 A terceira escala, a gregária, foi proposta por Lúcio Costa como sendo a resultante da intersecção dos eixos monumental e rodoviário (que acompanha as quadras residenciais ), onde foram implantados a plataforma rodoviária e os sectores de serviços bancários, comerciais, hoteleiros, médicohospitalares, de rádio e televisão e de diversões. A plataforma rodoviária será, no dizer popular, o local de encontro do povo brasileiro na medida em que congrega as partidas e chegadas a Brasília por transporte público e permite, pelos viadutos e plataformas de acesso estrategicamente colocados a dois níveis, o acesso ininterrupto a todos os pontos da cidade. Por último, a escala bucólica, que confere a Brasília a fisionomia de uma cidade-parque pela generosidade das áreas livres destinadas à preservação paisagística e ao lazer junto a áreas edificadas, pela arborização dos espaços contíguos às projecções residenciais e aos edifícios monumentais e pelo acesso público à orla do lago, que é envolvida pelo Plano Piloto em todo o seu perímetro. Cidade capital, certamente real, mas também utópica, pelo que representou de esperança em unir o norte subdesenvolvido com o sul desenvolvido, em ser uma afirmação de independência em relação ao legado colonial, em propor uma miscegenação espacial das classes sociais mas rapidamente desmentida pela ocorrência das cidades satélites para os mais desfavorecidos, Brasília tem sido alvo de apologias e críticas que configuram tanto um bom como mau prelúdio para

este primeiro século da sua existência. Elvin Dubugras, um dos arquitectos que acompanhou Niemeyer na aventura de Brasília colocou, recentemente, a seguinte problemática, relacionada com o controle público do solo urbano face às ocupações ilegais de terra no entorno da cidade, resultantes de mecanismos de controle e exclusão social: Brasília - Capital Federal ou acampamento em torno de estradas de rodagem? Questão pertinente quando colocada em confronto com a problemática posta por Claúdio Queiroz, um dos colaboradores que acompanhou Niemeyer na aventura argelina, e que se refere às alterações aos gabaritos dos prédios que bloqueiam o horizonte aberto - o mar de Brasília é o seu horizonte - bem como à ocupação urbana do cinturão verde que deveria rodear Brasília: Onde está Brasília ? é a questão a ser colocada em relação às inúmeras adulterações às propostas originais de Lúcio Costa. Por um lado, sujeita às mais variadas pressões para alterar o seu traçado, por outro, classificada como fazendo parte do património mundial, Brasília será que continua sendo, ainda, a capital da esperança? Será que as palavras ainda caiem do tecto? No meio destas incertezas, uma evidência: na conformação da sua planta, consolidada num gesto primário, como nas curvas dos seus edifícios - as montanhas do Rio que, segundo Le Corbusier, Niemeyer sempre teve bem dentro dos olhos5 encontramos o virar da página, que representou a mudança da capital, essa permanência com mais de dois séculos.

* arquitecto, docente e presidente do Departamento de Arquitectura da Universidade de Coimbra

página p 06.07


Sobreposição vs. Extensão Irina Sales Grade & Joana Gouveia Alves

A sobreposição não é uma loucura, não é um disparate, não é uma coisa apenas para os especuladores imobiliários enriquecerem. Manuel Graça Dias

Não, a sobreposição é uma emergência! Ou não? Loucura é continuar a pensar, a sonhar que um dia vamos ter uma vivenda à beira mar com um quintal e quatro carros à porta! A realidade física, urbana, económica e social de hoje já não nos permite tais desvarios. As cidades não se podem estender indefinidamente no tempo e no espaço. As cidades movem-se, desenvolvem-se, esgotamse e há a necessidade de escolher entre o sistema das ruas de casas com quintais e garagem e o sistema da construção em altura, que vai aumentando, progressivamente, consoante as necessidades. São dois sistemas alternativos com virtudes e perversões. Em Portugal, esta questão pode ainda não fazer muito sentido porque se pensa que há ainda espaço. E há. O que não há é tempo para o espaço. Porque a maioria das nossas cidades ainda comporta as distâncias, mas, ao aumentarmos progressivamente as distâncias, estamos a ficar cada vez mais longe e mais tempo perdemos a chegar a qualquer lado, tornando mais complicado o transporte público e o acesso aos centros. Time is money! A construção em altura tem como mote principal a rentabilização do território, sobretudo nos centros das cidades. Ao sobrepor poupamos espaço, além de aumentarmos a densidade humana, que se vai traduzir num acréscimo da oferta de serviços, transportes públicos, lazer, cultura. Por outro lado, um maior número de pessoas está mais próxima do centro, o que encurta as distâncias e diminui vastas movimentações, de atravessamento das cidades, por parte das massas. Mas estes grandes volumes construídos em altura não respondem exclusivamente a requisitos funcionais ou económicos mas também a requisitos simbólicos. Talvez por isso a torre constitua nela mesma a sua própria perversão. O elevador é a grande invenção que veio possibilitar a construção em altura e paradoxalmente é um elemento que subverte o sistema, pois força o contacto físico entre desconhecidos, tal como acontece nos transportes públicos. Por outro lado, a privacidade do apartamento é violada pelo que se passa em cima, o barulho que o vizinho do lado fez a entrar, vejo a roupa que o vizinho da frente tem no nu [junho 2002]

estendal... Habitar uma torre é partilhar o mesmo espaço com dezenas ou centenas de pessoas. Quando se compra um apartamento está-se a comprar espaço, não se está a comprar um terreno nosso, uma parcela de território. Este espaço está anexado a outros tantos, é como viver com centenas de pessoas, na mesma casa. Possuímos uma parte mas o todo não é nosso. Não é possível ter a mesma sensação de posse que se tem numa pequena habitação. A construção em altura alberga uma massa populacional, num dado espaço compartimentado. Qualquer que sejam as necessidades , a modulação dos apartamentos permanece a mesma, não há uma avaliação pessoal das necessidades. É um sistema estandardizado, impessoal e incaracterístico. O projecto para a Margueira, de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira, é estruturado numa solução mista. Por um lado reúne todas as complexidades físicas, sociais e urbanas de um sistema de torres, por outro assimila um sistema de ruas, praças e comércio, tradicional na nossa cultura. Se por um lado este projecto está situado do outro lado do Tejo, por outro, reflecte o centro da cidade de Lisboa. Trata-se de uma proposta complexa e inovadora no panorama nacional que propõe uma nova imagem, que introduz um skyline na margem Sul do Tejo.

[ entrevista a Manuel Graça Dias ]

A torre tem vida própria, do topo posso sonhar, observar, compreender, fantasiar, como diante da linha do horizonte, no oceano (...). Posso sentir-me afastado do mundo e no entanto seu dono. Esta é uma frase de Roland Barthes escolhida por Pedro Ressano Garcia a propósito do projecto da Margueira. O que lhe sugere? Manuel Graça Dias _ É uma frase do Roland Barthes que tem que ver com o facto da torre e a construção em altura terem como mais-valia as pessoas passarem a dispor de um ponto de vista muito mais insólito do que aquele que normalmente


temos. É uma questão que não tem muito a ver com as cidades portuguesas porque são muito acidentadas e por isso integram logo na sua topografia esse elemento do alto e do baixo, do ver de cima e do ver de baixo, para cima, etc... Numa cidade portuguesa nós encontrarmos pontos que foram sendo reservados, ao longo dos tempos, para miradouros, para belvederes, para plataformas de observação da própria cidade. Isso é verdade em Lisboa, em Coimbra, no Porto... Há sítios na cidade de onde se tem vista sobre a cidade, onde se tem uma percepção de conjunto da cidade. Mas, se pensarem noutro tipo de cidades mais planas e com enormes extensões de território como Paris, Londres ou Berlim, a compreensão da globalidade, só é possível através de plataformas artificiais bastante altas. Aí os edifícios altos, as torres, trazem essa vantagem. Portanto penso que, quando o Roland Barthes refere do topo posso sonhar, observar, compreender, fantasiar, como diante da linha do horizonte, no oceano..., está a levantar um pouco esta questão: da torre, a minha compreensão do resto da cidade é muito maior. Em Nova Iorque é absolutamente fundamental subir ao Empire State Building porque tem um terraço propositadamente para as pessoas visitarem. No terraço há lojas de recordações e porcarias desse género e é totalmente percorrível a 360º e tem, inclusivamente, binóculos. Ali compreendemos Manhattan perfeitamente! Claro que a torre nasce sempre por uma questão económica, porque se poupa muito mais e se densifica muito mais um terreno a partir do momento em que se introduz uma torre. Mas é também uma maneira de reunir muita gente no mesmo sítio e de criar uma rede de cidade muito densa sem gastar área em extensão. O que em termos de gestão e de fruição da cidade também se torna atractivo. Voltando ao exemplo de Nova Iorque, ou de Manhattan, aquela concentração de dez milhões de pessoas só foi possível porque a maior parte dos serviços ou até da habitação se reúnem em edifícios altos. Portanto, concentra no mesmo ponto uma série de pessoas a trabalhar e isso depois implica que, a nível do solo, a quantidade de oferta de estruturas, nomeadamente sítios para as pessoas irem beber um copo a seguir ao almoço ou depois do trabalho, lojas, etc., frutifique com muita facilidade, porque há ali um público potencial e, logo, um restaurante nasce naturalmente. Se tivermos um urbanismo de pequenos edifícios é mais difícil que com frequência apareçam restaurantes, porque depois estão às moscas. Estou a dar um exemplo um pouco parolo mas é só para perceberem onde é que eu quero chegar. A densificação e a complexidade da cidade, do meu ponto de vista, passa muito por estes fenómenos de concentração que a construção em altura vai permitir. Depois também tem outro lado positivo que é a construção de um skyline de cidade mais animado, mais complexo, sobre o qual é

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possível projectarmos as nossas fantasias, os nossos sonhos, os nossos desejos... É atractivo vermos uma torre ao fim do dia com as luzes a abrir e as pessoas lá dentro, nós gostamos de ver um avião a passar no céu e imaginar as pessoas que estão a ver tudo de cima. Esse é o lado positivo, falta falar do lado negativo... MGD _ Em relação às torres, um dos problemas que é referido é que as torres não crescem só para cima, crescem também para baixo. Têm de ter fundações profundas por causa dos fenómenos de ventos, tremores de terra, etc.. Esse facto cria mais impermeabilização dos solos, há menos sítio p a ra a á g u a e s c o a r. Ta m b é m p o d e m o s contrabalançar com a área ocupada que é menor e com espaços entre as torres mais descomprimidos. Existe o problema dos elevadores que, sendo uma invenção que veio possibilitar viver em altura, por outro lado também são falíveis e as escadas são sempre encaradas como escadas de emergência. Sendo os elevadores falíveis, é necessário haver várias baterias para que, quando um estiver em reparação, não haja complicações e isso acaba por ocupar bastante espaço. Ainda é inimaginável fazer habitação social em altura porque as pessoas, com os elevadores e a manutenção, ficam com encargos que escapam aos seus rendimentos e por isso dão-se casos como as torres do Aleixo, no Porto, em que os elevadores estão sempre avariados e uma pessoa que habite no oitavo andar tem de subir aquilo a pé. É um disparate perfeito! Também há um fenómeno, que a sociologia sabe melhor do que nós, relativamente a subir e descer de elevador. Isto obriga as pessoas a partilhar o mesmo microespaço durante um certo tempo, frequentemente. De alguma maneira isso nega um certo anonimato que a cidade vem trazer e que às vezes é procurado. Numa cidade, nós temos, contraditoriamente ou não, a hipótese de escolher os nossos afectos, as nossas amizades. Eu não tenho de ser amigo dos vizinhos, quer more num edifício pequeno ou grande, tenho os meus amigos na outra ponta da cidade que visito, o que me garante um certo anonimato. Há zonas da cidade em que passo e as pessoas não me conhecem e isso pode ser visto por um lado negativo ou por um lado positivo. Há pessoas que procuram esse sossego, essa paz. A cidade dá-me uma diversificação de ofertas que pequenos aglomerados não me dão e, por outro lado, dão-me uma interacção quase obrigatória com a população, a não ser que seja um bicho do mato. Mas essa cultura não depende um pouco da classe social? MGD _ Depende muito da classe social, depende muito do horizonte e perspectivas, de ambições nu [junho 2002]

naturais de cada um. Imaginem que não podem com o vizinho de cima, que o acham super antipático, põe sempre o lixo à porta e os filhos são ranhosos, berram e fazem-vos a vida negra. E, no entanto, tens de estar no elevador, mesmo que seja apenas por três minutos, são três minutos muito intensos, com essa pessoa encostada a ti. Enquanto que, se te cruzares com ele na rua, olhas para o lado e passa numa fracção de segundo. Quando vens no elevador tens de estar naquela capsula. Pode parecer uma coisa um pouco caricata mas é realmente uma das perversões do sistema vertical. Outro aspecto é a falta de contacto com o natural, embora eu ache que viver também não é uma coisa natural, senão andávamos a caçar bisontes. O homem que vivia com a natureza não tem nada a ver com o contemporâneo porque é tudo artificial. O artificial pode criar situações de ruptura com o meio ambiente e portanto não são aconselháveis, mas temos de perceber que todo o nosso comportamento é artificial e isso não é mal nenhum desde que tenhamos essa consciência. Antes do elevador, existiram as escadas, que nos possibilitaram sobrepor níveis. Ao sobrepormos níveis, nós estamos a poupar terreno. Isto vem desde que os homens se sedentarizaram. Tenho este terreno que cultivo mas onde também tenho gado e habito com os meus filhos. Se for fazer mais uma casa ao lado, o terreno que serve para a minha subsistência fica menor. Aí, invento a escada e possibilito a sobreposição. A sobreposição não é uma loucura, não é um disparate, não é uma coisa apenas para os especuladores imobiliários enriquecerem. Há muitos anos que existe este conceito de sobrepor e de conquistar espaço vertical para com isso libertarmos terreno em baixo. Uma coisa é libertarmos terreno para a nossa própria horta, outra coisa é libertarmos terreno na cidade e ter dois ou três ou quatro edifícios e, no meio deles, ter equipamentos, espaço livre verde ou não verde. Quando eu faço casinhotas, casinhotas, casinhotas, estou a ocupar o terreno todo com as casinhotas com uma rede de ruas e de estradas que realmente têm que existir e depois vão encontrar-se todos num centro comercial porque não há outra hipótese de estabelecer outro tipo de concentração das pessoas ou outro tipo de equipamentos que possa servir aquela gente. Há que pensar nestas coisas todas e há que reflectir nos prós e nos contras dos diversos sistemas. Falou no aspecto funcional, e quanto ao aspecto simbólico? MGD _ A parte mais simbólica tem que ver com a frase do Roland Barthes, com a noção do dominar visualmente o território. Aliás, historicamente também temos essa vertente. Em Itália, na Idade Média, a burguesia fazia as suas torres cada vez mais altas porque não se confiava na parte defensiva colectivamente. Portanto, cada um tinha as suas


estruturas militares, um pouco como hoje os bancos podem ter a sua segurança privada. Não zelam suficientemente pelos seus interesses, então contratam uma polícia privada e instalam um sistema de vigilância por circuito interno. Não havendo este sistema de vigilância, havia a necessidade de criar torres que servissem de observatório sobre o território. O ver de cima é muito interessante, somos quase pequenos deuses. Pegar num avião e ver de cima a cidade, perceber aquela complexidade toda, parece que podemos intervir ali, pará-la. O fantástico é ver fotografias de satélite. Há coisas que são fantásticas de observar porque ficamos com visões globais e temos um sentimento de captar a ordem que está ali entre as coisas, enquanto que a visão no sítio é sempre mais desordenada, estou aqui no meio e pronto! Estou aqui no interior do quarteirão, a ouvir o barulho de uma serralharia, deve estar ali para dentro. Mas compreende-se, vê-se, percebese que ali é um microcosmos no meio de uma enorme situação. Portanto, o gozo de ver de cima tem a ver com isso: dominar e abarcar tudo ao mesmo tempo. Que vantagens tem um lisboeta em habitar o quadragésimo andar de uma das torres da Margueira? MGD _ Para já, as torres da Margueira têm uma população limitada (15 000?), o que num universo como o território da Grande Lisboa, de 2,5 milhões, corresponderá a que, certamente, meia dúzia de pessoas queira viver de outra maneira. Por outro lado, o próprio viver em altura naquele sítio preciso, paisagisticamente fortíssimo, no estuário do Tejo com uma vista sobre a própria cidade de Lisboa. A entrada pela Ponte 25 de Abril é sempre uma experiência espectacular. Tem uma vista fantástica sobre a cidade de Lisboa, ainda mais iluminada pela luz de Sul, nós vamos sempre de costas para o sol e vamos a olhar para o objecto iluminado e isso é fantástico! Acredito que aquela zona tem qualidades paisagísticas muito raras, tanto a olhar para todo o estuário a nascente, como a olhar para a cidade completamente formada, acabada, histórica. E agora podem dizer-me: mas um quiosque com dois pisos e um restaurante em baixo tem esse ponto de vista! Também tem, claro, mas se fizéssemos meia dúzia de edifícios com três pisos a quantidade de gente que iria ali viver era insignificante e portanto não geraria ali nenhum motor que tornasse a zona mais vibrante, mais intensa e mais cosmopolita. Resumindo, por um lado é um sítio privilegiado, por outro lado a hipótese de criar ali meia dúzia de torres iria proporcionar a nível do solo uma série de acontecimentos que eventualmente tornariam aquilo tudo bastante interessante. Que tipo de compromisso é que vos foi pedido

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no projecto M argueira? Qual era o objectivo do cliente? MGD _ Foi-nos pedido um exercício para um milhão de metros quadrados de construção, em que tentássemos uma hipótese de cidade com emergência de edifícios muito altos, uma hipótese de cidade que não existe em Portugal. Portanto, que exercitássemos esse milhão de metros quadrados em torres libertando terreno em baixo. Nós achámos que era um propósito bastante interessante e avançámos para essa solução logo. O que é que leva um grupo de clientes, que n ão são arq u itecto s, a p ed ir u m ex ercício como esse? MGD _ O presidente do grupo Margueira, o Dr. Ricardo Nunes, viveu em Macau, conhece bastante bem essas coisas, é um apaixonado pelas cidades asiáticas e acha que são experiências interessantes. Quando foi nomeado pelo governo para a presidência do Grupo Margueira, tinha como missão resolver um complexo problema financeiro através de uma operação imobiliária, uma vez que enquanto estaleiro aquilo já não podia existir. Foi esse o trabalho que empreendeu. E o primeiro contacto com arquitectos, que não nós, foi no sentido de resolver aquilo. E é uma mistura desses sistemas todos: o reconhecimento da excepção do sítio enquanto sítio paisagístico; a intuição que deveria ser uma intervenção excepcional também; teria, nesse sentido, de ser qualquer coisa que não existisse em Portugal... o que fez com que tivessem consciência que não poderia ser uma operação normal, burocrática, de chegar ali e fazer uns blocos. Pelo contrário, queriam uma coisa mais investida efectivamente. Havia também um certo desejo de risco, um desejo de dar visibilidade àquele problema, porque tinha a consciência de que não era um problema fácil. Os acessos que existem ao parque da Margueira passam pelo centro de Lisboa. Não está a centralizar ainda mais em vez de criar um novo centro? Um dos equipamentos que nos foram pedidos foi um grande interface entre o cacilheiro tradicional, o barco que faz a travessia do Tejo, e o metro de superfície em Almada, eventualmente durante uns tempos com a camioneta. Mais tarde, falou-se também de metro – neste último estudo que propusemos havia um túnel de ligação com um prolongamento da linha Baixa-Chiado. Essa grande estrutura, esse grande interface teria como objectivo, além de uma ligação daquela zona, continuar a servir a margem Sul. Uma das ideias que está subjacente, seria pôr o transporte de barco muito mais ao longo do estuário do que é hoje. Outro objectivo seria contribuir para travar nu [junho 2002]

o crescimento de Almada e de outras cidades da margem Sul, recentrando a atenção à volta do Tejo. Pretendeu-se também criar uma densa frente de construção naquela zona, que pudesse resolver a procura durante os próximos tempos. Lisboa está esgotada, já não se pode construir mais à beira do Tejo, tudo o que existe está bem e não queremos que se construa mais ali. Quando se quis fazer um novo bocado de cidade à beira do Tejo teve de se ir para Norte, para a Expo. E na zona da Expo, o Tejo é totalmente diferente, muito mais desinteressante até do que aquela que se tem na Lisboa central, um tipo de rio muito largo, onde não se tem noção da outra margem. Portanto, um dos objectivos é recentrar a zona de Lisboa à volta do Tejo, e nesse sentido o interface teria um papel importante. Actualmente, os cacilheiros e as camionetas são bastante terceiro-mundista. É lindíssimo atravessar o Tejo, mas as pessoas vão ali toscas, todas tortas, e as camionetas demoram imenso tempo. Para quem usa o carrinho também é difícil porque estão nas bichas. Isto são coisas que não estão muito bem tratadas na acessibilidade à outra margem. Não há uma certa ambiguidade entre a megaestrutura das torres, por um lado, e os pódios de dois pisos de comércio tradicional e estacionamento? Os pódios são realmente uns edifícios baixos. Nós ali tínhamos um problema porque aquilo é aterro, não é terra firme. Numa primeira fase (embora nós acreditemos que o automóvel vai acabar), as pessoas têm automóvel, nem se compreenderia que não tivessem. Portanto, é preciso garagens para as pessoas arrumarem os carros. As garagens podem ser à superfície ou podem ser enterradas. Ali não podiam ser enterradas e, portanto, nós decidimos criar uma malha de ruas, relativamente tradicionais, estreitas, com muitas hipóteses de comércio porque imaginamos que com muitas pessoas a trabalhar e a viver ali, iria gerar essa oferta. Há, na periferia, essa oferta, e no miolo dos pódios, dois pisos de estacionamento. Fizemos as contas e aquilo dava para o que tinha sido estimado. Porque também criar ali só pódios de estacionamento iria criar umas ruas horríveis só com paredes ou eventualmente com carros lá dentro, uma coisa horrível. A ideia não é essa, é trazer para a periferia espaços comerciais pequenos, nada de hipermercados nem nada disso, uns cafés, uns restaurantes... Fala em alta densidade e comércio tradicional. Co m o se en caix am as g ran d es estru tu ras comerciais? Está bem, no meio disso tudo certamente existiria um supermercado, ainda é muito cedo nesta fase. O grande supermercado pode servir as pessoas, pode ter muito interesse, mas na prática é uma


enorme ocupação. Se as pessoas gostam de centros comerciais é porque há muita oferta e muitas lojas, mas as lojas são pequenas. Portanto, podemos ter uma estrutura de centro comercial ao ar livre. Se há umas ruas com passeios largos, com umas árvores e umas faixas destinadas a comércio, imagina-se que há um tipo de comércio que vai procurar aquilo. Ali não são só as pessoas que lá habitam, Almada passaria a ter ali uma espécie de centro de cidade. As ruas que nós criámos são planas, poder-se-ia andar a pé, mas também teria uma linha de eléctrico que dava a volta àquilo tudo e, portanto, tornaria o transporte público relativamente fácil ali dentro. Depois pensámos que seria muito mais fácil criar, ao nível da rua, espaços relativamente convencionais, praças, espaços com alargamentos, sendo depois divertido ficarmos por cima com um segundo nível, uma segunda layer, a partir da qual a vista já era mais clara sobre o estuário, sobre Lisboa, num ponto mais alto. Em baixo, só nalguns pontos é que teríamos esse tipo de coisas, porque os pódios iriam tapar, mas em cima tudo ficaria um pouco mais claro e a partir daí criávamos uma outra malha, uma outra lógica e fomos dispondo uma série de edifícios altos, que não teriam a ver com o piso térreo. Poderiam estar assentes em pilares e começar um pouco mais acima, poderiam estar encaixados com zonas também comerciais, poderia haver outro tipo de comércio mais acima, esplanadas, cervejarias, e, depois ainda havia uma outra layer de passagens aéreas, pequenas pontes que andavam por cima das ruas e dos diversos pódios, de tal maneira que seria possível um miúdo viver ali e ir para a escola sem nunca passar pelo mundo dos automóveis, indo sempre por cima das pontes. Mas o comércio está em baixo... Mas também está em cima algum comércio, só que em baixo estão os automóveis e está uma vida semelhante à que nós conhecemos. Em cima, nos pódios, há uns caminhos em ponte que estão protegidos da chuva e do Sol com uma cobertura ligeira, e nós vamos por ali, são abertos de lado, aquilo está em sombra, atravessamos uma ponte e estamos noutro bloco e descemos e estamos não sei onde ou então ficamos em cima e vamos a uma esplanada em que se vê o Tejo ou um ginásio que funciona na parte de baixo do edifício ou na torre que tem lá o barbeiro e o cabeleireiro, o que se quiser! Isso não nos cabe a nós decidir. A ideia foi cruzar vários níveis de possibilidades e realmente em cima disso é que aparecem as torres, umas de escritórios, outras de habitação, outras hotéis... E quanto à questão do automóvel, cada pessoa tem o seu. Quando são 15 000 pessoas...

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Isso dos carros não me interessa nada! Esse problema está resolvido em Nova Iorque, também está resolvido noutros sítios, penso que o futuro não passa pelos carros. Isso ocupa muito espaço. E tanto ocupa quando as pessoas vivem em torres como quando vivem em casinhas. Há consciência de que, no futuro, não pode haver transporte privado, tem de haver transporte público de muita qualidade. Se a população vai tendo cada vez mais carros e se tivermos em conta os metros cúbicos que um automóvel ocupa, apercebemo-nos de que é incomportável, não cabe na rede de ruas, de estradas e de auto-estradas que temos. Portanto, quando isso bloquear pode ser que o transporte público já tenha sido devidamente equacionado. Não tem nada a ver com questões ecológicas nem com nenhuma espécie de ética ou moral. Aquela lata toda não cabe! As torres também têm o seu lado positivo, porque se a cidade não se espraiar indefinidamente, como actualmente acontece, as distâncias não continuam a crescer indefinidamente. Se as distâncias forem mais pequenas é tudo muito mais fácil de ligar com transporte colectivo de carácter mais ligeiro e é possível em certas zonas das cidades acreditar que as pessoas se podem movimentar a pé. Não acha que estes dois níveis de acontecimentos podem segregar o espaço semi-público e público? Mas isto são tudo situações públicas na mesma. O paralelo não é esse, o paralelo pode ser mais aquela ideia do Le Corbusier, um pouco ultrapassada, de que era possível criar o mundo dos peões com lojas, com árvores e mais não sei o quê e por baixo, em ruas subterrâneas, andavam as cargas e descargas e o movimento pesado. Então, com a maior das naturalidades, sem complicações e sem grandes escavações, conseguese um mundo mais ou menos convencional onde andam carros, transportes, com comércio e, depois, umas escadas ou elevadores para um segundo nível, que são os terraços onde já não há o problema do automóvel. Há pontos em que se atravessa de um lado para o outro, onde há uma permeabilidade que vai do mais afastado até ao último ponto. Para ter alguma justificação e para alguém andar lá em cima... Portanto, não estamos a separar público e privado, nem estamos a fazer condomínios privados nem fechados. Estamos a criar dois níveis de acontecimentos porque também estamos a falar de uma zona que não tem mais do que dois quilómetros de extensão e quinhentos metros de largura. Portanto, numa extensão relativamente pequena preocupámo-nos em criar alguma sobreposição de modo a garantir – não estou a dizer que isto é uma solução para a cidade toda – através da densificação algum cosmopolitismo, alguma sucessão de espacialidades, de situações que tenham interesse. nu [junho 2002]

Mas a Expo está aberta a toda a gente e isso não se verifica... Não, a Expo tem zonas que são vedadas, e os automóveis não podem passar e é tudo uma seca desgraçada! Não era bem esse mundo da Expo. Foram dar um exemplo sobre o qual me interessa especular. Na Expo, uma das coisas mais horríveis é não terem apostado naquela avenida principal, que vai da porta sul à porta norte, em nenhuma estrutura comercial a nível da parte de baixo dos edifícios, pelo que se anda ali e aquilo tem sempre um ar irreal, não é parecido com uma cidade, é parecido com uma exposição universal. Mas depois nem sequer há objectivos vivos de exposições, é a sede de várias empresas, estamos num sitio, num bocado de cidade onde, se não tivermos um assunto para tratar, não se justifica lá ir. E, estupidamente, o comércio está todo concentrado no Vasco da Gama, que está cheio de gente, mas com o clima que nós temos, se essas lojas estivessem distribuídas ao longo daquelas ruas, era muito mais interessante. Por fim, não podem passar carros – agora parece que estou a contradizer a minha ideia de há pouco. Eu acho que enquanto os carros existirem, os sítios reais, os sítios onde as pessoas gostam e gostariam de estar, são sítios densos onde acontecem muitas coisas e também passam carros, não são necessariamente pistas de alta velocidade, mas também deveriam ser sítios onde passam carros. A maior das demagogias é dizer que o metro vai lá, vai lá a meio! Entretanto, a pessoa chega de metro e vai a pé, é uma estupidez. O que nós procurámos, ao cruzar estas várias coisas, foi evitar este tipo de fenómeno Expo, de sítios um pouco artificiais. Não quer dizer que isto esteja completamente amadurecido em termos da ideia, mas já tínhamos pistas.

O projecto fecha-se para o rio, abre-se para a cidade. Como funciona o conceito simbólico da elipse? Não é nenhuma auto-estrada, é uma via panorâmica para passear, com características paisagísticas para se andar devagarinho a ver o estuário e ao mesmo tempo penetra e faz algumas ligações. Tem duas faixas para os automóveis, uns passeios rebaixados para as pessoas também passearem, andarem de bicicleta, pescar, para terem esse tipo de vivência mais de relação com a paisagem. Serve também para fazer ligações à zona e, do ponto de vista simbólico, além de continuar uma avenida que já existe, enlaça aquela situação e mantém-na agarrada à cidade. É um gesto de alguma elegância que constitui um limite visível. Não estava na nossa cabeça fazer uma auto-estrada para resolver problemas viários. O automóvel não é futuro, mas em todo o caso é possível entrar e sair de carro. Mas também não é um sitio de atravessamento.


Temos que ter fé e acreditar que o transporte público vai justificar-se. Tudo isto vai vivendo do que já conhecemos, dando ênfase ao transporte público.

Projectar é escolher; a arte é uma escolha, o arquitecto escolhe, selecciona, elege. Escolher é inventar a cada momento o tipo de momento, o jogo das escolhas (...). Em que é que baseia as suas escolhas? Eu acho que há as condições materiais da invenção, eu não invento nada se não tiver um problema, uma coisa para resolver. Ao contrário dos artistas, o arquitecto... bem, vamos separar as coisas – o artista tem que fazer daquela maneira. Eu sou o artista e estou muito interessado em fazer mesas e fiz uma mesa de ferro, há três anos que só exploro mesas. O arquitecto não faz o que lhe apetece, senão deixa de ser arquitecto. O Louis Kahn tem um texto muito bonito em que diz isso – com um tema tudo é mais rápido e mais interessante e mais impressionante, porque a criatividade tem um ponto de partida para se ancorar. Com o arquitecto é a mesma coisa. Imagina que hoje te dizem: Faz o que tu quiseres, constrói o que quiseres. Mas o quê? Nada, tu és livre, faz o que tu quiseres gasta o dinheiro que quiseres, tu é que vais escolher o sítio... Não consigo! A alegria é conseguir juntar todas as condicionantes e dizer: cá está uma coisa interessante, que gosto e é feita em tijolo porque o pai tem uma fabrica de tijolo, não tem 3 pisos porque o bairro histórico não deixa... No dia anterior, com outro sítio, outro cliente, tudo teria sido diferente. É sempre estimulante. Simultaneamente, a nossa profissão é esta: resolver os problemas aos outros. Não temos nada que recusar, nem que dizer que chatice se fosse rico fazia torres para os porcos, o RGEU não deixa, as pessoas são chatas... Tentar fazer com isto qualquer coisa que valha a pena. Não deixa de ser estimulante ter um problema para resolver e, depois do problema estar resolvido, perceber que ali há uma leitura muito própria. O arquitecto tem uma maneira muito própria de ler a realidade que o diferencia ligeiramente dos outros. A cada momento, no sítio certo, cada um vai dando ênfase a uma coisa ou outra e depois as soluções são diferentes nas diferentes partes do programa, sem deixar de o respeitar na globalidade, e isso tem que ver com a personalidade de cada um, com a experiência espacial de cada um, com as memórias que cada um traz consigo. Às vezes pode haver uma síntese que seja muito feliz e outras mais desastrosas. O que une as várias obras de um arquitecto cabe à critica descodificar. É uma questão de sensibilidade, e o nosso papel é importantíssimo porque somos uma espécie de pivots dessas coisas todas. Nós é que sintetizamos e cada um sintetiza de sua maneira.

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As nossas Cidades, de hoje! João Paulo Cardielos *

As cidades já não são os estereótipos que os conceitos tradicionalmente definiam. Não que não existam, esses referenciais da mitologia urbana que as visões cinéfilas do mundo nos vão continuando a apresentar. Mas é bem verdade que o mesmo cinema, tantas vezes caseiro e quotidiano, no home movie que a sala de cinema doméstica de cada um vai permitindo, nos vai igualmente contaminando com as outras cidades, que a teoria tradicionalmente não incluía e as novas revisões começam ou passaram a enquadrar. Tornou-se fundamental assumir a divers©idade1 , pela complexidade já indisfarçável de cada cidade. Se a metrópole contém um pouco de tudo, foi mais difícil aceitar que qualquer pequena sede de concelho encerrava igualmente quase tudo o que as grandes cidades tradicionalmente reservavam só para si. Foi efectivamente este o grande passo evolutivo que agora temos de reconhecer, como consequência do progresso verificado na generalidade dos lugares, face ao crescimento, de cerca de três décadas, dos mecanismos de mercado urbanísticos. Contudo, não é só de metrópoles, conurbações, cidades médias ou pequenos centros urbanos que se faz a carta dos territórios urbanos, como também não é só de áreas urbanas que se fazem as redes urbanas. São tantos os territórios rurais que hoje integram as nossas cidades e tantos os centros rurais que se elevaram ao estatuto de cidade, que parece até, por vezes, lógico e razoável que se promova oficialmente a ruralização dos verdadeiros centros urbanos. E isto é verificável a cada dia que passa na constatação das políticas urbanas que vão sendo paulatinamente implementadas, à sombra dos mecanismos do planeamento municipal, que mais não faz, como se não fosse muito, do

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que desenhar o quadro de urbanização global do território nacional. Mas o processo decorre de forma ambígua e desarticulada – porque suportada numa clara política urbana assente em 309 visões políticas parcelares locais – tantas vezes suportado em visões falsas do próprio carácter urbano dos territórios sobre os quais vai actuando. Referir assim, depois do urbano, o espaço rural, aqui e agora, obriga a questionar também este conceito – porque todos os outros conceitos envolvidos foram já implicitamente postos em causa ao longo do texto. Claro que irá sempre existir muito quem defenda a inquestionabilidade de todos os conceitos tradicionais do urbanismo e, felizmente, temos todos razões para gritar bem alto que eles estão a mudar, ou periferia jamais poderia representar o lugar de eleição e ambição, ou sonho, de tanta média e alta burguesia urbana portuguesa, ou mesmo área de investimento público privilegiada. Estão igualmente a mudar as políticas de planeamento, e ao que se chamou reordenamento periférico, e mais tarde requalificação da periferia, ouvimos hoje apelidar de regeneração de territórios urbanos periféricos, como se na revisão terminológica residisse a solução quimérica da própria condição periferia2. O planeamento municipal assenta o seu regime no instrumento legal menos próprio. A carta de ordenamento, diagnóstico e visão prospectiva, onde se faz a conferência rigorosa das capacidades de uso do solo – a que chamamos PDM – ainda reina, num insuficientemente claro regime de planeamento local que o quadro legal impôs e que dificilmente pode auxiliar a gestão urbanística, seja


por intenções, objectivos ou projectos. Os outros instrumentos legais disponíveis não estão, geralmente, ao alcance das estruturas políticas e/ou técnicas dos municípios. Ao contrário, a opinião pública e o carácter visionário dos dirigentes conduzem efectiva e arbitrariamente as políticas, sem suporte adequado. Por vezes, alto e grande é progresso – geralmente nos pequenos aglomerados –, noutros casos, tem de ser baixo e impõe-se desdensificar, sem medir os parâmetros efectivos que deviam balizar as decisões. E é nas cidades médias – a maioria das principais cidades portuguesas – e sobretudo junto das comunidades socialmente mais activas, que a opinião pública soa mais forte, associada à capacidade de contestação dos actos políticos públicos da administração urbanística local, gerada pela desconfiança fundada na falta de qualidade e transparência das soluções encontradas em anos próximos passados. De facto, a administração actua quase sempre descriminatoriamente, porque é incapaz de distinguir, por exemplo, área central e periferia, quando o devia fazer, e confunde-as quando as podia comparar e aproximar. Os atributos que as tornam procuradas, ou rejeitadas, deviam obrigar à aproximação das soluções e à revisão da complementaridade das políticas. Também se podia aplicar um discurso semelhante relativamente a outros motores teóricos do planeamento urbano, como o património, o tecido sócio-económico, a habitação, a mobilidade ou a rede de equipamentos colectivos. E as cidades reclamam-no, na urgência de medidas que ultrapassem as estratégias e promovam as soluções

de desenho, como repositórios únicos de um ideário urbano colectivo de cada cidade. Subsiste íntegro, ileso, o valor que nos faz sonhar e orienta o projecto urbano – entenda-se projecto da construção quotidiana e paulatina das nossas cidades – nas memórias da delirante Manhattan, ou da visionária Brasília, como o fazem a iluminista Lisboa Pombalina, a feérica e suburbana Las Vegas, a romântica Paris dos “boulevards” ou a histórica red light district de Amsterdam. No íntimo, porque hoje as modas assim o ditam, um pouco de nostalgia cultural1 obriga-nos a repensar sempre, em cada exercício, Barcelona ou Rotterdam! * arquitecto, docente da Universidade de Coimbra

1 © Tem aqui o sentido próprio de um registo de direito exclusivo, para cada contexto urbano, que paradoxalmente o não distingue de todos os outros, pois a sua condição é simultaneamente a de ser único em valores de especificidade local e patrimonial, sendo possuidor de um conjunto de características que se vão repetindo em cada uma de todas as outras cidades de rede em que se inscreve.

2 Área central, bairro histórico, periferia, frente de água, vazio urbano (o terrain-vague, de Solá-Morales e Marcel Smetz), área verde, parque industrial, ou de escritórios, pólo tecnológico e tantas outras zonas, são visões variáveis da mesma condição urbana que é a cidade, e que a excepcionalidade de cada exemplo vai doseando de forma diversa e adequada à sua realidade conjuntural efectiva. 3 Leia-se cultura arquitectónica, ou urbanística, fortemente musculada pelo poderoso efeito de campanha mediático que a divulgação especializada promove nos circuitos de difusão internacional, a que não são alheias as “escolas”, os concursos e prémios, e as “estrelas” do momento.

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da Congestão à Disseminação Pedro Jordão

O mais elevado propósito é não ter qualquer propósito. Isto coloca-nos de acordo com a natureza, com o seu modo de operar. John Cage

das utopias, nasce da tabula rasa. Mas é bem mais radical do que a Ville Radieuse de Le Corbusier, por exemplo, porque não nasce de um planeamento pré-determinado, mas de um movimento difuso e espontâneo. Não nasce de uma vontade. Acontece.

As pessoas conseguem habitar qualquer coisa. E podem ser miseráveis em qualquer lugar e extáticas em qualquer lugar. Cada vez mais penso que a arquitectura não tem nada a ver com isso. Claro, isso é simultaneamente libertador e alarmante. Mas a Cidade Genérica, a condição urbana geral, está a acontecer por todo o lado, e o simples facto de ocorrer em tão grandes quantidades tem que significar que é habitável. Rem Koolhaas

A Cidade Genérica representa o corte definitivo com as visões historicistas herdadas do pósmodernismo de Aldo Rossi. Nem sempre o passado se reflecte no futuro. Nem sempre há uma doutrina. Porque a Cidade Genérica é um fenómeno total e as doutrinas, na cidade, só se aplicam fragmentadas. O genérico não representa tanto uma perda de identidade, mas a apropriação de uma nova identidade, de total indiferença, sem centro, sem periferia, sem entraves à expansão. Há uma fuga ao cativeiro do centro, sempre demasiado exigente, absorvente – demasiado hierarquizador. A Cidade Genérica expande-se e renova-se através da multiplicação exponencial do mesmo módulo estrutural simples, como um fractal, sem contemplações por nenhuma ordem, ocupando o vazio ou destruindo e substituindo o existente. Aquilo que não funciona é simplesmente eliminado e rapidamente esquecido. Na Cidade Genérica há sempre espaço para todos, a habitação nunca é um problema. A expansão é imparável e a elevada densidade multiplica os habitantes por metro quadrado. O arranha-céus é a tipologia definitiva.

As palavras também são importantes. Importa dar nomes às coisas, classificá-las. É mais do que o conforto de as reconhecermos nesse som que lhe associamos. É o modo como nos permitem tornálas concretas, como nos ajudam a lidar com elas. Rem Koolhaas nunca o ignorou. Tem inclusivamente dedicado muito do seu tempo a catalogar os fenómenos contemporâneos. Em 1978, com a publicação de Delirious New York, Rem Koolhaas define a Cu ltu ra da Co n gestão , a cultura da máxima concentração, da máxima densidade, da total interacção humana. O seu modelo era Nova Iorque e o fenómeno não era novo. Por isso, o manifesto era retroactivo, porque decorria sobre algo iniciado décadas antes. Mas que atingia, nesse momento, a maior pertinência, com o modelo a ser exportado para cidades de todo o mundo como a materialização repentina, selvagem, das necessidades e capacidades das suas populações. Começava a surgir o que Koolhaas viria a designar de Cid ad e Gen ér ica, a expressão urbana da Congestão. Mas Nova Iorque nunca foi uma utopia. Utopia significa sem lugar e a sua beleza está intimamente ligada à impossibilidade da sua concretização. Mas existem realidades concretas que conseguem ser mais radicais do que os sonhos. Que conseguem que a sua beleza resida precisamente na inevitabilidade da sua materialização. A Cidade G e n é r i c a é um modelo que corresponde exactamente a esse paradigma. Como a maioria

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A Congestão é o valor fundamental. Mas não é uma intenção, é uma consequência inevitável. Como a Globalização não é um fenómeno concreto e concertado, mas um conjunto complexo e espontâneo de acções. Acima de tudo, importa reter que a Ci d a d e Genérica é real. Encontra-se defronte do nosso olhar. Principalmente na Ásia, onde a demografia e uma determinada cultura permitiram a importação do modelo seminal do Ocidente e a sua transformação em algo mais radical. Em alguns casos, como em Singapura, assistiu-se à completa remoção de quaisquer sinais de autenticidade, de identidade. São cidades sem história. São as cidades da contemporaneidade total. Na Europa, dez vezes mais densa do que os Estados


Unidos, a Congestão é, paradoxalmente, um conceito envergonhadamente evitado. A horizontalidade é ainda o único sentido da edificação da cidade. Enquanto isso, em certos pontos do globo, a Congestão atingiu tamanha dimensão que se deu um efeito de explosão. A concentração numa cidade deu lugar ao rápido aparecimento de vastas regiões de novas cidades. É a chegada da Cultura da Disseminação, da dispersão, a cultura do novo século. O máximo exemplo desta nova realidade encontrase no Delta do Rio Pérola, na China, que Koolhaas identificou e investigou em Mutations. O Delta não contém uma única cidade mas um aglomerado de cidades, como Hong Kong, Shenzhen, Guangzhou, Zhuhai e Macau. A dimensão desta megalópole é avassaladora. A real percepção é quase impossível, mas os números ajudam – todos os anos são gerados mais 500 quilómetros quadrados de área urbana, o que corresponde ao dobro da área metropolitana de Paris. Só em Shenzhen, uma cidade de torres, sem que nenhuma tenha mais de dez anos, estima-se que nas próximas duas décadas a sua população, de 12 milhões de habitantes, triplique. A principal característica deste aglomerado urbano está no facto da coexistência, o funcionamento e a legitimidade das cidades que o compõem, se determinarem pela sua extrema diferença mútua. É desta observação que surge um novo modelo de cidade que Koolhaas denomina de Cidade da Diferença Exacerbada. A sua tese é a de que toda a área se irá tornar uma nova entidade urbana, mas que a sua unidade está prevista como um constante exagero das diferenças entre cada elemento, sem qualquer pretensão de homogeneidade e, ao mesmo tempo, criando todo o tipo de ligações que, uma vez mais, não geram igualdade mas contrastes. Esta realidade transforma as cidades em estruturas muito delicadas e instáveis, independentemente da sua eventual aparência brutal – qualquer mudança num qualquer ponto obrigará todo o sistema a readaptar-se, sob a pena de colapsar. A sedução faz parte do urbanismo de cada uma destas cidades e tudo é válido para atrair as massas que se fixarão no seu seio, sendo que a sua táctica Vista da cidade para o porto

não reside em tentar a aproximação às outras cidades, o que lhes retiraria vitalidade, mas em explorar as suas diferenças, renovando-as continuamente. Há, por isso, que estar atento às transformações dentro do sistema. A homogeneidade por vezes aparente da malha urbana da Cidade da Diferença Exacerbada esconde igualmente uma miríade de diferenças. As similaridades são estritamente geradas pela descontrolada velocidade de construção e pela enorme escala. O processo é assimétrico e é, como no modelo da Cidade Genérica, quase autónomo, evoluindo a um ritmo quase impossível. A velocidade das encomendas está completamente para além das capacidades e da preparação do arquitecto tradicional, tudo lhe escapa. Pura e simplesmente não há tempo. Não há lugar para uma análise ponderada das várias soluções, do programa. Na China, desenham-se edifícios de 40 andares em menos de uma semana, num acto puramente mecânico, o mais versátil possível. Tudo deve poder ser convertido, nomeadamente com a obra já em curso. Neste contexto de hiperdesenvolvimento, os valores tradicionais da arquitectura – composição, estética, equilíbrio – são irrelevantes. Os arquitectos ocidentais, por comparação, não constróem nada. Estão virtualmente extintos. A situação urbana vai rapidamente transformandose, até se tornar irreconhecível, numa dispersão que parece nunca poder parar. Auto-estradas avançam por grandes extensões vazias, alguns metros acima do solo, sem qualquer destino. São a intenção firme de propiciar a Disseminação. Levam-nos ao futuro, aos locais de implantação de cidades eventuais. Em cada intersecção está projectado o núcleo de uma cidade, em alguns casos já parcialmente construído. É o supremo exercício de antecipação.

Não são valores ou modelos urbanos adoptáveis, porque não são fórmulas, são quase acidentes. Mas também não são, pelo mesmo motivo, recusáveis. E não são utopias, são realidades firmadas. Congestão e Disseminação, palavras aparentemente distantes, tornaram-se conceitos incontornáveis. Nem que seja para compreendermos as nossas cidades à luz do seu contrário.

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Identidade, Contexto e Globalização Javier Cenicacelaya *

No início de 2000, dei os primeiros passos na organização de uma conferência internacional sobre a questão da globalização e a sua incidência na cidade europeia. Em Março de 2001, ela teve lugar em San Sebastian, com o título Identidad, contexto y globalización. Nuevo urbanismo europeo. A assistência de vários oradores dos Estados Unidos e do Japão, serviu para poder comparar as situações nos três âmbitos de maior desenvolvimento económico do planeta. O programa colocava um debate sobre questões que, tal como se anunciavam, transcendiam a própria arquitectura. Como afecta a globalização as diferentes identidades locais? Que sucede com as posições de resistência à uniformidade global? Como afecta a situação presente os diferentes países e regiões europeus? Serão as cidades os únicos redutos de participação real e de democracia? Receberão as cidades e regiões, funções específicas dentro de um organismo global? Deverão converter-se as cidades europeias em parques temáticos? Importa o contexto num programa global? Que tipo de urbanismo enfrentamos nos próximos anos? O tema transcende o estrito âmbito da arquitectura porque a globalização é um fenómeno

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contemporâneo que afecta todos os acontecimentos da vida. De facto, a universalização e a internacionalização da cultura nos seus mais amplos términos, estão implícitas na ideia de progresso desde o nascimento do humanismo. E proclamadas como um valor desejável desde o Iluminismo. É a escala que tem vindo a aumentar ao longo dos últimos séculos, até alcançar todo o globo. Este aumento da escala da universalização e internacionalização foi possível com a chegada das novas tecnologias de comunicação, com as denominadas auto-estradas da informação. O aumentou foi a velocidade, até ao ponto de se tornar instantânea. Hoje sabemos o que sucede em qualquer lugar do planeta numa questão de segundos. Estamos ante uma situação impensável há apenas uma década atrás. Este processo de incremento da velocidade segue num ritmo imparável e, com ele, vão encurtando-se as distâncias. Ao mesmo tempo, produz-se um reposicionamento dos lugares do planeta, das cidades do mundo, dado que a população tende a concentrar-se nas cidades. Isto faz com que cidades implantadas em territórios de um grande protagonismo internacional possam ficar lateralizadas ou marginalizadas, do mesmo modo que outras cidades, distanciadas


fisicamente dos actuais territórios centrais, podem reposicionar-se, passando a ocupar os primeiros lugares na inter-relação global. Tudo isto coloca incertezas, desassossego na ânsia de não ficar de fora do jogo que a globalização coloca. Estamos ante uma nova percepção do nosso meio, de tal modo que podemos sentir como mais próximos os acontecimentos e a vida de uma cidade muito distante da nossa e, ao mesmo tempo, ignorar ou sentir como remotas tantas cidades da nossa proximidade, que desaparecem dessa nossa nova percepção. Os movimentos financeiros que a nova economia contempla, não se regem por antigas hierarquias territoriais. A sua única regra é a optimização dos resultados, dos benefícios. E esta regra, que cavalga sobre as novas tecnologias, é a que leva a cabo todo este grande reposicionamento dos diversos lugares do planeta. Aqueles que interessam, potenciam-se ou surgem quase ex-novo; os que não interessam, desaparecem de cena, condenados a extinguirem-se numa lânguida decadência. Na busca dessa optimização, assistimos à mais gigantesca concentração de poder económico que a História conheceu. As grandes corporações unemse, formando outras ainda maiores num afã de atender uma clientela planetária. Uma clientela

que anela os mesmos produtos que estas mesmas corporações lhes oferecem através dos sistemas de comunicação e informação também já planetários. De tal modo que a inevitável internacionalização não fez senão aumentar a sua escala até um grau colossal, planetário, total. É também daqui que surge a uniformização da cultura. Algo que, não sendo um fenómeno novo, viu o seu nível de uniformização aumentado em grande medida, parecendo que continuará a fazêlo de um modo formidável nas próximas décadas. Creio que os exemplos da nossa vida quotidiana nos mostram este processo de modo muito evidente. O cinema e a televisão propõem uma determinada maneira de viver, de acordo com o modelo da nova economia. Assim, viver num lote de uma zona residencial, por exemplo, onde o único uso que pode levar-se a cabo é o de residir, levar as crianças de autocarro a uma escola distante da residência, comprar o necessário um dia por semana ou em cada quinze dias num grande centro comercial, realizar o nosso trabalho ou o nosso ócio em lugares distanciados da residência, etc., é uma maneira de viver desejada cada vez mais à nossa volta, como réplica ou imitação do modo de vida americano.

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Este é um exemplo evidente da influência que os meios de comunicação exercem lenta e inexoravelmente nessa crescente uniformização que corresponde ao processo de globalização. De tal modo que os lugares parecem-se cada vez mais uns com os outros, conferindo segurança ao viajante. E até aqui não descrevi senão uma mera constatação dos factos, de factos evidentes e por todos conhecidos. A uniformização propiciará uma selecção de uns modos sobre os outros, em certo sentido um darwinismo cultural. Mas não apenas isso, como também um darwinismo estritamente ecológico, que é o mesmo que dizer, do tipo de relação que se estabelece com o meio. Este é um aspecto de particular relevância no que concerne à arquitectura e mais especificamente à cidade. Como devem entender-se as cidades do novo mundo globalizado? A ecologia passou a um primeiríssimo plano de interesse para todos os indivíduos de todos os lugares do mundo. Afecta todos de igual modo. O ecologia é possivelmente o único valor realmente universal que aglutina o Homem acima de todas as particularidades e singularidades que queiram propor-se. A sensibilidade pelas questões ecológicas tem vindo a aumentar desde há várias décadas. Já ninguém questiona a sua transcendência. Até onde pode chegar o actual modelo económico, social e cultura proposto pela Nova Economia globalizada na depredação dos recursos planetários? Se a tendência mundial é a concentração de em grandes cidades e grandes metrópoles, que modelos ou que ideias se sugerem para os próximos anos? Se faço uma referência à ecologia, não é tanto pelo auge a que chegou, até ao ponto de constituirse no primeiro valor universal, mas também porque, hoje, a ecologia urbana é contemplada como uma questão central para o equilíbrio ecológico do território. Fala-se muito de ecologia urbana, da paisagem, da relação com a paisagem às diferentes escalas do rural, do urbano e do metropolitano, da sustentabilidade, etc. Mas todas estas áreas de preocupação incidem sempre sobre o mesmo problema: a criação de um habitat equilibrado. Ou, dito por palavras muito simples, que a cidade não destrua o meio, não o consuma, não o extinga. Se bem que possa parecer-nos, por vezes, alarmista o chamar de atenção sobre o esgotamento do meio, as últimas décadas do século passado mostraram claros exemplos em que a destruição do meio cresceu de maneira inexorável. Porque todos sabemos que os recursos naturais são finitos: a água potável, os bosques, a terra susceptível de cultivo... A sobreutilização de qualquer um desses elementos, e outros de similar importância, leva a u m a i n e xo r á ve l d e s t r u i ç ã o d o m e i o. Hoje em dia, assistimos a situações como a da Grande Londres, Holanda ou regiões metropolitanas da Alemanha, em que o solo se esgotou. Já não resta solo. E essa questão preocupa-nos igualmente a nós, no País Basco, neste nosso pequeno e montanhoso país. Chama-nos muito a atenção observar como em contextos como o norteamericano – onde existe o mito da fronteira, ou nu [junho 2002]

seja, essa atitude mental de que o território é infinito e inesgotável – já surgiram poderosas vozes de protesto contra a colossal sobreutilização do solo dos subúrbios americanos. Vozes de protesto do mundo civil, das associações civis, à margem dos debates académicos, que reclamam a tomada de consciência, por parte da administração norteamericana, para modificar uma legislação inoperante no que toca ao desmesurado crescimento do subúrbio. Não é ao mundo académico que dirigem as atenções as associações civis americanas e os cidadãos, na hora de reclamar uma poupança do solo e alternativas que resultem mais ecológicas. É perfeitamente compreensível o auge do movimento denominado Novo Urbanismo, que já aparece como a única proposição dentro de um panorama carente de ideias e proposições operativas. Mas, a meu entender, o mundo académico não pode permanecer ausente das preocupações da gente da rua, da sociedade civil. Todos sabemos que a cidade europeia, e as metrópoles europeias, são mais compactas que as norte-americanas. E é por essa diferença que, do outro lado do Atlântico, observam com interesse a questão da densidade ou compacidade da Europa. Sabemos que o Novo Urbanismo americano está a lutar intensamente pelo incremento de densidade desde as cinco ou dez habitações por hectare até elevá-la às 30 ou 50 habitações por hectare. As cidades europeias têm densidades de 200, e até 300, habitações por hectare, ou seja, estamos muito longe numericamente dos Estados Unidos, mas ao menos, na questão da compacidade e da densidade, existe um ponto de interesse comum. O mesmo se pode dizer da mistura de usos e de muitas outras questões. A identidade e a globalização aparecem, desde há alguns anos, como um binómio de inseparáveis termos. Tal como a cultura e a civilização, a natureza e o artifício, a razão e o sentimento, a união e a fragmentação e tantos outros binómios que constituem em si mesmos os elementos de equilíbrio de uma sociedade de progresso, dentro dos termos e do sentido do progresso colocados e desde o humanismo renascentista e em especial desde a modernidade iluminada. O desequilíbrio de uma das partes de cada binómio gerou, ao longo da História, as fricções que tendiam para a busca do equilíbrio das partes. Creio que nos encontramos enquadrados num destes binómios. À medida que a globalização aumenta, incrementa-se a necessidade de identidade. Indagar sobre os traços constituintes da identidade será, nesse sentido, não só interessante, como algo inevitável. Se a globalização já está implantada de modo evidente e desenfreado, as análises e reflexões em torno da identidade são ainda, no meu entender, incipientes. Mas nem por isso são menos importantes. E principalmente, creio que são uma área de interesse para os intelectuais e académicos. Será a nossa velha Europa, depositária de tanta diversidade, capaz de colocar reflexões de interesse nesse sentido? * arquitecto, docente da Universidad del País Vasco


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[ 1º acto ]

Casa na Rua de Sobre Ribas XM [ Pedro Brígida e Alice Faria ] com projecto base de Paulo Antunes e Sofia Almeida

FICHA TÉCNICA LOCALIZAÇÃO: RUA DE SOBRE RIBAS, COIMBRA PROJECTO-BASE (1996): PAULO ANTUNES E SANDRA ALMEIDA PROJECTO DE EXECUÇÃO E ACOMPANHAMENTO DA OBRA (1999-...): XM ESTABILIDADE: ANTÓNIO JOSÉ CORREIA ÁGUAS E ESGOTOS: ANTÓNIO JOSÉ CORREIA CONSTRUTOR: REIS PINTO LDA ÁREA DE IMPLANTAÇÃO: 28 m2 ÁREA BRUTA DE CONSTRUÇÃO: 140 m2 DATA DE CONSTRUÇÃO: 1 FEVEREIRO 2000-...

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A casa foi moldada à semelhança de um bolo-rei: encher de luz e de possibilidades um lote pequeno e estreito numa zona muito apetecível da cidade. A luz é o que permite subir sem cansaço os cinco pisos de elevação, passando por outras tantas zonas da casa. As frutas cristalizadas ficaram só por dentro para ser preciso querer para ver. O brinde é uma vespa guardada na arrecadação. A solução é extensível a outras apropriações por isso era bom que viessem muitos vizinhos novos.

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1m CORTE TRANSVERSAL PELO SAGUテグ

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[ 1º acto ]

E para além das torres? Sandra Pinto *

O debate contemporâneo sobre a cidade debruçase, preferencialmente, sobre o seu crescimento, seja horizontal ou vertical. De facto, até ao advento da Revolução Industrial, os espaços urbanos formavam um biótipo equilibrado e o skyline era formado por uma série de construções baixas e homogéneas, apenas acentuado por edifícios que representavam poderes religiosos e/ou políticos. Com o progresso científico-tecnológico a cidade deixou de ser finita, expandindo-se. O desafio do céu tornou-se comum e exequível para qualquer mortal, suportado pelo pertinente argumento da escassez do uso do solo. Contudo e apesar da construção vertical ser bastante usual, a crítica constante às novas Torres de Babel reacende cada vez que a validação deste modo de edificar é posto em causa, pelos mais variados factores e acontecimentos. A questão primordial do trabalho1, que serviu de suporte para este artigo, centra-se na explanação de que a construção em perímetro consegue a maximização do uso do solo, de acordo com os estudos de Leslie Martin2, em confronto com a ideia generalizada que o meio mais lógico do aproveitamento da parcela urbana era a da sua multiplicação vertical. Mas, ao mesmo tempo, a edificação em pátio recupera os valores espaciais de bairro, de rua, de praça, que se tornaram fundamentais no desenvolvimento urbano, em resposta à crise da cidade modernista. De facto, os modelos de formas construídas3 em altura ou em perímetro, não pretendem ser as únicas possibilidades de actuação nos espaços urbanos, mas, porém e devido à absoluta necessidade de densificação, considera-se que representam a maneira mais válida de o fazer. O problema fulcral é antes a optimização programática e semântica destas composições arquitectónicas nas áreas citadinas, como estratégia para o seu desenvolvimento. As apreciações que se seguem correspondem a uma análise comparativa dos dois modelos de formas construídas, em altura e em perímetro, abrangendo também as relações e afinidades endógenas dos seus espaços envolventes. Numa primeira fase, os arranha-céus americanos tinham como justificação para a sua altura a optimização do elevado custo dos terrenos centrais. Porém, mantendo constante o ângulo de obstrução, de modo que os diferentes tipos de edificação beneficiem das mesmas condições de insolação,

nu [junho 2002]

verifica-se que o índice de utilização, definido em percentagem pela razão entre a área bruta construída e a área do terreno ocupado, é menor nas formas em torre do que nas formas em pátio. Por outro lado, os transportes mecânicos verticais que possibilitam a ascensão da construção são, igualmente, os responsáveis pelo aumento do custo construtivo dos edifícios (para além de outras especificações técnicas, como a estrutura, a necessidade de prever soluções que garantam os níveis de segurança exigidos, no controlo e combate a incêndios ou mesmo à pressão eólica, entre tantos outros), pelo que se deduz, que as formas construídas em perímetro têm um custo efectivamente mais reduzido, pois, para além de utilizarem uma menor área de terreno para um mesmo volume edificado, atingem uma menor altura, não necessitando, por isso, de um recurso tão intenso aos elevadores. Posto isto, a multíplice proliferação e, até mesmo,

a banalização das construções verticalizadas que se verificam presentemente, devem-se especificamente a acções formais de acordo com o seu significado simbólico, dado que esta forma construída converteu-se principalmente em referência urbana, símbolo de riqueza e poderio económico, tornando-se um meio de chegar a uma suposta qualidade através da quantidade. Estas pontuam o skyline por contraste na composição dos planos horizontais, representando linhas de força verticais, expressando e descodificando uma estrutura socio-espacial urbana. Com efeito, o eixo vertical representa a dimensão sagrada do espaço como uma passagem para outra realidade cósmica, enquanto que a direcção


horizontal aliada ao espaço central expressa as qualidades de uma área conhecida e delimitada no campo concreto da acção humana. Deste modo, a construção habitacional, em perímetro, concilia por um lado, a intensificação do solo, como um factor importante para a vitalidade urbana, mas, por outro, uma diversidade dos edifícios e dos espaços envolventes. Promove a multiplicidade das interacções entre a população e a variedade de cenas, gerando uma grande diversificação de acções propícias ao desenvolvimento das relações sociais, conseguindo uma vizinhança citadina bem sucedida, contrariamente à uniformização e monotonia de espaços que exponenciam a segregação e a voluntária escolha de auto-exclusão. Todavia, é através da construção em altura que os espaços urbanos adquirem características metropolitanas ou que pelo menos procuram conseguir essa simbologia e raras são as cidades com protagonismo mundial que não têm os centros

de negócios guarnecidos com arranha-céus. Mas, para existirem elementos marcantes que funcionem como símbolos que actuem como ícones orientadores e referenciadores dos mapas mentais, é necessário que estes se constituam como excepção entre componentes menores na integração do todo citadino, onde o contraste é acentuado porque as formas perceptíveis são nitidamente distintas.

É precisamente a partir desta especificidade de aspectos que os espaços urbanos reforçam o seu carácter e a sua imaginabilidade, que deve ser única.

Nesta perspectiva, pretende-se que a adopção de uma forma construída no espaço urbano seja feita de modo consciente e de acordo com as implicações que lhe estão implícitas, não devendo ser apenas um acto de afirmação ou de individualidade do projectista, mas atendendo que a mais-valia deverá estar no total usufruto dos utentes, onde se poderá afirmar que cada caso é um caso, embora que, a cada tipo de edifícios corresponde um significado que lhe é congénito. No entanto, é no sentido e na procura de uma interpretação racional e consciente do seu significado público, nomeadamente, ao nível da comunicação linguística, que se legitimam as tipologias edificatórias na sua atribuição programática e na adequação aos espaços construídos, estabelecendo-se uma ligação directa e imediata entre a sociedade e o espaço. * arquitecta

1

Pinto, Sandra (2002), S-XXL, Uma abordagem à problemática dos modelos de formas construídas, em perímetro ou em altura, nos espaços urbanos actuais, Prova Final da Licenciatura em Arquitectura, orientada pelo Professor Arquitecto Mário Krüger, Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra 2 Martin, Leslie (1972), The grid as generator, in Urban space and Structures, Cambridge University Press, Londres, 6-27 3 Os modelos de formas construídas representam edifícios e suas propriedades com o grau de complexidade desejado em estudos teóricos, não como objectos em si, mas como representações simplificadas da realidade 4 Mesmo que seja inerente à acepção desta forma construída, visto que o termo arranha-céus aparece como conceito de um significante que é simplesmente formal, pois contém a indeterminação do programa que lhe é destinado

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[ contaminações ]

As Cidades Obscuras

de Peeters & Schuiten

José Brites Habituámo-nos ao ser humano como principal motivo do enredo das histórias que cria, tornando-se condicionante incontornável do meio (físico ou não) que o rodeia. Não obstante, há ocasiões em que os papéis se invertem e em que o meio condiciona, não só o ser humano como a sua forma de vida e toda a sua organização social. Foi com esta ideia em mente que o argumentista Benoît Peeters e o ilustrador François Schuiten levaram a cabo a elaboração de As Cidades Obscuras/ Les Cités Obscures, série de banda desenhada cuja temática principal é a exploração de hipotéticas realidades sociais que determinado género de arquitectura poderia gerar. Como cenários, Schuiten e Peeters adoptam as visões e projectos futuristas do passado, sabendo que estes reflectem inevitavelmente o estilo próprio da época em que foram concebidos. Assim, em As Muralhas de Samaris/Les Murailles de Samaris a Arte Nova é tida como modelo arquitectónico e estético; em A Febre de Urbicanda/La Fièvre D’Urbicande a Art Déco converte-se no ponto de partida para o desenho de uma metrópole a braços com um estranho fenómeno de crescimento; em A Torre/La Tour o monumentalismo dá o mote, num cenário reminiscente de A Torre de Babel de Bruegel. De uma publicação para outra é cada vez mais patente, não só uma coerência lógica entre as diversas histórias e urbes imaginadas, cruzandose os personagens nas histórias que vivem, como também é possível estabelecer paralelos entre a realidade e a ficção. Existem numerosas relações entre certas cidades do nosso mundo e as do mundo obscuro: Bruxelas e Brüsel, Paris e Pâhry, Geneva e Génova. Certas personagens ganham uma importância fulcral no universo das Cidades Obscuras. Curioso é notar que algumas delas são figuras do nosso mundo dissimuladas sob forma das criações arquitectónicas que empreendem: a cidade de Xhystos (Les Murailles de Samaris) é inteiramente dedicada a Victor Horta (o mais marcante arquitecto belga do movimento da Arte Nova); Eugen Robick (La Fièvre D’Urbicande) é descrito pelos autores como discípulo desconhecido de Le Corbusier e Joseph Poelaert será o responsável pela criação do Palácio dos Três Poderes (Brüsel). Considerado um dos melhores trabalhos do género até hoje concebidos, no seguimento da melhor tradição de banda desenhada belga, a série ganhou já diversos prémios, incluindo o prémio para melhor B.D. no Festival de Angoulêmme (o maior e mais prestigiado evento mundial da denominada nona arte). Companheiros de infância e colegas de trabalho n’As Cidades Obscuras desde cerca de 1980, os seus autores, François Schuiten e Benoît Peeters, dedicam-se igualmente a projectos pessoais contando já, a nível individual, com um currículo invejável. Nascido em Bruxelas em 1956, Schuiten inserese numa família de arquitectos, embora o próprio tenha optado por não seguir essa área. Foi coautor de diversos álbuns de B.D., entre os quais Aux Médianes de Cymbiola; Le Rail; 9ème Rêve (álbum triplo); Terres Creuses, série de três nu [junho 2002]


álbuns – Carapaces, Zara e Nogegon. Responsável pela concepção gráfica dos filmes Gwendoline de Just Jaeckin e Taxandria de Raoul Servais, trabalhou ainda como coautor da série de animação Les Quarxs e como cenógrafo para as produções La Ville Imaginaire (Cités CinéMontréal), L'évasion (Grenoble, Festival du Polar) e Le Musée des Ombres, assim como para o pavilhão do Luxemburgo patente na Expo 92 de Sevilha e para o Pavilhão da Utopia na Expo 2000 de Hannover. Nascido em Paris em 1956, Benoît Peeters, tem vindo a desenvolver desde novo a prática da escrita nas suas mais variadas formas (romance, biografia, narração ilustrada, argumento para cinema, teatro radiofónico e banda desenhada), tendo sido autor/co-autor nas publicações Le Monde d'Hergé, L'intégrale d'Hergé e La Bibliothèque de Moulinsart, Le Signe de Lucifer, Love Hôtel (pela revista de banda desenhada A Suivre) e Le Théorème de Morcom. Em banda desenhada integral, da série Les Cités Obscures/As Cidades Obscuras, encontram-se já publicados os álbuns: /As Muralhas de Samaris; /A Febre de Urbicanda; /A Torre; ; /A Menina Inclinada e /A Sombra de um Homem. Sob outras formas de narração: L'Archiviste/O Arquivista; /Na Rota de Armilia; Le Musée A. Desombres/O Museu Augustin Desombres; /O Eco das Cidades; /Mary - A Menina Inclinada e /O Guia das Cidades. É também possível visitar e recolher dados sobre o mundo das Cidades Obscuras no site oficial d a s é r i e , www.urbicande.be (disponível em português), ou no endereço www.ebbs.net.

p 30.31


[ cheese-ham files ]

#3 Vasco Pinto

A Holanda é a outra coisa. Impossível encontrar uma realidade e cultura mais desconformes da portuguesa. Para quem procure em ambientes longínquos, os nossos antípodas mentais, sejam eles o Japão ou a Nova Zelândia, a minha hipótese de base é que eles se situam geograficamente em lugar bem menos exótico e por isso ainda mais distante e perturbador, num país em que uma realidade e uma história, em muitos aspectos semelhantes, evoluiram para formas completamente divergentes, perfeitamente estruturadas, impossíveis, assim de repente, de compreender ou de julgar. Os livros do mês são dois olhares sobre a cultura arquitectónica holandesa contemporânea: Superdutch — de Bart Lootsma — New Arquitecture In The Nederlands, e Post.Roterdam, Architecture and City After the Tabula Rasa — catálogo de exposição integrada na programação de Porto 2001, Capital Europeia da Cultura que explorava a coincidência do evento nestas duas cidades. Esta é também a minha tentativa para superar o abismo e para vislumbrar de que maneira improvável a lisura da toalha de terra, as tulipas, os diques e os moínhos de vento fizeram da Holanda o berço de Koolhaas e um dos epicentros da arquitectura mundial. Terá sido o Calvino que não tivemos, apanhando por tabela com os jesuítas e a contra-reforma, os judeus que exportámos e ajudaram a fazer do capitalismo holandês algo desesperantemente moderno contra a nossa incapacidade de termos sequer uma revolução industrial condigna, ou simplesmente o erro histórico de termos escapado aos bombardeamentos nazis da segunda guerra? As obras e os nomes em foco (praticamente comuns nas duas edições) são os da nova geração de arquitectos holandeses, que na senda de Koolhaas, com ironia e desvelo se elevaram da condição real holandesa que é afinal um inferno de politicamente correcto, vaquinhas e alta-tecnologia e também densidade multi-racial, consumismo, planeamento integral e sobreregulamentação. Embora P ost.Roterdam contenha o móbil compreensível de Roterdão, a mais niilista e selvagem das cidades holandesas, são afinal duas antologias da diversidade de visões que possibilitou a arquitectura holandesa dos anos 90. Convergentes na demonstração de como a paródia hiper-modernista holandesa assume como linguagem de fundo a tradição grave e irrepreensível de Berlage, de Klerk, Rietveld, Oud, Van Eesteren, Dudok, Duiker, Bakema, Van Eyck, Hertzberger... Ufa! Comuns também a obsessão do rigor e do trabalho, o over-design e uma mistura paradoxal de depuração e exibicionismo (quase pornográfico nos melhores exemplos). Divergem apenas nas idiossincrasias particulares de cada um destes arquitectos: a sobranceria muda, quase suíça de Wiel Arets, a fluidez virtual dos espaços-diagrama de NOX e Oosterhuis.NL, o pragmatismo radical da OMA, a consciência territorial de Adriaan Geuze e West 8 ou o experimentalismo excêntrico de Van Berkel e MVRDV. Prolixidade imensa que não se esgota na matéria sólida da arquitectura física mas se espraia por livros-manifesto a glosar o esgotadíssimo S,M,L,XL (1995). Farmax e Move (de 1999) são as bíblias gráficas de MVRDV e do Un Studio de Van Berkel e Caroline Bos. Uma palavra também para o design holandês que tem em Droog & Dutch Design um inventário fundamental de obras e autores recentes reunidas pela figura tutelar de Gijs Bakker cuja monografia, Objects to Use, é ainda por cima um exemplo acabado das produções hiper-gráficas da editora 010. A Holanda é assim mesmo: um inferno (e pergunto se Koolhaas será afinal muito diferente de Witkin). O Rui e o Bernardo ainda se lembraram dos Bettie Serveert e dos Schocking Blue (autores de Love Buzz e Venus, popularizados por versões dos Nirvana e das Bananarama), mas são excepções, e a esquizofrenia holandesa é – quero acreditar – quase exclusivamente visual. Conclusão: vão à Holanda, apanhem um esquentamento de arquitectura, folheiem os livros de trás para a frente como se entrassem num peep-show... but please: don’t try to do that things at home. ponto final. nu [junho 2002]


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John Pawson Sendo um dos principais nomes da arquitectura inglesa, John Pawson é o arquitecto asceta, o arquitecto do minimalismo extremo, austero. Apesar de deter uma vasta obra, John Pawson é particularmente (re)conhecido pelo projecto para a sua casa e para diversos espaços comerciais, nomeadamente da cadeia de lojas Calvin Klein. Levando os seus gestos para além das fronteiras da arquitectura, John Pawson é também criador de diversas peças de design e autor do livro Minimum.

Escolha e relacione-se com: uma cidade... Londres uma obra de arquitectura... Novy Dvur

[o novo mosteiro cisterciense que projectei na Boémia]

um artista... Donald Judd e L. Fontana um livro... Architecture of Truth, Lucien Hervé, com prefácio de Le Corbusier [colecção de fotografias da Abadia cisterciense de Le Thoronet, Provença] um filme... Death of a Teamaster uma experiência... Uma experiência próxima da morte, no início deste ano, na Índia, em que um amigo meu foi morto uma influência... Shiro Kuramata e a minha mulher, Catherine um objecto de consumo... Um garfo de prata Georgiano de três dentes um vício... Obsessão uma palavra... Branco um futuro... Trabalhar com sucesso aos 85 p 32.33


I SSN 1645-3891

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